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DANIEL COELHO DE SOUZA Professor catedrático da Universidade Federal do Pará Exmembro do Conselho Federal de Educação INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO 6ª edição editora C cejup

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Livro de Introdução à Ciência do Direito

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DANIEL COELHO DE SOUZA Professor catedrático da Universidade Federal do Pará

Ex­membro do Conselho Federal de Educação

INTRODUÇÃO

À CIÊNCIA

DO DIREITO

6ª edição

editora C cejup

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INTRODUÇÃO

A introdução à ciência do Direito responde, no curso jurídico, à necessidade de uma disciplina geral. Os cursos superiores, desenvolvidos por disciplinas especializadas, reclamam que ao estudo setorial preceda outro geral. Esta conveniência é mais veemente no curso jurídico, cujo objeto é histórico: regras obrigatórias de conduta na sociedade de um tempo, o que, provavelmente, levou Benjamin de Oliveira Filho a reivindicar para a introdução caráter eminentemente cultural.

Não é, aliás, este imperativo apenas de ordem didática. O saber jurídico, qualquer que seja o nível em que o consideremos, só pode ser bem exposto e compreendido, se o seu estudo se inaugura pelo exame das suas generalidades, pretensão mais ambiciosa e fecunda do que a sua simples visão sintética sugerida por A. B. Alves da Silva.

Objetivo de tal natureza sempre foi almejado. Várias foram as tentativas de alcançá­lo: a enciclopédia jurídica, a filosofia do Direito, a sociologia jurídica, a teoria geral do Direito e a introdução à ciência do Direito.

Enciclopédia jurídica

A enciclopédia jurídica foi a mais remota. Adotava por padrão a estrutura do Corpus Juris, tradicional codificação do Direito romano.

Pretendem alguns que a obra de Gulielmus Durantis 1237­1326), o Speculum Judiciale (1275), seja considerada pioneira no gênero, o que outros contestam. O texto de Durantis abrangia o Direito romano e o canônico, destinando­se mais propriamente às autoridades judiciárias do que ao estudo do Direito.

A literatura enciclopédica floresceu a partir do século XVI, quando se divulgaram numerosos trabalhos compreendendo todos os ramos do direito de maneira sistemática, entre os quais se destacaram os de Lagus e Hunnius, atribuindo alguns a este último a verdadeira fundação da enciclopédia jurídica.

No século XVIII, resultante do divórcio entre a filosofia e as ciências positivas, duas tendências passaram a atuar na enciclopédia jurídica, do que

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decorreu que algumas obras se inclinassem no sentido dogmático ou positivo, como a de Stéphane Pütter, e outras no sentido filosófico, como a de Nettelbladt.

No começo do século XIX, sob influência de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770­1831) e Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775­1854), procura­se fazer da enciclopédia uma ciência própria, não mero repositório mais ou menos ordenado de informações. Surgiram, assim, as enciclopédias de Karl Pütter, Friedlaender, Rudhart, Heinrich Ahrens (1808­1874), Walter e outros.

A partir da segunda metade do século XIX a literatura enciclopédica entra em decadência, não merecendo referência senão à obra de Adolf Merkel (1836­1896), cuja primeira parte é dedicada já ao estudo da teoria geral do direito: conceito, caracteres, divisão e gênese do Direito; elementos, divisão e gênese das relações jurídicas; aplicação do Direito e ciências jurídicas.

O trabalho dos enciclopedistas, sem embargo da amplitude teórica de algumas de suas obras, era, principalmente, de organização do Direito positivo. Não podia a enciclopédia emancipar­se da experiência jurídica, alcançar conceitos gerais e servir, assim, de instrumento útil para um conhecimento jurídico de base não empírica.

Adquirir uma idéia sucinta das parcelas, como pondera Eusébio de Queiroz Lima, não é ter uma noção exata do todo. E além disso, repara Ernesto Eduardo Borga, por sua orientação empirista, atendo­se aos fatos, somente poderia resultar numa teoria do Direito Positivo, nunca numa teoria que abarcasse o direito todo, menos ainda o conceito elaborado em vista do Direito Positivo.

Filosofia do direito

A filosofia do direito integrou, durante muito tempo, o currículo jurídico, proporcionando ao estudante contato com as mais gerais noções jurídicas. E é certo, conforme anota Huntington Cairns, que a especulação jurídica, através de toda a sua história, apesar do fato de que o seu objeto em grande parte é existencial, tomou mais da filosofia do que da ciência.

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É fora de dúvida, porém, que por ela não se poderia jamais iniciar o estudo do Direito. Não se conclua daí, que não tenha valiosa significação no elenco das disciplinas jurídicas. Apenas, o saber filosófico, do ponto de vista lógico, senão cronológico, deve suceder ao científico. O conhecimento filosófico é a síntese mais alta que o homem alcança, a nenhuma síntese se atinge, com exatidão e coerência, sem a prévia análise dos elementos que a pressupõem. A atividade filosófica é crítica em alto nível, e os níveis mais altos de crítica não podem ser alcançados sem que antes tenham sido percorridos os inferiores. O saber filosófico só pode ser atingido apoiado em conhecimento anterior mais modesto porque é saber de remate. Nem é viável pretender a filosofia de um objeto sem o seu prévio conhecimento científico, dado que aquela, explica Joseph Vialatoux, é um retour, uma reentrada, uma re­flexão de um saber ao menos começado.

A tendência geral, em nossos dias, é deslocar a filosofia jurídica do currículo de graduação para o de pós­graduação, posição de culminância que já lhe fora assinalada por Alessandro Levi. Também o nosso Pedro Lessa (1859­1921), que entendeu ter sido um erro grave a eliminação dessa disciplina dos cursos jurídicos, pretendia vê­la situada no último ano da academia.

Sociologia jurídica

Podemos estudar os fatos sociais na sua generalidade, naquilo que todos têm em comum, examiná­los, portanto, em sentido lato; paralelamente, podemos considerar alguns deles que têm qualificação própria e promovem um processo adaptativo peculiar. A sociologia geral, consoante Nicholai S. Timacheff, estuda a sociedade em nível altamente generalizado ou abstrato, e as ciências sociais particulares, sob um determinado e específico aspecto. Segundo Pitirim Sorokim (1889­1998), a linha de demarcação existente entre estas e aquela decorre do fato de que, se existem, dentro de uma classe de fenômenos, N subclasses, deve haver N + 1 disciplinas para estudá­las: N para estudar cada subclasse e mais uma para estudar aquilo que é comum a todas, bem como a correlação entre elas.

O fato jurídico, sendo social, pode ser objeto de uma delas, a sociologia jurídica. Sucede, porém, que a sociologia jurídica considera o Direito sob o aspecto da sua causalidade histórica, que é apenas um elemento para compreendê­lo. O Direito é, antes de tudo, norma e valor. Não cabe

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compreendido na sua universalidade sem a pesquisa das exigências éticas que inspiram suas regras, ao que não atende a sociologia jurídica.

Esta é, ademais, uma ciência de temática polêmica e de contornos relativamente imprecisos, o que a inabilita para servir de disciplina geral nos estudos jurídicos. É o que assinala, também, André Franco Montoro, quando a caracteriza como disciplina que ainda não se consolidou suficientemente, no sentido de não dispor de um corpo sistemático de conclusões, com objeto e métodos definidos, atraso de desenvolvimento que atribui à hostilidade de dois setores afins: de um lado, os juristas resistem à penetração, em seu campo, de uma disciplina estranha à dogmática jurídica, e, de outro, os sociólogos desconfiam da objetividade e do caráter científico de estudos vinculados à normatividade jurídica.

Além disso, a sociologia jurídica não focaliza, nem lhe caberia fazer, a regra jurídica em si, na sua estrita significação normativa. Dedica­se à análise dos seus pressupostos fáticos, os fatores sociais que a determinam. E estes, relevantes que sejam para o sociólogo ou o historiador, não satisfazem à necessidade de pré­conhecimento científico do ordenamento jurídico, porque dele não proporcionam uma noção autêntica e metódica.

Teoria geral do Direito.

A teoria geral do Direito, no campo dos estudos jurídicos, refletiu a influência avassaladora do positivismo do século XIX. Escola antimetafísica, o positivismo alimentava a convicção de que a filosofia jamais alcançaria, como sempre se propusera, o conhecimento das essências. Sob sua feição ortodoxa, importava verdadeira contestação da autonomia do conhecimento filosófico, dado que entendia caber a este a missão de integrar e coordenar o conhecimento científico.

No setor dos estudos jurídicos, a filosofia positivista engendrou a teoria geral do direito, que devia substituir a filosofia jurídica. O jurista partiria da análise da realidade histórico­social para, por comparação e indução, alçar­ se aos conceitos. Ciência, conforme pretendia ser, a sua primordial característica seria a de subordinar­se ao método científico. Nenhum saber jurídico poderia convergir para outro objeto que não o próprio direito positivo. Ao jurista competia observar as instituições, determinar as suas

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afinidades, assinalar as suas relações permanentes, e, finalmente, por indução, alcançar as respectivas noções gerais.

Embora a teoria geral do Direito não tenha ocupado a posição que almejava, uma vez que dava por sucumbida a filosofia jurídica – diagnóstico em que falhou totalmente, pois, como assinala Alceu Amoroso Lima (1893), assistimos nos últimos anos a um recrudescimento em torno dos fundamentos filosóficos do Direito, como talvez jamais se tenha visto no decorrer de toda a história ­ certo é que se integrou definitivamente na doutrina do direito.

É indubitável, porém, que ela não exaure os nossos conhecimentos teóricos. Basta ter em mente que condenava a fracasso qualquer tentativa de conhecimento jurídico­filosófico, o que contradiz toda a cultura jurídica contemporânea.

Introdução à ciência do Direito

A introdução é uma disciplina cuja meta mais pretensiosa está na formulação de princípios gerais aplicáveis ao conhecimento jurídico. É uma disciplina epistemológica, não uma disciplina jurídica em sentido restrito, porque não estuda uma normatividade jurídica histórica. Não se ocupa de normas jurídicas, de sistemas de direito positivo, de nenhum ordenamento jurídico vigente. É uma ciência da ciência do direito. Considera as noções gerais do direito, tal como podem ser abstratamente formuladas, quase sempre fazendo omissão dos seus matizes históricos reais.

Uma das suas características mais típicas é o seu sentido pragmático. Seu conteúdo não é rigoroso, exato, rígido. Defensável, até certo ponto, é incluir ou excluir dele certas matérias. Constituem­na noções que professores e tratadistas entendem adequadas para a iniciação ao curso de Direito. Essa circunstância gera a diversidade dos programas de ensino.

Uma das facetas da sua preocupação prática está em que ela deve servir de trânsito entre o curso médio e o superior. Problema que é hoje objeto de preocupações e cuidados, justificando a reivindicação de um processo de integração da escola média com a universidade.

As dificuldades da passagem daquela a esta não são exclusivas do curso jurídico. Afligem, em parte, os candidatos a outros cursos, como o de

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Medicina, o de Engenharia, o de Economia, etc. No curso de Direito, porém, como enfatiza Gaston May, se agravam. Em relação a outros, o currículo médio proporciona, de algum modo, conhecimento prévio que terá utilidade direta no curso superior. Em Medicina, por exemplo, o estudante já se contactou com a Biologia e a Física. Em Engenharia, as noções de Física e de Matemática obtidas no curso médio são de vantagem decisiva no superior. Para o estudante de Direito, no entanto, há um hiato entre o curso médio e o superior. É por isso que a introdução, sem prejuízo do seu núcleo de idéias gerais a que corresponde, em princípio, a chamada teoria geral do Direito colige noções não jurídicas, mas filosóficas, sociológicas e, eventualmente, também históricas, e delas se utiliza como ponte entre o curso médio e o superior.

Para justificá­la, ainda poderiam ser citadas as palavras de que se serviu Cousin para pleitear a criação dessa disciplina em França, transcritas por Lucien Brun: “Quando os jovens estudantes se apresentam em nossas escolas, a jurisprudência é para eles um país novo do qual ignoram completamente o mapa e a língua. Dedicam­se de início ao estudo do Direito Civil e ao do Direito romano, sem bem conhecer o lugar dessa parte do Direito no conjunto da ciência jurídica, e chega o momento em que, ou se desgostam da aridez desse estudo especial, ou contraem o hábito dos detalhes e a antipatia pelas vistas gerias. Um tal método de ensino é bem pouco favorável a estudos amplos e profundos. Desde muito tempo os bons espíritos reclamam um curso preliminar que tenha por objeto orientar de algum modo os jovens estudantes no labirinto da jurisprudência; que dê uma vista geral de todas as partes da ciência jurídica, assinale o objeto distinto e especial de cada uma delas, e, ao mesmo tempo, sua recíproca dependência e o laço íntimo que as une; um curso que estabeleça o método geral a seguir no estudo do Direito, com as modificações particulares que cada ramo reclama; um curso, enfim, que faça conhecer as obras importantes que marcaram o progresso da ciência. Um tal curso reabilitaria a ciência do Direito para a juventude, pelo caráter de unidade que lhe imprimiria, e exerceria uma influência feliz sobre o trabalho dos alunos e seu desenvolvimento intelectual e moral” .

Complementarmente, é válido observar que a introdução atua como verdadeiro teste vocacional. A experiência mostra que o universitário de outros cursos, pelo trato anterior com matérias que a eles pertencem, tem, de um modo geral, embora imprecisamente, relativa informação quanto à natureza dos dotes pessoais que lhe serão preferentemente reclamados. O

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discípulo que no curso colegial sente predileção pela Matemática tem razoável probabilidade de êxito no curso de Engenharia, ou em outro em que o conhecimento matemático seja básico. Já o estudante de Direito habitualmente se inclina para o curso por uma escolha negativa. É a falta de ajuste às ciências experimentais, quase sempre, que o leva do colégio à faculdade, quando não uma inclinação literária ou um simples pendor para as leituras propiciatórias de cultura geral. Essa escolha no escuro encerra o risco de uma opção a que não corresponda inclinação autêntica.

O estudo jurídico, como o de qualquer curso superior, é especializado, o que importa dizer que resultado melhor é obtido quando tentado por quem possui real inclinação para as matérias que o integram. Por isso, a introdução, dando ao estudante um primeiro contato com o curso, faculta­lhe julgar das suas próprias habilitações e retificar ou confirmar uma escolha que pode ter feito sem os elementos imprescindíveis à sua decisão.

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SUMÁRIO

1. Dados filosóficos

1.1 Realidade e valor 1.2 Homem e valor 1.3 Direito e justiça

2. Dados sociológicos

2.1 Fato social 2.2 Sociedades humanas 2.3 Fenômeno político

3. Dados sociofilosóficos

3.1 Normatividade social 3.2 Normas éticas e normas técnicas 3.3 Normas morais e normas jurídicas 3.4 Normas convencionais

4. Disciplinas jurídicas

4.1 Disciplinas fundamentais e auxiliares 4.2 Filosofia jurídica 4.3 Ciência do Direito 4.4 Teoria geral do Direito

5. Noções fundamentais

5.1 Norma jurídica 5.2 Norma, sanção e coação 5.3 Sanções jurídicas 5.4 Fontes do Direito 5.5 Direito subjetivo 5.6 Direitos pessoais e direitos reais 5.7 Proteção dos direitos subjetivos 5.8 Dever jurídico 5.9 Relação jurídica 5.10 Atos jurídicos

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5.11 Sujeito de Direito 5.12 Objeto do Direito 5.13 Ato ilícito

6. Instituições jurídicas

6.1 Instituições jurídicas 6.2 O Estado 6.3 Personalidade 6.4 Família 6.5 Propriedade 6.6 Posse 6.7 Obrigações 6.8 Sucessão

7. Enciclopédia jurídica

7.1 Classificação das normas jurídicas 7.2 Problemas de classificação 7.3 Critérios de classificação 7.4 Direito Constitucional 7.5 Direito Administrativo 7.6 Direito Penal 7.7 Direito Processual 7.8 Direito do Trabalho 7.9 Direito Internacional Público 7.10 Direito Civil 7.11 Direito Comercial 7.12 Direito Internacional Privado

8. Técnica jurídica

8.1 Técnica jurídica 8.2 Vigência da lei 8.3 Interpretação 8.4 Integração 8.5 Eficácia da lei no espaço 8.6 Eficácia da lei no tempo

Bibliografia consultada

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1.Dados Filosóficos

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1.1 REALIDADE E VALOR

1.1.1 Realidade e valor

Gustav Radbruch (1878­1949), reportando­se às doutrinas de Wilhelm Windelband (1848­1915) e Heinrich Rickert (1863­1936), considera básica a distinção entre realidade e valor. Comenta, com evidente acerto, que em meio aos dados de nossa experiência, surgidos de maneira uniforme em nossas próprias vivências, realidade e valor mostram­se­nos mesclados. Homens e coisas, saturados de valor e de desvalor, aparecem associados sem que possamos fazer entre eles nítida distinção.

Quando refletimos sobre a nossa experiência, percebemos que o valor não está nas coisas e sim em nós mesmos. Se digo de uma tela que é bela, a beleza não está nela, mas no meu julgamento. Se digo de um ente que é útil, a sua utilidade não lhe é intrínseca, mas um atributo que lhe confiro.

O primeiro ato da consciência parece ser o de formular uma reivindicação do próprio eu, libertando dos dados de experiência aqueles que são pessoais, e isso leva a distinguir realidade de valor.

Realidade e valor pertencem a setores autônomos; realidade é objetividade; valor, subjetividade. Não podemos falar de valores como se fossem reais ainda que para Max Scheler (1875­1929), segundo Alfred Stern, nos sejam dados antes de toda experiência e, portanto, aprioristicamente; e nem de realidades como se um valor lhes fosse inerente. Ao valor correspondente uma essência própria, também à realidade, outra. Realidade e valor são inconfundíveis. Uma é, outro deve ser. A realidade existe, é um atributo do ser; o valor se afirma, é um julgamento do sujeito, sem o qual o mundo, observa Wilhelm Schapp, não teria interesse para o homem.

Essa distinção é básica para a filosofia jurídica, porque o direito julga o comportamento. Nenhum julgamento pode, logicamente, existir sem a idéia de um valor, porque julgar é comparar um objeto a um valor, para concluir da sua compatibilidade ou incompatibilidade. O direito, fazendo apreciação da conduta, porque discrimina entre lícito e ilícito, importa estimação de valores. Não pertence, portanto, na sua irredutível essência, ao plano da realidade.

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1.1.2 Ser e dever ser

Da distinção entre realidade e valor resultam duas posições: a que se refere ao ser dos entes e a que se refere ao dever ser do homem. E, como corolários dessas, os conceitos de lei natural e lei ética, distinção essa cujo desconhecimento, conforme Raimundo Farias Brito (1862­1917), atenta contra a natureza das coisas e a mais comum experiência.

1.1.2.1 Juízos enunciativos e valorativos

Esses conceitos são alcançados através de juízos que são a alavanca fundamental da atividade cognitiva da inteligência humana, o que deles faz sejam inteiramente diversos das representações, mesmo considerados do ponto de vista psicológico, como afirma Franz Brentano (1838­1917).

A experiência tem por objeto coisas e fatos individualizados. Sobre ela a mente do homem elabora o conhecimento. Mas assim não faria, não fosse a sua possibilidade de formular juízos,

Essa aglutinação pode dar­se por análise ou por síntese, isto é, ou consiste numa decomposição do objeto da experiência em seus elementos intrínsecos, ou num acrescentamento ao objeto de algo que não lhe pertence por essência. Há, portanto, juízos analíticos e sintéticos. Segundo Emmanuel Kant (1724­1804), a quem coube formular com clareza a distinção, os analíticos não ampliam nosso conhecimento, apenas desenvolvem o conceito e o tornam mais inteligível. Ao contrário, os sintéticos são autênticos juízos de experiência e sobre eles se constróem todas as ciências explicativas.

Além do mais, construídos os juízos sintéticos na base da observação, podem eles mesmos ser ligados, numa segunda operação lógica, cujo nível de criatividade é maior. Se temos noções resultantes da experiência de duas coisas singulares e conseguimos aglutiná­las, formamos uma terceira noção representativa de uma nova realidade, cuja criação dependeu da experiência apenas indiretamente. E nesse processo atingimos, progressivamente, níveis cada vez mais altos de compreensão e generalidade. Como explica G. J. Romanes, a partir do mais simples juízo possível e, portanto, da mais simples proposição (correspondente gramatical do juízo), a inteligência humana eleva­ se de um modo uniforme e ininterrupto. Nem é outra a lição de Kant, quando ensina que os juízos estabelecem uma unidade entre as nossas representações,

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pois que a uma representação imediata substituem outra mais elevada que contém a primeira, assim como várias outras, de modo que muitos conhecimentos possíveis são reunidos em um só.

Os juízos atendem à diferença entre natureza e valor. Há juízos pertinentes à compreensão do mundo natural e juízos que traduzem valores e definem atitudes do homem sensibilizados por eles. Daí a distinção entre juízos enunciativos e juízos valorativos. Podemos dizer é isto, ou dizer deve ser isto. Às vezes a cópula verbal é ser, outras, dever ser. Quando usamos ser, para coordenar duas idéias, formulamos um juízo enunciativo. Se a coordenação se faz com dever ser, o juízo é valorativo. Os enunciativos são juízos de experiência; os valorativos, estimativos de valor.

Os enunciativos são descritivos. Quando dizemos de algo que é, fazemos apenas uma descrição, tanto mais perfeita quanto mais impessoal. A atitude do naturalista é de completa neutralidade: é narração de uma experiência. Por isso, dizemos que os juízos enunciativos são teóricos. Medem­se pelo critério da veracidade, isto é, podem ser verdadeiros ou falsos. Um juízo enunciativo é verdadeiro quando há coincidência entre o liame que prende as idéias no juízo e o que existe entre as coisas ou fatos a que elas se referem, quando, na frase magistral de Joaquín Xirau (1895), o seu perfil se calca sobre o perfil do ser. Se declaramos que A é B, e de fato existir uma ligação objetiva entre A e B, igual à que afirmamos, temos um juízo verdadeiro. Ele vincula, logicamente, idéias de realidades, também naturalmente vinculadas. Há perfeita identidade entre a teoria do fato e ele próprio. Falso é um juízo equivocado, no qual se pretende estabelecer logicamente relação inexistente no plano da realidade.

Os juízos verdadeiros dividem­se em verdadeiros necessários e verdadeiros contingentes, distinção equivalente à que se faz entre verdades de razão e verdades de fato, claramente feita por Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646­1716), a qual, na observação de Manoel Garcia Morente (1888­1942), resulta da necessidade de se determinar a curva geral do desenvolvimento das ligações existentes entre os vários estados internos da percepção. Há idéias ligadas entre si por necessidade lógica, de maneira que é impossível a sua recíproca desvinculação. Quando o elo que une duas idéias tem essa natureza, o juízo que indica a relação é descritivo necessário. Ao dizermos que a linha reta é a distância mais curta entre dois pontos, estamos fazendo uma afirmativa que a razão assevera ser inconcebível negar em qualquer situação. Se declaramos que duas coisas iguais a uma terceira também o são entre si,

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afirmamos uma verdade de razão, porque esta evidencia a impossibilidade de haver duas coisas que, sendo iguais a uma terceira, não o sejam entre si. Nesses exemplos enunciamos juízos verdadeiros, descrevendo realidades tais como são, e necessariamente verdadeiros, porque não podemos conceber circunstância, no tempo e no espaço, capaz de desmentir a ligação lógica estabelecida entre as idéias no juízo.

Um juízo verdadeiro contingente descreve uma realidade como ela se apresenta, mas, sendo essa realidade suscetível de transformações (pode ter sido uma ontem, pode ser outra hoje, poderá amanhã ser uma terceira), a veracidade do juízo fica condicionada a uma certa circunstância de tempo e espaço. Se descrita como é hoje, formulamos um juízo; se como será amanhã, talvez formulemos outro juízo. Assim, em referência à temperatura ambiente, se dizemos que está quente, podemos ter feito um juízo verdadeiro, pelo fato de estar efetivamente quente. Se, horas depois, ao calor suceder o frio, o juízo verdadeiro será outro. Como o próprio objeto do juízo é contingente, ele é válido para cada momento da experiência.

Os juízos valorativos da conduta são práticos, porque servem à realização de um fim. E postulativos, dado que enunciam exigências positivas ou negativas de procedimento.

1.1.2.2 Lei natural e lei ética

Os juízos enunciativos e valorativos conduzem aos conceitos de lei natural e lei ética. A natural é a fórmula mais evoluída do enunciativo; a ética, a mais evoluída do valorativo prático.

Segundo Emmanuel Kant, a filosofia tem esses dois objetos, abrangendo ambas as leis, em dois sistemas particulares, ainda que ambicione sua síntese final.

Conquanto não possamos admitir lei natural sem juízo enunciativo, nem lei ética sem juízo valorativo, existe distinção entre lei natural e juízo enunciativo, lei ética e juízo valorativo.

Numa experiência, submetemos um pedaço de metal à ação do calor. Verificamos que o metal se dilatou, e declaramos que o metal X, submetido ao calor, se dilatou. Este é um juízo descritivo verdadeiro. Pela multiplicação da

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experiência e a análise das suas condições passamos a uma lei geral: o calor dilata os corpos. Quando alcançamos uma noção geral que explica toda a experiência realizada e possível, temos uma lei natural.

Se deixamos cair um objeto, constatamos que ele cai em direção à Terra. Pelo mesmo processo, chegamos a determinar a lei da gravidade. A lei natural é a generalização exemplar de um juízo enunciativo. Se não pudéssemos assim construir, adverte Émile Meyerson (1859­1933), de nada nos valeriam as regras que formulássemos sobre a experiência dos fenômenos, que são infinitamente diversos.

Surge, assim, o conceito abstrato de causa, pelo qual se estabelecem relações entre o passado e o presente, que são, a rigor, meramente prováveis devendo a lei natural desempenhar, como observa José Juan Bruera, uma função meramente sinótica das regularidades constatadas pela experiência, as quais, embora praticamente equivalentes à certeza, dela apenas são, teoricamente, aproximativas.

Esta é uma contingência lógica do método indutivo, que se eleva das sensações à generalidade, ainda que adotado com as cautelas recomendadas por Francis Bacon (1561­1626): elevar­se lentamente, seguindo marcha gradual, sem saltar nenhum degrau.

Bertrand Russel (1872­1970) dá­nos uma clara idéia dos princípios a que esse método está submetido:

a) quando uma coisa de uma certa espécie, A, for achada com freqüência associada com outra de espécie diversa, B, e nunca for achada dissociada da coisa da espécie B, quanto maior seja o número de casos em que A e B se achem associados, maior será a probabilidade de que se achem associados em um novo caso no qual saibamos que uma delas está presente;

b) nas mesmas circunstâncias, um número suficiente de casos de associação converterá a probabilidade da nova associação em quase certeza e fará com que se aproxime de um modo indefinido da certeza.

Ainda que o mesmo raciocínio não se possa aplicar à lei ética (tanto mais que a radical distinção entre natureza e valor já foi antes ressaltada), nem por isso podemos ignorar a significação da experiência na orientação da conduta. Vendo uma pessoa agredir outra, julgamos que não deve proceder

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assim; valorizamos uma situação, e, portanto, fazemos um juízo valorativo (não deve ser), diante de um acontecimento humano, circunscrito a uma experiência singular. A Ética, disciplina filosófica, habilita­nos a alcançar a lei ética, norma de conduta válida para uma universalidade de situações. O juízo valorativo, feito em função do incidente singular, só gera lei quando conduz a regras gerais com pretensão de validade universal. Consoante ensina Wilhelm Dilthey (1833­1911), construímos generalizações acerca de estados afetivos, valores vitais, virtudes e deveres, e estes recebem por sua vez força dos sentimentos e impulsos que surgem da imitação do concreto neles contido e do sentimento tranqüilo que a sua subordinação nos infunde.

Os predicados que distinguem juízo descritivo e valorativo permitem a distinção entre lei ética, com as suas características próprias, e lei natural, com as suas qualificações particulares.

A lei natural é um porquê explicativo da realidade, é verdadeira ou falsa, exatamente porque o binômio verdade­erro prevalece no mundo teórico. Se dizemos que quando ocorre A ocorre B, essa afirmativa é uma lei natural, se assim acontecer no plano da realidade ao qual se refere. A lei natural apresenta os fenômenos, dando­lhes explicação coincidente com a sua própria realidade intrínseca. Caso não coincidam explicação e realidade, estaremos diante de uma lei falsa, porque todas as leis da natureza assentam no pressuposto, que não é científico, mas filosófico, da invariabilidade da ordem natural, a qual nos concede prever os fatos uns pelos outros, sem o que, consoante afirma Henri Poincaré (1854­1912), não se pode aceitar a legalidade e a possibilidade mesma da ciência. Como explica David Hume (1711­1776), todos os raciocínios concernentes à causa e ao efeito, que são os científicos, estão fundados na experiência e todos os raciocínios tirados da experiência estão fundados na suposição de que o curso da natureza continuará sendo uniformemente o mesmo.

A lei ética é válida ou inválida. Não é verdadeira ou falsa, porque, no campo do comportamento, verdade e erro não têm presença, dado que pertencem ao plano das enunciações. Uma lei é justa ou injusta, fundamentada ou arbitrária, eqüitativa ou violenta. É válida, neste sentido filosófico, quando expressa um valor autêntico e lhe é fiel; inválida, quando não traduz um valor ou o faz de modo inadequado.

Uma lei natural é presumidamente invariável, não pode ser, em nenhuma circunstância, em nenhum momento, desmentida pela experiência.

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Podemos acumular séculos de observação, concluir uma lei natural, mas se uma experiência desmenti­la, passa a ser falsa. Ter­se­á constatado, então, o acerto da observação de André Cresson, quando afirma que uma lei natural se apoia em verificações que são como zero em relação à generalização que se lhe atribui.

Já com a lei ética acontece diversamente. Só podemos aceitar a sua existência se ela for suscetível de infração. O pressuposto de qualquer uma é o de que se dirige a pessoas livres. Quando se diz deve­se fazer assim, está implicitamente admitido outro procedimento.

Entre lei natural e lei ética fez Hermann Ulrich Kantorowicz (1877­ 1940), um paralelo diferenciador de extrema clareza, ao afirmar que aquela descreve invariáveis relações causais ou conexões estruturais (de fatos, mudanças, quantidades, propriedades); impõe obrigações, não sobre a conduta humana, mas, no caso de veracidade, sobre a inteligência; constitui matéria de cognição e prova, não de sanções, sim de conseqüências; não de autoridade, sim de experiência; não de consciência, sim de ciência; não de deveres, sim de acontecimentos constantes. A lei natural gira em torno do que é real, enquanto que as normas de conduta prescrevem um comportamento que pode ser ou não real, mas que deveria ser real.

1.2 HOMEM E VALOR

Há valores diversos. Segundo o ensinamento de Scheler, são absolutos, maneiras de sentir que não dependem da sensibilidade e da vida, e podem ser classificados numa escala crescente de perfeição:

a) úteis (utilidade);

b) vitais (nobreza, saúde, força);

c) espirituais (conhecimento, arte, direito);

d) religiosos (sagrado).

A cada valor corresponde o seu oposto, um desvalor. Assim, à utilidade corresponde a inutilidade, à nobreza o comum, à saúde a doença, à força o

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despauperamento, à verdade o erro, ao belo o feio, ao lícito o ilícito, ao sagrado o profano.

1.2.1 Atitudes ante os valores

Diante dos valores, o homem assume atitudes diferentes. Uma delas é avalorativa; a Segunda, valorativa; a terceira, supravalorativa, e a última, referencial.

Nossa atitude cega aos valores, de neutralidade e indiferença, é avalorativa. Se nos situamos em posição de sensibilidade aos valores, esta, em contraste com a precedente, é valorativa. Entre essas posições extremas, radicalmente opostas, há posições mistas, que participam das antecedentes. Uma é a referencial, na qual não nos encaminhamos diretamente para os valores, mas nos conduzimos motivados por ele. A outra é a de transcendência, de superação dos valores, a supravalorativa.

1.2.1.1 Atitude avalorativa

Podemos ver os objetos, insensíveis aos valores, inclusive na presença daqueles propícios a uma atitude valorativa. Diante de uma tela ou uma escultura sentimos reação estética. Esta reação é valorativa, expressa uma estimativa segundo o valor do belo. Entretanto, um especialista em determinar autenticidade de pinturas, diante de um quadro, apenas analisa a técnica do pintor na aplicação da tinta, a composição química desta, a constituição física da tela, etc. Mesmo diante de uma obra de arte que a todos sensibiliza, lhe cumprirá sufocar a tendência para valorizá­la e ficar indiferente aos seus méritos estéticos. Os próprios atos humanos são sujeitos à consideração avalorativa. O crime, por exemplo, que produz ressentimento coletivo, pode ser friamente analisado por sociólogos ou estatísticos, agindo indiferentes a qualquer estimação. A posição avalorativa, indispensável no estudo da natureza, leva à criação das ciências descritivas, ou na expressão de Claude Bernard (1813­1878), ciências contemplativas.

1.2.1.2 Atitude valorativa

Podemos nos colocar, ao contrário, numa posição valorativa.

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Nossa mente é povoada de valores, que não são arbitrariamente subjetivos, porque, se o fossem, cada um teria os seus próprios e, entretanto, há valores comuns a todos os homens. Não podemos defini­los, porque a sua essência nos escapa. Mas dão­nos eles emocionalmente. No entanto, a nossa vida é motivada por eles, sejam utilitários, morais, jurídicos, religiosos, estéticos, etc. Têmo­los, permanentemente, diante de nós, o que faz da nossa conduta uma escolha constante de possibilidades.

Podemos nos desprender do mundo em sua pura manifestação fenomênica, tentar ascender ao plano dos valores, saber o que são e determinar­lhes a hierarquia. É o que faz a filosofia dos valores. Assim como as ciências naturais são frutos da posição avalorativa, a filosofia dos valores resulta da posição valorativa, e se encaminha, segundo Carlos Astrada, para a determinação de um possível sentido da vida em função do valor, da sua vivência e da sua realização.

As atitudes expostas são contrastantes. Numa, eliminamos a sensibilidade para qualquer valor, porque nos interessa apenas ser igual ao espelho que reproduz a imagem. Nossa meta é ver e descrever, sem cogitação de como poderia ou deveria ser. Noutra, nos desligamos da experiência imediata, e tentamos alcançar um mundo ideal que a ela se sobrepõe.

Essas posições podem ser complementadas por mais duas: a supravalorativa e a referencial.

1.2.1.3 Atitude supravalorativa

A supravalorativa transcende, ao mesmo tempo, natureza e valor, que se mostram, às vezes, contraditórios. E um dos dramas humanos é exatamente o contraste entre o que é e o que deve ser. Essa contradição não é apenas da consciência individual, mas também da história dos povos, e nos inspira a tentativa de superá­la, de transcendê­la, até um plano em que a realidade seja igual a valor e vice­versa. O homem anseia por uma síntese na qual se libere dessa contradição que marca toda sua vida. Se a alcança, confessa, como Nicolas Malebranche (1638­1715): eu concebo que todos esses efeitos que se contradizem, essas obras que se embatem e se destroem, essas desordens que desfiguram o Universo, que tudo isso não assinala nenhuma contradição na

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causa que o governo, nenhum defeito na inteligência, nenhuma impotência, senão uma perfeita uniformidade.

Essa tentativa de alcançar um estado espiritual em que ser e dever ser coincidam, expressa­se na posição supravalorativa. A religião é produto desse esforço. Deus é, ao mesmo tempo, o que é e o que deve ser. Nele, existência e valor confundem­se. Porque Nele, conforme William James (1842­1910), a quem Émile Boutroux (1845­1921) comparava a Blaise Pascal (1623­1662), o crente continua­se num. Eu mais vasto do qual se difundem experiências liberatórias.

1.2.1.5 Atitude referencial

Finalmente, como podemos ver somente realidade, somente valor e não ver realidade nem valor, também podemos adotar uma última posição, a referencial, que ensaia estender uma ponte entre realidade e valor, como que encaminhando a vida para a eternidade, nas palavras de Wilhelm Sauer (1879­ 1962). Nela, o que o homem cria não é valor em si, mas referência a valor. Ela engendra a cultura.

1.2.1.5 Cultura

Cabe aqui dar um conceito de cultura, o que não é fácil, pois se trata de vocábulo cuja significação é múltipla. Daremos uma idéia elementar que nos basta à finalidade deste capítulo, partindo da distinção entre cultura e natureza. A natureza nos é dada mas o homem, como ente biológico que não se basta, que se move para além de si (Francisco Pontes de Miranda (1892­1979), quebra as pedras para usá­las lascadas, depois polidas, descobre o fogo, faz a sua habitação, cultiva o gado e as plantas e acaba conquistando o espaço. Na proporção em que progride, emancipa­se da natureza, da qual, segundo Oswald Spengler (1880­1936), torna­se cada vez mais inimigo. Ele implanta no mundo algo ainda inexistente, e que passa a existir como criação sua, o que Paulo Dourado de Gusmão chama o reino das interpretações, das destinações, dos sentidos e dos significados. A isso chamamos, embora a idéia seja imperfeita e suscetível de corrigenda, cultura, que, na frase de Max Scheler, é antes de mais nada um processo pelo qual o homem se faz homem.

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Ao enriquecer o mundo com os seus produtos, o homem cria em função de fins, inspirado pela motivação de valores. Cria as obras de arte, inspirado pelo belo; o direito, pela justiça, etc. Em si mesmo, o valor é inatingível; se atingido, deixaria de sê­lo e passaria a realidade. A posição do homem, portanto, como ser que cria cultura, é a de referência e aproximação a valores.

1.3 DIREITO E JUSTIÇA

Distinguimos realidade de valor para observar que pertencem a hemisférios incomunicáveis, a cada um dos quais corresponde uma atitude humana. O direito não cabe ao plano da natureza. É obra de cultura e, portanto, criação visando a valores.

1.3.1 Valores jurídicos

O valor é inerente a qualquer norma. Quando pretendemos de uma pessoa que se conduza de certo modo, sabendo que pode proceder de outro, fazemo­lo em função de um motivo, que é o valor da pretensão. Se elegemos uma, dentre várias condutas possíveis, fazemo­lo por julgá­la meritória. A regra jurídica, como qualquer outra, dirige­se a fins e só tem sentido quando estes são considerados. Sendo tais fins históricos, os valores que lhes correspondem sofrem a seu turno pressões sociais, geradas pelo inconsciente e vigoroso sentimento de unidade social a que se refere Alfred Adler (1870­ 1937).

Os fins almejados pelo direito são diversos: a ordem, a segurança, a harmonia, a paz social, a justiça. A eles correspondem outros tantos valores jurídicos. As normas jurídicas se pautam por eles, meios que são para realizá­ los.

Esses valores apresentam, como os demais, uma hierarquia, embora, não raro, sejamos obrigados a sacrificar um superior por outro inferior. O valor jurídico mais alto, aquele que, por excelência, torna legítima a proposição jurídica, é a justiça.

Embora sendo ela o mais alto, às vezes outros se lhe sobrepõem. Em época de crise social, é comumente sobrepujada pela segurança ou pela

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ordem. Assim ocorre em período de guerra, quando se mutilam as garantias individuais, em benefício da segurança coletiva. Em estado de normalidade, o direito é tanto mais perfeito quanto mais refletir as exigências humanas de justiça.

Para Carlos Cossio (1903), a revelação dos valores jurídicos resulta da análise do homem em suas três dimensões existenciais: o mundo objetivo, a pessoa e a sociedade. À coexistência enquanto circunstância (mundo objetivo) correspondem os valores jurídicos da ordem e da segurança. À coexistência enquanto pessoa, o poder e a paz. Por último, à coexistência enquanto sociedade, a cooperação e a solidariedade. Os valores jurídicos formam pares e em cada um destes há um valor autonômico e um valor heteronômico, isto é, de expansão da personalidade e de restrição à personalidade. São autonômicos: a segurança, a paz e a solidariedade. São heteronômicos: a ordem, o poder e a cooperação. Como os valores de autonomia são suportes dos de heteronomia, situam­se aqueles em plano superior a estes.

À justiça, que sempre consideramos o valor jurídico por excelência, reservou Cossio sentido semelhante ao que tem na teoria platônica. Não lhe pertence um conteúdo específico, sombra que é de todos os valores bilaterais da conduta, aos quais dá equilíbrio e proporção, atuando como critério para a sua realização simultânea e proporcional.

1.3.2 Teoria da Justiça

No campo da filosofia jurídica, a teoria da justiça é uma imposição lógica. Referindo­se­lhe a regra de direito, como seu valor peculiar, ela é insuscetível de ser compreendida, interpretada e aplicada, senão em referência à justiça.

1.3.2.1 Idéia da justiça

Se indagamos, porém, o que é justiça, logo veremos que o seu entendimento é polêmico. A pergunta é uma só, mas as respostas são numerosas e desencontradas, dando lugar a teorias filosóficas e sociais e a ideologias políticas, talvez porque o tema, como pensava Pascal, seja sutil demais para ser abordado por instrumentos humanos.

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No entanto, observa Luís Recaséns Siches (1903), um levantamento dessas teorias demonstra, por trás de sua aparente contradição, alguma identidade. A similitude está em que a noção de justiça vem sempre ligada à de igualdade. O símbolo desse entrelaçamento é também o da justiça: a balança de pratos nivelados e fiel vertical.

Se recordarmos algumas definições doutrinárias, teremos confirmada a observação.

1.3.2.1.1 Platão

Platão (428­347 a.C.) meditou sobre a justiça como virtude individual e como critério de organização social. O princípio comum a ambas, escreve Paul Natorp (1854­1924), é o da organização, segundo o qual uma pluralidade de forças, acompanhadas de seus efeitos, encadeiam­se, promovendo­se mutuamente (e promovendo, portanto, sua obra comum), sem estorvar­se em nenhum ponto.

Sob o primeiro aspecto, via nela uma espécie de virtude regente. A alma humana abriga um sem­número de tendências, de sentimentos, de afeições, de inclinações, e é solicitada pelos elementos diversos de que se compõe. À justiça caberia ordenar e unificar esse universo íntimo, dando harmonia às suas partes. Tal como o maestro que tira dos instrumentos de uma orquestra som harmoniosos, a justiça daria aos elementos da alma a sua exata medida e os comporia numa tranqüila unidade. Não se identificaria ela, portanto, como uma virtude ao lado de outras, mas coordenadora de todas.

Sobre a justiça social, entende Platão que defini­la somente se pode quando se recorda a razão que leva o homem à vida social: a existência de diversas necessidades e a descoberta da maneira pela qual podem ser satisfeitas, mediante a divisão do trabalho.

Se uma pessoa atende, somente ela, a uma certa necessidade de todas, das demais obtém a satisfação das suas próprias necessidades, para as quais nada produz. Em conseqüência, uma sociedade é, por origem, uma reunião de pessoas desiguais, o que assegura a solidariedade dos seus componentes e resguarda a sua unidade. Proceder justamente é desenvolver sua função própria, à qual devem corresponder as inatas aptidões humanas. A sociedade, para ser justa, deve situar cada homem na sua função adequada, condição da

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sua perfeita unidade. As funções sociais correspondem às faculdades da alma individual. Por isso, reduzem­se essencialmente a três: a produção, realizada pelos trabalhadores, equivalente ao desejo elementar de alimentação, cuja virtude, para quem a realiza, é a temperança; a defesa, desempenhada pelos soldados, cuja virtude é a coragem; e o governo, que corresponde à inteligência reflexiva, e exige de quem o exerce uma virtude própria, a prudência.

É justa uma sociedade na qual cada indivíduo faz o que lhe é próprio.

1.3.1.2 Aristóteles

Aristóteles (384­322 a.C.) foi o primeiro filósofo a desenvolver exaustivamente o tema, sendo considerado o verdadeiro fundador da teoria da justiça, de tal maneira que os estudos posteriores, inclusive os modernos, a ele se reportam como sua primeira fonte.

Também Aristóteles considerou a justiça em seu duplo papel, como virtude do indivíduo e critério de ordem social, sem lhe emprestar, porém, no primeiro, a superior posição que lhe conferia Platão, para situá­la como virtude a par de outras. Formulou, dir­se­ia que com perfeita atualidade, a observação de que a justiça não pode ser atuante sobre toda a alma porque tutela apenas as relações dos indivíduos entre si.

Decalcado na realidade institucional do seu tempo, indicou­lhe as finalidades próprias:

a) distribuição de honrarias e riquezas pelos indivíduos;

b) garantias dos contratos; e

c) proteção contra o arbítrio e a violência.

Caberia a primeira tarefa à justiça distributiva e as duas últimas à justiça comutativa. Embora sem outra afinidade entre si, em todas essas modalidades de justiça assinalava Aristóteles um traço comum: a igualdade. Afirmar­se­ia esta, em relação à justiça distributiva, sob a forma de proporcionalidade, dado que as benesses sociais deveriam ser distribuídas segundo os méritos de seus destinatários. E o princípio da igualdade aritmética inspiraria as duas

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subdivisões da justiça comutativa, cabendo aos magistrados, em relação a elas, restabelecer sempre a igualdade em favor do lesado.

1.3.2.1.3 Ulpiano

Os latinos deixaram algumas, ainda que imprecisas, definições de justiça. Nem se poderia diversamente admitir, dado que a grande realização da civilização romana foi o direito que está para ela como a filosofia e as artes estão para a civilização grega.

Uma das definições mais conhecidas é a de Domicio Ulpiano (170­228 a. C.), consoante a qual a justiça consiste em dar a cada um o que lhe é devido.

1.3.2.1.4 Tomás de Aquino

Tomás de Aquino (1225­1274) estuda o direito como objeto particular de uma virtude específica, a justiça, não podendo ambos ser compreendidos senão como pertinentes à condição social do homem. Considera próprio da justiça ordenar o homem em suas relações com os demais, posto que implica certa igualdade e a define como tendo por conteúdo “dar a cada um o que é seu”, isto é, o que lhe está subordinado ou está estabelecido para sua utilidade. Não se satisfaz, conforme explica Etienne Gilson (1884), sem que se assegure o respeito à igualdade entre pessoas diferentes, interessadas num mesmo ato.

Distingue a justiça de todas as demais virtudes porque, enquanto estas se voltam diretamente para o agente do ato, exigindo a pureza de intenções, aquela reside na adequação do ato praticado com um modelo extrinsecamente dado de antemão.

Inspirado em Aristóteles, divide a justiça em: legal (colaboração para o bem comum), comutativa (relações entre os indivíduos) e distributiva (partilha de encargos e benefícios públicos entre os indivíduos).

1.3.2.1.5 Spencer

Herbert Spencer (1820­1903), observando que na idéia de justiça duas outras se inserem, uma de afirmação e outra de restrição à liberdade

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individual, a primeira positiva e a Segunda negativa, comenta que aquela conduz à desigualdade em função dos resultados a que podem chegar os indivíduos pela aplicação das suas diferentes possibilidades à realização dos próprios fins, enquanto que a Segunda, limitativa dos inevitáveis conflitos a que a prática da liberdade conduz, leva ao pensamento de que todas as esferas de ações se limitam uma às outras, o que implica uma concepção de igualdade.

1.3.2.1.6 Stammler

Segundo Rudolf Stammler (1856­1938), o conteúdo de uma norma jurídica é justo quando ela, em sua peculiar posição, concorda com o ideal social. Por difícil que seja definir este padrão, Stammler julgou encontrá­lo no modelo de uma comunidade de homens de vontade livre, coexistindo, assim, em condições de perfeita harmonia e espontaneidade.

1.3.2.2 Comentário crítico

Embora diversas, as teorias sobre a concepção de justiça apresentam um traço comum. Em todas elas existe uma referência direta ou implícita à idéia matemática da igualdade. Típica é a noção de Kantorowicz, quando ensina que a essência da justiça está em tratar o que é igual como igual. Ou a de Lester Frank Ward (1841­1913), quando afirma que a justiça consiste na imposição artificial, pela sociedade, de uma igualdade em condições que são naturalmente desiguais. Ainda a de Friedrich Nietzche (1844­1900), invocando Tucídides (471­395 a. C), quando afirmava que a justiça é sempre uma compensação e uma troca entre poderes opostos mais ou menos iguais. Também a sempre lembrada definição de Dante Alighieri (1265­1321), para quem o Direito seria a proporção real e pessoal de homem para homem que, conservada, conserva a sociedade e que, destruída, a destrói. O próprio Hans Kelsen (1881­1973), em cuja doutrina o tema não tem acolhida, entende que o princípio da justiça, referido a uma ordem social, não é senão o equivalente dos princípios lógicos da identidade e da contradição, sensível, assim, à evidência dessa constante de todas as definições. Seja ela equilíbrio, proporcionalidade ou harmonia, mas qualquer dessas noções nos leva, inevitavelmente, à de igualdade.

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Agora perguntamos: essas teorias satisfazem as nossas necessidades teóricas de formulação do princípio da justiça? Não. Ao invés de eliminar problemas, adverte Siches, suscitam outros.

Se a justiça fosse a própria igualdade, numa relação de troca, perfeita seria aquela em que duas pessoas reciprocassem objetos idênticos. Se tenho um quilo de trigo a trocar, a única maneira de receber coisa exatamente igual é receber outro quilo de trigo. Daí se vê que a compreensão da justiça como fórmula igualitária de compensar o homem em suas relações recíprocas nada significa, porque, sempre que mutuamos alguma coisa, é por algo distinto, absurdo que é permutar coisas iguais.

Se eu quiser trocar o trigo por outra mercadoria, como não podemos comparar coisas heterogêneas, faz­se necessário estabelecer um terceiro valor, que, no caso, é o preço. Permuto o quilo de trigo por uma certa quantidade de moeda que me habilita a fazer uma aquisição conforme a minha conveniência. Na comparação, e hipoteticamente, com o dinheiro da transação, fico em condições de comprar dois quilos de milho. Não sendo possível realizar essas trocas diretamente, tenho que fazer referência a um valor, que é o econômico.

Ainda assim surgem outros problemas. Por que, vendendo um quilo de trigo, não posso, com o produto, comprar um de ouro? A resposta seria que trigo e ouro não se eqüivalem, quando referidos ao terceiro elemento da transação (o valor), que atua como determinante dos preços.

Mas isso importa reconhecer que o conceito de justiça, representando igualdade, é formal, esquemático, não bastando dizer que os homens devem ser dispostos igualitariamente numa sociedade ou que os seus interesses devem ser compostos de acordo com um princípio de igualdade, para alcançar a idéia que lhe corresponde.

Há um século atrás, nos termos daquela fórmula, poderíamos dizer que a igualdade estaria em consentir aos homens massacrarem­se mutuamente a fim de que os mais capacitados sobrevivessem em melhores condições. A livre concorrência expressa um esquema de igualdade de condições para todos, no qual Jean­Jacques Rousseau (1712­1778) vira a própria justiça: os homens são iguais, as leis são iguais para todos, deixemo­los disputar segundo suas pretensões. No entanto, numa sociedade moderna, esse esquema produziria flagrante injustiça.

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Significativas dessa problemática da justiça são as hipóteses concebidas por Edgar Bodenheimer (1907). Se todos os membros de uma coletividade, observa, ou mesmo a sua maioria, estiverem reduzidos ao mesmo estado de escravidão ou de opressão, não há razão para admitir­se que a justiça tenha sido alcançada graças a uma simples igualdade de tratamento. Se criminosos que tenham cometido iguais delitos de pouca gravidade forem todos condenados à pena de morte ou de prisão perpétua, o simples fato de igualdade da sua punição não satisfaz à justiça.

A teoria da justiça, repete­se, não esgota a investigação sobre os valores da regra jurídica. É um degrau a partir do qual buscamos, não importa sob que denominação, outra escala de valores, que dão substância ao conceito meramente formal de justiça. Entendemos que esta, como exigência humana, não é somente idéia, mas também ideal. A idéia é essa mesma que assinalamos através da história da filosofia do direito. É a regra que nos orienta em sociedade, visando a obter uma satisfação equilibrada dos interesses humanos. É, entretanto, vazia de autêntica significação, nada mais nada menos que uma equação algébrica (Leon Grinberg), porque, longe de exaurir a problemática ética ligada a uma ordem social, apenas abre oportunidade para estudá­la num plano superior, onde procuramos valores capazes de proporcionar conteúdo e sentido àquele conceito.

Esses valores não pertencem ao plano da filosofia, mas ao da história, o que afina com o ensinamento de Georges Gurvitch (1894), consoante o qual a justiça e todos os valores jurídicos são os elementos mais variáveis entre todas as manifestações do espírito, porque variam simultaneamente, em função:

a) das variações da experiência dos valores;

b) das variações na experiência das idéias lógicas e das representações intelectuais;

c) das variações nas relações recíprocas entre a experiência volitiva­ emocional e a experiência intelectual; e

d) das variações na relação entre a experiência dos dados espirituais e a própria experiência.

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Explica­se, assim, que o conceito de justiça se tenha conservado estável na filosofia, enquanto o ideal humano que lhe corresponde tanto se tenha alterado.

1.3.3 Formas de justiça

A justiça apresenta­se debaixo de três formas e cada uma delas justifica uma posição própria no seu estudo. Várias definições de justiça podem divergir entre si, e, sem embargo disso, são aceitas, desde que se refiram à justiça sob formas diferentes.

As três formas são: a subjetiva, a objetiva e a ideal. Na subjetiva, é uma virtude. A expressão subjetiva, usada na sua significação verdadeira, quer dizer relativa ao sujeito. Trata­se, pois, de justiça como uma virtude do sujeito. No caso, evidentemente, o homem, porque só há justiça nas relações humanas. Quando dizemos de alguém que é justo, empregamos o vocábulo justo no sentido subjetivo, expressando que a pessoa tem uma virtude, a justiça. Na definição de Ulpiano, a justiça consiste na disposição de dar a cada qual o que é seu. De modo idêntico na de Marco Túlio Cícero (106­43 a.C.) – “tribuere suum cuique”. Em ambas a justiça é vista no seu caráter subjetivo.

Mas a justiça é, por excelência, valor de uma ordem social. Significando critério debaixo do qual uma sociedade está estruturada, a justiça, no seu aspecto objetivo, exterioriza­se em normas. Sob tal modalidade é que a sua noção mais se aproxima da de direito. Direito é tentativa de afirmação objetiva da justiça, definida em regras compulsórias de conduta. Quando Sócrates (469­399 a.C.), condenado à morte, recusou a fuga, considerando o respeito que devia à justiça da sua sociedade, a esta se referia no seu sentido objetivo. Quando cumprimos um dever em submissão à justiça da nossa sociedade, ou acatamos uma norma em obediência à justiça do nosso grupo, à justiça aludimos no mesmo sentido.

Finalmente, a justiça é valor. Sendo todo valor transcendente, ela também o é. Sob tal feição, permite­nos a crítica da ordem social, essa mesma que se nos apresenta como justiça objetiva, e por isso nos obriga a praticar certos atos e nos abster de outros. Isso nos permite senti­la como valor afirmado e como valor contestado. Podemos dizer, por exemplo, que uma sociedade é injusta e que outra é justa, que uma imposição leal é justa e que

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outra é injusta. A justiça, traduzindo valor, referida a um ordenamento social, autoriza­nos a julgar da sua legitimidade ou ilegitimidade.

1.3.4 Modalidades da justiça

São duas as modalidades da justiça: geral e particular. A geral converge para o interesse da comunidade. A particular é pertinente à consideração dos interesses individuais.

A justiça geral pretende o bem comum. Para realizá­lo prescreve que o indivíduo, como parte de uma sociedade, contribua com algo para a sobrevivência e o desenvolvimento dela. Fixa os deveres de cada um com relação à sociedade em que vive, e se realiza quando exige dos indivíduos de maneira igual e eqüitativa.

A sociedade que exigisse de seus membros uma quantia fixa a título de imposto seria injusta, porque tanto o rico como o pobre estariam contribuindo com importância igual. E injusto seria também se o que exigisse não destinasse ao bem comum, mas ao de uma minoria.

A justiça particular, embora sob um aspecto traduza o exercício de uma função social, é sensível às motivações e às necessidades particulares.

Divide­se em justiça comutativa e distributiva.

A comutativa rege as relações de troca. Dela a expressão mais fiel é exatamente a igualdade. Se alugo uma casa, estou trocando o seu uso pelo dinheiro do aluguel. Se vendo um objeto, troco­o pelo dinheiro do comprador. Sempre que damos alguma coisa para receber outra, a situação é regida pela justiça particular comutativa, cujo enunciado é: aquele que dá algo a outrem deve receber, em compensação, valor apropriado ao que deu. Se há correspondência entre os valores permutados, sejam mercadorias, serviços, etc., a transação é justa.

A justiça particular distributiva, embora visando ao interesse do indivíduo, corresponde a uma função social. Toda sociedade, pelo fato de impor limitações aos indivíduos, torna­se depositária de valores, riquezas, utilidades e vantagens, que redistribui pelos seus membros. A justiça que deve

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presidir a essa atividade é a distributiva. O seu critério é o da eqüidade e do mérito, não o da igualdade.

1.3.5 Direito público e direito privado

As modalidades de justiça, a geral e a particular, a última nas suas submodalidades, comutativa e distributiva, dão margem a que possamos perceber que as regras jurídicas, que são ou devem ser manifestações sensíveis da justiça, podem ser distribuídas em dois grandes setores: normas de direito público e normas de direito privado. As de direito público correspondem à justiça geral e à particular distributiva, e as de direito privado à comutativa.

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2. Dados Sociológicos

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2.1 FATO SOCIAL

Estudaremos o fato social em três partes. Na primeira determinaremos a noção estrita da significação de social. Na Segunda, apresentaremos o seu conceito. Na terceira, analisaremos a sua natureza, considerando a diversidade doutrinária sobre a matéria.

2.1.1 Noção de social

Fato social é um fato humano, ao qual qualificamos de social, tema de uma ciência própria, a sociologia. O vocábulo social é perfeitamente distinto do vocábulo plural. É necessário que à pluralidade se acrescente algo mais para que seja considerada manifestação social.

É de rejeitar, portanto, qualquer tendência espúria, já antes eventualmente manifestada no decurso da história da sociologia, tendente a ver o social como uma categoria do ser, presente em qualquer realidade, desde a intra­atômica até a dos sistemas estelares.

O fenômeno social é conduta. Conduzir­se implica uma atitude. Ora, somente os seres dotados de psiquismo têm comportamento. Onde não existe psiquismo não há conduta. Logo, fato social é igual a fato social humano.

A sociologia é uma ciência do homem, investiga processos humanos de convivência. As próprias supostas sociedades animais, algumas apresentando formas definidas de coexistência, não podem ser incluídas no seu campo, nem mesmo em áreas periféricas, porque os animais apenas coexistem, o que é um fato biológico. Henri Bergson (1859­1941), a cuja obra Edourard le Royu empresta importância igual à de Kant, escreve que, quando nós vemos as abelhas de uma colméia formarem um sistema tão estreitamente organizado que nenhum dos indivíduos pode viver isolado além de um certo tempo, mesmo se lhe fornecermos alimentação e alojamento, temos de reconhecer que uma colméia é, realmente, não metaforicamente, um organismo único do qual cada abelha é uma célula unida a outras por laços invisíveis. O instinto que anima a abelha confunde­se com a foça de que a célula é animada. Logo, o estudo de tais sociedades incumbe à Biologia, que se ocupa dos fenômenos da vida, em todas as suas modalidades e sob todos os seus aspectos.

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A sociologia, diversamente, se dedica a uma ordem de fenômenos aos quais só a convivência humana dá origem.

Num mundo sem humanidade não haveria sociologia, porque não existiria ambiente social, em cujo interior ocorrem os acontecimentos que lhe são próprios. A sociologia estuda as maneiras de comportamento do homem num determinado meio e suas diferentes modalidades de adaptação.

2.1.2 Conceito de fato social

O homem habita em duas ambiências: uma natural e outra social. Natureza e sociedade são climas em que vive. Característica da vida é manifestar­se como processo de adaptação. O homem se adapta ao meio natural, através de mecanismos fisiológicos e recursos técnicos, e ao social, por processos chamados sociais, que se desenvolvem à base de interação.

Vivendo em grupo, nós interatuamos, isto é, cada um de nós exerce sobre os outros uma influência e, na mesma medida, a recebe dos outros. Esta influência recíproca dos indivíduos que convivem é a interação. Esta significa, antes de mais nada, qualquer alteração no comportamento de duas pessoas, uma diante da outra. Por isso, diz­se que a interação é o correspondente social da ação recíproca da Física.

Fundamental nesse processo de interação é a linguagem, porque, como proclama Émile Gouiran, a sociedade é um fato cujas causas, nem por serem múltiplas, deixam de se reduzir a uma só: a necessidade para o homem de existir pensando e a impossibilidade de pensar sem uma palavra que lhe responda. A sociedade é, assim, essencialmente, a linguagem do homem, pois onde o homem se expressa há sociedade e nem se expressa ele senão porque há sociedade.

Para sua acomodação ao meio natural o indivíduo modifica­se para obedecê­lo, ou o modifica, valendo­se das técnicas. Igualmente, sua adaptação ao meio social, ou a outro indivíduo tem duplo sentido: é corrente que vai, corrente que vem, em alternativas de influência subordinante e subordinada.

A interação é o suporte fático de toda a realidade social. Sem ela, não existiria fato social. Não se deduza daí que basta que haja interação para que se produza um fato social. A própria irradiante interação existente nas

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multidões não cria senão estados de espírito intensos, mas momentâneos, conforme Gustave Le Bom (1841­1931). Para que a interação ultrapasse o recinto da mera realidade psicológica interindividual, dando lugar a um fenômeno sintético novo, o social, necessário é que, à falta de melhor expressão, diríamos, atinja um certo nível de densidade. Assim, o fato social apresenta características que bem o distinguem do psicológico:

a) generalidade (é comum aos indivíduos);

b) coerção (traduz uma pressão do grupo sobre o indivíduo);

c) repercussão (a qual se processa independentemente das intenções individuais);

d) transcendência (no sentido de que se situa fora e acima da ação dos indivíduos).

2.1.3 Grupos sociais

Os grupos sociais são sistemas mais ou menos permanentes de interação cooperativa.

Numa família, pais, filhos, irmãos, parentes que vivem em comum, há interação. Num grupo de trabalho, as pessoas organizadas para uma tarefa interatuam. Uma comunidade universitária forma um sistema, mais ou menos fechado, de interação, no qual encontramos sistemas menores, séries, turmas, classes, pequenos grupos cujos componentes levam uma vida mais comum. Teremos grupos menores dentro de outros maiores, que estarão dentro de um ainda maior. Cada um deles forma como que uma constelação de influências, porque é um sistema de interações.

O indivíduo não está vinculado a um só grupo. Tem a sua família, a sua igreja, o seu partido, o seu clube. Ele ocupa, assim, ao mesmo tempo, distintas posições em diferentes sistemas. Não é a presença física do indivíduo que dá ao sistema a sua autonomia.

O grupo social, como sistema de interação, é uma entidade abstrata, porque é intangível na sua essência. Numa escola, acabada a aula, cada estudante volta à sua casa, e passa a estar isolado dos colegas. No entanto, o

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grupo subsiste. Num quadro de futebol, finda a concentração ou o jogo, acontece o mesmo. Cada membro regressa à sua casa, mas seu grupo subsiste.

O grupo existe desde que uma parcela de comportamento do indivíduo seja ditada por ele. O estudante que, em casa, dedica­se aos seus deveres escolares, está procedendo de acordo com uma exigência de seu grupo. Se deixa de ir a uma festa ou dela sai mais cedo, para não perder a aula do dia seguinte, o mesmo acontece. Desde que várias pessoas, em caráter permanente, dediquem parte de sua conduta a um grupo, este existe e subsiste, mesmo quando seus integrantes não estão contactando.

É exatamente porque mister não se faz que a conduta individual seja consagrada exclusivamente a um grupo, que o indivíduo pode participar de vários e, assim, pertencer a diferentes sistemas de interação, uma vez que colabore com todos.

2.1.4 Formas, processos e relações

Os grupos sociais ordenam­se de formas diferentes. Diversos são os seus procedimentos de manutenção e alteração. E mantém intercâmbio uns com outros. Por isso, podem ser considerados quanto à sua organização, aos seus processos de manutenção e de transformação e às suas relações com outros grupos.

A organização dos grupos é variada. Um grupo de presidiários, sujeito a uma rígida disciplina, não está organizado de maneira idêntica a um clube ou a uma universidade. A família não está organizada, em toda parte, da mesma maneira, e nem o esteve de modo igual em todos os tempos.

Relativamente aos processos de conservação e alteração, devemos salientar que a vida social é essencialmente dinâmica e que os grupos representam sistemas de forças em tensão. Em cada grupo há dois processos fundamentais: um, de conservação, sem o qual ele pereceria; outro, de transformação, sem o qual se anquilosaria. Esses processos, a seu turno, se diferenciam em sua significação específica: religiosa, éticos, estéticos, gnoseológicos, políticos e econômicos.

Finalmente, os grupos sociais entram em contato uns com os outros, o que dá origem a fenômenos sociais de uma classe peculiar.

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2.1.5 Temas da sociologia

Como os grupos sociais podem ser apreciados sob esses três aspectos, a sociologia, ciência que os estuda, tem esse tríplice objeto.

E. em relação a ele, segundo o ensinamento de Leopold von Wiese (1876), procede sempre num ritmo pendular entre a realidade e a abstração: 1. Abstrai o social inter­humano do resto pertencente à vida humana; 2. Constata os efeitos do social e do modo como se produzem; 3. Restitui o social ao conjunto da vida humana para fazer compreensíveis suas relações com ela.

2.1.6 Características dos grupos

São características essenciais dos grupos sociais: cooperação e participação harmônica.

A primeira característica é mais evidente. Vida social é vida cooperativa, de associação, de conjugação de esforços. Onde o indivíduo não colabora, não existe vida social, ipso facto, grupo social. A cooperação se apresenta numa faixa extensa de gradação. Pode ser mínima ou máxima. Se alguém dá a máxima cooperação a certo grupo social, afasta­se dos demais, e pertence somente àquele. Diminuindo, entretanto, a cooperação do indivíduo, aumenta a sua possibilidade de fazer parte de outros grupos, doando a cada um deles parcela da sua dedicação.

Uma equipe de futebol, jogando num campo, exemplifica de forma exata a cooperação como qualidade grupal. Todos cooperam, indivíduo para indivíduo, em busca do mesmo fim. Inconscientemente, também, estão cooperando num grupo mais amplo. Cada equipe visa a ultrapassar a adversária, mas, se alguém tentar interromper a competição, as equipes passam a cooperar para evitar a intromissão. É que elas formam um grupo maior, tanto que, atingidas por uma afronta comum, reagem como conjunto, deixam de ser duas equipes distintas, apenas uma só reagindo contra o intruso. E, assim, por que elas acatam regras iguais de procedimento, formando outra unidade maior, com posição própria diante de terceiros.

A segunda característica, mais nítida para definir o contorno de um grupo social, é o senso de participação harmônica, isto é, o sentir a diferença entre pertencer e não pertencer a um certo grupo. Só as pessoas pertencentes a

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um grupo têm direitos e deveres, relativamente a ele. Esta consciência de privilégios, regalias, vantagens, direitos e encargos separa os integrantes de um grupo dos que a ele não pertencem.

Autores há que citam características mais numerosas: pluralidade de indivíduos, objetivos comuns, interação mental, relativa durabilidade, certa organização e sentimento de autonomia. Cremos, porém, todos esses atributos contidos, embora alguns implicitamente, naqueles que citamos, segundo a lição de H. M. Johnson.

2.1.7 Natureza do fato social

Hoje a Sociologia não se preocupa com a pergunta metafísica sobre o que é sociedade. Nem outras ciências têm mais a mesma veleidade. A Psicologia não indaga mais o que é a alma, nem a Física pergunta mais o que é matéria. A Sociologia, como qualquer ciência, é observação de fenômenos para a sua compreensão. O interesse do tema está apenas em que ele permite uma sucinta visão da história da Sociologia.

Situemos o problema.

Observamos, entre os homens determinados fenômenos que chamamos sociais. Só existem quando estão agrupados, não podendo ser explicados apenas em função de realidades inerentes ao indivíduo. Daí a pergunta: qual é a sua natureza?

Podemos determinar, a respeito, quatro posições principais: o fisicismo, o biologismo, o psicologismo e o sociologismo.

O fisicismo é a explicação do fato social como variante do mecânico. O biologismo é a sua explicação como modalidade do biológico. O psicologismo é a sua explicação como maneira de ser do fenômeno psíquico. O sociologismo é, finalmente, a tendência para a explicação do fato social por ele mesmo, não como epifenômeno de outro que lhe seja subjacente.

Explicado o fato social como mecânico, não existirá, a rigor, Sociologia, mas uma mecânica social. Se o explicamos como fato biológico, a Sociologia será apenas o último e mais avançado capítulo da Biologia. Se dizemos que o fato social é manifestação de fenômeno mental, também não

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haverá uma Sociologia, mas uma Psicologia social. Será preciso afirmar que o fato social não é modalidade de outro, que constitui uma realidade irredutível a qualquer outra, para que possamos ter uma ciência peculiar de seu estudo, a Sociologia.

A Sociologia é uma ciência recente, cujo batismo ocorreu no século XIX, com o positivismo, filosofia de Auguste Comte (1798­1857), o primeiro a reconhecer­lhe autonomia, incluindo­a na sua famosa classificação, na qual distribuía as ciências em ordem decrescente de sua generalidade e crescente da sua complexidade. Essa classificação partia da ciência mais ampla e mais simples, a Matemática, até atingir, no seu termo, uma ciência nova, mais complexa e mais restrita, a Sociologia.

Ingressando a Sociologia entre as ciências, surgiram debates sobre a natureza do fato social, caracterizados pela pretensão de explicá­lo como variante de outros, já estudados. Ocorreu com ela o que se passa com toda ciência neófita: enfrentar a concorrência de ciências mais amadurecidas, mais desenvolvidas, tradicionais, que pretendem chamar a si a explicação do novo fato observado, negando­lhe a autonomia, característica essencial para ser objeto de uma ciência própria.

2.1.7.1 Fisicismo

Sob a rubrica de fisicistas devem ser citados aqueles que, participando de um momento de extraordinário prestígio da Física, ciência que então parecia a chave para o conhecimento completo da realidade, pretenderam deslocar os seus métodos para o estudo das manifestações de vida social. Os grupos sociais seriam considerados à semelhança de corpos, e os processos sociais entendidos tal como se interpreta a atuação de forças mecânicas. Wilhelm Ostwald (1853­1932) é o mais destacado representante do movimento.

2.1.7.2 Biologismo

O biologismo, posição, entre outros, de Spencer, Pavel Federovich Lilienfeld (1829­1903) e René Worms (1867­1926), correspondeu a um período de euforia da Biologia.

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Até certa época, o fato vital, objeto dessa ciência não havia sido caracterizado na sua perfeita autonomia, diante dos fenômenos físicos e químicos. Considerava René Descartes (1596­1650), um dos filósofos que inauguraram a Idade Moderna da filosofia, os seres vivos em tudo iguais a mecanismos, e suas funções resultantes exclusivamente da disposição de seus órgãos, à semelhança do que ocorre nos movimentos de um relógio. Assim pensando, observa Marx Frischeisen Kohler, aproximava­se ele da idéia de uma derivação histórica dos organismos, partindo da natureza inanimada.

Avançando paulatinamente, realizando uma revolução que E. Boinet compara à de Antoine­Laurent Lavoisier (1743­1794) no estudo dos corpos inorgânicos, a biologia foi repudiando tais noções, até que Marie­François Bichat (1771­1802) trouxe uma contribuição decisiva para a sua plena autonomia, ao afirmar que o fato vital era inteiramente diverso dos fenômenos físicos e químicos que se passam no corpo, tese que ainda repercute nas doutrinas contemporâneas de Elsasser e Planyi. Não somente diverso, mais exatamente oposto àqueles. De onde resultou a sua definição, segundo a qual a vida é um conjunto de funções que resistem à morte. A vida seria um estado de permanente luta, de que o corpo seria cenário, entre as propriedades físicas e químicas da matéria, de um lado, e, de outro, suas propriedades vitais. As doenças seriam momentos de crise nessa luta pela sobrevivência das propriedades vitais, cuja derrota final estaria na morte.

Bichat precisou a noção de organismo, como um conjunto sui generis, caracterizado pela recíproca dependência entre o todo e as partes. E foi exatamente o conceito de organismo que pareceu, em certo momento, sedutor demais, a ponto de justificar a sua ampliação ao campo de outras ciências, entre estas a sociologia. A sociedade poderia, então, ser comparada a um organismo vivo, precisamente porque, nela, tal como sucede neste, o todo depende de cada uma das suas partes e estas daquele. Assim, os métodos da biologia poderiam ser legitimamente aplicados ao estudo dos fatos e das instituições sociais.

Os partidários da escola organicista, conforme observa Antonio Dellepiane, bifurcam­se: uns identificam a sociedade a um organismo vivo (Lilienfeld, Jacob Novicow (1849­1912), Worms) e outros estabelecem uma analogia mais formal do que substancial entre ambos (Albert E. Friedrich Schafle (1831­1903), Spencer).

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Spencer, ambicionando uma síntese global da realidade, via no Universo uma estrutura em forma de pirâmide, construída por um incessante processo de evolução, em cuja base estaria o mundo inanimado (inorgânico), logo em cima o mundo animado (orgânico) e no topo o mundo social (superorgânico). As sociedades seriam, então, verdadeiros superorganismos, cuja estrutura se determinaria em função da estatura, da força, dos meios de defesa, do gênero de alimentação, da distribuição dos alimentos e do modo de propagação, relativamente a cada espécie. À semelhança dos organismos, teriam órgãos, sistemas, funções, nasceriam, cresceriam, envelheceriam e morreriam.

Na escola biologista situa­se o chamado darwinismo social, fundado na tese de Charles Darwin (1731­1802), segundo a qual cada organismo mantém seu lugar por uma luta periódica, o que lhe parecia indubitável em face da circunstância de se multiplicarem todos os seres em progressão geométrica, enquanto que, em média, permanece o total da subsistência; do que resultaria a explicação da evolução social por esse processo competitivo espontâneo. O erro maior da doutrina, consoante observa Marcel Prenant, foi exatamente o de referir à sociedade humana a falsa lei de Thomas Robert Malthus (1766­ 1834) como se fosse uma lei universal da vida, quando nada mais traduzia do que constatações feitas na sociedade burguesa da Inglaterra.

A tese organicista, que é a mais representativa da corrente biologista, conduziu a comparações pitorescas, no esforço de seus teóricos de confirmar a pretendida semelhança. As funções de governo corresponderiam às funções nervosas, a produção seria o equivalente da nutrição, os transportes, da circulação, etc., etc.

2.1.7.3 Psicologismo

Mais tarde, o psicologismo assumiu atitude de contestação às doutrinas anteriores.

Foi seu fundador Gabriel Tarde (1843­1904) que, escreve Fernando de Azevedo (1894­1974), conseguiu, numa luta de 20 anos contra todas as formas de biologismo, desprender da Biologia a nova ciência, mas para subordiná­la a outra: a Psicologia.

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Ensinava ele que um fenômeno somente pode ser objeto de conhecimento científico se ele se repete. Assim, por exemplo, acontece na Física, com as vibrações que se sucedem, e na Biologia, com a hereditariedade.

Os fatos sociais, no seu entender, podem ser reduzidos a um só, de índole individual, a imitação. Por esta, um sentimento, uma idéia, um gesto, transmite­se de uma pessoa a outra. O ponto de partida da imitação é a invenção, fato essencialmente individual, porque somente o indivíduo inventa. Toda vida comum é invenção ou imitação e, unicamente, sob esses aspectos, pode ser estudada. Procurar como se apresenta e se modifica a imitação, em todas as circunstâncias, é o fim da Sociologia.

Considerado o fato social manifestação de um processo nitidamente individual, não se lhe poderia predicar natureza peculiar diversa da natureza do fenômeno mental. A Sociologia, então, seria uma Psicologia interindividual ou intermental, da qual todos os elementos básicos seriam dados pela Psicologia de cada um dos indivíduos, cuja colaboração produz a vida social.

2.1.7.4 Sociologismo

Émile Durkheim (1858­1917) foi o verdadeiro fundador da Sociologia científica.

Conceituou os fatos sociais como maneiras de sentir, pensar e agir exteriores e coercitivas. Há maneiras de pensar, sentir e agir que dependem do indivíduo e são projeções da sua mente, cujo estudo incumbe à psicologia. Mas outras há que se singularizam pela exterioridade e traduzem obediência a um padrão extramental, em relação aos quais a conduta não pode ser entendida em termos meramente psicológicos. Nesta situação, o comportamento do indivíduo é condicionado por fatores que estão fora da sua mente.

A exterioridade dos fatos sociais bem se evidencia na circunstância de existirem independentemente de nós. Precedem­nos e nos sobrevivem. Exemplo: as religiões. Dentro de um credo, que nos sobrevive, nascemos e morremos. As crenças não existem como frutos de elaboração da mente individual, mas como realidades sociais que se imprimem no espírito de cada um de nós. Também a linguagem, fato social por excelência, revela o

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condicionamento imposto pela sociedade ao indivíduo. Se alguém quiser se dirigir aos membros do seu grupo, sem usar da linguagem comum, ficará privado de comunicação. Por outro lado, ela, a bem dizer, modela a própria formação da consciência do indivíduo, tão prematura e total a sua imposição.

Além de exteriores, os fatos sociais exercem pressão sobre os indivíduos, impondo­se à sua conduta, e nisso está a sua coercitividade. Segundo Durkheim, a coercitividade é que nos permite reconhecer o caráter social de um fato, como elemento característico do seu perfil, a marcá­lo de modo nitidamente distinto em relação ao fato psíquico. A moda, por exemplo, que pode, em termos teóricos, ser tida por modelo de conduta facultativa, atua, porém, irresistivelmente, sobre os homens, como autêntica realidade social que é, a ponto de, como aponta Gustave Le Bom (1841­1931), levá­los a admirar coisas sem interesse e que parecerão, alguns anos depois, de extrema fealdade.

Durkheim instituiu uma sociologia positiva, visando a descobrir, pelos métodos ordinários de observação e indução, as leis que ligam certos fenômenos sociais a outros, por exemplo, o suicídio ao aumento da população.

Fiel à maneira positiva de qualquer ciência abordar o seu objeto próprio, recomendou aos sociólogos tratassem os fatos sociais como coisas, regra basilar do seu método, da qual os corolários:

a) arredar prenotações;

b) precisar o objeto positivo da pesquisa, mediante o grupamento de fatos em função dos seus caracteres exteriores comuns;

c) apreender os fatos pelo aspecto em que se mostram emancipados das suas manifestações individuais.

Fugindo à dispersão especulativa dos predecessores, Durkheim concentrou seu esforço teórico na precisa conceituação do único insubstituível objeto da sociologia, os fatos sociais. Contrapondo­se a Tarde, para quem eles não seriam senão a soma das representações individuais, não encerrando assim nada mais que já não estivesse nas parcelas, proclamou a sua natureza sintética e, portanto, a sua autonomia. Daí ser a sociedade, para Durkheim, como explica Armand Cuvillier, não apenas um total de indivíduos, mas um composto original sui generis.

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Da análise da avassaladora atuação da ambiência social sobre o espírito humano, em conseqüência da qual à sociedade se atribuiu a condição de fundamento de todas as funções mentais superiores, resultou verdadeira hipertrofia da importância da ciência social no elenco das ciências do homem. A psicologia foi aquela cujo objeto próprio mais pareceu comprometido. A essa expansão dos limites científicos da sociologia correspondeu o movimento doutrinário rotulado de sociologismo.

2.2 SOCIEDADES HUMANAS

As sociedades humanas são grupos sociais característicos, ou seja, possuem os atributos comuns a todos os grupos, cooperação e senso de participação harmônica, e outros que lhes são peculiares. Grupo, portanto, é gênero; sociedade, espécie. Daí a conclusão: toda sociedade é um grupo social, mas nem todo grupo é uma sociedade.

A sociedade humana é o grupo social plenamente evoluído. Em nossos dias, as idéias de sociedade humana e nação têm, freqüentemente, a mesma extensão, o que nos autoriza a dizer que as sociedades humanas são grupos totais, não subgrupos de um grupo. Neste sentido nos referimos, por exemplo, à sociedade americana, à brasileira, etc.

2.2.1 Caracterização das sociedades

Os atributos, que fazem acreditar a certos grupos humanos a qualidade de sociedades, são: território definido, reprodução sexual, cultura de longo alcance e independência.

A primeira característica de uma sociedade humana é a definição do seu território, da sua área de implantação geográfica. A sociedade francesa ocupa um território, a americana, outro.

A segunda é a reprodução sexual, isto é, a manutenção da sua massa demográfica por um processo interno de multiplicação. Isso não exclui a incorporação de elementos estranhos através da imigração. Mas o contingente migratório, enquanto não assimilado, deve ser sensivelmente menor, na composição populacional, em relação ao das criaturas nela concebidas pelos

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seus próprios integrantes natos. A sociedade que contém mais imigrantes que integrantes de origem está fadada a perder sua própria identidade.

A terceira característica é a cultura de longo alcance, e o conceito de cultura já foi tratado anteriormente, quando assim consideramos tudo o que o homem faz, pelo seu esforço de criação. Agora, porém, cabe um reparo que faça mais explícito e nítido o conceito, porque, se dizemos que cultura é tudo aquilo que o homem faz, corremos o risco de estabelecer confusão entre o que é cultura e o que são objetos culturais. A cultura, é, realmente, o conjunto de habilitações que permitem ao homem criar e, neste sentido, é a forma interna da criatividade humana, na expressiva linguagem de Oswald Spengler (1880­ 1936). Assim, está menos nos objetos criados do que na capacidade de criá­ los.

Um grupo social, para ter nível de sociedade, deve possuir uma cultura de longo alcance, que lhe assegure a afirmação da sua personalidade cultural própria. E, como afirma John Dewey (1859­1952), para que um grupo de pessoas forme algo que se possa chamar uma sociedade em seu sentido amplo, é necessário que haja valores estimados em comum. Sem eles, qualquer grupo social, classe, povo ou nação, tende a desperdiçar­se em moléculas que não terão entre si mais do que conexões de significação meramente mecânica. Embora as relações intergrupais concorram para aproximar os padrões culturais, tal intercâmbio não chega a ponto de suprimir as tipicidades de cada sociedade.

Por último, uma sociedade humana é um grupo independente. Mesmo politicamente dominada, conserva a sua independência, pela capacidade de resistir a ser absorvida culturalmente pelo grupo dominante. Se politicamente livre, a sua autonomia se afirma como a atitude de decidir nas áreas de seu interesse, da qual não pode renunciar.

2.2.2 Sociedades humanas e supostas sociedades animais

As sociedades humanas, já agora usada a expressão em amplo sentido, não no restrito em que dela nos utilizamos no item precedente, possuem caracteres genéricos que as distinguem das supostas sociedades animais.

A distinção fundamental reside em que a sua natureza repousa num substrato de índole psicológica, e a das chamadas sociedades animais, cujos

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indivíduos são seres incrustados e sumidos na realidade vital correspondente aos seus estados orgânicos (Max Scheler), é de base biológica (instintiva). O homem pertence a uma sociedade tem a consciência da sua vinculação a ela, consciência que lhe dá tanto maior liberdade quanto mais alto o nível da sua sociedade, a ponto de Jacques Maritain (1882­1973) afirmar que uma sociedade é um organismo feito de liberdade. O animal gregário associa­se aos demais da mesma espécie por imposição biológica irresistível.

Dessa distinção essencial resultam as demais, que passamos a enumerar.

As sociedades animais são estáticas. As atividades que os indivíduos de uma colmeia desenvolvem hoje são as mesmas anteriormente desenvolvidas e as que sempre desenvolverão. São biológicas, portanto permanentes e imutáveis. As sociedades humanas são dinâmicas e evolucionais. Um grupo humano estacionário entra em decadência, e seu futuro inexorável será o desaparecimento.

As sociedades animais são aculturais; as humanas, culturais. Aquelas não têm poder de criação, as humanas, ao contrário, são essencialmente criadoras. E assim acontece, também, porque o gregarismo das supostas sociedades animais é mero exercício de uma imposição instintiva, enquanto que a convivência dos homens é consciente e, por isso, não suprime a personalidade individual.

Finalmente, as sociedades humanas são normativas e as supostas sociedades animais, anormativas. Nenhuma sociedade humana pode sobreviver sem um mínimo de preceitos para reger a conduta de seus membros, normatividade de que não necessitam as supostas sociedades animais. Nestas, a conduta, ressalvada a impropriedade do termo, é decorrência de uma estrutura biológica, e, assim, desempenhada sempre do mesmo modo. Nas sociedades humanas, o indivíduo é livre desse determinismo, mas, ligado a um grupo, sua liberdade há de ser limitada segundo os interesses gerais. E apenas se pode restringir a conduta de indivíduos livres prescrevendo­lhes normas de procedimento.

2.3 FENÔMENO POLÍTICO

O fenômeno político é decorrência necessária do caráter normativo das sociedades humanas.

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Toda sociedade tem um estatuto de conduta, não somente para limitar o interesse do indivíduo, restringindo­lhe a liberdade, como para disciplinar a sua atividade, de modo a pô­la a serviço dos fins e dos interesses gerais. Quando pretendemos impor a alguém que proceda segundo certo padrão, só podemos fazê­lo por meio de normas. As sociedades são normativas, também na medida em que os indivíduos exigem dela a satisfação de certas conveniências e utilidades.

O fenômeno político, do ponto de vista sociológico, isto é, numa posição esvaziada de sentido ideológico, filosófico ou valorativo, é o poder. Quando, num grupo humano, se institui o poder, dotado da faculdade de constranger incondicionalmente os governados (Michel Debrun), este fato é político, pouco importando a sua natureza, a sua substância, a maneira pela qual se exerce, a finalidade que colima. Sempre que alguém manda e os demais obedecem, há manifestação de poder, fato político.

2.3.1 Formação do poder

Sendo as sociedades normativas, a existência de um poder lhes é inerente. A normatividade seria inócua se fosse facultativa, se os indivíduos tivessem a liberdade de infringir, inconseqüentemente, os códigos de procedimento. Uma normatividade dessa natureza não representaria fato social; poderia ser um formulário de princípios ideais, jamais fenômeno social.

Se a sociedade impõe determinados tipos de comportamento, é indispensável uma entidade que obrigue os indivíduos a respeitá­los. Daí aparecer o titular do poder. Poderá ser uma pessoa, ou um grupo, e a forma mais avançada dessa entidade chamamos Estado. O poder assegura a eficácia da normatividade social, conseguindo obter da maioria conduta coerente com os seus padrões. Não se trata de um fenômeno tardio, pois coincide com a estabilização do grupo social.

O poder, na sua origem, manifesta­se sob aparência difusa. Não existe, então, entidade que tenha o monopólio da autoridade. Todos são, ao mesmo tempo, governantes e governados. É o poder na sua pré­manifestação, ainda não como faculdade de uns exigirem de outros a prática ou a abstenção de certos atos. Ele se alimenta das crenças, das tradições, dos costumes, das convenções, pois todo o grupo os tem, de origem imemorial. O indivíduo que os infringe é alvo de ressentimento social. O grupo reage como um todo,

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voltando­se contra o transgressor, não raro para castigá­lo ou, mais freqüentemente, para bani­lo. Nessa fase, são os homens de idade avançada que tutelam a comunidade, porque o seu repositório de tradições é maior do que o equivalente de um membro jovem do grupo.

2.3.2 Individualização

Mais tarde, ocorre a individualização do poder: a passagem do poder de todos para o de um, ou de alguns. Antes, todos eram, simultaneamente, governantes e governados, cada um obedecia a todos os demais e, a seu turno, fazia parte de todos para julgar e punir os que divergissem dos padrões incorporados à conduta média do grupo. Com a individualização do poder, desponta propriamente o fenômeno político.

Essa individualização realiza­se ao sabor de variadas circunstâncias. Acontece sempre, mas não do mesmo modo. São as condições peculiares a cada grupo que estabelecem modalidades diferentes. Num grupo social que vive em constantes guerras, a individualização dá­se em termos militares. É o homem mais audacioso, o mais habilitado para a luta, o mais qualificado para o combate que empolga o governo. Com o tempo, o poder, que só se constituía por ocasião de conflitos, torna­se permanente, e assim surge quem governa e quem obedece.

A individualização do poder ainda pode ser atingida em função de outros processos. Há, por exemplo, um fator relevante, de índole psicológica. Existem homens predestinados à liderança, com personalidade carismática, capazes de empolgar outros. Traço psicológico, contrastando com o de muitos, avessos a qualquer comando, também responde pela divisão do grupo entre os que governam e os que obedecem.

Noutros grupos, a individualização tem origem religiosa. Houve épocas em que o sacerdote foi também governante, porque invocava o sobrenatural, a sanção que mais teme o homem primitivo. Essa faculdade lhe dava condição excepcional para o exercício do governo.

Em outras circunstâncias, poderá o fato econômico gerar o mesmo resultado. É o detentor de riqueza, possuidor das terras, senhor de um fator importante de produção, quem governa.

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Pouco importa a maneira histórica pela qual o fenômeno se registra. O certo é que, em toda sociedade, o poder atravessa duas fases: difuso na origem, logo mais, individualizado, prerrogativa de um ou de alguns.

2.3.3 Maioria e minoria

Gera­se sempre uma separação entre maioria e minoria: uma facção minoritária governante e outra majoritária governada. Clara é a representação desse fenômeno nos conceitos de Max Weber (1846­1920) e Nicolas Timacheff. Para o primeiro, o fato político é a divisão da sociedade em dois subgrupos, um menor que manda e um maior que obedece. E para Timacheff, no fenômeno político há sempre minoria central ativa e maioria periférica passiva, minoria polarizadora e maioria que se deixa polarizar.

2.3.4 Institucionalização

Individualização, o poder passa à sua terceira etapa: a de institucionalização, quando quem obedece o faz por dever. A partir de quando a vontade de governar de um obtém aceitação da maioria governada, o poder se institucionaliza.

A institucionalização opera­se por processos variados. O mais elementar é o do terror, do qual o estado policial é forma típica. Há povos oprimidos que atravessam anos sem um protesto público contra seu governo. Inegavelmente, neles o poder está institucionalizado, até mesmo porque essa medida funciona, no plano internacional, para reconhecimento de sua representatividade. Mas, já ensinava Rousseau, em quem Romain Rolland (1866­1944) viu o mais esclarecido e o mais firme dos legisladores, que o mais forte nunca é bastante forte para ser sempre senhor, se não transforma sua força em direito e a obediência em dever. Daí a instabilidade do poder institucionalizado à revelia desse preceito.

Processo contemporâneo de institucionalização do poder é a propaganda. Conquistado o governo pela força, os governantes o popularizam pela propaganda, através da imprensa, do rádio, da televisão, etc. A evidência da sua institucionalização é dada por imensas manifestações de massa.

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Democraticamente, a institucionalização se processa pelo sufrágio, isto é, pela manifestação expressa da opinião individual dos governados. O referendo, a eleição e o plebiscito são modalidades de audiência dos súditos quanto à sua aquiescência ao poder.

2.3.5 Estabilização

O poder pode ser formado, institucionalizado e passado a ser representativo de um grupo, e ainda lhe faltar estabilidade. A estabilização traduz permanência. Ocorre na medida em que afinam governantes e governados por interesses comuns. É a identificação de ambos que gera a estabilização. Um grupo pode assaltar o poder, desencadear uma ampla campanha de propaganda própria, conseguir, em dado momento, a unanimidade dos governados para a sua autoridade, mas se, no decorrer do tempo, a conduta dos governantes não se harmonizar com os interesses dos governados, seu domínio cairá.

Assim, na origem simples fato que separa governantes e governados, o poder se estabiliza quando uns e outros confluem para um fim comum e a linha que os afasta é a mais tênue possível.

2.3.6 Formas

O poder assume três formas: poder puro e simples, poder tradicional e poder revolucionário.

Essas formas são cambiantes. O puro e simples pode e tende a se transformar em tradicional; o tradicional pode converter­se em puro e simples; o revolucionário, em tradicional, e assim por diante.

Puro e simples é o poder tal como na sua origem, despreocupado de legitimidade, caracterizado pelo arbítrio. Seu limite é a própria vontade de quem governa.

O tradicional é o que, construído ao longo da história fica tão vinculado a uma sociedade que passa a ser tradição. O exemplo típico, sempre característico, é o da Coroa Britânica. Pode se transformar em puro e simples,

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quando perece a tradição e ele subsiste como tal já então sem legitimidade, fundado meramente na força.

Com o poder revolucionário, ensina Bertrand Russell (1872­1970), aparece um novo credo, implicando novos hábitos mentais, conseguindo impor­se o bastante para instalar um novo governo, em harmonia com os seus princípios, no lugar do existente, então considerado obsoleto. Como explica Sorokin (1899­1968), reportando­se a Alexis de Tocqueville (1805­1859) e a Hippolyte Adolphe Taine (1828­1893), destroem as revoluções somente as instituições e organizações moribundas, que teriam morrido de qualquer maneira, mesmo em sua ausência.

A democracia moderna, por exemplo, procedeu da ideologia liberal democrata e hoje luta contra formas socialistas de organização estatal, também ideológicas, que a tem substituído em certas áreas, tal como ela sucedera à ideologia dos regimes absolutistas.

Sempre que há mudança de governo, por força de substituição de uma ideologia caduca por outra, válida e contemporânea, temos o poder revolucionário. Essa mudança realiza­se pelas revoluções sociais, que se distinguem das políticas, nas quais há apenas substituição de pessoas, sem alteração de estruturas e credos políticos. Duas revoluções, uma liberal, a francesa, outra socialista, a russa, deram origem a típicas formas de poder revolucionário.

O poder revolucionário não é igual ao poder de fato. Uma ideologia nova empolgando o poder, é certo que desaparecem constituição, leis, autoridades. Uma conclusão apressada diria que o poder revolucionário é ditatorial (puro e simples) visto atuar com liberdade, pois não está contido por normas rígidas. Tem um limite, porém, na própria ideologia revolucionária. Limite impreciso, de contornos inexatos, mas que, com o tempo, se cristaliza em normas objetivas de uma nova legalidade.

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3 Dados Sociofilosóficos

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3.1 NORMATIVIDADE SOCIAL

Normatividade social é o conjunto de regras, escritas ou orais, de origem determinada ou indeterminada, que tutelam a conduta dos homens em grupo, impondo­lhes deveres positivos ou negativos. Em qualquer sociedade humana, rudimentar que seja o seu nível, há normas que dizem aos seus componentes o que podem e o que não podem fazer, o que devem e o que não devem fazer, como devem e como não devem fazer. Não há sociedade sem ordem e nem ordem sem normatividade, porque esta é o espelho daquela. A ordem social projeta­se em normas de conduta, que traçam o campo da liberdade do indivíduo e definem o que lhe é proibido.

A normatividade é uma decorrência necessária do caráter psicológico das sociedades humanas. Nelas, o indivíduo é cônscio da sua condição social, a sua integração é consciente, e, em essência, consentida. Por isso, há os que resistem às imposições sociais, tornando­se alguns deles pioneiros de outras épocas, e outros, simplesmente marginais ao seu grupo.

Se o homem é intrinsecamente livre e se a sociedade entende que das possibilidades contidas na sua liberdade umas devem ser eliminadas, algumas aceitas, outras estimuladas, cabe­lhe indicá­las. E isso importa formular normas que representam o julgamento da sociedade sobre a conduta individual.

3.1.1 Formação

A normatividade é produto histórico que se acumula e sedimenta através do tempo. Como puderam os homens criá­la? Para responder a indagação deparamos com diferentes explicações. Nenhuma delas é integralmente verdadeira, embora acaso possam todas sê­lo parcialmente, porque, como adverte Aníbal Ponce, de toda a obra de Lucien Levy Bruhl (1857­1939) emerge esta verdade: é inútil pretender explicar as instituições, os costumes, as crenças dos primitivos, fundando­se sobre a análise psicológica do espírito humano, abstraindo a natureza pré­lógica e mística da mentalidade primitiva.

Para Icílio Vanni (1855­1903), os fatores determinantes foram o hábito e a imitação, o que é também aceito por Luis da Cunha Gonçalves (1875­ 1956). O homem repete­se a si mesmo e aos seus semelhantes. O hábito, que

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William James comparou à enorme roda volante da sociedade, e a imitação constituem agentes relevantes da tradição social. Diante de uma situação, agimos de certo modo. No futuro, levados pelo hábito, repetimos nosso procedimento e, insensivelmente, formulamos, para nós mesmos, uma norma de procedimento, num processo assemelhado ao que Jacques Chevalier denominou a transfiguração do hábito pelo espírito.

Passa assim a conduta a obedecer a um paradigma.

Também a imitação contribuiu para dar­lhe coerência e seqüência. Se, numa eventualidade, o grupo traça uma diretriz, concomitantemente adota uma fórmula que tende a ser reiterada e conquistar prestígio. A solução, concebida para um caso singular, pela repetição se converte em modelo.

Do hábito e da imitação surgem os costumes, que Artur Ramos (1903­ 1949) caracteriza como imitação por herança social, correspondendo à credulidade, à autoridade e à obediência.

Henry James Sumner Maine (1828­1888) empresta relevo a outro fator: o culto dos antepassados, comum à história das sociedades. A sua origem pode ser objeto de controvérsia, mas a sua efetiva ocorrência é incontestável. Ensina Nietzche que, no seio das sociedades primitivas, reina a convicção de que não persistiu na sua duração a espécie senão em virtude dos sacrifícios e dos inventos dos antepassados. Daí o culto que se lhes dedicava, em sacrifícios, festas e santuários. Ora, cultuar os ancestrais é eleger um modelo de comportamento pessoal. O culto à memória dos mortos conduz à reprodução daquelas vidas pelos que lhe sobrevivem, à estabilização dos valores sociais e à manutenção de uma conduta média.

A experiência teve igualmente importância na formação da normatividade. Por ela, adquirimos conhecimento e definimos posições. Surgido um problema de conduta, é natural que se sucedam apreciações diferentes. Se não há normas que orientem a decisão, o julgamento tem que ser improvisado. Dentre as opiniões diversas, uma, a que pareça mais idônea, justificará a experiência da sua adoção. No futuro, em emergência semelhante, aplicada automaticamente a solução precedente, surge o embrião de uma norma.

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3.1.2 Diferenciação

A normatividade, na sua origem, é um bloco compacto de preceitos heterogêneos, sem diferenciação de natureza e finalidade. Hoje, por exemplo, temos regras que são apenas de higiene pessoal, temos preceitos religiosos, temos normas obrigatórias como as jurídicas, temos outras facultativas, como as morais, temos algumas que não são nem jurídicas nem morais, como de boa convivência, de tratamento cordial, de urbanidade, de correção social, etc. Outrora não ocorria assim. A normatividade era única – uma regra religiosa tinha nível e estrutura iguais aos de uma jurídica. Essa realidade se evidencia até mesmo nas mais antigas codificações, que continham regras pertinentes a todos os setores da conduta, sem qualquer diferenciação. É assim que, lembrando o Manava Darma Sastra, coleção de leis de Manu, o Zend Avesta, de Zoroastro (sec. VII a.C) os livros de Confúcio (551­479 a.C), a legislação de Moisés (secs. XIII a XII a.C) e o Corão, lê­se em José Isidoro Martins Jr. (1869­1904) que nos primórdios da sociedade a vida coletiva não ostentava o polimorfismo que nela verificamos atualmente. A confusão mais completa, o sincretismo mais absoluto dominavam as instituições sociais e as relações individuais; religião, moral, ciência, arte e indústria eram raios de um mesmo círculo, coincidindo ou sobrepondo­se uns aos outros. A autoridade que antropomorfizava Deus e os deuses era a mesma que estatuía sobre os costumes privados, que dava a explicação dos enigmas do mundo, que inspirava a criação artística e regulava as atividades práticas. Tudo estava como no caos bíblico: escuro e amorfo.

Certo é, por isso, que só tardiamente as normas se especializaram em jurídicas, convencionais, morais, religiosas etc.

A individualização do poder exerceu influência sensível sobre esse processo, daí resultando o fato de ter o grupo deixado de julgar em bloco, para fazê­lo por intermédio dos detentores da autoridade.

O julgamento grupal é emotivo, escravo de valores adotados cegamente e dócil à tradição que os endossa. O indivíduo que julga desprende­se da experiência pessoal para alcançar conceitos, sem o que não haveria normas diferenciadas. Daí, normas antes indistintas começaram a sofrer paulatino processo de diferenciação.

Religião, moral e direito, que formavam um todo, principiaram a distinguir­se. Primeiramente, se destacaram as normas referidas a um plano

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sobrenatural, apoiadas em valores místicos, as religiosas, das pertencentes ao plano natural, amparadas em valores positivos, as morais e jurídicas. A normatividade homogênea fragmenta­se em duas: a religiosa e a ética lato sensu, abrangendo as regras morais e jurídicas.

Somente mais tarde divorciaram­se moral e direito. Com efeito, foi o individualismo, ligado à eclosão do movimento liberalista no mundo, que produziu evidente separação entre indivíduo e sociedade, a qual, por sua vez, provocou nítida diferenciação entre moral e direito. Só então se distinguiram normas de ética individual das de ética social, aquelas destinadas a nortear a vida do indivíduo como tal, as últimas elaboradas para governar a sua vida na comunidade.

Ainda ficou um resíduo complexo e sutil, incapaz de ser logicamente apreendido, formado pelas normas convencionais.

3.2 NORMAS ÉTICAS E NORMAS TÉCNICAS

As regras que formam a normatividade social podem ser objeto de divisão e subdivisão.

A primeira divisão distingue normas técnicas de éticas. Todos estamos, em princípio e por intuição, habilitados a diferenciá­las. Quando lemos uma receita para preparar um alimento, sabemos que se trata de uma norma técnica, que nos diz o que fazer para lograr um determinado fim. Ao tomarmos conhecimento de um dispositivo legal, de uma regra moral, intuitivamente compreendemos que esta não se confunde com a precedente, é ética.

A primeira idéia que nos acode, e logo mais constataremos a sua imperfeição, para explicar essa intuitiva consciência, é a de que as normas técnicas representam aptidões para vencer a natureza, diante da qual assumimos atitude própria, parte da nossa condição existencial. O domínio sobre a natureza presume a posse de um instrumental de ação, de recursos e expedientes, para adaptar o homem ao meio natural, de modo atuante. Já das normas éticas nossa primeira noção é a de que elas não presidem à relação homem­natureza, sim à relação homem­homem. Sempre que está em jogo a conduta de uma pessoa diante de outra, aplicam­se regras que não são

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técnicas, não têm caráter simplesmente instrumental, antes procuram estabelecer um equilíbrio de posições.

Essa distinção parece prática, pois nos dá uma embrionária idéia da diferença entre normas técnicas e éticas. Não é, porém, verdadeira. Há técnicas relativas ao intercâmbio entre os indivíduos. Por exemplo, as técnicas das comunicações, da publicidade, das relações públicas, demonstram que as relações homem­homem podem ser tecnicamente consideradas. Assim, a noção é válida para um exame elementar e intuitivo do problema, mas não leva o critério seguro.

3.2.1 Korkounov

Sobre esta matéria uma lição tradicional foi ensinada durante decênios como verdade definitiva, a do renomado jurista N. M. Korkounov, que foi o representante mais categorizado da teoria geral do direito na Rússia. Mas, na obra de um dos mais notáveis juristas da atualidade, o argentino Carlos Cossio, encontramos doutrina capaz de substituir com vantagem a de Korkounov.

De qualquer maneira, o ensino deste é clássico e não pode ser omitido, ainda que objetado, porque se reveste de excelente caráter didático. Até mesmo a teoria de Cossio será melhor entendida, se tivermos conhecimento da de Korkounov.

Este faz diferença material entre as normas técnicas e as éticas, o que importa dividi­las objetivamente. Se a normatividade social pudesse ser comparada a uma superfície, nesta traçaríamos uma linha divisória, abandando, para um lado, o conjunto de normas técnicas, e, para outro, o de regras éticas.

Korkounov discrimina as respectivas características. Umas apresentam predicados que, além de distintos, também contrastam com os das outras.

Para distinguirmos entre ambas seria necessário analisar a norma; encontradas certas características, diríamos ser ética, encontradas outras, diríamos ser técnica.

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As técnicas objetivariam à consecução de fins singulares; as éticas, à consecução de fins conjuntos e simultâneos. As técnicas seriam materiais; as éticas, formais. As técnicas apresentariam extrema variedade; as éticas, uma certa unidade. As técnicas seriam objetivas; as éticas, subjetivas. Finalmente, as técnicas seriam facultativas e as éticas, obrigatórias.

Estudaremos cada um desses predicados, fazendo análise mais completa do primeiro, porque a boa compreensão dele nos permitirá, com maior facilidade, entender a lição do jurista russo.

As normas técnicas propiciam ao homem fins singulares. As normas éticas presidem à conduta, para que ele possa lograr, simultaneamente, vários fins.

Temos, diante de nós, possibilidades inumeráveis e heterogêneas. A cada uma delas corresponde uma técnica. Se quero ser pintor, não vou me dedicar ao estudo de arte culinária, mas visitar museus, galerias, etc. Se carpinteiro, médico ou engenheiro, busco outras técnicas. Qualquer que seja o objetivo pretendido, temos de recorrer ao meio adequado, mediante técnicas, sejam empíricas, quase instintivas, ou mais refletidas. Cada técnica conduz a um único fim e somente a ele. Todos os fins, que a técnica permite ao homem alcançar, são autônomos.

Em face de múltiplas possibilidades poderíamos, teoricamente, aspirar a todas, não fora a ação ser limitada no tempo e no espaço. Daí, o imperativo de opção, envolvendo por seu turno, sacrifício e renúncia.

A técnica não nos habilita a escolher fins, não é boa nem má em si mesma, apenas nos concede dispor de todos. Há a técnica do bandido que assalta um banco, como a do policial que procura identificá­lo e aprisioná­lo. Não basta saber que existem muitos fins e que todos podem ser obtidos por uma técnica. É preciso eleger alguns. E sempre que optamos por alguma coisa repelimos outra.

A ética nos permite fazer a seleção, no conjunto dos fins, teoricamente todos possíveis, dos que devem ser colimados e dos que devem ser desprezados, estabelecendo, assim, distinção entre bem e mal. O bem são os fins melhores, os eleitos; o mal, os tidos como piores, os repudiados.

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A eleição de fins tem de ser coerente, nunca contraditória, e as éticas permitem a realização simultânea de vários, porque apontam para aqueles que não se contradizem. Ninguém pode, ao mesmo tempo, ser juiz e salteador, policial e bandido. Enquanto as regras técnicas só facultam fins singulares, porque cada técnica é um mundo fechado em si mesmo, as éticas, orientando uma seleção coerente de diferentes fins, consentem ações coordenadas e simultâneas para realizá­los.

As normas éticas distinguem­se das normas técnicas como as formais das materiais. As éticas não determinam senão a forma da realização simultânea de todos os fins diferentes do homem. A sua observação acarreta apenas a correlação mútua dos fins numa forma harmoniosa, sem levar à realização do seu conteúdo, ou de um fim determinado. Esta realização se efetua sempre em conformidade com as regras técnicas. As normas éticas fazem apenas possível a realização simultânea de vários fins, definindo o lado formal de suas relações recíprocas, mas esses fins em si mesmos não se realizam senão de acordo com regras (técnicas) que sejam conformes à sua natureza intrínseca.

A terceira característica apontada por Korkounov é a da variedade das normas técnicas, em contraste com a unidade das éticas. Essa característica está diretamente vinculada à primeira. As técnicas são variáveis, visto se proporem a nortear a conduta humana para fins heterogêneos. A unidade das éticas resulta de que o seu objetivo é permitir ao homem a realização conjunta de fins simultâneos. A extrema diversidade dos fins ocasiona a desvinculação entre eles, produzindo a variedade das normas técnicas que lhes correspondem. Se me proponho um objetivo de ordem higiênica, esse objetivo, que nada terá a ver com outro, de natureza artística, digamos, exige normas técnicas distintas daquelas a que recorreria, se me dedicasse à arte. Mas, visando a determinados fins escolhidos uns com relação aos outros e compatíveis entre si, as normas éticas apresentam certa organicidade.

A quarta característica é a objetividade das normas técnicas e a subjetividade das éticas. Uma regra técnica obedece à imposição do objeto ao qual vai ser aplicada, ou seja, o objeto determina a sua elaboração. Assim, se alguém pretende traçar um preceito higiênico, é condição básica conhecer o corpo humano e suas funções. No caso, é o conhecimento da natureza do organismo, da sua estrutura e das suas funções, que vai impor o enunciado da norma. Esta é tanto mais perfeita quanto mais adequada ao objeto. A ciência precede à técnica, porque é conhecimento, e a técnica, aplicação do

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conhecimento para um fim útil. Sendo o conhecimento impreciso, a técnica é ineficaz. A técnica não é uma adequação do objeto ao homem, mas deste àquele.

Diferentemente, as éticas são subjetivas, relativas ao sujeito. Como o único sujeito da conduta é o homem, elas dirigem­se a ele e são as suas condições que lhes determinam a formulação. A ética é manifestação do sujeito, tradução dos seus valores, afirmação das suas exigências pessoais.

A última distinção entre regras éticas e técnicas está no caráter facultativo destas e obrigatório daquelas. As segundas são facultativas, porque sua importância é condicional. Só devemos obediência a uma norma técnica se queremos realizar certo fim. Assim como é livre a escolha dos fins o é também a adoção das normas. O assentimento da nossa conduta a um preceito técnico depende da nossa soberana vontade. Não podemos obrigar alguém a aprender a técnica da composição literária, se não lhe interessa a correspondente finalidade. Por mais que uma técnica seja aconselhável, temos a liberdade de segui­la ou não.

As normas éticas apresentam característica diferente. São obrigatórias porque, permitindo ao homem selecionar fins prioritários, essa eleição não pode ser feita com inteira liberdade, limitada que fica ao respeito de quem a faz pelo direito igual de todos.

3.2.2 Cossio

O ensinamento de Korkounov é suscetível à crítica, porque é inaceitável desdobrar a conduta em atos de diversas naturezas. A divisão da conduta em atos tutelados pelas normas técnicas e atos tutelados pelas éticas assenta em precário suporte filosófico. Contra a teoria de Korkounov, devemos citar, pela sua atualidade e sabedoria, a impugnação de Carlos Cossio.

A tese de Cossio repousa numa análise da conduta, na qual encontra uma estrutura teleológico­valorativa. Integraram­na três elementos: valor, fim e ação. Todo ato é motivado por um valor para um fim. Mesmo nos mais banais, nos mais triviais, há valor e fim.

No cotidiano da nossa experiência, não nos damos consciência do valor dos nossos atos. Não obstante, conduzir­se é sempre caminhar para um fim,

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sensibilizado por um valor. Ação é a ligação desses elementos. Se alguém, chegado a lugar onde reside conhecido que estima, resolve visitá­lo, sua ação tem esta seqüência: dado o fato de estar no local, onde mora pessoa que estima, segue­se o dever de visitá­la. Aí temos: o valor é a amizade, o fim, a visita, e a ação, ir à casa da pessoa amiga.

Se a conduta é valorativo­teleológica, ela é unidimensional. Sua dimensão é sempre para a frente. A todo momento estamos nos conduzindo, porque estar aqui é não estar ali, fazer isso importa não fazer aquilo. A conduta é permanente projeção para o futuro. A vida do homem, como dizia José Ortega y Gasset (1883­1955), é constante que fazer. Nesse sentido, como ensina Bergson, toda consciência é antecipação do futuro. É o futuro que, sob a forma de esperanças, receios, expectativas e projetos, atua em nós como força viva e parte irredutível do nosso ser presente (Otto Friedrich Bollnow). Por isso, o que passou não é mais conduta: petrificou­se. Daí a sua unidimensionalidade, e desta a evidência de que ela não pode ser fragmentada em parte técnica e parte ética.

Não existem atos que, pela sua natureza, estejam subordinados às normas técnicas, e outros, às éticas. Apenas a conduta pode ser mirada do ponto de vista técnico ou do ético.

Sendo a conduta unidimensional, sempre presente para o futuro em traçado unilinear, só pode ser distinguida de dois pontos diferentes: considerada tal como é, de trás para frente, e, hipoteticamente, de frente para trás.

A distinção entre as normas técnicas e as éticas decorre dessa duplicidade de posição. A conduta observada tal como é, de trás para frente, só pode ser compreendida em função de seus fins, que nos são dados pelas normas éticas. Ao contrário, vista hipoteticamente de frente para trás, só pode ser explicada em função dos seus meios, que nos são dados pelas normas técnicas. Ainda que imperfeitamente, diríamos que a ética dita ao homem o que fazer e a técnica, como fazer. Não podemos alcançar o quê sem o como e nem temos por que praticar o como sem o quê.

No mesmo ato encontramos, indissolúveis, o quê, aspecto ético, e o como, aspecto técnico. Ação vista em função do para que se destina é considerada do ponto de vista ético, e em relação ao como se faz, ao como se

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realiza, é considerada do ponto de vista técnico. E assim podemos distinguir, no mesmo ato, o aspecto técnico do ético.

3.2.3 Moral e direito

Os fins visados pelas normas éticas são coordenados. Por isso, elas apresentam, como já observamos, predicado de que as técnicas não dispõem, o da organicidade. As técnicas, comparadas entre si, não podem ser objeto de julgamento de valor. As éticas, opostamente, impõem uma opção, feita perante um valor. Sendo tecnicamente possíveis todos os fins, mas estando o homem subordinado à necessidade de escolher alguns apenas, haverá de seguir um critério: o critério ético.

Essa escolha obedece a duas razões: ou os fins são comparados entre si, ou escolhidos com o respeito devido ao direito igual que têm os outros homens.

Concedido­me escolher entre dois objetos, comparo­os, vejo qual deles me interessa mais, qual tem mais valor para mim, opto por um. No caso, o critério adotado foi o da comparação. A ela corresponde um departamento da ética, a moral, que nos habilita a comparar a escolher fins.

Se os homens vivessem em solidão, a seleção de seus fins obedeceria apenas ao critério da sua significação relativa. Mas, vivendo em grupo, este não lhes basta, porque não atende à necessidade que têm de eleger fins compatíveis com os interesses alheios. Seria impossível a convivência social, se facultada aos indivíduos a liberdade de selecionar fins para si próprios, acaso conflitantes os de uns com os de outros. Impõe­se­lhes, assim, considerar os fins, não somente quanto ao seu valor relativo, mas segundo o direito que todos têm de fazer a sua escolha. Por outras palavras: a opção de uns deve, dentro de certo limite, coincidir com a dos demais. Quando o indivíduo procede, atendendo, em relação às metas de sua vida, ao respeito que deve aos interesses dos outros, seu procedimento passa à tutela de uma outra norma ética, que é a jurídica.

Assim, os critérios de seleção ética são basicamente dois: o interesse próprio (critério moral) e o interesse alheio (critério jurídico). O direito é, portanto, uma limitação da liberdade pessoal diante da alheia.

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Na escolha de fins, em respeito ao interesse alheio, assumimos duas variantes: ou consideramos o interesse dos outros indivíduos, singularmente, ou o coletivo, isto é, o de todos. Daí a subdivisão da normatividade jurídica: direito privado e direito público.

3.3 NORMAS MORAIS E NORMAS JURÍDICAS

A distinção entre moral e direito é um dos mais difíceis problemas teóricos da doutrina jurídica.

O tema pode ser apreciado de dois ângulos: histórico e filosófico.

Sob o segundo aspecto, motiva as especulações que se fazem à procura de um conceito do que é moral e do que é direito, atribuindo a um e a outro características inconfundíveis. Sem embargo dessa cogitação doutrinária, a matéria parece sujeita a um condicionamento histórico decisivo, refletido em duas conseqüências:

a) a delimitação precisa entre os campos da conduta moral e da jurídica é possível em certos momentos da história, mas sumamente difícil, senão impossível, em outros;

b) a linha que os separa é movediça, de modo que a regra moral de um tempo pode vir a ser jurídica de outro, e vice­versa.

3.3.1 Formulação histórica

Uma separação rígida entre moral e direito caracteriza momentos em que é salvaguardada, com mais segurança, a liberdade individual. Em princípio, o campo do direito é próprio da atividade estatal, enquanto esta se desenvolve como faculdade de impor normas compulsórias ao indivíduo. O âmbito da moral é o da liberdade, nele só o indivíduo é juiz de seus atos. A distinção entre moral e direito está ligada, assim, à distinção entre liberdade e autoridade.

Nos Estados onde a autonomia pessoal não é rigorosamente assegurada, tende a se estabelecer uma espécie de região fronteiriça entre moral e direito, a

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ponto de o indivíduo não saber exatamente até onde vai a sua liberdade. A autoridade como se expande para além das fronteiras ordinárias da ordem jurídica e vai alcançar o homem no que mais próprio seria de regras morais. A verdade é tão evidente que a diferença entre moral e direito só foi estabelecida no século XVIII, em cujas últimas décadas se acentuaram os traços de discriminação entre o indivíduo e seu interesse e a sociedade e sua conveniência.

Há outra face do problema, intimamente ligada à precedente: definir moral e direito, em sentido positivo, é quase impossível, porque, em certas épocas, regras jurídicas passam a morais, e, reciprocamente, em outras, regras deixadas ao arbítrio do indivíduo passam a jurídicas, tornando­se obrigatórias.

Remotamente, já nos referimos, não havia separação entre as normas religiosas, rituais, higiênicas, jurídicas, etc.

No período propriamente histórico, o tema deve ser tratado em ordem sucessiva, na Grécia, em Roma, sob a influência do cristianismo, na Idade Média e, finalmente, na Idade Moderna.

3.3.1.1 Grécia

O problema da distinção entre moral e direito é essencialmente filosófico. Numa filosofia amadurecida, como a grega, ele não poderia deixar de ter sido abordado.

Carl J. Friedrich comenta que Platão e Aristóteles viam a lei como participação na idéia da justiça, construindo a diferenciação entre moral e direito em termos de configuração de uma teoria daquela. Essa abordagem parece incompleta, não tendo conduzido a distinção segura e formulação clara.

O assunto foi também ventilado pelos sofistas, aos quais se deve atribuir razoável importância, principalmente pela maneira inconvencional com o que o trataram. Coube­lhes desmistificar as instituições jurídicas, distinguindo­as das tradições e dogmas religiosos. E foi a partir deles que a lei passou a ser vista não como sagrado mandamento de um ser divino, mas como criação do próprio homem. Assim, o conceito de justiça foi despojado das suas qualificações metafísicas e analisado nas suas necessárias circunstancialidades humanas.

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Como adverte Teresa Labriola, a destruição a que se dedicaram era imprescindível no momento de transição que lhes coube.

3.3.1.2 Roma

Roma alcançou o seu máximo na criação jurídica. O direito romano, monumento da civilização latina, predominou no Ocidente durante muitos séculos, como direito comum, de plena aplicação, e no comentário de Heinrich Ahrens, não somente pelo seu valor legal, mas também pelo seu mérito intrínseco. Seria, assim, de supor que encontraríamos na cultura romana perfeita discriminação entre moral e direito. Mas, teoricamente, isso não ocorre, embora fosse atuante a distinção.

Distinguiam­se as atividades sujeitas ao Estado e as reservadas à liberdade de orientação do indivíduo. A divisão era real, concreta, tanto que em Roma surgiu a figura do jurisconsulto, homem sábio em direito, enquanto que a filosofia jurídica da Grécia não foi obra dos juristas, o que diz eloqüentemente da presença de uma clara fronteira entre o conhecimento moral e o jurídico, refletida nas instituições positivas da civilização latina.

3.3.1.3 Cristianismo

O Cristianismo, nas suas manifestações originais, elaborou clara diferença entre política e religião. Política atua numa área; religião, noutra. A política obedece a certos critérios; a religião, a diferentes. Na frase de Cristo – “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, a distinção está simbolicamente estabelecida. César é o Estado; Deus, a Igreja. César é a política; Deus, a religião. E quando há separação entre política e religião, máxime quando esta absorve a moralidade individual, isso propicia o aparecimento de evidente distância entre moral e direito.

Mas, na lição de Jacques Maritain, as coisas que pertencem a César tinham, então, uma função ministerial relativamente às que pertencem a Deus.

3.3.1.4 Idade Média

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Por isso, não obstante o Cristianismo encaminhar­se no sentido de criar precondições para a distinção que mais tarde se viria a fazer, sua linha sofreu acentuado desvio na Idade Média, em virtude de um constante processo de assimilação do direito pela moral. A noção de pecado, genuinamente religiosa, passou a reinar na esfera da moral e do direito, sobrepondo­se a ambos.

3.3.1.5 Idade Moderna

A diferença firma­se no século XVIII, o da formação do liberalismo, que iria estabelecer, na área política, quase de maneira contrastante a separação entre a liberdade individual, levada ao máximo, e a autoridade do Estado, reduzida ao mínimo.

3.3.2 Formulação doutrinária

Foi na obra de Cristian Thomasius (1665­1728), publicada no ano de 1705, que pela primeira vez se fez manifesta distinção entre moral e direito, da qual resultaria a indicação de uma característica ainda hoje invocada para identificar as regras respectivas.

3.3.2.1 Thomasius

Thomasius distinguiu, na conduta, ação interior de ação exterior, ou interna de externa. A interna desenvolve­se no foro íntimo de cada uma. A externa no foro exterior, que não é mais o de um só indivíduo. Os atos humanos podem ser julgados no foro íntimo do indivíduo ou pela sociedade. A ação interior não interfere na conduta alheia, pertence à consciência. A exterior, ao contrário, que pode levar a conflito, está submetida a um foro exterior. Ao direito compete julgá­la. À moral interessa a vida espiritual do homem e o aperfeiçoamento da sua consciência, do que ele é juiz exclusivo. O direito cuida das projeções da conduta pessoal. Se a moral cogita dos problemas do foro íntimo e o direito do exterior, os deveres morais são imperfeitos, porque ninguém tem a faculdade de exigir de ninguém que os cumpra, ao passo que os jurídicos são perfeitos, porque exigíveis.

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3.3.2.2 Kant

A teoria de Emmanuel Kant, a quem Rousseau, como observa Rodolfo Mondolfo (1877­1976), proporcionou a primeira orientação na ética, é estreitamente vinculada à de Thomasius. Os fundamentos de ambas coincidem. A diferença entre moral e direito repousa na distinção entre ações interiores e exteriores. Falar em ações interiores e exteriores pode originar mal­entendido, uma vez que a ação, por natureza, pertence ao mundo exterior. Mas não se cogita de ações subjetivas e ações que se projetem no plano exterior da conduta; apenas de distinguir o aspecto interior ou subjetivo da ação do exterior. Interior, ela é avaliada pela sua intenção; exterior, é considerada nos atos em que se traduz, na conduta em que se objetiva.

Uma conduta é moralmente inidônea quando, embora sendo aparentemente moral, não lhe corresponde motivação ética. Juridicamente, ela é adequada, desde que os atos praticados coincidam com a exigência do direito. Em outras palavras, a conduta moralmente só é meritória em função das suas intenções, ao passo que, juridicamente, o é, desde que os atos se ajustem à exigência da norma. Se pratico a caridade, para servir­me dela como ostentação, exteriormente estarei sendo caridoso. Mas meu procedimento, moralmente, é desvalioso. A própria inclinação para a virtude não tem qualquer mérito, pois, na afirmativa de George Santayana (1863­1952), Kant repudiou, de maneira expressa, como indigna de uma vontade virtuosa, toda consideração de felicidade e tendência e de suas conseqüências, seja para si próprio, seja para os demais, o que leva Aloys Wenzl a considerar que sua lei moral era apenas formal. Se a obrigação é jurídica, todavia, o julgamento é diferente, pois, por exemplo, se pago um imposto, em nada interessa se meu estado de espírito é de aceitação ou de revolta, de qualquer maneira, o dever jurídico está cumprido.

Giorgio Del Vecchio (1871­1970) opôs­se tenazmente à concepção kantiana, que importa, no seu entender, uma cisão ilógica do conceito de ação, a qual é sempre interna e externa ao mesmo tempo. Não pode haver atividade puramente externa, porque se a um fenômeno falta conteúdo psíquico é impossível ser atribuído a um sujeito, não sendo, portanto, uma ação. Nem existe atividade meramente interior, porque agir significa exteriorizar­se a si mesmo, e nenhuma ordem psíquica há sem correspondência ou correlação com o mundo exterior. Admite, todavia, com o que esclarece sobremodo o sentido do seu comentário, que o ponto de partida para o julgamento jurídico deve ser, e geralmente é, um dado físico, mas o seu objeto é sempre uma ação,

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ou seja, um fato de índole psíquica, que, por sua essencial natureza, há de ser também considerado no seu revestimento subjetivo.

Não obstante, a teoria kantiana recebeu, o aplauso consagrador de Kantorowicz. Ao revidar as críticas levantadas contra essa teoria, observa que, quando dizemos que a conduta moral é interna e a jurídica, externa, afirmamos que a externa é suscetível de ser imposta, já a interna não o é. Os sistemas morais recomendam a conduta interna, fruto de volições, e a julgam subjetivamente na sua virtude, enquanto que as regras jurídicas não ordenam conduta interna, ainda que a conduta por elas previstas aceite consideração subjetiva: boa fé, previsão, abstenção de delito, malícia, etc.

Acrescenta Kantorowicz que a teoria é satisfatória até em situações extremas, quando a legislação contém preceitos de origem religiosa, como, quando exige de um governante que preste determinado juramento ao assumir seu cargo. Em tal circunstância a norma converte­se em jurídica, perdendo a sua interioridade. É que o direito impõe a realização de certos movimentos do corpo humano, membros, músculos, órgãos de dicção, etc., o que pode ser feito consciente e voluntariamente, mas também mecanicamente, sem perder seu significado jurídico. Se o devedor de um empréstimo o paga, a sua obrigação legal está cumprida. Esse mesmo ato, dentro da moral, poderia ser julgado de modos diversos, atribuído, acaso, a egoísmo, a dolo, a conformismo, etc.

De tudo conclui Kantorowicz que a teoria de Kant, pela qual o direito, como oposto à moral, só exige mera legalidade, isto é, a conformação da conduta externa ao direito, à margem de todo motivo subjacente à conduta, é correta, não apenas com relação ao direito em vigor, mas ainda com respeito ao direito que deve ser: a justiça.

3.3.2.3 Jellinek

Georg Jellinek (1851­1911) parte do reconhecimento do caráter real da sociedade e de seu valor criador. Todo indivíduo está socialmente condicionado. Da sociedade, fato positivo da convivência e cooperação dos homens, irradiam disciplinas que consideram o homem, não como indivíduo, senão como membro da comunidade: ser religioso, político, econômico, etc. Tendo o indivíduo suas próprias necessidades primárias, sem cuja satisfação sua vida não teria sentido, mas exigindo a sociedade, a seu turno, a inibição de

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parte de seus impulsos, sem o que não seria possível a vida comum, resulta que a sociedade, em sentido global, é uma síntese dessa contradição, contradição apenas aparente, porque necessita dos próprios impulsos de afirmação individual. Daí a existência de normas para a sociedade e para tudo mais orgânico. A ética social tem por pressuposto a solidariedade dos membros de uma comunidade, razão pela qual é uma ética de ações, não de intenções, variando historicamente o seu conteúdo, conforme cada sistema de condições sociais.

Se, na base de tais considerações, indagarmos como é possível a permanência de certa situação social­histórica, pronto reconheceremos que tal resultado só pode ser atingido pelo direito, que é um mínimo ético de que a sociedade urge, a cada momento, para sobreviver. Assim, visto objetivamente, o direito é um conjunto de condições, dependentes da vontade humana, imprescindível à conservação de uma sociedade.

A ética, portanto, é uma só, abrangendo moral e direito. Este, por comparação àquela, constitui o mínimo de moralidade de que qualquer sociedade necessita.

3.3.2.4 Petrazycki

Uma das concepções mais interessantes sobre a matéria é a de Lev Petrazycki (1867­1931) que pretendeu fazer uma filosofia do direito de base psicológica, fundada na convicção de que os componentes essenciais da vida jurídica, como a noção de justiça, de obrigação, de relação jurídica, etc., apresentam­se em forma de intuições emocionais.

Para Petrazycki, quando presenciamos um ato humano, temos uma emoção própria. Esta emoção é o fato normativo. A norma emerge da emoção do homem diante da conduta do seu semelhante, a qual dá lugar a duas maneiras distintas de reação: ou se traduz num juízo de reprovação, ou numa atividade de exigência. Diante de alguns atos humanos, a emoção é crítica: apenas reprovamos ou não. Em presença de outros, além de reprová­los, exigimos de quem os pratica modificação de sua conduta, adaptando­a a certo padrão.

Citemos o exemplo hipotético formulado pelo próprio autor. Um rico senhor sai do seu palácio e encontra um mendigo à porta que lhe pede esmola.

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Ele passa indiferente, quando poderia, sem sacrifício, atender o pedinte. Presenciando tal ação, reprovo­a, limitando­me a considerar o seu agente um homem egoísta, sem caridade. Aquela mesma pessoa transpõe a porta da sua casa, toma um veículo rumo a outro local. Chegado ao destino, recusa­se a pagar o preço da viagem. Já então meu juízo não seria somente de reprovação, também atribuiria ao condutor o direito de receber a remuneração devida. Eis o indivíduo descumprindo dois deveres. Diante da primeira omissão, apenas o censuramos, diante da segunda, além de censurá­lo, a outrem atribuímos algo contra ele.

A ética impõe deveres, e, em certas situações, confere a alguém a faculdade de exigi­los. A moral é meramente imperativa; o direito, imperativo e atributivo. A moral diz o que fazer, o direito, igualmente, ainda outorgando a outrem a faculdade de exigir àquele, o que fazer. O direito é imperativo para o sujeito passivo da relação (dever) e atributivo para o sujeito ativo (direito).

3.3.2.5 Del Vecchio

Para Del Vecchio, a regulamentação das ações humanas presume, por ela mesma, um princípio ético que, a seu turno, enseja dupla ordem de valorações, segundo correspondente duplicidade de ângulos debaixo dos quais a conduta é estimada. Com efeito, os atos de um homem são julgados em relação a ele mesmo e em relação a outros homens. Do primeiro prisma, se diferentes atos possíveis são facultados a uma pessoa, incumbe a ela a respectiva opção, que se resolve no dilema fazer ou omitir, de solução na regra moral. Mas, como os homens convivem uns com os outros, a compatibilidade de seus diversos atos, no caso, adquire estrutura diferente, dado que a escolha não pode mais ser feita em termos subjetivos. Surge daí uma consideração objetiva da conduta, já que ao ato de uma pessoa não se contrapõe outro dela mesma, sim a possibilidade de impedimento gerado por outra.

O dilema passa, então, a ser fazer ou impedir e é resolvido pela coordenação ético­objetiva, domínio do direito.

Dessa duplicidade de valorações resulta a unilateralidade da moral e a bilateralidade do direito, no sentido já conhecido. Aquela impondo deveres, este exigindo deveres e conferindo faculdades.

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As valorações jurídicas são, assim, sempre intersubjetivas ou transubjetivas. De onde a definição de Del Vecchio: “Direito é a coordenação objetiva das ações possíveis entre vários indivíduos, segundo um princípio ético que as determina e exclui todo impedimento”.

Merece destaque na teoria de Del Vecchio, como concluímos dessa sucinta exposição, não ser atribuída à moral certa área de conduta, nem ao direito uma outra específica. A conduta humana, na sua totalidade, é objeto, quer de estimativa moral, quer jurídica, podendo o mesmo ato ser julgado de ambos os pontos de vista. A distinção entre moral e direito não se alicerça no exame do conteúdo mesmo da conduta, mas no critério sob o qual é aquela considerada. Se o ato é estimado tendo­se em conta só o sujeito que o pratica, o critério é moral; se em relação à sua interferência com outros sujeitos, o critério é jurídico.

3.3.2.6 Kelsen

Hans Kelsen formula em termos contrastantes a distinção entre moral e direito. A ordem moral é autônoma (fruto da vontade pela qual é ela em si mesma uma lei) e a jurídica é heterônima (vale por si, independentemente da vontade dos súditos). O dever moral é um querer. As regras morais são do acontecer real e nisso se aproximam das leis da natureza; já às normas jurídicas é indiferente que seu conteúdo corresponda ou não ao mundo real. Imperativa, a regra moral sofre exceções à sua validade, sempre que infringida; em contraposição, é justamente a antijuridicidade propulsora da atuação da norma jurídica.

Mais característica da posição kelseniana, parece­nos a argumentação que o jurista desenvolve quanto ao fundamento da regra jurídica e da moral. Ensina­nos que as normas morais valem, a conduta que prescrevem é devida, em virtude da sua substância. E assim, pelo fato de serem referidas a uma norma fundamental, debaixo de cujo conteúdo podem subsumir­se, como o particular dentro do geral. Normas morais como as que mandam não se deve mentir, não se deve enganar, as promessas devem ser cumpridas, derivam de uma norma fundamental que consagra a veracidade. Outras, as que recomendam não se deve causar dano a outrem, deve­se ajudar ao próximo, etc., podem reduzir­se a uma regra fundamental: deve­se amar os homens.

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As normas jurídicas não valem pela sua substância, que pode ser qualquer uma, dado que nenhuma conduta humana está isenta de sua incidência. A validez de uma norma de direito não pode ser questionada porque seu conteúdo não corresponde a um valor suposto, desde que tenha sido ditada em forma determinada, produzida de acordo com certa regra determinada e estabelecida por um processo específico.

3.3.2.7 Cossio

Carlos Cossio leva ao plano ontológico a distinção feita por Del Vecchio no lógico. Entende que a moral tutela a conduta em interferência subjetiva e o direito em interferência intersubjetiva. Aprofundando o conceito de intersubjetividade, Cossio o distingue do de mera alteridade, para caracterizá­lo, não pela simples dualidade de sujeitos, sim como constitutivo do próprio comportamento em si. A intersubjetividade jurídica está no fazer compartido. Se o ato de uma pessoa está, por ele mesmo, impedido ou permitido por outra, é, em si, um ato conjunto de duas pessoas. A conduta em interferência intersubjetiva, para Cossio, não se define apenas em termos de impedimento, mas, também, de permissão, o que dilata sensivelmente o respectivo conceito.

3.4 NORMAS CONVENCIONAIS

Fizemos uma apreciação geral da normatividade e dividimo­la em técnica e ética. Nesta, diferenciamos moral e direito. Com essa divisão, porém, não fica esgotado o tema. Restam normas que não são morais nem jurídicas, mas, pelo fato de regerem a conduta, pertencem à normatividade social. Têm recebido várias denominações, como usos sociais, costumes sociais, moral positiva, etc. e, preferentemente hoje, normas convencionais ou convencionalismos sociais.

Essas regras apresentam algumas características que devem ser consideradas.

Em primeiro lugar, abrangem extensos setores da vida do homem, tutelam os mais variados campos da sua existência, e o seu conteúdo é extremamente herogêneo.

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Em segundo lugar, têm numerosos pontos de contato com as normas morais e jurídicas. A mesma situação pode gerar um problema convencional, moral ou jurídico, fazendo com que as respectivas normas se tangenciem. Assim, o traje tanto pode ser objeto de uma regra convencional (moda) quanto de um preceito moral (o pudor). A primeira encontrará um limite na Segunda, quando a mesma situação criar problema de dupla origem: convencional e moral. Eventualmente, o problema suscitado pode ser tríplice, se dilatarmos o confronto para também incluir a regra jurídica. Se a exigência convencional (moda) não encontrar corretivo eficaz no limite moral (pudor), ferindo não somente o decoro individual mas também o público, encontrará limitação no corretivo jurídico (lei).

As normas convencionais e jurídicas apresentam um traço comum, a exterioridade. A regra jurídica satisfaz­se com a conduta aparente, sem indagar da sua motivação. Igualmente a convencional: cumpridos os nossos deveres sociais, não nos é exigida adequação de consciência ou de intenção. Contudo, obrigatórias são as jurídicas, enquanto as convencionais são facultativas. Mas tal distinção não prevalece se atendermos para o conteúdo das normas. Regras convencionais há que, em certa esferas sociais, podem tornar­se jurídicas. Por exemplo, é de civilidade a saudação que se faz a uma pessoa conhecida. No entanto, entre militares, a saudação (continência) é obrigatória, e, portanto, apoiada por uma regra jurídica. As normas de protocolo, convencionais em quase todas as situações, não o são na vida diplomática, onde a sua obrigatoriedade lhes predica qualidade jurídica. O mesmo devemos dizer das regras de tratamento, manifestações espontâneas de respeito de uma pessoa a outra (senhor, excelência, senhoria, etc.). No serviço público, o tratamento devido a certas autoridades é obrigatório. Assim, a regra que o impõe é jurídica, não convencional.

As normas convencionais alcançam ampla faixa de conduta humana, podendo ser grupadas nos seguintes conjuntos principais, arrolados por Kantorowicz:

a) boas maneiras (na mesa, na rua, em visita, ao falar com os superiores, com estranhos, etc.);

b) ocasiões e propriedade para estar presente a certos lugares e perante certas pessoas;

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c) formas de saudação e tratamento;

d) temas de conversação;

e) modos de escrever cartas;

f) etiqueta de certos círculos e certas profissões;

g) tato;

h) comportamento em cerimônias;

i) asseio no vestir;

j) grau de liberdade permitido no tratamento sexual;

k) cortesia entre nações.

3.4.1 Doutrina

Só recentemente a matéria despertou interesse. Observa Kantorowicz que durante 2.000 anos, especialmente no século XX, elaboraram­se muitas definições de direito nas quais nem sequer se esboçou o único problema difícil, isto é, a noção de direito como algo oposto aos costumes sociais, ressaltando, ao mesmo tempo, que a grande dificuldade do tema está em que tanto o direito como os convencionalismos estão integrados por normas que ordenam a conduta externa.

Cabe à doutrina responder a duas indagações:

a) qual é a natureza das normas convencionais?

b) Sob que aspectos distinguem­se das morais e das jurídicas?

3.4.1.1 Del Vecchio

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Como vimos, para Del Vecchio, as normas morais distinguem­se das jurídicas por serem unilaterais, enquanto estas são bilaterais. Os problemas de conflito de ações são dois: de várias ações diante do mesmo sujeito (conflito subjetivo) ou das ações de vários sujeitos, reciprocamente consideradas (conflito intersubjetivo). À moral cabe dirimir os primeiros, ao direito, resolver os segundos.

Esse binômio enquadra toda a ética. Melhor, as normas éticas são morais ou jurídicas, não restando lugar para uma terceira categoria, as convencionais. Estas existem, mas seu ser é meramente histórico. Não podemos, assim, responder à pergunta sobre o que é uma norma convencional, porque a possibilidade de conceituar normas de comportamento exaure­se naquele binômio.

Entretanto, negar que se possa conceituar uma norma não arreda o reconhecimento da sua existência nem a necessidade de explicá­la. Del Vecchio adverte que, embora as normas de conduta só possam ser unilaterais ou bilaterais, o conteúdo da moral e do direito transmuda­se no tempo. A este fato está ligada a existência das normas convencionais, compreendidas como normas em trânsito entre a moral e o direito: ou são normas morais em via de jurídica, isto é, unilaterais evoluindo para bilaterais, ou jurídicas que passam a morais, perdendo gradualmente a bilateralidade, o que é mais freqüente.

3.4.1.2 Radbruch

A doutrina de Radbruch está vinculada à idéia das posições do homem diante dos valores: avalorativa, valorativa, referencial e supravalorativa.

Para abordar o problema, analisa a posição de referência a valores, própria do homem elaborando cultura.

Sempre que fazemos alguma coisa, buscamos um fim. Fazer implica um para quê. Por isso, os objetos de cultura podem ser conceituados pela sua finalidade. A arte tem um fim, a beleza. As religiões, diversas entre si, têm no mesmo ideal, a santidade, a pureza. As legislações, que variam no tempo e no espaço, refletem, no entanto, uma preocupação comum, a justiça. A moral tem meta diferente: a bondade. Só podemos conceituar um produto cultural pelo seu fim específico. Conceituamos o Direito pela justiça, a religião pela santidade, a moral pela bondade, a arte pela beleza, a ciência pela verdade.

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As normas convencionais são criações culturais, devendo, assim, ser conceituadas segundo seu fim. Mas, ao tentarmos reconhecê­lo, ele nos escapa, e elas se mostram completamente vazias de finalidade. Por que, por exemplo, o lado direito é a posição de honraria? Certo gesto é gentil e outro grosseiro? Certo traje é elegante e outro não? Os preceitos que os impõem são arbitrários e gratuitos, e, por isso, seu fundamento não pode ser identificado.

A explicação que dá Radbruch para a existência das normas convencionais é das mais interessantes. As regras de conduta, na sua origem, não estavam diferenciadas. Não poderíamos dizer se uma era religiosa, moral, ou jurídica, porque todas tinham a mesma estrutura, a mesma sanção e a mesma importância. Com o tempo processou­se a diferenciação. Da ética destacou­se a religião, voltada para o sobrenatural. Mais tarde, deu­se a cisão entre a moral e o direito. Mas algo da normatividade primitiva restou, exatamente as normas convencionais.

A sua natureza residual é patente até mesmo no aparecerem como normas degradadas, desviadas de seu sentido primitivo. Com efeito, os costumes sociais da velha tradição atuavam como fatores de unidade social, comuns que eram para toda a comunidade, senhores e servos, pobres e ricos, poderosos e humildes. Opostamente, hoje a normatividade convencional é fonte de diferenciação social. É quase um privilégio de elites econômicas e cada círculo tem a sua própria. A gente pobre e humilde não tem convenções. A sociedade bem é plena de formalidades. Típicas normas convencionais que atuam como afirmativas de desigualdade social são os padrões da moda. As elites que os lançam e adotam logo os repelem quando eles se proletarizam.

3.4.1.3 Stammler

O entendimento de Stammler radica na indissolúvel ligação entre a norma e sua validade. A norma, para justificar a sua própria preceituação, há de afirmar a sua validade. Em conseqüência, não há norma que não pretenda ser válida, sem o que renunciaria ao seu próprio ser. Mas a pretensão de validade não é igual para todas. Umas a tem mais, outras menos. Máxima é a norma jurídica, mínima a da convencional. A jurídica é autárquica; ao postular uma conduta, dispõe de elementos para impô­la obrigatoriamente. Do mesmo predicado não desfruta a regra convencional, que é mero apelo feito à conduta, jamais exigência de certo procedimento.

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Estabelecendo tal distinção, Stammler não equipara as normas convencionais às morais, porque, embora estas não sejam igualmente autárquicas, o sentido de seu apelo à conduta é diverso: dirige­se à consciência. São exigências individuais. As convencionais, exigências sociais.

3.4.1.4 Somlò

Felix Somlò (1873­1920) atribui às normas jurídicas procedência estatal e às convencionais origem meramente social, e nisso está o que as distingue. As regras convencionais surgem espontaneamente na ambiência social. As jurídicas são produtos intencionais do Estado.

A observação, numa sociedade ocidental moderna, retrata a realidade, embora o faça apenas parcialmente. Está longe, porém, de satisfazer como critério seguro para a distinção pretendida. Realmente, a legislação constitui, na atualidade, o repositório quantitativamente predominante das normas jurídicas, mas algumas delas não procedem do Poder Legislativo, tendo origem em atividade social espontânea. Referimo­nos às normas costumeiras que têm naquela circunstância a sua característica típica, e que, por muitos séculos, foram a parte mais substanciosa do direito positivo de todos os povos.

Por outro lado, dizer que as normas jurídicas são produtos da atividade estatal não importa recusar­lhes origem social, porque o próprio Estado não é senão a sociedade na sua estrutura político­jurídica.

3.4.1.5 Reale

Miguel Reale (1910) considera o problema em termos amplos, num esquema geral de diferenciação de todas as regras de conduta, que situa em quatro grupos: religiosas, morais, jurídicas e convencionais.

Como toda norma é reflexo de um valor, diferenciá­las é apenas possível se revelamos o valor próprio de cada grupo. Reale o faz da seguinte maneira:

a) normas religiosas, valor transcendente;

b) normas morais, valor imanente;

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c) normas jurídicas, valor transubjetivo;

d) normas convencionais, valor social.

As religiosas procuram impor­se amparadas em valores que excedem à consciência e à compreensão do homem. Render­se a esses valores é condição para obedecê­las. Se o valor não o sensibiliza, a norma não alcança a sua conduta. Mas, sempre que a conduta é motivada por um fim que não está no indivíduo, nem nos demais homens, nem na totalidade dos homens, a sua natureza é religiosa.

As morais apelam para um valor imanente ao próprio indivíduo. Os valores em que repousam são integrantes da sua consciência e a sua execução é um ato de autêntica realização do homem em si mesmo.

As jurídicas impõem­se mediante valores que, ultrapassando o restrito campo da consciência individual, nem por isso se elevam a planos que a transcendem. Aplicam­se a um setor da conduta, no qual os valores são comuns aos homens de cada grupo, não podendo, assim, o procedimento de uns discrepar do de outros. Seus valores são compreensivos da conduta em relação, e, por isso, transubjetivos, do que resulta a sua obrigatoriedade, condição elementar de sobrevivência das regras que os encarnam.

As convencionais têm uma validade meramente objetiva, dirigindo­se a uma extensa mas pouco significativa área de conduta em convivência. Disso, e somente disso, tiram o seu prestígio, de modo que o ato de cumpri­las é o de uma submissão sem justificativa. Nelas sobreleva a conformidade exterior.

3.4.1.6 Siches

Siches faz, também, extenso estudo de todas as normas de conduta, e indica a singularidade de cada um dos seus grupos.

As morais, as jurídicas e as convencionais, pelo fato mesmo de serem normas, devem ser consideradas espécies de um gênero comum. Integrantes de um gênero, não podem deixar de apresentar afinidades; autônomas em espécie, oferecem, por outro lado, características próprias. A tarefa teórica consiste, portanto, em indicar, comparando grupo a grupo, suas afinidades e diferenças.

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É o que Siches faz.

Comparando as normas morais e convencionais, nelas assinala as seguintes similitudes:

a) não tendem à execução forçada, sim à imposição de um castigo, o que as extrema das jurídicas, que apenas se valem das sanções não coincidentes, quando impossíveis ou inadequadas as coincidentes;

b) são facultativas.

Distinguem­se, porém, claramente:

a) as morais visam ao indivíduo em si, na sua condição singular irredutível, razão pela qual o acompanham em qualquer momento e local, ao passo que as convencionais o consideram em grupo, perdendo sentido em relação ao indivíduo em solidão;

b) a validade em que se apoiam as morais é ideal, representativas que são de um anseio da consciência, a em que assentam as convencionais é meramente social;

c) as morais são autônomas, as convencionais, heterônomas.

Fazendo paralelo entre as normas jurídicas e as convencionais, indica­ lhes as semelhanças:

a) caráter social, dado que não dispõem senão sobre a conduta do homem em convivência e desta procedem;

b) exterioridade;

c) heteronomia.

E as singularidades:

a) o castigo é sempre a sanção de uma regra convencional;

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b) a regra jurídica almeja sempre que a conduta seja a que indica (execução forçada), valendo­se do castigo apenas como sucedâneo.

3.4.2 Conclusão

Parece ainda muito longe de uma construção definitiva a doutrina sobre as normas convencionais, o que tanto melhor se aceita quanto bastante nova é a sua elaboração.

Em 1935, em Paris, reuniram­se representantes da filosofia do direito de 13 países, para debate sobre o tema Direito, Moral e Costume. Procuraram seus participantes, laboriosamente, caracterizar cada grupo de normas segundo seu conteúdo e sua aplicação, abstração, feita de suas sanções.

Manifestou, então, Weber, que um corpo de normas é:

a) costume social, se a sua validade se acha garantida externamente pelo fato de que uma conduta não ajustada às normas defronta­se com uma desaprovação praticamente universal e realmente gravosa, dentro de um círculo determinado de pessoas;

b) direito, se a mesma validez se acha garantida externamente pelo fato de que se aplicará uma coação (física ou mental) por um grupo de pessoas, cuja tarefa específica consiste em tomar medidas diretamente encaminhadas à efetiva observância das normas, ou bem ao castigo pela sua transgressão.

Na mesma oportunidade, Jean T. Delos (1891) estabeleceu a diferença em outros termos, asseverando que a norma jurídica procede de um ato de consciência coletiva do grupo político, que é essencialmente elaboração e interpretação, transformando­se posteriormente em ato de vontade imperativa do grupo, enquanto que a norma social sofre uma transformação através de sua elaboração e constitui, por isso, a matéria­prima de uma construção ao termo da qual a norma se apresenta sob uma forma nova.

Como se vê, a própria maneira de apresentar o problema pode conduzir a sutilezas e devassar perspectivas inteiramente originais.

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4 Disciplinas Jur ídicas

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4.1 DISCIPLINAS FUNDAMENTAIS E AUXILIARES

Desenvolveremos esta matéria em quatro tópicos. No primeiro, faremos o estudo geral das disciplinas jurídicas e a sua divisão em fundamentais e auxiliares. Em seguida estudaremos, em tópicos distintos, a Filosofia do Direito e a ciência do Direito, disciplinas jurídicas fundamentais, e, por último, a Teoria Geral do Direito, cuja importância, tanto no campo da filosofia como no da Ciência do Direito, autoriza a sua consideração em capítulo próprio.

Qualquer objeto de conhecimento pode ser considerado de muitos focos. Dessa circunstância resulta ser alvo da convergência de várias disciplinas. Num corpo, por exemplo, podemos analisar a forma, a estrutura, as funções, etc. O saber científico esgota o exame de um objeto estudado sob certa dimensão. Se ele é pluridimensional, justificará tantas ciências quantas suas dimensões.

O homem é indivisível. No entanto, pode ser examinado quanto à sua anatomia, sua morfologia, sua fisiologia, sua psicologia e assim por diante. O objeto é um só: o homem. Os ângulos são muitos. A tantos critérios correspondem tantas ciências. O mesmo acontece com o direito: o conhecimento jurídico resolve­se em vários saberes especializados, a cada um dos quais corresponde uma disciplina.

As disciplinas jurídicas são fundamentais e auxiliares. As básicas, essenciais, indispensáveis, denominamos de fundamentais. Sem elas não existe autêntico saber jurídico. As auxiliares ou complementares enriquecem­ no, trazendo­lhe novos horizontes e contribuições originais.

A distinção entre disciplinas fundamentais e complementares se arrima nas características de cada grupo. As fundamentais apresentam três: mínimo de conhecimento, pureza de objeto e de método. As auxiliares ministram conhecimento complementar e, quanto ao método e objeto, apresentam­no mesclados com os de outras ciências.

As disciplinas fundamentais dão­nos o mínimo de conhecimento imprescindível do Direito. Esse conhecimento, porém, não é o ínfimo, sim o relativo ao objeto integral. É justamente por isso que, no seu desdobramento, não comprometem a unidade do fenômeno jurídico, temida por Nelson

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Nogueira Saldanha ao abordar a matéria, pois que, copiando­lhe as palavras, é todo o direito que cada uma delas encara, embora por seu próprio prisma.

É claro, todavia, que, se podemos apreciar um objeto de muitos ângulos, também podemos acrescentar ao conhecimento mínimo total outros, além da integralidade do objeto, provenientes de ciências complementares.

O objeto de uma disciplina jurídica é sempre o Direito, que é um complexo normativo, um conjunto orgânico e sistemático de normas. As disciplinas jurídicas fundamentais consideram o Direito nessa pureza, só vêem o seu aspecto normativo e nenhum mais. Daí a pureza de seu objeto. Já as disciplinas complementares vêem­no debaixo de outros aspectos, cujos perfis são dados por outras ciências.

O mesmo sucede com os métodos. Os das disciplinas fundamentais não se confundem com os das demais. Já as disciplinas jurídicas complementares ou auxiliares adotam métodos emprestados. Assim, do método da observação serve­se a sociologia jurídica, do método comparativo, o Direito Comparado, etc.

4.1.1 Disciplinas fundamentas

De acordo com o entendimento que adotamos, disciplinas jurídicas fundamentais são a Filosofia do Direito e a ciência do Direito. Esse critério não é válido somente para as disciplinas jurídicas, mas para todas. A cogitação intelectual bifurca­se em Filosofia e Ciência, duas atividades aplicadas à pesquisa da verdade.

A propósito de todos os objetos existe uma posição filosófica e outra científica. Temos, por exemplo, a Sociologia e a Filosofia da Sociologia, a Física e a Filosofia da Física, a História e a Filosofia da História.

A Ciência converge para o objeto realizando tarefa analítica, a Filosofia encara­o globalmente, pretendendo um resultado sintético. De modo que todo objeto pode ser considerado debaixo desse duplo foco: seu aspecto filosófico e seu aspecto científico, portanto, sua ciência e sua filosofia. Logo, no campo do Direito, a Ciência e a Filosofia do Direito.

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Reale apresenta outra enumeração das disciplinas jurídicas fundamentais. Entende que não são duas, mas três: Filosofia do Direito, Ciência do Direito e Sociologia Jurídica. O Direito pode ser visto como fato, norma ou valor. Fato, tem uma disciplina fundamental, a Sociologia Jurídica; norma, a Ciência do Direito; valor, a Filosofia do Direito. Ressalve­se, porém, que este esquema resulta, apenas, da aplicação do pensamento do professor paulista ao problema suscitado, sendo­lhe infiel, todavia, sob outro aspecto, porque o próprio autor afirma que fato, valor e norma são apenas dimensões ônticas do Direito, o qual é, desse modo, insuscetível de ser partido em fatias, sob pena de ficar comprometida a natureza especificamente jurídica da pesquisa. Ou, como explica o seu expositor Pablo Lopez Blanco, as ciências destinadas ao exame do Direito não se diferenciam entre si por distribuírem­se fato, valor e norma, como elementos diferenciáveis, sim pelo sentido dialético de suas respectivas investigações, já que, se bem possa preponderar um determinado ponto de vista, sempre haverá de fazê­lo em função dos outros dois.

Entendemos, com Hans Reichel, que, por maior que seja a importância do conhecimento sociológico para o jurista, a sociologia não deixa de ser uma ciência jurídica auxiliar.

4.1.2 Disciplinas auxiliares

As disciplinas jurídicas complementares são inumeráveis, dado que qualquer ciência pode trazer sua colaboração ao conhecimento do objeto da outra. As fundamentais são numeráveis porque correspondem a modalidades características e irredutíveis de atividade intelectual, ao mesmo tempo em que são limitadas na área do objeto que abordam. As complementares serão tantas quantas sejam as possibilidades de outras ciências trazerem a sua contribuição ao estudo do Direito.

Delas destacamos três: Sociologia Jurídica, História do Direito e Direito Comparado.

4.1.2.1 Sociologia jurídica

A sociologia jurídica estuda o Direito como fato, isto é, como processo social, no mesmo nível e adotando o mesmo interesse de outras ciências

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sociais especiais em relação a diversos processos, o econômico, o político, o religioso, o genético, etc. A sua finalidade, explica C. H. Porto Carreiro, é estabelecer uma relação funcional entre a realidade social e as manifestações jurídicas sob a forma de regulamentação da vida social.

A posição da Sociologia, diante do fato jurídico, é naturalística, diversa daquela do jurista ante a norma. A ciência do Direito estuda a regra como dever objetivo, e a Sociologia a considera nas raízes sociais que a determinam, menos cuidando daquela do que destas.

Kelsen explica, depois de quem, no justo reparo de A. L. Machado Neto (1930­1977) a Sociologia e a Ciência do Direito ficaram nitidamente separadas como ciências não só de diversos objetos, mas de diferentes espíritos ou estruturas teóricas, explica com inteira propriedade, que é nessa preocupação exclusiva pela norma em si mesma que está a radical distinção entre a Ciência do Direito e qualquer outra modalidade de conhecimento da realidade jurídica, especialmente daquela destinada a indagar as causas e efeitos de certos fatos naturais que, interpretados pela norma jurídica, mostram­se como atos jurídicos, isto é, da Sociologia do Direito. Esta, efetivamente, tem apenas que ver com alguns fatos, os quais são considerados sem nexo com qualquer norma reconhecida ou suposta válida. Destarte, as relações que pretende fixar nunca poderão ser postas entre os fatos e as normas, mas sempre entre os primeiros, como causas e efeitos.

É exatamente o que observa Fritz Schreirer, quando afirma que seu objeto são fenômenos da vida coletiva, tais como, por exemplo, o fato de os homens disputarem entre si e resolverem suas pendências de uma certa maneira.

Estas ponderações avultam entre outras que justificam não se possa atribuir à Sociologia jurídica a condição de disciplina fundamental, a menos que, no rumo de Léon Duguit (1859­1928), pretenda­se fazer da própria dogmática jurídica uma disciplina sociológica.

4.1.2.2 História do direito

Entre a sociologia do Direito e a história do Direito há claras afinidades, até mesmo porque esta fornece àquela a massa de fatos necessária às suas generalizações. Mas a simples acumulação de fatos cronologicamente

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ordenados, adverte Von Wiese, não basta para dar o conhecimento da realidade, que apenas se obtém por um processo de abstração, ao termo do qual se alcança o conhecimento das relações entre os homens que naqueles interferem. Por isso, enquanto a História é uma ciência individualizadora, a Sociologia é generalizadora. O historiador procura nos acontecimentos os seus matizes peculiares. O sociólogo os utiliza para a formulação de leis abstratas, de modo que o fato, uma vez aproveitado, torna­se insignificativo. Ou, como ensina Pontes de Miranda, a História quer o fato concreto, a vida, a realidade complexa, particular, e a Sociologia procura em tudo isso o permanente, a uniformidade para as induções científicas, tanto melhores quanto mais sólidas e rigorosas.

A história do Direito recapitula, ainda que ordenadamente, a evolução das instituições jurídicas através do tempo, e constitui, na opinião de Thomas A. Cowan, um instrumento indispensável para a ciência do Direito. Sua utilidade, consoante o esquema de Juan Antônio Iribarren, dupla: serve como elemento de cultura geral e como auxiliar no estudo intensivo do Direito.

A história do Direito pode ser interna e externa. A distinção é relativamente graciosa e sem maior importância. A externa relata a evolução das fontes formais do direito, principalmente a lei. É superficial, visa a realidade jurídica na sua aparência. Daí a denominação externa. A história interna, partindo dos elementos ministrados pela externa, procura reconstituir a evolução das instituições jurídicas na sua intimidade, nas suas causas e conexões profundas. A história externa narra; a interna, restaura. Por isso, qualquer historiógrafo pode fazer história externa do direito, mas a interna só o jurista. É que esta, conforme destaca Abelardo Torré, não se limita a uma simples narração cronológica do Direito Positivo, senão que explica suas transformações em função de distintas causas e fatores (econômicos, políticos, culturais, militares, morais, religiosos, psíquicos etc.), situando as instituições jurídicas dentro de um processo histórico­social e enfocando o fenômeno jurídico no seu eterno devir, com uma finalidade, ao mesmo tempo, descritiva, interpretativa e explicativa.

4.1.2.3 Direito Comparado

O Direito Comparado é uma disciplina jurídica complementar cuja natureza emerge bem clara da sua própria denominação. Tem por finalidade

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essencial o estudo comparativo de vários sistemas de Direito Positivo, contemporâneos ou não.

A despeito da diversidade que existe entre os sistemas de Direito Positivo nacionais, a qual, todavia, vai se abrandando sempre mais, na medida em que se estreitam as relações entre os povos e se multiplicam os veículos de comunicação, as instituições jurídicas parecem fiéis a certos modelos estruturais, e sua evolução segue uma linha relativamente comum. O Direito Comparado explora esse aspecto do Direito, procurando as similitudes e coerências, e tentando alcançar leis aplicáveis à evolução das instituições. Conforme explica Cândido Luís Maria de Oliveira (1845­1919), a comparação, no tempo, deve consistir principalmente no estudo histórico do fenômeno jurídico, desde o seu aparecimento inicial até a estratificação definitiva da hora atual. E o comparador, ao estabelecer o confronto analógico, estuda a contextura de cada um dos organismos sociais, aquilata o grau das civilizações respectivas e põe em cotejo, ao lado da regra de Direito, as circunstâncias peculiares a cada coletividade e os diversos setores étnicos e culturais respectivos. Em conseqüência, o Direito Comparado nos dá uma noção extremamente vasta dos ordenamentos jurídicos nacionais de todos os povos em todos os tempos, e, por isso, além de fornecer precioso subsídio à Teoria Geral do Direito, cujas sínteses indutivas somente podem ser atingidas na base de uma farta experiência, alcança ele mesmo importantes sínteses conceituais, na expressão de Wilson de Souza Campos Batalha.

O Direito Comparado pôde alcançar nível de verdadeira disciplina jurídica auxiliar a partir da expansão da cultura européia, na Segunda metade do século XIX, desde quando os juristas passaram a almejar conhecimentos mais amplos e também quando o próprio conteúdo da civilização, como diz Adolfo Ravà (1879­1957), passou a ser fruto do encontro dos povos. Sua origem remonta a Giambattista Vico (1668­1744), Anselm von Feuerbach (1775­1833) e a Johan Jakob Bachofen (1815­1887). Mas aqueles que lhe emprestaram seu mais alto sentido, o de pesquisar as relações que têm entre i as formas e os fenômenos jurídicos que se apresentam diferentes no tempo e no espaço, buscando suas características fundamentais, foram Joseph Kohler (1849­1919), um dos diretores da Revista Para a Ciência Comparada do Direito, fundada em 1878, Hermann Post (1839­1895), Charles Letourneau (1831­1902), Rodolphe Dareste (1824­1911), Maine, John Ferguson Mac Lennan (1827­1881) e Lewis Henry Morgan (1818­1881).

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4.2 FILOSOFIA JURÍDICA

A Filosofia Jurídica é departamento da Filosofia Geral. Esta tem seus problemas próprios, que não se confundem com os de qualquer ciência e não são a soma dos problemas das ciências. Paralelamente, há filosofias especiais correspondentes às várias especializações do saber científico. Porque toda Ciência tem sua Filosofia, há uma Ciência do Direito e uma Filosofia do Direito. O objeto de ambas é o mesmo, o Direito. Divergem na posição que assumem, na temática que sugerem e no procedimento que adotam.

4.2.1 Ciência e filosofia

A distinção entre filosofia e ciência do Direito não pode ser abordada no campo estrito do saber jurídico, porque não há distinção específica aplicável somente a elas, mas caracteres que distinguem a filosofia geral da ciência em geral.

Ciência e filosofia coincidem, enquanto têm alguma coisa de comum, convergem para o mesmo fim, traduzem o exercício da mesma aptidão mental. Mundo e homem são objeto de cogitação tanto da Ciência como da Filosofia. Existe uma ciência do mundo e uma filosofia do mundo, uma ciência do homem e uma filosofia do homem. Ambas procura a verdade.

A diferença está na posição de cada uma.

A ciência é setorial, a filosofia, global. A ciência é um elenco de sínteses parciais, a filosofia, uma síntese total. Por isso, existem muitas ciências, mas só há uma filosofia. A ciência considera grupos de fatos e de coisas, e procura integrá­los num saber coordenado. Assim, há a ciência dos fatos físicos, dos químicos, dos psíquicos, dos sociais, etc.

Cada ciência é uma diminuta visão geral de um aspecto do mundo, de uma coordenada de acontecimentos. Na proporção em que evolui, a ciência se fragmenta. Hoje, não temos mais uma só física, mas numerosas, cada uma delas fazendo a síntese de uma certa classe de fenômenos físicos. É que o saber científico, por sua própria natureza, é levado à diversificação.

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Já a Filosofia tenta uma compreensão universal da tenta uma compreensão universal da realidade e da existência. Não se conforma em obter conhecimento sintético de um setor, de um campo fenomênico, quer formular uma concepção de toda a realidade. A filosofia cosmológica é uma concepção global do mundo. A antropológica, uma concepção global do homem.

Sob este aspecto, a distinção entre Filosofia e Ciência foi concebida em termos lapidares por Spencer: a Ciência é o saber parcialmente unificado e a Filosofia, o saber totalmente unificado. É, também, a idéia de William James, cuja importância doutrinária foi enfatizada por Bertrand Russel: a Filosofia almeja a totalidade, tanto como unidade quanto como diversidade. Esse critério é válido, também, para a filosofia e a ciência do Direito.

Observe­se, porém, que a temática da Filosofia não é a soma dos problemas científicos. O mesmo objeto, visto em setores, oferece certos problemas, e, em conjunto, outros.

Além disso, a Ciência é meramente explicativa e a Filosofia, além de explicativa, é também valorativa.

A posição científica é avalorativa. Fazer ciência é descrever imparcialmente, neutramente, a realidade. A Psicologia narra certos fenômenos, a Física, outros, a Astronomia, ainda, diferentes.

A posição do filósofo é diversa. O primeiro apelo que lhe faz a Filosofia, no ensinamento de Johann Gottlieb Fichte (1762­1814), é para que ele dirija o olhar para si mesmo, como homem. Um dos seus grandes móveis é o problema do homem, que não aceita estar no mundo à semelhança dos outros seres apenas existindo, mas quer uma consciência própria e dos valores que o norteiam. Como afirma Dilthey, a Filosofia é uma obra que parte da necessidade que experimenta cada espírito de refletir sobre sua ação, da configuração interior e da firmeza do obrar. Por isso, toda filosofia encerra uma ética, ou é ela mesma uma ética, segundo o entendimento de Theodor Haecker (1879­1945): concepção do homem como ser prático.

Ainda, a ciência assenta em pressupostos, presumindo verdades sobre as quais não faz crítica. Exemplo, a ciência que tem a maior presunção de certeza, a matemática, assenta em axiomas, verdades tidas por evidentes, dispensando demonstração. As ciências naturais, quando formulam leis, partem do pressuposto de que a ordem do mundo é invariável, de que as coisas

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como são hoje sempre serão, que os fatos como acontecem aqui acontecem em toda parte. E todas presumem que o homem pode conhecer a verdade.

A Filosofia que, segundo a expressão de Josiah Ruyce (1855­1916), citado por Joseph Blau, tem no desespero de uma dúvida completa e integral a sua mais típica experiência, antes de examinar qualquer objeto de conhecimento, analisa o próprio conhecimento. Tudo aquilo que a ciência aceita como dogmas, a partir dos quais avança, é alvo da crítica filosófica. Assim, será legítimo indagar em filosofia: há de fato uma ordem invariável no mundo? O mundo é tal como o vemos?

O saber filosófico é autônomo, basta­se a si mesmo. Na expressão sugestiva de Aristóteles, é o único que não tem dono e que pode ter o nome de livre. Constrói seus próprios pressupostos, ao passo que o saber científico, que assenta em dados cujo exame cabe à Filosofia, não o é.

Finalmente, o problema da metodologia científica insere­se na área da Filosofia, não da Ciência. É à Filosofia que incumbe indicar o método adequado de cada procedimento científico. No que diz com o conhecimento jurídico, é à filosofia do Direito que cabe a indicação e a crítica do método próprio da ciência do Direito.

4.2.2 Objeto da filosofia jurídica

Coube a Icílio Vanni fazer a primeira sistematização moderna dos temas da filosofia do Direito, cuja importância o positivismo minimizara. Fazendo traçado paralelo ao que Andrea Angiulli (1837­1890) fizera para a filosofia geral (saber, ser, ação), Vanni indicou como temas próprios da filosofia do Direito:

a) problema gnoseológico (saber), pertinente à indagação sobre o conceito de direito, em sentido estritamente lógico;

b) problema fenomenológico (ser), pelo qual se aborda a realidade jurídica em sua manifestação histórica positiva;

c) problema deontológico (ação), relativo à consideração do fim do direito em sentido ético, em enlace com a lei geral que preside às sanções humanas.

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Del Vecchio, em cuja filosofia jurídica está presente a influência de Vanni, atribui a esta disciplina a seguinte temática:

a) problema lógico, por via do qual se considera a formulação do conceito de Direito, sem indagação do conteúdo de qualquer norma;

b) problema fenomenológico, relativo ao exame do Direito com fato, o qual conduz, assim, à concepção de uma história universal do fenômeno jurídico, na multiplicidade de suas formas, aspectos e realizações;

c) problema deontológico, em função do qual se indaga o que deve ser Direito, levando, assim, à idéia de justiça como aspiração do espírito humano.

Em conseqüência, define a filosofia jurídica como a disciplina que investiga o Direito em sua universalidade lógica, investiga os fundamentos e os caracteres gerais do seu desenvolvimento histórico e os valores segundo o ideal de justiça dado pela razão pura.

Importante, na matéria, é a teoria Stammler, pela sua indiscutível influência no ressurgimento da filosofia do direito, a partir das últimas décadas da segunda metade do século XIX. Stammler atribui à filosofia do direito o exame de dois problemas fundamentais: o conceito e a idéia do direito, a cada um dos quais corresponde um departamento próprio, respectivamente, a lógica jurídica e a axiologia jurídica. Sob influência de Kant, atribui ao conceito sentido meramente formal. Assim, conceituar o que é uma realidade significa caracterizá­la a priori, de modo a distingui­la de qualquer outra. Em relação ao direito, o seu conceito, portanto, deveria ser abrangente de qualquer realidade jurídica histórica. Mas o direito é anseio humano por um valor, a justiça. Assim, não pode a sua filosofia omitir­se de considerá­lo sob tal aspecto. O estudo deste tema cabe à axiologia jurídica.

Traçando as duas grandes linhas mestras da investigação filosófico­ jurídica, indicou ainda Stammler outros temas, que diríamos complementares, para a disciplina:

a) estudo das categorias fundamentais do pensamento jurídico, derivadas do próprio conceito de direito (sujeito­objeto); causa­relação; soberania­ subordinação; regularidade jurídica­antijuridicidade;

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b) fontes de onde provêm as instituições jurídicas positivas;

c) técnicas (normas, hermenêutica, lacunas, etc.) e prática (esforço de realização dos valores jurídicos no Direito Positivo).

Miguel Reale divide a filosofia do Direito em duas partes: uma geral, a ontognoseologia jurídica, destinada a determinar a natureza, a consistência e a essência do Direito, isto é, as suas estruturas objetivas, assim como a sua conceituação essencial; e uma parte especial que divide em:

a) epistemologia jurídica, tendo por objeto o problema da vigência e dos valores lógicos do Direito;

b) deontologia jurídica, ou doutrina dos valores éticos do Direito (problema do fundamento do Direito);

c) culturologia jurídica, doutrina do sentido da concretização histórica dos valores do Direito (problema da eficácia do Direito).

Entendemos que a filosofia jurídica não se limita ao estudo de problemas formais. O jurista não pode ter do Direito somente uma noção lógica, mas deve também conhecê­lo na sua essência. Por outro lado, as cogitações de natureza histórica, por amplo que seja o horizonte da pesquisa e ambiciosas as conclusões, escapam, sem dúvida, à temática de qualquer filosofia de uma ciência.

Inclinamo­nos, assim, a indicar os três problemas fundamentais da filosofia do Direito:

a) problema lógico (lógica jurídica em sentido amplo), cujos objetos são o conceito do direito, pelo qual o distinguimos de tudo quanto é não­ direito, válido para qualquer realidade jurídica positiva, em qualquer lugar, em qualquer tempo, categorias jurídicas e o método do conhecimento jurídico;

b) problema ontológico (ontologia jurídica), relativo à indagação sobre a essência mesma do direito em si, como conduta;

c) problema axiológico (axiologia jurídica), relativo à especulação sobre os valores jurídicos, em cuja cúpula está a justiça.

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4.3 CIÊNCIA DO DIREITO

A ciência do Direito, ensina Eduardo Garcia Maynez (1908), tem por finalidade a exposição sistemática do Direito Positivo e o exame dos problemas ligados à sua aplicação.

O seu objeto é sempre o Direito Positivo. Sendo este um para cada Estado, aplica­se ela sempre a um Direito Positivo, isto é, a um ordenamento jurídico vigente num local e num tempo.

Ela estuda a norma positiva de maneira esgotadora e sistemática. Mas, como a regra jurídica não é somente objeto de saber teórico, porque seu fim é essencialmente prático, ao seu aspecto expositivo outro se acrescente, o técnico ou prático, pelo qual se consideram os problemas ligados à sua aplicação.

Divide­se, portanto, em duas partes, uma teórica e outra prática. A teórica chamamos de sistemática jurídica. A prática, de técnica jurídica.

A ciência do Direito, como sistemática jurídica, tem caráter dogmático. Esse caráter justifica uma das suas denominações (dogmática jurídica) e consiste em que, quando o jurista realiza atividade estritamente científica, aceita a regra jurídica como um dogma, à semelhança do teólogo que, diante do preceito canônico, deve apenas aceitá­lo e interpretá­lo.

Posição diversa seria equiparável à do físico que investisse contra as leis naturais, que estão para as ciências naturais, neste sentido, como as jurídicas para a ciência do direito. Não quer isso dizer que o jurista, como filósofo, político, sociólogo, não possa contestar a lei e até mobilizar esforços para revogá­la. Mas essa atitude não lhe será própria no campo especificamente científico. Aliás, toda atividade científica é neutra, de mera sensibilidade para o real, e não pode ser contaminada por juízos críticos que lhe comprometeriam a pureza ascética da atitude avalorativa.

Caracteriza, também, a ciência do Direito o ser reprodutiva, no sentido de que, tendo por objeto normas, não as cria, mas as reproduz. Deve­se notar, entretanto, que a reprodução, no caso, não é apenas da norma em si mesma, desenraizada da sua ambiência, mas daquela compreendida em função das

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suas vertentes, como espelho de valores comunitários e, assim, expressão de modelos sociais de comportamento.

A ciência do Direito distingue­se, com bastante clareza, da Filosofia jurídica e da Teoria Geral do Direito.

Da primeira bem se emancipa pela circunstância de lhe ser estranha a posição valorativa, que é, por excelência, a da filosofia do Direito. Esta faz a crítica do direito positivo, ao passo que a ciência do Direito o analisa e descreve.

Também a ciência do Direito parte de noções que têm por indiscutíveis os seus pressupostos. A Filosofia jurídica dedica­se à análise e à crítica desses. E ainda o método daquela cabe a esta indicar.

A distinção entre ciência do Direito e teoria geral do Direito resume­se em que a Segunda analisa os direitos positivos existentes, atuais ou passados, para identificar as suas similitudes e, por indução, generalizar princípios fundamentais, de natureza lógica, válidos para todos. A ciência do Direito, no entanto, a despeito do seu instrumental lógico próprio, é ciência de um Direito Positivo, do Direito Romano, do Direito germânico, do brasileiro, do soviético, etc., e, estudando um sistema de Direito Positivo, procura menos destacar as suas similitudes com outros do que as suas características.

Também as noções fundamentais formuladas pela teoria geral do Direito, a ciência jurídica as dá por pressupostas e não as aborda.

4.3.1 Divisão

A ciência do Direito, como já indicamos, divide­se em dois ramos:

a) teórico: sistemática jurídica;

b) prático: técnica jurídica.

O conteúdo de ambos transparece do seu próprio conceito: disciplina que tem por objeto a exposição sistemática de um Direito Positivo (parte teórica, sistemática jurídica) e o estudo dos problemas ligados à aplicação do Direito (parte prática, técnica jurídica).

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A sistemática jurídica começa por uma tarefa classificadora, porque o Direito Positivo se oferece como um aglomerado de regras de conduta que não estão organizadas segundo um esquema lógico.

Se visitássemos um povo, do qual nunca tivéssemos tido notícia, e quiséssemos estudar o seu direito positivo, começaríamos por anotar as regras de conduta obrigatórias e não arbitrárias, porque essas seriam as jurídicas. Quando tivéssemos apreciável soma de material levantado, conheceríamos o seu Direito Positivo, ainda confuso. Sentiríamos, então, a necessidade de organizar o material coligido, visto que não se pode compreender e expor uma realidade, sem ordená­la previamente numa estrutura racional. Essa é a missão inicial da sistemática jurídica: organizar o Direito Positivo, classificando as regras jurídicas que servem a finalidades diferentes. Organizamos as normas pertinentes a um fim comum, e, em posição diversa, as alusivas a outro fim comum. A primeira observação é a de que há regras de Direito destinadas a atender ao interesse público e outras reservadas às necessidades particulares. Temos aí o primeiro esquema de compreensão do Direito Positivo. Dizemos: o Direito pode ser público ou privado, conforme suas regras atendam a necessidades sociais ou particulares. Considerando somente as segundas, veremos que elas também se diversificam, de acordo com certas características. Temos, assim, regras civis e comerciais. As civis servem a finalidades diversas. Umas dispõem sobre a família, outras sobre a propriedade, outras sobre os contratos, etc. A todos esses campos do Direito emprestamos um arranjo lógico, para expô­los de maneira orgânica, tarefa da sistemática jurídica, como o próprio nome o diz, de sistematização.

Não podemos entender nenhum ramo do Direito sem sistematizá­lo. Qualquer pessoa, ainda a mais ignorante, dotada de boa memória, pode saber de cor os artigos do Código Civil. O civilista pode não memorizar nenhum, mas somente ele sabe o Direito Civil, porque tem visão lógica do texto, ainda que a coordenação deste possa não ser logicamente impecável. Por isso, Martínez Paz, citado por M. Carbone, atribui à sistemática jurídica o estudo dos processos lógicos necessários para reduzir a sistema o conjunto dos princípios jurídicos que compõem um ordenamento de Direito.

A técnica jurídica é de formulação e aplicação. Porque as normas jurídicas são formuladas e aplicadas, há uma técnica para formulá­las, outra para aplicá­las. O legislador as elabora, objetivando, como doutrinam Carlos Mouchet (1906) e Ricardo Zorraquin Becú, transformar os fins imprecisos da ciência e da política em normas que permitam sua realização.

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A técnica legislativa, em sentido lato, segundo o ensinamento de Hélio Fernandes Pinheiro, envolve todo o processo evolutivo de elaboração das leis, isto é, desde a verificação da necessidade de legislar para um determinado caso, até o momento em que a lei é dada ao conhecimento geral. Talvez mesmo por ser demasiadamente ambiciosa essa meta, é que Victor Nunes (1914) confessa duvidar do êxito pleno da formulação de boas normas de técnica legislativa, acrescentando que assim pensa porque o problema é essencialmente de cultura, em especial de cultura jurídica.

São problemas da técnica de aplicação: vigência, interpretação, integração, eficácia da lei no tempo e eficácia da lei no espaço.

A todos estudaremos na parte final deste trabalho.

4.3.2 Natureza científica

Há quem conteste o caráter científico do saber jurídico, pelo entendimento de que somente os objetos naturais podem ser cientificamente abordados.

Será acertada esta contestação? Examinêmo­la.

As palavras que maior eco encontraram foram as de Hermann Kirchmann (1802­1884) que, numa famosa aula reitoral, contestou o direito como ciência, de modo acrimonioso e, às vezes, pitoresco.

Partiu Kirchmann da observação, sem dúvida procedente, de que o objeto de uma ciência é sempre independente dela mesma. Exemplificava: o teorema de Pitágoras (565­497 a.C.) existia antes que ele o tivesse descoberto, assim como os animais sempre viveram, dentro de sua própria fisiologia, antes que a ciência os descrevesse. O mesmo acontece com o conhecimento jurídico, cujo objeto são instituições, a família, o casamento, a propriedade, os contratos, etc. Um povo pode viver sem ciência jurídica, não sem Direito. Assim, à ciência do Direito cabe missão igual à das demais ciências em relação ao respectivo objeto: compreendê­lo, achar suas leis, desenvolver conceitos, precisar as conexões existentes entre as várias instituições e, por fim, tudo expor em um sistema claro.

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É lícito então indagar: como tem ela desempenhado sua tarefa? A resposta desanima e frustra. Diante de outras ciências, a jurisprudência revela espantoso atraso. Na Grécia, por exemplo, já alguns ramos do conhecimento haviam feito apreciável progresso, enquanto que a jurisprudência, máxime a relativa às instituições privadas, apenas iniciara seu trabalho. Com Francis Bacon (1561­1626), firmado o princípio da submissão da especulação à experiência, as ciências progrediram espetacularmente, menos a do Direito que ficou estagnada.

A causa dessa situação, porém, não pode ser atribuída aos juristas, tantos são os séculos de sua atividade, mas ao objeto mesmo daquilo que pretendem seja a sua ciência. Será, portanto, a comparação desse objeto com os de outras disciplinas que revelará a essência do problema.

Se promovemos esse paralelo, vemos que os objetos de outras ciências são imutáveis (os astros, os corpos animais, etc.), já o do direito é cambiante. Se uma ciência de objetos reais se atrasa, essa circunstância não a compromete: a qualquer tempo, ela os encontrará tal como eles são e sempre foram. Mas, se a jurisprudência, por hipótese, ao cabo de longos anos, pudesse alcançar um autêntico conceito, uma verdadeira lei, seu objeto já teria variado. Sua fatalidade é chegar tardiamente ao conhecimento daquilo a que se aplica. Por exemplo, o Estado grego só foi perfeitamente compreendido depois da sua decadência.

Daí, como corolários:

a) a ciência do direito tende a opor­se ao progresso do próprio direito, razoável que seja que se apegue às suas verdades, ainda quando já inexistente o objeto a que se referem;

b) por isso mesmo, inclina­se com muita freqüência para o estudo das instituições passadas, cujos contornos se delineiam com mais fixidez do que os das atuais.

Por outro lado, a posição de um estudioso de fatos naturais é puramente intelectual, e a do jurista é habitualmente passional, uma vez que o próprio objeto do seu estudo suscita paixões, tendências, ideologias e reivindicações

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Finalmente, se analisarmos as próprias leis jurídicas positivas em si, veremos que elas jamais se podem prestar para tema de compreensão científica, porque:

a) impõem­se, pouco importando sejam verdadeiras ou falsas, justas ou injustas;

b) quando verdadeiras, sua expressão é comumente defeituosa, gerando lacunas, contradições, obscuridades e dúvidas;

c) são rígidas, enquanto o direito mesmo é progressivo;

d) são abstratas, alheias à riqueza das formações individuais, o que leva a conceitos híbridos, como os de equidade e arbítrio individual;

e) são arbitrárias, como as que fixam a maioridade em data certa, ou as que marcam prazo;

f) são dóceis tanto à sabedoria do legislador quanto à paixão do tirano;

g) a bibliografia que se escreve sobre elas converge, principalmente, para seu aspecto imperfeito, o que faz dos seus erros os temas mais comuns da ciência do Direito, sendo levadas a sério autênticas questiúnculas ridículas.

A crítica de Kirchmann reflete, em grande parte, uma atitude ligada a um certo conceito histórico de ciência. Esta, com efeito, como assinala Bergson, em certa época apenas se preocupava com as grandezas e sua medida, cuidado que logrou aparente êxito no campo das ciências ditas naturais. Quando estas atingiram alto desenvolvimento e, coincidentemente, entraram em crise as grandes sínteses filosóficas precedentes, valorizou­se ao extremo o saber da natureza, mentalidade que corresponderia, necessariamente, à idéia de que ciência só é o conhecimento de objetos naturais. Somente a natureza teria a fixidez e a regularidade precisas para emprestarem a um objeto qualificação adequada ao saber científico.

Quando assim afirmamos, porém, estamos endossando a tese de que o suporte científico de um conhecimento é dado exclusivamente pelo seu objeto. Assim, diríamos que as ciências naturais são verdadeiras ciências, porque o seu objeto é científico.

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Verdade é, porém, que, se um saber é ou não é científico em função do seu objeto, também o é ou não é, segundo a posição que o homem adota diante dele. Os astros podem motivar, ao mesmo tempo, a astronomia, uma ciência, e a astrologia, uma charlatanice. Não é simplesmente o objeto que ao saber empresa atributo científico, mas também a posição e o método que o homem adota para abordá­lo e expô­lo. Como observa J. Arthur Thomson, a ciência não se limita a determinada ordem de fatos; caracteriza­se como uma atitude intelectual.

O saber é ciência se o homem, ao considerar um objeto, o faz através de métodos idôneos, de maneira sistemática e impessoal.

Aquela restrita idéia de ciência teve em Dilthey o seu grande demolidor. Apeou a filosofia da sua presunção de ciência do absoluto, afirmando não existir filosofia, mas filosofias, pois que os princípios racionais saem do homem histórico, emergem dos sentimentos vitais e da necessidade de entender precisamente determinadas épocas históricas. Pondo o homem no centro do universo científico, precisou a existência de ciências culturais, cujo método é o da compreensão, sendo esta um reviver sentidos, dado que de outro modo algum será possível entender o que o homem cria. Compreender, portanto, seria reviver situações humanas porque somente estas revelam a significação do que é cultura. Semelhante foi a orientação de Windelband, Rickert e Georg Simmel (1858­1918). Lembrando o ensinamento kantiano, consoante o qual o conhecimento objetivo não é a mera imagem de uma realidade externa, senão que vale pela sua universalidade e sua lógica necessidade, Windelband introduziu no conhecimento do real um elemento de valor, que tem seu lugar próprio e define um foco tão legítimo de consideração dos objetos, quanto o é sua simples observação. Rickert, cuja importância é justamente realçada por August Messer, observou que as ciências, assim consideradas aquelas puramente descritivas, deixam escapar tudo quanto há de particular e individual na realidade concreta, o que somente se alcança pelo método histórico, atuando este, portanto, como fundamento de uma autêntica atividade cognoscitiva. E atribuiu prioridade lógica ao valor e ao dever­ser na determinação da verdade. E Simmel realçou a importância da especulação do homem sobre a sua própria cultura.

Assim despontou a distinção entre as ciências naturais e culturais, respectivamente, de explicação e de compreensão. Ciências há que, diante de um objeto, limitam­se a descrevê­lo. Outras procura, para além da sua

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realidade, alcançar a sua significação, o que é sempre um dado humano. Estas compreendem o objeto, assinalando­lhe o sentido.

Aliás, a convicção de que o empirismo deve ser admitido como princípio científico geral foi rebatida de forma definitiva por Edmond Husserl (1859­1937), cuja obra, na justa observação de Teodor Celms, constitui um mundo de idéias cuja monumentalidade de dimensões assombra e ante cuja maestria de execução não pode deter­se, senão com admiração e respeito, todo aquele que tiver um sério interesse pela Filosofia. Dentre cujos argumentos críticos destaca­se, pela sua simplicidade e limpidez, o relativo à existência dos números. Os objetos da matemática nunca podem ser apreendidos empiricamente, e a ela, todavia, não se pode negar condição científica.

Pode­se, então, concluir pela existência de pelo menos três grupos de ciências, perfeitamente autônomos:

a) as ciências matemáticas, de fundamento lógico imediato;

b) as naturais empírico­descritivas;

c) as culturais compreensivas.

Ao conjunto das ciências culturais pertence a do direito, visto que este é, em si mesmo, um produto cultural.

4.3.3 Procedimento

Admitido o caráter científico do conhecimento jurídico, resta explicar em que consiste.

O seu objeto são normas jurídicas, integradas num sistema. Sobre a norma a ciência do Direito realiza um trabalho de clarificação e compreensão. O jurista não se limita a expô­la. Dedica­se, também, a compreendê­la, na sua plena significação, e desdobrá­la em toda a sua aplicabilidade.

Esta tarefa é realizada em três níveis:

a) interpretação;

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b) construção;

c) sistematização.

O primeiro labor do jurista é o de interpretar a norma. Ao fazê­lo, procura apreender a sua significação total, revelando a normatividade latente que não raro se oculta sob a sua normatividade aparente. Como se trata de processo que constitui capítulo próprio da técnica jurídica, deixamos seu exame mais minucioso para a última parte deste trabalho, destinada, exclusivamente, à exposição dos problemas contidos nesse departamento da ciência do Direito.

Decalcado na interpretação, o jurista opera num plano lógico mais elevado, que chamamos construção. O conceito de construção é indeterminado, não apresenta contorno nítido e se presta a entendimentos variados.

O que se deve observar, de pronto, é que não existe um abismo nem uma linha divisória clara entre a interpretação e a construção, de modo que é difícil dizer quando a ciência do direito deixa de ser interpretação e passa a construção.

A construção, em nosso entender, é a própria interpretação num plano mais alto. Diríamos que, interpretando a norma, o jurista ainda está adstrito a ela. Construindo, já se emancipou um tanto, já se afastou um pouco, dando ao seu trabalho maior criatividade.

Quando interpretamos normas jurídicas e percebemos as suas conexões, identificamos a organicidade com que se apresentam no seu conjunto e observamos que parecem conduzir a uma idéia comum. A conquista dessa idéia­síntese, que é a compreensão total de certo conjunto de normas, é alcançada pela construção. A construção é um conceito sintético, obtido pelo jurista, depois que, interpretando diversas normas, coloca­se numa posição capaz de compreendê­las, não cada uma de per si, nem também apenas no seu conjunto, mas numa idéia a que todas se reduzem e que a todas explica. No plano da construção é que bem constatamos o acerto do comentário de Jacques Leclercq, ao ponderar que o Direito Positivo é, de certo modo, a matéria­ prima que os juristas convertem em produto acabado.

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Somente a construção nos permite conseguir amplos conceitos de um Direito Positivo, intimamente ligados à experiência mas superiores a ela, tais como os de propriedade, pessoa, etc.

A ciência do Direito opera num movimento de vaivém entre a interpretação e a construção. Se logramos a construção pela interpretação, usamos desta para testar aquela. Não encontramos, por exemplo, a noção de família legal brasileira em nenhuma norma positiva. Do conjunto das normas do Direito Civil, porém, obtemos visão unitária do que é a família legal no Brasil. Se, por hipótese, tivermos uma questão para julgar, já partiremos daquele conceito para aplicá­lo à sua solução.

Entre a interpretação e a construção existe relação de reciprocidade. Só podemos construir depois de interpretar, mas, feita a construção, dela provém luz que dá claridade ao campo da pesquisa interpretativa, que passa a ser feita em função de uma idéia sintética.

A ciência do direito culmina na sistematização. Assim como não podemos chegar à construção sem interpretação, não podemos sistematizar sem construir. Há uma gradação nesses processos. Eles se sucedem e se influenciam, de tal maneira que cada um é o suporte do subsequente, e, por sua vez, projeta sobre o precedente noção mais clara do que a anteriormente obtida. A sistematização está para a construção assim como a construção está para a interpretação. No trânsito da primeira para a Segunda fase, como no da Segunda para a terceira, há um processo que se caracteriza pela sua crescente generalização. A construção é mais generalizadora do que a interpretação, e a sistematização, mais do que a construção.

Sistematizar é considerar um setor do saber jurídico na sua integralidade. Depois de atingidos conceitos parciais, como os de família, propriedade, herança, etc., obtemos uma visão total da área do saber jurídico do qual emergiram. Exemplificando, interpretado o Direito Civil Positivo, construídos os conceitos das instituições civis, chegamos à sua sistematização. Não será apenas uma visão panorâmica, sim ordenada. Sistematizar não é ver de longe ou ver tudo; é emprestar a essa visão caráter lógico total. A lei pode seguir uma ordem e a sua exposição ser feita em outra pelo jurista que a sistematiza, organizando logicamente a experiência jurídica, atribuindo­lhe a configuração racional que ela em si mesma não contém.

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A sistematização é a última tarefa da ciência do Direito, é a integração da experiência jurídica num todo suscetível de compreensão e exposição lógicas.

4.3.4 Evolução

Vamos apenas citar os momentos marcantes da evolução da ciência do Direito.

Ponto fundamental neste processo foi a conquista de autonomia pelo saber jurídico.

4.3.4.1 Laicização

O protestantismo realizou a laicização do Direito, emancipando­o da religião. A inteligência medieval não era infensa à distinção entre as normas jurídicas, morais e religiosas. Doutrinariamente, a diferença estava já feita, com clareza, principalmente nas obras de São Tomás de Aquino e Francisco Suárez (1548­1617), os maiores nomes da escolástica na Filosofia jurídica. Mas a tradição medieval impunha ao Direito e à moral certa subalternidade, diante da religião. Ora, qualquer realidade, cujo fundamento seja sobrenatural, não pode ser objeto de ciência.

O protestantismo contribuiu para afirmar o caráter humano do Direito, sem embargo do caráter divino da missão por ele pretendida, o que foi apenas um dos aspectos da Reforma, que Alfred Weber considera o fato de maior importância universal realizado pelos alemães no movimento do mundo ocidental.

4.3.4.2 Separação da moral

O conhecimento jurídico foi melhor encaminhado no rumo científico pela separação entre direito e moral, já na Idade Moderna com Thomasius e Kant. Daí as regras de consciência passaram a distinguir­se das regras de coexistência.

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Ocorreu depois a ontologização do Direito Positivo, ou seja, este passou a ser aceito como realidade em si, não reflexo da outra. Durante muito tempo, sob feições variadas, perseverou a noção de um Direito Natural. Basicamente, significava, então, algo existente que era direito naturalmente, direito justo, direito na sua própria substância. A lei e os costumes, Direito Positivo, poderiam ser direito ou não, conforme afinassem ou desafinassem com o Direito Natural. Para uns, esse Direito Natural estava ligado à própria natureza das coisas, para alguns resultava da razão do homem, para outros seria uma lei gravada por Deus na consciência humana. Em suma, a idéia de um Direito Natural importava a afirmativa de que o Direito Positivo, feito pelo homem, seria algo de artificial, podendo, segundo sua coincidência ou não coincidência com o Direito Natural, ser ou não Direito. Das várias concepções do Direito Natural a que mais perdurou foi a do Direito Natural racional, pela qual o homem tem uma razão suficiente em si, capaz de lhe permitir formular, com exatidão, regras válidas e justas de convivência, idéia que, embora metafísica, importava, como assevera Alceu Amoroso Lima (1893), a afirmação da natureza temporal do homem e do próprio Direito.

4.3.4.3 Escola histórica

A escola histórica, que teve como principais representantes Gustav Hugo (1764­1844) e Friedrich Karl von Savigny (1779­1861), rebelou­se contra tal teoria, para sustentar que o direito nasce espontaneamente da convivência dos homens, atribuindo­lhe natureza histórica e não a de fruto da razão. Sempre que os homens convivem, o direito surge entre eles, através de usos e costumes. O direito é produto da convivência, não obra de gabinete. A razão dos juristas limita­se apenas a constatar e revelar a sua presença numa ambiência social. Ou, como expõe Edgar Bodenheimer, são eles apenas depositários da confiança do povo e autorizados, como representantes do espírito da comunidade, a formular as leis nos seus aspectos técnicos.

Todo o povo, para a escola histórica, tem a sua própria consciência, da qual emergem suas tradições, costumes, usos e regras jurídicas. O Direito é, assim, obra genuinamente popular, jamais invenção dos juristas. A escola emprestava­lhe origem histórica, daí a sua denominação. O Direito é um acontecimento histórico como qualquer outro, e, sendo acontecimento, provém do próprio povo.

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A tarefa do jurista é ser sensível a esse Direito, existente fora dele numa difusa consciência social. Ficava eliminada, assim, a dualidade de direitos: um, Direito em si, Direito mesmo, outro, Direito que o homem cria. O Direito é um só. É o que como tal se vê nas leis, nos costumes, e não há outro que não seja esse.

A Revolução Francesa havia gerado um sistema legal no qual se cristalizara a concepção raiconalista do Direito: a razão, em auto­esforço criador, podia descobrir e decretar quais as melhores formas de governo e qual o Direito mais perfeito e adequado para reger as atividades humanas. O historicismo repudiou essa presumida onipotência da razão, apontando a imprescindibilidade de se considerar o passado vivido e as exigências atuais como determinantes legítimas de qualquer legislação.

Sob influência do romantismo, que ia desentronizando a razão do seu pedestal, a escola histórica procurou outras fontes de formação da realidade fenomênica do direito. Não pertenceram, porém, os juristas da escola histórica, como observa José Corts Grau, citando Henri Bremond (1865­ 1933), à galeria dos românticos mórbidos, que amam o passado como as viúvas aos seus maridos, porque já não os têm, de modo que para aquele se volvem em posição contemplativa, como fizeram George Noel Byron (1788­ 1824) e Joseph Ernest Renan (1823­1892) para o helenismo. Foram, sim, românticos tônicos, segundo a terminologia do mesmo autor, que amaram o passado mas o receberam como fonte de inspiração, e o reanimaram.

Para a escola histórica, o Direito é, como a moral, a religião, a língua, a arte, fruto das essências mais íntimas do povo, produto do seu espírito, concreção vital das suas convicções e sentimentos, função de cada consciência nacional. O espírito do povo não é simples metáfora de sentido duvidoso e conteúdo impreciso, mas uma entidade real que se alimenta da história. Por isso, o costume, que é a sua manifestação mais espontânea e direta, brota como fonte primordial do Direito.

Hugo observou que o Direito pode aparecer e realmente aparece à margem de qualquer atividade legislativa, como havia ocorrido em Roma e na Inglaterra, nesta última criado pelos juizes, mas, nota Edward Jenks, nascido e desenvolvido do povo, pois de costumes e de suas práticas foram tirados os seus materiais. E fez um paralelo entre o Direito e a linguagem, ambos semelhantes em seu nascimento e desenvolvimento.

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Quando Anton Friedrich Thibaut (1774­1840) publicou monografia preconizando a necessidade de um Direito Civil comum para toda a Alemanha, à tese opôs­se Savigny, realçando a importância dos costumes, os quais levou ao primeiro plano como expressão única verdadeira do espírito do povo, afirmando que ao legislador mais não cabia senão ser intérprete e tradutor oficial das regras consuetudinárias.

A partir da escola histórica, o Direito passou a ser coisa­em­si, não sombra de um Direito Natural.

4.3.4.4 Teoria geral

Com isso, abriu­se a perspectiva de uma real ciência do Direito, para cuja aceitação necessário era que ao Direito Positivo fosse conferida realidade autônoma.

Na base desses elementos, a ciência do Direito pôde libertar­se dos obstáculos que a tolhiam e atingir apreciável nível de rigor e exatidão.

Já no século passado despontou a teoria geral do Direito, cuja importância, para o seu desenvolvimento, nunca é exagerado estimar. A teoria geral reconheceu no Direito Positivo substancialidade própria, e, dele fazendo seu único objeto, partiu para a formulação dos quadros em que opera a experiência jurídica.

4.3.5 Posição enciclopédica

A possibilidade de classificação do conhecimento jurídico no quadro geral das ciências está na dependência da aceitação de um conceito lato moderno de ciência. Por conseguinte, será inútil tentar localizá­lo em qualquer classificação tradicional.

4.3.5.1 Comte

Assim, na classificação de Comte, na qual as ciências estavam dispostas na ordem crescente da sua complexidade e decrescente da sua generalidade

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(Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia e Sociologia), não encontramos lugar para a ciência do Direito.

4.3.5.2 Spencer

Classificação que durante algum tempo foi objeto de larga aprovação, a de Spencer grupava as ciências em três ramos: abstratas (Lógica e Matemática), abstrato­concretas (Mecânica, Física e Química) e concretas (Astronomia, Geologia, Biologia, Psicologia e Sociologia). Nela também seria impossível encontrar posição adequada à ciência jurídica.

4.3.5.3 Bourdeau

A classificação de Louis Bourdeau (1824­1900), excelente para o seu tempo, também não enquadrava qualquer ciência cultural: Ontologia positiva ou lógica, ciência das realidades; Metrologia ou Matemática, ciência das grandezas; Teseologia ou Dinâmica, ciência das situações; Poiologia ou Física, ciência das modalidades; Crasiologia ou Química, ciência das combinações; Morfologia, ciência das formas; e Praxiologia, ciência das funções.

4.3.5.4 Pearson

Muito bem esquematizada e ampla é a classificação de Karl Pearson (1857­1936), e nela se pode, por extensão, dar lugar à ciência do Direito, ainda que com impropriedade:

a) ciências abstratas (Lógica, Matemática, Estatística e Matemáticas aplicadas), as últimas servindo de enlace com as primeiras;

b) ciências concretas físicas (Física, Química, Mineralogia, Geologia, Geografia, Meteorologia, etc.) e

c) ciências concretas biológicas (Biologia, Psicologia e Sociologia).

Passando às classificações inspiradas na orientação filosófica de Windelband e Rickert, o quadro altera­se sensivelmente.

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4.3.5.5 Windelband

Windelband admitia dois grupos de ciências: as nomotéticas e as idiográficas. Ao primeiro grupo pertencem as ciências explicativas. Seu ponto de partida é a observação, sem que seja esta, porém, a sua finalidade. O objetivo delas é a formulação de leis e, apenas em função dessa meta, servem­ se dos fatos e das coisas a que se aplicam.

A Astronomia, por exemplo, estuda os astros, mas não se interessa por estes em si mesmos, senão que objetiva reduzir a leis o seu movimento, etc. O psicólogo examina as pessoas, sem tomar interesse por qualquer delas individualmente. Da sua conduta serve­se para elaborar leis psicológicas. Assim também a Sociologia, com isso se distinguindo da História. Os fatos de que ambas lançam mão são os mesmos. Mas a Sociologia, já notamos, somente se interessa por eles na medida em que a habilitam a enunciar leis gerais dos processos sociais.

Essas ciências não aderem ao seu objeto em sua singularidade, mas procuram, antes, desta libertar­se para alcançar leis abstratas.

Ao lado de tais ciências, que só se ocupam de coisas, fatos e pessoas enquanto servem de suporte à abstração, há as ciências históricas ou idiográficas. Dedicam­se aos fatos em si, são ciências individualizadoras, em contraste com as nomotéticas que são generalizadoras.

A História, quando examina um acontecimento, quer vê­lo nas suas características, naquilo em que ele é diferente de todos os outros ou, como escreve Reichel, o que existe com caracteres próprios uma única vez e não se reitera.

As ciências nomotéticas utilizam­se dos fatos como trampolim para as leis gerais, e as ideográficas ou históricas pretendem os próprios fatos em si, na sua peculiaridade.

A divisão de Windelband, por mais ampla que seja, comparada com as anteriores, não acolhe a ciência do Direito, que não é uma ciência de leis gerais nem de fatos, mas de normas.

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4.3.5.6 Cossio

Carlos Cossio adota classificação decalcada na teoria dos objetos, que são de tríplice natureza: ideais, naturais e culturais. Os ideais são: a­espaciais e a­temporais, neutros ao valor, ausentes da experiência e alcançados por intelecção. Correspondem­lhes as ciências formais: Matemática e Lógica. Os naturais são espaciais e temporais, dão­se na experiência, são neutros ao valor e ao seu conhecimento é obtido por explicação. Pertencem às ciências naturais. Os culturais, também espaciais e temporais, revelam­se na experiência, são positiva ou negativamente valiosos, somente podem ser conhecidos por compreensão. O seu estudo é feito pelas ciências culturais, também chamadas sociais e humanas.

Consoante Cossio, cabe a ciência do Direito entre as disciplinas culturais.

4.3.5.7 Kantorowicz

Kantorowicz, que dividia as ciências em três grupos (da realidade, de sentido objetivo e de valores), situava a do Direito entre as últimas.

4.3.5.8 Kelsen

Kelsen divide as ciências em explicativas e normativas. A sua divisão é concebida à luz da distinção entre as categorias de ser e dever ser. Haverá, assim, ciências do ser, explorando o hemisfério do ser, tendo por objetivo aquilo que é, e ciências do dever ser, explorando o hemisfério da conduta, enquanto reflexo de um dever.

Na classificação de Kelsen, podemos incluir o Direito entre as ciências normativas, dado que o seu objeto próprio é a norma jurídica.

4.3.5.9 Máynez

Máynez propõe uma classificação que é composição de elementos extraídos das precedentes, a qual, sem ser original, é mais analítica. Para ele, as ciências grupam­se em quatro categorias: explicativas, ideográficas,

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matemáticas e normativas. Explicativas e ideográficas são as mesmas identificadas por Windelband. As matemáticas são ciências dos axiomas, inconfundíveis, até mesmo pelo imediatismo do seu suporte lógico, com quaisquer outras. Normativas, as mesmas da classificação de Kelsen.

Máynez, com apoio em Somlò, subdivide as ciências normativas em nomotéticas e normográficas. As nomotéticas consideram as normas na sua formulação e os problemas ligados a esse processo. As normográficas estudam as normas quanto à sua aplicação e respectivos problemas.

Divididas assim as normativas, é evidente que a ciência do direito, tal como a definimos, se incluirá na Segunda subdivisão, porque ela não estuda a formulação de normas jurídicas, mas normas já formuladas, para expô­las sistematicamente e resolver os problemas de sua aplicação.

4.4 TEORIA GERAL DO DIREITO

Já nos referimos à teoria geral do Direito, no preâmbulo e ao compará­la com a ciência jurídica.

Ao estudar as disciplinas jurídicas, concluímos que somente duas eram fundamentais: a Ciência e a Filosofia do Direito. Das complementares citamos, apenas, a Sociologia Jurídica, a história do Direito e o Direito Comparado.

Quebrando esse esquema, surge a teoria geral do Direito, incluída na parte alusiva às disciplinas jurídicas, sem que entre essas tivesse sido localizada.

Justifica­se a aparente incongruência, já porque a singularidade da teoria geral dificulta sua inclusão num quadro didático das disciplinas jurídicas, já porque sua importância não justificaria a omissão, podendo o seu aparecimento ser considerado o mais importante evento na evolução da doutrina moderna do Direito. Não lhe basta, portanto, uma simples referência eventual, senão que capítulo próprio no planejamento do curso.

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Além disso, parece que a teoria geral ocupa como que uma região fronteiriça entre a filosofia e a ciência do direito. Já houve quem afirmasse que ela é o aspecto científico da filosofia do Direito e o aspecto filosófico da ciência do Direito. Esta observação é uma das mais sagazes que se podem formular a respeito. Realmente, pela sua positividade, ela é científica. No entanto, pelos temas que considera e pela generalidade com que o faz, é filosófica.

4.4.1 Origem

Para compreendermos o que é a teoria geral do Direito devemos começar pelo exame do sentido da filosofia que a impregnou. Na origem, a teoria geral do direito está para a Filosofia jurídica, como o Positivismo para a Filosofia geral. Ela foi o reflexo, no campo restrito daquela, de um movimento ocorrido no campo mais amplo desta: o Positivismo, fundado por Augusto Comte, que teve repercussão até no Brasil, talvez porque, repara Oliveira Martins (1845­1894), era o exemplo singular de uma escola de Filosofia na qual abundavam médicos, engenheiros, economistas, publicistas e até literatos, mas na qual não havia filósofos. Nos primeiros tempos da República, impossível é negar, conforme a opinião de Sílvio Romero (1851­1914), tenham sido os militares e os positivistas os dois grupos mais influentes.

O lema da bandeira brasileira é positivista: a ordem por base e o progresso por fim. Por ter alcançado no Brasil de então grande ressonância, quando é certo que ainda hoje, no comentário de Cruz Costa, parece muito cedo para que possa existir Filosofia em nossa terra, é fácil concluir a que ponto chegou, em certo momento, a influência desse movimento.

A Filosofia pré­positivista havia prescindido de toda problemática humana e enveredado do racionalismo para o idealismo mais transcendental. Mas há, na história da Filosofia, uma espécie de movimento pendular. Ela, por isso, teria que voltar a participar dos problemas imediatos da vida do homem, esses que o interessam realmente de maneira total.

O Positivismo foi um retorno da Filosofia à realidade dos fatos e da vida, razão da sua atitude antimetafísica.

A metafísica é o mais importante capítulo da Filosofia especulativa, porque consagrado ao conhecimento das verdades absolutas. O problema

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metafísico por excelência é o de ser não este ou aquele, nem todos um por um, mas o ente todo, o ente como tal na totalidade, a que se refere Martin Heidegger (1889­1976).

Ainda que não seja fácil caracterizá­lo em síntese, podemos, todavia, equacioná­lo, observando o ensinamento de N. Gonzalo Casas. Quando somos postos diante da realidade, podemos compreendê­la de três pontos de vista, cuja sucessão representa um aprofundamento crescente da visão e uma generalização progressiva do entendimento. O primeiro é o sensível. Pela sua corporeidade móvel todas as coisas se identificam no mesmo nível de realidade, sem embargo dos seus predicados característicos. Podemos, porém, abandonar os aspectos da realidade, sejam particulares ou comuns, e nos fixar, unicamente, nas relações de quantidade entre os objetos. Veremos, então, que eles enquanto corpos, dão­se ao nosso conhecimento num quantum. Possível, ainda, nos é uma nova abstração, e indagar pela sua entidade mesma, o seu ser comum. Porque todos, por diversos que sejam, têm de comum o fato de serem. Daí as perguntas que definem o perfil da metafísica: o que é o ser? Como entendê­lo? Qual a sua causa? Como se apresenta? Ao formular indagações de tal ordem ansiamos por um conhecimento absoluto do ser em si, além da suas relações, qualidades, modalidades, etc. E aquelas indagações tanto podem ser feitas no plano amplíssimo das universalidades filosóficas, como, no limitado dos objetos de cada ciência particular. Assim, a Filosofia de uma ciência pode enveredar pela metafísica.

É exatamente esse conhecimento metafísico (de essências, de verdades absolutas) que o Positivismo de Comte contestou, recusando­lhe possibilidade. Não contestou, ensina Farias Brito, cuja simplicidade de estilo é gabada por Jônatas Serrano (1885­1944), a existência de causas primárias ou finais. Afirmou, apenas, que sobre esse assunto não há conhecimento possível, sendo que todos os esforços empregados no sentido de dar solução a esses problemas têm sido sempre vãos e de resultado inteiramente negativo, razão pela qual se deveria desistir de qualquer nova tentativa. Na sua maneira de entender, o saber humano consegue apenas fixar relações de semelhança e sucessão entre os objetos, por isso é relativo segundo as coordenadas em que estão contidos, o espaço e o tempo. Disso resultou, escreve M. Carbone, a pretensão de que as ciências naturais e as que se chamavam do espírito, culturais ou de fins, fossem investigadas mediante os mesmos procedimentos. Houve assim – a observação é de Antonio Caso (1885­1946) – uma efetiva mutilação da experiência, cujos próprios resultados possíveis foram minimizados.

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A ambição metafísica é estéril, por absoluta impossibilidade de realização. Dela devem afastar­se as ciências. A estas compete procurar leis ou relações entre os fenômenos, e ignorar a natureza íntima e as causas das realidades ou essências que correspondem aos seus objetos.

Ora, se não podemos fugir aos limites da experiência externa (fatos físicos) e interna (fatos psíquicos) e não é possível qualquer metafísica, a filosofia há de contentar­se também com o conhecimento de fatos suscetíveis de experiência, para o efeito de entendê­los unificadamente. Desempenhará, na verdade, o papel de metodologia científica.

Essa teoria repercutiu na Filosofia jurídica, inspirando a teoria geral do Direito. Abandonou­se a especulação sobre o direito, sua essência, sua idealidade. Deixou­se de considerar o direito em si, com o que se continuava a escola histórica. Passou­se a considerá­lo apenas tal como era dado pela experiência: o Direito Positivo. Somente este poderia ser motivo de interesse intelectual. Quaisquer conceitos a que se devesse chegar teriam de ser alcançados a partir da experiência do Direito Positivo, e somente dela. Também aqui a tarefa intelectual consistiria em observar, comparar e generalizar.

Os principais representantes da teoria geral do Direito, ao tempo da sua formação, foram, na Alemanha, Karl Magnus Bergbohm (1849­1927) e Merkel, na Itália, Francisco Filomusi Guelfi (1842­1922), na Rússia, Korkounov, na França, Edmond Picard (1836­1924) e Ernest Roguin.

Antes, porém, já John Austin (1790­1859), fundando a chamada escola analítica de jurisprudência, lhe antecipara a diretriz, atribuindo à atividade teórica dos juristas a missão de expor as noções e os princípios gerais abstraídos dos sistemas jurídicos positivos. Observou ele que os sistemas legais mais amadurecidos apresentam uma certa uniformidade de estrutura, razão pela qual à ciência do Direito caberia a tarefa de elucidar as suas uniformidades e analogias, partindo exclusivamente da observação.

Para a teoria geral do Direito a doutrina jurídica teria base indutiva. Até então, exceção feita da contribuição da escola histórica, prevalecia a aplicação do método dedutivo. Os jusfilósofos partiam de noções gerais e abstratas e delas deduziam as conseqüências doutrinárias implícitas. Contra essa atitude voltou­se a teoria geral, postulando a criação de uma ciência jurídica experimental.

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Isso importava impor ao jurista a observação da realidade jurídica, que é o Direito Positivo. Caber­lhe­ia comparar as instituições jurídicas, determinar o que houvesse de constante e de afim em todas elas, para identificar suas noções comuns.

Verificadas as constantes, passaria a formular os princípios gerais. A sua posição seria sempre positiva. Da observação caminharia pela comparação, e, depois, por indução, do particular para o geral, chegando à generalização.

4.4.2 Desenvolvimento

Esta é a versão da teoria geral do Direito, tal como apareceu. Originariamente positivista, enquanto submissa à filosofia de Comte, padeceu de certa esterilidade.

Ulteriormente, libertando­se dessa servidão, conquistou resultados notáveis. Transformou­se no que Siches denomina teoria fundamental do Direito, capítulo da Filosofia jurídica. Surpreendente foi, apenas, que tal modificação se tivesse operado através da captação de elementos nitidamente influenciados pelo pensamento kantiano.

A teoria geral, adstrita a procedimentos empíricos, jamais atingiria níveis significativos de generalização, imprescindíveis para que o conhecimento do Direito possa estender­se aos horizontes de uma verdadeira doutrina. Como simples ciência formal de relações e, por isso, completamente divorciada da Filosofia (Huntington Cairns), seu horizonte ficou demasiado restrito. Se a experiência é indispensável ao conhecimento de qualquer realidade e todo saber que dela se divorcia inclina­se para a abstração vazia, a inteligibilidade da experiência supõe pré­requisitos lógicos, sem os quais é inviável. Por exemplo, fazer do Direito tema de experiência presume saber, por antecipação, o que é Direito, pelo menos em sentido formal, a fim de que a observação fique circunscrita ao seu objeto. O conceito mesmo de Direito, se pretendido em termos abrangentes de qualquer realidade fenomênica sob a qual ele se apresente, precede logicamente a experiência.

Assim é que, sabiamente, explica Giovanni Gentile (1875­1944), não é possível falar de fenomenologia jurídica, como fazem sociólogos, historicistas

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e empiristas de toda a espécie, sem postular uma investigação que transcenda a órbita dos problemas a que se propõem, esto é, uma investigação da categoria das categorias jurídicas.

4.4.3 Conteúdo

Orientada para finalidades mais ambiciosas e doutrinariamente mais importantes, a teoria geral, convertida em teoria fundamental do Direito, especialmente pelas contribuições com que a enriqueceram e modificaram Ernst Rodlf Bierling (1841­1919), Stammler e Kelsen, este proporcionando, na justa observação de Jerome Hall (1901), a melhor ontologia jurídica de que atualmente dispõe a ciência do Direito, procura colimar dois resultados:

a) determinar o conceito de Direito, de alcance universal, capaz de conter qualquer manifestação efetiva da realidade jurídica, atual, passada ou futura, real ou meramente possível;

b) formular conceitos mais restritos, válidos para todas as disciplinas jurídicas, sem os quais a experiência do Direito Positivo é impossível, tais como os de norma, sujeito, objeto, relação, dever, direito, legalidade, ilicitude, etc.

A determinação do seu preciso objeto, porém, ainda é tema de divergência.

Para alguns, ela deve ser uma enciclopédia jurídica, visão panorâmica do Direito Positivo. Ora, só podemos fazer enciclopédia jurídica de um Direito Positivo, porque somente a sua organicidade a permite. Atitude, aliás bastante infiel à natureza da teoria geral do Direito, pois que, se esta pretende alcançar princípios gerais obtidos pela indução, não lhe corresponde confinar­se a um determinado sistema de Direito.

Para outra corrente, a teoria geral é a própria Filosofia jurídica. Posição, historicamente mais autêntica, por ter sido ela movimento doutrinário que visava à implantação de uma disciplina sucedânea da filosofia do Direito.

Há, também, quem estabeleça identidade entre a teoria geral e a ciência do Direito. Essa pretendida identificação fundamenta­se em que a ciência do Direito mira um Direito Positivo, mas exerce sobre seu objeto uma tarefa

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conceitual que lhe concede formular princípios, não sendo, assim, simplesmente descritiva. E como a teoria geral também se eleva da simples experiência jurídica a princípios gerais, pode parecer, por isso, que existe identidade entre ela e a ciência do Direito.

A evidente diferença está, entretanto, em que a ciência do Direito, no seu sentido estrito, como ciência de um sistema de Direito Positivo, parte exatamente das noções fornecidas pela teoria geral, que, para ela, são verdadeiros pressupostos, sobre os quais não especula, como as de relação jurídica, sujeito ativo e passivo de Direito, objeto do Direito, fato jurídico, etc. Com isso, verificamos que tanto a ciência do Direito como a teoria geral do Direito, são matérias generalizadoras, sendo, porém, a generalização da Segunda muito mais ampla, e o seu ponto de partida mais recuado. Observamos, todavia, que, para os que afirmam aquela identidade, a ciência do Direito não é concebida como pura exposição sistemática de um Direito Positivo. O verdadeiro saber jurídico científico seria o elaborado pela teoria geral, tratado de noções comuns a todas as ordens jurídicas positivas.

Atualmente, duas são as posições competitivas. Não se pretende mais que a teoria geral do Direito seja disciplina sucedânea da Filosofia jurídica; também não se discute que não se pode confundi­la com a enciclopédia jurídica. Continuam em conflitos duas teses: a teoria geral do Direito é parte da Filosofia jurídica (Siches); a teoria geral do Direito é a ciência do Direito (Kelsen).

É como se houvesse uma atração em duplo sentido. Para alguns, a teoria geral atrai a ciência do Direito. Para outros, a filosofia jurídica atrai a teoria geral, que daquela é apenas um departamento.

Recordamos, a propósito, comentário anterior, quando observamos que a teoria geral do direito parece ocupar, entre a Filosofia e a ciência do Direito, um lugar fronteiriço.

Tal circunstância deve ter motivado a conclusão de A. L. Machado Neto, para quem a teoria geral, à semelhança da introdução, não é uma disciplina jurídica propriamente dita, que desfrute de autonomia, sim uma disciplina didática.

4.4.4 Divisão

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Atribui­se preponderantemente à teoria geral do Direito a consideração de dois temas: os elementos essenciais da relação jurídica e a técnica jurídica. Reputamos matéria exclusiva da teoria geral o estudo dos pressupostos de cognição, mais ou menos amplos, de qualquer ordenamento jurídico, o que importa situá­la no campo da filosofia do Direito.

É verdade que poderíamos admitir, com certa sutileza, a inclusão da técnica jurídica na teoria geral. É que aquela, enquanto subordinada a regras de Direito Positivo, está inclusa na ciência do Direito. Mas, fora desse âmbito de sujeição, opera segundo princípios lógicos, e, estes, pela sua própria natureza, estão imunes à diversidade existente entre vários sistemas de Direito Positivo. Mas, se tal circunstância bastasse, por si mesma, para levar à teoria geral qualquer modalidade de conhecimento jurídico em relação ao qual fosse atuante, também se chegaria a conclusão idêntica em relação à própria ciência do Direito, dado que esta exerce, por igual, sobre a experiência jurídica, um trabalho de inteligibilidade que obedece a uma lógica peculiar.

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5 Noções Fundamentais

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5.1 NORMA JURÍDICA

A ciência do Direito estuda a norma jurídica: este é o seu objeto próprio.

5.1.1 Natureza

A propósito da natureza da norma jurídica, confrontam­se teses diferentes.

5.1.1.1 Teoria imperativista

Tradicionalmente, a norma jurídica foi entendida como um imperativo, o que importava conferir­lhe caráter de ente real, ainda que de uma realidade não corpórea, interpsicológica ou social, conforme vista como manifestação de uma vontade preponderante ou de um querer social.

A teoria imperativista parece decorrer de uma ligação quase intuitiva entre preceito e comando. Sendo a norma jurídica amparada pelo poder, somos levados a considerá­la uma ordem.

A primeira dúvida significativa que se levantou a respeito foi formulada por Karl Binding (1841­1920), num comentário sobre as leis penais. Nestas não encontramos ordens positivas ou negativas. Não leremos, por exemplo: é proibido matar, é proibido roubar, é proibido caluniar – pena de tantos e tantos anos de prisão. Esses preceitos limitam­se a admitir uma hipótese e indicar a conseqüência que atinge a pessoa cuja conduta nela incida. Se matarmos (hipótese), sucederá a imposição de certa pena (conseqüência). Observa­se completa ausência de imperatividade, e isso numa norma que é, sob certo aspecto, típica.

Binding assinalou este fato. Mas, mesmo constatando que a lei penal não era enunciada como imperativo, não pôs em dúvida a teoria respectiva. Entendeu que a cada preceito aparente corresponderia outro subjacente. Ao preceito aparente corresponderia outro subjacente. Ao preceito ostensivo matar, pena tal corresponderia um oculto não se deve matar. O dispositivo legal seria a sombra ou projeção de um imperativo implícito. E conclui por

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distinguir entre lei e norma, aquela em forma de um juízo hipotético, esta sob feição imperativa.

Del Vecchio afirma enfaticamente que a norma é um imperativo, considerando mesmo impossível concebê­la sob outra fisionomia. Reportando­se a Ernst Zitelmann, Binding e Bierling, sustenta que as proposições jurídicas são normas sobre pessoas, não podendo, por isso, ter outra estrutura que não a de imperativos. E acrescenta que, se o imperativo não aprece claro em toda norma, especialmente naquelas que apenas contêm autorizações ou declarações, a análise profunda de qualquer delas o revelará, como resíduo jurídico, já existindo por si mesmo, já enlaçado a outro.

No mesmo sentido é a opinião de James Goldschmidt.

A crítica efetiva à teoria imperativista foi feita por Kelsen.

Das razões que invoca, para contestá­la, três são mais expressivas.

Pela primeira, observa que, se à norma jurídica atribuímos estrutura imperativa, isso importa identificá­la à moral. É que esta, efetivamente, impõe­nos deveres: sê caridoso, sê tolerante, não mintas. E, por fazer assim, a sua natureza é, realmente, imperativa. Mas o Estado (que para ele é a própria ordem jurídica personificada) não pode querer a conduta de ninguém, simplesmente porque não pode causá­la. Nem pode motivar condutas, concedendo vantagens ou prometendo castigos, senão sancionar determinada conduta, sob a dupla forma de castigo e execução.

A segunda razão está em que o imperativismo relega a plano secundário o momento mais significativo da vida do direito: o da coação. É quando a norma jurídica, resistindo à nossa vontade, impõe­se­nos coativamente, que lhe sentimos plenamente a vitalidade. Ora, se dizemos dela que é um imperativo, eliminarmos da sua própria definição o que nela há de mais relevante e característico.

Por último, formula Kelsen o seu reparo mais sugestivo: a teoria da imperatividade exclui do conceito de norma jurídica um elemento sem o qual não a compreendemos, na sua essencialidade, o ilícito. Com efeito, se dissermos que ela nos manda fazer ou deixar de fazer algo (imperativo), deduzimos que há uma conduta juridicamente adequada, quando a cumprimos, e outra anômala, quando a desobedecemos. E mais: a ordem infringida é

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vulnerada a cada infração, sendo a conduta que a infringe atentado à sua própria validade. Mas, em relação ao Direito, o antijurídico (conduta proibida) não é infração, no sentido em que desta expressão nos utilizamos para aludir à violação de um mandamento moral. É apenas a conduta determinada na proposição jurídica como condição de um sujeito contra quem se dirige o ato coativo, que está nela estatuído como conseqüência. O antijurídico não é a negação do Direito, sim condição específica do Direito, pelo que o conceito de antijuridicidade abandona a posição extra­sistemática que lhe confere a teoria imperativista e adquire posição intra­sistemática. Os homens não violam ou infringem o Direito, dado que este somente pelo antijurídico alcança a sua função essencial, que é a de sancionar.

A crítica da teoria da imperatividade também é feita por Cossio, numa exaustiva análise fenomenológica da norma. Desta destacamos, pela sua maior acessibilidade, apenas um argumento.

Diz o jurista argentino que, se podemos considerar a norma como juízo ou imperativo, veremos que aquele conceito se lhe aplica, não este. Bastaria, no caso, testá­la segundo a noção de que os juízos comportam reiteração, não os imperativos.

Os juízos, por mais reiterados que sejam, não perdem sentido. A reiteração de um imperativo, ao contrário, é um contra­senso.

Se digo ordeno que cales, enuncio um imperativo. Se o reiterasse, nenhum sentido teria fazê­lo dizendo ordeno que ordeno que cales.

Diversamente, servindo­me de um juízo, constatarei que poderei reiterá­ lo indefinidamente. Na medida em que o fizer a compreensão se tornará progressivamente mais difícil, mas o juízo conservará a inteligibilidade.

Tomo de qualquer coisa e digo este objeto é útil. Estarei fazendo um juízo, uma vez que predicando um atributo (útil) a um sujeito (objeto). Poderei dizer: julgo que este objeto é útil. O juízo continuará perfeitamente compreensível. Estou em dúvida sobre a minha própria opinião. Ainda poderia reiterar, observando julgo que julgo que este objeto é útil, e assim indefinidamente, com o que apenas lograria tornar o juízo cada vez mais complexo, sem nunca, porém, tirar­lhe sentido.

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As normas jurídicas também se prestam à reiteração. Há, por exemplo, a que obriga o devedor a pagar sua dívida. Será ela assim elaborada: o devedor deve pagar sua dívida. Assiste­me, todavia, reiterá­la, enunciando: julgo que deve ser que o devedor deva pagar sua dívida. A reiteração será perfeitamente lógica, significando que meu julgamento do dever é o mesmo que dele faz a norma. Poderia insistir: julgo que deve ser que deva ser que o devedor deva pagar a sua dívida. A reiteração, ainda aí, não teria comprometido a inteligibilidade do juízo. Variando a distância do sujeito face ao objeto do juízo normativo, altera­se o enunciado deste, sem sacrifício de sua perfeição.

5.1.1.2 A norma como juízo

São relevantes os argumentos que Kelsen e Cossio opõem à teoria imperativista.

Exporemos, a seguir, o que entendem sobre a natureza da norma jurídica.

5.1.2.1 Kelsen

Para Kelsen, a norma jurídica é um juízo de dever ser. Expressa o enlace específico de uma situação de fato condicionante de uma conseqüência. A lei natural diz se é A, é B, (tem de ser B); a norma jurídica diz se é A, deve ser B.

Não sendo imperativa, expressão de vontade, é, como juízo, uma função de intelecto. Daí seu enunciado genérico: Em certas circunstâncias (uma certa conduta de um homem), quer o Estado realizar certas ações (castigo e execução), ou seja, impor as conseqüências do fato antijurídico. O primeiro elemento (conduta) é o dever jurídico; a conseqüência é a sanção ou a coação. A cada um desses elementos corresponde uma norma:

a) primária, a que ordena a coação;

b) secundária, a que estabelece como devida a conduta.

Precisamente porque se desdobra em duas, a norma pode ser formulada em outros termos: “Em determinadas condições, um homem determinado deve

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conduzir­se de um modo determinado; se assim não procede, então, outro homem (o órgão do Estado) deve praticar contra ele, de maneira determinada, um ato coativo (castigo ou execução).”

Em linguagem mais simples, a norma prevê a conduta antijurídica e sua conseqüência. Para se poupar a esta, o homem procede de maneira inversa à prevista, e a isto chamamos conduta lícita.

Gramaticalmente, a fórmula de Kelsen assim se traduz: NP=S, na qual NP é a não­prestação (o antijurídico) e S, a sanção. Exemplo típico de norma jurídica é a penal: “matar (não­prestação do dever de respeito à vida), pena de x a y anos de prisão (sanção)”. Esta é a norma primária (NP=S). O homem, para escapar à sanção, evita a hipótese prevista, segue a norma secundária: dado um fato temporal, deve ser a prestação (FT=P).

Kelsen exacerbou a preocupação de distinguir moral e Direito. Donde a extraordinária importância dada por ele à conduta proibida, que lhe parece o pórtico do mundo do Direito.

5.1.1.2.2 Cossio

Cossio critica em Kelsen exatamente o destaque por ele atribuído à conduta ilícita, minimizando a permitida, ao considerá­la simples desvio para evitar a incidência da regra primária. Entende que a conduta lícita e a ilícita, a não­sancionada e a sancionada, têm igual importância para o Direito. Assim, uma teoria sobre a natureza da norma jurídica deve emprestar o mesmo relevo a ambas. Dessa observação parte para atribuir à norma jurídica a natureza de um juízo disjuntivo, que prevê duas alternativas. Sua fórmula gramatical é a seguinte: FT=P ou SP=S (dado um fato temporal, deve ser a prestação; não sendo a prestação, deve ser a sanção). Exemplo: matar – pena de x a y anos de prisão. Esse dispositivo resolve­se no seguinte juízo: dado o fato temporal da convivência, deve ser o respeito à vida humana; não sendo o respeito à vida humana, deve ser a pena de prisão. Portanto, fato temporal, a convivência, prestação, o dever de respeito à vida: não­prestação, o delito; sanção, a pena.

Igual desdobramento pode­se fazer de qualquer regra jurídica. Por exemplo: a que impõe o dever de assistência recíproca aos cônjuges. Diríamos: dado o fato temporal do casamento, deve ser a assistência recíproca

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entre os cônjuges; se algum deles se omite dessa obrigação o Estado lhe impõe uma prestação pecuniária.

Na fórmula de Cossio, estão representadas, niveladamente, as duas modalidades da conduta diante da norma: a permitida, lícita, que se insere no primeiro elemento do juízo, e a proibida, ilícita, que se insere no seu segundo elemento.

A regra jurídica é um juízo disjuntivo, traduzido numa proposição que prevê hipóteses opostas que reciprocamente se sustentam, tendo cada uma a sua validade na outra. Se seguimos a primeira alternativa, a da conduta permitida, com isto não se caracterizam os pressupostos da segunda. Se a violamos, expomo­nos à segunda. Apresenta­se, assim, a regra como uma disjuntiva lógica completa e, portanto, segundo a expressão de William James, como verdadeira opção forçada.

Necessário é convir, porém, e a observação é elementar, como ensina Rudolf Lehmann, que na proposição hipotética se pensa sempre na possibilidade de que não se cumpra a condição, do que resulta a possibilidade de outra síntese, não sendo os juízos disjuntivos senão aqueles que expressam essa possibilidade distinta.

Prosseguindo na explanação, a norma jurídica, para Cossio, bifurca­se. Nela existe uma norma medular, a endonorma, e uma protetora, envolvente, a perinorma. A endonorma corresponde à conduta lícita: dado o fato temporal, deve ser a prestação. A perinorma corresponde à conduta ilícita: não satisfeita a prestação, deve ser a sanção. Sem a perinorma a endonorma seria inócua. Se o dispositivo jurídico dissesse que, dado um fato temporal, deveríamos uma prestação, e nada mais, poderíamos negar a prestação, sem qualquer conseqüência. É para obrigar a satisfazê­la que ele protege a endonorma com a perinorma, que prevê uma sanção para a hipótese de ser recusada a prestação.

Comparadas as posições de Kelsen e Cossio, se admitimos que a plenitude de qualquer ordem jurídica provém do seu envolvimento por uma regra de liberdade (é permitido tudo que não é proibido), que Zitelmann considerou implícita, ainda que se lhe recuse a condição de preceito jurídico concreto, chega­se inevitavelmente à conclusão de que a primeira finalidade do direito é proibir o ilícito. Neste sentido procede a preponderância que Kelsen atribui ao dever primário (não fazer) e a importância do antijurídico para o Direito, no que, aliás, não se lhe pode predicar completa originalidade,

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uma vez que já Arthur Schopenhauer (1788­1860) afirmar que o conceito de ilícito é originário e positivo, enquanto que o de direito é derivado e negativo.

5.1.2 Caracteres

É discrepante a teoria, quando aponta os caracteres da norma jurídica. Trata­se, na verdade, de matéria substancialmente polêmica, porque a indicação decorre da posição doutrinária em que nos situarmos, relativamente ao entendimento que fizermos da natureza da norma.

Sem imergir na controvérsia, citaremos aqueles que, de um modo geral, são mencionados: bilateralidade, generalidade, heteronomia e coercitividade.

5.1.2.1 Bilateralidade

A bilateralidade é da sua essência, porque rege a conduta em interferência intersubjetiva. Pelo fato de que, no caso, se trata de conduta de um sujeito que entre em conflito com a de outro, imprescindível é que, sendo uma delas proibida, ao agente da oposta se confiram elementos para impedir o procedimento divergente. A norma jurídica impõe deveres e outorga direitos, ao contrário da moral que é unilateral, diz o que fazer, mas a ninguém dá a faculdade de exigi­lo.

5.1.2.2 Generalidade

A segunda característica da norma jurídica é a generalidade: prevê uma situação e vincula à ocorrência efetiva dela uma conseqüência. Num Código Penal lemos: matar, pena x; furtar, pena y. São hipóteses previstas de um modo geral, para uma generalidade de indivíduos. A norma não se dirige a um indivíduo ou a um grupo. Faz uma suposição genérica. Quem nela incide se sujeita à sanção cominada.

5.1.2.3 Exterioridade

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A terceira característica é a exterioridade. O dever que impõe é cabalmente cumprido pela simples prática de atos que coincidem com a determinação. Não indaga do aspecto subjetivo ou psicológico da conduta.

5.1.2.4 Heteronomia

A Quarta característica é a heteronomia. O dever é imposto como ordem estranha à deliberação dos súditos. Cumprimos fielmente um preceito jurídico porque ele assim nos manda, não por imperativo próprio.

5.1.2.5 Coercitividade

A última característica é a coercitividade. Se procedemos de maneira divergente do que exige, utiliza elementos de constrangimento para obter a conduta determinada.

5.1.2.6 Crítica

Passamos, agora, à análise desses predicados.

Em relação ao primeiro, nada há que dizer. A bilateralidade é reconhecida, sem discrepância, talvez como característica fundamental da regra de Direito.

Quanto às outras características, existe divergência.

A exterioridade, que se diz distingui­la da regra moral, pode ser contestada, em relação a ambas. Moral meramente intencional não tem sentido. E no Direito encontramos situações em que a norma não se contenta com a simples consideração do procedimento exterior do agente. Há conceitos jurídicos que só podem ser precisados, em cada caso, consoante a análise das intenções. Alguém mata e é absolvido; outro, é condenado. A conseqüência varia de acordo com a motivação da conduta. A noção de dolo (delito intencional), a culpa (delito em que não houve intenção, mas descuido), a de preterintencionalidade (delito de que resulta lesão maior do que a pretendida), a de legítima defesa, putativa (situação de quem pensa estar agindo em

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legítima defesa, sem estar, por ser ilusória a consciência da agressão), só se alcançam pela análise da conduta no seu aspecto subjetivo.

Também no Direito Civil ocorre algo semelhante: nos atos jurídicos, deve­se atentar mais para o que foi pretendido pelos agentes do que para o que está patente num documento.

Há, portanto, situações em que a incidência da regra jurídica presume o exame da conduta na sua interioridade.

O direito canônico conhece situação típica, na qual a interioridade da conduta é relevante em sua conseqüência jurídica. Trata­se da reserva mental, causa de anulabilidade matrimonial, que Von Tuhr, citado por Luiz José de Mesquita, define como uma divergência consciente e voluntária entre a declaração e a vontade, quando tacitamente o declarante não quer o que declara.

Predicado também recusado é o da generalidade. Há normas jurídicas gerais, mas também particulares, individualizadas, como as de um contrato, que somente se aplicam aos contratantes, a de uma sentença, que só alcança as pessoas envolvidas no litígio, etc. A própria lei pode ser individualizada, assim, a que concede isenção tributária para pessoa determinada.

Em se tratando da coercitividade, o problema torna­se mais complexo por ser ela que nos dá o perfil exterior, o traço de identificação da regra jurídica, permitindo­nos distingui­las, objetivamente, das demais.

Mas, para alguns autores, a coercitividade não é peculiaridade autônoma, mas mero corolário da bilateralidade. Se a norma jurídica não fosse bilateral, não seria coercitiva, pela ausência de ligação entre deveres e direitos. Outros chegam a afirmar, como faz Benedetto Croce (1866­1952), que a coercitividade de uma lei somente se pode admitir diante de um estado negativo de vontade e ação, pois ação e constrangimento são noções que reciprocamente se excluem.

Além disso, certas normas jurídicas são privadas de coercitividade, tais como as de Direito Internacional Público. Os Estados as cumprem enquanto querem e as violam quando lhes convém. Nem é preciso invocar o Direito Internacional Público, cuja situação é reconhecidamente sui generis. No

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próprio Direito Constitucional, há regras desprovidas de coercitividade, que traduzem simplesmente programas de ação política.

5.1.3 Classificação

As normas jurídicas classificam­se quanto ao sistema a que pertencem, quanto às fontes donde emanam, quanto ao seu âmbito de validade, quanto à sua hierarquia, quanto à sua sanção, quanto às suas relações de complementação e quanto à vontade das partes. São sete critérios distintos, podendo a mesma norma ser classificada debaixo de todos eles.

Diremos que uma norma é nacional, consuetudinária, geral, de vigência temporária, e assim por diante, considerando­a sob vários focos.

5.1.3.1 Sistema

A simples expressão norma jurídica é uma abstração. Não existe norma jurídica isolada, mas sempre integrando um sistema. Há normas de Direito brasileiro, concernentes ao sistema de Direito Positivo brasileiro; há normas de Direito americano, pertencentes ao sistema do Direito Positivo americano. O mesmo poder­se­ia dizer de uma norma de Direito francês, soviético, etc.

Havendo sistemas de regras jurídicas, elas podem ser internas e externas. Daí a sua divisão em nacionais e estrangeiras. A norma é nacional, quando pertence ao próprio sistema no qual está sendo considerada, e estrangeira, quando pertence a qualquer outro.

Em si mesma, porém, a norma não é nacional nem estrangeira. Um preceito de Direito brasileiro, para nós, é nacional, assim como um de Direito francês é estrangeiro. Mas essas normas, consideradas do ângulo oposto, são, respectivamente, estrangeira e nacional.

5.1.3.2 Fontes

Conquanto não haja uniformidade na indicação das suas fontes, é usual distribuí­las em legislativas, consuetudinárias, jurisprudenciais e doutrinárias,

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conforme derivem do Poder Legislativo, dos costumes, das decisões preponderantes dos tribunais ou da obra dos juristas.

As normas provenientes do Poder Legislativo recebem a denominação de leis.

Quando os próprios interessados, na ausência da lei, espontaneamente, criam normas que lhes permitem atuar de maneira disciplinada na regência das suas relações, são aquelas consuetudinárias.

A palavra jurisprudência é empregada em diversos sentidos. Pode ser usada como sinônimo de ciência do Direito ou de dogmática jurídica. Outras vezes, para identificar, genericamente, as decisões dos órgãos judiciais. No caso, significa as decisões reiteradas dos tribunais.

Cabe aos órgãos jurisdicionais dizer o Direito, e este é o sentido literal da palavra jurisdição. A lei presta­se, não raro, a entendimentos diferentes, donde se origina a divergência jurisprudencial, juizes e tribunais aplicando o mesmo preceito de modos diversos. Mas as decisões evoluem para uma certa coerência, até que se tornam reiteradas e idênticas. Do momento que se estabelece uma jurisprudência dessa ordem, ela torna­se praticamente obrigatória porque representa a compreensão autêntica da lei. Se tivermos, por exemplo, uma transação a fazer, a realizaremos tranqüilamente, desde que a subordinemos à regra jurisprudencial existente.

As regras doutrinárias emergem do trabalho teórico dos juristas, dedicado à interpretação e à sistematização do Direito Positivo.

5.1.3.3 Âmbito de validade

Conforme esquema mais amplo, as normas jurídicas também são classificadas de acordo com o seu âmbito de validade, isto é, seu limite de aplicabilidade.

A norma jurídica tem um âmbito de validade espacial, porque integra um sistema de Direito Positivo implantado numa determinada área. Por outro lado, é sempre de vigência temporária, sujeita à transformação dos processos históricos, tem começo e fim, e entre eles estende­se o âmbito da sua validade temporal. Além disso, certas normas jurídicas se destinam a todas as pessoas e

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outras somente a algumas. Têm, portanto, validade pessoal relativa. Também possuem validade material, porque o Direito Positivo comporta divisão departamental.

Quanto à sua validade espacial, as normas dividem­se em gerais e especiais. São gerais aquelas cujo campo territorial de aplicabilidade coincide com a própria área de implantação do sistema ao qual pertencem. Especiais, aquelas que só podem ser aplicadas numa parte dessa área.

No Brasil, república federativa e municipalista, há três ordens políticas e administrativas: a federal, a estadual, menor que a anterior, e a municipal, menor que as duas. A lei federal tem validade espacial geral, é aplicável em todo o território nacional. A estadual e a municipal têm validade espacial especial, são válidas apenas nos territórios respectivos.

Quanto ao seu âmbito de validade temporal, as normas são: de vigência indeterminada e de vigência determinada.

Esta classificação é particularmente válida para as leis. As de vigência indeterminada, mais numerosas, não têm termo final de duração prefixado. Somente quando surge lei nova é que esta revoga a anterior. Outras têm duração certa. Exemplo: a lei orçamentária. Encerrado o ano civil, ela fica automaticamente revogada, nos países em que o ano fiscal coincide com o civil. Assim também as leis que concedem moratória (prorrogação do vencimento de obrigações), que estipulam prazo determinado para o favor. E, ainda, aquelas cujo tempo de eficácia tenha ficado condicionado a um acontecimento futuro ou subordinado a uma situação provisória.

Quanto à validade pessoal, as normas podem tê­la: geral e individual, sendo, respectivamente, gerais e individualizadas, distinção já feita quando consideramos os caracteres da norma jurídica e analisamos o da generalidade.

Finalmente, as normas jurídicas têm um âmbito de validade material. O ordenamento jurídico divide­se em setores: Direito Constitucional, Administrativo, Penal, Processual, do Trabalho, Comercial, Civil, etc. As normas podem ser classificadas paralelamente a esses vários departamentos. Há regras constitucionais, somente válidas em matéria constitucional, administrativas, igualmente válidas apenas em matéria administrativa e, assim por diante, penais, trabalhistas, processuais, civis, comerciais, etc.

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5.1.3.4 Hierarquia

As normas situam­se em diferentes posições hierárquicas, o que previne a incoerência dentro do mesmo sistema. Quando conflitam, a inferior cede lugar à superior.

Em relação à hierarquia, podem ser: Constituição, leis complementares, leis ordinárias e regulamentos.

A Constituição, a norma da mais alta categoria, traça o contorno de um sistema de Direito Positivo.

Abaixo dela vêm as leis que se destinam a complementá­la, verdadeiros estatutos de suas instituições mais importantes. A sua enumeração é taxativa e só podem ser aprovadas por maioria absoluta, ou seja, pela metade mais um dos membros que compõem os colegiados legislativos.

Mais abaixo estão as ordinárias, comuns, votadas pelo Poder Legislativo por maioria simples, obtida sobre um quorum necessário para os trabalhos.

Em grau inferior, seguem­se os regulamentos, atos normativos do Poder Executivo. As leis, na maior parte dos casos, não têm a flexibilidade nem a casuística reclamada para a sua efetiva aplicação. Por isso, algumas exigem regulamentação, texto mais analítico, mais detalhado que, dentro da própria lei, dispõem sobre a sua aplicação.

O poder regulamentador é faculdade do Executivo para dispor sobre medidas necessárias ao fiel cumprimento das leis, dando providências que estabeleçam condições para tanto. Sua função é facilitar a aplicação da lei e, principalmente, acomodar o aparelho administrativo para bem observá­la.

Essas normas são todas hierarquicamente superiores umas às outras. A Constituição é superior à lei complementar, esta à ordinária e a última aos regulamentos. Se o regulamento atenta contra a lei, por proibir o que ela permite, conceder o que ela proíbe, ou, de qualquer maneira, dispor sem fazê­ lo nos seus limites, o seu emprego é recusado por eiva de ilegalidade. Se uma lei ordinária dispõe sobre assunto que devia ser objeto de lei complementar ou contra regra nesta contida, a sua aplicação é igualmente negada. E se uma lei complementar ou uma ordinária viola preceito constitucional, o seu emprego também é rejeitado por vício de inconstitucionalidade.

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Esta escala hierárquica, formulada em termos doutrinários, não coincide com a que é adotada pelo regime constitucional brasileiro atual.

5.1.3.5 Sanção

Quanto à sanção, as leis podem ser perfeitas, menos­que­perfeitas e imperfeitas, segundo critério proveniente do Direito romano.

Esta classificação é adequada apenas para as leis imperativas (jus cogens). A lei perfeita tem sanção exatamente paralela à sua finalidade, sendo esta, assim, perfeitamente alcançada. A prática de um ato contra a sua prescrição não conduz a qualquer resultado, uma vez que a lei o declara nulo. E o ato nulo, em sentido legal, é inexistente. A lei menos­que­perfeita não determina a nulidade do ato praticado contra seu preceito, apenas comina ao infrator um castigo. Assim era, por exemplo, no Direito romano, em relação à proibição de legados superiores a certo valor, exceto a algumas pessoas. O legatário ficava somente sujeito a restituir ao herdeiro o excesso, em quádruplo. As leis imperfeitas não acarretam a anulação do ato nem cominam pena a quem as desobedece. Ainda no Direito romano, o exemplo perfeito, segundo Vandick L. da Nóbrega, é o da Lex Cincia de Donationibus, que vedava, entre algumas pessoas, doações superiores a certo valor, mas não anulava as que fossem realizadas além do limite nem impunha pena aos transgressores.

5.1.3.6 Relações recíprocas

Quanto às suas relações de complementação, as normas são: primárias e secundárias. A que complementa outra, é secundária em relação a esta. Se uma lei tem sentido impreciso, de forma que cada tribunal a entende de um modo, cada autoridade a aplica em um sentido, e para sanar a inconveniência, elabora­se uma Segunda lei, que a esclarece. Esta lei, dita interpretativa, é secundária em relação àquela interpretada, a primária.

5.1.3.7 Modo de agir

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As normas jurídicas, finalmente, se classificam segundo sua posição diante da vontade dos interessados.

Sob este critério, são: absolutas ou permissivas, formando o que, no direito romano, se chamava jus cogens e jus dispositivum. As absolutas, sejam imperativas ou proibitivas, não admitem composição contrária ao que preceituam. As permissivas são interpretativas ou supletivas. Regulam certo negócio jurídico, mas os interessados gozam da liberdade de realizá­lo de outra maneira, de acordo com a sua vontade. Somente se silenciam é que prevalece o dispositivo legal, como se este tivesse sido adotado.

5.1.3.8 Conduta e organização

Há também, além das precedentes, uma classificação muito ampla das normas jurídicas que as considera em sua própria funcionalidade: normas destinadas a reger a conduta das pessoas, de cuja natureza vinculativa resultam direitos e deveres, e normas de organização, como as que dispõem sobre os órgãos do Estado, os serviços públicos, os regimes políticos, etc., distinção que, segundo Claude du Pasquier, é atribuída a W. Burckhardt.

Miguel Reale pretende que a existência de normas de organização invalida a teoria de Kelsen sobre a natureza da norma jurídica, por não poderem aquelas ser reduzidas, senão por artifício, à fórmula de juízos condicionais ou hipotéticos, apenas aceitável para as normas que se destinam a reger o comportamento humano. Machado Neto opõe­se à restrição de Reale, procurando mostrar que, ao contrário, qualquer norma jurídica pode ser apresentada como juízo disjuntivo. Além do mais, também em sentido oposto ao de Reale, poder­se­ia ponderar, como faz, embora não a esse expresso propósito, Recaséns Siches, que nem todo artigo de uma lei constitui um preceito jurídico, dado que há alguns que são apenas partes deste, determinando, apenas, alguns de seus elementos. Assim, por exemplo, o artigo que fixa a maioridade por si só não estabelece der algum, nem constitui um preceito jurídico: é uma condição comum e parte integrante de toda uma série deles. Além do mais, cabe por igual considerar que toda organização jurídica (normas de organização) é um sistema de direitos e deveres, não se devendo ceder à tentação de materializá­la, porque toda organização jurídica é organização de conduta humana, e esta, para o Direito, resolve, inevitavelmente, em faculdade ou dever.

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5.2 NORMA, SANÇÃO E COAÇÃO

As idéias de norma e sanção emergem, como corolários, das noções precedentemente expostas.

5.2.1 Elementos da norma

A norma jurídica encerra dois elementos: um ideal (validade) outro material (eficácia). Julgando a conduta humana, o faz por um valor que lhe serve de justificativa, em relação ao qual pode ser considerada justa ou injusta.

Mas, qualquer que seja seu índice de validade intrínseca, procura a norma ser eficaz, impor­se a quem obriga. Os meios de que se vale para esse fim são elementos de sua eficácia.

A dosagem desses elementos nem sempre é adequada. Algumas normas têm validade máxima e eficácia mínima, outras, inversamente, eficácia total e nenhuma validade. Exemplo das primeiras é a regra de Direito Internacional público que prescreve a igualdade jurídica dos Estados, desconhecendo a sua situação relativa de poderio e debilidade. É indiscutível a aquiescência universal a ela, inegável a sua correspondência com os princípios fundamentais da justiça internacional. No entanto, a sua infringência é reiterada, impondo­se os Estados militar e economicamente mais fortes aos mais fracos. Ao contrário, uma norma repudiada pela comunidade pode lograr plena eficácia, se amparada em dispositivos irresistíveis de poder.

Hígida é a norma jurídica na qual ambos os elementos se compensam e reciprocamente se sustentam.

Aqui, temos empregado o vocábulo validade em sentido axiológico, como significativo do valor inerente a qualquer norma de conduta e, portanto, também à jurídica.

Por apego a essa validade ideal, o Tribunal Constitucional da República da Alemanha Ocidental, aludindo ao período de nacional­socialismo, proclamou ser necessário que os tribunais tivessem a possibilidade, em certas circunstâncias, de dar preferência ao princípio da justiça sobre o da ordem

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pública, admitindo que, quando há extrema violação àquela, a lei deve ser declarada inválida.

Enleada no mesmo problema e também no período posterior a Adolf Hitler (1889­1945), a Corte Suprema decidiu pela existência do direito de resistência a mandamentos legais intoleráveis, tal como o que determinava a qualquer pessoa que dispusesse de uma arma que matasse os desertores do serviço militar, independentemente de processo.

Nessas circunstâncias, debateu­se o problema de validade das leis em termos axiológicos.

Mas, em outro sentido, as expressões validade e eficácia também se confronta, como elementos de qualquer norma jurídica, dando à primeira um entendimento diverso.

Sendo a ordem jurídica autônoma e cerrada, o fundamento de uma norma não podendo ser senão outra, válida é a norma elaborada de acordo com a delegação e o procedimento autorizados por outra que lhe seja hierarquicamente superior. Assim, a lei tira a sua validade da Constituição, o decreto, da lei, as sentenças e as normas contratuais, do decreto e da lei.

Também nesta significação validade e eficácia distinguem­se, podendo quase coincidir ou distanciar­se. Uma lei, elaborada no limite da Constituição, é, sem dúvida válida. Pode ser, talvez por circunstâncias ligadas à dificuldade de sua aplicação ou completo repúdio popular, minimamente eficaz. Uma sentença, igualmente exarada nos limites legais, é válida mas, se se contrapõe obstáculo irremovível à sua execução, nenhuma eficácia terá.

A distância relativa entre validade e eficácia, no tocante às normas gerais, não pode exceder certo limite. Assim, a validade de uma ordem jurídica, considerada esta como um sistema integrado, não em relação a uma norma isolada, tem por condição, reconhece­o Kelsen, certa eficácia, o que significa, no caso, uma relação de correspondência entre a norma e a conduta real. Como escreve o fundador da Teoria Pura, validade e eficácia são duas qualidades perfeitamente distintas; não obstante, há certa conexão entre elas. A jurisprudência considera uma norma jurídica como válida somente se pertence a uma ordem jurídica que seja eficaz em geral. Isto é, se os indivíduos cuja conduta é regulada pela ordem jurídica se comportam, no principal, de acordo com o prescrito por ela. Se uma ordem jurídica perde a

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sua eficácia por qualquer causa, então a jurisprudência já não considera as suas normas como válidas.

5.2.2 Norma e sanção

Toda norma tem sanção, porque dispõe sobre a conduta em liberdade e nem há sanção que não seja de norma.

Às vezes, ouvimos que a norma jurídica se diferencia das demais porque é sancionada. Isto é um equívoco. Toda norma é sancionada, porque infringível. A conduta sujeita a uma condição inevitável não pode, sob este aspecto, ser objeto de norma. Pressuposto desta é a possibilidade de não ser cumprida.

Com base nestas noções, pode­se afirmar que entre as idéias de norma e sanção existe uma inseparabilidade lógica, não meramente fática. Daí ser inadequado dizer, como habitual, embora isso facilite o entendimento, que a sanção é um elemento que se acrescenta à norma. Assim não é. Ela é integrante da regra, o que fica, ademais, perfeitamente evidenciado quando se analisa a estrutura da norma jurídica, seja conforme o entendimento de Kelsen, ou de Cossio.

Em que consiste a sanção em si mesma? Também aqui a concepção comum é a de que ela é a promessa de um mal. Certo que este é um dado da experiência mas não basta para um conceito teórico, porque a idéia de mal importa uma referência axiológica, ainda que precária, o que a desloca do plano científico para o filosófico. Não pode, assim, servir de base para um conceito de sanção, nos quadros da ciência do direito. Por outro lado, a própria sanção aparentemente mais maligna, como é a penal, pode ser vista como um bem, se temos em conta que atua como causa de recuperação do delinqüente.

Por isso, na doutrina mais moderna, procura­se alcançar uma idéia de sanção em termos lógicos, distanciados da vivência dos atos em que ela importa. Assim, Máynez limita­se a defini­la como a conseqüência jurídica que o não­cumprimento de um dever acarreta para o obrigado. Kelsen a caracteriza como a privação coativa de certos bens (vida, liberdade, patrimônio). E Cossio, com apoio na sua teoria egológica, a conceitua como dado jurídico que opera prescindindo da liberdade do indivíduo, ao contrário da prestação que apenas se realiza por ato livre do obrigado.

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5.2.3 Sanções

A moral religiosa ameaça com um castigo sobrenatural. A moral comum tem a sua sanção: o remorso. Praticamos ou deixamos de praticar um ato – assim dizemos – para ficarmos em paz com a nossa consciência. Cumprimos a norma convencional, sob a ameaça dos comentários alheios, do banimento de certos círculos, para evitar, finalmente, o constrangimento que nos acarreta sua infração.

A diferença, em relação à norma jurídica, está em que a sua sanção é compulsória, não depende de nós, mas de elementos exteriores, que nô­la impõem coercitivamente.

5.2.4 Norma sancionada e norma sancionadora

Norma e sanção distinguem­se, embora integrem uma unidade lógica. Lembramos a lição de Cossio: a norma jurídica prevê um fato ao qual corresponde uma conduta e, concomitantemente, se a conduta não segue ao fato, uma sanção.

Logo, a norma é, realmente, um enlace de duas normas. A fusão destas é tão perfeita que parecem ambas formar uma só. Mas há, em verdade, duas: a endonorma (o que se deve prestar em decorrência de um fato) e a perinorma (ao que se fica exposto quando se nega a prestação).

Uma norma impõe um dever quando ocorre certo fato temporal, e outra, uma sanção, se o dever, a despeito do fato, não é prestado.

A existência, em cada proposição jurídica, de duas normas, é também evidenciada por Kelsen, pela distinção entre regra primária e secundária.

A essa duplicidade correspondem dois deveres: um principal e outro secundário.

Na teoria de Cossio, o principal é o conteúdo da endonorma: deve ser a prestação. Da perinorma resulta o dever secundário: deve ser a sanção.

No casamento, exemplo agora repetido, a obrigação de assistência é recíproca entre os cônjuges. Se um deles deixa de cumpri­la, viola o dever

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principal. O outro tem, então, a faculdade de exigir o dever secundário, uma pensão alimentícia.

A regra prevê dois deveres, entre os quais os cônjuges podem optar.

O dever principal é o conteúdo da norma e o secundário, o da sanção, a seu turno, também uma norma. A endonorma é a norma sancionada e a perinorma, a sancionadora.

5.2.5 Coação

Para eliminar a força da solução dos conflitos, elucida Francesco Carnelutti (1879), o direito, em última instância, somente da força pode servir­ se.

A coação está para a sanção assim como esta para a norma. Quem não acata a norma sofre a sanção, quem não aceita a sanção sofre a coação.

A coação é a última linha de resistência da eficácia do preceito. Roberto de Ruggiero a considera o remédio extremo a que o direito recorre para obter a sua observância.

No exemplo das pessoas casadas, se o dever de assistência recíproca não é observado, nem prestada a pensão alimentícia, o cônjuge omisso sofrerá uma coação, que poderá ir desde o mero desconto em seus ganhos até sua prisão.

A coação efetiva a sanção. Pode­se infringir o dever principal, porque para ele há um sucedâneo, que é a sanção, dever secundário. Mas não se pode transgredir o secundário, sujeitos que estamos a cumpri­lo coativamente.

A sanção atua psicologicamente, porque, em regra, para preveni­la, o indivíduo acata o dever principal. A coação também atua psicologicamente, porque o indivíduo, para fugir à violência, submete­se a ela.

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5.3 SANÇÕES JURÍDICAS

A norma jurídica desfruta de uma sanção dotada do máximo de eficácia.

5.3.1 Caracteres

Ela ostenta dois predicados que as demais não possuem: organização e coercitividade.

5.3.1.1 Organização

É organizada porque existe um órgão específico para aplicá­la (órgão sancionador) e porque é predeterminada.

A organização, portanto, resolve­se em dois atributos: órgão sancionador e predeterminação.

Em época recuada, não havia, propriamente, órgão sancionador. Referimo­nos ao tempo da vingança privada. O indivíduo atingido pela infração de uma regra jurídica, tinha a faculdade, também jurídica, de tomar, ele mesmo, desforço contra o ofensor. Com a marcha da civilização, a sanção jurídica deixou de ser disponível para qualquer um. É o que se retrata na frase: ninguém pode fazer justiça pelas próprias mãos. A pessoa injustiçada tem de apelar a uma entidade que aplique a sanção: o Estado, que dispõe do monopólio da coação.

Organizada é, também, a sanção jurídica, pela sua predeterminação. Ao infringirmos uma norma jurídica sabemos, na sua justa medida, da sanção que nos atingirá. Ela é fria e matematicamente quantificada.

A sanção moral varia de pessoa para pessoa. Indivíduos que praticam o mesmo ato moralmente censurável sofrem conseqüências diferentes. Um pode ser mais sensível à própria dor íntima, outro menos e um terceiro completamente insensível. A infração de uma regra convencional pode ser, em relação a certa pessoa, julgada severamente e, em relação a outra, benignamente considerada, tolerada e até consentida.

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A sanção jurídica é sempre igual para a mesma transgressão. Isso é verdadeiro em todos os ramos do direito, porém mais evidente no penal, que indica exatamente a pena a que nos exporemos se cometermos um delito.

5.3.1.2 Coercitividade

A sanção jurídica é coercitiva, dado que a sua aplicação prescinde do concurso do infrator, é autárquica, apoiada em elementos de poder, que asseguram sua efetivação por constrangimento.

A doutrina, com alguma sutileza, distingue, na coercitividade, a coercibilidade e a coerção. A coercibilidade é a mera possibilidade de coerção, e a coerção é a coercitividade atuante. A coercibilidade é o aspecto psicológico da coercitividade. Se certo ato acarreta efeito danoso, o homem deixa de praticá­lo, vencido pelo efeito psicológico da sanção. Não atuando a coercibilidade, surge o constrangimento efetivo, a coerção real, melhor, o emprego físico da força contra o infrator para lhe impor a sanção.

J. Flóscolo da Nóbrega entende que a coercibilidade (possibilidade de coação) é que é da essência da norma jurídica, invocando a situação das regras de direito internacional público.

5.3.2 Classificação

Citaremos duas classificações das sanções jurídicas.

A primeira toma para referência a natureza da norma sancionada, é mera enumeração: as sanções são distribuídas de acordo com as normas a que correspondem. A segunda obedece ao critério de relação entre o dever principal e o secundário. Somente esta tem natureza lógica.

5.3.2.1 Relação com a norma sancionada

As normas de Direito, aliás já observamos, grupam­se em consonância com sua finalidade típica. Algumas organizam politicamente o Estado, são as constitucionais. Outras dispõem sobre o funcionamento da administração pública, são as administrativas. Há as que prevêem crimes e penas

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correspondentes, são as de Direito Penal. Poderíamos prosseguir, citando as trabalhistas, processuais, civis, comerciais, etc.

Assim como há uma certa peculiaridade das normas de cada um desses setores, há igual peculiaridade das respectivas sanções: sanções típicas de Direito Penal, de Direito Constitucional, de Direito Administrativo, de Direito Civil, de Direito Comercial, etc. Exemplificando, a pena é uma sanção típica do Direito Penal, o impeachment, que destitui por via de julgamento legislativo os titulares das funções executivas, uma sanção própria do Direito Constitucional. A demissão, uma sanção caracteristicamente disciplinar. A indenização, uma sanção de Direito Privado.

Embora seja maior a importância de certas sanções, em áreas determinadas de cada sistema de Direito Positivo, algumas são comuns a várias, ou a todas, como a nulidade, encontrada em qualquer ramo do Direito. Há, portanto, impropriedade em se classificarem as sanções consoante a natureza da norma sancionada, conquanto tal procedimento nos leve a conhecer as suas modalidades mais comuns e a sua incidência mais usual nos diversos setores em que se dividem os sistemas de Direito Positivo.

Sob este critério, as sanções são classificadas em tantos grupos quantas são as disciplinas jurídicas particulares. Citando apenas as tradicionais, cuja autonomia não é contestada, as sanções podem ser: constitucionais, administrativas, penais, processuais, trabalhistas, civis e comerciais.

5.3.2.2 Sanções penais

São aflitivas e quase sempre consistem na privação de um direito.

Entre elas estão as penas corporais, castigos físicos, sendo as penas privativas da liberdade mais comuns no Direito Penal moderno, divorciado da inspiração de vingança, que durante muito tempo o influenciou. Podem estas ser cumpridas em vários regimes, cuja indicação seria inadequada aqui.

O infrator da lei penal também pode ser privado de outros direitos, até daquele que é a condição dos demais, o direito à vida, bem como do de exercer uma atividade, de desempenhar uma função, de estabelecer contratos com a administração, etc.

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Há sanções penais pecuniárias, que exigem o pagamento de certa importância a título de multa. São penas, no geral, complementares de outras mais pesadas, ou para infrações leves, que não justificam sanção mais onerosa.

5.3.2.3 Sanções disciplinares

Citaremos unicamente as que a administração pública aplica aos seus servidores: prisão, demissão, suspensão, repreensão e advertência.

A prisão é decretada pela autoridade administrativa, sem que o Poder Judiciário possa rever o ato, a menos que violada alguma formalidade legal. Aspira menos a punir do que impedir que o transgressor, em liberdade, prejudique a investigação.

A demissão é a expulsão do infrator do quadro de servidores públicos. Pode ser simples e a bem do serviço público, esta mais grave, porque acarreta impedimento de retorno ao serviço.

A suspensão é a interrupção do exercício, com privação das suas vantagens.

A repreensão é uma censura, e a advertência, simples reparo, visando a evitar falta futura.

5.3.2.4 Sanções privadas

As usuais são a execução forçada, a nulidade e a compensação.

Consiste a execução forçada em sujeitar o agente da infração a praticar o dever a que se recusou, sob pena de executá­lo por ele o órgão sancionador.

Se o contribuinte não paga um imposto, é forçado a fazê­lo. O mesmo ocorre com o pagamento de qualquer dívida de dinheiro. O Estado, em benefício prejudicado, vende os bens do devedor, apura o resultado e entrega ao credor o que lhe cabe.

Há formas ainda mais características desse tipo de sanção. Alguém, vendendo um bem imóvel a prazo, que findo o pagamento das prestações,

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recusa­se a assinar o documento definitivo da transação, pode o comprador pedir ao juiz que lhe expeça o título respectivo.

A nulidade existe em todos os campos do Direito, porém é mais comum no Direito Privado. Retira totalmente do ato qualquer eficácia. Ato nulo, juridicamente, é como se não existisse. Há o desrespeito à norma, mas a violação é inoperante, porque o ato praticado não aproveita ao seu autor.

A compensação confere à pessoa prejudicada pela infração o resultado econômico que teria obtido, se o dever houvera sido cumprido. Por exemplo, alguém compra uma mercadoria, por x, para recebê­la a 30 dias. Na data aprazada, ela está custando x mais y. Se o comprador a recebesse e vendesse pelo preço atualizado, lucraria y. Se o vendedor não entrega a mercadoria e o comprador acaso tinha o compromisso de fornecê­la a terceiro, é obrigado a adquiri­la por x mais y, perdendo duas vezes y na transação. Não podemos exigir do vendedor a entrega, mas nos é lícito obter dele importância correspondente à que o comprador lograria, caso o compromisso fora respeitado.

5.3.2.5 Sanções fiscais

São cominadas aos infratores da legislação tributária.

As principais são: execução forçada, multa, suspensão de atividade e proibição de relações com a administração pública.

A execução forçada, no Direito Fiscal, é a mesma sanção que, sob essa denominação, já estudamos no Direito Privado.

As demais sanções são tipicamente fiscais.

A multa não tem natureza compensatória, sim penal, tão pesado seu valor na generalidade das infrações

A suspensão de atividades e a proibição de relações com a Administração Pública são compreensíveis pelo seu simples enunciado. Algumas atividades dependem de permissão administrativa. Nesse caso, seu exercício pode ser suspenso se o Poder Público cessa o licenciamento. Da recusa de relações com a Administração resultam danos, que podem consistir

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na impossibilidade de participar de concorrências públicas, de fazer fornecimentos à Administração, e, às vezes, de obter crédito em estabelecimento do Estado ou nos quais ele tem participação.

5.3.2.6 Relação com o dever principal

A classificação de sanções adotada por Garcia Máynez tem rigoroso fundamento lógico. Dispõe­nas de acordo com um critério que as reúne na sua totalidade: o da relação entre o dever principal e o secundário.

A norma jurídica, já vimos, bifurca­se: uma determina o dever principal, a conduta lícita, outra, o dever secundário, que só se impõe quando praticada a conduta defesa ou não prescrita.

Esses deveres podem ser distintos ou idênticos.

Às vezes, o dever secundário imposto pela norma sancionadora tem o mesmo conteúdo que o principal exigido pela norma sancionada. Nesse caso, a sanção é coincidente, isto é, coincide com a norma.

Esta é, por excelência, a sanção jurídica. A regra jurídica, quando prescreve ou proíbe uma conduta, almeja obter realmente a conduta recomendada ou a abstenção da proibida.

Como essa pretensão é peculiar à norma jurídica, são comuns as sanções coincidentes. É o caso da execução forçada, cujo mecanismo já expusemos.

Nem sempre, porém, pode a norma jurídica impor sanção desse tipo. Quando assim, o dever secundário, decorrente da norma sancionadora, é uma espécie de sucedâneo do principal, procedente da norma sancionada. Nesta circunstância a sanção é não­coincidente. Duas são as suas modalidades: compensação e pena.

A sanção compensatória, já citada, indeniza o prejudicado do que perde ou deixa de ganhar pela inexecução do dever principal.

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A sanção penal é a que mais desafina do dever principal. Não pode levar o infrator a cumpri­lo, irremediavelmente descumprido que fica pela infringência, nem compensa o dano sofrido.

Cossio aplaude a classificação de Máynez, mas diverge do seu enquadramento. Sustenta que a execução forçada e a indenização integram um gênero comum. Ambas procuram a igualdade: o igual pelo igual e o igual pelo equivalente. Num gênero à parte situa as sanções penais, caracterizadas pela irracionalidade.

5.3.3 Medidas de segurança

Em complemento ao estudo das sanções, devem ser abordados outras idéias a ela de algum modo vinculadas.

Há medidas jurídicas que, pelo seu conteúdo, aparecem como sanções, sem o ser. Privam a quem atingem de certos direitos, sem que a sua imposição decorra da não­prestação. Referimo­nos às medidas de segurança.

As sanções são repressivas, as medidas de segurança preventivas. Aquelas sucedem e estas antecedem à infração.

Embora o conceito positivo de medida de segurança esteja contido na esfera doutrinária do Direito Penal, a sua significação é mais ampla. Assim, o internamento de um alienado em nosocômio não importa o julgamento do seu estado e da sua eventual conduta à luz de qualquer preceito de Direito Criminal. Mas a providência, em si, tem caráter preventivo.

É naquele departamento do Direito, porém, que esta instituição jurídica tem­se divulgado, ainda que timidamente, pois, na maior parte dos países, a sua aplicação não pode ser feita senão a quem haja efetivamente infringido a legislação penal. No Brasil, a medida de segurança somente é aplicável post delictum e pressupõe a periculosidade do agente. Visa, na definição de Ataliba Nogueira, a proteger a sociedade contra determinado indivíduo perigoso, imputável ou não, punível ou não, colocando­o na impossibilidade de praticar, novamente, fato definido como crime ou contravenção.

Em certos casos a periculosidade é presumida, devendo a medida ser imposta sempre: criminosos alienados, reincidentes em crime doloso,

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participantes de quadrilhas de malfeitores, etc. Em outros, a sua necessidade dependerá do convencimento do juiz, através do exame que fizer da personalidade do delinqüente e dos motivos e circunstâncias do delito.

Devemos observar, com Werner Goldschmidt, que a medida de segurança tem sempre em mira prevenir um futuro delito e nisso encontra sua justificativa, não naquele que haja sido efetivamente perpetrado. Por isso, é perfeitamente distinta da pena, ainda que Basileu Garcia comente, em contrário, que quem a cumpre a recebe como castigo.

O Direito Penal brasileiro prevê as seguintes medidas de segurança: internação em manicômio judiciário, em casa de custódia e tratamento, em colônia agrícola ou instituto de trabalho, de reeducação ou de ensino profissional, liberdade vigiada, proibição de freqüência a determinados lugares e exílio local.

5.3.4 Sanção premial

Tal instituição somente de algum tempo para cá vem merecendo exame, embora tenha sempre existido nos ordenamentos jurídicos.

Aparentemente, os vocábulos sanção e prêmio repelem­se, parecendo ilógica a expressão sanção premial, tão certo é aceitar­se tenha aquela caráter punitivo, não podendo, assim, consistir na promessa de um benefício.

Há normas, porém, que, para lograrem eficácia, prometem uma recompensa. Diz­se que a sua sanção é uma vantagem. As leis fiscais comumente favorecem com um desconto ao contribuinte que atender por antecipação o pagamento do imposto devido. Para estimular atividades em cujo exercício o Estado está interessado, embora pouco atraentes para a iniciativa privada, oferecem as leis proveitos para quem as promove. A atual legislação brasileira de incentivos fiscais para investimentos em certas áreas econômicas tem natureza premial. Pode, ainda, o Estado desejar fomentar as letras, as artes e as ciências. Não dispondo de recursos de constrangimento para fazê­lo, cujo êxito, ademais, seria duvidoso, premia quem se entrega à sua realização. Finalmente, os atos de altruísmo podem, também, suscitar justa retribuição, na medida em que manifestam a aprimorada formação ética de quem os pratica, fazendo seus agentes jus a uma recompensa. Em todas essas

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circunstâncias, as normas emuladoras de tais procedimentos têm sanção premial.

Dir­se­ia, numa tentativa de situar a sanção premial no seu justo lugar, que a conduta do homem pode se desenvolver em três níveis diferentes. Num deles, limita­se a dar a prestação exigida pela norma, que a ela se mostra indiferente, sem punir nem premiar. Em outro, recusa a prestação, e a norma reage, usando a sanção. Num terceiro, a prestação é cumprida além do estritamente exigido ou o ato em si mesmo não é objeto de exigência, e a norma compensa o agente. Seria, na mesma ordem, o caso do contribuinte que paga o imposto no prazo, do que não o paga ou o faz com atraso e do que o paga com antecipação.

Alguns autores consideram o prêmio modalidade de sanção. Admitem, portanto, uma sanção punitiva (sanção propriamente dita) e uma sanção premial (recompensa). Esta é a posição de Llambias de Azevedo, para quem as retribuições ou sanções chamam­se penas ou castigos, quando consistem em males, e prêmios ou recompensas, quando consistem em bens. Essencial do direito seria a retribuição, que tanto pode ser um castigo como uma recompensa.

Do mesmo modo, Giuseppe Maggiore (1882­1954) opina que a sanção, corretamente entendida, é simplesmente o r3esultado da adequação ou da inadequação à lei. Tanto pode ser um mal que segue à transgressão como um bem que sucede à obediência. E constrói, paralelos, uma teoria do ato ilícito, cujo correspondente é o castigo, e do ato meritório, cujo fruto é o prêmio, ambos contidos no conceito genérico de sanção.

Mario Alberto Copello, em monografia que Cossio considerou o mais perfeito trabalho sobre o tema, depois de criticar em profundidade a tese de Maggiore, conclui que entre sanção e prêmio há uma completa e radical diferença, não podendo ser situados como espécies de um gênero. Sua opinião radica, basicamente, na afirmativa de que a sanção tem seu fundamento na perinorma, enquanto o prêmio o tem na endonorma. Figura ele, assim, a norma jurídica, segundo a estrutura de Cossio, já citada. O prêmio é retribuição da endonorma, a cuja execução se empresta caráter atrativo, e a sanção é a retribuição da perinorma. São portanto, entidades jurídicas autônomas.

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Sem referência direta ao problema, mas com evidente repercussão nele, lembra Roberto José Vernengo que as técnicas de socialização (mecanismos de motivação da conduta socialmente requerida para o papel que cada indivíduo cumpre) são de dois tipos: gratificantes e punitivas.

Mediante gratificações e punições a sociedade controla o comportamento dos seus membros.

É possível obter que um indivíduo cumpra a ação socialmente devida, segundo o papel que desempenha, gratificando­o com prestígio, benefícios materiais, segurança psicológica, prêmios etc. Ou o controle da conduta dos membros de uma sociedade se efetua castigando­se condutas desviadas, seja com o repúdio moral dos outros membros do grupo, o isolamento do infrator, o castigo físico, as privações patrimoniais, etc.

Debaixo desse critério, sociologicamente irrecusável, sanção e prêmio seriam técnicas de eficácia comuns a todas as normas de convivência.

5.4 FONTES DO DIREITO

A expressão fontes do direito pode ser empregada em sentidos diversos, o que, em parte, responde pelas discrepâncias da doutrina sobre o tema.

5.4.1 Acepções

Dela daremos o sentido sociológico e o jurídico, este nas suas mais comuns significações.

Sociologicamente, fontes do direito são as vertentes sociais e históricas de cada época, das quais fluem as normas jurídicas positivas.

Como fato social, o direito emerge das tradições, dos costumes, das praxes, das convicções, das ideologias e das necessidades de cada povo em cada tempo.

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As fontes sociológicas são também chamadas fontes materiais do Direito e são constituídas por elementos emergentes da própria realidade social ou dos valores que inspiram qualquer ordenamento jurídico. Entre as primeiras desatacam­se os fatores econômicos, cuja importância foi enfatizada por Karl Marx (1818­1883) e Stammler, representados pelas estruturas econômicas, crises etc.; os religiosos, atuantes no direito de família; os morais, cuja influência no Direito moderno eqüivale à dos religiosos no Direito antigo; os políticos, decorrentes da natureza do regime de cada Estado; e os naturais (secas, geadas, clima, raça, flora, fauna etc.).

Quando, dado um certo direito positivo, procuramos alcançar os elementos sociais que atuaram ou atuam como fatores de sua produção, nossa pesquisa tem por objeto as fontes do direito consideradas em sentido sociológico.

Juridicamente, a expressão pode ser utilizada sob três acepções: filosófica, formal e técnica.

Na acepção filosófica, cogitar de fontes de direito redunda em julgamento crítico das suas matrizes sociais, tal como faz Del Vecchio. O direito é produto de várias influências e sínteses de diversos elementos. É trabalho dos próprios interessados que criam o costume, obra do legislador que intencionalmente produz normas e empreendimento dos juizes e tribunais que, ao aplicá­lo, entregam­se a uma tarefa verdadeiramente criadora, cujos frutos são critérios uniformes de entendimento, válidos como normas gerais, e ainda resultado da doutrina dos jurisconsultos, cujas lições motivam a jurisprudência e o legislador e orientam os interessados.

Daí a indagação: desses vários elementos que integram a ordem jurídica, qual é o mais autêntico, genuíno e preferível? A resposta obriga a uma consideração estimativa daquelas fontes e, por isso, é filosófica. Quando a escola histórica, por exemplo, ensina que o direito, por excelência, na sua mais pura legitimidade, está nos costumes de cada povo, sua posição em relação a essa fonte é filosófica.

Na acepção formal, consideramos as fontes do direito sob o aspecto da sua validade. Repousando a validade de uma norma sempre em outra, a fonte de uma é a precedente que lhe serve de suporte (ver item 5.2.1).

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Na acepção técnica, fontes do direito são as instâncias havidas, numa sociedade, como autorizadas para julgar da conduta em interferência intersubjetiva. A estimativa da conduta não podendo ser arbitrária, há de ser feita mediante paradigmas aceitos pela sociedade, provenientes de entidades ou instâncias a que atribui legitimidade para elaborá­los. Estas, a seu turno, assinala Julio Ayasta González, atuam observando regras adequadas e inspiram­se em matrizes de opinião.

Neste sentido, quando perguntamos o que são fontes de direito, cogitamos, exatamente, dos órgãos de cuja atividade resulta a produção de modelos de estimativa jurídica. Assim, se temos um negócio a praticar e indagamos de que maneira ele deve ser feito, essa interrogação implicitamente encerra outra: em que fontes encontrar as normas aplicáveis ao negócio? Ao jurista compete procurar a regra, que encontrará numa fonte de produção. Irá à lei, aos arquivos de jurisprudência, aos tratados doutrinários, e só de posse dos elementos colhidos orientará a questão. Tudo isso eqüivale a ir a uma fonte para trazer a regra. É por isso que Claude du Pasquier, considerando a expressão fontes de direito, entende­a como uma metáfora bastante adequada, porque, explica, remontar às fontes de um rio é procurar o local onde suas águas nascem; igualmente, inquirir sobre a fonte de uma regra jurídica é procurar por onde ela saiu das profundidades da vida social para aparecer à superfície do Direito.

Alguns autores (entre nós Limongi França e Amauri Mascaro do Nascimento) preferem usar a palavra forma (ou a locução forma de expressão), em vez do vocábulo fonte, acreditando aquela mais adequada. Argumentam que as fontes reais e primeiras do Direito Positivo (parte principal) são a atividade estatal e a popular, que criam a lei e o costume, respectivamente. Em conseqüência, lei e costume não são mais do que formas de expressão do direito gerado pelo Estado e pela consciência popular, segundo o ditame das necessidades sociais. Como a jurisprudência e a doutrina não seriam senão formas da atividade dos tribunais e dos doutos.

Entendemos que a controvérsia ocorre por mera dualidade de enfoques pelos quais o tema é tratado. Com efeito, o mesmo dado, digamos a lei, pode ser considerado do ponto de vista de sua geração e do ponto de vista de sua aplicação. Do primeiro, aparece­nos ela como resultado de uma atividade e, portanto, como sua forma cristalizada numa norma escrita. Como produto final de um trabalho ela é a forma acabada do seu resultado. Mas o jurista, ao examinar o caso pendente de solução, já irá encontrar a lei definitivamente

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elaborada. E a ela recorrerá, assim, como a uma fonte capaz de lhe ministrar a solução desejada.

A mesma dualidade de posição justifica a divisão das fontes em materiais e formais.

As fontes de produção podem ser originárias e derivadas.

As derivadas são limitadas umas pelas outras: a jurisprudência pela lei, a lei pela Constituição.

O juiz, ao proferir sentença, não pode exorbitar do limite legal. O legislador, ao formular a lei, há de se haver, também, no limite da competência que lhe outorgou a Constituição.

A liberdade criadora da fonte originária é ilimitada, não está contida num âmbito de competência traçado por outra. Quando um movimento insurrecional quebra a continuidade histórica do Direito Positivo, o poder revolucionário, extraindo sua legitimidade e autoridade do próprio fato de ser poder, atua como fonte originária. Cabe­lhe constituir uma ordem jurídica nova. Implantada uma Constituição, cessa a fonte originária, porque o próprio poder de reforma constitucional deriva da Constituição, tal como o dos legisladores e o dos juizes.

5.4.2 Divisão

As fontes derivadas são: lei, costume, jurisprudência e doutrina.

A ordem em que estão citadas não é arbitrária. Obedece a uma gradação, de forma a dividi­las em fonte imediata e fontes mediatas.

A consulta às fontes de direito deve ser sistemática e progressiva. Só podemos passar à Segunda, quando exaurida a primeira, e assim por diante.

O jurista não pode dirigir­se a um tratado teórico, para responder a uma consulta, ou guiar­se de início pela jurisprudência. Seu primeiro dever é ir à lei, para procurar a solução, não apenas tratando­a na sua superficialidade gramatical, na sua significação literal, mas na sua normatividade latente e

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implicações implícitas. Somente se não encontra solução nela, passa ao costume, depois à jurisprudência, e, por último à doutrina.

Dessa sucessão decorre que uma das fontes é imediata, principal, aquela a que em primeiro lugar nos dirigimos: a lei. As demais são consultadas na ausência de regra legal, servem para suprir as omissões da lei, expurgá­la de incoerências, eliminar as suas obscuridades e dar­lhe um sentido unívoco. São fontes mediatas.

5.4.3 Lei

Lei é uma norma geral, escrita, coercitiva, que obedece a um processo peculiar de elaboração, proveniente de entidade competente. Neste conceito há quatro elementos: um material, a generalidade, e três formais, o processo, o caráter escrito e a entidade da qual provém. Qualquer regra jurídica sem um desses elementos não é lei, ou seja, se não tem caráter geral, se não é escrita, se elaborada em desacordo com o processo constitucional (causa de sua nulidade, explica Francisco Campos) ou procedente de outro órgão que não o legislativo.

A lei prevê uma situação para uma universalidade de pessoas, não se dirige a alguém isoladamente. É atingido pela conseqüência quem quer que se enquadre na hipótese prevista. Nisso consiste a sua generalidade, que é o seu elemento material.

Hoje, já o vimos, não se aceita ser a generalidade atributo essencial da lei, porque há leis individualizadas: as que concedem permissão para uma atividade, as que outorgam isenção tributária para pessoa determinada e outras.

Por esse fato mesmo, costuma­se fazer distinção entre lei em sentido material e lei em sentido formal. Em sentido material é a que, além dos requisitos formais, também dispõe do material, a generalidade. Em sentido formal, é a que não tem o atributo da generalidade, mas desfruta dos demais: é escrita e elaborada pelo Poder Legislativo, através de processo adequado.

5.4.3.1 Problemas de elaboração

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A elaboração legislativa suscita problemas, ligados, principalmente, à extraordinária importância atual da lei como fonte de direito.

Nos países de organização democrática, cabe ao Congresso, eleito por sufrágio popular, a elaboração legislativa. O Congresso não é um órgão técnico, mas político, por ser a investidura dos seus componentes feita por sufrágio. A característica de um órgão político é ser representativo de interesses. Daí ser sem fundamento a crítica habitualmente feita à incompetência intelectual das assembléias legislativas. Não são estas grêmios culturais, nem academia de ciências. Provém de uma comunidade e refletem a condição dela.

Nas sociedades modernas é crescente o intervencionismo do Estado, mesmo nos países fiéis ao liberalismo, principalmente na atividade econômica. O Estado intervém em qualquer setor social pela afirmação da sua vontade, manifestada através das leis que promulga. Donde a necessidade de uma legislação servida por um suporte de cultura nem sempre encontrado nas assembléias legislativas. Não sendo estas corporações técnicas, deparam com dificuldades originadas na falta de qualificação de seus integrantes para a elaboração de legislação adequada. O problema se agrava de dia para dia e dele decorre o gradual desfalque que vão sofrendo os órgãos legislativos.

Em alguns países, o Legislativo procura cercar­se de um assessoramento técnico tão bom como aquele de que é equipado o Poder Executivo. Isso acontece, por exemplo, nos Estados Unidos.

Noutros, a solução mais encontradiça é a de atribuir competência legislativa ao Poder Executivo, de maneira que a ele caiba, quase sempre, a iniciativa das leis, quando não a prerrogativa de promulgá­las, submetendo­as, posteriormente, a exame do Legislativo.

Outro problema pertinente à elaboração das leis é o da polêmica entre unicameralismo e bicameralismo.

Quando, neste trabalho, aludimos a Poder Legislativo, referimo­nos ao órgão, qualquer que ele seja, ao qual uma sociedade defere a atribuição de legislar. Este órgão pode ser um homem só, uma comissão, uma câmara ou muitas câmaras. Mas verdade é que, sob a influência do movimento constitucionalista, nos estados modernos o órgão legislativo geralmente é colegiado.

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Indaga­se, então, se deve compor­se de uma só câmara, sistema unicameral, ou duas, sistema bicameral.

O problema é político, pois em nada compromete a sabedoria e a legitimidade de uma lei ser elaborada por uma só câmara. E o processo de elaboração legislativa unicameral é tão democrático quanto o bicameral. No entanto, os legislativos bicamerais são numerosos. No Brasil, o Congresso é dividido em duas câmaras: a Câmara dos Deputados e o Senado Federal.

Os que defendem o bicameralismo alegam, principalmente, que o Congresso deve ter uma composição heterogênea. Uma das câmaras deve ser conservadora e a outra renovadora. Esta diversidade de índoles obtém­se, em princípio, por duas providências. Para o ingresso na câmara que se pretende mais atuante e mais renovadora, o limite mínimo de idade é menor do que para a outra que se pretende mais conservadora. E o mandato dos membros desta costuma ter duração maior, fazendo­se renovação de seus elementos em parcelas, quartos, terços, etc., de modo que sua composição se altera lentamente.

No Brasil, a câmara renovadora é a dos Deputados e a conservadora, o Senado.

A tese do bicameralismo tem grande reforço nos Estados federais, que são grupos de estados numa União. Neles prevalece o princípio da isonomia dos estados federados. Assim como, no plano internacional, os Estados soberanos devem ter igualdade política, no plano federal, os Estados­membros ou federados devem ter a mesma condição. No entanto, uma federação é um conjunto de estados diferentes demograficamente. Como o número de representantes varia de acordo com a população, alguns estados têm mais numerosa representação do que outros. Para compensar essa desigualdade, divide­se o Congresso em duas câmaras e numa delas a representação dos Estados­membros é paritária.

No Brasil a representação para a Câmara dos Deputados é proporcional ao eleitorado, enquanto que para o Senado é paritária, isto é, todos os estados, qualquer seja a sua população e o seu corpo eleitoral, têm o mesmo número de representantes.

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5.4.3.2 Fases de elaboração

Cinco são as fases de elaboração das leis: iniciativa, discussão (poderíamos acrescentar a votação, mas esta é apenas conclusão da discussão), sanção, promulgação e publicação.

Consideraremos a elaboração em termos teóricos, mas ela variará se o Legislativo for unicameral ou bicameral. Presumimos um colegiado legislativo e um titular individual do Poder Executivo.

A iniciativa é a fase inaugural do processo legislativo. No esquema configurado, pode provir de qualquer membro do Legislativo ou do Poder Executivo. É usual as constituições conferirem ao Executivo a iniciativa exclusiva de certos projetos de lei e exigirem que ela, no colegiado legislativo, não seja individual, sim de um grupo de representantes. Às vezes também é permitida a órgãos não­estatais.

Após, inicia­se a discussão, que pode ser feita num só turno, ou em vários, dependendo isso da Constituição ou do regimento do colegiado. A discussão termina pela votação, por via da qual se manifesta o plenário contra ou a favor do projeto. A votação encerra­se por maioria simples ou maioria qualificada. Na nossa Constituição atual, uma lei ordinária pode ser aprovada por maioria simples, mas uma lei complementar só por maioria absoluta, ou seja, a metade mais um dos membros do Congresso.

Se a votação conclui pela aprovação do projeto, ele é enviado ao titular do Poder Executivo, que tem dupla opção: aquiescer a ele, ou recusá­lo. A aquiescência é a sanção, ato pelo qual, participando da elaboração legislativa, o titular do Executivo dá a sua aprovação ao projeto. A sanção pode ser expressa quando se manifesta por despacho do chefe do Executivo, ou tácita, quando este se omite, deixando que se esgote o prazo constitucional, sem decisão.

No mesmo período pode o titular do Poder Executivo opor­se ao projeto. A oposição é o veto, que pode ser parcial ou total. Parcial, quando atinge apenas certos dispositivos; total, quando abrange todos.

Um projeto vetado retorna ao Legislativo, que tem a faculdade de aceitar ou rejeitar o veto. Se aceita, está findo o processo legislativo. Se

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recusa, o que em regra só pode ocorrer por maioria qualificada, o projeto volta ao titular da função executiva para promulgá­lo.

A promulgação sucede à sanção ou à recusa do veto. É o ato pelo qual se afirma solenemente a existência da lei. Não há, portanto, contradição entre o titular da função executiva vetar o projeto porque discordava dele, e, depois, confirmado que foi pelo Legislativo, promulgá­lo por dever constitucional.

Pode, porém, o titular do Poder Executivo, que vetou o projeto, recusar­ se a promulgá­lo. Então, cabe a promulgação à presidência do colegiado legislativo.

Em seguida, a lei é publicada.

A publicação hoje é feita pela imprensa, órgão por excelência de divulgação. Também pode ocorrer por outros meios: editais, avisos e até leitura em praça pública.

Qualquer que seja o meio adotado, somente depois de publicada é que se torna obrigatória, ou, por outras palavras, entra em vigor.

5.4.3.3 Nomenclatura

As leis, como normas jurídicas, são classificadas consoante a nomenclatura geral.

Quando estudamos a norma jurídica, consideramos sua classificação quanto ao sistema, âmbito de validade, matéria, sanção, relações de complementação e posição em relação à vontade individual. Esses critérios são genéricos para todas as normas jurídicas.

As leis, quanto ao sistema a que pertencem, podem ser nacionais e estrangeiras; quanto ao seu âmbito de validade espacial, gerais e especiais (no Brasil: federais, estaduais e municipais); quanto ao âmbito de validade temporal, de vigência determinada e indeterminada; quanto ao seu âmbito de validade pessoal, gerais e individualizadas; quanto à sua matéria, constitucionais, administrativas, processuais, penais, trabalhistas, civis, comerciais etc.; quanto à sanção, perfeitas, menos­que­perfeitas e imperfeitas;

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quanto às relações de complementação, primárias e secundárias; quanto à sua posição em relação à vontade das partes, absolutas e permissivas.

Também, como já vimos, podem ser materiais e formais, conforme tenham ou não o predicado da generalidade.

Classificam­se, ainda, em substantivas e adjetivas. Substantivas são as que conferem direitos ou impõem deveres. Adjetivas, as que dispõem sobre como os direitos se exercem e os deveres se exigem. São as chamadas leis processuais, indicam ao titular de um direito o respectivo procedimento.

A Constituição, por exemplo, declara: dar­se­á habeas­corpus sempre que alguém estiver sofrendo ou ameaçado de sofrer injusto constrangimento na sua liberdade de locomoção. Esta norma protege o direito à liberdade de ir e vir, e assegura ao indivíduo a faculdade de impetrar habeas­corpus. De que valeria, porém, essa regra constitucional, se a pessoa molestada injustamente na sua liberdade não soubesse como atuar para defender o seu direito? À lei processual criminal cabe dispor sobre o processo de habeas­corpus, suas formalidades, as autoridades competentes para conhecerem do pedido, os recursos admitidos da decisão concessiva ou denegatória, os prazos, etc. Essas normas não dão o direito a habeas­corpus, mas dizem como obtê­lo.

Quanto à sua aplicação, as leis podem ser: auto­aplicáveis e dependentes de complementação. As primeiras, que constituem regra geral, apresentam os requisitos necessários para sua vigência imediata. As outras têm a sua vigência a depender da edição de normas que as complementam, seus regulamentos.

Sob outro critério, que não importa classificação, são elucidados os dois sentidos do vocábulo lei: sentido lato e restrito. Em sentido lato, lei significa toda norma escrita; em restrito, somente a norma elaborada pelo Poder Legislativo. No primeiro, lei é a Constituição, é a lei propriamente dita (a elaborada pelo Poder Legislativo), é o regulamento, é qualquer ato normativo da Administração. Em sentido restrito, é apenas a lei ordinária, isto é, formulada pelo Poder Legislativo no limite da sua competência.

5.4.3.4 Lei delegada e decreto­lei

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Há modalidades de lei que discrepam do seu conceito clássico: a lei delegada e o decreto­lei, mas não podemos dizer que sejam formas exóticas de legislação, dada a tendência atual de ampliar a competência legisferante do Poder Executivo.

A lei delegada é elaborada pelo Poder Executivo, por outorga legislativa. A faculdade é do Legislativo, mas este a transfere ao Executivo, que dela somente pode dispor no limite exato da respectiva delegação.

No Brasil, algumas leis delegadas integram o ordenamento jurídico, principalmente as leis sobre economia popular. Ao tempo de sua promulgação o regime era parlamentar, e é no parlamentarismo que têm mais cabimento, porque quem exerce o governo é o Gabinete, órgão de confiança do Poder Legislativo, de modo que há entrosamento entre as funções legislativas e executiva.

Decreto­lei é a forma que assume a legislação elaborada pelo Poder Executivo. Sua natureza é mista. Lei, porque dispõe sobre matéria de competência legislativa e tem generalidade, o atributo material da lei; decreto, porque é ato do Poder Executivo. Por isso, diz José Cretella Jr., que o decreto­ lei é substancialmente ato de legislação e formalmente ato administrativo.

O decreto­lei pode ser modalidade extraordinária ou ordinária de legislação. É extraordinária quando utilizada em momentos de crise institucional. No Brasil, a legislação atual, na sua maior parte, é de decretos­ lei, promulgada em face da ruptura na ordem jurídica constitucional. A legislação por decretos­lei nem sempre corresponde a momentos de anormalidade constitucional. Há regimes em que faz parte da própria ordem institucional regular.

5.4.4 Costume

O costume jurídico é uma instituição que, pela fluidez de seu conteúdo e indeterminação do seu contorno, é difícil de ser conceituada, ainda mais porque há costumes não­jurídicos, assim os convencionalismos.

A distinção do costume jurídico do que não o é está num elemento de convicção. Em relação ao jurídico, há consciência da sua obrigatoriedade, já quanto ao não­jurídico, consciência da sua facultatividade. A uniformidade da

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conduta continuada e duradoura, esclarece Savigny, revela como sua raiz comum, por oposição ao mero acaso, a convicção do povo.

Os autores definem o costume como norma constante não­escrita obrigatória, só diversa da lei no aspecto formal. A lei é escrita, o costume, não. Também a lei é intencionalmente elaborada; o costume forma­se espontaneamente.

Vistos na sua objetividade, sem exame dos elementos da sua motivação, lei e costume são iguais.

O que identifica o costume é a convicção coletiva da sua validade. Dir­ se­ia que, quando um costume se integra à normatividade de um grupo, impondo­se obrigatoriamente, é acatado sem que os interessados saibam que se trata de um costume, como também, muitas vezes, seguimos uma lei, sem saber realmente se há regra escrita. Essa inconsciência da condição costumeira da regra, nos estados em que o Direito Positivo é preponderantemente legislado, é a mais positiva característica do costume jurídico.

5.4.4.1 Elementos

Doutrinariamente, distinguem­se os elementos do costume em interno e externo. Divisão, aliás, artificial, porque eles são inseparáveis.

O interno é o que se chama, desde o direito romano, opinio necessitatis, exatamente a consciência da necessidade do costume, seu elemento subjetivo, a consciência de que ele existe, como regra válida seguida invariavelmente.

O externo é o uso, a conduta humana que, pelo fato de acompanhar um certo padrão, evidencia a sua existência e lhe serve de prova.

5.4.4.2 Divisão

Os costumes, comparados com as leis, podem ser secundum legem, ou seja, de acordo com a lei; praeter legem, paralelos à lei; e contra legem, contrários à lei.

O costume secundum legem complementa a lei. Uma situação é objeto de disposição legal, e acrescenta­se­lhe o costume. Tem este caráter interpretativo ou regulamentador. Acrescenta­se à lei, no mesmo sentido, para

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torná­la mais flexível, de aplicação mais fácil, ou de casuística mais minuciosa.

O praeter legem é o costume típico, como fonte mediata de direito. Quando não há norma legal para reger certa situação, os próprios interessados a vão criando.

O costume contra legem contradiz a lei. A lei encerra certa prescrição, e o costume desenvolve­se contrariamente a ela. É grande o número de autores que afirmam não ser aplicável o costume contra a lei. De fato, havendo lei e costume, o juiz é obrigado a aplicar a lei, não este. O costume contra a lei atua como fator de revogação desta, porque somente surge, e isto é óbvio quando ela é inadequada em certa matéria.

É pequena a atuação do costume no direito moderno, no qual é exacerbada a importância da lei como fonte de direito, até mesmo porque as necessidades da vida contemporânea reclamam padrões nítidos de procedimentos, e essa nitidez só pode ser alcançada nos textos escritos.

A despeito disso, o costume atua como corretivo das leis que divergem dos reais interesses humanos.

Ainda tem relativa influência no Direito Comercial, o que se explica porque as normas mercantis foram de origem popular. Ao contrário do Direito Civil, obra da sabedoria romana, o Comercial foi fruto da atividade dos comerciantes, pois, como diz Edmond Thaller, citado por Alfred Cost­Floret, foi do uso que ele saiu. A par disso, a vida comercial se caracteriza pela celeridade das suas transformações, que correm ao mesmo passo em que se dinamizam os meios de transporte e de comunicação. A lei, de elaboração vagarosa, nem sempre acompanha as suas necessidades. Sendo estas prementes, os interessados dão a fórmula para resolver a disparidade entre o desenvolvimento das situações e o da legislação correspondente.

Também subsistem no Direito Internacional Público muitas normas que não constam de textos, e sua observância se apoia na autoridade dos precedentes.

5.4.5 Jurisprudência

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Como fonte do Direito, jurisprudência é o conjunto das decisões reiteradas de juizes e tribunais, revelando o mesmo entendimento, orientando­ se pelo mesmo critério e concluindo do mesmo modo.

A importância da reiteração torna­se assinalada quando se refere a temas polêmicos. Uma lei, ao ser empregada, pode ensejar multiplicidade de entendimentos. Juizes e tribunais divergem. Com a marcha do tempo e pela influência natural que os tribunais de nível superior exercem sobre os de nível inferior e também pela depuração doutrinária pela qual a matéria vai passando, as soluções discordantes tendem a se aproximar, até que todas coincidem. Se temos uma dúvida e ignoramos a maneira acertada de solvê­la, mas sabemos que os tribunais mais categorizados têm sobre o assunto compreensão invariável, as suas decisões podem ser obedecidas como normas. Jean Cruet registra que, quando sobre um ponto de direito existe uma jurisprudência constante e uniforme, ela acaba por adquirir uma fixidez quase comparável à da lei, passando o direito do juiz a ser um verdadeiro direito escrito, respeitado a ponto de os advogados, para ganharem suas questões, se absterem de atacá­ lo de frente, preferindo mais habilmente iludi­lo, alegando que não se aplica aos fatos da causa sob seu patrocínio.

Não se deduza daí, porém, seja este o maior mérito da jurisprudência, como processo de criação do direito. Antes ao contrário, como adverte Pedro Batista Martins, da sua adaptabilidade e da sua maleabilidade é que resulta sua maior importância, podendo­se afirmar, sem receio de contestação, que a jurisprudência tem sido, nos últimos tempos, a precursora das mais importantes reformas legislativas.

5.4.5.1 Unificação

Se cada juiz entendesse a seu bel­prazer, cada tribunal decidisse da maneira peculiar, jamais a jurisprudência poderia constituir fonte de direito, porque as soluções jurídicas devem ser objetivas, uma vez que desse atributo resulta a certeza com que nos norteiam.

Por isso, é grande a utilidade dos processos que conduzem à unificação da jurisprudência. Somente sendo uniforme, constante, pacífica, será, além de fator de segurança social, autêntica fonte de paradigmas jurídicos.

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Os processos que buscam essa finalidade são diversos, grupados em duas classes.

5.4.5.1.1 Jurisprudência normativa

Há sistemas jurídicos que admitem jurisprudência normativa. As decisões de certos tribunais são obrigatórias para os tribunais e juizes de categoria inferior. Assim, elas atuam como normas a que estes estão obrigados. Se um problema jurídico suscita controvérsia, existindo órgão judicial autorizado para editar normas gerais, ele o aborda e formula critérios para resolvê­lo, passando estes a ter força de lei. O tribunal superior julga o conflito individual e elabora preceitos gerais sobre a matéria.

Nos Estados em que é rígida a separação dos poderes políticos, embora essa rigidez não caracterizasse o modelo originário inglês, segundo a observação de Begehot, citado por Augusto Olímpio Viveiros de Castro (1867­1927), a jurisprudência normativa atenta contra esse princípio. A separação dos poderes impõe que normas gerais sejam promulgadas pelo Legislativo, cabendo ao Judiciário a sua aplicação aos casos concretos. Por isso, suas decisões só são aplicáveis às pessoas diretamente empenhadas no litígio.

5.4.5.1.2 Unificação recursal

Mais generalizadas são as fórmulas, diversas de um para outro sistema jurídico, de unificação por via de recursos. Recurso é o ato processual pelo qual a decisão de um juiz ou tribunal é submetida a outro de categoria superior, competente para anulá­la ou reformá­la. Graças a essa técnica, as decisões judiciárias, diferentes na sua periferia, podem ser levadas à unificação no seu centro. E essa é uma das tarefas que os recursos desempenham com eficiência, como observa João Claudino de Oliveira e Cruz.

Afora os recursos genéricos, que atuam neste sentido, há específicos pretendendo o mesmo resultado: o de cassação, o de revista e o extraordinário.

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5.4.5.1.2.1 Recurso de cassação

O recurso de cassação permite que seja tornada sem efeito uma decisão de um tribunal ou de um juiz por tribunal superior que considere defeituosa a aplicação da lei. O tribunal superior, decidindo segundo um certo critério, cassando decisões dele divergentes, uniformiza as de órgãos jurisdicionais inferiores. Ao cassar uma decisão contrária ao seu entendimento, o tribunal remete o feito para órgão inferior do mesmo nível, que irá resolver de acordo com a compreensão do órgão jurisdicional superior, ou, então, ele mesmo reforma a decisão, conforme a regra jurídica positiva.

5.4.5.1.2.2 Recurso de revista

O recurso de revista resulta da necessidade fundada no fato de os tribunais dividirem­se em turmas ou câmaras. Por exemplo, um tribunal de dezoito membros pode formar seis câmaras ou turmas de três. Um recurso da instância inferior não é julgado pelo tribunal em conjunto, mas por uma das câmaras. Com essa providência o tribunal incrementa a sua produtividade.

Dividido o colegiado, surge a possibilidade de discórdia das várias câmaras em relação à mesma matéria. Se já é chocante a divergência jurisprudencial entre órgãos distintos, mais o é dentro do mesmo tribunal, situação que, na observação de Bilac Pinto (1908) e C. A. Lúcio Bittencourt, lança a perplexidade no foro, gerando o desapontamento e a censura dos pleiteantes.

Para evitar a perpetuação desse estado intolerável, as decisões conflitantes são levadas a um conjunto de turmas, ou ao plenário do tribunal (matéria regimental), para que a maioria tome a deliberação que venha a preponderar nos futuros julgamentos.

O novo Código de Processo Civil brasileiro suprime o recurso de revista, e o faz por adotar medida que funciona como perfeito e mais prático sucedâneo dele.

Assim, atribui a qualquer juiz, ao proferir seu voto, na turma, câmara ou grupo de câmaras, a faculdade de solicitar o pronunciamento prévio do tribunal acerca da interpretação do direito, quando:

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a) verificar que a seu respeito ocorre divergência;

b) no julgamento recorrido a interpretação tiver sido diversa da que lhe haja dado outra turma, câmara, ou grupo de câmaras.

Independentemente da iniciativa do juiz, a própria parte no feito também poderá requerer que, antes de julgado o recurso, seja adotada idêntica providência.

Reconhecida a divergência, o tribunal dará a interpretação a ser observada. O julgamento assim adotado, quando aprovado pela maioria absoluta dos membros do tribunal, será objeto de súmula e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência.

5.4.5.1.2.3. Recurso especial

O recurso especial é típico dos Estados federais, nos quais há duas legislações: federal e estadual. A federal é aplicada pela jurisdição do Estado, em decisões definitivas, mesmo onde existe justiça federal para decidir os feitos nos quais haja interesse direto ou indireto da União. Mas, por exceção, excepcionalmente, suas decisões finais são passíveis de um recurso que se chama especial, por via do qual são apreciadas por um órgão mais alto da jurisdição federal (no Brasil, o Tribunal de Justiça), desde que se prove desacordo entre decisões da justiça de um Estado e de outro, ou entre as da justiça de um Estado e do Supremo Tribunal, na aplicação da lei federal.

Dessa maneira, nos Estados federais, a cúpula do Poder Judiciário exerce a faculdade de uniformizar a jurisprudência.

5.4.5.2 Prejulgado

Há um expediente sui generis para a unificação da jurisprudência, que não se confunde com a jurisprudência normativa, nem com a uniformização recursal. É o prejulgado, que apresenta similitude com a primeira, porque é formulado in abstrato, e, com a Segunda, porque só é cabível quando ocorre problema concreto.

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Suscitada certa questão, em recurso, verifica­se que ela pode ensejar ou já ensejou maneiras diversas de apreciação. Há, assim, diversidade jurisprudencial real ou possível dentro do mesmo tribunal. Para prevenir ou sanar divergência, o colegiado a prejulga, isto é, julga em sentido geral, eliminando previamente a dúvida. O prejulgado é formulado antes do julgamento do recurso, em relação a um caso concreto e aos futuros idênticos, e impede a jurisprudência discordante no mesmo tribunal. Os seus pressupostos são: existência de uma decisão anterior de câmara ou turma; existência de um feito em julgamento; divergência entre a decisão anterior e a que pode ser tomada pela câmara ou turma julgadora.

Conforme a regra de Direito Positivo, o prejulgado pode ter maior ou menor eficácia, como recurso técnico destinado a uniformizar a jurisprudência.

Assim, por exemplo, no Direito brasileiro, os seus efeitos são mais amplos no âmbito do Direito do Trabalho do que na processualística civil. Nesta, o pronunciamento prévio tem por objetivo uniformizar a jurisprudência de um dado tribunal e, assim, prevenir a proliferação de recursos de revista. O prejulgado trabalhista, até a anterior Constituição, obrigava as instâncias inferiores, isto é, tinha força vinculativa, estabelecia uma regra de direito geral com a mesma força impositiva de que desfruta um dispositivo legal.

5.4.6 Doutrina

A última fonte mediata são os princípios gerais do direito, cuja natureza é doutrinária e corresponde, segundo Paulino Jacques, ao complexo de princípios que embasam os sistemas jurídicos.

Quando a lei e o costume, mesmo interpretados, não forneçam disposição adequada a uma situação, nem a esta se possa aplicar preceito legal ou costumeiro por analogia, se também inexiste regra jurisprudencial, configura­se a hipótese de consulta aos princípios gerais do direito.

Estes princípios não podem ser abstrata e arbitrariamente formulados, segundo considerações subjetivas ou preferências teóricas pessoais.

Diversa é a doutrina quanto à determinação do seu conteúdo.

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Perante a letra do artigo 7º do Código Civil austríaco, são eles os próprios princípios do direito natural, entendimento que teve o patrocínio de Antonio Brunetti, e mais recentemente o vigoroso reforço da opinião de Del Vecchio.

Francesco Invrea considera os princípios gerais do direito anteriores à legislação positiva, formando o que denomina direito fundamental, que abrange duas partes: o direito fundamental natural e o cultural. O primeiro corresponde às próprias exigências da natureza racional e social do homem. O segundo é o conjunto de normas reconhecidas de um modo geral, pelos juristas, numa certa etapa da civilização.

Para Meyer, os princípios gerais do direito são, principalmente, as normas de uma cultura. E para Schmolder eles correspondem à noção de equidade.

Para Francesco Saverio Bianchi, os princípios gerais são aqueles admitidos pela doutrina.

À opinião de Bianchi adere Giovanni Pacchioni (1867­1946), que nitidamente separou os princípios gerais da legislação dos mais gerais princípios do direito, observando que nem sempre bastam aqueles para resolver todas as controvérsias. Pela sua tese, ao invocar um princípio geral de direito, deve o juiz procurar aquele que tenha amparo da jurisprudência ou que dos elementos desta possa ser inferido.

Limongi França grupa os autores que têm versado o tema em cinco correntes:

a) corrente romanista, que considera como princípios gerais de direito aqueles encontrados na legislação de Justiniano (483­565);

b) corrente do positivismo estrito, para a qual se resumem às máximas que dominam o Direito Positivo em vigor;

c) corrente positivista lata, segundo a qual tais princípios deveriam ser buscados nas linhas gerais de todo o ordenamento jurídico­político do Estado;

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d) corrente científica estrita, cujos autores acrescentam aos elementos da precedente os dados ministrados pelo Direito Científico;

e) corrente científica propriamente dita, que reconhece como princípios gerais do Direito, além dos admitidos pela anterior, também os princípios do Direito Natural, em sentido amplo, isto é, as máximas que decorrem da natureza das coisas e das necessidades sociais.

Debate­se também se esses princípios são apenas os do Direito Nacional ou também os do Direito Universal.

Adotam a primeira orientação A. Demante, François Laurent (1810­ 1887) e Joseph Unger.

Parece claro, todavia, que a simples hipótese de ser possível uma situação não prevista no direito nacional exclui possa ele delimitar o conceito dos princípios gerais. Por outro lado, por serem estes a última fonte mediata do Direito, não podem padecer de qualquer limitação. Deve­se observar, porém, que o apelo aos princípios do Direito Universal só pode ser feito depois de exauridos os princípios do Nacional.

É necessário sempre ressaltar que a consulta aos princípios gerais de direito deve­se fazer gradualmente, procurando­se, em primeiro lugar, os mais próximos, e somente ao termo os mais remotos. A este respeito ensina Eduardo Espínola Filho: tais princípios, embora hauridos, sempre, na fonte mais profunda da natureza das coisas, podem, mais direta e imediatamente, ser inferidos, por um lado, do espírito e das idéias fundamentais das leis e costumes, que formam o sistema jurídico do próprio país, e, pelo outro lado, ser achados com o recurso aos trabalhos teóricos dos sábios e a análise das circunstâncias históricas, os quais – uns e outros – influíram sobre a própria legislação e continuam a desenvolver­se com o estudo e a aplicação das leis e com os ensinamentos da legislação comparada. Em outras palavras, esses princípios podem formar­se na relação com o conjunto de leis e costumes, que constituem o Direito Positivo do país, e na conformidade do espírito que o domina, e podem estender­se aos resultados mais gerais do estudo da jurisprudência, da ciência jurídica e da legislação comparada. A orientação razoável e eficaz está em dirigir­se o aplicador, primeiramente, aos princípios gerais do Direito Nacional, e somente quando não lhe ofereçam eles a contribuição pedida, recorrer aos princípios do direito universal.

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Segundo Vicente Ráo (1892­1978), ao consultar os princípios gerais do Direito o grau de generalização deve ser progressivo, iniciando­se sobre o sistema jurídico positivo da legislação de que se trate, prosseguindo pelo exame das leis científicas do Direito e concluindo por alcançar a esfera da filosofia jurídica, que nos ensina os princípios fundamentais, os mais amplos, inspiradores de todos os ramos da ciência do Direito e constitutivos da unidade do conhecimento jurídico.

5.4.7 Conclusão

As fontes de direito foram por nós citadas de maneira que sua enumeração correspondesse aos níveis sucessivos do processo de integração do qual cuidaremos na parte derradeira deste trabalho.

Fugindo à contenda sobre se algumas delas são realmente fontes, não podemos, todavia, deixar de assinalar que, mesmo sem aprofundada indagação, observa­se não terem todas a mesma natureza, sendo artificial a sua seriação. O costume, por exemplo, é fonte de verdadeiras regras jurídicas, cuja formação é inteiramente autônoma.

A jurisprudência é, em certo sentido, fonte autêntica, enquanto repositório de paradigmas jurídicos. Mas é indiscutível que ela se forma, em grande parte, pela assimilação de elementos doutrinários e se debruça sobre a lei e o costume.

A doutrina, finalmente, é, na sua maior parte, elaboração teórica sobre outras fontes, tal como a jurisprudência, embora constitua indiscutível fonte formadora em face das instituições nascentes.

Em conclusão, teoricamente examinada a matéria, apenas lei e costume estão no mesmo plano; jurisprudência e doutrina são fontes e atividades.

5.5 DIREITO SUBJETIVO

As noções de dever e de direito são correlatas, resultado da bilateralidade da regra jurídica.

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O dever é a relação jurídica mirada de um foco; o direito, a mesma relação vista de outro foco. E ambos se reportam à norma. Temos, portanto, um trinômio, três pólos da mesma realidade, que se entrelaçam para constituir uma situação íntegra, cujos elementos apenas por abstração podemos distinguir. Só por abstração podemos considerar a norma, fazendo omissão do direito e do dever. Só por abstração podemos considerar o direito, fazendo omissão da norma e do dever. E só por abstração podemos considerar o dever, fazendo omissão da norma e do direito.

A noção de direito subjetivo é das mais antigas na teoria do Direito, embora o ensinamento tradicional não corresponda mais ao que se tem por certo no assunto. Trata­se de uma distinção já feita no direito romano. Referiam­se os juristas romanos ao jus norma agendi e ao jus facultas agendi, o direito com o norma de agir e o direito como faculdade de agir. O direito como norma é direito objetivo; como faculdade, direito subjetivo.

Num contexto jurídico real encontramos normas que são a sua tessitura, e relações, estabelecidas entre os indivíduos, nas quais existem direitos e deveres de pessoa para pessoa.

Assim, a apalavra direito pode ser empregada em dois sentidos. Se para identificar um ordenamento jurídico, as suas regras, usamo­la em sentido objetivo. Se para referir a faculdade que tem alguém de agir ou deixar de agir, utilizamo­la em sentido subjetivo.

Dizendo que o direito penal brasileiro é tolerante, o vocábulo direito tem sentido objetivo, porque referido a normas jurídicas; também se afirmamos que entre o direito inglês e o continental existem assinaladas distinções, ainda o vocábulo tem sentido objetivo, por significar dois ordenamentos jurídicos: o insular e o continental. Se digo, porém, que, como credor, me assiste o direito de exigir do devedor que pague a dívida, isto é, que tenho a faculdade, que exercerei ou deixarei de exercer, a meu arbítrio, de exigir dele o pagamento, então a palavra direito encerra sentido subjetivo. Como proprietário, proclamando o meu direito de obter de todos que respeitem o exercício manso dos meus poderes sobre o bem apropriado, estou empregando o vocábulo direito igualmente em sentido subjetivo.

Daí decorre a noção de que direito objetivo e direito subjetivo são realidades distintas, ou seja, que o direito objetivo tem uma natureza e o

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subjetivo, outra. Esta lição clássica está sendo atualmente revista. Não podemos compreender direito subjetivo, faculdade, que não repouse numa norma, isto é, no direito objetivo; nem direito objetivo do qual não resultem direitos subjetivos, isto é, faculdades.

5.5.1 Manifestações

Conquanto o direito subjetivo seja somente e sempre uma faculdade do sujeito, ele se apresenta debaixo de manifestações diferentes.

Até recentemente, apontávamos três. Hoje, a pesquisa científica evidenciou a existência de mais uma, o chamado poder de inordinação.

Em primeiro lugar, o direito subjetivo revela­se como corolário da liberdade jurídica. Toda ordem jurídica traça um setor dentro do qual a conduta do indivíduo é tutelada por normas, e outro em que está livre da incidência delas, reservado à sua liberdade. Neste segundo está a liberdade jurídica, que é um bem protegido. A Constituição o define, quando diz que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei. Alguém pretendendo impor a uma pessoa certo comportamento ou limitar a sua autonomia em área não coberta pelo ordenamento jurídico, afronta o direito subjetivo desta à liberdade jurídica.

O direito subjetivo também se apresenta sob outra manifestação, aliás, a mais típica e a que melhor se presta para o seu entendimento didático. Trata­se de quando entre duas pessoas se estabelece uma relação que dá a uma delas a faculdade de exigir da outra a prática ou a abstenção de um ato. A pessoa que tem a faculdade de exigir é titular de um direito subjetivo; a outra é titular de um dever jurídico. No direito de família, por exemplo, os pais têm direitos a exigir dos filhos e vice­versa, os cônjuges têm direitos recíprocos. No vasto campo do direito dos contratos proliferam as relações jurídicas desse tipo.

A terceira manifestação do direito subjetivo dá­se quando ele se apresenta como poder de criação e de extinção de relações jurídicas. Exemplo: a faculdade de testar, pela qual podemos dispor, segundo as circunstâncias, total ou parcialmente, de nosso patrimônio para depois da morte. O testador, por simples ato de vontade, cria uma situação jurídica. O poder de criar importa o de extinguir, que lhe é correlato.

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Os direitos formativos grupam­se em três classes:

a) direitos geradores, como o de testar, o de preferência;

b) direitos modificadores, como o de escolha entre obrigações alternativas, o de constituir em mora;

c) direitos extintivos, como o de denunciar contrato, o de requerer divórcio.

O direito subjetivo também pode consistir na faculdade de inordinação, que é aquela que tem a pessoa, obrigada por um dever, de exigir das demais que não criem embaraço ao seu cumprimento.

Os pais têm obrigações para com os filhos. Ninguém pode turbá­los no exercício desses deveres. Se alguém deve certa importância, e o credor se recusa a recebê­la, cabe ao devedor uma solução: forçá­lo, judicialmente, a recebê­la. O direito subjetivo é, no caso, a faculdade de prestar o próprio dever.

5.5.2 Teorias

Citaremos quatro teorias: a da vontade, de Bernhard Windscheid (1817­ 1892), a do interesse, de Rudolf von Jhering (1818­1892), a mista, de Jellinek, e a normativa, de Kelsen.

Distribuem­se em dois grupos de distinta filiação filosófica. As três primeiras – a da vontade, a do interesse e a mista – estão ligadas à tese de que o direito subjetivo tem natureza própria, diferente da do direito objetivo, da qual discrepa a última.

5.5.2.1 Teoria da vontade

Para Windscheid, a vontade individual é a essência e o fundamento do direito subjetivo.

A tese de Windscheid desfrutou de larga popularidade, mas a crítica que se lhe pode fazer mostra a sua insustentabilidade.

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Há direito subjetivo sem vontade e vontade sem direito subjetivo. Como decorrência desse fato, a essência do direito subjetivo não pode ser a vontade individual. Por exemplo: os incapazes são privados de vontade, no entanto têm direitos subjetivos. O menor e o alienado, embora incapazes, podem ter direitos, protegidos pela pessoa à qual a ordem jurídica confere o encargo de zelar por eles. Em tais circunstâncias, não há vontade, mas existe direito subjetivo. Vice­versa, a vontade pode se afirmar exuberantemente e não produzir efeito. Alguém, pretendendo legar bem de sua propriedade, inutilmente proclamará sua intenção, mesmo fruto da mais firme vontade, se não houver sido consumado o ato jurídico formal, que é o testamento.

5.5.2.2 Teoria do interesse

A teoria de Jhering sustenta que a essência do direito subjetivo é o interesse. Daí a definição: o direito subjetivo é o interesse protegido pela norma. Constituem­no dois elementos: um essencial e um formal. O essencial é o interesse e o formal é a ação, recurso que a ordem jurídica coloca à disposição do titular do direito para resguardo do seu interesse.

Critica­se a tese de Jhering a sua insuficiência para explicar a realidade de direitos subjetivos quando não há interesse. Exemplificando: quando uma pessoa sumamente rica empresta uma importância ínfima para outra sumamente pobre, parece claro que não tem interesse algum em receber a quantia mutuada. Mas o seu desinteresse não fará desaparecer o direito subjetivo.

5.5.2.3 Teorias mistas

Para responder às críticas feitas às teorias da vontade e do interesse, as teorias mistas procuraram fazer uma síntese das precedentes, reunindo no direito subjetivo os elementos de ambas.

Jellinek conceitua o direito subjetivo como manifestação de vontade tendo por objeto um interesse. Aliando as noções de interesse e vontade, pretendia enfrentar as críticas que se faziam a cada uma delas, isoladamente. Mas é claro que os erros das duas acompanham a terceira, pois a todas se pode

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objetar que partem da errônea suposição de que o direito subjetivo é uma realidade em si, intrinsecamente própria, distinta da do direito objetivo.

5.5.2.4 Teoria normativa

Contrasta com essa orientação a teoria normativa moderna de Kelsen, contestando a existência da dicotomia direito subjetivo e direito objetivo, e vendo naquele apenas o segundo focado de um certo ponto de vista.

A norma jurídica se formula sob o seguinte enunciado: dada a não­ prestação, deve ser a sanção (norma primária). O indivíduo, para fugir à incidência da sanção, procede de maneira oposta (obediente à norma secundária), prestando o dever jurídico. A outra face do dever jurídico é o direito subjetivo. Portanto, o dever jurídico emerge de norma secundária, como procedimento que previne a incidência da norma primária, e se reflete em outra direção, a de direito subjetivo.

Dever e direito não são mais do que fenômenos de subjetivação das normas. Originam­se da norma referida a pessoas individualizadas, a uma das quais confere um dever e, à outra, um direito.

Seria, assim, pleonástica a expressão direito subjetivo, visto que ele não passa de uma certa maneira peculiar de atuação do direito objetivo. Estar facultado a uma conduta significa não estar obrigado à oposta. A noção de direito subjetivo não é autônoma, senão o reverso da de dever. E corresponde à situação em que a norma jurídica faz depender a execução do ato coativo (exigência do dever) de uma manifestação de vontade, à qual chamamos de direito subjetivo, ou faculdade.

A faculdade é apenas uma estrutura possível, uma técnica especial de que o direito se serve, mas da qual não tem irremovível necessidade. É, na expressão literal de Kelsen, a técnica específica da ordem jurídica capitalista, construída sobre a instituição da propriedade, por isso atende particularmente ao interesse individual, sem, todavia, dominar toda a ordem jurídica capitalista, como se vê no direito penal, em que o paciente do delito é substituído no seu interesse por um órgão do Estado.

Jean Dabin (1889) opôs­se frontalmente à historicidade atribuída por Kelsen ao direito subjetivo, sustentando que este surge, em seu contexto

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formal, independentemente de qualquer referência a uma doutrina política ou social.

5.5.3 Elementos

No direito subjetivo encontramos quatro elementos essenciais: sujeito, objeto, relação e proteção jurisdicional.

Sujeito é a pessoa que tem faculdade de fazer ou deixar de fazer, de exigir ou deixar de exigir, aquela que se denomina o facultado.

O objeto é o bem jurídico sobre o qual incide a faculdade. O objeto do direito de um titular de crédito de dinheiro é o ato do devedor pagá­lo. O objeto é o conteúdo do dever alcançado pelo exercício do direito.

Para que alguém tenha faculdade sobre algo, é necessário que se estabeleça uma relação jurídica, a matriz do direito subjetivo.

O que caracteriza esta relação é ser protegida. Se tenho um direito subjetivo, me é assegurado, complementarmente, exigir do Poder Público que o ampare, na hipótese de ameaçado, turbado ou violado. A proteção é dada pela ação.

A doutrina costuma acrescentar a esses quatro elementos estruturais mais dois.

Um é o fato jurídico, o acontecimento, natural ou voluntário, gerador da relação. O fato é elemento logicamente integrante da idéia de relação jurídica, considerada ela na sua dinâmica. Mas não lhe pertence estruturalmente. Uma vez ocorrido, estabelece­se a relação, que subsiste ao seu desaparecimento. Portanto, analisada a relação em si mesma, o fato pode ser omitido.

O outro elemento é o sujeito passivo. Essa indicação vem de uma teoria própria quanto à natureza dos direitos reais, discrepante da noção comum. Com efeito, se admitimos que o direito real é um poder jurídico de pessoas sobre coisas, vínculo direto entre aquelas e estas, o sujeito passivo apenas seria constitutivo das relações de direito pessoal. Assim, não poderia ser genericamente apontado como elemento inerente a toda relação jurídica. Somente em se aceitando tese divergente, que entende impossível a existência

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de relação jurídica pessoa­coisa, com a qual, aliás, concordamos, podemos generalizar a indicação deste elemento. Matéria discutida, será exposta na oportunidade apropriada.

Ao sujeito do direito chamamos pessoa. A pessoa pode ser: física ou natural, o que é apenas questão de nomenclatura, e jurídica. Pessoa natural ou física é o homem. Todo homem é sujeito de direitos. A sua condição lhe confere essa qualificação. Entidades há, porém, que, não sendo seres humanos, têm direitos, como por exemplo, as associações. São pessoas jurídicas.

O direito subjetivo pode ter por objeto atributos personalíssimos, ações humanas e coisas corpóreas e incorpóreas.

Os atributos personalíssimos são inerentes à pessoa, como a vida, a honra, a liberdade, o nome, a própria figura, a integridade física, a saúde, etc.

As ações humanas, umas resultam dos liames de família, outras da existência de um vínculo jurídico, pelo qual uma pessoa se obriga a fazer, deixar de fazer ou dar alguma coisa a outra.

As coisas, juridicamente consideradas, podem ser corpóreas e incorpóreas. As corpóreas têm uma dimensão no espaço, são materiais. As incorpóreas formam a propriedade intelectual que Miguel Maria de Serpa Lopes distribui em cinco grupos:

a) obras literárias, científicas e artísticas;

b) invenções industriais;

c) firmas comerciais;

d) insígnias de estabelecimentos; e

e) marcas de fábrica.

Quando a relação jurídica submete uma coisa a uma pessoa o direito é real; quando se estabelece entre pessoas, o direito é pessoal.

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5.5.4 Classificação

Há numerosas classificações dos direitos subjetivos.

5.5.4.1 Gaio

Começaremos pela que nos parece a mais antiga, a de Gaio (séc. II), jurisconsulto romano, par quem grupar­se­iam em três conjuntos: os direitos das pessoas (sobre ou contra pessoas), direitos das coisas (poder sobre uma coisa) e direito das ações (faculdade de impetrar a proteção jurisdicional ao seu próprio direito subjetivo).

5.5.4.2 Savigny

Savigny dividia os direitos subjetivos em direitos de família e direitos dos bens. Essa disposição apoia­se no reconhecimento de que as duas instituições privadas são a família e a propriedade. Os direitos dos bens, subdividia­os em direitos relativos às coisas e direitos obrigacionais, estes faculdades contra pessoas, suscetíveis de estimativa pecuniária.

5.5.4.3 Teixeira de Freitas

O nosso grande jurisconsulto imperial Teixeira de Freitas (1817­1883) adotou outra classificação, que influiu na estrutura do Código Civil da Argentina. Distinguia os direitos subjetivos em pessoais e reais, relações entre pessoas e entre pessoas e coisas.

Os pessoais, subdividia­os em direitos de família (relação de pessoa a pessoa resultantes do vínculo familiar, como o pátrio poder e o poder marital) e direitos pessoais civis (relações de pessoa para pessoa, tendo por conteúdo a obrigação de uma delas de praticar ou abster­se de um ato ou de entregar uma coisa).

No segundo grupo, direitos dos bens, situava dois subgrupos: os direitos reais sobre coisa própria e os direitos reais sobre coisa alheia, conforme o direito incidisse sobre coisa pertencente ao seu titular (propriedade) ou sobre coisa pertencente a outrem (usufruto, penhor, hipoteca, etc.).

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5.5.4.4 Picard

Picard distribuía os direitos subjetivos em quatro ramos: direito auto­ pessoais (in persona ipsa), direitos obrigacionais (in persona aliena), direitos reais (in re materiali) e direitos intelectuais (in re intelectuali). Os intelectuais são poderes sobre coisas incorpóreas.

5.5.4.5 Roguin

Roguin, seguindo Windscheid, agrupou os direitos subjetivos em dois conjuntos principais e um complementar. Os principais seriam os direitos absolutos e os relativos. Absolutos são aqueles em que de um lado está o titular do direito e, de outro, estão todas as pessoas, alheias ao direito, com o dever de respeitá­lo. São direitos erga omnes, isto é, oponíveis contra todos. Exemplo: o proprietário tem poder sobre um objeto, não relativamente a alguém, mas contra todos os demais, que têm o dever negativo de respeitar a sua propriedade. A outra face do direito é um dever universal negativo.

Note­se que Adolf Reinach (1883­1916) atribuía a verdadeira característica dos direitos absolutos não à universalidade, sim à impossibilidade, diante deles, de qualquer contraposição, sendo aquela produto desta.

Os direitos relativos dirigem­se a pessoas determinadas, o que diz da sua relatividade. Se A pede uma importância a B, B só pode cobrá­la de A. O direito de B é relativo a A, e não a C, a D, a E, ou a qualquer outra pessoa. Em tais relações jurídicas, o sujeito passivo é determinado, e nas relações em que o direito subjetivo é absoluto o sujeito passivo é indeterminado.

Os direitos absolutos, segundo Roguin, são: os auto­pessoais, os potestativos e os reais.

Os relativos são os obrigacionais.

A esses dois grupos (direitos absolutos e relativos) somava Roguin um terceiro, direitos, no seu entender, nem relativos nem absolutos, que denominava monopólios de direito privado. São os direitos intelectuais: a exclusividade que tem o autor de uma música de autorizar a sua execução, o

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privilégio que tem o inventor de uma patente de explorá­la industrialmente, etc.

5.5.4.6 Kelsen

Kelsen define o direito subjetivo como manifestação do objetivo. Se o direito objetivo é a fonte dos direitos subjetivos, estes só podem ser classificados quando mirados na sua relação com aquele. Melhor, só podem advir de uma peculiar posição do indivíduo diante da norma jurídica. Esta posição assume três modalidades: liberdade, subordinação e atividade.

O indivíduo está em posição de liberdade, quando certo aspecto da sua conduta constitui setor de sua vida que a norma se abstém de tutelar, deixando que fique ao seu arbítrio. Essa é uma relação negativa: a norma abstém­se e o indivíduo tem completa liberdade. Está em posição de subordinação, quando a norma manda fazer, sujeitando a conduta ao que prescreve. A norma manda e o indivíduo cumpre. Exemplo: a prestação de serviço militar. Entre esses dois contrastes, existe uma posição na qual o indivíduo é ativo perante a norma. É nessa posição que surge o direito subjetivo, quando a norma não dá completa liberdade ao indivíduo nem o subordina por inteiro, mas faz da iniciativa dele condição de sua atuação. Se a norma diz “quem tem uma dívida deve pagá­ la”, está impondo um dever, mas a exigibilidade efetiva do dever depende da atividade do credor. O direito subjetivo procede desta posição de participação.

Na posição de atividade, a pessoa participa da formação de normas gerais e particulares. A criação de normas gerais (leis) pode ser promovida diretamente (democracia direta) e indiretamente (democracia representativa). No primeiro caso, cada cidadão é titular de um direito subjetivo de voz e voto nas assembléias populares. No segundo, o grupo maior dos eleitores possui certos direitos chamados eleitorais e o menor, dos eleitos, também outros direitos, recebidos da investidura conferida. A todos denominamos direitos políticos.

Na criação de normas particulares, o direito subjetivo pode se constituir com a manifestação da vontade da pessoa obrigada pelo dever ou sem ela. O ato, portanto, é bilateral ou unilateral. Unilateral, quando decorre de uma determinação estatal: despacho administrativo e sentença judicial; bilateral, quando de um concurso de vontades: contrato.

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5.5.4.7 Escola egológica

Partindo das premissas fundadas pela teoria egológica de Cossio, Machado Neto adota uma classificação ampla e atual.

As faculdades (direitos subjetivos) são de inordinação (prestar algo) ou de senhorio (obter algo). As últimas correspondem à noção de direito subjetivo em sentido estrito e são absolutas ou relativas, tomados os qualificativos da mesma acepção já estudada em relação ao esquema de Roguin. Os direitos absolutos se subdividem em públicos e privados. Estão no segundo grupo os direitos personalíssimos, os reais e os intelectuais. O primeiro é constituído pelo aspecto público dos direitos privados absolutos, dado que em relação a estes também o Estado, pelo dever de respeitá­los, está em posição de passividade jurídica. Os direitos relativos também subdividem­ se em públicos e privados. São públicos aqueles em que o Estado é sujeito ativo (cobrança de impostos) ou passivo (direito de ação e direitos políticos) da relação. São privados os potestativos e os obrigacionais, ambos já anteriormente conceituados.

5.6 DIREITOS PESSOAIS E DIREITOS REAIS

Em quase todas as numerosas classificações de direitos subjetivos, encontramos a distinção entre direitos pessoais e reais. Essa divisão apresenta particular importância, porque não é somente de interesse teórico, senão que também prático.

Conforme o direito subjetivo seja pessoal ou real, o seu exercício varia e a sua proteção assume formas diferentes.

Embora usual, a distinção é objeto de severas críticas. Há juristas que a impugnam, entendendo que todos os direitos são reais e, assim, os chamados pessoais não passam de modalidades daqueles. Outros, inversamente, em atitude mais afinada com a moderna teoria geral do direito, contestam a existência de direitos reais, que reduzem à natureza dos direitos pessoais.

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Ao expor a polêmica, indicaremos os seus termos, justificaremos a sua importância e esclareceremos o seu limite.

Se um direito é real, o seu titular o exerce diretamente sobre o objeto. Se, porém, é pessoal, o titular não alcança o objeto diretamente. Só pode obtê­ lo através de um ato do sujeito passivo da relação, ato que não pode conseguir compulsoriamente, de maneira que o seu direito se resolve numa indenização.

Um exemplo típico: nas locações residenciais, o inquilino tem preferência à compra do imóvel, acaso alienado pelo locador. Se o proprietário vende o imóvel sem dar a preferência ao locatário, qual é o direito deste? Haverá duas soluções, conforme o direito de preferência seja considerado real, um direito sobre coisa, o imóvel, ou pessoal, um direito contra pessoa, o locador. Considerado real, o inquilino, sabendo da venda, deposita o preço e obtém o prédio, diretamente do comprador. Mas, se, como diz, aliás, a nossa lei, esse direito é pessoal, a sua infração resolve­se na indenização de perdas e danos. O inquilino não pode ir contra o adquirente para recuperar a coisa, mas contra o proprietário, para obter dele uma indenização do dano que lhe causou a violação do dever.

Vê­se, assim, da importância prática da distinção que Tito Fulgêncio caracteriza da seguinte forma:

a) no que toca ao direito material, porque o direito real confere ao seu titular duas vantagens consideráveis: o direito de preferência e o direito de seqüela;

b) no referente ao direito formal, porque varia a competência judicial, conforme se trate de ações pessoais ou de ações reais.

5.6.1 Teoria dualista

A dicotomia tem sido tradicionalmente aceita, obra de uma longa e penosa evolução, que, no dizer de Manuel Inácio Carvalho de Mendonça (1859­1917), teria atingido em nossos dias um grau de perfeição completa a ponto de se apresentar como inerente à natureza das coisas. Dizemos que os direitos reais geram uma relação entre a coisa e o sujeito e um poder deste sobre aquela. Os pessoais geram uma relação entre duas pessoas e a faculdade de uma delas contra a outra, suscetível de estimativa pecuniária.

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Aceita a distinção, tal como rotineiramente formulada, estabeleceremos características próprias de cada um.

Os direitos reais são absolutos, os pessoais relativos. Nos reais existe, de um lado, o titular do direito, e, de outro, todas as pessoas estranhas, com a obrigação de respeitá­lo. Nos pessoais, existe uma pessoa titular do direito relacionada a outra pessoa, o sujeito passivo, obrigada pelo dever. O direito real é oponível contra todos. O pessoal, apenas contra pessoas determinadas.

Nos direitos reais, existe uma relação direta entre o sujeito do direito e o seu objeto. Nos pessoais, essa relação é indireta. Para que o titular de um direito real exerça o seu direito, basta dirigir­se à coisa da qual é objeto. Na relação de direito pessoal, o sujeito, para alcançar o objeto, tem que se dirigir a uma pessoa e através de um ato desta é que pode atingi­lo. Se alguém se compromete a me prestar um serviço, só posso obter a prestação por um ato seu.

Daí decorre a estrutura bielementar do direito real e a trielementar do pessoal. O real se compõe, na sua estrutura mínima, de dois elementos (sujeito e objeto), ao passo que o pessoal só podemos conceber, no mínimo, com três elementos (sujeito ativo, sujeito passivo e objeto). Posso dizer: sou proprietário disso. Mas não posso dizer: sou credor de US$ 500,00, a expressão seria incompleta. Credor de quem? Terei de acrescentar: de fulano.

Entre os direitos pessoais e os reais ainda há uma diferença: o objeto patrimonial do direito real é determinado e o do direito pessoal, indeterminado. Ser proprietário é sê­lo de coisa certa. Os direitos pessoais também têm fundo patrimonial, porque, se o devedor não cumpre o dever, o credor, como sujeito ativo, tem a faculdade de lançar mão do patrimônio daquele, para se indenizar de perda e danos decorrentes do inadimplemento da obrigação. Mas não existe qualquer bem do devedor diretamente vinculado ao compromisso. É todo o seu patrimônio que, genericamente, responde pela indenização que lhe incumbirá em caso de insatisfação do dever.

5.6.2 Teorias monistas

Esta é a noção clássica pela qual diferenciamos direitos reais de pessoais.

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No entanto, há orientações doutrinárias que negam a legitimidade dessa distinção.

São as teorias monistas, que reduzem estes dois direitos a um só, embora sustentem teses contraditórias. Eugène Gaudemet e Gazin identificam o direito pessoal ao real e sustentam que o pessoal não é senão modalidade sui generis do real; Marcel Planiol e José Louis Ortolan (1802­1873) equiparam os direitos reais aos pessoais, afirmando que aqueles são modalidades destes.

Antes de expor as duas maneiras de julgar o problema, é imprescindível explicar o sentido exato em que a expressão direito pessoal é usada, para distinguir certos direitos dos direitos reais.

Quando aludimos a direitos pessoais e reais referimo­nos a uma subdivisão dos direitos patrimoniais, isto é, os que têm por objeto bens economicamente avaliáveis. Os bens econômicos podem ser coisas, cujo valor econômico é o seu preço, e crédito ou atos ou omissões alheias, cujo descumprimento traz, para o titular do direito, uma compensação patrimonial.

Deve ser prestado este esclarecimento, porque, às vezes, usamos a expressão direito pessoal com significação mais ampla, para referir, também, os direitos personalíssimos e os emergentes das relações de família.

São esses direitos patrimoniais, pessoais e reais, que a doutrina tradicionalmente contrasta, relacionando as diferenças típicas entre uns e outros. São os mesmos que alguns doutrinadores pretendem tenham uma só natureza.

5.6.2.1 Gaudemet e Gazin

A teoria que reduz o direito pessoal à natureza do direito real é de Gaudemet, Jallu, Gazin e outros. Entendem que o direito pessoal apresenta a mesma natureza do real, com a diferença de que o bem patrimonial objeto do direito real é determinado, ao passo que o bem patrimonial, objeto do direito pessoal, é indeterminado.

No direito real, a ordem jurídica confere a uma pessoa o poder de fruir das vantagens que uma certa coisa lhe pode proporcionar. Por exemplo, o

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direito de propriedade dá ao proprietário a faculdade de fruição de um bem determinado. Igualmente acontece com outros direitos reais: o usufruto, a hipoteca, o penhor, etc.

No direito pessoal, o titular do direito, que recebe a denominação de credor, se o sujeito passivo (devedor) não presta o compromisso, dele pode obter uma compensação correspondente, e o que responde por esta é o patrimônio do obrigado. Logo, objeto do direito é sempre patrimônio: patrimônio determinado, nos direitos reais, indeterminado, nos pessoais.

Igual é o entendimento de Savigny, para quem a obrigação tem natureza semelhante à da propriedade, não somente porque ambas traduzem um domínio ampliado da nossa vontade sobre uma parte do mundo exterior, mas também por outras razões:

a) pela possível estimação das obrigações em dinheiro, o que não é senão sua transformação em propriedade de dinheiro;

b) porque a maior parte das obrigações, precisamente as mais importantes, tendem para a aquisição da propriedade ou sua fruição provisória.

5.6.2.2 Planiol e Ortolan

Para Planiol, Ortolan, Roguin e outros, a simples formulação tradicional dos direitos reais envolve um absurdo, porque a relação jurídica é sempre entre pessoas.

O que chamamos direito real, consoante a maneira tradicional de conceituá­lo, é, para aqueles juristas, um fato, não um direito. Mas neste fato não está o direito, tanto que a posse do proprietário é uma e a do ladrão, outra. A do proprietário é legítima, deve ser respeitada por todos, a do ladrão, um simples fato material, não tem proteção jurídica.

O suposto direito real apenas esconde uma forma sutil de intersubjetividade das relações jurídicas. Nele, o sujeito passivo da relação é indeterminado, é a universalidade das pessoas estranhas ao direito. A estrutura do direito real é idêntica à do pessoal, é direito que se exerce contra pessoas. A diferença está, apenas, em que no direito pessoal o sujeito passivo é determinado (ser credor é ser credor contra alguém) e, inversamente, no

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direito real, sujeitos passivos são todas as pessoas estranhas ao direito, que têm para com o seu titular um dever negativo de acatamento.

É fora de dúvida que a doutrina tradicional sobre a natureza dos direitos reais é inadmissível. Citando Del Vecchio, lembraríamos que a norma jurídica resolve sempre conflitos intersubjetivos de ação. Não existe, portanto, situação jurídica que não seja entre, no mínimo duas pessoas. Para que haja alguém com um direito é logicamente imprescindível que haja alguém com um dever. Ninguém pode ter direitos sobre coisas, porque coisas não podem ser sujeitos passivos de deveres.

5.7 PROTEÇÃO DOS DIREITOS SUBJETIVOS

A relação jurídica subjetiva é protegida por um elemento envolvente, a garantia.

O direito subjetivo tem seu fundamento no ordenamento jurídico, dado que a norma gera deveres e direitos. Sendo o direito subjetivo um poder que a ordem jurídica confere ao indivíduo e caracterizada a norma jurídica pela coercitividade, os direitos subjetivos gozam da mesma proteção dispensada à norma. A sociedade, pelo órgão que detém o monopólio do constrangimento, o Estado, ampara os direitos subjetivos, eliminando as ameaças que se lhe façam, as turbações que os molestem, e os restaurando, em caso de violação. Para isso, o titular do direito subjetivo tem a faculdade paralela de invocar a proteção estatal. Esta faculdade é o direito de ação. Exemplo: o credor de uma nota promissória tem o direito subjetivo de exigir o seu resgate e também dispõe da ação executiva, se o devedor não lhe paga, exigindo do Estado que o constranja a fazê­lo.

Direito subjetivo e ação são indissociáveis. A todo direito subjetivo corresponde uma ação.

Ao apelo formulado na ação o Estado atende exercendo a função jurisdicional. Ao fazê­lo, cumpre um dever que, segundo Pedro Batista Martins, é a um tempo jurídico e político. É dever político porque a organização de uma jurisdição é um postulado de ordem pública, dado que a sociedade não poderia subsistir sem que a um poder soberano se atribuísse a

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tarefa de impor coativamente a cada indivíduo a observância da lei. E é um dever jurídico, porque cada indivíduo isoladamente considerado poderá, em certas emergências, invocar, por meio de uma ação judicial, a proteção do Estado para um direito reconhecido.

O Estado exerce essa função por via de atos adequados a cuja concatenação chamamos processo. A sucessão e a coordenação desses atos, como sublinha José Frederico Marques, não poderia ser arbitrária, nem seria concebível que o respectivo modus procedendi ficasse entregue ao alvedrio das pessoas que nele intervêm, razão pela qual o processo está subordinado a normas e princípios que formam um conjunto de regras denominadas processuais.

O desfecho do processo é a sentença. O titular do direito subjetivo alega junto ao órgão judiciário que tem um direito contra alguém e de acordo com a lei este lhe deve uma prestação; o juiz conhece do fato, conhece da norma geral, verifica que o fato está enquadrado nela e prolata a norma individualizada, válida entre as partes. Se o direito subjetivo existir, a proteção será deferida.

Quando se diz que a sentença é válida entre as partes, deve ser observado que tal expressão tem sentido relativo. Com efeito, o que a sentença decide é também oponível a terceiros. Assim, uma sentença declaratória de estado, embora resulte de um conflito de pretensões entre duas pessoas, define o estado de um dos litigantes ou de ambos para todos, mesmo em relação àqueles que não foram partes no processo. Conforme a ponderação de Enrico Tullio Liebman, o juiz que, na plenitude de seus poderes e com todas as garantias outorgadas por lei, cumpre sua função, declarando, resolvendo ou modificando uma relação jurídica, exerce essa atividade (e não é possível pensar diferentemente) para um escopo que outra coisa não é senão a rigorosa e imparcial aplicação e atuação da lei; e não se compreenderia como esse resultado todo objetivo e de interesse geral pudesse ser válido e eficaz só para determinados destinatários e limitado a eles.

5.7.1 Mutações históricas

Sempre e onde quer que haja direitos subjetivos há proteção a eles, porque direito desprotegido não é direito.

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5.7.1.1 Autodefesa

Hoje a proteção se realiza pela prestação da função jurisdicional. Mas nem sempre foi assim. A modalidade de tutela mais primitiva do direito subjetivo ocorreu quando o titular do direito o era também das respectivas faculdades executivas, fazia justiça pelas próprias mãos. É o regime da autodefesa. A sociedade concedia aos indivíduos direitos e lhes reconhecia habilitação para defendê­los. O indivíduo não podia apelar para a sociedade, pedindo a atividade desta em benefício de um direito seu.

5.7.1.2 Talião

Na segunda fase, o direito de autodefesa passa a ser limitado. O indivíduo ainda é titular das faculdades executivas do direito, mas privado de exercê­las a seu talante. Antes, se o direito individual era lesado, o paciente o defendia segundo o seu soberano critério. Nesta fase, a defesa obedece a uma certa medida: não pode ir além da agressão. É o talião: olho por olho – dente por dente. O infrator recebe retribuição correspondente à ofensa.

Ulteriormente, essa própria regra é restringida, passando a prevalecer apenas para a punição de certos delitos. Assim, por exemplo, ocorreu no Direito muçulmano, segundo registra José Lopez Ortiz, no qual as obras de jurisprudência passaram a catalogar as lesões justificativas do talião, deste excluindo algumas, já por sua pequena importância, já pelo risco de que a aplicação causasse ao culpado dano maior do que o por ele produzido.

O talião, no ensinamento de Francisco Consentini, subtraiu a regra sancionadora ao arbítrio individual, elevando­a ao nível de princípio social. Louis Proal entende que ele testemunha um sentimento elevado de justiça e está longe de merecer o desprezo dos penalistas.

5.7.1.3 Composição

Em terceira fase, surgiu a composição. As soluções jurídicas evoluem sempre das formas violentas para as pacíficas, até mesmo porque o direito é uma solução pacífica dos conflitos de interesse. Às formas agressivas precedentes – a autodefesa e o talião – sucede a composição. As partes em

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litígio procuram compor a sua dificuldade, eliminar a contradição de seus interesses, determinar a estimativa de seus danos através de uma fórmula pecuniária. Entra na história das sanções jurídicas a indenização, reparação dos danos por uma prestação de valor econômico.

5.7.1.4 Jurisdição

Começou, então, a aflorar o que veio a ser a forma definitiva de posição dos direitos subjetivos, a jurisdição. O titular do direito passa a ser exclusivamente titular do direito, despojado das faculdades executivas. Somente a sociedade tem o monopólio destas faculdades, somente ela pode dizer se há ou não direito, o que sucede a quem não cumpre o dever, e praticar atos de constrangimento contra o transgressor. Nesta fase final, ao titular do direito subjetivo cabe apenas pleitear ao Estado que o proteja.

5.7.2 Natureza da ação

Na doutrina, indaga­se qual é a relação entre o direito subjetivo e a ação. São irmãos xifópagos, que não podem existir separadamente? Haverá entre eles diversidade de importância e significação? Será um principal e outro acessório? Qual é, finalmente, a natureza desse liame que prende direito subjetivo e ação?

A posição doutrinária mais antiga é não­autonomista. A ação seria um corolário do direito subjetivo, nunca direito que exista per se.

Outras teorias asseveram que a ação é um direito autônomo, cuja existência se afirma independentemente da existência do direito subjetivo. São teorias autonomistas.

5.7.2.1 Teoria não­autonomista

Destacam­se, entre as primeiras, a de Nicola Coviello e, modernamente, a de Kelsen.

Coviello reputa a ação uma função do direito subjetivo. Sendo proteção que a ordem jurídica dispensa ao direito subjetivo, não pode existir sem este.

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Admitir o contrário levaria à noção absurda da existência de direitos subjetivos em si, privados de proteção jurisdicional.

Na ação, Coviello distingue o aspecto material (potencialidade) do formal (atuação). No material, é o direito de demandar a proteção jurisdicional à faculdade subjetiva, por isso complementar do direito subjetivo. No formal, é conjunto de atos em cuja coordenação consiste o processo. É apenas um fato, com aparência de autonomia, donde alguns juristas a considerarem direito autônomo.

Kelsen vê indissolúvel ligação entre o direito subjetivo e a ação. O direito subjetivo, insistimos na repetição, é a outra face do dever jurídico, que resulta da norma. Sendo o dever exigível, forçosamente o direito é exercível. A exigência de garantia do direito não pode deixar de ser intimamente ligada à exigência de cumprimento do dever, sob pena de certa sanção. Norma, direito, dever e ação formam uma unidade jurídica, cujos elementos são incindíveis, resultando daí impossibilidade de se considerar autônomo qualquer deles.

5.7.2.2 Teoria autonomista

Ao lado das teorias não­autonomistas encontramos, e atualmente com preponderância na teoria do Processo, as autonomistas, que consideram o direito subjetivo um e o da ação outro. Destacam­se as de Adolf Wach, Giuseppe Chiovenda, James Goldschmidt e Ugo Rocco.

As teorias autonomistas estão fundadas em diversos argumentos.

Entre eles está o da existência de ações sem direito. Se há ações a que não corresponde uma alegação de direito subjetivo, logicamente a ação é autônoma. Exemplo: a ação declaratória, a qual, na lição de Alberto M. Malver, tende exclusivamente a obter uma sentença que reconheça a existência ou a inexistência de um direito, diversamente da ação condenatória, que impõe o cumprimento de uma obrigação positiva ou negativa, e da ação constitutiva, que cria um estado jurídico novo, ou modifica ou extingue um estado jurídico já existente.

Mais típico é o argumento das ações declaratórias negativas que objetivam por sentença a negação de um dever ou de um vínculo, como ação

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negatória de paternidade, que visa apenas a declaração negativa do fato. Não há direito subjetivo, no entanto, existe ação.

Como proclama Celso Agrícola Barbi, o reconhecimento doutrinário da existência da ação declaratória foi o golpe de morte na doutrina civilista (não­ autonomista) da ação.

Inversamente, há direitos sem ações. As obrigações naturais não autorizam o sujeito ativo exigir seu cumprimento; mas, se cumpridas, seus efeitos não são revogáveis. Exemplo: as dívidas de jogo. O ganhador não tem ação para demandar o pagamento da importância ganha. Mas, se o devedor paga, não se poderá pleitear restituição. Há direito subjetivo, porque, se não existisse, o pagamento seria indevido e, em conseqüência, restituível.

Argumentam, ainda, os adeptos das teorias autonomistas, que a própria natureza do direito de ação desmente a sua dependência do direito subjetivo. A ação é direito subjetivo contra o Estado, ao passo que, na maioria dos casos, os direitos subjetivos protelados pela ação são contra indivíduos.

Por isso, o direito de ação é sempre público, e os direitos subjetivos protegidos, na sua maior parte, são privados.

Resta observar, como faz Amilcar A. Mercader, que não são poucos os processos que terminam com a desistência recíproca dos direitos pretendidos pelas partes litigantes ou que se encerram, às vezes, com a declaração explícita de que não existem as circunstâncias de fato alegadas para a propositura da ação, com o que se estabelece a inexistência das relações jurídicas invocadas no pleito. Em ambos os casos, a ação chega a seu pleno destino, esgotando­se no ato de uma sentença, sem que tenha havido a necessidade de ser justificada pela existência das relações jurídicas que ocasionaram o pleito.

5.7.3 Classificação das ações

Das numerosas classificações de ações, a mais simples, ainda que de escasso mérito doutrinário, divide­as em dois grupos: ações pessoais e ações reais, de acordo com a natureza do direito que protegem. Se o direito subjetivo é pessoal, a ação é pessoal, se real, a ação é real.

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Conforme o caso, varia a competência do juiz. Nas ações pessoais, a competência é, em princípio, do juiz do domicílio do demandado, o réu. Nas reais, a competência é do juiz do local onde se encontra a coisa.

Além dessas, existem as ações de estado e as penais.

As ações de estado têm por objeto o estado civil da pessoa. Exemplo: as ações de investigações de paternidade, de destituição do pátrio poder, de desquite, de anulação de casamento, etc.

As penais destinam­se a apurar a responsabilidade dos que infringem a lei penal e impor­lhes a pena devida. Em regra a sua iniciativa cabe ao Estado.

Se considerarmos apenas as ações civis, podemos adotar outras classificações mais modernas, que atendem principalmente ao resultado que se logra pela sentença, assim como, por exemplo, a adotada por Torquato Castro:

a) ações condenatórias, que visam, além da declaração de uma relação jurídica ou do direito a uma prestação, a condenação do obrigado a ela;

b) ações declaratórias, que pretendem a simples declaração de existência ou inexistência de uma relação jurídica;

c) ações constitutivas, que visam instituir uma mudança de estado ou constituir efeitos jurídicos ainda inexistentes.

5.8 DEVER JURÍDICO

A matéria deste capítulo está diretamente vinculada à distinção entre normas morais e jurídicas.

Cuida­se de saber se o dever jurídico tem natureza própria, incapaz de equívoco com a do dever moral.

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Podemos chegar a dois resultados: concluir pela identidade de ambos, ou atribuir a cada um deles uma essência. Temos, portanto, duas teses: uma que identifica o dever jurídico ao moral; outra que lhe atribui natureza distinta.

5.8.1 Teoria não­autonomista

Toda a doutrina filosófica que conclui pela identidade entre o dever jurídico e o moral (da qual é típica a sentença de Viktor Cathrein (1845­1931): um dever não moral é uma contradição) flui da filosofia de Kant, que repousa nas noções de autonomia e heteronomia.

5.8.1.1 Kant

Kant distingue, objetivamente, o dever moral do jurídico, adotando o princípio de que as ações humanas estão sujeitas a duas modalidades de constrangimento. Há um constrangimento exterior que apenas alcança os atos externos. E um constrangimento que exercemos sobre nós mesmos, vencendo obstáculos que as inclinações da nossa natureza opõem ao cumprimento de uma lei de consciência. A esta, por causa mesmo desse antagonismo, chamamos dever.

As obrigações que podem ser objeto de constrangimento e de legislação exteriores, correlativas que são de direitos alheios, denomina Kant deveres de direito. As outras, que escapam a qualquer coação exterior, sancionadas que são, unicamente, pelas exigências da nossa consciência, são as morais.

Diferenciam­se, ainda, os deveres jurídicos dos morais, por gerarem aqueles obrigações estritas e estes, obrigações latas. As prescrições de direito não admitem mais ou menos, o que exigem é sempre claro e preciso. As regras de moral deixam ao nosso arbítrio uma certa latitude, dentro de cujos limites a ação pode se restringir ou ampliar. A moral prescreve máximas gerais, sem indicar atos determinados, o direito fixa exatamente o que pretende da conduta em cada circunstância particular.

Mas uma obrigação jurídica, em si mesma, jamais constitui autêntico dever, porque este, somente pode ser uma exigência ética interna, e o direito se contenta com a mera legalidade, isto é, a adequação do ato ao paradigma da regra. Daí não ser propriamente meritória a simples conformação das ações ao

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direito. Entretanto, essa conformação pode passar a meritória e aquela exigência converter­se em dever, se entendidas como decorrentes da máxima segundo a qual é devido o respeito ao direito. Assim, o homem se dá por fim o direito da humanidade, e amplia seu conceito de dever além dos limites daquilo que é juridicamente devido. Com efeito, segundo o que faculta a regra jurídica, outras pessoas podem exigir de mim ações conforme a lei, mas não pretender que adote a lei como móvel daquelas ações. Se faço, elevo­me além da estrita obrigação jurídica, e dessa maneira a converto em dever. Como explica Riccardo Miceli, segundo Kant, a coação e a exterioridade, que os juristas consideram as notas distintivas do Direito, são caracteres extrínsecos do direito frente à moral, pois nunca impulsionam a ação senão transformando­se em impulsos de consciência e convertendo­se de exteriores em interiores.

O dever jurídico é uma obrigação ética indireta: provém de imposição alheia à consciência, mas pode se transformar em autêntico dever, se aceito como tal, e com isso convertido em autônomo. Essa atitude, porém, é essencialmente moral, não jurídica.

5.8.1.2 Laun

A tese de Kant foi renovada em termos enfáticos por Rudolf Laun.

Para ele, o indivíduo pode submeter­se a uma ordem, sem lhe dar anuência, sem sentir a sua legitimidade, sem aceitar o seu fundamento, havendo no seu ato apenas sujeição ao poder, não execução de um dever nem submissão ao direito. O direito só é imperativo de conduta se lhe é correlata uma regra autônoma, se sua validade é acatada. A regra jurídica só obriga como dever, quando da sua legitimidade participa a consciência individual.

O homem pode, portanto, sujeitar­se a uma norma, na situação do mais fraco diante do mais forte. Mas, subordinar­se à força é completamente distinto de praticar um dever, o que é, e será sempre, um ditame da consciência.

5.8.2 Teoria autonomista

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Em contraste com Kant e Laun, encontramos posições doutrinárias mais compatíveis com as necessidades científicas do direito, afirmando a autonomia do dever jurídico.

5.8.2.1 Kirchmann

Kirchmann assenta a distinção na razão psicológica que leva o homem a cumprir os deveres. O moral, cumprimo­lo espontaneamente, por uma exigência íntima. O jurídico, acompanhado de uma promessa de dano em caso de descumprimento, observamo­lo não por satisfação individual, mas para prevenir o castigo com que a norma, em que o dever repousa, nos ameaça.

A essa maneira de entender cabem dois reparos. Primeiro: a experiência parece desmentir ser somente o medo da sanção que leve o homem a executar um dever jurídico. Sendo ele legítimo, é preponderantemente cumprido, porque o indivíduo reconhece a sua validade, e o obedece quanto obedeceria um dever moral, tanto assim que a conduta concorde com o dever domina avassaladoramente sobre a discrepante. Segundo: se o indivíduo vence o receito de que fala Kirchmann e descumpre o dever, a resistência psicológica que opõe à sanção de nada lhe vale, porque aquele da mesma maneira se lhe imporá, e até com mais vitalidade.

5.8.2.2 Radbruch

Tese também afirmativa da autonomia do dever jurídico é a de Radbruch. O dever moral é meramente imperativo; o jurídico, imperativo e atributivo.

O dever moral prescreve determinada conduta, mas a ninguém outorga a faculdade de exigi­la.

O dever jurídico imposto a uma pessoa de adotar certo procedimento confere a outra a faculdade de reclamar dela, compulsoriamente, o comportamento prescrito.

Assim, a distinção entre dever moral e jurídico está na inexigibilidade do primeiro e na exigibilidade do segundo. Daí a sua expressão muito feliz, síntese clara de toda essência do dever jurídico: ele não é apenas dever, é

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também dívida. E dívida é algo que se deve a alguém. Portanto, o dever jurídico é sempre vinculatório de uma pessoa a outra.

5.8.2.3 Kelsen

Em Kelsen encontramos uma teoria do dever jurídico em termos estritamente formais, porque a característica da sua doutrina é situar­se no plano da lógica jurídica.

Kelsen atribui as insuficiências doutrinárias ao esquecimento de um dado primário: não há dever jurídico sem norma. E se esta, abstração feita ao seu conteúdo, pode ser formalmente conceituada com inteira autonomia, inevitável será reconhecer, também, a autonomia daquele.

A norma jurídica encerra um preceito de natureza geral, do qual o dever jurídico é a subjetivação. Somente podemos falar em dever jurídico de alguém estabelecendo uma referência da sua conduta à regra de direito. O dever jurídico é a norma posta em relação ao indivíduo. Não é uma realidade distinta da realidade da norma, mas desta emerge e se transmuda em dever individual, que tem destinatário certo e pode ser exigido de pessoa identificada. A sua tipicidade resulta da tipicidade da norma jurídica.

5.8.2.4 Del Vecchio

Del Vecchio reconhece que não podemos distinguir os deveres jurídicos dos morais, analisando o seu conteúdo. Não é a matéria de um dever que diz se ele é jurídico ou moral.

O dever é mora, se dimana de uma interferência subjetiva de ações, e é jurídico, se emerge de uma interferência intersubjetiva de ações, tal como já expusemos no décimo capítulo.

5.8.3 Início e fim

O dever jurídico nasce de um fato. Nem todos os fatos, porém, acarretam deveres. Somente aqueles aos quais o direito empresta uma conseqüência, e, por isso, são chamados de fatos jurídicos.

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De várias maneiras extinguem­se os deveres jurídicos.

a) pelo adimplemento, que é o cumprimento da obrigação. O dever consiste numa prestação. Desde que a pessoa obrigada a cumpra, ele se extingue. Se tenho uma dívida e a pago, se devo entregar um objeto e o entrego, se devo prestar um serviço e o presto, cessam os respectivos deveres. Pela novação: a substituição de um dever por outro. O novo dever cancela o anterior. Se alguém, por exemplo, assume uma dívida, e, ao invés de pagá­la, contrai nova, pelo mesmo ou por valor superior ou inferior, a dívida nova substitui a antiga. O primeiro dever extingue­se pelo surgimento do novo.

b) pela renúncia do titular do direito à prestação exigível.

c) Pela morte, cuja eficácia, porém, em relação a esse resultado, somente alcança os direitos personalíssimos, não os patrimoniais.

Ainda cessam os deveres pela prescrição, instituição que Antônio Almeida de Oliveira alia à contingência de tudo que é humano ter um fim. Se o titular de um direito não atendido, hipótese, portanto, em que ocorre a omissão do dever alheio correspondente, não apela para a proteção jurisdicional daquele, dentro de certo prazo, diz­se que a ação que lhe garantia a faculdade prescreve. Prescrita a ação, caduca o direito e, logicamente, desaparece o dever correspondente. Assim, se o credor por uma dívida não paga no respectivo vencimento, deixa de acionar o devedor por um certo prazo subsequente, prescreve a ação que lhe era facultada, cessando o dever do sujeito passivo.

O fundamento da prescrição, como escreve Antônio Luís da Câmara Leal, é o interesse jurídico­social de evitar que a instabilidade do direito se perpetue, com sacrifício da harmonia social.

De outras maneiras, igualmente, extinguem­se os deveres jurídicos, merecendo ser citadas:

a) o acordo entre o sujeito ativo e o passivo;

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b) a força maior ou o caso fortuito (evento inevitável e imprevisível que torna impossível a prestação do dever).

5.8.4 Classificação

Há várias classificações de deveres jurídicos, todas, claro, aplicáveis à universalidade dos deveres, porque cada uma os considera debaixo de um critério.

Uma classificação os distribui em positivos, ou de ação, e negativos, ou de omissão. Os positivos consistem num ato a cuja prática uma pessoa se compromete: fazer ou dar. Donde as obrigações positivas de fazer e as positivas de dar, tendo por conteúdo, respectivamente, a prestação de uma certa conduta (por exemplo: um serviço) e a entrega de uma coisa (a devolução de um objeto recebido em depósito). Os deveres negativos, que consistem na abstenção de um ato, quase sempre são de respeito ao direito alheio.

Dividem­se também os deveres em públicos e privados, acaso provenientes de uma norma de direito público ou de uma de direito privado. Como o direito público abrange o constitucional, o administrativo, o processual, o criminal e o trabalhista, há deveres constitucionais, administrativos, criminais, processuais e trabalhistas. E como o direito privado compreende o civil e o comercial, temos correspondentemente, deveres civis e comerciais.

Também se classificam os deveres em patrimoniais, quando seu objeto é suscetível de estimativa pecuniária, isto é, a não prestação do dever resolve­se num valor econômico equivalente, e não­patrimoniais, de número hoje restrito, que repelem estimativa econômica.

Classificam­se, ainda, em permanentes e instantâneos, na medida da duração do tempo da sua execução. Instantâneos, quando cumpridos num ato só que exaure toda a sua execução. Exemplo, pagar uma dívida é dever que cessa através de um ato Permanentes, se acompanham constantemente a pessoa, como os de respeito aos direitos alheios: não matar, não furtar, não caluniar, etc.

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Por último, os deveres são simples complexos e alternativos. Os simples consistem na prática de um ato. É o exemplo do dever de pagar uma dívida. Os complexos importam a prática de vários atos. Assim, se alguém assume a obrigação de realizar uma obra por empreitada, fica sujeito à prática de atos numerosos, para a completa execução do dever. Alternativos são os que concedem à pessoa obrigada o direito de escolher entre prestações diversas.

5.9 RELAÇÃO JURÍDICA

A relação é o elemento medular da estrutura do Direito subjetivo. Sua realidade é exclusivamente jurídica, diversa da do sujeito e do objeto que podem ser vistos debaixo de outros aspectos.

Para que se estabeleçam relações jurídicas é necessário um fato e uma norma para a qual ele seja significativo.

A norma jurídica compõe­se de hipótese, a previsão de algo possível, e disposição, a conseqüência. A hipótese é sempre um fato que acontece no tempo. E somente quando este ocorre é que se desencadeia a conseqüência contida na disposição.

5.9.1 Fatos e atos jurídicos

Explica Jerome Hall que a classificação de certos fatos em econômicos, políticos, ou sociais não repousa em qualquer característica singular de cada um deles. Não existem, portanto, fatos econômicos, sociais ou políticos por natureza, pairando no Universo, nem existem fatos jurídicos por natureza. O fato é um produto de alta abstração e só adquire sentido quando visto pelo prisma de determinadas idéias. Assim, exemplifica, se os operários de uma fábrica abandonam coletivamente o trabalho, deliberando somente regressar se os seus salários forem aumentados, temos aí um fato econômico, unicamente porque tal acontecimento tem significação quando encarado em relação a certas proposições formuladas por uma disciplina chamada ciência econômica. A mesma situação, relacionada com a sociologia, que encara os fatos em relação a certas teorias concernentes às relações entre pessoas, grupo primário, liderança etc., passaria, então, a ser um fato social. E, se a mesma situação

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fosse encarada em relação a teorias concernentes à luta pelo poder, seria, então, um fato político. Acrescentaríamos que, se considerássemos a situação dos países que limitam o direito de greve, ainda aquela mesma situação, vista quanto à sua admissibilidade ou proibição, passaria a configurar um fato jurídico.

Nessa ordem de evidências, chega­se à conclusão de que todos os fatos a que as normas jurídicas dão sentido são fatos jurídicos. E postos eles nessa relação situam­se em dois grupos: fatos conforme o Direito e fatos anti­ sociais, violações da norma.

Define­se, portanto, fato jurídico como acontecimento, natural ou voluntário, ao qual o direito positivo atribui significação. Um fato só é jurídico se recebe da ordem jurídica esse atributo. O percurso das nuvens no céu é um fato, mas não jurídico, porque não gera direitos e deveres. Já uma inundação, também uma ocorrência natural, pode ser fato jurídico, se, como imprevisível e inevitável, altera as condições de uma pessoa a ponto de impossibilitá­la de solver seus compromissos.

Os fatos jurídicos podem ser acontecimentos naturais e ato humanos (manifestações de vontade). A expressão fato jurídico tem sentido amplo e restrito. Em sentido amplo, abrange fatos da natureza e atos do homem. Em restrito, aplica­se somente aos eventos naturais, denominando­se os segundos atos jurídicos.

Se a relação jurídica deriva de um fato em sentido restrito, ocorrido o fato, automaticamente, ela surge. Se de um ato, é indispensável a conduta de alguém para o enlace da hipótese com a disposição.

Schreirer, que identifica as noções de pressuposto e fato jurídico, aplicando ao direito o método fenomenológico, divide os fatos jurídicos de modo exclusivamente formal: independentes e dependentes. Os primeiros dão­ se isoladamente e determinam conseqüências por si mesmos. Os segundos são partes de um conjunto e, assim, sua eficácia está ligada à ocorrência de outros. Citando Husserl, define os dependentes: pressupostos em relação aos quais prevalece a regra de que somente podem existir como parcelas de uma totalidade. A dependência é absoluta e relativa. Absolutamente dependentes são os fatos jurídicos que por si mesmos não engendram nenhuma conseqüência, a menos que integrem um fato jurídico total. Relativamente dependentes, os que produzem por si determinadas conseqüências de direito,

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não outras, que somente geram quando unidos a novos fatos jurídicos relativa ou absolutamente dependentes.

Esclarecendo, a mora é um fato jurídico absolutamente dependente. Não tem sentido considerá­la fato jurídico que ocasione por si somente conseqüências de direito. Ela pressupõe outro fato jurídico condicionador, uma obrigação. Relativamente dependente, em relação ao fato jurídico total da constituição do penhor, é a entrega da coisa. Esta é um ato que também produz conseqüências de direito sem haver penhor, mas certas só no caso de haver.

5.9.1.1 Eficácia

Realizado o fato jurídico, ocorre certo resultado, no que consiste a sua eficácia, que pode ser constitutiva, resolutória, modificadora, transmissora e conservadora. Razão de dizer­se que fato jurídico é acontecimento, natural ou voluntário, que cria, extingue, modifica, transmite ou conserva direitos. Se o fato cria direitos, a sua eficácia é constitutiva; se os extingue, resolutória; se os modifica, modificadora; se os transmite, transmissora; se os conserva, conservadora.

Considerada quanto ao tempo em que se produz, a eficácia é imediata e diferida, conforme os efeitos sejam imediatamente subsequentes ao fato, ou tardios, em momento ulterior àquele pendentes de ocorrência futura. Esta pode ser incerta, suscetível de ocorrer ou não, ou certa, quando forçosamente ocorrerá, em data indeterminada ou determinada. No primeiro caso, trata­se de uma condição; no segundo, de um termo.

5.9.1.2 Negócios jurídicos

Por influência dos juristas alemães, notadamente Klein, Von Tuhr e Dernburg, a doutrina moderna, conforme acentua Sady Cardoso de Gusmão, inclina­se a estabelecer uma distinção entre atos jurídicos e negócios jurídicos, modalidades distintas, contidas na expressão genérica ato jurídico.

No Brasil, coube a Pontes de Miranda o mais extenso desenvolvimento da matéria.

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Dada que já foi a noção geral de ato jurídico, cabe aqui distinguir entre suas duas modalidades, ainda que a distinção, pelo que nos parece, somente mereça especial referência no estudo do Direito Civil.

Citando Domenico Barbera, entende Serpa Lopes que, enquanto o ato jurídico em sentido restrito surge limitado por um numerus casus, contendo categorias de figuras típicas, isto é, previstas em lei e por estas disciplinadas, no negócio jurídico a relevância exercida pela vontade intencional faz com que esta intenção livre produza um desenvolvimento impossível de se dar na classe dos atos jurídicos. Assim o negócio jurídico é uma declaração de vontade por força da qual se obtém a produção de um determinado efeito jurídico, incumbindo à ordem jurídica assegurar a realização desse efeito.

Concluindo, Serpa Lopes traça as características próprias do fato jurídico, do ato jurídico em sentido restrito e do negócio jurídico. O fato é um acontecimento qualquer produtor de uma modificação do mundo jurídico, voluntário ou não. O ato é sempre voluntário, mas nele a vontade pode não exercitar uma função criadora, modificadora ou constitutiva de uma determinada situação jurídica, como uma declaração de nascimento perante a autoridade competente. O negócio é sempre uma manifestação de vontade produzindo efeitos jurídicos, isto é, destinada a produzir os efeitos jurídicos atribuídos pela norma aos atos lícitos.

Pontes de Miranda, na tentativa de esclarecer bem o conceito de negócio jurídico, explica que ele surgiu exatamente para abranger os casos em que a vontade humana pode criar, modificar ou extinguir direitos, pretensões e ações, sendo manifestada precisamente para essa finalidade.

Parece­nos mais clara a explicação de F. Santoro­Passarelli, para quem, se o ato interessa como mero pressuposto de efeitos preordenados pela lei, ele pertence à categoria dos atos jurídicos em sentido restrito. Seus efeitos são estabelecidos, não pela vontade privada, mas exclusivamente pela norma jurídica. Exemplo: reconhecimento de filho ilegítimo. Se, diversamente, o ato interessa como expressão de uma vontade dirigida à produção de efeitos, ele pertence à categoria dos negócios jurídicos, que são atos cujos efeitos são determinados pela vontade privada, autorizada a isso pelo ordenamento jurídico. Exemplo: os contratos.

Comenta Miguel Velloro Toranzo que, embora a distinção entre atos jurídicos em sentido restrito e negócios jurídicos seja aceita por tratadistas de

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mérito, não foi ainda suficientemente acolhida nem oferece bastante clareza, de sorte que numerosas legislações deste século continuam prescindindo dela. Acrescente­se a isso que a doutrina, em resultado de suas próprias divergências, ora atribui a certos atos a natureza de atos jurídicos em sentido restrito, ora a de negócios jurídicos. Isso acontece, por exemplo, com o casamento, o reconhecimento de filhos, a adoção (quando uniforme o seu regime) etc. Vê­se, assim, que o tema encerra, de fato, uma sutileza que não está ao alcance de quem se inicia no curso jurídico, razão de ser impróprio nele insistir num trabalho de introdução. Por isso lhe reservamos estas notas, a título meramente informativo, prosseguindo a exposição sem voltar a referi­lo.

5.10 ATOS JURÍDICOS

Ato jurídico é manifestação de vontade de acordo com a norma jurídica, da qual resulta a criação, a conservação, a modificação, a transmissão ou a extinção de direitos.

5.10.1 Requisitos

Requisitos dos atos jurídicos: sujeito capaz, objeto lícito, possível e sério, e forma prescrita ou não proibida em lei.

5.10.1.1 Sujeito

O agente (quem pratica o ato) deve ter aptidão para praticar por si os atos da vida civil, alcançada a partir de um certo limite de idade, se o discernimento não é comprometido por motivo de insanidade.

5.10.1.2 Objeto

O objeto deve ser lícito, possível e sério. Lícito, não atentar contra a lei nem contra os bons costumes. Uma sociedade organizada para exploração do crime tem objeto ilícito, e é, por isso, juridicamente inexistente. Possível:

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aquilo a que alguém se obriga deve ser prestável. Os deveres impossíveis são inexigíveis. A impossibilidade de que o direito cogita, adverte Vicente Ráo, é a absoluta, aquela que a todos atinge, indistintamente de condição pessoal. Sério, não cômico ou burlesco ou praticado sem intenção de eficácia (declaração jocosa, didática, cênica).

5.10.1.3 Forma

Requisito do ato jurídico que se presta mais freqüentemente a equívoco, razão de seu conceito reclamar clareza, é o de forma.

Dada a maneira usual de se realizarem os negócios, o leigo quase sempre liga a noção de forma à de documento, porque a escrita é preferida na prova dos atos jurídicos. No entanto, o conceito de forma é muito mais amplo.

Forma do ato jurídico significa sua exterioridade. Como escreve Francisco Pontes de Miranda (1892), em direito, só se levam em conta as vontades que se enformaram. Se duas pessoas celebram um contrato, o contrato deve ser tangível, não somente para elas, mas para todos.

Qualquer que seja o elemento de que a vontade se valha para se exteriorizar, esse elemento é uma forma. As formas são várias, desde as complexas e aparatosas até as mais singelas. Podem consistir numa solenidade, como a celebração do matrimônio; num ato praticado perante um servidor público, como as escrituras públicas; num documento lavrado pelos próprios interessados, como as escrituras particulares, uma carta, um bilhete, um telegrama, um texto qualquer. A forma pode ser também verbal ou consistir num gesto e até no silêncio. Se chamamos alguém, por exemplo, para nos prestar um serviço, celebramos um contrato verbal. Se estamos numa via pública e queremos chamar um táxi, acenamos com a mão. O nosso gesto é a oferta de um contrato de transporte, concluído pela aquiescência do motorista. Se alguém, autorizado por lei ou contrato, interpela outra pessoa para, num determinado prazo, pronunciar­se sobre algo, sob pena de, em nada dizendo, se ter a sua vontade como manifestada em certo sentido, o silêncio da segunda valerá como forma de manifestação de sua vontade.

Portanto, repetindo, forma é todo e qualquer elemento que exterioriza a vontade, porque a vontade de que cuida o Direito não é a psicológica, mas a que se objetiva e é suscetível de ser constatada. Admitir­se diversamente,

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explica Erich Danz, daria lugar às maiores injustiças nos contratos da vida diária, visto cada uma das partes só poder responder à outra tendo em atenção a vontade exteriorizada. Pela mesma razão, observa com acerto Darcy Bessone Oliveira Andrade, se, em regra, é preferível a vontade real, casos há em que, por conveniência de segurança nas relações jurídicas, a vontade declarada deve prevalecer, pois que, sendo a declaração o meio normal de revelação da vontade interna, não devem os que nela confiam sofrer prejuízos pela divergência acaso existente entre uma e outra.

Os atos jurídicos dividem­se, quanto à forma, em formais ou solenes e não formais. Formais são os que devem revestir certa forma; não formais, aqueles cuja forma é facultativa, isto é, qualquer forma em admitida em Direito. Sendo princípio do Direito moderno que a essência dos atos jurídicos é a vontade de seus agentes, o qual, como anota Regina Gondim, lentamente se construiu pela influência do Direito canônico e da prática comercial, na atualidade só excepcionalmente se exige determinada forma para os atos jurídicos.

5.10.2 Classificação

Há várias classificações dos atos jurídicos, além da já antecipada, decorrente de sua forma.

Uma emerge da sua própria definição. Se do ato jurídico resulta a criação, a conservação, a modificação, a transmissão e a extinção de direitos, paralelamente existe uma quíntupla classificação: atos que criam, que conservam, que modificam, que transmitem e que extinguem direitos.

Os atos jurídicos, sob outro aspecto, dividem­se em unilaterais, bilaterais e multilaterais.

São unilaterais aqueles cujos efeitos ocorrem pela simples manifestação de uma pessoa, ou, como claramente ensina Vicente Ráo, por várias pessoas agindo unitariamente dentro da mesma e única direção de interesses. Embora os efeitos do ato unilateral se produzam pela mera enunciação de vontade de uma ou diversas pessoas, nesta última hipótese em sentido convergente, em alguns casos a vontade manifestada dirige­se a pessoa determinada, em outros não. No primeiro caso, mister se faz seja comunicada ao seu destinatário, o que é requisito da sua eficácia, como, por exemplo, a revogação de um

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mandato. Em outros casos, não dirigida a pessoa determinada, a eficácia não fica na dependência da comunicação a quem quer seja, como a renúncia pura e simples de um direito.

Há atos jurídicos unilaterais, todavia, cujos efeitos dependem do ulterior concurso da vontade de outrem. Em tal circunstância, a unilateralidade consiste em que os efeitos do ato, no que diz com a pessoa que emite a vontade, são já definitivos, mas apenas exigíveis depois que surge a vontade de outra pessoa coincidente com a que foi antes enunciada. Exemplo: as promessas de recompensa e os títulos ao portador. Comumente, a imprensa divulga ofertas de recompensa a quem achar e devolver a seu dono objeto perdido. Aí já existe determinada a pessoa do sujeito passivo da obrigação (o promitente), para quem o compromisso é irrevogável, antes que determinada a pessoa do sujeito ativo. Da mesma natureza é o título de crédito cujo pagamento se promete a quem o apresente.

Atos bilaterais são aqueles que pressupõem um acordo de vontades: os contratos.

Atos multilaterais são os de cuja formação participam mais de duas partes com direitos e deveres próprios. Exemplo: a constituição de dote por estranho, da qual participam, em posições autônomas, o instituidor, a esposa e o marido.

Outra classificação: atos principais e acessórios. Principais são os que têm existência própria, autônoma. Acessórios, os que existem em função de outro, cuja sorte acompanham. O contrato de locação é um ato jurídico principal. O de fiança, pelo qual alguém se responsabiliza pelos deveres do inquilino, é acessório, segue o destino do principal. Extinta a locação, extinta a fiança; nula a locação, nula a fiança.

Classificam­se, também, os atos jurídicos em inter­vivos e mortis causa. Os efeitos do ato inter­vivos devem produzir­se em vida de quem o pratica, e os dos atos mortis causa depois da sua morte. Mais numerosos são os atos inter­vivos, porque praticamos os negócios jurídicos para o curso da nossa existência, e escassos os mortis causa, como o testamento, cujos efeitos, até a morte do testador, são apenas potenciais.

Os atos jurídicos podem ser, ainda, gratuitos e onerosos. Nos onerosos, a uma vantagem corresponde um encargo. Por exemplo: a compra e venda. O

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comprador tem uma vantagem, recebe a coisa, mas tem um encargo, paga o preço; o vendedor tem uma vantagem, recebe o preço, mas tem um encargo, entrega a coisa. Nos gratuitos, uma das partes é beneficiária da vantagem sem contraprestação, como a doação, transferência não onerosa de um bem econômico do patrimônio do doador para o do donatário.

5.10.3 Ineficácia

Se a vontade se revela em divergência com a norma, esta fá­la ineficaz. À declaração de ineficácia chamamos nulidade.

A teoria das nulidades sofreu uma evolução que deve ser recapitulada, sem o que não a compreenderemos na sua feição atual.

Nos primeiros tempos do Direito romano, o conceito de nulidade era amplo. Se a manifestação de vontade divergia do paradigma normativo, o ato era nulo. Quer fosse a infração grave ou venial, pertinente à essência do ato ou meramente ritual, a conseqüência era a mesma. A simples supressão de uma palavra, a simples omissão de um gesto acarretava nulidade. Tão grande era a importância da forma que por ela se sacrificava até o próprio sentido da vontade (Serpa Lopes). O Direito era então eminentemente formalista, resultado do seu contato com a religião, da qual trouxe a pompa e o ritual.

Mais tarde, começou a ser feita distinção entre infrações graves e leves. Se a infração era grave, o ato era nulo de pleno direito; se venial, a nulidade teria de ser reconhecida através de uma ação judicial. Neste caso, o ato era apenas anulável, isto é, poderia ou não ser anulado, de acordo com a natureza da falta.

Estabeleceu­se, então, a distinção entre atos nulos, que atentam contra um interesse social, e anuláveis, que comprometem interesse individual.

O ato nulo não produz efeitos. Os seus efeitos fáticos aparentes são juridicamente inexistentes. O anulável produz todos os efeitos, como se fosse válido, enquanto não decretada a nulidade.

A nulidade do ato nulo pode ser decretada ex officio. Qualquer autoridade judicial competente, que constate a sua existência, deve declará­la,

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mesmo sem provocação. A do ato anulável só é decretada a pedido do próprio interessado.

O ato nulo não pode ser revalidado, é definitivamente nulo. Não há remédio para a enfermidade de que padece. O anulável pode convalescer do vício. A correção se faz pela ratificação. Por exemplo: um ato jurídico praticado por menor de 21 anos e maior de 16, no Brasil, é apenas anulável. Se o menor, chegado aos 21 anos, quando poderia argüir que havia praticado o ato em idade em que por lei lhe era defeso fazê­lo, confirma a vontade enunciada, o ato fica expurgado de vício.

A ratificação é expressa, se consumada por manifestação da vontade destinada a fazê­la. Tácita, se resulta de atos que demonstrem, da parte da pessoa prejudicada, a renúncia à argüição da falta.

5.10.3.1 Nulidade

Segundo o nosso Código Civil, os atos jurídicos são nulos quando padecem dos seguintes vícios: incapacidade absoluta do agente, ilicitude do objeto, infração à forma prescrita, ausência de formalidade essencial e declaração legal.

5.10.3.1.1 Incapacidade absoluta do sujeito.

Se o agente do ato não tem capacidade para praticá­lo o ato é nulo. São absolutamente incapazes os menores de 16 anos, os loucos de todo gênero e os surdos­mudos impossibilitados de expressar a sua vontade.

Os loucos não têm o entendimento de seus atos. Sua vontade é, portanto, juridicamente inoperante.

Quanto à surdo­mudez, há que distinguir entre os pacientes que podem e os que não podem enunciar sua vontade. Sendo o ato jurídico não apenas vontade, mas vontade manifestada, quem padece de defeito que lhe impede exteriorizá­la não pode praticá­lo. Por isso, contrariamente, se o surdo­mudo pode expressar a sua vontade, por qualquer meio aceitável, de maneira clara e positiva, incapacidade não há.

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5.10.3.1.2 Objeto ilícito.

O conceito de ilicitude do objeto é amplo. Prevalece, quando o ato ofende a ordem jurídica, quando compromete a moral média da comunidade, quando é impossível ou não tem objeto sério.

5.10.2.1.2 Forma

Em relação à forma, a lei dispõe de dois modos: permite que o ato revista qualquer forma por ela admitida, ou prescreve para ele uma forma especial. Se os atos para os quais há prescrição de forma, não a assumem, são nulos. Por exemplo: a adoção, a compra e venda de bens imóveis de valor superior a uma certa importância, o pacto antenupcial (que dispõe sobre o regime de bens para depois do casamento) devem revestir sempre a forma de escritura pública. Se algum desses atos é praticado, sem observância dessa forma, é nulo.

Determinante da nulidade do ato é, ainda, ausência de formalidade essencial, o que, também, somente atinge os atos formais.

Para certos atos, a lei exige formalidades adequadas, pertinentes à sua essência. Se alguma é omitida, a essência do ato é atingida. Exemplo claro é o testamento público, que se realiza da seguinte maneira: o testador comparece perante o tabelião, acompanhado do número legal de testemunhas, dita a sua vontade àquele, que redige o texto e depois o lê para o testador, a fim de que este confirme a exatidão do que foi lavrado. Todas essas formalidades são essenciais. Se alguma delas é desatendida, ainda que a forma seja legal (escritura pública), o ato é nulo.

Finalmente, é nulo o ato, se a lei assim o declara. Nesta causa agrupam­ se todas as demais que não podem ser situadas nas precedentes. A lei, habitualmente, comina a pena de nulidade ao ato divergente do que prescreve. Ajustes entre empregadores e empregados em discrepância com o texto da lei, por exemplo, são simplesmente declarados nulos por ela.

5.10.3.2 Anulabilidade

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Dois são os motivos, conforme o nosso Direito Civil, que acarretam a possibilidade de anulação do ato: a incapacidade relativa do agente e os vícios do consentimento.

5.10.3.2.1 Incapacidade relativa do sujeito.

Relativamente incapaz é o agente ao qual a ordem jurídica defere autorização para a prática de alguns atos e nega para a dos demais, exigindo, em relação a estes, o consentimento ou a assistência de outra pessoa.

Pelo nosso Código Civil, são relativamente incapazes os maiores de 16 anos e menores de 21 anos, os pródigos e os silvícolas.

O menor entre 16 e 21 anos, de um modo geral, somente pode praticar atos jurídicos com assistência de uma pessoa, pai ou mãe, se estiver sob pátrio poder, tutor, se sob tutela.

Pródigo é quem dissipa o seu patrimônio em despesas inúteis e sacrifica, com isso, a sua própria subsistência e a daqueles que dependem de seus recursos. O direito põe o pródigo sob curatela, quanto aos atos de negociação patrimonial.

Há um terceiro caso de anulabilidade peculiar ao direito brasileiro: a incapacidade relativa dos silvícolas, isto é, dos índios ainda não incorporados à civilização. Nas transações com os civilizados, devem ser assistidos por uma entidade de direito público, o antigo Serviço de Proteção aos Índios, atual Fundação Nacional do Índio.

5.10.3.2.2 Vícios do consentimento.

A anulabilidade resultante de vício do consentimento leva em consideração a vontade, elemento essencial do ato jurídico. Para que se lhe atribua eficácia, deve ser inteligente, livre e lícita. Inteligente – o agente deve saber o que está fazendo; livre – o agente deve ter a liberdade de fazer o que estiver fazendo; lícita – não conflitante com a norma jurídica.

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Quando a vontade é prejudicada na sua inteligência, na sua liberdade ou na sua licitude, diz­se que é viciada.

Os vícios do consentimento são: erro, dolo, coação, simulação e fraude. O erro e o dolo atentam contra o discernimento do agente; a coação, contra a sua liberdade; a simulação e a fraude, contra a licitude.

5.10.3.2.2.1 Erro.

Erro é um falso conhecimento da realidade. Em Direito o vocábulo compreende não somente o erro propriamente dito, o falso conhecimento, como o desconhecimento, a ignorância.

Se alguém pratica um ato jurídico, desconhecendo fato que, se fosse do seu conhecimento, o teria levado a não realizá­lo, ou se o faz mal informado, está em erro.

Doutrinariamente, distingue­se o erro de fato, desconhecimento ou conhecimento deturpado de uma realidade, do erro de direito, desconhecimento ou mal conhecimento de uma norma jurídica. Causa da anulabilidade é, apenas, o erro de fato. O erro de direito não, porque uma das condições de eficácia da ordem jurídica é que ninguém possa alegar ignorância da lei.

Não é todo erro que ocasiona anulabilidade. Há erro substancial e erro acidental. Substancial é o que atua como causa eficiente da execução do ato, de maneira que haja a certeza de que, sem erro, aquele não se teria verificado. O erro substancial age como causa determinante da manifestação da vontade. O acidental não. O ato ocorreria, mesmo sem erro, embora sob outra modalidade. É vício leve, que não compromete a vontade e não causa anulabilidade.

Há erro substancial quando ele incide sobre a natureza do ato, o objeto da declaração, ou qualidade essencial de pessoa ou coisa.

Incide sobre a natureza do ato se o agente de um ato jurídico supõe que está praticando diverso. Exemplo: assina um documento de doação, na suposição de que está fazendo um empréstimo.

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O erro incide sobre o objeto da declaração, se o agente declara a sua vontade, julgando que está se referindo a um objeto e, na verdade, o está a outro.

O erro é relativo a pessoa ou coisa quando diz respeito a alguma qualidade essencial delas. Se compro um objeto, cuja qualidade é servir a uma certa finalidade, e a ela não serve, a sua essencial qualidade não existe. Se firmo relação jurídica com uma pessoa, ignorando­lhe defeito que, acaso conhecido, me teria levado a não constituí­la, há, igualmente, erro.

Note­se que, no segundo caso, o erro só pode ser argüido se a qualidade da pessoa é relevante para o ato.

Se ingresso num estabelecimento comercial e compro um objeto, pouco importa quem seja o vendedor. Ao adquiri­lo, não o fiz pelas suas qualidades, sim pelas do objeto.

Atos, porém, há em que a qualidade da pessoa é decisiva para a afirmação do consentimento. Exemplo típico é o casamento. A ignorância, anterior ao casamento, de certas condições personalíssimas do outro consorte, tais como as relativas à sua saúde física e mental, sua fama e honra, cujo conhecimento ulterior torna insuportável a vida conjugal, autoriza a anulação do consórcio.

Aliás, nos países cuja legislação não admite o divórcio, a teoria do erro essencial, nas palavras de Lourenço Mário Prunes, é uma válvula cuja manutenção deve ser preservada zelosamente, porque somente ela permite mitigar situações dolorosas, por outra forma, irreparáveis.

5.10.3.2.2.2 Dolo.

O dolo, vício que prejudica a inteligência do agente, é de entendimento tão amplo que não pode ser contido numa definição. É toda manobra astuciosa que leva alguém a efetivar um ato contra seu próprio interesse, em benefício do agente ou de terceiro. São seus elementos, consoante aponta Afonso Dionísio da Gama, a astúcia, a trapaça, a finura, o artifício, as manobras, as dissimulações insidiosas, as palavras e simulações calculadas, o emprego de falso nome ou falsa qualidade, a alegação de falsos empregos, de poder, de

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crédito imaginário, a excitação das esperanças ou temores quiméricos, o abuso de confiança e o abuso da credulidade.

O dolo pode ser principal e acidental, correspondendo esta qualificação á mesma que se faz do erro, em substancial e acidental. Se a astúcia do agente levou o paciente a efetuar o ato, de maneira que seja lícito julgar que, sem ela, o ato não teria sido concretizado, há dolo substancial. Se, diversamente, chegamos á certeza de que, mesmo sem ocorrer malícia, o ato ter­se­ia celebrado, embora sob outra modalidade, o dolo é acidental. Apenas na primeira hipótese o ato é anulável.

Há semelhança entre dolo e erro. Basta notar que ambos comprometem a inteligência da vontade. A distinção básica está em ser o erro um estado natural e o dolo, um estado provocado.

O dolo dá­se por ação e por omissão. Quando o agente inculca falsa motivação para a realização do ato, há dolo por ação. Quando oculta informação que, se conhecida do paciente, este não praticaria o ato, o dolo é por omissão.

O dolo pode ser praticado por uma das partes do ato em benefício próprio, como em benefício de terceiro, ou por terceiro em benefício de uma das partes.

Em caso de dolo recíproco, o ato não sofre de vício. Duas pessoas enganando­se reciprocamente, sendo ambas, ao mesmo tempo, agente e paciente do dolo, dá­se a compensação. O ato jurídico é válido, porque a boa fé é condição para que se invoque vício de consentimento.

5.10.3.2.2.3 Coação.

A coação atenta contra a liberdade da vontade: o agente pratica o ato sujeito a constrangimento físico ou moral.

Físico, se sob ameaça de um mal físico; moral, se sob ameaça de um dano moral. Se alguém, ameaçado de sevícia, pratica um ato jurídico, há coação física. Se o faz sob ameaça de chantagem, há coação moral. Acertadamente assinala Orosimbo Nonato (1891), o que caracteriza a coação é a ameaça do mal e o temor que ela inspira.

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5.10.3.2.2.4 Simulação.

A simulação e a fraude desacatam requisito essencial para que a vontade afine com a ordem jurídica, o da legalidade.

O ato simulado apresenta exterioridade distinta do seu fundo. A aparência é uma, a realidade outra. Simular, até mesmo gramaticalmente, é criar uma aparência que não condiz com a realidade. Como escreve Francesco Ferrara (1908), a simulação não perde a sua natureza vulgar, ao passar para o mundo do Direito. Ela não engendra uma realidade, mas uma ficção de realidade.

O ato jurídico ressente­se desse vício. As partes podem fingir que praticam um negócio, pretendendo resultado diverso do aparente.

Se o negócio que se disfarça sob a aparência de outro não causa prejuízo a ninguém, a simulação é inocente, não suscita anulabilidade. Exemplo citado por Eduardo Espínola é o do pai que simula insucesso financeiro, prejuízo nos negócios, perda de seu patrimônio, para corrigir o filho que lhe esteja dissipando a fortuna.

A simulação determina a anulabilidade do ato quando ocasiona prejuízo de outra pessoa. É o caso do devedor insolvente que, para poupar seus bens do pagamento de seus débitos, simula vendê­los.

5.10.3.2.2.5 Fraude.

A fraude, em algumas legislações, tem sentido muito extenso, qualificando todos os procedimentos atentatórios a direitos alheios. No Direito brasileiro, a expressão tem significação restrita. Nosso Direito Civil Positivo não se refere simplesmente a fraude, mas, analítica e especificamente, à fraude contra credores.

O ato cuja finalidade é causar prejuízo aos legítimos interesses do credor é fraudulento.

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Na sistemática do nosso Código Civil, fraude contra credores é ato que, com prejuízo dos credores, torna o devedor insolvente, ou que, com o mesmo fim, é cometido por devedor insolvente. É insolvente o devedor cujo ativo patrimonial, isto é, suas disponibilidades econômicas, é inferior a seu passivo. Em palavras simples, quem deve mais do que tem para pagar.

Cumpre a uma pessoa que esteja na situação de insolvência resguardar seu patrimônio para não lesar seus credores. Todos os atos que importam desfalque patrimonial ou ocasionem prejuízo aos credores constituem fraude.

Por exemplo, o devedor não tem quanto baste para pagar o que deve e ainda faz doação de um bem, ou dá quitação gratuita de um crédito. Fraudulento, também, é o procedimento de quem tem credores quirografários, isto é, com títulos sujeitos a rateio (pagos em proporção ao resultado pecuniário que se aufere pela alienação do patrimônio do devedor), que, para beneficiar um deles, dá­lhe uma hipoteca, título que prefere aos demais.

À primeira vista, parece que existe similitude entre a simulação e a fraude. A distinção está em que na simulação o ato não existe, é mera aparência, ao passo que na fraude o ato é real, efetivamente se realizou, tal como aparenta ter­se realizado, apenas a sua finalidade é ilícita.

5.11 SUJEITO DE DIREITO

Se a norma jurídica dirime conflitos intersubjetivos de ação, só há relação jurídica entre pessoas. Nem a própria relação de direito real se estabelece entre pessoa e coisa, que podem estar em relação, mas nunca jurídica, porque o Direito só cogita de relações humanas, conflitos ou situações entre pessoas.

A relação jurídica é sempre a conjugação de um direito e de um dever. Vista em uma das faces, se apresenta como direito, e, em outra, como dever. Num dos seus extremos está o titular do direito, no outro, a pessoa obrigada pelo dever. O titular do direito é o sujeito ativo da relação, e a pessoa obrigada, o sujeito passivo.

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O sujeito passivo em alguns casos é determinado. Assim nas relações obrigacionais ou creditórias. Em outros, indeterminado, é a totalidade das pessoas estranhas ao direito do sujeito ativo. O exemplo típico é o dos direitos reais.

5.11.1 Personalidade

Sujeito ativo e sujeito passivo estão compreendidos na expressão mais ampla – pessoa.

O conceito jurídico de personalidade é inconfundível. A psicologia diz o que é a pessoa, a moral igualmente nos dá o seu conceito. Entretanto, o conceito jurídico é autônomo; unicamente a norma jurídica diz quem é pessoa.

5.11.1.1 Problemas

A abordagem teórica do conceito de pessoa leva a um problema controvertido. Na raiz dessa divergência está a multiplicidade de posições assumidas. Convém enumerar as principais.

Quatro indagações fundamentais podem ser feitas.

Primeira: que é pessoa? A resposta cabe à teoria geral do Direito. Não se indaga quem é pessoa no Direito brasileiro e no argentino, e, sim, sobre o conceito de pessoa, o que justifica a resposta: é o ente capaz de exercer direitos e assumir compromissos. Qualquer que seja ele, se uma ordem jurídica outorga­lhe qualificação para exercer direitos e assumir compromissos, é uma pessoa. Esse conceito é válido para qualquer Direito Positivo, atual, passado ou futuro.

Segunda: quais são as pessoas? Esta indagação se faz no plano da dogmática jurídica. Ela terá tantas respostas quantas forem as diferentes enumerações que os ordenamentos jurídicos positivos fizeram dos entes que reconhecem como pessoas.

Terceira: qual é o ser das pessoas? Se a ordem jurídica atribui a um ente a condição de pessoa, ela o confere a um ser. Se a concede ao homem, ele é o ente personificado, como ser biológico, psicológico e social. E nas

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associações, qual é o ente que recebe o atributo? O que nelas é personificado? Qual é o seu ser? Esta inquirição, a rigor, não pertence ao campo de qualquer disciplina exclusivamente jurídica.

Quarta: quem deve ser a pessoa? Esta interrogação leva o problema a um plano superior, filosófico, de política legislativa, ou de ideologia social. Quando, no Brasil, se desenvolvia a campanha abolicionista, os seus promotores pretendiam que os escravos também fossem pessoas.

Estudaremos a matéria apenas em dois ângulos: o da teoria geral do Direito e o da dogmática jurídica.

Pessoa é o ente ao qual a ordem jurídica reconhece aptidão para o exercício de direitos e a assunção de compromissos. É pessoa o homem, a quem denominamos pessoa natural ou física. Além dele há outros entes que também podem exercer direitos e assumir compromissos: as pessoas jurídicas.

5.11.2 Pessoa natural

Todo homem recebe da ordem jurídica faculdade para exercer direitos e assumir compromissos.

Essa afirmativa é válida para o nosso tempo, porque nem sempre foi assim. Houve homens que não eram pessoas: os escravos. Eram coisas, logo, objetos e não sujeitos de direito. A escola egológica de Carlos Cossio e seus seguidores nega à ordem jurídica positiva arbítrio total para indicar quem seja pessoa, por não admitir que se possa recusar ao homem tal qualificação. Por isso o escravo teria o poder de inordinação: direito de cumprir o próprio dever. Se a ele não se negava esse direito, era pessoa, visto não poder haver direito que não seja de uma pessoa.

Parece discutível a conclusão. A rigor, o escravo não tinha direito de cumprir o dever, porque lhe faltava a faculdade de, molestado na execução, obter proteção jurisdicional. Logo, não era um direito, pois não há direito subjetivo sem garantia paralela. Daí dizer Alexandre Gorovtseff que, no homem, o sujeito de direito não é ele mesmo, como ser capaz de volições, mas a sua vontade abstratamente considerada.

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5.11.2.1 Duração

A personalidade da pessoa física começa com o nascimento com vida. Não basta ser expulso do ventre materno, é preciso nascer com vida.

O conceito de vida não pertence ao Direito, que como tal admite o que assim é informado pelas ciências naturais.

Outrora, a aquisição da personalidade dependia de outros requisitos, como, por exemplo, a aparência humana e a viabilidade. O novo ser não deveria ser disforme, monstruoso. E se nascia em condições tão precárias que autorizavam a certeza de que logo morreria, se não era viável, a ordem jurídica lhe negava personalidade.

A doutrina para o qual o princípio de duração da personalidade é o nascimento é contestada por alguns civilistas, que entendem deva aquele momento remontar à concepção. A tese foi patrocinada no Brasil, inclusive por Clóvis Beviláqua (1859­1944), invocando diversas razões, entre elas a punição do aborto provocado e a não­execução da mulher gestante, nos países em que há a pena de morte.

A teoria defendida por Clóvis Beviláqua não prevaleceu no Código Civil, conquanto este dispense proteção ao nascituro.

A morte é o termo de duração da pessoa física.

O conceito de morte não é jurídico, mas médico­legal. Tradicionalmente, caracterizava o fato a cessação dos batimentos cardíacos. Hoje, a medicina inclina­se a aceitar como fim da vida a cessação da atividade cerebral. De qualquer maneira, o problema não é jurídico. O fato caracterizado pela ciência como o termo da vida ou que venha a caracterizá­lo, acarretará a conseqüência jurídica de por fim à duração da pessoa física.

O limite de duração da pessoa física enseja outros problemas.

5.11.2.2 Morte civil

Alguns ordenamentos jurídicos positivos admitiam a morte civil. A lei declarava morta a pessoa ainda biologicamente viva.

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Assim, por exemplo, no Direito português, ao tempo de sua vigência no Brasil, os servos de pena eram privados de todos os atos civis. Não podia um condenado adquirir bens, e os que já possuía se transferiam aos seus herdeiros ou diretamente ao fisco. O Direito francês também incluía a morte civil entre suas instituições.

5.11.2.3 Comoriência

Fato que merece referência ocorre quando diversas pessoas morrem no mesmo evento, ou, mais amplamente, ao mesmo tempo, sem que se possa determinar qual delas faleceu antes. Sendo todas estranhas entre si, isso não gera conseqüências. Mas, se parentes, os herdeiros da que sobreviveu herdam os bens da que morreu primeiro. A essa morte simultânea ou aparentemente simultânea chamamos de comoriência, freqüente nos acidentes em transportes coletivos.

No Direito romano e no francês prevaleciam, em tal circunstância, presunções desamparadas de apoio científico. No primeiro, se os comorientes eram ascendente e descendente, presumia­se aquele falecido antes, se impúbere, ou depois, se púbere. No Código Civil francês, se os falecidos tivessem menos de 15 anos de idade, presumia­se haver o mais velho sobrevivido; se tivessem mais de 60 anos, presumia­se haver sobrevivido o mais moço; se um tivesse menos de 15 e outro mais de 60 anos, presumia­se sobrevivente o primeiro etc.

No Direito brasileiro, há presunção de simultaneidade. Se várias pessoas morrem, sem que se possa definir qual morreu antes e qual depois, supõe­se que todas tenham falecido ao mesmo tempo.

Mas há presunções absolutas e relativas. A lei impõe as absolutas e contra elas não admite prova contrária, mesmo que a evidência as desminta. As relativas subsistem enquanto não são desmentidas pela prova. É que, em relação a elas, como escreve Carlos Martinez Silva, o objetivo da norma é apenas resguardar direitos ou estabelecer um ponto de partida para as indagações que se façam para o descobrimento da verdade, razão pela qual não exclui a possibilidade de se comprovar a falsidade do fato que ela presume.

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A presunção de simultaneidade de óbito na comoriência é relativa. Se provado que uma pessoa sobreviveu a outra, a prova predomina.

5.11.2.4 Ausência

Há ainda um caso ligado ao fim de duração da pessoa natural, o da morte presumida. A quem se afasta do seu domicílio, sem dar notícias, a lei declara ausente e presumidamente morto.

No Brasil, a sucessão do ausente abre­se dois anos depois, se não deixou procurador, e quatro depois, se deixou. Essa sucessão é provisória. A transmissão do patrimônio do ausente é feita com cautelas, para a hipótese de ele aparecer, e poder recuperar os seus haveres. A sucessão passa a definitiva em duas circunstâncias: 20 anos após a abertura da sucessão provisória, ou em prazo menor, se o ausente contar 80 anos de idade e as suas últimas notícias datarem de mais de cinco.

5.11.2.5 Sinais característicos

A pessoa natural tem um sinal característico de sua identificação, o nome, elemento de seu próprio conhecimento, o qual, observa Limongi França, como a designação dos objetos, torna conhecidos os respectivos titulares.

Nos regimes de nobreza há outros sinais: os títulos.

O nome distingue uma pessoa das demais. Compõe­se de dois elementos: o nome propriamente dito, nome de família, e o prenome, habitualmente chamado nome de batismo, que identifica a pessoa como indivíduo.

5.11.2.6 Estado

Estado da pessoa física é a sua condição jurídica geral, como sujeito de direito. Assim o conceituam Eduardo Espínola (1875­1967) e Espínola Filho, de maneira clara e ampla.

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O estado define­se em função de três situações principais: política, familiar e individual. Outras circunstâncias são significativas apenas para certos ordenamentos jurídicos.

O primeiro elemento determinador do estado civil é a condição política, ou de cidade. Sob esse aspecto, as pessoas são nacionais e estrangeiras, e, sendo nacionais, nacionais de origem e nacionais nacionalizadas. Ser nacional quase sempre importa usufruir vantagens negadas ao estrangeiro. O nacional tem direitos que o naturalizado e o estrangeiro não têm, e ainda outros, juntamente com o naturalizado, que o estrangeiro não tem.

Houve época em que a qualificação nacional e estrangeiro quase desapareceu como elemento modificador do estado civil, principalmente durante parte do século XIX e as primeiras décadas do atual. De um tempo a esta parte, porém, ressurgem novas formas de nacionalismo, e sempre que este se exacerba acentua­se a diferença. A influência da nacionalidade no estado varia de acordo com as necessidades de um povo, seu nível de desenvolvimento e, especialmente, as circunstâncias da época.

Também a condição familiar determina o estado civil. Importante é a relativa ao casamento. O maior solteiro pode praticar todos os atos da vida civil, já o casado não pode praticar alguns sem o consentimento do outro cônjuge, como, por exemplo, a alienação e a oneração de bens imóveis.

No Direito brasileiro, a modificação do estado pelo casamento, em relação à mulher, durante algum tempo foi tão marcante que o nosso Código Civil incluía a mulher casada entre os relativamente incapazes. Recentemente, a lei ampliou a sua capacidade, o seu poder de comando na família e eliminou­ a daquele rol.

Há circunstâncias estritamente individuais que também determinam o estado da pessoa: idade, sexo e saúde.

Toda ordem jurídica fixa um momento em que presume haver a pessoa atingido o nível pleno do seu desenvolvimento intelectual, estando em condições de dispor de si mesma e de seus bens. A duração da idade divide­se em dois períodos: um, antes deste momento, e, outro, a partir dele. O período anterior é o de menoridade; o posterior, o de maioridade. Assim, as pessoas, quanto à idade, podem ser menores e maiores. Os menores são incapazes e, os maiores, capazes.

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A menoridade, que em nosso direito cessa aos 21 anos, gera incapacidade absoluta, até certo momento, e relativa, desse momento até a maioridade. O nosso Código Civil distingue entre menores impúberes, de menos de 16 anos, e menores púberes, entre 16 e 21. Os primeiros são absolutamente incapazes e os segundos, apenas relativamente. A adjetivação púberes e impúberes é juridicamente imprópria, porque não é a puberdade que determina a cessação da incapacidade absoluta.

A idade também, pode modificar o estado, desde que muito avançada. Isto não ocorre no Direito brasileiro. Se ela compromete o discernimento, este fato modificará o estado, não pela idade em si mesma, sim pelas suas conseqüências em relação à saúde da pessoa.

Quanto à saúde, as pessoas normais e anormais, mediante os padrões médios e estatísticos aos quais se referem os respectivos conceitos. Não tratamos aqui de saúde física. Nenhuma enfermidade física modifica o estado, a não ser que comprometa órgão essencial à manifestação da vontade, como na surdo­mudez. São, para o direito, é o indivíduo que tem discernimento para, com inteligência e liberdade, afirmar a sua vontade, governando­se a si próprio e gerindo os seus bens. Quem sofre de uma afecção mental que, como diz Nina Rodrigues (1862­1906), importa alienação da capacidade civil, ou de lesão física que lhe incapacite a vontade, tem seu estado modificado, em função dessas anormalidades.

O sexo, atualmente, deixou de ser causa modificadora do estado, porque a condição jurídica do homem e mulher é paritária. No entanto, durante muito tempo foi vedada à mulher a prática de numerosos atos e o acesso a diversas atividades.

Outras circunstâncias são próprias de certos ordenamentos jurídicos.

No Brasil, a situação dos silvícolas altera­lhes o estado.

A raça, em alguns países, é motivo altamente modificador do estado. Basta citar o exemplo da África do Sul e os exemplos, ainda recentes, da Alemanha hitlerista e da Itália fascista.

5.11.2.7 Capacidade

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A noção de capacidade, embora simples, deve ser bem compreendida para evitar confusão com a de personalidade.

Pessoa é um ser ao qual a ordem jurídica outorga um atributo, que é a faculdade de ter direitos e obrigações. Esse atributo chama­se personalidade. O ser, qualificado pela ordem jurídica, passa a pessoa.

A soma dos direitos não é a mesma para todas as pessoas, mas varia segundo determinada medida. Esta medida é a capacidade.

Todos os homens são pessoas, têm personalidade, mas nem todos têm capacidade. Há os totalmente privados dela, alguns com relativa e outros com plena. Capacidade é a medida dos poderes contidos na personalidade, não a da personalidade, que é igual para todos.

A pessoa tem direitos e deveres. Se pode exercê­los diretamente, por si, sem restrição, terá plena capacidade; se só alguns, terá capacidade relativa; se nenhum, nenhuma capacidade terá.

Em qualquer caso, é sempre pessoa. Um incapaz tem direitos sobre imóveis, mas não pode vendê­los, gravá­los ou alugá­los. Tem personalidade, não capacidade, por não poder exercer por si os direitos de que é titular como pessoa.

Pessoa é o ente; personalidade, o atributo; capacidade, o exercício efetivo dos direitos e deveres encerrados na personalidade.

Outrora, fazia­se distinção entre capacidade de direito e capacidade de fato, capacidade de gozo e capacidade de exercício.

Chamava­se capacidade de direito e capacidade de gozo ao que chamamos hoje personalidade.

A pessoa pode ser absolutamente incapaz, relativamente capaz (e relativamente incapaz) e capaz. Se é absolutamente incapaz, não pode praticar ato algum. Se tiver que praticar um ato haverá que fazê­lo por intermédio de pessoa que a representa: o filho menor impúbere é representado pelo pai, o menor sob tutela, pelo tutor, e o maior sob curatela, pelo curador. Se é relativamente incapaz (e relativamente capaz), pode praticar alguns atos, mas,

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em relação a outros, terá de ser assistido por outrem: o filho menor pelos seus pais, o tutelado pelo tutor, o curatelado pelo curador.

5.11.3 Pessoas jurídicas

Como já vimos, as pessoas podem ser físicas ou naturais (os homens) e jurídicas (entidades que também podem exercer direitos e assumir compromissos).

O Direito brasileiro tem adotado, com uniformidade, a denominação pessoa jurídica para indicar os entes que, não sendo homens, recebem qualificação pessoal. É uma entre muitas das designações originárias do Direito alemão. Mas já as chamaram de pessoas morais, expressão preferida pelos franceses e belgas. Além dessas duas denominações, encontramos outras, como pessoas fictícias, pessoas coletivas, pessoas ideais, pessoas abstratas etc.

5.11.3.1 Teorias

O estudo da pessoa jurídica suscita problemas, dos quais o mais importante na doutrina está nestas interrogações: qual é o seu ente? O que nela recebe personificação?

Em se tratando de pessoas físicas, a resposta é óbvia: é o próprio homem. Se de pessoas jurídicas, cuja realidade não é corpórea, a resposta é difícil.

Há teorias que negam a sua substancialidade, julgando­as meras ficções de direito (Savigny, Scheid e Alois von Brinz (1820­1887))

Há teorias que negam a sua existência, como entes distintos das pessoas físicas que as compõem, afirmando que os verdadeiros titulares dos direitos e deveres são estas (Jhering).

Há teorias que afirmam a sua substancialidade, isto é, que têm uma realidade própria (Zitelmann e Otto Friedrich von Gierke (1841­1921)).

Ainda há a teoria de Kelsen, discordante das citadas.

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5.11.3.1.1 Teoria da ficção

A teoria da ficção, cujo representante mais autorizado é Savigny, parte da idéia de que todo direito existe em função da liberdade inata do homem. Assim, reconhecer direitos importa reconhecer a existência de seres dotados de vontade. E o único ente dotado de vontade é o homem. Logo, somente ele é sujeito de direitos.

Pode o Direito Positivo, porém, negar capacidade a certos homens, como fez em relação aos escravos, e conferi­la a entes que não são homens. No segundo caso, a regra cria artificialmente um sujeito de direitos, através de uma ficção. Daí resulta a definição de pessoa jurídica, para a escola: um sujeito criado artificialmente, capaz de ter um patrimônio.

É evidente que tal teoria conduz diretamente a outra da qual Windscheid foi exímio defensor, a da existência de direitos sem sujeito. A respeito da pessoa jurídica, dizia seu patrono, os direitos não têm sujeitos, destinam­se simplesmente a servir a fim impessoal.

Francesco Ferrara, para quem o prolongado prestígio da teoria da ficção deve­se à força da tradição, à maravilhosa simplicidade e lógica com que enfrenta o complexo problema, faz­se, além de outros, dois reparos fundamentais:

a) o homem não é sujeito de direitos simplesmente porque dotado de vontade, tanto assim que seres juridicamente desprovidos de vontade, como as crianças e os alienados, são sujeitos de direitos;

b) é contrária ao ensinamento da história, que nos mostra que os direitos, antes de serem conferidos aos indivíduos, o foram aos grupos.

5.11.3.1.2 Teoria patrimonial

Brinz considera as pessoas jurídicas patrimônios sem sujeito. Não há, como supomos, duas classes de pessoas, as naturais ou físicas, e as jurídicas. O que há é que o patrimônio pode ser de um sujeito e ser de ninguém.

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Na pessoa natural há um vínculo entre bens e uma pessoa; na jurídica, o patrimônio está liado a um fim, que, sendo socialmente importante, a ordem jurídica protege, “como se fosse o patrimônio de alguém”.

A teoria de Brinz, que supõe a existência de direitos sem sujeitos, encerra um entendimento cuja deficiência maior consista em não ser aplicável às pessoas jurídicas privadas de patrimônio.

5.11.3.1.3 Jhering

Como antes vimos, Jhering contestou ser a vontade o elemento essencial do Direito Subjetivo, conferindo tal papel ao interesse. Sujeito de direito é quem pode pretender, não querer, sim gozar. É o ente a quem a ordem jurídica destina a utilidade de um interesse.

Como qualquer concepção que se tenha quanto à natureza da pessoa jurídica está inelutavelmente ligada à que se faça de direito subjetivo, decorre que, com fundamento naquelas premissas, Jhering conclui que, no caso das pessoas jurídicas, os direitos na verdade aproveitam aos seus membros, sendo estes, não ela, seus verdadeiros destinatários.

Quando várias pessoas têm direitos e obrigações comuns o seu exercício torna­se difícil. A dificuldade remove­se pelo expediente meramente técnico de concebê­las como se formassem, em conjunto, um ente distinto, uma pessoa jurídica. Não passa esta, portanto, de uma forma de apropriação de um patrimônio aos interesses e fins de um grupo de indivíduos.

5.11.3.1.4 Teoria realista da vontade

A teoria de Zitelmann, cujo suporte filosófico é idealista, pretende que, quando vários indivíduos se reúnem de modo permanente, para a realização de um mesmo fim, forma­se uma unidade autônoma, completamente nova e distinta dos indivíduos que a compõem, possuindo as qualidades individuais comuns aos seus componentes.

Paralelamente, destaca o fato de que o conceito de pessoa não coincide com o de homem, mas com o de sujeito de direito, e, assim, não lhe é imprescindível a corporalidade, mas a aptidão para querer. Portanto, onde

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quer que haja essa aptidão, ainda quando não reunida a um ente corpóreo, deve­se reconhecer a existência de uma pessoa jurídica, pois a qualquer pessoa corresponde sempre uma vontade, nem sempre um corpo. As pessoas jurídicas seriam verdadeiras vontades incorpóreas.

5.11.3.1.5 Teoria organicista

Gierke, seu mais lídimo representante, vê as pessoas jurídicas como entes coletivos reais; organismos sociais, providos de vontade e de capacidade de agir, distinta da vontade e da capacidade dos indivíduos. Não se lhes pode deixar de reconhecer a qualidade de sujeitos de direitos. A regra jurídica não os cria, têm realidade própria.

À teoria organicista filia­se o jurista brasileiro Francisco de Paula Lacerda de Almeida (1850­1943), ainda que com originalidade. Para ele, uma pessoa jurídica, tal qual outra humana, tem corpo e alma. O corpus, nas associações, é uma coletividade mais ou menos ampla, e, nas fundações, uma pessoa ou grupo reduzido. O animus é a meta a que as pessoas jurídicas se dedicam. Nas associações, é o fim comum que congrega os seus componentes. Nas fundações, é a finalidade para a qual o seu instituidor destinou o patrimônio.

5.11.3.1.6 Kelsen

Kelsen, fiel à perspectiva exclusivamente normativista, pondera que, no campo estrito da ciência do Direito, a noção de personalidade corresponde à de uma realidade exclusivamente jurídica. Pessoa é simplesmente a quem se aplica a proposição jurídica, a quem se imputam deveres. Entre os conceitos de homem e pessoa não há qualquer ligação, e a investigação sobre o substrato real das pessoas é rigorosamente descabida.

A análise da pessoa, feita sem idéia preformada, mostra que, quando convergimos a atenção para tal objetivo, encontramos apenas certa quantidade de deveres e direitos referidos a um mesmo foco. Se usamos de um substantivo para citar aquela realidade, como se esta existisse independente dos direitos e dos deveres constatados, fazêmo­lo nos servindo de uma expressão unificadora, que não se refere a qualquer entidade real. Assim, o conceito de pessoa expressa a unidade de uma pluralidade de deveres e

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direitos, o que eqüivale a dizer que traduz a unidade de uma pluralidade de normas que estatuem esses direitos e deveres.

Pessoa física é expressão unitária das normas que regulam a conduta de um homem. Jurídica é expressão unitária de um complexo de normas que regulam a conduta de vários homens. Ora é a personificação de uma ordem parcial (estatuto de associação), ora a personificação de uma ordem total, uma comunidade jurídica compreensiva de todas as comunidades parciais (o Estado).

Quando a ordem jurídica faculta uma pessoa jurídica, isto significa que ela converte em direito ou dever a conduta de um homem, sem determiná­lo individualizadamente. A determinação fica delegada a uma ordem jurídica parcial (o estatuto, por exemplo). Há, então, uma obrigação e um direito mediatos da conduta de um indivíduo por intermédio de uma ordem jurídica parcial.

As normas que, na expressão corrente, obrigam ou facultam uma pessoa jurídica, somente definem o elemento objetivo (fazer ou deixar de fazer), não o subjetivo (que indivíduo deve prestar a conduta), cuja determinação fica delegada a uma outra norma (ainda o estatuto, por exemplo).

Os direitos e deveres da pessoa jurídica são direitos e deveres de indivíduos, embora estes os tenham não individualmente, sim coletivamente. E o patrimônio de uma pessoa jurídica é, na verdade, dos homens que a formam, embora dele não possam dispor, como podem dos seus bens particulares, porque são sujeitos a uma ordem jurídica parcial.

5.11.3.2 Classificação

As pessoas jurídicas são de Direito Público e de Direito Privado.

São de Direito Público as que exercem atividade pública. São de Direito Privado as que promovem a realização de interesses particulares.

As pessoas jurídicas de Direito Público são de Direito Público externo e de Direito Público interno. Se a pessoa se projeto no plano internacional, a sua personalidade é de direito público externo, se no plano nacional, é de direito público interno.

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As pessoas de direito público externo são os Estados, tomada a palavra no sentido político geral e não no restrito como possui em nossa organização política, e outras entidades que atuam no plano internacional, a sua personalidade é de direito público externo, se no plano nacional, é de direito público externo, se no plano nacional, é de direito público interno.

As pessoas de direito público interno, entidades que operam no plano nacional, são aquelas cuja existência decorre da organização política e administrativa de cada Estado. No Brasil: a União, os estados, os municípios, as autarquias, os partidos políticos, etc.

Pessoas de direito privado são:

a) associações civis;

b) sociedades civis e mercantis;

c) fundações

O nosso Código Civil, assinala Yara Muller Leite, não estabeleceu distinção propriamente entre sociedade e associação civil, reservada esta denominação para as sociedades de fins não­econômicos. Por isso, segundo a sua sistemática, todas as pessoas de direito privado podem ser reduzidas a dois grupos:

a) civis (associações civis, sociedades civis e fundações);

b) mercantis (sociedades comerciais).

As entidades civis distinguem­se das mercantis em função do seu fim específico, ou de expressa disposição de lei. Mercantis são as que exercem atividade comercial, ou as que assim a lei manda. Civis, as que não se ocupam de atividades mercantis, ou melhor, que operam numa atividade civil por natureza.

As pessoas civis são:

a) associações civis, isto é, corporações que visam à realização de fins ideais (culturais, religiosos, recreativos, etc.);

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b) sociedades civis, corporações que visam à realização de fins econômicos (serviços, etc.);

c) fundações, patrimônios destinados à realização de uma finalidade expressa.

Problemática, às vezes, é a distinção entre sociedades civis (entidades que visam a fins lucrativos) e sociedades mercantis, sempre lucrativas.

Planiol e Georges Ripert (1880­1958) adotam o critério seguinte: se a atividade a que se propõe a sociedade, quando exercida pelo indivíduo, é civil por natureza, civil será a sociedade que a desempenhar. Exemplo: o ensino, profissionalmente realizado pelo indivíduo, é uma atividade lucrativa civil por natureza. Se uma sociedade o explora, será civil, ainda que sua forma seja mercantil.

As sociedades mercantis assumem vários tipos, cuja especificação cabe ao direito comercial. Indicaremos, aqui, os grupos básicos: sociedades de responsabilidade ilimitada e sociedades de responsabilidade limitada. Nas primeiras, o patrimônio dos sócios responde, subsidiariamente, pelos encargos sociais. Se os bens de uma sociedade desse padrão não bastarem para o ressarcimento de suas dívidas, seus credores têm a faculdade de lançar mão do patrimônio particular dos sócios. Nas sociedades de responsabilidade limitada, a situação é diversa. A garantia única dos encargos sociais é o próprio patrimônio da sociedade, não respondendo os sócios senão pela integralização de sua parcela de capital. Os bens particulares dos sócios não respondem, nem mesmo subsidiariamente, pelas dívidas da sociedade. Atualmente, é mais comum o tipo de sociedade limitada.

5.11.3.3 Duração

As pessoas jurídicas têm começo e fim, à semelhança das pessoas físicas.

As de direito público externo passam a existir após seu reconhecimento pela comunidade internacional.

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As de direito público interno existem desde a data da Constituição ou da lei que as institui.

O começo da personalidade das pessoas jurídicas de direito privado ocorre na data do registro do seu ato constitutivo no órgão competente. Para as pessoas jurídicas civis, o registro, no Brasil, é o de títulos e documentos, e para as pessoas jurídicas mercantis, o das juntas de comércio. Serpa Lopes recorda a profunda diferença que existe entre o registro das pessoas naturais (nascimento, morte, casamento, adoção, filiação e tutela) e o das pessoas jurídicas. Aquele decorre da necessidade de os fatos registrados não ficarem à mercê da memória dos interessados ou certificados por qualquer dos modos admitidos como meios de prova, enquanto que este é formalidade substancial, indispensável mesmo, para comunicar personalidade ao ente.

Os Estados, como pessoas jurídicas de direito público externo, extinguem­se pela anexação a outros Estados.

Outras entidades de direito público externo desaparecem por fatos que lhes retiram legitimidade, como aconteceu com a antiga Sociedade das Nações, depois da II Guerra Mundial.

A duração das pessoas de direito público interno cessa na data da Constituição ou da lei que assim o declare.

As pessoas de direito privado extinguem­se de vários modos. As associações, por dissolução voluntária, dissolução legal, dissolução por ato administrativo, dissolução por termo de duração e, se a sociedade é mercantil, também por falência.

Na primeira hipótese, os seus próprios integrantes deliberam sobre a sua extinção.

Há dissolução legal, quando a lei prevê que, verificada certa ocorrência, a associação está dissolvida, devendo entrar em liquidação.

Se a pessoa jurídica executa atividade ilícita, socialmente prejudicial, assiste ao Poder Público a faculdade de pleitear­lhe a dissolução junto ao Poder Judiciário.

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Também extinguem­se as associações por tempo de sua duração, quando assim o prevê o seu ato constitutivo.

Quanto às sociedades mercantis, há outro caso de extinção – a falência – na hipótese de estarem insolventes.

As fundações extinguem­se por três causas: nocividade (fim antijurídico), impossibilidade (deficiência de recursos de que resulta a insolvência) e vencimento do prazo determinado para a sua existência.

5.11.4 Domicílio

O domicílio é político e civil.

Domicílio político é o lugar em que a pessoa física exerce os direitos de votar e ser votada; civil, onde a pessoa, física ou jurídica pode ser demandada para o cumprimento das suas obrigações.

É da maior conveniência das pessoas a determinação de um lugar certo, onde lhes possam ser exigidos, e somente nele, os seus deveres.

O domicílio civil da pessoa física é onde ela reside com ânimo definitivo.

O da pessoa jurídica é o determinado por lei, o que decorre do seu ato constitutivo ou aquele em que ela exerce efetivamente a sua atividade.

Para alguns civilistas, a pessoa só pode ter um domicílio. Para outros, vários, desde que faça a sua residência ou centro de atividades em lugares diferentes. O nosso Direito Civil inclinou­se pela segunda tese.

O domicílio pode ser: voluntário e necessário.

O voluntário depende da vontade da pessoa, e o necessário da sua condição de origem ou de dispositivo legal.

O domicílio voluntário geral, como lugar em que a pessoa reside com ânimo definitivo, no qual pode ser genericamente demandada para o

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cumprimento de seus deveres, decorre, inevitavelmente, da atividade da pessoa, não é adquirido por ato expresso de manifestação da vontade.

Quem, todavia, tem domicílio num lugar, pode convencionar que, em relação a certa obrigação, esta lhe seja exigida em outro, então chamado domicílio voluntário de eleição.

O domicílio necessário é adquirido sem manifestação de vontade tácita ou expressa. Domicílio necessário de origem é o dos filhos menores: o domicílio paterno. Domicílio necessário legal, o de pessoas para as quais a lei o determina expressamente. Por exemplo: o domicílio do funcionário público é onde está sediada a sua repartição, o do militar, o da guarnição na qual está servindo, o do réu preso, o local do estabelecimento penitenciário.

5.12 OBJETO DO DIREITO

Considerada a relação jurídica do foco do sujeito ativo significa direito, e, do foco do sujeito passivo, significa dever. O conteúdo do dever do sujeito passivo e do direito do sujeito ativo é um compromisso daquele para com este. Por isso, o objeto do direito é sempre uma prestação.

Se aceitássemos a existência de relações entre sujeito e coisa, teríamos que dar outra noção de objeto do direito. Neste caso, o objeto seria um ato humano (positivo ou negativo) ou coisas. A teoria jurídica, porém, repele a relação homem­coisa. A relação jurídica vincula sempre dois sujeitos, ainda que o passivo, em certas situações (direitos absolutos), seja indeterminado.

Sendo o objeto do direito uma prestação, distingue­se de bem jurídico. O objeto do direito é a própria prestação, mas esta concede ao sujeito ativo um proveito que é o bem jurídico. Daí dizermos que o objeto do direito pode ser imediato e mediato. O imediato é a prestação e o mediato, o que o sujeito ativo alcança por ela. Numa compra, o comprador tem a faculdade de exigir do vendedor que lhe entregue a coisa, que só alcançará, porém, através de uma prestação (o ato da entrega). Como as noções de dever e de direito são correlatas, essa distinção eqüivale à que adota A. B. Alves da Silva, em relação à matéria do dever: matéria imediata e mediata.

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Bem jurídico é expressão que tem duplo sentido: restrito e amplo. Em restrito, significa direitos que são imateriais e valiosos. O bem jurídico do proprietário de uma coisa é o direito de propriedade que tem sobre ela.

Nem todos os bens imateriais são jurídicos. O conceito jurídico de bem é menor do que o correspondente filosófico. Jurídicos são apenas os bens imateriais e valiosos, valiosos para a ordem jurídica, que assim os estima. Têm valor econômico ou não, havendo, portanto, bens jurídicos economicamente valiosos e bens jurídicos economicamente não valiosos.

5.12.1 Divisão dos bens

Há bens autopessoais, pessoais e coisas, conforme já foi indicado no vigésimo capítulo, a propósito dos elementos do direito subjetivo.

5.12.2 Patrimônio

A situação da pessoa, diante de seus bens economicamente valiosos, define o seu patrimônio. O patrimônio determina­se pelo cotejo de dois elementos: o ativo e o passivo. O ativo é a soma de todos os bens econômicos disponíveis, isto é, cujo valor pode ser reduzido à pecúnia. O passivo é a soma dos encargos econômicos.

5.12.3 Classificação dos bens

Os bens classificam­se sob três critérios:

a) em relação a si mesmos;

b) em relação recíproca, isto é, uns em relação aos outros;

c) em relação às pessoas que deles se utilizam.

5.12.3.1 Em si mesmos

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Considerados em si mesmos, são: corpóreos e incorpóreos; móveis e imóveis; fungíveis e infungíveis; consumíveis e inconsumíveis; singulares e coletivos; divisíveis e indivisíveis.

Os bens corpóreos têm existência material, são tangíveis. Incorpóreos são os direitos.

A divisão dos bens em imóveis e móveis é de realçada importância, por ser característico do direito moderno o rigor e o formalismo com que trata as transações que têm por objeto a propriedade imobiliária, hoje sustentáculo da riqueza econômica, e a tolerância com que dispõe sobre as que têm por objeto bens móveis.

Imóvel é, em princípio, o bem que não pode ser deslocado de um lugar para outro; móvel, o que pode sê­lo, sem prejuízo.

Além dos bens imóveis e móveis, há uma terceira categoria, a dos semoventes, os animais, que se movem por força própria, que não apresenta particular interesse, porque o seu regime jurídico é o mesmo dos bens móveis.

Os imóveis grupam­se em várias classes: imóveis por natureza, imóveis por acessão natural, imóveis por acessão física artificial, imóveis por acessão intelectual e imóveis por foça de lei. Há, na verdade, um bem imóvel por natureza, e outros que se lhes acrescentam por processo natural mecânico ou destinação intelectual, e alguns que somente o são por disposição legal.

O único imóvel por natureza é o solo.

Os que se lhe acrescentam por processo natural são imóveis por acessão natural: as árvores.

Os que se lhe aditam pela obra do homem são imóveis por acessão física: as edificações de qualquer natureza.

São imóveis por acessão intelectual os bens que, móveis por natureza, passam a imóveis pela sua situação e o seu destino. Um equipamento industrial, por natureza móvel, montado numa indústria passa a ser imóvel, como unidade de um conjunto maior implantado no solo.

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A lei, que tem arbítrio para determinar a natureza dos bens, pode considerar certos bens imóveis sem levar em conta a sua natureza, apenas para lhes impor o regime jurídico desses bens. No caso, o bem é imóvel por disposição legal: apólices da dívida pública oneradas com a cláusula de inalienabilidade etc.

Bens fungíveis são coisas móveis que se determinam por quantidade e gênero, e que, por isso, não têm individualidade típica. São infungíveis os que se terminam em função dos seus predicados particulares e representam indivíduos distintos de qualquer outro. Os bens fungíveis podem ser substituídos uns pelos outros, porque a sua determinação se faz por padrões genéricos, ao passo que os infungíveis são insubstituíveis.

Na prática jurídica essa distinção é importante. Quem vende mil sacas de feijão vende quaisquer das que tenha em estoque. Uma saca de feijão de certo tipo, com certo peso, é absolutamente igual a uma outra do mesmo tipo e do mesmo peso. Quem recebe mercadoria em depósito não é obrigado a restituir a mesma mercadoria recebida. Desde que entregue mercadoria do mesmo tipo, na mesma quantidade, terá restituído o bem. O melhor exemplo de um bem fungível é o dinheiro. Quem restitui certa importância não é obrigado a fazê­lo com as mesmas cédulas recebidas.

Os bens infungíveis não podem ser substituídos uns pelos outros. Exemplo: uma obra de arte, que tem valor ligado à sua autenticidade. Uma cópia, acaso mais bela do que o original, não pode ser entregue em substituição deste.

Bens consumíveis são os que perecem usados. Assim, um gênero alimentício. Como explica Orlando Gomes, o bem consumível desaparece por um só ato de gozo. Bens inconsumíveis são os que podem ser usados sem perda de sua substância: um livro, lido muitas vezes, não deixa de existir.

A consuntibilidade pode ser natural ou jurídica. Um bem é naturalmente consumível quando, por força da sua própria natureza, seu uso acarreta perecimento, como os gêneros alimentícios. Um bem é juridicamente consumível quando, sendo naturalmente inconsumível, para o seu proprietário servir­se dele importa perdê­lo. Exemplo: o próprio livro, bem inconsumível por natureza, na prateleira do livreiro é consumível, porque o tem para vender.

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Os bens singulares constituem uma unidade autônoma. Os coletivos resultam da integração de vários bens singulares para uma finalidade comum, sendo, assim, considerados em conjunto. Uma máquina é um bem singular, é uma unidade que existe por si, distinta de qualquer outra. Uma fazenda ou uma indústria são bens coletivos, as várias unidades que as integram formam um conjunto para a realização de um fim comum.

Os bens singulares dividem­se em simples e compostos. Simples são aqueles cuja unidade é tão perfeita que suas partes não podem ser consideradas distintamente do conjunto: um animal, um edifício. Os compostos formam­se do aproveitamento de objetos independentes que, reunidos, constituem uma unidade.

Bens divisíveis são aqueles de cuja partilha resultam frações que constituem unidades íntegras, sem prejuízo econômico. Bens indivisíveis, aqueles de cuja partilha não resultam unidades perfeitas ou cuja divisão importa prejuízo econômico.

O dinheiro é um bem divisível. Podemos dividir a quantia de Cr$ 90,00 por três pessoas em frações de Cr$ 30,00, que são importâncias íntegras, cujo valor, após a divisão, permanece igual ao que tinham enquanto integravam o total. Ao contrário, uma casa é indivisível. Se pretendermos dividi­la por duas pessoas, não obteremos duas casas, mas frações incompletas e heterogêneas de uma. Também um pequeno terreno urbano, de cuja repartição decorra a desvalorização dos lotes obtidos, é indivisível, não por natureza, mas por prejuízo econômico.

5.12.3.2 Em sua relação recíproca

Considerados os bens na sua relação recíproca, distinguem­se em: principais e acessórios.

Principais são os que têm existência autônoma; acessórios, aqueles cuja existência supõe a de outro.

A acessoriedade pode ser natural, industrial e civil, ou seja, um bem pode ser acessório de outro por imperativo de um processo natural, de uma atividade do homem e de uma determinação legal. São bens acessórios naturais as árvores em relação ao solo. São acessórios por indústria os

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edifícios que estão implantados no solo, a ele incorporados pelo trabalho do homem. E há casos em que só a regra jurídica faz de um bem acessório de outro, como os rendimentos. Sua condição acessória, concernente ao capital, é civil, porque gerada por uma instituição jurídica.

São acessórios os frutos, os produtos e as benfeitorias.

Frutos são as utilidades que uma coisa proporciona periodicamente, sem diminuição da sua substância. As colheitas são frutos do solo, os juros, do capital.

Produtos são as utilidades que uma coisa proporciona, mas de cuja percepção resulta seu desgaste. Por exemplo: as minas, na medida em que exploradas, ficam desfalcadas.

As benfeitorias são obras que se fazem num bem para seu melhoramento.

Os frutos, quanto ao momento em que são vistos, podem ser percepiendos, pendentes, percebidos, estantes e consumidos.

Perecepiendos são os que deviam ser mas não foram percebidos. Pendentes, os que ainda estão ligados à coisa que os produziu. Percebidos, os que já foram colhidos. Estantes ou depositados, os que, percebidos, estão em depósito. Consumidos, os já percebidos e que não existem mais.

As benfeitorias podem ser: necessárias, úteis e suntuárias ou voluntárias.

Necessárias são as que se fazem para resguardar a existência de um bem ou para a sua conservação; úteis, as que aumentam a sua serventia; suntuárias, as que, não aumentando a utilidade do bem nem servindo à sua conservação, tornam­no mais atraente ou confortável.

5.12.3.3 Em relação às pessoas

Os bens, em relação às pessoas a que pertencem, são privados e públicos, conforme pertençam ao domínio privado ou ao público.

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Privados, se de propriedade particular; públicos, se pertencem ao Estado.

Estes dividem­se em bens públicos de uso comum, bens públicos de uso especial e bens dominicais. Os de uso comum qualquer pessoa os frui: as ruas, as praças públicas. Os de uso especial, apenas servidores de entidades de direito público: o prédio de uma repartição civil, um quartel. Os bens dominicais pertencem ao Estado que sobre eles exerce propriedade como pessoa de direito privado. O Estado pode ter, por exemplo, um imóvel e alugá­ lo, possuir florestas, fábricas, minas, etc., e explorá­las. Neste caso, a propriedade que exerce é semelhante à do particular, ainda que desfrute de privilégios especiais.

5.13 ATO ILÍCITO

Da relação jurídica subjetiva ou diretamente da regra de Direito Positivo procede o dever a uma prestação, positiva ou negativa. O ato ilícito é a conduta do sujeito passivo que descumpre a prestação, omitindo­se da prática do ato obrigado, ou praticando o proibido.

O estudo do ato ilícito adquiriu realce depois que Kelsen o caracterizou como elemento intra­sistemático do Direito.

5.13.1 Delimitação

O tema exige uma delimitação gradual do conceito de ilicitude.

As conseqüências da conduta ilícita, indica Máynez, são quatro: a primeira simplesmente modifica a relação jurídica, torna mais oneroso o dever do sujeito passivo. Exemplo: a obrigação de pagar juros a que fica sujeito o devedor em mora, sendo esta um injusto retardo de adimplemento de uma obrigação, conceito clássico que, no comentário de Oswaldo Pitz, tem vencido a força destruidora do tempo. A segunda acarreta a caducidade do Direito, em prejuízo do sujeito ativo. Exemplo: o casamento impõe aos cônjuges o dever

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de fidelidade. Se esse dever é violado por um, o outro tem ação de divórcio. Mas, se o outro concorreu para a infidelidade conjugal de um dos consortes, fica este privado do direito de divórcio. A sua conduta ilícita, contribuindo direta ou indiretamente para o adultério do outro cônjuge, importou a caducidade do seu direito de impetrar o divórcio. A terceira é a obrigação de indenizar, imposta a quem procede antijuridicamente, causando dano a outrem. A quarta é a imposição de pena.

Conceituamos restritamente ilícitas apenas as duas últimas modalidades de procedimento, as que geram um dever de indenizar (ilícito civil) ou a sujeição a uma pena (ilícito criminal).

5.13.2 Ilícito civil e ilícito criminal).

Parece impossível, doutrinariamente, distinguir entre ilícito civil e ilícito criminal. A distinção é feita em função do Direito Positivo.

O ilícito criminal é a violação de padrões de comportamento aos quais a sociedade empresta valor mais significativo que a outros. A sua identificação tem de ser feita em termos históricos. Temos que estimar sempre o que, numa sociedade, em certo tempo, se diz ilícito simplesmente civil e ilícito criminal.

Delitos houve, no passado, que hoje não o são mais, e atos hoje tidos por delituosos nem sempre o foram.

A conduta antijurídica pode ter maior ou menor repercussão. A que sensibiliza, além do próprio paciente e pessoas diretamente ligadas a ele, também a comunidade, provocando reação coletiva, o Direito define como ilícita criminalmente.

O ato ilícito civil é conduta antijurídica que incita só a reação do indivíduo atingido por ela, e repercute, por isso, num círculo estreito. Na lúcida explicação de Henri Lalou, nele há, apenas, de um lado a vítima de um dano, e, de outro, uma pessoa obrigada a repará­lo.

O ato ilícito pode ser, ao mesmo tempo, ilícito civil e criminal. Se alguém mata, comete ato criminoso, mas tem a obrigação de indenizar os parentes da vítima. A regra mesma é esta: todo ato ilícito criminal é também ilícito civil, visto como o agente de um crime tem sempre o dever de indenizar

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a vítima, ou os seus parentes e dependentes, do dano causado pelo delito. Mas a proposição contrária não é verdadeira.

Se o ato é ilícito civil, origina responsabilidade patrimonial; se criminal, responsabilidade pessoal. No primeiro caso, o que responde pela indenização não é a pessoa física do agente, mas seu patrimônio, tanto que, se quem pratica um ilícito civil não tem patrimônio, o dever de indenizar se esvazia de alcance prático; no segundo, responde pela imposição da pena o próprio agente.

Há sensível distinção entre responsabilidade patrimonial e pessoal. A pessoal é intransferível, embora no Direito antigo as penas se pudessem aplicar também aos parentes do criminoso. A responsabilidade patrimonial transmite­se aos herdeiros e pode se deslocar do agente do ato para outra pessoa, isto é, o ilícito civil ser praticado por A, e B ser responsabilizado pela indenização. Se um empregado, no exercício de sua tarefa, causa dano a alguém, quem responde pela indenização não é ele, mas seu patrão.

Sendo embora impossível, por entendimento exclusivamente teórico, distinguir o ato ilícito criminal do civil, as conseqüências respectivas, todavia, isto é, a pena e a indenização, assentam em pressupostos claramente diversos, assim resumidos por Hans Albrecht Fischer: a pena impõe­se por causa da culpa do delinqüente, e a indenização para reparar o dano sofrido pelo lesado; a pena não presume a existência de um dano (exemplo: tentativa de delito), ao passo que, pelo contrário, sem dano não há indenização a pena propõe­se juntar ao mal sofrido pelo lesado um outro mal a ser padecido pelo seu causador, e a indenização pretende apenas reparar o mal causado; a pena é sempre conseqüência de um delito e o ato ilícito é tão­só uma das várias circunstâncias que obrigam a indenizar.

5.13.3 Elementos

O ato ilícito integra­se pelo concurso dos seguintes elementos:

a) antijuridicidade;

b) imputabilidade; e

c) culpabilidade

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A antijuridicidade tem natureza objetiva, manifesta­se na própria conduta exterior do agente. A imputabilidade e a culpabilidade têm índole subjetiva, são pertinentes a condições próprias do agente.

5.13.3.1 Antijuridicidade

A antijuridicidade revela­se como contrariedade, ao Direito e causa prejuízo. Um ato é ilícito, quando, contrário à regra jurídica, prejudica alguém.

5.13.3.2 Imputabilidade

Imputabilidade é a capacidade de receber as conseqüências jurídicas decorrentes da conduta ilícita. Algumas pessoas têm imputabilidade e outras não, ou seja, umas respondem pelas conseqüências jurídicas dos seus atos e outras não. Se uma criança, manejando uma arma, mata uma pessoa, atenta contra o Direito, causa prejuízo, mas não tem condições pessoais de responder juridicamente pela sua conduta. É uma criatura inimputável.

5.13.3.3 Culpabilidade

A culpabilidade é de conceito controvertido.

Em regra, só sofre uma sanção quem procede intencionalmente ou sem adotar cautelas adequadas. Se um indivíduo causa dano não premeditado ou a despeito dos cuidados possíveis para preveni­lo, diz­se que agiu sem culpabilidade. Numa palavra, a culpabilidade importa o exame psicológico da conduta.

5.13.3.4 Níveis de culpabilidade

A culpabilidade manifesta­se em três níveis, citados na ordem decrescente da sua gravidade: dolo, preterintencionalidade e culpa (no sentido restrito deste vocábulo).

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Há dolo quando o agente pratica o ato ilícito intencionalmente, visando a produzir o dano verificado. O dolo é a culpabilidade proposital, é o procedimento de quem causa mal, com a intenção de fazê­lo. Doloso é um crime, quando desejado o seu resultado. Doloso é o ilícito civil, quando o agente pretendeu, exatamente, o dano sofrido pelo paciente.

A preterintencionalidade dá­se quando alguém, tencionando (portanto, dolosamente) causar certo dano a outra pessoa, causa­lhe um superior ao que desejava. Por exemplo, um indivíduo, usando de arma branca para fazer uma pequena lesão, ocasiona ferimento do qual decorre a morte da vítima. O agente usou da arma para causar uma lesão leve, e provocou a morte. Pode haver também preterintencionalidade no ilícito civil. Suponhamos que alguém queira prejudicar outra pessoa, incendiando um objeto seu e que o incêndio pretendido se estenda a outros bens. Intentava um dano limitado e motivou outro mais extenso.

A culpa, tomada em sentido restrito, é a conduta não vigilante para a possibilidade de prejuízo eventual a outrem. A convivência social impõe que os indivíduos, ao atuarem, tenham sempre presente a necessidade de resguardar o interesse alheio. Se agimos indiferentes a esse dever, a conduta é culposa.

5.13.4 Manifestação da culpa

Como a idéia de culpa é elástica e abstrata, do que resulta, aliás, a fluidez do seu conceito doutrinário, apontada por Wilson Melo da Silva, e o Direito procura sempre objetividade, é necessário indicar os tipos de procedimento nos quais se caracteriza: a imprudência, a negligência e a imperícia.

A distinção entre imprudência, negligência e imperícia é sutil, a ponto de certos atos, às vezes, nos parecerem imprudentes, negligentes ou imperitos ao mesmo tempo.

5.13.4.1 Imprudência

A imprudência é procedimento excessivo. Comporta­se imprudentemente quem excede o máximo tolerado para dar segurança à conduta. Diríamos que a

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imprudência é ir além de, é ultrapassar um limite. O motorista que excede a velocidade máxima permitida numa pista está agindo imprudentemente. Assim, também, se ultrapassa outro veículo numa lombada ou numa curva.

5.13.4.2 Negligência

A negligência está no oposto. Se a imprudência é um mais de quê, a negligência é um menos de quê. Há negligência quando alguém atua deixando de cercar­se dos elementos mínimos de segurança. O motorista que assume a direção de um veículo, sem verificar das suas condições de freio ou de luz, negligentemente o dirige porque não adotou algumas primeiras cautelas. O cirurgião, praticando uma operação, sem se certificar de que o seu instrumental está asséptico, é negligente, porque desleixou medidas mínimas de segurança.

5.13.4.3 Imperícia

A imperícia é a culpa dos profissionais. Todo profissional deve ter habilitação que evite danos aos que se utilizam de seus serviços. Se os presta sem competência, ensejando prejuízo, procede culposamente. É o cirurgião que, numa manobra desastrada, secciona uma artéria que não deveria ser alcançada num certo campo operatório; é o motorista que, por falta de aptidão, não governa seu veículo com precisão numa emergência; é o pintor que aplica uma tinta sem saber como deveria fazê­lo, obrigando o proprietário da obra a substituí­la. Como se vê, aquele conceito lato de conduta não zelosa resolve­ se em outros conceitos mais preciosos e limitados.

5.13.5 Modalidades da culpa

A culpa é direta quando a pessoa imputável é o próprio agente do ato ou da omissão; indireta, na hipótese contrária.

A culpa indireta apresenta­se sob três modalidades que têm suas denominações provenientes do Direito romano: culpa in vigilando, culpa in eligendo, culpa in custodiendo.

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5.13.5.1 Culpa extracontratual

Culpa in vigilando é a de quem, tendo pessoa sujeita ao seu poder, não exerce sobre ela a necessária vigilância. É, por exemplo, a culpa dos pais pelos atos dos filhos menores. Se estes causam danos a terceiros respondem aqueles pela indenização.

Culpa in eligendo é a falta de zelo na escolha de quem pomos a nosso serviço. É, por exemplo, a culpa do proprietário de um veículo que admite motorista para guiá­lo. Este, causando dano a terceiro, responde pela indenização o proprietário.

Culpa in custodiendo é a dos proprietários ou detentores de animais. Quem possui animal sob custódia deve vigiá­lo, a fim de não maleficiar a ninguém. Se ele lesa física ou patrimonialmente uma pessoa, o proprietário responde pela indenização.

Essas três modalidades de culpa constituem, em conjunto, a chamada culpa extra­contratual. Em relação a elas o dever de indenizar tem fundamento legal.

5.13.5.2 Culpa contratual

Paralelamente, há culpa contratual, ou culpa in contrahendo, cuja ocorrência supõe a prévia existência de um contrato, resultando do inadimplemento ou da imperfeita ou incompleta execução das respectivas obrigações. A parte que descumpre dever contratual é obrigada a indenizar a outra pelo valor do dano causado.

5.13.6 Fundamento da responsabilidade civil

O ato ilícito civil, como já distinguimos, pode ser doloso e culposo.

Em relação ao doloso, não há problema quanto ao fundamento da responsabilidade do agente, porque é elementar que o autor de um dano voluntário e intencional deva responder pelo seu ato.

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Quando, porém, se trata de ilícito civil culposo, a matéria é mais delicada e, às vezes, ao senso comum, a regra de Direito parece injusta. Se um indivíduo causa um prejuízo involuntariamente, a primeira idéia que lhe acode, expressada em linguagem comum, é a de que não teve culpa.

Que significa ter ou não ter culpa? Como o Direito pode punir uma pessoa, mesmo causadora de um mal, se não o pretendeu?

Parece, à primeira vista, que, não havendo propósito, isto é, dolo, a conduta não merece punição. Daí a elaboração doutrinária quanto ao fundamento da responsabilidade resultante de ato ilícito civil culposo, que Agostinho Alvim define como uma questão tormentosa, cujas dificuldades se multiplicam à medida que sobre ela refletimos.

5.13.6.1 Teoria da culpa

A lição tradicional, ainda hoje incorporada ao nosso Direito Civil positivo, é a da culpa. Por ela se diz que, independentemente da intenção, todos em sociedade têm o dever de ser previdentes na sua conduta. Quando não há intenção mas falta de cuidado, esta omissão justifica a sanção jurídica. Se alguém toma de um objeto pesado e o atira pela janela e atinge uma pessoa, provocando­lhe dano, é claro que não pensava causá­lo. Mas é absurdo que não tenha refletido sobre o que poderia ocorrer, sendo a via pública local por onde todos circulam. Sofrerá uma conseqüência, não pela intenção que não houve, mas pelo descuido, pela falta de zelo, pela imprevidência, pela falta de cuidado com o interesse de terceiros.

Donde, quando ocorre um ilícito civil, o agente ser ou não ser responsabilizado. Se a sua conduta foi culposa, ou seja, imprudente, negligente ou imperita, será responsabilizado. Mas, se é evidente, ao contrário, que, apesar de todas as cautelas, de todos os cuidados, de todas as precauções, ainda assim o dano se registrou, não será responsabilizado.

5.13.6.2 Teoria do risco

Essa tese serviu às necessidades do mundo durante muito tempo, porém a vida moderna foi mostrando a sua precariedade.

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Alvino Lima cita várias circunstâncias que tornaram obsoletos os antigos critérios: a densidade progressiva das populações, a diversidade das atividades de exploração do solo e suas riquezas, a multiplicação das causas produtoras de danos resultantes de invenções criadoras de perigo e, a par de tudo, a necessidade de se proteger a vítima, assegurando­lhe afetiva e pronta reparação do dano sofrido, no seu conflito contra os interesses de empresas poderosas e na sua dificuldade de provar com suficiência a causa dos acidentes ocorridos.

Tais circunstâncias não se compadeciam com a duvidosa pesquisa psicológica da conduta do agente e impuseram fosse a questão levada a plano diverso de apreciação, no qual se situava, em primeiro lugar, a necessidade de reparar o dano, pelo mal mesmo que ele representava, independentemente de sua relação causal com um certo tipo de procedimento.

Surgiu, assim, a teoria do risco­proveito, cujo mais representativo defensor foi Louis Josserand. Assentada a necessidade de preservar a segurança da vítima do dano, a teoria do risco­proveito baseia seu argumento fundamental numa tese: os indivíduos que, nas suas atividades, buscando proveitos, criam riscos, devem suportar os encargos e os ônus correlativos e responder pelos riscos que disseminam.

Os pacientes dos danos não podem ter seus interesses pendentes de apreciação judicial demorada e cheia de dificuldades. A indenização será sempre devida, desde que o dano provenha de atividade alheia promovida em busca de vantagem. O industrial que tira sua fortuna do seu estabelecimento, deve assumir o encargo de indenizar os danos que atingem seus empregados. O proprietário de uma empresa de transporte de passageiros e cargas atribui­se o risco de indenizar os prejuízos eventuais causados por seus veículos. O profissional que tira do seu trabalho a sua subsistência não pode fugir ao mesmo dever.

A teoria do risco é chamada objetiva, em contradição à da culpa, chamada subjetiva. Pela teoria da culpa, a responsabilidade reside na conduta do agente, já, na do risco, o fundamento da responsabilidade é objetivamente a posição social daquele. Enquanto antes se dizia que o causador de um dano é obrigado a indenizá­lo, se agiu culposamente, hoje dizemos, laconicamente, que é sempre obrigado a indenizá­lo.

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5.13.7 Seguro

A teoria do risco conduz à generalização do seguro, que logra duas finalidades: efetiva a indenização e dilui o risco. Exemplifiquemos: um operário de modesta oficina, manobrando equipamento rudimentar, sofre uma lesão e morre. O patrão não tem recursos para indenizar aquela vítima, mas tem para pagar uma contribuição à previdência, e esta o indeniza.

Assim, a primeira função do seguro é efetivar a indenização, muitas vezes impossível se o responsável não tem capacidade patrimonial para satisfazê­la.

O seguro também exerce a função social de diluir os encargos indenizatórios, absorvidos, não diretamente pelo agente, mas por uma grande massa de pessoas. Muitos indivíduos, assegurando seus veículos contra danos causados a terceiros, pagam prêmios parcos e todos suportam o encargo das indenizações. A responsabilidade torna­se exeqüível.

Cabe ainda ao seguro, lembra Oliveira e Silva, evitar o empobrecimento da pessoa cautelosa que inflige dano a terceiro, sem embargo do zelo habitual do seu procedimento.

Por outro lado, na sagaz observação de Jorge Peirano Facio, o seguro atua como agente causal dos próprios fatos cujo risco cobre e de seu agravamento. A certeza da indenização atenua a preocupação de evitar o dano e influencia no aumento dos casos de responsabilidade civil.

De qualquer modo, a incorporação da teoria do risco ao direito positivo conduz à generalização do seguro, voluntário ou obrigatório, na maior parte das vezes obrigatório, parecendo a alguns, entre os quais Carlos G. Posada, que sem esta qualidade de nada vale a instituição.

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6 Instituições Jur ídicas

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6.1 INSTITUIÇÕES JURÍDICAS

O conceito de instituição é vário na doutrina. Daremos apenas a idéia da acepção em que está empregado neste trabalho.

Instituição jurídica é simplesmente um conjunto de regras de direito organicamente concatenadas visando à realização de um fim. Há regras jurídicas esparsas, cuja finalidade é meramente ordenadora, e outras que se polarizam ao redor de um interesse, adquirem um sentido estatutário e apresentam certa organicidade. Se o interesse ao redor do qual se polarizam, unificadas para determinada realização, é constante, temos uma instituição jurídica. Na generalidade dos conceitos jurídicos, expõe Theodor Sternberg, o elemento teleológico fica diluído, e é posto em destaque no de instituição.

6.1.1 Elementos

Deste conceito resultam suas duas características: permanência e organicidade. A historicidade das normas de uma instituição jurídica é lenta, ficando estas, assinala Roberto Piragibe da Fonseca, a flutuar acima dos embates de opinião e das disputas. Embora não eternas, sua transitoriedade é menos acentuada, o que levou Maurice Eugène Hauriou (1856­1929) a afirmar que as instituições representam no direito, como na história, a categoria da duração e da continuidade. A família, a personalidade, a propriedade são instituições que evoluem paulatinamente. Ao mesmo tempo, todas se constróem para a satisfação de um fim humano fundamental, donde decorre a sua organicidade, a sua feição sistemática e coordenada.

A organicidade das normas de uma instituição jurídica patenteia­se bem na interdependência existente entre elas, entre cada uma delas e o conjunto e entre este e cada uma delas. Desse fato decorre a dificuldade com que as normas de uma instituição podem ser modificadas, que gera, como corolário, o fato, observável na história, de que as transformações institucionais quase sempre se dão por processos críticos ou revolucionários e apenas raramente em etapas evolucionais sucessivas.

O conceito jurídico de instituição não discrepa do seu correspondente sociológico, especialmente do de Charles Horton Cooley (1864­1929), para

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quem ela é uma estrutura integrada do comportamento coletivo, assente na herança social e correlativa de uma necessidade permanente. Nem diverge do de George Santayana, que Michele Federico Sciacca considera o mais genial dos realistas críticos, segundo o qual o lastro de sabedoria que a opinião pública, numa sociedade primitiva, tira do hábito e da eloquência, ela consegue, numa sociedade altamente organizada, de suas instituições.

Hauriou, num conceito que nos permite identificar os elementos completos de uma instituição jurídica, define­a como idéia de obra ou empresa que se realiza e dura juridicamente, em um meio social, para cuja realização se organiza um poder, que procura órgãos; por outro lado, entre os membros do grupo social interessado na realização da idéia têm lugar manifestações de comunhão, dirigidas pelos órgãos do poder e regidas por um procedimento.

Dessa definição emerge, expressiva, a natureza ideal de toda instituição. Na verdade, qualquer instituição corresponde a uma idéia humana, que é idéia de obra ou empresa, portanto, projeto, para cuja realização se institui uma normatividade. Sendo ideal a essência de todas as instituições, cabe, por isso, conter no seu justo alcance a divisão que delas habitualmente se faz em corpóreas e incorpóreas. Embora as primeiras mobilizem elementos físicos para a sua realização, o que também em pequena escala ocorre às segundas, em tais elementos, porém, não está a instituição, mas na idéia para cuja realização foram eles mobilizados.

Cabendo à instituição promover um projeto comunitário de existência, é tangível nela o elemento finalístico, peça essencial do seu entendimento teórico.

Há que considerar, ainda, nos termos da definição de Hauriou, que a instituição jurídica se realiza e dura juridicamente. Nesse realizar­se juridicamente está o específico de toda instituição jurídica. Se a idéia se realiza em obediência a outra normatividade, que não a jurídica, poderá haver instituição social, mas não instituição jurídica.

Refere­se, ainda, Hauriou à circunstância de que a realização e a duração da instituição ocorrem num meio social, observação óbvia, porque nada há de social que não ocorra num meio social. Repare­se, porém, que as instituições têm matizes diferentes conforme o específico meio social em que surgem. E mais: também sobre elas influencia o meio geográfico, do que é

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bom exemplo da propriedade, a qual, a seu turno, se reflete em outras, como a família, os contratos etc.

Também é certo, como afirma Hauriou, que qualquer instituição realizada exige um poder. Quando os interesses humanos se compensam em regime contratual, seus titulares nivelam­se, sem diversidade hierárquica. Não assim, porém, quando se polarizam ao redor de instituições, cuja estrutura é hierarquizada e dotada de poder. E como qualquer poder somente atua por intermédio de órgãos, o mesmo sucede ao poder da instituição: assembléias, convenções, conselhos etc. E esses órgãos promovem, periodicamente, manifestações de comunhão, manifestações que como que cobram um tributo de fidelidade humana aos ideais da instituição. Assim os comícios, as bodas pomposas, as cerimônias religiosas etc.

6.1.2 Formação

Ainda que disso não se possa ter evidência histórica, mas apenas lógica, toda instituição tem o seu ponto de partida mais remoto numa conduta individual, porque somente o indivíduo inventa. Seu embrião, portanto, é um fato individual, que pode passar a interindividual pela imitação, hipótese em que se esgota a fase espontânea de sua formação. Se a conduta individual é expressiva, no sentido de traduzir comportamento adequado a uma necessidade social emergente, numa certa circunstância de tempo e espaço, o fato interindividual transforma­se em social, pela adesão da maioria. Nesse passo, a instituição alcança sua fase planejada, que se consolida pela generalizada aceitação social, ligada a uma tendência conservadora, a qual decorre, a seu turno, da fundamentalidade dos interesses humanos ao redor dos quais ela se constrói, o que acaba por lhe trazer uma conotação moral, quando não religiosa. Por fim, a instituição se sacraliza, gera a consciência da sua insubstituibilidade, ou da sua eternidade, a qual, por sua vez, passará, mais cedo ou mais tarde, a responder pela sua inevitável desatualização, cuja progressão pode gerar a sua eventual queda num processo violento de ruptura entre o passado e o presente.

6.1.3 Sistemas institucionais.

O emprego do vocábulo instituição, no singular, é apenas lícito didaticamente. Na verdade, as instituições se estruturam em sistemas

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policêntricos e estão sempre ligadas umas a outras, numa tessitura diversificada e numerosa. A esse propósito, ensina Claude de Pasquier que as suas regras agrupam­se ao redor de núcleos, sendo a instituição jurídica um conjunto típico de relações organizadas pelo Direito. Quando diversas instituições jurídicas se reduzem a um tipo comum, como a venda e a locação se reduzem ao contrato, estamos em presença de instituições secundárias e instituições principais. Assim, as instituições se ordenam em torno de centros intermediários, depois estes em torno de centros mais importantes e assim por diante. O contrato de aprendizagem, por exemplo, é uma substituição, relativamente ao contrato de trabalho, e este, a seu turno, gravita em torno da instituição jurídica que é o contrato, à qual se sobrepõe a instituição da obrigação. O legado é uma instituição jurídica particular ligada à instituição mais geral das disposições de última vontade, que culminam na instituição da sucessão.

6.1.4 Divisão

As instituições jurídicas são públicas e privadas. A divisão provém da natureza predominante do interesse à qual atendem. Se social, são públicas; se individual, privadas.

6.2 O ESTADO

O Estado é, por definição, a nação politicamente organizada, isto é, sob o aspecto de funcionamento de seus poderes políticos.

A sociedade evolui e atinge sua plena maturidade, seu completo desenvolvimento, quando se apresenta como nação.

6.2.1 Nação

Nação é a sociedade que alcançou perfeita unidade. De tal maneira esta é sua característica marcante que a várias nações correspondem diferentes mentalidades. É assim que nos referimos, por exemplo, à mentalidade francesa, à espanhola, à inglesa, à norte­americana, à germânica, significando a personificação do grupo social no apogeu da sua integração.

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Discutem sociólogos, historiadores e políticos sobre quais são os elementos de maior importância genética para o aparecimento dessa unidade perfeita que transforma um grupo social em nação. O nosso Sílvio Romero observou que a passagem da tribo para a nação é um problema cheio de embaraços.

Entre os muitos fatores apontados, mais freqüentemente são citados a raça, a língua e a religião. Povos que falam a mesma língua, que têm a mesma origem racial, que adotam a mesma religião, encontram nessa circunstância a determinante da sua unidade política e, portanto, da sua unidade nacional.

Seria falso negar o valor de tais fatores como coadjuvantes na formação das nacionalidades, mas é preciso notar que nenhum tem significação exclusiva.

Encontramos raças distintas integrando, comumente, a mesma nacionalidade, isso para não falar que a noção de raça é altamente duvidosa do ponto de vista científico.

A língua, na qual Tocqueville enxergava o laço mais forte e mais durável que possa unir os homens, é condição importantíssima de unidade nacional, porque a linguagem, de todos os processos sociais, é o mais atuante no condicionamento que o grupo exerce sobre o indivíduo. No entanto, há povos falando a mesma língua e constituindo nacionalidades diferentes, como, por exemplo, Brasil e Portugal. Inversamente, há nações falando línguas várias e, não obstante, apresentando a mesma unidade íntegra, como acontece, e este é um exemplo clássico, na Suíça.

Igual observação podemos fazer relativamente à religião. Sem dúvida que a unidade de crenças conduz à identidade espiritual, e esta é característica das nações. Na medida, porém, em que as sociedades progridem e a vida se torna mais complexa, a religião tem perdido gradativamente a sua influência social. Este regresso da importância social das religiões não se compadeceria com a afirmativa, que para os nossos tempos seria anacrônica, de que a uma identidade de religião responde outra política.

Alguns autores, e a respeito é clássica a lição de Renan, preferem ver na tradição a força motriz da unidade nacional. Assim como a identidade do indivíduo sedimenta­se através da sua vida e repousa na continuidade do seu

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passado, o mesmo poderíamos dizer dos grupos. É a continuidade histórica que dá a um povo a consciência da sua personalidade. Agir como pessoa, sentir como pessoa, ter a unidade de uma pessoa, transformam um povo em nação.

Qualquer debate sobre a matéria será sempre inconcludente, porque as nacionalidades emergem de processos históricos, e estes desenvolvem­se em relação a cada povo com as suas peculiaridades.

Liderança política, tradição, raça, religião, língua, etc. são fatores de unidade nacional, mas por esta nenhum deles pode responder isoladamente. Excelente é a lição de Max Weber a respeito: num certo sentido, o conceito de nação significa, indubitavelmente, acima de tudo, que podemos arrancar de certos grupos de homens um sentimento específico de solidariedade frente a outros grupos. Mas uma nação não é a mesma coisa que uma comunidade que fala a mesma língua; e isso nem sempre é suficiente, como o demonstram os sérvios e croatas, os norte­americanos, os irlandeses e os ingleses. Pelo contrário, uma língua comum não parece ser absolutamente necessária a uma nação. A solidariedade nacional entre homens que falam a mesma língua pode ser rejeitada ou aceita. A solidariedade pode, ao invés disso, estar ligada a diferenças nos outros grandes valores culturais das massas, ou seja, um credo religioso, como no caso de sérvios e croatas. A solidariedade nacional pode estar ligada a estrutura social e mores diferentes e, daí, a elementos étnicos, como é o caso dos suíços e alsacianos alemães frente aos alemães do Reich, ou dos irlandeses frente aos britânicos. Não obstante, acima de tudo, a solidariedade nacional pode estar ligada às memórias de um destino comum com outras nações – entre os alsacianos, um destino comum, com os franceses desde a guerra revolucionária que representa sua idade heróica comum, tal como os barões bálticos com os russos, cujo destino político eles ajudaram a orientar.

Característica das nações é a unidade espiritual que se reflete no comportamento e nos gestos dos seus integrantes, de que foi exemplo, apontado por Spengler, a nação italiana, no Renascimento, ainda antes de constituída em Estado, que se podia seguramente reconhecer num quadro, num pensamento, numa atitude, numa opinião.

Ao grupo nacional o indivíduo não se sente preso apenas pela sua raça, pela sua origem, pela sua religião, pela sua língua, ou pelos seus interesses. Há

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alguma coisa mais que o prende, um elo afetivo. Já houve quem afirmasse ser a unidade das nações uma unidade de amor.

É esse traço afetivo que empresa à nação a sua característica unidade de espírito, e somente ele justifica o devotamento integral do indivíduo à sua nação. O sacrifício que faz por ele é o mesmo que faz pela sua família, porque ambas o envolvem num clima afetivo. É tão peculiar a natureza do vínculo que liga o indivíduo à nação que seu fundamento é voluntário. Pertencemos a uma nação se queremos, porque podemos nascer numa e nos nacionalizar noutra. Sendo voluntário, ele é consciente e consentido, e o consentimento se traduz uma doação irrestrita.

6.2.2 Sociedade, nação e Estado

Os conceitos de sociedade, nação e Estado lógica e cronologicamente se sucedem.

Logicamente, a idéia de sociedade antecede à de nação e esta à de Estado.

Cronologicamente, primeiro existe a sociedade, depois a nação, finalmente o Estado.

Além do mais, logicamente, esses três conceitos são progressivamente menores; o de sociedade é maior que os de nação e o de nação maior que o de Estado. Mas essas distâncias são relativas. Embora o conceito de nação seja maior que o de Estado, na realidade nem sempre ocorre assim. Há Estados que abrangem mais de uma nação e nações fragmentadas em Estados.

A própria distância real entre sociedade e Estado varia. O Estado pode ter muitas dimensões. As mínimas são a política e a jurídica. Pela primeira, assegura a ordem e promove a defesa; pela Segunda, elabora o ordenamento legal e distribui justiça. Num Estado dessa natureza, a distância que vai dele à sociedade é máxima.

No entanto, um Estado que, além do exercício dessas duas funções, realiza outras, como a cultural, a religiosa, a econômica, a estética, etc., tem essa distância relativa diminuída.

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6.2.3 Característica conceitual do Estado

Diverge a doutrina na conceituação do Estado. A dificuldade se agrava, principalmente, porque o próprio vocábulo nem sempre é usado para identificar a mesma realidade.

Para João José de Queiroz, a idéia de Estado é empregada em correspondência com três distintas representações intelectivas. A primeira é a de Estado­tipo, fruto de um conceito cultural construído na base da experiência oferecida pela história política. É a idéia do Estado tal como ele foi e é, segundo a sua maneira de dar­se à nossa observação. A segunda é a do Estado­norma, que desemboca numa conceituação dupla. Uma destas, a teleológica, repousa numa noção ideal patrocinada pelos inovadores políticos. Cogita­se do Estado como deve ser para coincidir com a finalidade específica que se pretende seja a sua. A outra, a dogmática, decorre daquilo que o direito público afirma ser o Estado atual. Há, finalmente, uma noção de Estado­ realidade, a qual engendra, também, duas posições diversas no exame do tema. Ou se considera o Estado tal como é, em concreto, o que dele permite um conceito analítico, ou se procura determinar o que, a despeito da diversidade dos numerosos Estados, constitui a essência comum de todos, tentando, assim, um conceito sintético. Esta última atitude leva ao tema central da teoria geral do Estado.

As tentativas de definir o Estado têm sido todas frustradas. Por isso, melhor parece abordar a polêmica apenas no plano da sua natureza conceitual.

6.2.3.1 Definições finalísticas

Autores há que pretendem conceituar o Estado em virtude dos seus fins. Dessa posição originam­se definições finalísticas. O Estado, como entidade, tem por tarefa guiar a nação ao seu destino histórico. A nação, como qualquer sociedade, tem índole teleológica, atua para a concretização de fins. A característica do Estado seria a de mobilizar recursos nacionais para efetivar esses fins.

6.2.3.2 Definições filosóficas

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Há definições inspiradas numa concepção filosófica de Estado, em cujo estudo não ingressaremos, até mesmo porque seria impossível fazê­lo sem noções filosóficas prévias. O problema do Estado passa a elemento de um sistema filosófico geral. É o que acontece com as teorias de Schelling e Hegel, que vêem no Estado a realização do espírito objetivo. O vocábulo espírito tem sentido subjetivo individual, mas o espírito, como idéia, também se realiza exteriormente. A história seria a afirmação objetiva do espírito, e o Estado, sua manifestação, verdadeiro universo ético dentro do qual se desenvolve a vida de um povo.

6.2.3.3 Soberania

No século XVI, paralelamente ao enfraquecimento do poder político proveniente do feudalismo e do prestígio temporal da Igreja, começaram a surgir Estados marcados pela pujança de sua autoridade. É quando se aponta uma nova característica do Estado, que se inseriu definitivamente na nomenclatura política ainda usada com atualidade.

Foi Jean Bodin (1530­1596) quem predicou para o Estado, como sua qualidade inconfundível, a soberania, atributo que tem ele, e somente ele, de não encontrar nenhuma autoridade acima da sua.

A tese da soberania logrou grande significação para a teoria do Estado e, no Direito Constitucional, foi historicamente oportuna, porque gerou a substância doutrinária de que necessitava o Estado para atingir a sua feição moderna.

6.2.3.4 Auto­organização

Jellinek, depois de assinalar ser a idéia de soberania meramente histórica, conclui por afirmar que ela não é o traço essencial do poder do Estado e não se ajusta ao entendimento de numerosos tipos de Estado, como os confederados e os medievais, de um modo geral.

Para ele, próprio do Estado é que seu poder não derive de nenhum outro, sim de si mesmo e segundo seu direito. Onde quer que haja uma comunidade com um poder originário e a disponibilidade de meios coercitivos

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para dominar seus membros e seu território, obedecendo uma ordem própria, existe um Estado.

O que caracteriza o Estado é a capacidade de auto­organização. Se a organização é dada por outra entidade, não há Estado.

Portanto, é Estado a nação, cujo órgão supremo, que põe em movimento a atividade social, é independente, não coincidindo com o de outro Estado.

6.2.3.5 Monopólio da coação

Korkounov empresta ao tema tratamento simplesmente descritivo, e indigita a característica do Estado no monopólio do constrangimento.

6.2.3.6 Kelsen

Não se pode, hoje, falar em teoria do Estado, sem lembrar Kelsen, cuja doutrina fundamental está exposta exatamente no livro intitulado Teoria Geral do Estado.

O problema é abordado por Kelsen em posição específica, porque ele se atém, principalmente, ao exame das relações entre o Estado e o Direito, e conclui pela unidade de ambos.

Para que possamos compreender Kelsen é preciso remontar à sua teoria sobre a pessoa jurídica, a qual, conforme verificamos, não é para ele um ente, mas um sistema unitário de normas pertinentes às relações recíprocas de várias pessoas.

A palavra Estado é metáfora de que nos servimos para personificar uma ordem jurídica íntegra, assim como pessoa jurídica é metáfora que significa um sistema unitário de normas que presidem às relações recíprocas de certas pessoas.

O Estado é uma ordem social coativa idêntica à ordem jurídica, dado que ambos são caracterizados pelos mesmos atos coativos. O Estado é sempre uma ordem jurídica, mas nem toda ordem jurídica é Estado, senão apenas aquela que institui, para a produção e a execução de normas, órgãos que

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funcionam de acordo com o princípio da divisão do trabalho, e que alcançou certo grau de centralização. Não se distinguem, assim, uma do outro, sendo este expressão da unidade daquela, mero ponto convergente de imputação que o homem hipostasia, supondo real.

Por isso, explica Luís Legaz y Lacambra, Estado e Direito são nomes com que se designam a mesma coisa; Estado e direito são nomes com que se designam a mesma coisa; Estado não tem existência natural, sendo, apenas, a unidade de um sistema de normas que dispõe sobre as condições sob quais se pratica a coação contra um homem por outro homem. O que aparece da autoridade do Estado são ações humanas, que erroneamente imputamos a uma essência incorpórea.

6.2.4 Elementos empíricos

O Estado possui três elementos estruturais: território, população e governo. Mas, adverte Alessandro Groppali (1874­1959), não se confunde com nenhum, representa uma síntese superior existente por si.

6.2.4.1 Território

O território nem sempre foi considerado essencial à existência do Estado, e, ainda recentemente, durante a última guerra, vimos Estados no exílio, sem poder sobre qualquer território. Não se pode aceitar o fato, senão como desvio da condição normal, porque atualmente é inconcebível Estado privado de território, povo e governo.

Território é a área da superfície terrestre sobre a qual o Estado exerce a sua soberania.

6.2.4.2 População

A população é o elemento humano do Estado. Visto em relação a ela, o Estado tem dupla dimensão: uma demográfica, dada por toda a sua população, abrangendo, assim, nacionais e estrangeiros, e outra pessoal, dada apenas pelos nacionais.

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6.2.4.3 Governos

Elemento do Estado, essencialíssimo no plano lógico, é o governo, unidade de constituição e funcionamento dos poderes políticos. Para Themistocles Brandão Cavalcanti (1899­1980), identifica­se a idéia de governo com as de autoridade e proteção.

6.2.5 Formas de Estado

Apreciados em sua forma, os Estados podem ser simples e compostos, divisão que resulta de sua estrutura política. Se esta é una e os poderes, portanto, concentrados, o Estado é simples; se é diversificada, sendo os poderes partilhados, o Estado é composto. No primeiro caso, temos o Estado unitário, que Georges Bourdeau define como aquele que não possui senão um centro de impulso político, na totalidade dos seus atributos e das suas funções, está concentrado num titular único que é a pessoa jurídica do Estado. Todos os indivíduos postos sob sua soberania obedecem a uma só e mesma autoridade, vivem sob o mesmo regime constitucional e são regidos pelas mesmas leis.

6.2.5.1 Estados compostos

Os tipos de Estado compostos são: união pessoal, união real, união incorporada, confederação e federação.

6.2.5.1.1 União pessoal

União pessoal é um conjunto de estados que, guardando plena soberania, ficam, em certo momento, subordinados ao mesmo governante. Nas monarquias, sendo o poder pessoal e hereditário, eventualmente, vínculos de parentesco levam estados independentes a ficarem sob a autoridade do mesmo monarca. Foi em decorrência de fato dessa natureza que Filipe da Espanha (1527­1598) se tornou também rei de Portugal.

6.2.5.1.2 União real

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Verifica­se a união real quando Estados independentes se reúnem para adotar uma política exterior comum sob o governo de um só soberano e também, acaso, alguns aspectos da sua administração. A união real origina­se de uma conveniência de ordem política. Os Estados congregam­se para se projetar no plano internacional sob o mesmo governo, com uma única personalidade, constituída com o propósito de permanência, ainda que conservem a gestão independente dos seus negócios internos.

6.2.5.1.3 União incorporada

A união incorporada é modalidade mais íntima de união. Dela advém a constituição de nova entidade política que absorve as que lhe deram origem, sendo mais um processo de fusão de Estados.

6.2.5.1.4 Confederação

A confederação é aliança de Estados em caráter permanente para a defesa externa e a manutenção da paz interna, conservando seu próprio governo. Da confederação pode sobrevir um Estado federal ou até unitário. A Suíça, em origem, foi uma confederação, a Confederação Helvética. Hoje é um Estado descentralizado, que apresenta todas as peculiaridades de unidade política. Na confederação, os Estados preservam a faculdade de, a qualquer momento, pôr termo à união. Os Estados Unidos da América, antes de serem um Estado federal, foram uma confederação sui generis, instituída pela coalizão de antigas colônias britânicas. Essa foi, aliás, circunstância invocada na cruenta Guerra da Secessão. Alguns Estados entenderam ser direito seu recuperar a anterior condição.

6.2.5.1.5 Federação

A federação é forma de Estado inspirada em padrões norte­americanos.

Consiste na diversificação de elementos de índole estritamente interna numa união definitiva. Na federação, somente a União exerce atividade internacional e é soberana. Os seus membros gozam apenas de autonomia, ou seja, poder de gestão em assuntos respeitantes ao seu peculiar interesse.

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A federação, no plano internacional, apresenta as características de um Estado simples. Sua composição somente aparece no plano interno, na existência de unidades que, desfrutando de autonomia, desempenham o poder político (Legislativo, Judiciário e Executivo), na esfera de sua competência privativa.

O federalismo, processo de descentralização política e administrativa, não se realiza em toda parte debaixo da mesma configuração. Há Estados federais em que a competência das unidades­membros é muito ampla e outros em que é muito reduzida. Fatores históricos concorrem decisivamente para essa variedade de matizes. Algumas federações procederam da fusão de Estados soberanos e outras do desmembramento de Estados unitários. Há federações que surgiram por força centrípeta e federações surgidas de forças centrífugas. O processo de federalização norte­americano, por exemplo, foi centrípeto. Já o federalismo brasileiro, que nasceu do desmembramento de um Estado unitário, obedeceu a forças centrífugas. Daí a grande diversidade existente entre um e outro. Na América do Norte, é ampla autonomia dos Estados. Ainda hoje, há conflitos em matéria de competência entre a união e os Estados, a propósito de problemas como o da integração racial nas escolas, sendo necessário que a Suprema Corte, que é a Constituição viva, os dirima.

É interessante observar, em relação ao Brasil, que, como já assinalara Francisco José Oliveira Vianna (1885­1951) desde 1930, a minimização da autonomia dos Estados tem sido constante, no decorrer de toda a vida republicana. Atenua­se sempre mais o caráter composto do federalismo brasileiro, os Estados progressivamente esvaziados da sua competência. Aliás, o mesmo fato, ainda que em proporção infinitamente menor, ocorrer na América do Norte, principalmente em decorrência da necessidade de planificação da economia.

6.2.6 Tipos históricos de Estado

Alguns tipos históricos de Estado devem ser conhecidos, até porque representaram modalidades peculiares de organização política.

6.2.6.1 Estado teocrático

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O mais antigo foi o Estado teocrático oriental. No Estado teocrático há vinculação entre o poder político e o religioso, entre quem governa e Deus. Ele apresenta, pelo menos, duas variantes. Se o governante é divinizado ou se exerce o poder político como mandatário de Deus, o Estado é robusto, sua atuação é decisiva na vida social. Havendo separação, em relação aos respectivos titulares, entre o poder político e o religioso, competindo a este a defesa do credo oficial, o poder político é frágil, dependente que fica da classe sacerdotal.

6.2.6.2 Estado grego

Na Grécia, existiu uma forma singular de Estado, que permitiu a prática da democracia direta: o Estado­cidade. As condições geográficas e culturais helênicas, aquelas muito destacadas por Jean Hatzfeld, responderam pelo seu aparecimento. Em geral, geograficamente, o Estado é uma unidade política extensa, e a cidade, ao contrário, diminuta. Na Grécia, essas duas unidades coincidiram. A algumas cidades correspondia uma ordem política autônoma: Esparta, Atenas, Tebas, etc. A geografia grega, com sua topografia característica, conduziu à insegurança, quando os homens mais se preocupavam com proteção em caso de guerra. As aldeias plantavam­se nas cercanias de montanhas, fortificada a eminência do terreno contra os inimigos. No seu interior erguiam­se os palácios reais. Nas faldas da montanha agrupavam­se cabanas onde habitavam camponeses, artesãos e comerciantes. Em torno desse pólo fundava­se a cidade, sede do governo, aparecendo, assim, a cidade­Estado.

De um modo geral, a evolução das cidades­Estados foi idêntica: começam monárquicas, passam a oligárquicas, transformam­se em tirânicas e somente no fim tornam­se democráticas. Informa Aristóteles que o seu progresso ia sempre num aumento crescente, à medida que se intensificava a democracia.

Os gregos não se consideravam súditos da autoridade, mas agentes do poder. Accioli de Vasconcelos comenta que o Estado em tudo interferia, sem limites morais ou jurídicos, mas Estado e indivíduo estavam tão ligados que os interesses de ambos se confundiam. O Estado absorvia as personalidades individuais, mas era reputado a mais perfeita forma de sociedade, tanto que a subordinação do indivíduo a ele era consentida, e nisso os gregos encontravam uma afirmação do seu próprio valor. Entenderam eles, com a máxima

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perfeição, segundo assinala Homero G. Guglielmini, que somente todos os homens fazem o humano, razão pela qual sua expressão política predominante foi o ideal da cidade autárquica organizada jurídica e hierarquicamente, segundo o valor social das pessoas. Por isso, a polis, como escreve Werner Jaeger (1888­1961), era a fonte de todas as normas de vida válidas para os indivíduos.

6.2.6.3 Estado romano

Embora influenciado pelo pensamento político helênico, o Estado romano apresentou traços próprios. Era mais objeto de especulação jurídica do que política. Não tendeu nunca à transcendentalização.

Nele se encontram, como já anotara Louis de Montesquieu (1689­1755), os primeiros rudimentos do princípio da divisão dos poderes políticos: o monárquico (cônsules), o aristocrático (Senado, com grandes atribuições legislativas) e o democrático (assembléias populares).

Qualquer que tivesse sido, em certos momentos, a hipertrofia do poder, jamais o pensamento político romano tolerou a assimilação do indivíduo pelo Estado.

6.2.6.4 Feudalismo

Mais tarde, despontou o Estado feudal. O feudalismo foi uma organização social estratificada em numerosas camadas, em forma piramidal, e repousava na exploração econômica da terra. Entre as várias camadas, havia um liame de hierarquia e reciprocidade, que vinha desde o servo, que não passava de um acessório do solo, até o príncipe, grande senhor feudal. O rei distribuía o poder por entre os suseranos, de modo que estes o detinham efetivamente. Por isso, a autoridade do Estado feudal era frágil pela sua divisão entre numerosas pessoas que, dentro de cada feudo, tinham completa soberania, legislavam, julgavam e aplicavam a lei. Machado Paupério refere­ se ao feudalismo como a época em que o Estado se eclipsou. Na verdade, no regime feudal, informa Guizot (1787­1874), havia uma confederação de pequenos soberanos, de pequenos déspotas, desiguais entre si e tendo, uns para com os outros, deveres e direitos, mas investidos em seus próprios domínios de um poder arbitrário e absoluto.

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6.2.6.5 Estado absoluto

Na fase seguinte, a característica do Estado contrasta com a da precedente. Chegamos ao Estado absoluto, surgido quando declinou o prestígio temporal da Igreja Católica o que remonta à reforma protestante, mas para cujo aparecimento A. Esmein atribui profunda influência ao Direito romano.

Os reis avocaram a si poder absoluto, exatamente na época em que Bodin afirmava ser a soberania atributo do Estado. Se a soberania é qualidade intrínseca do Estado, não poderia haver nenhum poder acima dele. Por influência dessas idéias e resultado de outras alterações históricas, emergiu o verdadeiro Estado moderno, absolutista, Estado em que o poder do governo não encontra restrição.

6.2.6.6 Estado constitucional

Graças às revoluções inglesa, americana e francesa, chegamos ao Estado constitucional, o dos nossos dias, ainda que esta afirmativa seja relativa, porque nossos tempos são, também, de crise do constitucionalismo.

Uma lei suprema tutela tanto o poder e sua autoridade quanto o indivíduo e a sua liberdade. Outros princípios juntam­se a este, assim o da divisão dos poderes, apontada como corolário de um regime de verdadeiras franquias constitucionais. Mas, no seu conceito essencial diz­se constitucional o Estado em que a lei se sobrepõe ao poder. Nele, o indivíduo tem uma esfera de liberdade em que é intangível, e o Estado, embora ampla a sua autoridade, um campo determinado de atuação.

Francisco Ayala acentua, com razão, que a característica do Estado constitucional está precisamente no respeito à liberdade da pessoa individual diante do poder público, qualquer que seja a estrutura do seu governo, singularidade que o situa fora de comparação com qualquer outra criação política que a história nos possa oferecer, pois corresponde a uma valoração do indivíduo peculiar de nossa cultura.

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6.2.7 Formas de governo

A organização política do Estado pode assumir várias modalidades.

6.2.7.1 Aristóteles

A classificação tradicional, ainda adotada como nomenclatural no estudo deste tema, é a de Aristóteles, pela qual toda organização política importa a existência de governante e governados. Lógico seria, portanto, classificar as formas de governo levando em conta o número das pessoas que exercem o poder. Ora, a quantidade resolve­se em três situações: pode ser unidade, pluralidade e totalidade. Assim, pode o governo ser exercido por uma, algumas e todas as pessoas.

Daí a divisão aristotélica: monarquia (o governo de um só), aristocracia (o de alguns) e democracia (o de todos).

Analisando esses regimes, Aristóteles não se inclina, ostensivamente, por nenhum. Todos são legítimos e, desde que exercidos para o bem comum, são formas puras de governo. Monarquia é governo de um para o bem de todos. Aristocracia, o de uma elite para o mesmo fim. Democracia, o de todos para o bem de todos.

A essas formas correspondem outras, impuras ou anômalas, em que a situação quantitativa é a mesma, mas a finalidade é oposta. Assim, à monarquia corresponde a tirania, poder de um para seu próprio bem; à aristocracia, a oligarquia, o governo de uma minoria em seu benefício; à democracia, a oclocracia ou demagogia, governo da plebe açulada pelas paixões.

Hoje, é impossível conter as formas reais de governo dentro do quadro aristotélico. Outros critérios as distinguem, mais compatíveis com a sua apresentação moderna.

6.2.7.2 Governo absoluto e constitucional

Temos, por exemplo, a divisão: governo absoluto e governo constitucional. Absoluto é aquele cujo titular pode tudo, segundo a sua própria

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vontade. Constitucional é o em que existe limite da autoridade, traçado por uma lei maior – a Constituição.

6.2.7.3 Monarquia e república

Distinguem­se, também, os governos em monárquicos e republicanos. Na monarquia, o poder é pessoal, vitalício e hereditário. Na república, é temporário e de origem eletiva.

6.2.7.4 Governo direto e representativo

O governo é direto, quando o próprio povo o desempenha em deliberações coletivas; representativo, quando o faz por intermédio de mandatários.

Eqüidistantes dessas formas, há as semidiretas, em que o governo, em princípio representativo, não delibera, em certas questões, sem consulta ao povo. Quando se trata de medida de maior repercussão ou de mudança política expressiva, o povo é ouvido para ratificá­la ou não. É o referendo, prática direta, num governo representativo.

6.2.7.5 Governo parlamentar e presidencial

Nos Estados modernos, o governo é exercido por três poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário.

Em alguns países, entre eles a Inglaterra, que é exemplo e paradigma, a separação não é rígida, sendo o Executivo uma projeção do Legislativo, ou, como se expressa Afonso Arinos de Melo Franco (1905), sua simples delegação. Seu regime é parlamentarista. Do Parlamento sai o Gabinete que exerce o governo. A figura do titular do Poder Executivo é simbólica, representativa do Estado. O chefe do governo é o primeiro­ministro, que organiza o Gabinete conforme a sua receptividade no Parlamento.

Uma vez constituído, o Gabinete poderá, todavia, cair, se o Parlamento não lhe der, de pronto, um voto de confiança ou, mais adiante, se desaprovar suas medidas mais importantes.

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O parlamentarismo, em certos países, tem produzido grande instabilidade política, o que não acontece na Inglaterra, fato que justifica a observação, comumente feita, de que só é viável em Estados em cuja população há idéias políticas nitidamente formuladas, representadas por partidos correspondentes a grupos definidos de opinião.

No presidencialismo o Poder Executivo está concentrado num titular das respectivas funções, de quem os ministros são simples auxiliares de confiança pessoal.

6.2.7.6 Kelsen

Segundo Kelsen, numa das suas obras mais admiráveis, Essência e Valor da Democracia, podemos dividir as formas modernas de governo, abstração feita da sua estrutura aparente, que pode disfarçar uma ditadura sob capa de República, um regime liberal sob a de Monarquia, em duas: democracia e autocracia.

Destacaremos a fundamental dentre a indicação das características de ambas. Nas autocracias, a vontade psicológica de quem governa confunde­se com a vontade política do Estado. O governante atua pelas suas virtudes e defeitos. Sua vontade prepondera no exercício do governo. Nas democracias, o poder é essencialmente impessoal. Em verdade ninguém o tem, somente o povo e a lei. O governante é instrumento do poder, não seu titular. O exercício impessoal do poder, nos limites da lei, sem a contaminação de qualquer elemento psicológico, caracteriza a democracia como regime de garantias objetivas de liberdade, que não ficam a mercê da vontade, ou do caráter de quem governa.

6.2.7.7 Pisanelli

Segundo comissão presidida por Codacci Pisanelli, instituída pela União Interparlamentar, as formas de governo devem ser grupadas como segue:

a) as em que o presidente é eleito por sufrágio universal e tem maior autonomia (forma monista);

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b) as em que o presidente exerce o governo juntamente com uma assembléia (forma dualista);

c) as em que há um executivo colegiado emanado do Parlamento (forma soviética).

6.2.7.7 Loewestein

A classificação de Loewestein é mais extensa:

a) democracia direta;

b) governo de assembléia;

c) governo parlamentar;

d) governo de gabinete;

e) governo de conselho, diretoria ou colegiado.

6.3 PERSONALIDADE

As instituições jurídicas privadas assentam numa instituição matriz, a da personalidade. Sem que se reconheça ao homem aptidão para exercer direitos e assumir compromissos, impossível é a existência de tais instituições. A personalidade é condicionante de todas elas. É, no dizer de Caro, citado por Boirac, a raiz do direito, reside na constatação de que o homem, enquanto homem, se separa do resto da natureza.

6.3.1 Evolução

A personalidade evoluiu através de três fases diferentes: a coletiva, a familiar e a individual.

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Em época recuada, o indivíduo não tinha condição jurídica autônoma. Nessa fase de anonímia jurídica do indivíduo, o grupo era, e somente ele, pessoa, porque o indivíduo não era titular de direitos que lhe pudesse contrapor, e a personalidade jurídica, no comentário de Jacques Estève, tem por fundamento a necessidade de garantir o indivíduo contra o excesso de constrangimento social.

Depois a personalidade se tornou familiar. É a família a pessoa que se realiza em vida social. Os interesses dos seus integrantes não têm proteção jurídica. Apenas ela exerce direitos e reivindica interesses, como comunidade personificada.

No Direito romano, período clássico, podemos situar esse momento.

A família, então uma unidade social de grande porte, abrangendo todas as pessoas de uma só progênie ou sujeitas a uma só autoridade, atuava política, religiosa, cultural e economicamente, como verdadeira pessoa de direito, sob o comando e pela representação de seu chefe, o paterfamilias, que dispunha de autoridade ampla, desdobrada me quatro poderes: patria potestas (sobre filhos e netos), dominica potestas (sobre os escravos), manus (sobre as mulheres que ingressavam na família em virtude do matrimônio) e mancipium (sobre os filhos alheios vendidos ou dados em pagamento de dívida).

Com o tempo, a hipertrofia da autoridade do paterfamílias foi sendo limitada.

Assim, em relação à dominica potestas, o imperador Cláudio (10 a. C.) tornou livres os escravos abandonados por velhice. Gublio Elio Adriano (76­ 138) proibiu que os senhores os matassem, salvo com ordem judicial, ou que fossem torturados para confessar faltas, a menos que contra eles pesasse uma acusação concreta, extinguiu o cárcere privado e tornou ilegal a sua venda para promotores de espetáculos gladiatórios. E o imperador Tito Antonio Pio (86­161) autorizou os escravos a se queixarem aos magistrados quando maltratados.

Fato idêntico ocorreu quanto à manus. A situação social e jurídica da esposa alterou­se no período republicano e sob o domínio dos imperadores. O matrimônio com manus foi cedendo lugar ao livre, a ponto de no último século da República, ser aquele uma exceção, A Lex Julia de Adulteriis

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extinguiu o poder de vida e morte do marido sobre a mulher, mesmo no enlace com manus. E ao tempo de Justiniano já a lei não o reconhecia mais.

A patria potestas, igualmente, foi sendo mitigada. Caracala (188­217) proibiu a venda de filhos, salvo em caso de extrema miséria. Adriano puniu o paterfamílias pelo abuso do direito de matar o filho. Os imperadores Antonio Pio e Marco Aurélio (121­180) suprimiram o direito de o pai obrigar o filho ou a filha sui juris a se divorciarem do cônjuge a que se houvessem unido pelo casamento livre. No fim do período imperial reconheceu­se o dever paterno de sustentar os filhos, restringiu­se o poder do pai relativo à disposição dos bens dos filhos maiores. E ao tempo de Augusto (63 a. C – 14) os soldados ainda sob patria potesta receberam o direito de dispor dos bens que houvessem adquirido durante o serviço militar.

Por último, a personalidade se individualizou, tornou­se condição do indivíduo, que passou a titular de direitos e compromissos.

Individualizada, ainda evolui por um processo de gradativa generalização, sob influência de dois fatores principais, mesclados de elementos religiosos, culturais e econômicos: a emancipação dos escravos e da mulher.

A personalidade serve de eixo a duas instituições privadas básicas: família e propriedade. Dão estas ao indivíduo direito a núpcias e à utilização exclusiva das vantagens que as coisas podem proporcionar. A essas instituições duas outras se acrescentam: as obrigações e a sucessão. As obrigações são vínculos jurídicos de fundo patrimonial; portanto, só poderiam aparecer depois da propriedade. A sucessão é ligada à família, porque a sua motivação histórica foi permitir a transformação do patrimônio a sucessivas gerações da mesma família, e ligada à propriedade, porque é uma das maneiras de transferi­la.

6.3.2 Direitos de personalidade

A personalidade, como vimos, é, por definição, o atributo que tem um ente de exercer direitos e assumir compromissos. Quando se afirma, portanto, de um ente que é pessoa, se lhe reconhece a aptidão para o exercício de direitos. Dizer, todavia, por exemplo, que o homem, como pessoa, pode exercer direitos, pouco significa se a tal possibilidade não corresponder um

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mínimo concreto de direitos. Tais direitos, sem os quais a própria noção de personalidade seria puramente formal, são chamados direitos personalíssimos ou de personalidade. Exemplos: direito à vida, honra, liberdade, nome, figura, privacidade, etc.

Embora a disciplina de tais direitos na legislação civil apenas venha surgindo recentemente, cresce, todavia, de dia para dia, o interesse pela sua tutela e pela ampliação do seu conteúdo. O nosso vigente Código Civil, por exemplo, não reserva dispositivos especiais para esses direitos. Mas o projeto em curso no Congresso Nacional a eles expressamente se refere, declarando­ os intransmissíveis e irrenunciáveis, e dispondo, especialmente, sobre o direito à integridade física, ao direito ao cadáver, à recusa de assistência médica, ao nome e a imagem.

Os direitos de personalidade caracterizam­se por serem necessários, vitalícios, absolutos privados, não­patrimoniais, intransmissíveis e impenhoráveis. São necessários porque imprescindíveis à existência mesma da pessoa como ser capaz de direitos. A vitaliciedade, ou seja, o fato de serem conferidos à pessoa do nascimento à morte, é corolário da própria necessidade. São absolutos privados, porque pertinentes ao interesse direto do indivíduo (privados) e oponíveis contra todos, sendo sujeito passivo do correlato dever de respeito a totalidade das pessoas não­titulares. A não­ patrimonialidade significa que tais direitos não podem ser estimados em valor econômico, não podendo, portanto, ser negociados. Note­se, porém, que a não­patrimonialidade é do direito em si, não, em certos casos, do seu exercício. Assim, por exemplo, o exercício do direito à exclusividade da própria imagem pode gerar compensação econômica, tal como acontece relativamente aos modelos humanos, usados para qualquer fim. São esses direitos, ainda, intransmissíveis, porque, constituindo requisito fundamental da existência da própria pessoa, no plano do Direito, deles ninguém pode se despojar. Finalmente, são impenhoráveis. Sendo a penhora o ato pelo qual se inicia a expropriação dos bens do devedor, para, com o ulterior produto de sua venda, satisfazer­se o crédito de seu credor, a impenhorabilidade nada mais é, no caso, do que uma resultante da não­patrimonialidade, porque créditos não se satisfazem senão com o produto da venda de bens patrimoniais.

Orlando Gomes divide os direitos de personalidade em dois grupos: direitos à integridade física e direitos à integridade moral. A classificação é precária, pela incindibilidade dos respectivos conceitos, tanto que, ao se analisarem particularmente alguns deles, constata­se a dificuldade de situá­los

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num ou noutro grupo. Como, porém, doutrinariamente, a matéria ainda está em fase de formação, pode­se acatar a divisão, na falta de melhor.

São direitos à integridade física: o direito à vida, o direito sobre o próprio corpo e o direito ao cadáver. São direitos de integridade moral: o direito à honra, o direito à liberdade, o direito ao recato (ou à privacidade), o direito à imagem e o direito ao nome.

No que diz com o direito à vida, que é precondição material de todos os demais, não se deve entendê­lo como direito à mera sobrevivência, ampliando­se, ao contrário, sempre mais, os interesses contidos na expressão: a vida como existência em condições de dignidade humana, com proteção aos riscos resultantes da tecnologia moderna, garantia de assistência médica e hospitalar etc. Diretamente ligado ao problema do direito à vida está a discutida tese da eutanásia, ou seja, da morte, por piedade, às pessoas portadoras de enfermidade incurável. Ainda mais: com o alcance da medicina moderna e o aparecimento de um arsenal de recursos capazes de prolongar a vida quando já não consiste mais ela senão no exercício inconsciente de meras funções vegetativas, surgiu, também, o problema da chamada eutanásia passiva, isto é, sobre a licitude de serem sustados ou não os recursos que, numa tal emergência, prolongam a vida do enfermo sem qualquer esperança de sua recuperação.

O direito ao próprio corpo assegura a inviolabilidade deste a qualquer lesão e, por serem os direitos de personalidade intransmissíveis, leva à polêmica sobre a legitimidade de dispor a pessoa de partes de seu próprio corpo. O aparecimento da técnica cirúrgica dos transplantes acendeu interesse sobre a matéria. Orienta­se a doutrina no sentido de proibir os atos de disposição do corpo que acarretem diminuição permanente da integridade física do doador. Neste setor situam­se os problemas ligados à inseminação artificial de seres humanos, à legitimidade das práticas de esterilização, um suposto direito ao aborto, justificado pelas feministas na qualidade de donas de seu próprio corpo, o direito de recusa à assistência médica e a ilicitude de todos os procedimentos policiais ou judiciais que, sob as mais variadas modalidades de tortura, atentam contra a integridade física dos acusados detidos.

O direito ao cadáver, cujo exercício, como é óbvio, não cabe ao extinto, senão como disposição de última vontade, mas a seus parentes, justifica,

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porém, da parte daquele a destinação prévia do próprio cadáver, quando feita para fins científicos ou altruísticos.

Dos direitos à integridade moral o primeiro é o direito à honra, que os léxicos definem como um sentimento de dignidade que leva o indivíduo a procurar merecer e manter a consideração geral. No campo do Direito Penal, a tutela à honra se faz pela incriminação da calúnia, da difamação e da injúria. A calúnia é a falsa imputação a alguém de ato capitulado como crime. A difamação atenta contra a reputação da pessoa. E a injúria atenta contra o seu decoro e a sua dignidade. No Direito Civil, na parte relativa à família, a conduta desonrosa de um cônjuge justifica o pleito de separação do outro.

O direito à liberdade é ontologicamente estrutural da própria ordem jurídica, segundo o princípio de que o que não está proibido está permitido. Nisso está o campo da chamada liberdade civil. E nisso está a garantia de que, ressalvada a faixa de conduta que a lei põe sob a tutela de suas prescrições e no resguardo total da vida íntima, hoje assolada pela multiplicação dos instrumentos de detecção a distância, seja de imagens, seja de palavras.

O direito à imagem tutela a aparência exterior da pessoa, mais típica no aspecto fisionômico, mas juridicamente significando inviolabilidade do direito que tem a pessoa de não ver a própria imagem usada para fins comerciais não autorizados ou de maneira comprometedora de sua fama. Sua proteção varia na medida de condições pessoais que divergem de indivíduo para indivíduo. Não constitui violação desse direito a divulgação moral de retratos ligados a atos públicos por sua natureza ou sem finalidade lesiva aos interesses da pessoa.

O direito ao nome dá à pessoa exclusividade para seu uso, vedado, portanto, a terceiro fazê­lo. A proteção do nome abrange o prenome e o nome patronímico, e ainda o pseudônimo adotado para atividades lícitas.

6.4 FAMÍLIA

A família é uma instituição que acolhe, simultaneamente, interesses gerais e particulares. Instituição privada, porque ligada à condição individual,

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a sua projeção social é imensa. Não podemos dizer qual o seu aspecto mais importante, se o particular ou o social.

As relações sexuais, embora sejam pressupostos fáticos da família, não a integram como instituição. A família forma­se da ligação estável de pessoas de sexos distintos, que se investem de direitos e deveres recíprocos para com a sociedade e a prole que provier da sua união, consumada segundo um paradigma social.

6.4.1 Evolução

A evolução da família constitui matéria controvertida.

Tradicionalmente se admitiu tivesse assumido, desde sua origem, a estrutura de um casal sob a autoridade masculina.

Essa tese veio, mais tarde, a sofrer contradita, pretendendo substituí­la por outra, fundada nas pesquisas de Bacchofen, Morgan, Mac Lennan e outros, da qual Friedrich Engels (1820­1895) e o sociólogo espanhol Manuel Sales y Ferré fazem circunstanciada exposição.

Sustenta que a família teria aparecido tardiamente e evoluído conforme outro esquema. Antes teria havido a tribo heterista, época em que as relações sexuais promíscuas não conduziam a qualquer tipo constante de convivência.

Várias tradições são referidas em abono da afirmativa. Entre elas a de povos em que o parentesco não se definia em termos individuais, mas de gerações, de modo que uma geração era paterna em relação à seguinte e filial em relação à anterior, sendo os indivíduos da mesma considerados irmãos, o que justificaria a exogamia, pela qual as pessoas e um grupo somente podiam manter relações com as de outro.

A primeira maneira de ser da família foi a matriarcal como decorrência da maior ligação da mulher à prole. O parentesco se determinava em termos maternos, e a família estava sob autoridade materna. A família matriarcal foi originariamente poliândrica: uma só mulher para um grupo de homens.

A família matriarcal poliândrica transformou­se em patriarcal, passando o parentesco a se definir pela linha viril. Sua primeira modalidade foi

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patriarcal polígina, justamente o oposto da matriarcal poliândrica: um só varão e um grupo de esposas.

Finalmente apareceu a família moderna, monogâmica e patriarcal, homem, esposa e filhos, sob a autoridade masculina.

Para alguns sociólogos, a hipótese exposta contradita noções elementares de biologia, que nos mostra o macho sempre ciumento da posse da fêmea, observação válida para todas as espécies animais, inclusive a humana.

Por outro lado, a hipótese assenta em vestígios de instituições observadas em grupos que ainda hoje se conservam em estado primitivo, e numa série de informações históricas.

É razoável crer que seja impossível admitir­se um só esquema de evolução para todos os grupos. Antes esta teria sido vária, segundo condições econômicas, imperativos religiosos e padrões culturais.

A família moderna, além de monogâmica, é igualitária. Uma das conquistas do nosso tempo é a igualdade social, cultural, econômica e política da mulher. Mulher e marido partilham dos mesmos direitos e dos mesmos deveres.

6.4.2 Casamento

O casamento é o ato constitutivo da família legítima.

Difícil é determinar a sua natureza jurídica.

Para alguns civilistas, influenciados pelas modernas teorias da instituição, o casamento é uma instituição.

Para muitos é um contrato; mas alguns, embaraçados em estabelecer a sua natureza contratual, preferem chamá­lo contrato sui generis, isto é, um gênero, não espécie de um gênero comum.

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O que dificulta conceituar o casamento como contrato é a singularidade dos deveres e dos direitos que importa e, nos países antidivorcistas, também a sua indissolubilidade.

Apesar de tudo, prepondera no Direito Civil essa tendência, tanto mais que a situação dos países onde não existe o divórcio já é hoje exótica.

6.4.2.1 Evolução

A primeira forma de casamento parece ter sido o rapto, que consiste na posse, violenta ou não, da mulher. A história está repleta de exemplos. Encontrâmo­los referidos à fundação de Esparta, assim como à de Roma, esta iniciada com o famoso rapto das Sabinas, e revividos em tradições minuciosamente complicadas por Sampaio e Melo.

A compra da esposa sucedeu ao rapto. A mulher representava, na época, um valor econômico, que veio a perder completamente depois. Pelo casamento, deslocando­se de uma família para outra, desfalcava economicamente a que abandonava. Daí a obrigação do pretendente de compensar o prejuízo. A composição assume forma de permuta pela entrega de uma mulher da família do futuro marido à da noiva, e, às vezes, pela prestação de serviços à família desta. Com o aparecimento da moeda, a transação toma o aspecto de compra e venda: paga­se o preço.

Só tardiamente o casamento assumiu feição consensual, passando a ser ato de vontade apenas dos nubentes.

A consensualidade do casamento está na estrita dependência da condição da mulher. Enquanto a ordem social lhe deferia posição de inferioridade, não se podia cogitar de casamento consensual, este progressivamente se afirmando, na medida em que e emancipa a mulher, de modo que, até mesmo recentemente, embora o regime jurídico do casamento já fosse o consensual, a realidade não correspondia ao conceito legal.

Há que destacar a significação histórica do Cristianismo nesse processo de redenção social da mulher, e, modernamente, as imposições das novas estruturas resultantes da sociedade industrial.

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6.4.3 Fim da sociedade conjugal

A dissolução voluntária da sociedade conjugal, no Ocidente, obedece aos princípios originários do direito romano ou do Direito canônico. Do Direito canônico veio o que, no Brasil, denominamos desquite, simples separação de corpos e bens, sem ruptura do vínculo matrimonial, o que impede os desquitados de convolarem novas núpcias. Do Direito romano procedeu o divórcio a vínculo, pelo qual, voluntariamente, unilateral ou bilateralmente, rompe­se o vínculo matrimonial, sendo os cônjuges restituídos à condição pré­matrimonial, podendo, assim, contrair novas núpcias.

A tradição divorcista foi um dos traços mais assinalados do direito romano, no qual se estimava a essência ética do casamento, que estava na affectio maritalis, a disposição dos cônjuges de serem marido e mulher, sem o que o casamento se esvaziava da sua única e real motivação, não havendo razão para mantê­lo por mera imposição objetiva. A legislação romana sempre foi divorcista, e os juristas e o povo de Roma sempre se opuseram a várias tentativas de limitação da liberdade de quebra do vínculo conjugal. Henri Stoedtler, citado por Almáquio Diniz (1880;1936), comenta que somente os costumes e a opinião pública, está muito poderosa na antiga Roma, constituíam um freio à liberdade absoluta de divórcio, que era legalmente completa.

6.4.3.1 Dissolução livre

Historicamente examinada a matéria, verificamos que, antes propriamente de haver o divórcio como instituição jurídica, o que, até mesmo do ponto de vista lógico, presume a existência da família institucionalizada, as ligações, que mais tarde se denominaram conjugais, dissolviam­se com a mesma liberdade com que se constituíam.

Poder­se­ia, assim, aludir, ainda que com imprecisão técnica, a um recuado período em que os laços entre homem e mulher eram plenamente dissolúveis.

6.4.3.2 Casamento a prazo

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Também antecede ao divórcio a existência dos chamados casamentos a prazo, usuais em algumas comunidades, ainda que às vezes sob regime de clandestinidade, nos quais, como a própria denominação o diz, estava contida, no ato constitutivo da ligação, a sua ulterior dissolução.

6.4.3.3 Repúdio

Outra modalidade de se pôr termo à sociedade conjugal foi o repúdio, comum aos povos orientais, embora também encontrado no Direito romano, quase sempre como ato unilateral do marido de rejeitar a esposa, faculdade que lhe era outorgada principalmente quando o casal não gerasse prole, o que então se atribuía exclusivamente à mulher.

6.4.3.4 Direito romano

Só mais tarde surgiu propriamente o divórcio, com seus contornos legais definidos e o seu elastério amplo, do que é modelo o já citado Direito romano.

6.4.3.5 Indissolubilidade

Sob influência do Direito canônico e do prestígio temporal da Igreja Católica o casamento transformou­se em liame indissolúvel. Passou­se a admitir, apenas, a mera dissolução da sociedade conjugal (separação de corpos e de bens), sem rompimento do vínculo matrimonial.

6.4.3.6 Divórcio

Tal situação, porém, não haveria de perdurar. Logo o princípio da dissolubilidade voltou a afirmar­se, gerando um irreversível processo de disseminação universal do divórcio.

Decisiva foi a influência da Revolução Francesa, mais pelos seus filósofos do que pelos seus juristas, conforme observa Ernest Glasson (1839­ 1907). O seu prestígio no mundo ocidental foi amplo e, por isso, o divórcio, como instituição essencialmente liberal, tendeu a se generalizar.

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6.4.3.7 Direito brasileiro

No Brasil, até o ano de 1977, não havia divórcio, mas apenas a separação de corpos e bens, sem quebra do vínculo matrimonial, o que recebia a denominação de desquite, podendo operar­se amigável ou litigiosamente, no primeiro caso apenas depois de dois anos de matrimônio. O desquite litigioso era o que um dos cônjuges requeria contra o outro, alegando falta capaz de justificar a concessão da medida. As razões que o autorizavam eram de direito expresso: adultério (violação do dever de fidelidade), sevícia (agressão física), injúria grave (comportando ampla variedade de situações), tentativa de morte e abandono do lar conjugal por mais de dois anos, sem justa causa.

Em 1977 a Emenda Constitucional nº 9 suprimiu da Magna Carta brasileira o princípio da indissolubilidade do vínculo conjugal, o que permitiu fosse aprovada, no mesmo ano, a lei nº 6.515 que regulou os “casos de dissolução da sociedade conjugal”. Ao antigo desquite passou a lei a denominar separação judicial. Pode esta ser amigável, ou seja, por mútuo consentimento dos cônjuges, desde que casados há mais de dois anos. E pode ser litigiosa, quando pedida por um dos cônjuges contra o outro, alegando “conduta desonrosa ou qualquer ato que importe em grave violação dos deveres do casamento e tornem insuportável a vida em comum”. Vê­se, portanto, que, acertadamente, a nova lei omitiu­se de fazer enumeração taxativa das causas que podem justificar o pedido de separação. A mesma medida pode ser pleiteada por um cônjuge contra o outro se “provar a ruptura da vida em comum há mais de cinco anos consecutivos, e a impossibilidade de sua reconciliação”. E também pode ser pleiteada quando requerida contra cônjuge que estiver “acometido de grave doença mental, manifestada após o casamento, que torne impossível a continuação da vida em comum, desde que, após uma duração de cinco anos, a enfermidade tenha sido reconhecida de cura improvável”. Tanto o pedido de separação fundado em ruptura da vida em comum como o fundado em grave enfermidade mental serão recusados se puderem constituir “causa de agravamento das condições pessoais ou da doença do outro cônjuge, ou determinar, em qualquer caso, conseqüências morais de excepcional gravidade para os filhos menores”.

A separação judicial determina a separação de corpos e a partilha dos bens e põe a termo aos deveres de coabitação e fidelidade recíproca.

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Somente depois de três anos de separação judicial é que pode ela ser convertida em divórcio, podendo, em conseqüência, os já agora divorciados contrair novo matrimônio. A conversão pode ser requerida por ambos os cônjuges ou por somente um deles, variando, em cada caso, o procedimento.

Consigna ainda a lei uma norma especial, pela qual, em havendo os mesmos fundamentos, “no caso de separação de fato, com início anterior a 28 de junho de 1977, e desde que completado cinco anos, poderá ser promovida ação de divórcio, na qual se deverão provar o decurso do tempo da separação e a sua causa”.

Em conseqüência da promulgação da Constituição de 1988, a lei nº 7.841, de 17 de outubro de 1989, reduziu os prazos para a obtenção do divórcio, que passaram a ser de um ano após a separação judicial e de dois anos consecutivos depois da separação de fato, esta caracterizável a qualquer tempo.

6.5 PROPRIEDADE

Propriedade é a instituição privada que define a posição relativa de homens e coisas num contexto social. É o direito que a ordem jurídica outorga ao homem para fruir das coisas com exclusividade.

A propriedade é um direito absoluto. Com isso não se afirma que o proprietário pode tudo. Ao contrário, são atualmente sensíveis as restrições ao exercício do seu direito, condicionado que está pelo interesse social. É absoluto, no sentido técnico do vocábulo: direito de uma pessoa, diante da qual estão todas as demais obrigadas por um dever negativo de respeito.

6.5.1 Domínio útil e domínio direto

Analisada na sua estrutura a propriedade é um feixe de direitos. As coisas proporcionam múltiplas utilidades e na propriedade contém­se tantos direitos quantas são as serventias que oferecem. Essas possibilidades estão encerradas em três grupos: direito de uso, direito de gozo e direito de

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disposição. Por isso, diz­se que o proprietário tem o direito de usar, gozar e dispor da coisa.

Usar uma coisa é fruir a sua utilidade natural. Usa de uma casa quem mora nela, de um livro quem o lê. Numa hipótese como noutra, retiramos da coisa a vantagem inerente à sua natureza.

Pelo direito de gozo, o proprietário faculta o uso da coisa a outrem, de quem aufere uma compensação. O proprietário de uma casa, alugando­a, está gozando dela, porque transfere ao locatário o uso e dele recebe o aluguel.

O direito de disposição é o de extinguir o próprio domínio sobre a coisa, destruindo­a, ou transferindo­a a outra pessoa.

Ao conjunto desses direitos chamamos domínio útil. A expressão é bem clara: eles correspondem às utilidades que o proprietário obtém da coisa sobre a qual exerce domínio, ou seja, propriedade plena.

Além desses direitos que formam o domínio útil, existe o vínculo jurídico em si, pondo a coisa na dependência da pessoa: o domínio direto. Quem possui um objeto, mesmo sem usar, gozar ou dispor dele, nem por isso deixa de ser proprietário. O liame de subordinação exclusivamente legal é a propriedade na sua pura essência jurídica.

Alcançando o geral pelo particular, diremos que propriedade é condição de dependência em que o ordenamento legal coloca as coisas face às pessoas, dependência que se resolve numa soma de vantagens. O direito só é domínio direto; o direito às vantagens, domínio útil. Quando a mesma pessoa é titular, tanto do domínio direto quanto do domínio útil, diz­se que tem sobre a coisa domínio pleno.

6.5.2 Evolução

A propriedade evolui:

a) pela passagem da móvel a imóvel;

b) da fase coletiva para a familiar e desta para a individual.

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A propriedade dos bens móveis antecedeu à do solo. Os artefatos produzidos pelo homem para a sua atividade foram os primeiros bens apropriados. A propriedade móvel deve ter sido a única quando a vida do homem era nômade, limitada sua atividade econômica à caça e à pesca. A economia humana era predatória. Localizado numa área, o homem consumia a caça da região e o peixe das suas águas. Esgotada a riqueza, deslocava­se para outra região, onde ia realizar a mesma empresa. Uma economia dessa natureza não se compadece com a vida fixada num determinado local.

Somente quando o homem passou a dedicar­se ao pastoreio e à agricultura, conservando e recuperando as riquezas naturais, é que sua vida tornou­se sedentária. É quando se admite tenha surgido a propriedade imobiliária.

No tocante aos seus titulares, a propriedade teve a mesma evolução da personalidade. Foi coletiva, familiar e individual. A passagem de uma fase para a outra esteve estreitamente ligada aos métodos de produção. No começo, o grupo produz como um todo, a economia é coletiva. Em conseqüência, dele é a propriedade. Mais tarde, a família, como subgrupo, constitui a matriz das riquezas sociais. Como corolário dessa organização econômica surge a propriedade familiar. Finalmente, o indivíduo transforma­se, ele mesmo, num valor econômico, numa célula produtiva, e aparece a propriedade individual.

6.5.3 Fundamento

Matéria jurídica, sociológica e politicamente polêmica é a do fundamento do direito de propriedade.

Não cabe aqui a restauração completa do debate, senão a indicação das idéias gerais sobre o eixo da controvérsia.

As doutrinas que enfrentam o problema filiam­se a duas teses: individualista e socialista

A distinção depende do que se considera seja a grande finalidade do Direito. Se pretendemos que os seus fins fundamentais são os do indivíduo, chegamos à posição individualista. Se, diversamente, que mais relevantes são os fins de interesse social, chegamos à posição socialista. Para o individualismo a sociedade é o meio e o indivíduo, o fim; para o socialismo, o

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indivíduo é o meio e a sociedade, o fim. Ou, como ensina Paulino Jacques, o individualismo organiza o convívio humano colocando o indivíduo no centro da estrutura social, porque tudo parte dele e retorna para ele, e o socialismo, ao contrário, constitui o convívio pondo os grupos sociais no centro da estrutura da sociedade, porque tudo emana deles e volta para eles.

As teorias individualistas da propriedade alcançaram a sua culminância no século XIX, sob a influência do liberalismo que inspirou a Revolução Francesa. Elas geraram a convicção de que a propriedade é um direito natural, que remonta à fase pré­social da vida humana, verdadeira dimensão da personalidade. Von Jhering, por exemplo, afirma que a propriedade não é mais do que a periferia da personalidade estendida a uma coisa.

As teorias socialistas, em contraposição, consideram que toda riqueza é social. Sendo a propriedade uma forma de fixação das riquezas, ela pertence ao grupo. A ninguém cabe a exclusividade de domínio das coisas.

Alheios à discussão, os fatos evidenciam que as doutrinas metafísicas sobre o direito de propriedade são hoje caducas, não cabendo admiti­lo, na frase típica de Alphonse Boistel, como fundado na própria natureza do homem. Mesmo nos países em que a propriedade privada é estrutural da ordem econômico­jurídica, a propriedade está sensivelmente limitada, indo apenas até onde não colide com o interesse social.

6.5.4 Desmembramento

A natureza multifilamentosa da estrutura do direito de propriedade permite o seu desmembramento, que ocorre quando o proprietário transfere para terceiro os direitos contidos no domínio útil. Sendo a propriedade um direito real (direito sobre coisa, na versão tradicional), a pessoa beneficiada pelo desmembramento, a que o proprietário transmite seus direitos, torna­se titular de um direito real sobre coisa alheia.

Nem sempre, porém, como observa Lacerda de Almeida, a desintegração dos direitos componentes do domínio útil significa limitação do domínio. O mero exercício de alguns deles pode­se transferir sem que sofra o domínio diminuição da sua plenitude, tal o caso da locação, na qual o proprietário locador transfere ao locatário o mero exercício do direito de uso.

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Só tem o efeito de desmembrar o domínio a alienação do direito em si, não do seu simples exercício.

Os direitos reais sobre coisas alheias são: servidão, enfiteuse, uso, usufruto, renda vitalícia, penhor, hipoteca e anticrese.

6.5.4.1 Servidão

Há servidão, quando o proprietário, por iniciativa própria ou imposição legal, permite ao não­proprietário alguma serventia de um bem imóvel. Casos típicos dão clara idéia da instituição. Assim, a servidão de passagem. Se um terreno não tem acesso direto a uma via pública, por se intercalarem entre esta e ele outros terrenos, o seu proprietário pode exigir dos confinantes direito de passagem. O prédio onerado pela servidão chama­se serviente e o beneficiado por ela, dominante.

Lafayette Rodrigues Pereira (1834­1918) assinala, com propriedade, o nexo que existe entre o sentido e a denominação dessa instituição, quando explica que as servidões não são outra coisa senão direitos por efeito dos quais uns prédios servem a outros.

6.5.4.2 Enfiteuse

A enfiteuse é um contrato pelo qual o proprietário de um imóvel transfere a outra pessoa, denominada enfiteuta ou foreiro, todo o seu domínio útil (uso, gozo e disposição), conservando, apenas, o domínio direto que lhe dá o direito de cobrar daquela uma pensão anual, denominada foro. Se o enfiteuta aliena o domínio útil, é obrigado a dar preferência ao proprietário para a aquisição; não convindo ao proprietário a compra, resta­lhe o direito de cobrar certa percentagem sobre o preço da transmissão, chamada laudêmio.

A enfiteuse só pode ser constituída sobre terras não cultivadas ou terrenos que se destinem a construção. É o único contrato perpétuo, não pode ser revogado, salvo se o foreiro se atrasar por certo período no pagamento do foro, quando então sofre a pena de comisso, que importa rescisão da enfiteuse.

Enfitêutico é o regime das terras do patrimônio das municipalidades no Brasil.

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6.5.4.3 Uso

O uso é a instituição pela qual o direito de fruir da utilidade natural de uma coisa deixa de pertencer ao seu proprietário e passa a outrem.

6.5.4.4 Habitação

A habitação é modalidade de uso. É uso de prédio residencial.

No Brasil, observou M. I. Carvalho de Mendonça que tanto o uso como a habitação eram instituições decadentes. Hoje, o comentário não seria de todo procedente. É que a lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962, vitalizou o direito real de uso, sob a modalidade de habitação, quando dispôs que ao cônjuge sobrevivente, casado sob o regime de comunhão universal de bens, enquanto viver e permanecer viúvo, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativa ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único bem daquela natureza e inventariar.

6.5.4.5 Usufruto

No usufruto, o proprietário perde o direito de uso e gozo, em benefício do usufrutuário, conservando apenas o de disposição.

6.5.4.6 Renda vitalícia

Constitui­se renda sobre coisa alheia, quando os rendimentos de um bem imóvel passam a ser vantagem vitalícia de pessoa que não seu proprietário.

6.5.4.7 Promessa de compra e venda

Nos termos do art. 22 do Decreto­lei nº 58, de 10 de dezembro de 1937, conforme redação que lhe foi dada pelo art. 1º da Lei nº 649, de 11 de março

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de 1949, os contratos, sem cláusula de arrependimento, de compromissos de compra e venda de imóveis, cujo preço tenha sido pago no ato de sua constituição ou deva sê­lo em uma ou mais prestações, desde que levados ao Registro de Imóveis, atribuem aos compromissários direito real oponível a terceiros e lhes conferem o direito de adjudicação compulsória.

6.5.4.8 Direitos de garantia

Alguns desmembramentos do direito de propriedade formam uma classe própria, servindo para garantia de dívidas, em benefício do credor. O direito real resultante é de garantia, porque sua finalidade é assegurar patrimonialmente o recebimento efetivo do crédito.

Explica Afonso Fraga que, no estado atual do direito, os bens do devedor constituem os únicos objetos sobre os quais pode recair a ação judicial dos credores. Mas essa garantia comum, não retirando do devedor a livre disposição dos seus bens, é totalmente aleatória. Daí a necessidade de se sujeitar uma coisa, no todo ou em parte, à segurança do crédito pessoal. É exatamente essa a função dos direitos reais de garantia: penhor, hipoteca e anticrese.

6.5.4.8.1 Penhor

Penhor é o contrato pelo qual o devedor transfere ao credor a posse de um objeto móvel, ficando este com a faculdade de vendê­lo, se a dívida não for paga no prazo, para embolsar­se do valor do crédito, juros e despesas, restituindo o saldo acaso apurado. São duas as características do penhor: incidir sobre objeto móvel e constituir­se com a tradição, que é a transferência efetiva da coisa do poder do devedor para o credor. Há casos excepcionais, porém, de penhor sobre bens imóveis, sem tradição da coisa, como o agrícola e o industrial, cujo estudo é de especialização, em curso de Direito Civil.

6.5.4.8.2 Hipoteca

A hipoteca recai sobre bens imóveis e não impõe a tradição da coisa do devedor para o credor. Forma­se quando o proprietário de um imóvel o vincula ao pagamento de uma dívida, podendo o credor, não solvido o

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compromisso, promover a venda judicial do bem, a fim de se pagar do principal e dos acessórios, restituindo ao devedor o saldo apurado.

6.5.4.8.3 Anticrese

A anticrese consiste na garantia que o devedor faz de sua dívida, conferindo ao credor a faculdade de receber, até seu total resgate, os rendimentos de um bem imóvel de sua propriedade.

6.5.4.8.4 Alienação fiduciária em garantia

Os direitos reais de garantia, precedentemente citados, deixaram há algum tempo de exercer a função econômica que lhes correspondeu, pela crescente importância dos valores mobiliários e o ritmo mais veloz dos negócios jurídicos. Dessa circunstância emergiu a necessidade de criação de institutos diferentes que pudessem servir como garantia do crédito com maior desembaraço e simplicidade.

No Direito brasileiro, por exemplo, depois da venda com reserva de domínio pelo vendedor, também já obsoleta, surgiu a alienação fiduciária em garantia, instituto que, embora novo em nosso Direito Positivo, remonta, em suas origens e primeiras figurações, ao Direito romano. Segundo a definição de Caio Mário da Silva Pereira, consiste ela na transferência, ao credor, do domínio e posse indireta de uma coisa, independente da sua tradição efetiva, em garantia do pagamento de obrigação a que acede, resolvendo­se o direito do adquirente com a solução da dívida garantida.

De um modo geral o ato se consuma com a participação de três pessoas em posições jurídicas diferentes: o vendedor, o comprador e o financiador, que propicia ao segundo recursos financeiros para a aquisição. A venda, como é óbvio, é feita pelo alienante ao comprador, que se torna devedor de quem lhe propiciou recursos para a compra. O comprador, para garantir o pagamento do débito assumido, transfere ao credor o domínio e a posse indireta da coisa comprada, dela recebendo a posse direta, que lhe permite a sua fruição. Nessa transação, o comprador devedor se torna fiduciante, e o credor, fiduciário. A garantia do credor está no fato mesmo de se tornar proprietário e possuidor indireto da coisa negociada, razão pela qual se o devedor deixa de saldar seu débito, inclusive deixando de pagar alguma parcela em que tenha sido

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dividido, pode promover a apreensão do objeto e vendê­lo, para seu próprio ressarcimento, sendo mínimas as formalidades processuais a que terá de atender.

A alienação fiduciária em garantia é, realmente, um direito real de garantia. Mas tem natureza distinta dos assim capitulados no Código Civil brasileiro. É que nestes há o desmembramento do domínio, modalidades que são dos direitos reais sobre coisa alheia, o que nela não acontece, dado que o credor adquire do devedor o domínio pleno da coisa, tanto que, se apreende pela inadimplência do devedor, pode vendê­la como própria. O devedor, a seu turno, possui o objeto na qualidade de seu fiel depositário. Apenas a propriedade do credor é temporária e transitória, isto é, trata­se de propriedade resolúvel que se extingue pelo pagamento do débito.

6.6 POSSE

A posse é uma instituição de direito privado intimamente ligada à propriedade, embora dela distinta. Ambas ase manifestam como poder do homem sobre as coisas, reconhecido pela ordem legal.

Para diferenciá­las, partiremos do que é uma falsa premissa para obter conclusão verdadeira. A falsa premissa é a de que a posse é um estado de fato e a propriedade, um estado de direito. Exemplificando, se alguém, encontrando terra desocupada, que supõe não pertença a ninguém, passa a ocupá­la como própria, adquire a sua posse. Há, no caso, um simples fato do qual redunda o domínio físico sobre a coisa. Se, todavia, aquela área de terras viesse a ser aforada à mesma pessoa, nessa hipótese ela já não seria apenas possuidora, sim proprietária, por título jurídico idôneo. O exemplo esclarece em que sentido a posse é um estado de fato e a propriedade, um estado de direito.

Mas aceitar simplesmente que a posse é um estado de fato, mero poder físico sobre coisas, impele a situações embaraçosas. Às vezes, há o poder físico sem a posse, e, outras, ele não existe e há posse. O ladrão apropria­se de um objeto alheio, que fica em seu poder, mas não é possuidor. Inversamente, o dono de um objeto pede a alguém para guardá­lo, perde o poder físico sobre ele, não a posse. Portanto, a posse não é apenas fato.

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Para responder à dificuldade decorrente desta evidência, Savigny a conceituou como resultante de dois elementos: corpus e animus. Para que haja posse, necessário é que a pessoa detenha a coisa, com a intenção legítima de proprietária. Não basta o simples poder material, que é apenas detenção. A esta deve ser acrescentado um propósito de ordem subjetiva, o de manter o objeto como seu, a intenção de conservá­lo a título de dono.

Esta intenção, todavia, deve ser legítima, isto é, de boa fé. Ela é que distingue a posse justa da injusta. É injusta a contaminada por vícios: violência, clandestinidade e precariedade; justa, se nenhum deles a corrompe. A ordem jurídica só protege a justa.

Posse violenta, a palavra diz, é a que se obtém pela força. Exemplo: alguém que encontre um terreno ocupado e expulse quem o tem sob o seu poder.

Clandestina é a posse sub­reptícia, a de quem se apodera de coisa, ocultando o fato do legítimo proprietário ou possuidor.

Posse precária é a que resulta de abuso de boa fé: a de quem recebe coisa alheia para guardá­la e recusa­se a devolvê­la.

De tudo deduzimos que a posse não pode ser simples situação de fato, nem perfeita situação de direito. O fato lhe dá origem, mas sua validade depende de como ocorreu. Se violenta, clandestina ou precariamente, não disporá dela. Limongi França ensina que, embora seja em si mesma um simples fato, a posse gera direitos e é sob esse aspecto que interessa ao Direito.

6.6.1 Proteção possessória

A ordem jurídica defere proteção tanto à propriedade quanto à posse.

Seu amparo à propriedade – direito subjetivo – parece fundada em motivo óbvio. Mas, e a da posse, consumada sem legitimação jurídica? A estranheza dessa proteção é tanto mais acentuada quanto certo que é mais rápida, eficaz e simples do que a da propriedade.

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A matéria cabe às doutrinas sobre o fundamento da proteção possessória. Exporemos, apenas, as de Savigny e Jhering.

6.6.1.1 Savigny

Sustenta Savigny, a cuja teoria sobre a posse Jhering fez severas restrições, entre nós aplaudidas por Rui Barbosa (1849­1923), que a ordem jurídica não garante a posse por ela em si mesma, mas porque proíbe a violência. Um dos princípios em que se assenta a ordem legal é o de que ninguém pode, em princípio, nem mesmo alegando direito próprio, impor seu interesse a outrem pela força. Se há direito que deva ser assegurado, reclamando o emprego de meios de constrangimento, a disposição dos mesmos compete ao Estado. Por isso o Direito defende a posse apoiado no princípio de que a ninguém é lícito usar de violência. Quem tem uma coisa em seu poder, dela só pode ser despojado pelo Poder Público. Como esclarece J. M. de Azevedo Marques, estando uma coisa sob a atuação material de uma pessoa, esta deve ser respeitada como personalidade racional, de modo a não poder outra pessoa, fora da Justiça, obrigar aquela a abrir mão da coisa possuída.

6.6.1.2 Jhering

A teoria de Von Jhering diverge da de Savigny. A posse é vista como a exteriorização da propriedade, a maneira de se manifestar o domínio. Sabemos que alguém é proprietário da casa em que mora pela posse que exerce sobre ela; que é proprietário do carro que dirige pela posse que exerce sobre ele. A posse não é uma instituição autônoma, antes revelação ostensiva da propriedade.

Quando o direito protege a posse, na verdade o faz por ser esta a maneira mais eficaz de resguardar a propriedade. Figuremos que uma pessoa subtraia algo de outra. Se a prejudicada, para se defender, tivesse que provar sua condição de proprietária, difícil seria a defesa. No entanto, se o direito se contenta com a simples evidência de que é possuidora do objeto, a garantia que lhe dá é objetiva, fácil e rápida.

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Eventualmente poderá ocorrer que se proteja o possuidor contra o proprietário. Mas, via de regra, a proteção ao possuidor é também a do proprietário. No caso, a vantagem de segurança compensa acidental injustiça.

6.6.1.3 Interditos

A defesa da posse faz­se pelas ações possessórias, às quais o possuidor recorre para obter a garantia do Estado. Tais ações recebem a denominação especial de interditos possessórios.

A posse pode ser comprometida:

a) por turbação;

b) por esbulho; e

c) por ameaça.

O possuidor de um terreno periodicamente invadido sofre de turbação à sua posse. Se seu terreno é ocupado, já não há simples turbação, sim esbulho, destituído que foi da posse. Se há apenas promessa séria de turbação ou de esbulho, sua posse está ameaçada.

A essas três violações correspondem outros tantos interditos: o de manutenção, o de reintegração e o proibitório, o último de caráter preventivo, concedido antes que a posse seja lesada.

6.7 OBRIGAÇÕES

As obrigações são vínculos de direito que se estabelecem entre duas pessoas, ficando uma delas, sujeito ativo, ou credor, com a faculdade (direito subjetivo) de exigir da outra, sujeito passivo, ou devedor, prática, abstenção de ato ou entrega de coisa, sob pena de, não o fazendo, responder o seu patrimônio pela indenização equivalente ao dano causado.

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A obrigação é direito pessoal patrimonial. Não responde pelo adimplemento da obrigação do sujeito passivo a sua pessoa física, mas o seu patrimônio.

6.7.1 Elementos

Do próprio conceito de obrigação emergem os seus elementos. O primeiro é o sujeito ativo, existente em qualquer relação jurídica. A singularidade, no caso, é que o sujeito ativo chama­se credor. O segundo é o sujeito passivo, que, determinado ou indeterminado, também existe em qualquer relação jurídica. No caso é determinado e recebe a denominação de devedor. Entre sujeito ativo e passivo, até mesmo para que possam ser sujeitos ativo e passivo, há um vínculo jurídico, terceiro elemento da obrigação, que se constitui por um fato jurídico, seu quarto elemento. O quinto é o objeto, o dever jurídico de fazer ou dar (deveres positivos) ou de não fazer (dever negativo). O sexto e último elemento da obrigação é a proteção jurisdicional, com a qual o Direito Positivo envolve a relação, fazendo eficaz o direito do sujeito ativo.

6.7.2 Evolução

Daremos apenas uma idéia filosófica da evolução das obrigações, não um retrospecto histórico ou reconstituição cronológica.

A obrigação nem sempre foi caracterizada pela patrimonialidade. Fase houve em que, sendo vínculo pessoal, a sua própria pessoa respondia pelo dever do sujeito passivo. Não se distinguia entre responsabilidade civil, somente indenizatória, e responsabilidade criminal, pessoal. Era generalizada a noção, mais tarde confinada ao Direito Criminal, de que a própria pessoa respondia pelos seus encargos. Quem não pagava uma dívida poderia ser aprisionado, escravizado ou sofrer dano físico, sanções típicas de Direito Penal.

Feita a distinção entre responsabilidade pessoal e responsabilidade patrimonial, a obrigação converteu­se num vínculo patrimonial, respondendo seu patrimônio pelo dano oriundo do não­cumprimento do dever.

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Uma constante na evolução do direito obrigacional é a passagem do tipo pessoal para o tipo patrimonial.

Evoluíram, também, as obrigações no sentido da autonomia.

Uma obrigação é autônoma, quando, como crédito ou débito, pode emancipar­se das pessoas dos sujeitos ativo e passivo.

Na sua origem, a obrigação era vinculada às pessoas do credor e do devedor.

Posteriormente, passou a se transmitir aos sucessores de ambos. Por último, o sujeito ativo passou a negociar o seu crédito, a cedê­lo a terceiros, e admitiu­se a substituição do sujeito passivo. A autonomia veio se acentuando, de maneira que, em nossos dias, há créditos que circulam livremente, como os títulos ao portador e os suscetíveis de transferência por endosso.

6.7.3 Fontes

Já vimos que é sempre necessário um fato para que haja direito subjetivo. A obrigação, modalidade de direito subjetivo, deve provir, portanto, de uma fonte.

Tradicionalmente são indicadas as seguintes fontes: o contrato, o quase­ contrato, o delito, o quase­delito e a lei.

O contrato é um acordo de vontades livres, a fonte, por excelência, das obrigações.

O delito é fonte de obrigações, porque cria para o agente o dever de indenizar a vítima, seus parentes ou dependentes, pelo valor do dano causado.

O quase­contrato, que se pode entender substituindo o vocábulo quase pela expressão como se fosse, é uma situação não contratual, à qual a lei atribui virtualidades contratuais. Assim, quando alguém faz despesas para evitar perecimento de bem alheio, sem autorização do proprietário (o que seria contrato), fica com o direito de reembolso, como se fora autorizado (como se fosse contrato).

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O quase­delito é ato que, não sendo em si mesmo delito, por falta de intenção, causa prejuízo a outrem (objetivamente igual ao dano de um delito), acarretando para o agente a obrigação de indenizar, tal como se fosse delituoso. Quem atropela e mata uma pessoa não teve a intenção de fazê­lo, não cometeu crime, mas nem por isso fica isento do dever de reparar o dano.

A lei é também fonte de obrigações, exatamente daquelas que se impõem, fora de qualquer das situações precedentes, por força de seus preceitos.

A doutrina mais moderna inclina­se a reduzir as fontes a uma só: a vontade, quer a individual, quer a geral (lei). A manifestação da vontade individual é o ato jurídico, unilateral ou bilateral. Unilateral quando manifestada apenas a vontade do devedor, a obrigação é, para ele, perfeita e acabada, antes que se individualize a figura do credor: promessas de recompensa e títulos ao portador. Bilateral, se há acordo de vontades: o contrato. A lei é fonte de obrigações em situações não contratuais equiparadas às contratuais (gestão de negócios) e em caso de ato ilícito, em sentido amplo.

6.8 SUCESSÃO

O vocábulo sucessão pode ser empregado em dois sentidos: amplo e restrito.

Em sentido amplo, ocorre sucessão sempre que, numa relação jurídica, dá­se substituição de pessoas. Por exemplo, se um bem é vendido, o comprador sucede ao vendedor na sua propriedade. Se um crédito é cedido, o cessionário sucede ao cedente na titularidade do crédito. Como se vê, expõe Lacerda de Almeida, continuidade da relação e mutação do sujeito são os elementos mais simples da noção de sucessão em sentido amplo. A estes elementos Evaristo de Moraes Filho acrescenta a existência de um vínculo de causalidade entre as duas situações, a anterior e a posterior.

Em sentido restrito, sucessão é a instituição pela qual o patrimônio de alguém que morre se transfere a quem lhe sobrevive. É exatamente nesta significação que a sucessão é uma instituição jurídica autônoma: sucessão mortis causa. Pode ela dar­se a título singular ou universal. Sucede a título

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singular quem recebe, de acordo com uma disposição de última vontade do extinto, bens individualizados. O sucessor recebe, então, a denominação de legatário. Sucede a título universal quem recebe a totalidade da herança ou uma fração aritmética desta (metade, 1/3 etc.), à qual virá a corresponder, na partilha, qualquer bem ou direito do acervo hereditário. Neste caso, o sucessor recebe a denominação de herdeiro.

6.8.1 Fundamento

A base filosófica do direito sucessório é discutível. Alguns autores consideram­no legítimo e outros, ilegítimo. Para os que defendem a legitimidade, a sucessão é corolário da liberdade jurídica, que não consiste, apenas, na faculdade de fazer ou deixar de fazer, mas também na de formar patrimônio e transmiti­lo por morte. Assim, a sucessão seria uma inevitável projeção do direito de propriedade. Adolf Merkel é categórico: os mesmos fundamentos que conferem ao indivíduo senhoria sobre seus objetos patrimoniais justificam a extensão deste senhorio para o caso de morte.

Os autores em contradição julgam o direito sucessório profundamente imoral, por ser verdadeira exacerbação do direito de propriedade.

Entre esses contrastes situa­se a contenda, que, afinal, desemboca no mesmo entrechoque ideológico relativo ao direito de propriedade.

Além disso, as modalidades históricas da sucessão estão condicionadas às formas de previdência de cada grupo. Onde a previdência familiar cabe à iniciativa particular, parece claro que a sucessão coroa um justo esforço de tranqüilidade patrimonial. Onde, porém, a sociedade vela por todos, pode tornar­se ociosa ou perder seu maior fundamento.

6.8.2 Evolução

Na história das instituições privadas, o direito sucessório deve ter surgido tardiamente. Ele presume, pelo menos, a existência de duas instituições outras: propriedade e família. Sem propriedade não pode haver sucessão, precisamente por ser, esta, forma de transferência do patrimônio. Também não se pode negar que a sucessão apareceu depois da plena

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estabilização da família, dado que destinada, originariamente, a preservar a continuidade do patrimônio doméstico.

As primeiras formas de sucessão individual sofreram influência religiosa. Visavam a aquinhoar a pessoa que sucedesse ao chefe da família, no culto doméstico. Daí o direito de primogenitura, que privilegiava o filho varão mais velho. Assim, por exemplo, na Índia, segundo o relato de Arturo Capdevila, onde os mortos não morrem e há que levar­lhes, pois, para lhes saciar a fome e a sede, água lustral, arroz, uvas e leite, missão sacerdotal que cabe ao primogênito, o primeiro ungido do amor paterno, que assim herda o poder e o culto, a casa, o prado, o chão etc.

Ulteriormente, a sucessão transformou­se em direito pessoal, assegurado por lei.

6.8.3 Modalidades

A sucessão pode ser: legítima e testamentária. Legítima, a que se realiza por imposição legal. Testamentária, a que resulta de um ato de manifestação de última vontade, o testamento, que apresenta as seguintes características:

­ é unilateral, porque perfeito e acabado com a só manifestação da vontade do testador;

­ é revogável, podendo, portanto, o testador desfazê­lo a qualquer momento, desde que o faça – assim exige o Direito brasileiro – também por outro testamento;

­ é mortis causa, dado que seus efeitos somente se produzem depois da morte de quem o pratica;

­ é gratuito, uma vez que a disposição testamentária representa uma liberalidade, sem reciprocidade em relação a quem beneficia;

­ é formal, porque deve assumir alguma das formas prescritas em lei, sob pena de nulidade;

­ é personalíssimo, não podendo, portanto, ser praticado senão pelo próprio testador, sem possibilidade de representação, seja legal, seja convencional.

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Historicamente consideradas essas modalidades de sucessão, é válido afirmar que a primeira antecedeu à segunda. Orosimbo Nonato lembra que, pelo direito sucessório, segundo o seu sentido original, o herdeiro continuava a personalidade do defunto, assim nas relações patrimoniais como no culto doméstico. E um estranho somente seria chamado ao zelo desse culto quando hão houvesse parentes consangüíneos paternos, razão pela qual seria impossível a coexistência da sucessão legal com a testamentária.

6.8.3.1 Sucessão legítima

A sucessão legítima é sucessão entre parentes, aos quais, pelo fato mesmo do parentesco, a lei atribui a condição de herdeiros entre si.

Dentre os herdeiros legítimos, alguns são necessários, isto é, só podem ser excluídos da sucessão por motivos relevantes. Outros, embora legítimos, dela podem ser excluídos. Compreendemos claramente a distinção entre herdeiros legítimos e herdeiros legítimos necessários, tomando para exemplo o nosso Direito Civil. De acordo com este, a sucessão legítima se defere na seguinte linha: em primeiro lugar, os descendentes (filhos, netos, etc.), em segundo lugar, os ascendentes (pais, avós, etc.), em terceiro lugar, o cônjuge sobrevivente e, em quarto lugar, os colaterais (irmãos, etc.). Dessas quatro classes de herdeiros os das duas primeiras não podem ser despojados da herança pela vontade do sucedido, salvo por motivo grave capitulado em lei, cuja prova, em sentido positivo ou negativo, respectivamente, cabe aos beneficiários da deserdação ou ao herdeiro prejudicado, ambos interessados, como escreve Orlando Gomes, aquele porque se beneficiará com a exclusão, substituindo o deserdado, este em mostrar a falsidade das increpações, não só por interesse econômico mas também moral. Os citados nas duas últimas, embora herdeiros legítimos, podem ser privados da herança, desde que o sucedido deixe testamento que não os contemple.

6.8.3.2 Sucessão testamentária

A lei faculta ao indivíduo dispor, conforme a sua vontade, sobre seus bens para depois de sua morte. A sucessão que resulta de ato de última vontade é a testamentária que, no entender de Carlos Maximiliano (1874­

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1960) não é mais do que uma conseqüência lógica do direito de propriedade, uma vez que o legado não é senão uma dádiva diferida.

Havendo herdeiros necessários, o testador não tem a disponibilidade total de seus bens. Sua liberdade vai até onde não os prejudicar. No Brasil, quem tem herdeiros necessários pode apenas dispor da metade de seus bens; a outra metade constitui a legítima, isto é, a parcela que caberá aos herdeiros necessários, e que é, por isso, indisponível.

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7 Enciclopédia Jurídica

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7.1 CLASSIFICAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS

A introdução tem, também, por objeto, apresentar, resumidamente, e com ênfase no seu aspecto teórico, as várias disciplinas jurídicas particulares. Sob este aspecto é uma enciclopédia jurídica.

Quando estudamos a sistemática jurídica, um dos capítulos da ciência do direito, dissemos que seu objetivo era organizar o Direito Positivo, segundo uma visão coordenada e coerente. E acrescentamos que, para fazê­lo, tradicionalmente, partia­se da distinção entre as normas que visam ao interesse social e as que atendem ao interesse individual. Daí serem todas grupadas em dois conjuntos: Direito Público e Direito Privado.

Esta é uma classificação antiga, vinda do Direito romano, para o qual as normas se diferenciavam, consoante a natureza do interesse protegido. Se a norma se destinava à proteção de um interesse social, era de direito público; se à tutela de um interesse particular, era de Direito Privado.

Ainda hoje, embora com nuances doutrinárias, este é o critério comum. De fato, o direito é, sob certo aspecto, uma fórmula de composição do interesse individual com o social, muitas vezes conflitantes. Pretendendo a satisfação harmoniosa de ambos, ora aquinhoa mais um, ora mais outro. A norma será, portanto, de direito público ou de direito privado, conforme o interesse que nela prepondere. Note­se que não se diz conforme o exclusivo interesse, mas conforme o interesse preponderante, porque não há interesse individual que não tenha reflexo social, nem social que não tenha reflexo individual.

Essa divisão tem recebido crítica. Há juristas que se recusam a aceitá­la. Todavia, talvez mesmo pela sua conveniência prática, até hoje subsiste. Embora contestada no seu fundamento doutrinário, prevalece para a organização do direito positivo e dos cursos de Direito.

Merece, porém, ser ressalvado que não existe entre o direito público e o privado fronteira permanente. Não podemos, doutrinariamente, dizer que matérias pertencem a um e a outro. O fundamento lógico da divisão está em que, visando o Direito a harmonia do interesse social com o individual, há regras que se consagram à satisfação de cada um deles. Mas, quando se trata de dizer qual matéria pertence ao direito público e qual ao privado, caímos no plano do Direito Positivo. Mesmo porque, como assevera Luiz Fernando

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Coelho, saber numa determinada relação jurídica se está em jogo o interesse coletivo ou se é o individual que deve ser tutelado, depende muito mais do intérprete, do ponto de vista pessoal, do que do conteúdo das normas e relações jurídicas.

Regras que, num ordenamento jurídico, são de direito privado, porque esse ordenamento entende que pertinem a um interesse meramente individual, podem ser, noutro, de direito público, porque este entende sejam relativas a um interesse social.

Podemos dar dois exemplos que confirmam o comentário. Classificamos o direito comercial dentro do direito privado, porque, entre nós, como na maior parte dos países ocidentais, o comércio é uma atividade reservada à iniciativa do indivíduo. Mas nos países onde a economia é estatizada, ele é direito público. As relações entre empregado e empregador, durante séculos, foram regidas pelo direito privado, mais particularmente, pelas disposições relativas à locação de serviços. Quando aquelas relações se tornaram críticas, a ponto de gerar a chamada questão social, o Estado sentiu a necessidade de subtraí­las ao arbítrio contratual e impor­lhes um padrão legal. Assim surgiu o Direito do Trabalho que, pela sua eminente função social foi, sem dúvida, incluído no direito público.

7.1.1 Esquema geral

Os compêndios de introdução à ciência do Direito, na sua generalidade, ao tratarem da enciclopédia jurídica, citam, além das disciplinas consideradas clássicas, que formam o miolo do currículo mínimo do curso, numerosas outras, surgidas do desmembramento de algumas daquelas ou mesmo de realidades sociais emergentes. É assim que se referem, por exemplo, ao direito agrário, ao direito de minas, ao diplomático, ao cosmonáutico, ao financeiro, ao penal militar, ao disciplinar, ao penal internacional, ao nuclear, ao econômico etc.

É fato que o elenco das disciplinas jurídicas particulares é hoje muito rico, uma vez que o ordenamento jurídico se estende na mesma medida em que se desdobram e se diversificam as relações humanas.

Respeitando essa ponderação, não foi porém a orientação que deliberamos seguir. Limitamo­nos a mencionar as disciplinas tradicionais, as

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que nenhum currículo de Direito pode suprimir e que constituem, pela sua maturidade e a sua latitude, o cerne do Direito Positivo, permitindo, mesmo, a extrapolação de muitos dos seus conceitos para disciplinas especializadas mais recentes. Acreditamos que ampliar o elenco das disciplinas particulares leva, inevitavelmente, à extensão demasiada dessa parte da introdução, a menos que de cada uma delas se limite o autor a uma definição lacônica e um tanto dogmática, informação didaticamente pouco lucrativa. Ao contrário, reduzindo o conjunto, faz­se possível dar de cada disciplina uma visão relativamente clara do seu conteúdo e dos problemas mais importantes que em cada uma delas se localizam.

Em conseqüência, em nosso esquema, dentro dessa limitação, partimos de que o direito público é o direito do Estado. Sendo o Estado uma entidade de duas faces, uma nacional, voltada para o plano interno, outra internacional, voltada para o plano externo, dá­se a divisão do direito público em interno e externo.

O externo, diz respeito às relações dos Estados entre si, e possui um único ramo: o Direito Internacional Público.

O interno subdivide­se em: constitucional, administrativo, penal, processual e do trabalho.

O Direito Constitucional dispõe sobre a organização política do Estado. O administrativo preside ao exercício da administração pública. O penal define os atos delituosos e impõe as penas que lhes correspondem. O processual regula o exercício da atividade jurisdicional do Estado. O do trabalho governa as relações entre empregado e empregador.

O Direito Privado subdivide­se em: civil, comercial e internacional privado.

O civil regula a condição da pessoa, enquanto igual para todos. O comercial dispõe sobre a atividade mercantil. O internacional privado ministra regras para a solução dos conflitos das leis no espaço.

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7.2 PROBLEMAS DE CLASSIFICAÇÃO

O primeiro problema que a divisão do direito em público e privado suscita é o da sua própria validade.

Uma parte da doutrina inclina­se no sentido de contestá­la. Seu argumento principal é que, apesar dos vários critérios propostos para sustentá­ la, a divisão assenta, fundamentalmente, na consideração de que o indivíduo, em sociedade, assume um duplo papel, é um ser social e um ser individual, é unidade de um todo, a sociedade, e indivíduo em si mesmo, com interesses próprios.

Ora, tal fundamento enseja a contestação de que essas duas ordenas de interesses parecem inseparáveis. Entre os que a fazem está Kelsen. Em relação aos interesses particulares, afirma que a norma jurídica os protege, porque os considera socialmente valiosos. A norma que obriga o devedor a cumprir seu dever para com o credor, amparando o interesse deste, não o faz por este interesse em si, mas pela sua importância social. Por outro lado, normas de nítida significação pública, como as de Direito Penal, refletem­se na proteção de interesses individuais personalíssimos (vida, propriedade, etc.).

A essa observação Kelsen adita outra, intimamente ligada à sua idéia de que o Estado é a ordem jurídica personificada. Havendo identidade entre Estado e direito, sendo ambos a mesma realidade, vista de focos distintos, todo direito é essencialmente público, porque nenhum direito singular tira sua validade senão da norma jurídica, e esta é sempre estatal.

Se se pretende, acaso, ser pública a norma que confere a um certo sujeito superioridade sobre outro, enquanto privada a coordenadora de sujeitos na mesma situação, ainda aí, assegura Kelsen, examinando o fato mais de perto, põe­se manifesto que se trata de simples diferença entre situações de fato produtoras de direito. Uma ordem administrativa, por exemplo, que é típica relação de direito público, significa apenas uma produção unilateral de normas. Um negócio jurídico, típico de direito privado, leva apenas à formulação bilateral de normas.

Em essência, a distinção entre direito público e privado não pode subsistir porque nenhuma realidade jurídica peculiar lhe corresponde. Se o indivíduo desobedece à conduta devida, sujeita­se à sanção, que, quando

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imposta pela própria pessoa supra­ordenada, diz­se que a norma da qual resulta o dever é de direito público; quando exercida por uma terceira, que está em plano acima de duas em conflito, que é de direito privado.

Em suma, o que chamamos direito privado é mera forma jurídica especial de realização do direito, ligada a uma certa estrutura da produção econômica e da distribuição dos produtos, correspondentes à ordem capitalista, perfeitamente prescindível em uma ordem econômica socialista.

G. P. Chirone, Luigi Abello, Paul Roubier (1886­1964) e outros admitem a divisão do direito positivo mediante o critério do interesse predominante, não porém bipartida, que reputam insuficiente.

Em relação a alguns preceitos jurídicos, é clara a preponderância do interesse social sobre o individual, assim como, em relação a outros, é clara a preponderância inversa. A norma que divide o poder político (legislativo, judiciário e executivo) atende ostensivamente a um interesse social. A que faculta ao proprietário a cobrança de aluguéis resguarda interesse particular, tanto assim que a cobrança é simples faculdade legal.

Mas existem normas cuja natureza não se pode determinar com rigor, porque combinados nelas, na mesma proporção, estão ambos os interesses. Impossível é localizá­las com propriedade no direito público ou privado.

Por isso, seria necessária uma terceira categoria que as abrangesse, substituindo a clássica divisão bipartida por uma tripartida: direito público, de ordem pública (direito misto) e privado.

As normas de ordem pública protegem interesses particulares, mas não os atendem por eles mesmos, sim pela necessidade social de sua proteção. Assim, as de Direito do Trabalho, que visam à proteção do trabalhador, assegurando­lhe, como indivíduo, uma tarefa máxima de trabalho, uma remuneração mínima, a vantagem de férias periódicas, etc., mas, ao conceder­ lhe esses proveitos, são motivadas pelo imperativo social de limitar a competição entre o trabalho e o capital. Tais normas, além disso, o que caracterizaria a sua face pública, impõem­se autoritariamente às pessoas às quais se destinam, cujas relações, portanto, passam de um plano de coordenação para um de subordinação.

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Luis N. Valiente Noailles ensina que, nesse campo intermediário da ordem pública, como acontece às águas das marés, os direitos subjetivos avançam e retrocedem, sintonizando com as idiossincrasias dos povos, tempos e circunstâncias de lugar.

Parece­nos que o único e legítimo fundamento da divisão das normas jurídicas em públicas e privadas resulta do fato de serem elas, sob seu mais importante aspecto, normas que presidem à gestão de interesses humanos. Essa gestão ora reclama co­gestão, na medida em que os interesses geridos não podem sê­lo ao saber de motivações meramente individuais, ora se realiza, satisfatoriamente e na medida em que tal fato afina com as estruturas sociais, com a simples gestão individual. Por outras palavras, há interesses que reclamam co­gestão e outros que podem ser geridos pelo indivíduo diretamente empenhado na sua realização, sem repercussão social nociva. Quando a norma põe um interesse humano em regime de co­gestão, ela é privada. Como se vê, trata­se de uma afirmativa que, a ser verdadeira, traduziria uma verdade empírica, cujo fundamento estaria no fato de ser observada ao longo de toda a história da humanidade. E é exatamente por não se tratar de uma verdade lógica, mas de uma constatação histórica que, embora a divisão em si mesma tenha esse irrecusável fundamento, a despeito disso o conteúdo do direito público e o do direito privado variam no tempo, mas jamais será possível admitir a co­gestão de todos os interesses humanos, ou a gestão de todos pelo simples arbítrio individual. Daí resulta que, válida a divisão pela impossibilidade de se admitir tese oposta ao seu fundamento, essa validade não seria desmentida pelo fato de se deslocar a linha que separa o direito público do privado, porque essa linha, tal como a própria divisão, repousa num fato cultural, que varia segundo determinantes históricas.

Passemos, agora, a problemas particulares da classificação.

Alguns serão citados para mera informação doutrinária, pois já sem significação.

7.2.1 Direito penal

É o que ocorre, por exemplo, com a posição do Direito Penal.

Pelo esquema dado, é um ramo do direito público, e acreditamos nenhuma classificação atual nele não o inclua. Outrora, sua posição foi

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polêmica. Autores o inseriam no direito privado, por guardar interesses particulares.

Evidentemente essa maneira de entender é errônea. Há crimes que atentam contra a comunidade e suas instituições. Por outro lado, a manutenção da ordem é uma função eminentemente pública, e o Direito Penal é um dos seus fundamentos.

Outros opinavam que o Direito Penal não deveria ser situado, nem no direito público nem no privado. Seria paralelo a todos os demais ramos do Direito. Haveria um Direito Penal constitucional, para as infrações do direito constitucional, um Direito Penal administrativo, para as infrações do Direito Administrativo, um Direito Penal Processual, para as infrações do Direito Processual etc. Essa tese acenta na indistinção entre sanção e pena. As sanções constitucionais, administrativas, processuais, etc. não são penas.

7.2.2 Direito processual

Em relação ao Direito Processual, houve, igualmente, quem o colocasse no direito privado e quem pretendesse ser um ramo do Direito paralelo aos restantes.

Os que o incluíam no direito privado viam no processo regras formuladas para o exercício, pelo indivíduo, da defesa dos seus direitos. Sendo a ação uma faculdade do indivíduo e o processo a maneira de exercê­la, seu papel seria o de conceder eficácia aos direitos subjetivos privados. Logo, a norma processual seria de direito privado. Hoje a noção de processo é diversa. Entendemos que suas regras disciplinam uma função estatal, são públicas, jamais privadas.

Considerado o Direito Processual um ramo paralelo a todos os demais ramos do direito, haveria um processo constitucional, um penal, um administrativo, um civil e comercial, etc. Esse entendimento é desatualizado, porque importa confusão entre processo em sentido amplo e processo em sentido restrito. O Direito Processual, como ramo do direito público, regula o processo no seu sentido restrito, aquele que tutela o exercício da atividade jurisdicional do Estado.

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7.2.3 Direito do trabalho

Problemas mais sérios, ainda hoje questionáveis, são referidos a seguir.

Assim o da posição do Direito do Trabalho. A propósito, há três posições distintas: alguns o colocam no direito privado, alguns no direito público e outros numa terceira categoria, a das regras de ordem pública.

Os que o situam no direito privado são hoje minoria. Apegam­se à consideração de que o direito do trabalho é protecionista de interesses do empregado. Até mesmo a relação entre empregado e empregador é contratual, e os contratos são matéria de direito privado.

A par disso invocam razão de ordem histórica. Outrora, as relações entre empregado e empregador eram regidas pelo Código Civil e pelo Código Comercial, nos capítulos referentes à locação de serviços. Tais capítulos teriam evoluído, a ponto de criar uma legislação autônoma, do trabalho. Ora, se a legislação do trabalho evoluiu desses campos do direito privado, ela deve fidelidade às suas origens, continuando uma disciplina privada.

A verdade histórica, porém, é outra. Não houve esta suposta evolução, mas o arrendamento das regras de Direito Civil e do comercial da área das relações entre empregado e empregador. Foram substituídas por outras, imperativas e motivadas por uma razão política veemente, públicas, portanto. Como diz Ripert, o direito social criou­se de um só golpe pelo poder da autoridade pública.

A outros parece que a legislação do trabalho não pode ser incluída, a rigor, nem no direito público nem no privado, porque suas normas custodiam interesses individuais, por um motivo social. Seriam, assim, de ordem pública.

7.2.4 Direito internacional privado

Quanto à posição do direito internacional privado, identificamos três orientações diferentes. Autores há que dividem o Direito em internacional e nacional, o nacional em público e privado, e o internacional também, em público e privado.

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Outros dividem o Direito em público e privado, colocam o internacional público no direito público externo, e o internacional privado no público interno.

Os que assim fazem ponderam que, se um Estado admite a aplicação de lei estrangeira em seu território, está restringindo a própria soberania, o que só pode resultar de uma regra de Direito Público. Consideram, também, que uma das fontes mais importantes do direito internacional privado são as convenções internacionais. Tal fato justificaria a sua inclusão no Direito público, uma vez que nenhuma atividade pode ser mais pública do que a que o Estado desenvolve quando assume compromissos no plano internacional.

Inserimos o Direito Internacional Privado no Direito Privado, tendo em conta certas circunstâncias.

A mais relevante é que os conflitos dirimidos pelas suas regras são sempre conflitos de normas de Direito Privado, tanto que certos autores não o denominam direito internacional privado, o que dá ênfase ao vocábulo internacional, mas Direito Privado Internacional, o que dá ênfase à sua natureza privada. Isso nos parece bastante para localizá­lo no Direito Privado.

Além disso, é sempre maior o número de estados que incluem no seu Direito Positivo regras para a solução dos conflitos das leis no espaço. E as inserem em códigos de direito privado, como Brasil e Portugal, cuja legislação é muito recente.

7.2.5 Unificação do direito privado

Há, finalmente, um problema, pertinente apenas ao Direito Privado. Dividimo­lo em três ramos: civil, comercial e internacional privado. Como prevalece na doutrina a localização do último no Direito Internacional em geral ou no Direito público externo, a divisão habitual do Direito Privado é dicotômica: civil e comercial. E há juristas que patrocinam a sua unificação.

A razão a que se atêm, principalmente, é a de que há vários setores comuns ao Direito Civil e ao Comercial, situações regidas tanto por um como por outro. Aliás, onde foi vitoriosa a tendência, a unificação ocorreu no campo do Direito obrigacional, como na Suíça, que possui um Código Federal de Obrigações.

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O movimento pró­unificação tomou novo impulso em conseqüência da comercialização da vida. Cada vez mais o Direito Comercial deixa de ser mero estatuto de classe. Quase todos estamos em contato com ele. É mercantil a legislação sobre cheques, operações bancárias, duplicatas, descontos, promissórias, etc.

De mais a mais, essa universalização está se acentuando no sentido de encampar as antigas atividades liberais. Progressivamente as profissões se despem do seu cunho liberal e se comercializam. É o que vemos, por exemplo, com a medicina: os médicos agrupam­se, fundam estabelecimentos, operando em regime de empresa. O mesmo na engenharia: empresas construtoras, incorporadoras, etc.

Numerosos juristas, porém, impugnam a tese, considerando, especialmente, a estabilidade dos interesses protegidos pelo Direito Civil. Daí a evolução muito paulatina das instituições civis, em contraste com a instabilidade dos interesses ligados ao comércio, da qual decorre a evolução altamente acelerada da legislação mercantil.

Caio Mário da Silva Pereira situa o problema com extrema clareza e critério, quando observa que a questão deve ser posta em termos de maior precisão técnica, da qual resulta o reconhecimento da necessidade de unificação dos princípios gerais de todo o direito privado. Mas, alcançada essa unidade, o direito comercial deverá manter a sua autonomia, na matéria que lhe é peculiar.

7.3 CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO

Suposta lídima a divisão das normas jurídicas em públicas e privadas, não podemos aplicá­la pela simples consideração da matéria a que pertencem no quadro do Direito Positivo.

No esquema proposto, incluem­se no direito público interno: o constitucional, o penal, o administrativo, o processual e o trabalhista, e no Direito privado: o civil, o comercial e o internacional privado. No Direito Positivo, porém, uma regra contida na Constituição pode ser concernente a um

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interesse individual e, portanto, de Direito Privado. Outra, contida no Código Civil, pode pretender, direta e imediatamente, o interesse social e ser, por conseguinte, de Direito Público. A posição da norma no texto de Direito Positivo não é suficiente para lhe caracterizar a natureza.

Por isso, ao examinarmos uma norma, temos que considerá­la em si mesma, para verificar se é de Direito Público ou privado, donde ser necessário fixar critério que permita colocá­la num ou noutro.

7.3.1 Direito romano

Citaremos os critérios mais conhecidos.

Na palavra de Ulpiano, as normas relativas ao interesse e à utilidade do Estado eram de Direito Público, e as relativas ao interesse privado ou singular, de Direito Privado. Formulava­se, assim, o critério do interesse, que, embora com matizes diferentes, ainda sobrevive.

Pode­se­lhe opor, como já notamos, que, para o Direito, não há interesse individual sem uma face social, nem social sem reflexo individual.

7.3.2 Savigny

Em substituição ao critério tradicional do Direito romano, outros foram propostos, devendo ser logo mencionado o de Savigny, aliás um dos maiores romanistas de todos os tempos.

Escrevia Savigny que, a totalidade do Direito pode ser partilhada em duas esferas: direito do Estado e direito privado. O primeiro ocupa­se do Estado, ou seja, da aparição orgânica do povo; o segundo dedica­se à totalidade das relações jurídicas que rodeiam o homem individual, para que, dentro delas, realize a sua vida interior e assuma figura determinada.

No Direito público aparece a totalidade como fim e o indivíduo como subordinado, enquanto que no Direito privado cada homem individual é fim em si e a relação jurídica é simples meio para a sua existência.

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Freqüentes que são trânsitos e parentescos entre aqueles campos do Direito, mister se faria, às vezes, ponderar a finalidade da norma segundo o seu sentido prevalecendo, de modo a caracterizá­la com precisão.

7.3.3 Thön

August Thön 1839­1912) fundamenta a divisão referindo as normas às ações que lhes correspondem. Se protegidas por ações públicas a infração é reparada por iniciativa do Estado e a norma é pública. Se por ações privadas, a iniciativa cabe ao titular do direito, e a norma é privada.

A posição de Thön, além de não abranger a totalidade dos direitos, parece inverter a ordem de consideração da matéria. É inadequado dizer que uma norma seja pública porque amparada por ação pública. Correto é dizer que amparada por ação pública por ser de Direito público. É, por igual, incorreto dizer que uma norma seja privada porque a ação que a resguarda é privada. O correto é dizer que é resguardada por uma ação privada por ser de Direito privado.

7.3.4 Jellinek

A teoria de Jellinek baseia­se no exame da relação jurídica.

As pessoas integradas numa relação de Direito podem estar em posição de coordenação ou de subordinação. Na de coordenação, a norma limita­se a compor seus interesses, a acomodá­las, sem conferir a qualquer delas supremacia sobre a outra. É o caso dos contratos. A posição recíproca das partes contratantes é igual, estão no mesmo plano, ambos coordenam seus interesses pelas regras de Direito aplicáveis. Essa situação existe mesmo se o contrato é firmado entre uma pessoa de Direito privado e outra de Direito público. Se um particular aluga um imóvel ao Estado a pessoa de Direito público contratante está no mesmo nível dele. As relações que se estabelecem têm caráter coordenador, as partes ajustam seus interesses num plano de inteira autonomia.

Em certas relações jurídicas, o Estado tem condições que se estabelecem têm caráter coordenador, as relações do Estado com os seus

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funcionários, que são de natureza estatutária. O Estado dita, unilateralmente, o estatuto da sua situação, desempenhando papel subordinador.

As relações em que existe a subordinação do indivíduo ao Estado são fundadas em normas de Direito público e em que as partes estão em situação de coordenação recíproca são de Direito privado.

7.3.5 Korkounov

Korkounov ensinava que, em regra, a norma de Direito dispõe sobre a maneira de utilização das coisas, empregada esta palavra em sentido amplo. Estas podem ser fruídas de duas maneiras. Alguns se prestam a cômoda divisão, podemos reparti­los dando a cada indivíduo um quinhão. Outros têm de ser desfrutados em conjunto. As normas jurídicas assumem, em relação à maneira de as pessoas se servirem de bens, dupla posição. Algumas os dividem e distribuem. Essas são distributivas. Quanto a outras, acomodam os indivíduos, para que possam fruí­los em conjunto: são adaptativas. As primeiras são pertinentes ao Direito privado, as segundas ao Direito público.

7.3.6 Cogliolo

Teve larga aceitação, durante algum tempo, a teoria de Pietro Cogliolo, que revigorou com muita ênfase o prestígio da mens legis, intenção da lei. Doutrinava que a classificação das normas jurídicas deveria ser feita segundo o exame de cada norma em si, na sua tipicidade, a fim de ser obtido o seu sentido singular. A mens legis nos revelaria, em cada caso, a utilidade direta do preceito. Fosse esta de índole social, a norma seria de Direito Público; se a sua utilidade direta fosse de sentido individual, seria a norma de Direito Privado. Este critério parece apenas nuança de outro mais geral, notória que é sua afinidade com o de Savigny e o do Direito romano, com a só ressalva, bastante expressiva, de que a natureza pública ou privada da regra não emerge do sistema parcial do direito que integra, mas da análise cuidadosa da intenção de cada uma.

7.3.7 Adolfo Ravà

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Adolfo Ravà admite que as normas jurídicas desempenham função organizadora e distributiva. Por um lado, o direito é uma orgânica da vida social, coordena poderes políticos, a administração, os serviços públicos e a vida social, quanto às posições que as pessoas são obrigadas a assumir. Esta é a sua face organizadora. E também realiza uma função distributiva, regulando as relações recíprocas dos indivíduos, resultantes de sua iniciativa ou posição. As normas que exercem função organizadora são de direito público, e as que exercem função distributiva, de direito privado.

7.3.8 Lehmann

H. Lehmann, cuja doutrina citaremos muito abreviadamente, entende que uma norma jurídica somente pode ser caracterizada pelo exame da natureza do bem que protege. Os bens protegidos podem ser pessoais e exteriores. Sobre um bem pessoal não pode haver competição. Em relação a um bem exterior, podem suscitar­se conflitos de pretensões. A vida, a honra, a liberdade são bens pessoais. Sobre eles não há conflito de interesses, porque ninguém pode se julgar com direito à vida, à honra e à liberdade de outra pessoa. Esses bens não podem ser objeto de reivindicações contraditórias. Já a propriedade, um bem exterior, pode ser objeto de litígio. Por exemplo, alguém se dizer dono de um objeto e outrem reivindicá­lo para si. Valendo­se desta distinção, sem dúvida original, separa Lehmann o direito público do privado. As normas que protegem bens pessoais pertencem àquele e as que protegem bens exteriores, a este.

7.3.9 Pacchioni

Critério que até certo ponto impregna a doutrina moderna sobre o tema é o de Pacchioni, para quem a divisão do direito em público e privado deve reportar­se à distinção entre jus cogens e jus dispositivum.

A regra imperativa é de direito público e a dispositiva, de direito privado, qualquer que seja o texto jurídico positivo em que estejam.

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7.4 DIREITO CONSTITUCIONAL

Um conceito extremamente sucinto nos dá desse ramo do direito apenas o seu elemento essencial: o que expõe a organização política de um Estado. O Estado é povo, ocupando um território e organizado politicamente. O estudo da organização política é o tema do Direito Constitucional. Assim Pontes de Miranda o define, laconicamente, como a parte do direito público que fixa os fundamentos estruturais do Estado.

Acontece, todavia, que o Direito Constitucional, sendo Direito Positivo, tem sempre por objeto uma Constituição. Por isso, a sua substância varia na medida da extensão do texto constitucional. Daí dizer­se que ele pode ser entendido em sentido restrito ou amplo. Em restrito, estuda somente a organização política de cada Estado. Como as Constituições, porém, costumam conter assuntos outros não pertinentes àquela organização, o Direito Constitucional, em sentido amplo, expõe todas as matérias que formam a Constituição de um Estado.

Há, portanto, matéria constitucional, aquela que, por natureza jurídica, é constitucional, e matéria que, não sendo constitucional por natureza, passa a sê­lo, desde que incluída na Constituição. Exemplificando, a divisão dos poderes é matéria constitucional por natureza. As disposições referentes à propriedade ou à família são, materialmente, de Direito Civil, mas passam a constitucionais, se compreendidas na Constituição. Como diz Djacir Menezes (1907), aliás, a extraordinária importância social do Direito Constitucional reside no fato de penetrarem no seu domínio normas egressas de outros ramos do Direito.

É de se assinalar, porém, que a própria essência da matéria constitucional, em sentido restrito, pelas pressões históricas que influem sobre sua definição, tem, atualmente, significação mais lata do que a indicada. A partir do chamado Estado de Direito, de cujos fundamentos doutrinários, afirma Pinto Ferreira, surgiu, na prática e na história, o Direito Constitucional, o perfil das relações entre o Estado e seu poder, e os indivíduos e suas liberdades, é também matéria constitucional.

Afirma­se, em decorrência, que nenhuma verdadeira Constituição pode deixar de conter preceitos que outorguem garantias eficazes aos direitos individuais, que devem enumerar, contra o arbítrio do Poder Público. Por isso

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Mirkine Guetzevitch (1892) diz que o Direito Constitucional é uma técnica da liberdade.

Faz parte, igualmente, da tradição constitucionalista do Ocidente, desde Montesquieu (1689­1755), a idéia de que não há real contenção do arbítrio se o poder não é partilhado por órgãos distintos: Legislativo, Executivo e Judiciário. Em conseqüência, a separação dos poderes políticos é, também, à luz desse entendimento, matéria constitucional, a tal ponto que se assevera não ser constitucionalizado o Estado que não o adote.

De tudo resulta que o Direito Constitucional, em sentido restrito ou material, é ramo do Direito que preside à organização política dos Estados, distingue e coordena os poderes políticos e prescreve normas sobre a compatibilidade do poder do Estado com a liberdade dos indivíduos.

Os preceitos que, não sendo constitucionais por natureza, incorporam­se ao texto da Constituição, compõem o Direito Constitucional em sentido formal.

De todos os ramos do Direito é o constitucional o que apresenta historicidade mais frisante. Toda regra de Direito é histórica: varia no tempo e no espaço, sujeita às transformações sociais. No entanto, esse aspecto histórico parece mitigado em alguns campos do Direito, como o civil, no qual as transformações se fazem lentamente. Sendo o nosso tempo essencialmente polêmico, é profunda a instabilidade do Direito Constitucional. Bastaria citar o exemplo brasileiro. Temos uma legislação comercial cuja parte nuclear remonta a 1850 e um Código Civil anterior a 1920. No entanto, depois da República, tivemos a Constituição de 1891, a Reforma Constitucional de 1926, a Constituição de 1934, a de 1937, a de 1946, a de 1967, a de 1969 e agora a de 1988, já em véspera de revisão. A instabilidade do Direito Constitucional é reflexo imediato da sua estreita ligação com todos os movimentos da história, e da sua vulnerabilidade, maior do que a de qualquer outro ramo do direito, às pressões ideológicas.

Escapam a essa instabilidade as Constituições que são amparadas, ao mesmo tempo, pela solidez dos sistemas econômicos nacionais e pela sua própria flexibilidade, esta possível mesmo no caso de Constituições escritas. Exemplar, neste sentido, é a situação dos Estados Unidos. Sob o primeiro aspecto, a assertiva dispensa comentário. Sob o segundo, pode­se afirmar, como fazem Leonard W. Levy e John P. Roche, que a Constituição americana,

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pelo tom geral das suas disposições, nos seus pontos essenciais é verdadeiramente uma Constituição não­escrita, o que permite a sua paulatina alteração para adaptar­se às novas conjunturas nacionais, graças, especialmente, à autoridade e ao realismo com que a interpreta a Suprema Corte.

7.4.1 Relações

O Direito Constitucional mantém, com todos os ramos do Direito Positivo, uma relação genérica, que é a do mais para os menos graduados, do envolvente para os envolvidos. A Constituição traça o contorno periférico da ordem legal. Dentro dele contêm­se os demais ramos: comercial, civil, penal, processual, etc. As regras dos outros ramos do Direito podem dispor até onde não altercam com a regra constitucional. Verificando o conflito, são inaplicados, por vício de inconstitucionalidade.

Relações específicas existem, porém, que devem ser precisadas.

7.4.1.1 Direito administrativo

São estreitíssimas, por exemplo, as relações com o direito administrativo, a ponto de haver problemas não em estabelecê­las, mas em distinguir o que é um e o que é outro. Há instituições que, exercendo funções políticas e administrativas, subordinam­se às regras desses dois ramos do direito.

7.4.1.2 Direito processual

Íntima ligação há entre o Direito Constitucional e o processual. As regras de processo dispõem sobre o exercício da função jurisdicional. São pertinentes, assim, diretamente a uma atividade estatal, e esta, como qualquer outra, tem seus princípios fundamentais no texto da Constituição.

7.4.1.3 Direito penal

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Ligado de maneira particular ao Direito Constitucional está o penal. Nos países ocidentais, a Constituição é uma lei de garantia dos direitos individuais contra a prepotência e o abuso do poder. Ora, o Direito Penal é limitativo das liberdades. Daí o cuidado de perfeita compatibilidade entre a regra penal e a constitucional.

7.4.1.4 Direito do trabalho

Ainda é preciso observar que, atualmente, também o Direito do Trabalho está estreitamente relacionado ao constitucional. A importância daquele foi crescendo tanto a ponto de suas regras terem invadido o campo do Direito Constitucional positivo.

7.4.1.5 Ciências não jurídicas

O Direito Constitucional mantém, também, intercâmbio com ciências não jurídicas, entre as quais a História, a Sociologia e a Geografia.

Cumpre indicar com cuidado a natureza dessas relações.

Uma ciência jurídica, a rigor, nunca pode ter relações com ciências explicativas e naturais. Se o Direito Constitucional tem por objeto a exposição sistemática da Constituição, ele só contacta diretamente com esse objeto. No entanto, a Constituição é uma lei em que se refletem as condições efetivas de um povo, e a sua excelência se afere pela medida em que ela se adapta à realidade social. Fatores geográficos, sociológicos e históricos são fontes materiais do Direito Constitucional. A interpretação construtiva de uma Constituição só pode ser feita tendo­se em conta aqueles elementos reais subjacentes a ela. Há Constituições lacônicas e remotas, como é a americana, sendo ainda hoje escasso o número de emendas que lhe foram incorporadas. No longo período de sua vida a América sofreu a extraordinária transformação que todos presenciamos, mas sua Constituição manteve­se intata, porque a Suprema Corte a interpreta do ponto de vista político num interpretação política e, ao fazê­lo, atém­se aos elementos reais da sociedade americana. Por isso, as relações do Direito Constitucional com as ciências não jurídicas existem enquanto estas, dando informações sobre os elementos infra­ estruturais de ordem constitucional, autorizam interpretação inteligente e uma

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vivência real das Constituições, que têm, antes de mais nada, destinação histórica, servindo precipuamente como roteiros para o futuro.

7.4.2 Constituição

Qualquer disciplina jurídica pode ser considerada do ponto de vista teórico e do positivo. Assim, também, o Direito Constitucional. A Constituição é direito constitucional positivo. Neste sentido não existe a Constituição existem Constituições, a brasileira, a argentina, a francesa; existe Direito Constitucional brasileiro, argentino, francês.

7.4.2.1 Sentido sociológico e jurídico

O vocábulo Constituição, desde memorável preleção de Ferdinand Lassale (1825­1864), pode ser usado em dois sentidos: sociológico e jurídico. Constituição, em sentido sociológico, são os elementos reais que estruturam o poder numa sociedade; em sentido jurídico, é o conjunto de normas que se apresentam como fórmula jurídica do poder. Em sentido sociológico, amplo, todo povo tem Constituição. Onde quer que haja uma estrutura de poder, pouco importa qual seja, existe Constituição. Neste sentido, o vocábulo constituição tem o mesmo significado de quando o empregamos em relação a qualquer corpo. Por exemplo: um animal tem uma constituição, um mineral também.

Muitas vezes a realidade é uma e sua aparência outra. A Constituição, juridicamente falando, pode não corresponder à realidade social. Pode dizer que todo poder emana do povo, e se divide em Legislativo, Executivo e Judiciário, e existirem poderes reais acima ou ao lado daqueles. O Estado pode ser dominado pelas classes industriais e comerciais, por uma elite intelectual, por uma classe sacerdotal, pelas suas forças armadas, e nenhum desses grupos de poder estar citado na sua Constituição. Esta é Constituição em sentido jurídico, aquela, em sentido sociológico o sistema real no qual atuam as forças efetivas de poder em uma sociedade.

Também a Constituição, em sentido jurídico lato sensu, difícil é conceber­se ausente em qualquer grupo organizado, pois, como repara Afonso Arinos de Melo Franco, a sociedade política pressupõe o poder, mas este só se exerce por meio do governo, que, por sua vez, só pode existir num quadro

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mínimo de generalidade de decisões e de estabilidade de processos de ação, cuja normatividade é a substância mesma das Constituições.

7.4.2.2 Classificação

As Constituições classificam­se, quanto à forma, em escritas e não escritas. Nas escritas as normas constam de um texto como as de qualquer lei. As não escritas não constam de texto, embora possam inspirar­se neles. São princípios cuja vitalidade é assegurada pela tradição.

A Constituição inglesa, por exemplo, não escrita, é tradicional e histórica, embora fundada em alguns textos, o mais recuado dos quais é a Magna Carta, de 1215.

Quanto à sua elaboração, as Constituições são: dogmáticas, históricas e outorgadas.

Dogmáticas as que se elaboram adotando o preceito político de que todo poder emana do povo, assim, fiéis ao princípio da soberania popular. Só o povo é soberano, e somente ele tem um poder do qual não pode ser despojado, princípio que Sahid Maluf diz ser a própria soberania em ação, o poder constituinte. Não podendo exercê­lo diretamente, o faz por intermédio de delegados, os constituintes, que, reunidos em assembléia, elaboram a Constituição.

As assembléias constituintes, explica João Barbalho (1846­1909), são convocadas especial e exclusivamente para criar ou reformar a organização política da nação que as elege, e seus poderes constam, em geral, do ato de sua convocação e interpretam­se em vista dele e dos fins para os quais se reúnem. Assim, seus poderes, a despeito da sua latitude, são politicamente limitados pelo sentido da sua própria missão.

As Constituições históricas têm origem eminentemente popular, mais do que as próprias Constituições dogmáticas. Não obedecem a um processo formal, fluem da história, como a inglesa.

As Constituições outorgadas, que os constitucionalistas costumam denominar de cartas constitucionais, são atos pelos quais o poder de fato, instituído à revelia do processo político­jurídico vigente, se autolimita.

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Ainda se dividem as Constituições em rígidas e flexíveis, de acordo com o critério que adotam para a sua reforma.

Rígida é a Constituição que não admite reforma pelo Poder Legislativo, segundo o processo normal de elaboração das leis, o que, afirma Pontes de Miranda, visa quase sempre proteger as regras que o homem considera como conquistas da sua civilização. Qualquer alteração pretendida haverá de seguir uma processualística complexa de tramitação dificultosa.

É flexível a Constituição que aceita reforma pelo processo legislativo ordinário.

Algumas Constituições são, também, parcialmente fixas, se repelem reforma de certas disposições por elas criadas. A Constituição brasileira, por exemplo, é fixa quanto aos dispositivos pertinentes à forma federativa do Estado, ao voto direto, secreto, universal e periódico, à separação dos poderes e aos direitos e garantias individuais, em relação aos quais não admite a consideração de qualquer emenda.

7.4.3 Defesa da Constituição

As Constituições são normas da mais alta hierarquia em qualquer sistema de Direito Positivo. Pretendem ser, além disso, manifestação de vontade pública e enunciado severo das aspirações coletivas. Uma razão e outra geram o problema de assegurar a sua supremacia contra qualquer possibilidade de infração, venha esta do Poder Legislativo, do Judiciário ou da Administração.

Este problema apresenta certa gradação conforme consideramos os vários tipos de Constituição.

Constituições históricas elaboram­se, paulatinamente, ao fluxo das tradições populares, e, assim, a sua própria dinâmica elimina o problema, dado que estão em constante formação e transformação.

Constituições outorgadas, como atos de concessão do poder aos súditos, ficam submetidas às conveniências do poder que as outorgou, o qual se sobrepõe à norma podendo zelar ou não por ela.

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O problema define­se, em toda a sua extensão e na complexidade das suas implicações, quando consideramos as Constituições dogmáticas formuladas por uma assembléia de delegados do povo, que em seu nome exercem o poder constituinte. Promulgada a Constituição, o poder constituinte entre em recesso de exercício, até que um hiato na ordem política provoque a sua convocação. Nesse período de recesso há que acautelar a supremacia da regra constitucional.

A mesma diversidade de importância ocorre se considerarmos as Constituições em função do seu processo de reforma. Já vimos que, desse ângulo, (abstração feita das Constituições fixas ou imutáveis), podem ser rígidas e flexíveis. Em relação a estas é menos delicado o problema de sua defesa, confiada ao Legislativo que detém o exercício pleno do poder constituinte, e por isso realiza uma tarefa permanente de criação constitucional. Assim é na Inglaterra, cujo Parlamento não tem sua competência limitada por nenhuma norma positiva, legislando livremente sobre qualquer matéria.

Quanto às Constituições rígidas, o problema é mais complexo.

De vários expedientes vale­se o Direito Constitucional para garantir a supremacia da regra constitucional. Algumas Constituições confiam ao próprio Chefe de Estado a sua defesa, levando em conta que a titularidade da função executiva confere a quem a detém um poder altamente responsável. Outras criam órgãos especializados para dirimir os conflitos de constitucionalidade. Num caso como no outro, a demanda de um protetor da Constituição é sempre indício, assevera Carl Schmitt, de uma situação constitucional crítica, lembrando o que ocorreu na Inglaterra à morte de Cromwell (1599­1658).

Generaliza­se hoje a tese, originária do Direito norte­americano, de que a defesa das Constituições deve ser atribuição do Poder Judiciário. É o chamado controle jurisdicional da constitucionalidade das leis e dos atos da Administração.

Os problemas de constitucionalidade são jurídicos, porque configurados pelo conflito entre uma lei, uma decisão ou um ato e uma regra de Direito Constitucional. Afloram sempre, portanto, polêmica sobre a apreciação de regras constitucionais sobre a partilha dos poderes, conforme adverte Edwin

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Countryman, citado por João Manuel de Carvalho Santos (1895­1956). Ora, se ao Judiciário cabe aplicar as normas jurídicas e dirimir os conflitos que sua aplicação enseja, nada mais lógicos seja de sua competência examinar as situações em que exista conflito entre uma norma legal ou um ato administrativo e uma regra constitucional.

De outros expedientes também se socorre o Direito para o mesmo resultado. Alguns situam­se no processo de elaboração legislativa, outros no seu termo.

Nos órgãos legislativos, os projetos de lei, antes de levados à deliberação do plenário, são objeto de triagem nas comissões de justiça. Estas opinam, em caráter prévio, sobre a sua constitucionalidade. No Brasil, sendo o projeto de lei federal, a triagem se faz apenas para resguardar a sua constitucionalidade face à Constituição federal. Se é um projeto de lei estadual ou municipal, ela se faz em dois níveis, pois haverá também que atender ao problema da constitucionalidade face à Constituição estadual.

Ao termo da elaboração das leis, o chefe do Executivo pode vetar projeto que repute inconstitucional. É uma faculdade que deve ser exercida como obrigação. E um veto só podendo ser, via de regra, rejeitado por uma maioria qualificada do colegiado legislativo, raramente é recusado, donde a sua assinalada eficácia.

A própria tramitação dos projetos de emenda constitucional é desestimulada por obstáculos qualitativos e quantitativos. Há limitações qualitativas pertinentes à própria matéria do projeto: em relação a certas regras constitucionais, não se admitem projetos de emenda; assim, no Brasil, os tendentes a suprimir a Federação e a República. Os obstáculos quantitativos estão nas exigências de tramitação complexa e demorada e de maiorias qualificadas para a aprovação das emendas.

Em nosso País, a declaração genérica de inconstitucionalidade das leis, (genérica porque qualquer tribunal pode fazê­la, embora apenas para o caso concreto em julgamento, podendo os juizes recusarem­se a aplicar lei inconstitucional), compete ao Supremo Tribunal Federal. Declarada por ele a inconstitucionalidade, a decisão é comunicada ao Senado Federal, que suspenderá a vigência da lei.

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7.5 DIREITO ADMINISTRATIVO

A formulação conceitual do Direito Administrativo é um problema árduo, até mesmo porque elástica e heterogênea é a idéia de Administração Pública a cuja atividade se aplica.

Por isso, preferível é antecedê­la de uma reconstituição de como se formou esse ramo do direito no curso da história, seguindo a orientação de Enrique Aftalión (1908), Fernando Garcia Olano (1910) e José Vilanova (1924).

7.5.1 Formação histórica

Com a Revolução Constitucionalista, que eclodiu nas últimas décadas do século XVIII e repercutiu pelos séculos XIX e XX, nasceu o Estado Constitucional, organização política em que o poder do Estado é restringido por uma norma que se lhe sobrepõe.

Na Inglaterra, remontou ao século XII, quando, num episódio que hoje tem sabor quase lendário, os barões feudais impuseram a João sem Terra (1167­1216) a Magna Carta. A importância maior do documento, assevera Roscoe Pound (1870­1964), não estava em ter sido a primeira tentativa de estabelecer em termos jurídicos princípios que depois se converteram em diretrizes do governo constitucional, sim em que aqueles princípios foram estabelecidos sob a forma de limitações ao exercício da autoridade e, assim, se incorporaram à lei ordinária da terra, podendo ser invocados, como qualquer outro preceito jurídico, no curso ordinário de um litígio regular.

Curioso é notar, aliás, que ali não houve propriamente uma fase de absolutismo estatal, mas uma passagem direta, embora gradual, do regime feudal para o constitucional, o que fez da Inglaterra modelo de inspiração para os constitucionalistas do século XVIII. A evolução do regime constitucional inglês começou no episódio citado, prosseguiu nos séculos XVI, XVII e XVIII, e ficou marcada pela edição de atos de transcendental importância, como a Carta de Direitos e o Ato de Habeas Corpus.

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Foi, porém, no século XIX, que explodiu realmente na Europa o movimento constitucionalista, cuja primeira manifestação ocorrera na América, mas que se firmara com pujança extraordinária na França.

Antes da Revolução Constitucionalista o soberano detinha o poder de maneira total, o exercia em nome próprio e ao seu completo arbítrio. Se acaso pessoas e órgãos desempenhavam funções legislativas, judiciárias e administrativas, não o faziam por titularidade própria, sim como delegados e títeres do soberano.

A Revolução Constitucionalista incorporou ao seu ideário o princípio da separação dos poderes, cuja paternidade se atribui a Montesquieu, que, tendo viajado à Inglaterra, onde a nobreza havia retirado do rei o Poder Judiciário e o Legislativo, conservando aquele apenas o Executivo, deixou­se impressionar pela instituição, como fórmula sábia para a garantia da liberdade individual. Acentuava Montesquieu que a autoridade absoluta tende sempre a ser arbitrária. Só há um modo de limitar o arbítrio: dividi­la, distribuir a competência por entre órgãos diversos, de maneira que eles, se controlando e se fiscalizando uns aos outros, reduzem reciprocamente sua tendência para o arbítrio.

Quando foram retiradas da autoridade absoluta do monarca as funções legislativa e judiciária, algum poder restou. Este poder residual constitui a Administração Pública, conteúdo da função executiva. Por isso, uma das características da Administração Pública, sem prejuízo da sua estrita legalidade, é atuar com certa discricionariedade, empregada a palavra no seu sentido jurídico. Enquanto o legislador está subordinado a um procedimento rígido na sua tarefa, enquanto o juiz procede obediente a determinado sistema de preceitos, o administrador tem um horizonte mais amplo de liberdade.

Administração é tudo o que, não sendo legislação nem jurisdição, incumbe ao Poder Executivo. Mas este conceito, percebe­se, é meramente formal, porque redunda na conclusão, pouco clara, de que o Direito Administrativo é o direito da Administração Pública. Necessário é acrescentar­lhe a idéia, que lhe dará conteúdo, de que a Administração Pública é a gestão dos interesses do Estado. Assim como o indivíduo gere os próprios interesses, também o Estado administra os seus. Daí a importância do conceito de serviço público em Direito Administrativo.

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7.5.2 Governo e Administração

Conceituado o Direito Administrativo como direito da administração, e esta conjunto de atos de gestão dos interesses do Estado, cumpre distinguir administração de governo.

O poder público exerce uma função política e outra administrativa. A política é tema do Direito Constitucional; a administrativa, tem a do Direito Administrativo.

7.5.2.1 Esmein

A. Esmein parte da distinção entre representantes da Nação, investidos em sua autoridade por ato de soberania desta, e agentes do poder público. Aqueles, por mais minuciosa que seja a regra jurídica definidora das suas atribuições, sempre as exercem, até pelo conteúdo mesmo delas, com um tom pessoal, o que lhes concede relativo arbítrio. Os atos que praticam, no desempenho daquelas atribuições, são políticos, como a declaração de guerra. A lei regula o ato, jamais dispõe, menos ainda de maneira casuística, sobre quando uma guerra deva ser declarada, ou a paz negociada.

Mas os titulares daquelas atribuições não podem prescindir de agentes para o seu exercício, e estes não têm atuação espontânea, só atuam em nome da competência que o governo lhes faculta, cooperando com os titulares de atribuições no desempenho de seus misteres.

Integrantes do conjunto de órgãos que chamamos Administração, desenvolvem atividade administrativa: são agentes da Administração.

7.5.2.2 Jellinek

Jellinek caracterizou a distinção entre governo e administração atendendo aos fins do Estado.

Estes fins, apesar da sua aparente diversidade, podem ser reduzidos a três: conservação, direito e cultura, os dois primeiros diretamente relativos à própria essência do Estado. Assim, conservar, ordenar e ajudar são as três grandes categorias a que se pode reduzir toda a vida do Estado. Às duas primeiras corresponde a política, à última a administração.

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Observa Jellinek que a proteção da comunidade e seus membros e, portanto, a defesa do território contra qualquer ataque exterior é atividade exclusiva do Estado, mas a este cabe, no mesmo plano, a própria conservação e a manutenção da integridade do seu modo de agir. Os deveres policiais e os penais não somente protegem bens individuais e sociais, como ao próprio Estado.

Exclusivamente correspondente ao Estado é também a formação e a preservação da ordem jurídica. A evolução do Estado vai sempre acompanhada de um processo de absorção das formações jurídicas autônomas e de proteção, igualmente jurídica, às associações que lhe estão subordinadas. Somente o Estado aparece como fonte sistemática do Direito e somente a ele compete servir­se dos meios de coação.

Por último, é fim do Estado, embora não privativamente, promover a cultura, atividade condicionada historicamente por diversas circunstâncias, mas indissoluvelmente ligada ao sentido teleológico da sua existência, como pessoa jurídica soberana que favorece os interesses solidários individuais, nacionais e humanos na direção de uma evolução progressiva e comum.

7.5.2.3 Comentário

Parece melhor tentar distinguir governo e administração mediante um esquema sem apoio na realidade, mas que permite uma compreensão lógica simplificada.

Diríamos que o Estado pode ser visto em suas funções logicamente necessárias e, em outras, apenas úteis. As logicamente necessárias, sem as quais não se concebe a sua existência, são as políticas, que se projetam em duas dimensões: uma propriamente política e outra jurídica. Pela segunda o Estado promulga e aplica a lei; pela primeira, assegura a ordem interna e a defesa externa. São esses os elementos conceituais da unidade do Estado. Não podemos suprimir nenhum deles, porque disso resultaria a incapacidade de concebê­lo.

Governo é o Estado compreendido nessas dimensões mínimas e essenciais: a jurídica e a política.

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A esses elementos logicamente necessários outros se acrescentam, ditados pela história, que emprestam ao Estado os atributos de uma entidade útil, ou, como diz Fritz Fleiner, citado por Lopes da Costa, um ente que favorece ao bem comum, criando utilidades. O Estado é visto, então, como fator de progresso, de bem­estar coletivo, de felicidade geral, como órgão atuante em benefício da comunidade. Esse é o Estado na sua face administrativa. Por abstração, podemos suprimir cada uma das suas atividades administrativas sem suprimir­lhe a existência.

Trata­se, porém, de um esquema apenas lógico, porque a própria atividade política exige um suporte burocrático de natureza administrativa. E, historicamente, em qualquer tipo de Estado, expõe José Cretella Jr., antigo ou moderno, despótico ou liberal, as funções legislativas ou judicantes interrompem­se com freqüência, mas não se compreende a ausência da administração, que ininterruptamente se exerce, já que a atividade humana organizada, com sentido finalístico, é inseparável dos agrupamentos humanos, impelindo ao progresso e impedindo o caos.

7.5.3 Serviços públicos

Preside à atividade administrativa o critério da utilidade geral. Por isso, é relevante em Direito Administrativo a definição de serviços públicos, tanto mais importante quanto atual a tendência de medir­se por eles a extensão dos direitos do Estado, como observa Reichel.

Serviços públicos são os de utilidade geral prestados pela Administração. O conceito forma­se pelo concurso desses dois elementos: utilidade social e prestação pelo Estado. Não é a simples utilidade que qualifica um serviço como público. Há serviços socialmente úteis prestados por particulares: a educação, os transportes, a alimentação, as comunicações. A prestação pela Administração é essencial para que um serviço seja considerado público.

Segundo Carlos Garcia Oviedo:

a) o serviço público é uma ordenação de elementos e atividades para fins;

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b) o fim é a satisfação de uma necessidade coletiva, embora haja necessidades gerais que sejam satisfeitas pelo regime de serviço privado;

c) o serviço público implica a ação de uma pessoa pública, ainda que nem sempre sejam as pessoas administrativas as que assumem essa empresa;

d) a atuação de um serviço público se cristaliza em uma série de relações jurídicas constitutivas de um regime jurídico especial, distinto, portanto, do regime jurídico dos serviços privados.

Em última análise, sustenta Aliomar Baleeiro (1905­1978), tais serviços têm por alvo a realização prática dos fins que moralizam e racionalizam o fenômeno social do poder político: a defesa da nação contra agressões externas, a ordem interna como condição de segurança e liberdade de cada indivíduo, a elevação material, moral e intelectual de todas as pessoas, o bem­ estar e a prosperidade gerais, a igualdade de oportunidades para todos os componentes do grupo humano etc.

Os serviços públicos podem ser prestados por particulares, com a colaboração do Estado, e pelo próprio Estado direta ou indiretamente.

As modalidades de prestação por particulares são: a concessão, a subvenção e, já hoje anacrônica, a garantia de juros.

7.5.3.1 Concessão

Na concessão é mínima a cooperação do Estado. A Administração, titular única da faculdade de explorar certo serviço, concede­o a um particular, garantindo­lhe, habitualmente, e dentro de certos limites, exclusividade, resultando, assim, segurança de rentabilidade do capital investido, mediante a cobrança de taxas fixadas nas respectivas tarifas. A concessão refere­se a serviço da incumbência do Estado. Não convindo a este prestá­lo, delega­o ao particular, sem comprometer recursos próprios.

Como lembra Hans Klinghofer, a concessão não pode abranger todos os serviços públicos, porque alguns deles o Estado não pode confiar a ninguém por proibição constitucional; de alguns seria inadmissível que deles o

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particular pudesse tirar lucros; e outros, porque o regime de prestação colocaria em perigo a coletividade.

7.5.3.2 Subvenção

Na subvenção há ajuda econômica do Estado. O particular presta um serviço considerado útil e dele recebe uma compensação pecuniária. A subvenção é forma de atrair a iniciativa privada para setores de rentabilidade escassa ou duvidosa.

A administração remunera o particular para explorá­los. Assim, é suprimido o risco de prejuízo, e quiçá aberta a possibilidade de lucro.

7.5.3.3 Garantia de juros

A garantia de juros, modalidade anacrônica, foi freqüentemente usada no passado. A razão que a justifica é a mesma do serviço subvencionado: investimento vultoso e renda incerta. Neste caso, o Estado atrai o capital particular, garantindo­lhe um juro certo. Ao termo de cada exercício, as contas podem produzir quádruplo resultado:

a) prejuízo;

b) nem prejuízo nem lucro;

c) lucro insuficiente, aquém do mínimo normalmente esperado de um investimento;

d) lucro excessivo, além do razoável para o capital.

Havendo prejuízo ou nem prejuízo nem vantagem, a Administração paga o juro prometido. Havendo lucro inferior ao previsto, ela o completa. Se o ganho excede aos juros prometidos, nada paga, e, via de regra, o excesso é partilhado entre o empresário e a Administração.

A prestação de serviços pela própria Administração pode ser: direta e indireta.

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7.5.3.4 Descentralização

A atividade administrativa tem experimentado incremento sempre maior. O Estado, no apogeu do liberalismo, omitiu­se de intervir na vida social. Foi simplesmente fiscal, deixando o mais à iniciativa privada. Os serviços públicos eram mínimos e a atividade administrativa, escassa.

Atualmente, a atividade governamental é intensa. O Estado moderno é intervencionista e à sua intervenção em qualquer setor social corresponde uma estrutura administrativa.

Quando este gigantismo alcança certas medidas, a Administração começa a ficar emperrada, sujeita que está a formalidades que não obrigam ao particular. A maneira de dinamizá­la é descentralizá­la. Daí a dupla modalidade de prestação de serviços públicos pelo Estado: a direta e a indireta.

7.5.3.5 Prestação direta

Direta, quando o serviço é realizado por entidade que integra a estrutura da Administração. Dizer o que é estrutura da Administração Pública importa levar em conta um determinado Estado. No Brasil, integram a Administração federal a Presidência da República, os órgãos que lhe são diretamente subordinados e os Ministérios ou Secretarias de Estado. Se a entidade que promove o serviço situa­se na estrutura da Presidência, de seus órgãos ou dos Ministérios de Estado, a prestação é direta.

Conforme escreve Hely Lopes Meirelles, em regra o Poder Público presta diretamente os serviços relacionados com a proteção dos direitos e a segurança individual (justiça e polícia) ou que exigem medidas compulsórias (higiene e saúde pública).

7.5.3.6 Prestação indireta

A prestação indireta, hoje muito freqüente, caracteriza­se pelo fato de o órgão que presta o serviço não estar inserido nos quadros da Administração propriamente dita.

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Assume quatro formas: autarquias, empresas públicas, sociedades anônimas e fundações.

Todas têm características comuns. Uma delas é serem criadas ou instituídas por força de lei. Outra é que elas têm personalidade jurídica própria, distinta da personalidade da pessoa de direito público à qual estão vinculadas. A natureza da sua personalidade varia. As autarquias são pessoas de direito público, ao passo que as empresas públicas, as fundações e as sociedades de capital misto são pessoas de direito privado, embora essa característica seja sempre dada apenas por lei.

7.5.3.6.1 Autarquias

A autarquia, na lição de Tito Prates da Fonseca, é uma forma específica da capacidade de direito público: capacidade de reger por si os próprios interesses, embora estes respeitem também ao Estado. Possui patrimônio e receita próprios, e os serviços que presta são tipicamente administrativos. A palavra autarquia significa auto­suficiência. Um órgão é autárquico quando se basta a si mesmo.

Distingue­se das demais entidades de Administração indireta porque não presta serviço comercial, nem industrial, mas tipicamente administrativo. Apenas o Estado ao invés de prestá­lo diretamente, o faz por um órgão satélite, localizado na sua periferia.

À semelhança do próprio Estado, tem poder impositivo, pode cobrar do particular, compulsoriamente, contribuições que a lei cria em seu benefício. E desfruta dos privilégios do Estado.

7.5.3.6.2 Empresas públicas

A empresa pública pratica atividade empresarial, à semelhança da particular. É pública apenas porque realiza administração indireta. A totalidade do seu capital pertence ao Estado.

7.5.3.6.3 Sociedades de economia mista

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As sociedades de economia mista constituem solução interessante e hoje usual de prestação indireta de serviços públicos. Themistocles Cavalcanti, citando Reuter e Cheron, sustenta que, embora industriais ou comerciais, a sua destinação é social, o que importa nelas prepondere a presença do Estado. São sociedades anônimas criadas por lei, cuja maioria de ações, com direito de voto, pertence ao Estado ou aos seus órgãos satélites. A sociedade anônima é de responsabilidade limitada, isto é, o patrimônio de seus sócios, denominados acionistas, não responde subsidiariamente pelos compromissos sociais. Assim, quem compra uma ação, apenas expõe a risco a quantia gasta.

A sociedade anônima é forma hábil de prestação de serviço público, porque o seu capital é dividido em frações iguais, a cada uma das quais corresponde um título, chamado ação. As deliberações do seu corpo de acionistas são tomadas por maioria de ações. Assim, o titular de 51% das ações, sem possuir todo o capital, tem o controle pleno da sociedade. Numa sociedade de economia mista, o Estado detém mais da metade do capital, o restante cabe aos particulares. O Estado, sem fazer investimento total, tem o controle da entidade e a colaboração dos recursos e dos interesses particulares.

Por outro lado, as sociedades anônimas conseguem a captação da pequena poupança. Pessoas de recursos parcos, que não poderiam investir em negócios próprios têm condições para comprar certo número de ações.

Estas sociedades, chamadas de economia mista porque o seu capital é público e particular, podem funcionar obedientes a outros preceitos que não os ordinários da legislação comercial que regulam, genericamente, as sociedades anônimas.

7.5.3.6.4 Fundações

Fundação pública é patrimônio que o Estado constitui ao qual confere a condição de pessoa jurídica de direito privado, para a realização de certo fim.

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7.6 DIREITO PENAL

O Direito Penal estuda os delitos e as penas correspondentes.

Em todas as sociedades determinados atos são considerados anti­sociais. Sua prática gera reação veemente que impõe ao agente uma sanção aflitiva. Essa conduta constitui o delito.

Crime é, portanto, a infração da lei penal. Um conceito jusnaturalístico é inviável, porque as entidades delituosas variam no tempo e no espaço. O que foi crime ontem não é hoje, e o que é crime hoje pode deixar de sê­lo amanhã. Entre povos diversos, o que para um é delito para outro não é. Não há portanto, alternativa para essas definições preliminares.

a) direito penal é a ciência jurídica particular que estuda os crimes e as penas;

b) crime é a infração da lei penal.

7.6.1 Direito penal e criminologia

Cumpre distinguir entre Direito Penal e Criminologia, tanto mais quanto aquele está saturado da influência desta.

O Direito Penal considera o crime no plano normativo, como ato que não deve ser praticado. A criminologia o considera no seu aspecto naturalístico, como ato que é praticado.

O Direito Penal vê no crime uma entidade abstrata: conduta punida por lei. Mas, por trás do delito, está uma criatura real de carne e osso, o delinqüente. Essa criatura, vista na sua conduta anti­social e nos fatores que a determinam, é estudada pela criminologia. O Direito Penal contata com o crime, a Criminologia, com o criminoso. Ao Direito Penal interessa a conduta criminosa em si mesma. À Criminologia essa conduta apenas interessa enquanto sintomática de fatores que lhe permitem conhecer o delinqüente na sua natureza e circunstâncias da sua existência. Na singular comparação de Quintiliano Saldaña, aquele é um teatro, esta, um museu.

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Por isso, o Direito Penal varia de povo para povo, ao passo que a Criminologia é uma só.

Pode­se, porém, indagar: se o delito é a infração da lei penal e se esta varia no tempo e no espaço, como é possível uma Criminologia, espécie de ciência natural do crime?

A contradição é apenas aparente. Embora a noção de delito seja de Direito Positivo e, como tal, histórica, todo delito é conduta anti­social, pois, como diz expressivamente Max Ernst Mayer, a manifestação mais patente da oposição do indivíduo à sociedade é o delito. Sob este aspecto, qualquer conduta criminosa pode ser identificada como inadaptada a exigências sociais e, assim, estudada pelas ciências descritivas.

A Criminologia tem por objeto essencial o estudo da criminalidade e suas causas. Estas são de natureza individual (endógenas ou constitucionais) ou de meio (exógenas). As primeiras podem ser biológicas ou psicológicas. As condições ambientais podem ser sociais e meteorológicas. Daí, dentro da criminologia haver uma sociologia criminal, que analisa os fatores sociais da criminalidade, e uma meteorologia criminal, que se ocupa dos fatores meteorológicos da criminalidade, como as estações, a temperatura, etc.

7.6.2 Delito

A lei penal define condutas típicas. Se alguém as pratica, expõe­se à sanção prevista.

A conduta é delituosa, conforme o ensinamento de Werner Goldschmidt, se apresenta três requisitos: típica, antijurídica e culpável.

É uma conduta típica, porque, a cada dispositivo da lei penal, corresponde um tipo de conduta. Se a conduta do agente incorre no tipo previsto, é criminosa.

A conduta em si mesma, ou o seu resultado, pode ser tipificada. No segundo caso não o é a conduta, que se mostra sob muitas variantes, mas o seu efeito, que é invariável. Na bigamia, por exemplo, a conduta é tipificada em si mesma, pois não há outra maneira de praticá­la, senão casar outra vez. Em relação ao homicídio é diferente. A ele o Código Penal se refere assim: matar.

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Podemos matar usando os mais variados meios. Não pode, a conduta, portanto, ser tipificada, apenas a sua conseqüência.

Não basta, porém, que a conduta seja tipificada. Podemos seguir conduta tipicamente penal e não praticar crime. Em algumas situações ela não é antijurídica, antes juridicamente justificada. Por exemplo, se matamos agindo em legítima defesa não praticamos homicídio, dado que a lei permite matar em tal contingência.

A culpabilidade resulta do julgamento do ato em função dos elementos subjetivos do agente. Manifesta­se como dolo, dolo eventual e culpa propriamente dita. Se o agente logra o resultado pretendido, há dolo. Se não o desejou, mas assumiu o risco de que ocorresse, há dolo eventual. O proprietário de uma embarcação, que a faz naufragar para receber o seguro, não pretendeu propriamente matar qualquer das pessoas que estavam a bordo, mas sabia do perigo que corria a vida delas, e assumiu esse risco. Há culpa quando a conduta é descuidosa, sem as cautelas de que deve ser cercada, e dela provém conseqüência danosa prevista na lei penal. Se o autor de ato previsto na lei penal procede sem culpabilidade, também não existe crime.

7.6.3 Direito de punir

A matéria é de natureza filosófica e emerge da indagação sobre por que e com que fundamento a sociedade, particularmente os indivíduos que exercem funções delegadas por ela, podem impor penas e castigos?

Dois critérios prevalecem na doutrina, segundo Galdino Siqueira e Paes Barreto: o absoluto e o relativo.

7.6.3.1 Teorias absolutas

Pelas teorias absolutas, dentre cujos defensores destacamos Friedrich Julius Stahl (1802­1861) e Kant, há uma justiça absoluta, valor e dado de consciência, à qual o homem deve fidelidade. Se a infringe, submete­se, por ato consciente e livre, às conseqüências do seu procedimento. A pena é a retribuição merecida a quem viola um preceito ético.

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7.6.3.2 Teorias relativas

As teorias relativas descrêem de qualquer critério metafísico. Não fundamentam a pena na justiça em si mesma, mas na consideração de outras justificativas.

Estas teorias assumem duas orientações. Uma, dentre cujos representantes salientamos Alfred Fouillée (1838­1912), Rousseau e Cesare Beccaria (1738­1794), vê no direito de punir uma decorrência da natureza contratual da ordem social e política. O homem, antes de viver em sociedade política, vivia em estado de natureza, entregue à plena liberdade. Passando ao estado social, instituiu o Poder Público, ao qual cabe a vigilância da paz coletiva e a garantia dos direitos pessoais. É da essência dessa conversão que o indivíduo renuncie às faculdades executivas dos próprios direitos.

O Estado tornou­se depositário destas e, nessa qualidade, define os atos considerados atentatórios à ordem social e aplica penas.

Rousseau explica que o criminoso, rompendo o contrato social, deixa de ser membro da sociedade, à qual declara guerra com a sua ofensa e, portanto, como inimigo deve ser tratado. E acrescenta que o processo criminal colhe as provas daquele rompimento.

Thomas Hobbes (1588­1679), também contratualista, admite que, antes da instituição do Estado, cada homem tinha o direito a todas as coisas e a fazer o que considerava necessário para lográ­lo, subjugando, maltratando ou matando outro homem. Instituída a sociedade política, os súditos despojaram­ se daquela faculdade e assim robusteceram a do governante que, remanescente único daquela titularidade, usa do direito próprio como lhe parece adequado para a conservação de todos.

Outra orientação reconhece na pena um só fundamento; a prevenção da criminalidade. A pena não é castigo, nem vingança, nem expressão de justiça; apenas produz a contenção da criminalidade.

A prevenção pode ter um sentido geral ou particular, conforme se empreste mais ênfase à sua função intimidativa ou à sua função corretiva. Pessoas atraídas para a prática de atos anti­sociais deixam de cometê­los pela possibilidade de virem a sofrer punição. E o indivíduo alcançado por uma sanção criminal provavelmente temerá cometer outro delito.

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7.6.4 Evolução

Antes que as normas se tivessem diferenciado em morais, políticas, jurídicas, convencionais etc., toda a normatividade social era consuetudinária e estava contida nas tradições de cada grupo. Não existia propriamente a figura típica do delito. Qualquer infração à normatividade era uma falta da mesma natureza.

Tal como ocorreu relativamente à proteção dos direitos subjetivos em geral, a vingança privada e o talião precederam a jurisdição criminal.

7.6.4.1 Direito romano

Em Roma, diversos períodos se sucedem na evolução das instituições penais. Nos tempos mais primitivos o paterfamilias exercia na comunidade doméstica um direito absoluto. Era senhor e detentor de todos os poderes, sem qualquer limite, sobre as pessoas que formavam a comunidade familiar. Tinha sobre todas elas poder de vida e morte. Julgava os crimes, cominava e aplicava as penas. Não havia uma justiça de grupos, menos ainda do Estado, somente a justiça doméstica.

Mais tarde, a autoridade do paterfamilias veio a sofrer limitação. Firmou­se a distinção entre delitos privados e públicos, estes submetidos ao julgamento da autoridade pública.

Na era republicana, o Estado definiu as primeiras figuras penais tentando tipificá­las. Surgiu a figura dos crimina legitima, definidos por lei, aos quais correspondiam as poena legitima, penas legais. Como eram formuladas, especificamente, as ações correspondentes, esta definição adjetiva muito concorria para emprestar tipicidade às figuras delituosas.

Na República está o embrião do que poderia ter sido o futuro Direito Penal romano em termos de legalidade. No entanto, essa tendência para reduzir o arbítrio em favor da legalidade sofreu retrocesso no período imperial. O julgamento dos delitos, a aplicação das penas, a configuração dos crimes passaram a ser de competência do imperador. Instalou­se uma fase de arbitrariedade, durante a qual o imperador monopolizava toda a autoridade,

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tendo competência para castigar qualquer ato que, no seu entender, lhe fosse atentatório ou aos interesses sociais. E não somente competência para caracterizar os atos, mas também para lhes cominar penas consoante seu arbítrio. Surgiram então os chamados crimina extraordinária, não previstos na legislação, que poderiam ser arbitrariamente configurados, ainda mesmo com efeito retroativo.

7.6.4.2 Direito germânico

No Direito germânico, os antecedentes são os mesmos. A justiça criminal era praticada como vingança. Os crimes eram vistos como atentados contra interesses estritamente individuais ou grupais. Um dos traços típicos do Direito germânico foi a conversão da pena de castigo em composição pecuniária. A vítima, seus familiares ou os membros do seu grupo exigiam do ofensor uma compensação pecuniária do dano.

Segundo o testemunho de Cornelius Tacitus (55­120), os culpados eram condenados a uma multa que pagavam com certo número de cavalos ou cabeças de gado miúdo, uma parte destinada ao rei ou à tribo, outra à vítima ou seus próximos. E até o homicídio se podia remir por um número determinado de cabeças de gado, recebendo, assim, a família inteira da vítima uma satisfação, com grande vantagem para o bem público.

7.6.4.3 Direito canônico

O Direito canônico aproximou as noções de delito e pecado. Essa aproximação entre uma noção religiosa e outra jurídica criou conseqüências aparentemente paradoxais. Por um lado, tirou ao Direito Penal a sua fria objetividade, no sentido de julgar da conduta delituosa apenas pela sua prática, tal como acontecia no Direito germânico. Os elementos subjetivos ou intencionais da conduta passaram a ser estimados, e esse fato representou, sem qualquer dúvida, um avanço das instituições penais. Por outro lado, porém, a idéia de pecado fez aflorar, como corolário, a de expiação. O pecador merece expiar sua falta, até mesmo como caminho para se redimir dela. Daí porque o Direito canônico trouxe aplicação generalizada das penas corporais, e, sob esse aspecto, representou um retrocesso na evolução do Direito Penal.

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7.6.4.4 Idade Média

Essas três caudais, Direito romano, canônico e germânico, encontram­se na Idade Média, e vão formar o conjunto de idéias e regras que viriam a constituir a primeira etapa do Direito Penal ocidental.

O Direito Penal medieval marcou uma época do mais consumado arbítrio. Qualquer ato podia ser considerado delituoso. Símbolo do tempo foram as torturas. A pena era aplicada sem exame dos elementos subjetivos e objetivos da conduta, mas em vista da condição social do infrator, de modo que variava de indivíduo para indivíduo e até segundo a sensibilidade e o critério pessoal do julgador.

Foi, aliás, o barbarismo da Idade Média que inspirou a escola cujo aparecimento no século XVIII viria a ser o do próprio Direito Penal como o compreendemos.

7.6.4.5 Século XVIII

O século XVIII, foi o século das luzes, da plena liberdade e da total contestação. Nele o homem afirmou a supremacia da própria razão sobre qualquer valor imposto pela autoridade.

Em 1764, Beccaria publicou a monografia Dos Delitos e das Penas, título que dava idéia clara do conteúdo do próprio Direito Penal.

7.6.4.6 Escola clássica

Surgia, assim, a escola clássica, que foi, na sua origem, antes de mais nada, um movimento humanitário. O que sensibilizou Beccaria foi a monstruosidade das instituições penais e a aviltante condição do réu, despido de todos os direitos, submetido a todas as atrocidades.

Mas Beccaria não se limitou a desfraldar a bandeira do humanitarismo. Fundou uma escola, clássica exatamente porque a ela corresponde a fundação do Direito Penal. Aliás, Beccaria não foi propriamente o seu fundador, porque sua obra foi mais de um filósofo e um reformador social do que a de um

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jurista. Coube, na verdade, a Francesco Carrara (1805­1888) sistematizar a doutrina da escola.

O princípio básico da escola é o da legalidade. Consubstancia­se no aforisma sobre o qual ainda assenta o Direito Penal moderno: “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem lei anterior que a comine”.

Por ele, ninguém pode ser castigado pela prática de um ato, por mais reprovável que seja, por mais veemente e crítica que lhe possamos fazer, se não estiver tipicamente previsto na lei penal, pois a nenhuma pessoa se pode aplicar pena que não esteja cominada em lei.

O segundo princípio da escola clássica, que mais tarde viria a ser vivamente combatido, na medida em que evoluíam as ciências antropológicas, é o da responsabilidade moral. Segundo Adolphe Landry, a escola quer que, no delito, o juiz puna a falta moral, o pecado, independentemente de qualquer consideração de utilidade social. O homem é punido porque é moralmente responsável, tem senso de justiça e liberdade de proceder. Delito é ação consciente e livre. Consciente e livre, o homem é moralmente responsável pela sua conduta, e, por isso, penalmente responsável quando perpetra um delito. Faltando ao agente responsabilidade moral, falta­lhe também responsabilidade penal, razão de o direito acolher diversas excludentes desta. Os alienados, por exemplo, moralmente irresponsáveis, o são também penalmente.

O terceiro postulado da escola clássica é da mais alta importância: o da personalidade da pena. O Direito Criminal pré­clássicos, em relação a certos delitos, admitia que as penas atingissem não somente os agentes, mas ainda seus parentes. A isso opôs­se a escola clássica, exigindo que a pena fosse sempre pessoal.

Pelo quarto princípio da escola a pena deve ser duplamente proporcional: proporcional à gravidade do ato delituoso, considerado em comparação a outros, e à sua peculiar gravidade, considerada em relação às circunstâncias em que o ato foi cometido. Matar é delito mais grave do que furtar. Quem subtrai com violência pratica delito mais grave do que quem o faz sem violência. As penas devem atender a essa relativa gravidade.

Além disso, o mesmo delito pode ser cometido em circunstâncias diversas, que modificam a sua gravidade. Um indivíduo que mata um estranho

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não pode ser julgado como o que mata um filho, um pai, uma irmã. Quem mata por impulso não pode ser equiparado a quem traiçoeiramente prepara cilada para o assassínio. Quem comete homicídio, de maneira que a vítima não tenha oportunidade de se defender, não é igual a quem se envolve num conflito e mata, correndo o risco igual de ser morto.

A escola clássica entendia que as penas deveriam ser proporcionais às circunstâncias. Motivo de nos Códigos Penais haver penas máximas e mínimas. A pena irá de um extremo a outro, com níveis intermédios, de acordo com as circunstâncias que envolvem o delito, apuradas no exame de cada caso singular.

Entende Schopenhauer que a razão da justa correspondência reclamada por Beccaria entre a pena e o delito estava também na conveniência de que a garantia de cada bem humano fosse proporcional ao valor deste. Assim, cada homem estaria autorizado a exigir uma vida alheia em garantia da própria, enquanto que, para a segurança da sua propriedade, bastar­lhe­ia a privação da liberdade do ofensor.

Ainda preconizou a escola o princípio da publicidade da instrução criminal, ou seja, da fase probatória do processo penal.

O último postulado da escola clássica, aquele que lhe valeu a crítica mais violenta das escolas sucedâneas, é o de que o delito deve ser considerado um ente jurídico. No julgamento da conduta delituosa o juiz deve fazer abstração da qualidade e da condição do delinqüente. Ater­se simplesmente ao fato, avaliar a conduta atribuída ao réu, objetivamente, como infração de um preceito legal.

A escola clássica teve extraordinária repercussão. O Direito Penal, exceção feita de certos sistemas, continua, em grande parte, alicerçado nos seus princípios. O princípio da absoluta irretroatividade da lei penal, o de que ninguém pode ser punido por ato não previsto na lei, o de que a ninguém pode ser cominada pena que a lei não comine, são todos da escola clássica, e continuam integrando o Direito Penal moderno.

7.6.4.7 Escola positiva

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O século XIX trouxe profunda mudança para a ciência penal. Se o anterior havia sido o século das letras, das artes, da razão, o século XIX foi o do naturalismo. No seu decorrer as ciências naturais adquiriram importância que antes não haviam tido, o que se refletiu no âmbito da ciência penal, lançando os fundamentos da criminologia e determinando o desprestígio dos cânones da escola clássica.

Surgiu a antropologia criminal, criada por um notável médico italiano, natural de Turim, Cesare Lombroso (1836­1909), que publicou duas obras, ainda hoje clássicas.

Lombroso, freqüentando os presídios do seu país, adquiriu especial interesse pelo exame dos delinqüentes violentos. Foi se deixando impressionar, paulatinamente, pela observação de que aqueles, na sua maioria, apresentavam desvios morfológicos. Até que, quando examinou o crânio de um dos mais famosos criminosos da época, marcado por numerosas e significativas alterações morfológicas, chegou à convicção de que o delinqüente é um ser anormal, acudindo­lhe a idéia de que o delito é uma enfermidade, e, assim, seu estudo menos cabia ao Direito do que a uma ciência natural.

Fundou ele, então, a antropologia criminal, primeira fase da escola positiva.

Sua idéia matriz era a de que o criminoso irrecuperável apresentaria características de conformação distintas das do homem normal. Seria de uma espécie humana própria. Se existe uma ciência do homem, a antropologia, e se o criminoso é um homem à parte, constitui, então, uma categoria de homem, surgindo, paralelamente, a antropologia criminal.

Formulou­se a noção do criminoso nato, do indivíduo que traz do berço, pelo imperativo de suas condições somáticas, a tara da criminalidade. Chegou o médico italiano a indicar os supostos caracteres antropológicos do criminoso nato violento: testa estreita e fugidia, prognatismo, maçãs do rosto pronunciadamente acentuadas etc.

Não lhe bastou, porém descrever essa morfologia da criminalidade, senão também indagar que fator poderia explicá­la.

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Para tal, valeu­se, sucessivamente, de três explicações. Primeiramente cuidou que o atavismo explicaria o homem delinqüente. O atavismo é manifestação esporádica de hereditariedade ancestral. O criminoso teria herança atávica do selvagem.

Mais tarde, valeu­se do infantilismo, especialmente para justificar as condições psicológicas do criminoso, que seria por natureza um ser de ilimitado egoísmo. Ora, este é o primeiro estado do homem antes que a sociedade, pela educação, o condicione. O criminoso seria um espírito infantilmente egoísta num corpo adulto.

Por último, dada a então atualidade do tema, voltou­se Lombroso para a epilepsia, enfermidade que esclareceria a dinâmica da criminalidade inata.

A antoropologia criminal cedo sofreu combate, porque a observação a desmentia.

A escola positiva, conservando a herança de Lombroso, ingressou na fase sociológica, na qual sobressai o nome de Enrico Ferri (1856­1929), a quem se deve explicação mais completa da criminalidade. Lombroso havia superestimado os fatores constitucionais, somáticos, hereditários, e desprezados os sociais e geográficos. Coube a Ferri enriquecer o patrimônio doutrinário da escola, fazendo o levantamento de todos os fatores da criminalidade. A doutrina de Ferri está numa obra tradicional de criminologia, a Sociologia Criminal.

Ainda na linha da escola positiva, tivemos mais tarde Rafaele Garofalo (1851­1927), inaugurador da fase jurídica. O aspecto jurídico do delito fora abandonado por Lombroso e Ferri. Garofalo voltou a considerá­lo. Da sua doutrina um ponto se destaca, hoje indefensável: a tentativa de definir o delito natural. Seja embora uma infração da lei penal, e, por isso, contingente a idéia que lhe corresponde, existe um crime natural, crime em si mesmo, quaisquer que sejam as variantes de suas manifestações e as maneiras legais de julgá­las.

O delito natural atenta contra dois sentimentos essenciais do homem: piedade e probidade.

Como critério de aplicação da pena, Garofalo defendeu o da temibilidade. A pena não deve ser automaticamente quantificada, mas dosada

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em proporção à temibilidade do delinqüente, porque indivíduos que praticam atos idênticos podem oferecer periculosidade diversa.

Dos vários postulados da escola positiva um é básico: a responsabilidade legal. Para a escola clássica o fundamento da responsabilidade penal era a responsabilidade moral, corolário da tese do livre arbítrio. A escola positiva nega a liberdade moral, vendo o crime, diz J. Grasset, sem qualquer liame com a idéia de liberdade. Se o homem é normal sua conduta será inatacável. Se anormal, com tendência irresistível para a criminalidade, ou se pressionado pela própria ambiência, a sua vontade não é livre. É criminoso por uma imposição da sua natureza ou do seu meio, por conseguinte: moralmente irresponsável.

Sendo moralmente irresponsável, como puni­lo? Responde a escola que, antes de tudo, a pena não tem caráter de punição, mas o de simples ato de defesa social. A sociedade não aplica a pena para punir o criminoso, que em si mesmo é irresponsável, sendo, portanto, injusta em relação a ele, a noção de castigo. A pena é medida de defesa social, firmada na responsabilidade legal. Todo homem que vive em sociedade é legalmente responsável, e apenas isso.

7.6.4.8 Escola sociológica

A escola sociológica foi a última manifestação da escola positiva, sua terceira fase, na qual se salientam Lacassagne e Tarde. Enfatiza a importância dos fatores sociais, em relação aos constitucionais e meteorológicos. É famosa e típica a frase de Lacassagne: a sociedade é o caldo de cultura da criminalidade.

7.6.4.9 Novas escolas

Durante muito tempo as três escolas antes expostas conflitaram e definiram posições ortodoxas.

Ulteriormente houve a derrocada das suas fronteiras, tanto que o Direito Penal, ainda fiel aos princípios da escola clássica, assimilou influência da escola positiva.

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A par disso, abrem­se hoje perspectivas novas sobre a matéria, resultantes do avanço das ciências do homem.

Estas novas contribuições foram trazidas à criminologia pela psicanálise, de Sigmund Freud (1856­1940), a endocrinologia e a genética.

7.6.4.9.1 Psicanálise

A psicanálise foi, na sua origem, uma simples técnica de análise mental, supostamente mais idônea que a hipnótica. De mero capítulo da psiquiatria evoluiu de tal maneira, generalizou a sua influência de tal modo, ocupou tantas áreas diferentes de cultura, que se tornou uma verdadeira concepção do homem. E, a despeito de todas as reservas que se lhe possam fazer, verdade é que desfruta de prestígio no mundo contemporâneo, até mesmo na nomenclatura cotidiana, longe de ser um punhado de trivialidades e imaginações grosseiras, como pretende Guido de Ruggiero.

É inteiramente inviável dar uma idéia da psicanálise em exposição sumária. Só podemos tentá­la por esquema, imperfeito e artificial como qualquer outro, embora capaz de proporcionar uma vaga noção da concepção psicanalítica da dinâmica da vida mental.

Diríamos que a mente tem três estruturas sobrepostas: o inconsciente, o consciente e o superconsciente. Na nomenclatura pscianalítica: id (inconsciente), ego (consciente) e superego (superconsciente).

O id é o subterrâneo da mente, o campo onde estão os instintos, polarizados em dois básicos: a fome e o sexo. Instintiva é a natureza individual do homem. Mas ele, nascendo com esse lastro de instintos e a necessidade de satisfazê­los, como ser animal que é, desde os primeiros momentos da sua vida recebe condicionamento social: isto não se faz, isto não se diz, isto não se pode, isto não se deve. A sociedade lhe impõe uma superconsciência, subordina­o aos seus valores, sujeita­o aos seus padrões pela educação. A sua mente é uma arena, na qual os instintos conflitam com as exigências da sociedade. O ego é a síntese eclética desses fatores contraditórios.

Os instintos, domados pela consciência social, sempre procuram afirmar­se. Tentam burlar o ego, a consciência, que a psicanálise compara a

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um guarda em permanente vigilância. Os instintos às vezes o iludem, como nos sonhos, sob forma simbólica, e daí a importância da sua interpretação. Também por outro processo o ego satisfaz os instintos do id, de uma forma socialmente aceitável: a sublimação. O bandoleiro faz­se policial, e assim descarrega a sua agressividade, o sanguinário faz­se açougueiro ou cirurgião, dando vazão a instintos de uma forma socialmente lícita.

O ego equilibrado logra uma composição satisfatória dos instintos e da consciência. Mas, quando os instintos, em conseqüência de fatos, processos e fenômenos que não vamos aqui citar, são violentamente sufocados, eles podem surgir subitamente em erupção, como um vulcão adormecido que de repente entra em atividade. São como gases, tanto mais potentes quanto mais comprimidos. O delito, em sentido lato, nesta explicação sumamente esquemática, é uma situação crítica neste conflito.

Exagero não será dizer, como Genil Perrin, que, para a psicanálise, todos nascemos criminosos e arrastamos nossa infância conosco, como ser invisível a projetar sua sombra no mundo das nossas realidades, na frase de Robert Waelder. . Os resíduos das nossas tendências criminosas, originárias de uma certa fase no relacionamento pais­filhos, são recalcados no inconsciente, com êxito ou sem ele. Se esse recalque é normal, pode transformar­se, pela sublimação, em tendências sociais, até mesmo altruísticas; se ele é insuficiente e anormal, determinam tendências egoísticas, anti­sociais, criminosas.

Conforme o mesmo autor, a psicanálise aplica­se quase que exclusivamente à criminalidade neurótica, isto é, a resultante de mecanismos mentais inconscientes, significando ora uma satisfação ilícita dos sentidos, ora uma automutilação punitiva. O material recalcado, no caso, compõe­se fundamentalmente de tendências reprimidas, vindas da infância, e de tendências agressivas contra membros da família. A criminalidade neurótica é a persistência anormal da criminalidade infantil congênita e, como tal, produto de uma educação defeituosa.

7.6.4.9.2 Endocrinologia

A endocrinologia remonta há séculos, desde quando se admitia a existência dos humores do homem. A dois nomes, porém, deve o estabelecimento das suas bases científicas: Claude Bernard, que precisou a existência das secreções internas, e Charles Edouard Brown Sequard (1817­

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1894), que lhe retomou os estudos em 1889, seguiram­se­lhes D’Arsonval, Sandstown, E. Gley, Bayliss, Starling e outros.

O indivíduo possui certos órgãos chamados glândulas, que excretam seus produtos no ambiente externo ou no interno, isto é, no sangue. As glândulas lacrimais, as sudoríparas são de secreção externa; o timo, a tireóide, etc., de secreção interna. A endocrinologia aplica­se às últimas.

Os produtos dessas glândulas (os hormônios) exercem influência marcante sobre o comportamento do indivíduo. A conduta, no seu sentido amplo, não resulta apenas dos comandos nervosos, provenientes do cérebro e da medula, mas também dos químicos, os hormônios lançados no sangue, sendo mais atuantes os das glândulas tireóide, supra­renais e sexuais. Daí a conclusão genética de Nicolás Pende: a fórmula endócrina geral governa o determinismo da personalidade.

O mau funcionamento endocrínico responde por profundos distúrbios de procedimento, inclusive pela inclinação à criminalidade. Foi assim que Pende, fazendo afluir para a biotipologia (ciência das constituições, temperamentos e caracteres) os dados da endocrinologia, chegou a construir uma classificação de tipos criminosos, segundo o seu balanço hormonal.

De certa maneira, a endocrinologia restaura o contato da criminologia com a velha antropologia criminal, porque revigora a noção de influência dos fatores constitucionais na vida de relação do homem, com a ressalva, formulada pelo próprio Pende, citado por Afrânio Peixoto (1876­1947), de que as anomalias hormônicas, de per si, não devem considerar­se suficientes, necessárias, mas simples condições facultativas do crime, que se podem substituir por outras.

7.6.4.9.3 Genética

Muito recentemente, está despontando a possibilidade de uma nova contribuição à criminologia, dada pela genética, segundo a análise da fórmula cromossomática.

Todos os seres vivos são formados de células, que são as unidades elementares da construção orgânica. As células desenvolvem dois grandes tipos de função: transformações bioquímicas e reprodução, relacionadas com as atividades do seu núcleo, o qual encerra um número característico (fixo

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para cada espécie vegetal ou animal) de estruturas fibrosas e alongadas, chamadas cromossomos. Os cromossomos representam o arquivo das plantas mestras da célula. Cada um consta de uma cadeia linear de genes, que são as unidades hereditárias fundamentais.

A reprodução celular realiza­se por um processo que lembra o da reprodução fotográfica: o cromossomo cinde­se em duas metades complementares, cada uma funcionando como um modelo para a construção da outra, da mesma forma que uma imagem negativa produz a positiva e vice­ versa. Quando termina a divisão resultam células cujos núcleos apresentam o mesmo número de cromossomos que existiam no núcleo de célula original.

Durante a divisão celular os cromossomos se acham condensados, bastante contraídos, ficando fácil de reconhecer, tanto nas células do homem quanto nas da mulher, a existência de 46 desses elementos. Dos 46 cromossomos existentes nas células masculinas, 22 formam pares homólogos. Em outras palavras, 22 cromossomos possuem, cada qual, um parceiro igual em tamanho e forma, constituindo, portanto, 44 cromossomos. O par restante é constituído por dois cromossomos não homólogos: o maior é determinado cromossomo X e o menor, cromossomo Y. Nas células femininas todos os cromossomos constituem pares homólogos, por que elas não possuem cromossomos Y e sim dois cromossomos X.

Diferentemente do que ocorre com as células de todos os tecidos do nosso organismo, chamadas somáticas, que possuem 46 cromossomos, tanto os espermatozóides quanto os óvulos, isto é, as células sexuais ou gametas, possuem apenas a metade daquele número (23), além de um cromossomo sexual. Isto ocorre porque nas gônadas (testículos e ovários), as células que vão produzir os gametas, sofrem um processo especial de divisão celular antes de formarem as células sexuais. Este processo é denominado meiose em alusão à ocorrência de redução do número cromossômico. Por possuírem apenas metade dos cromossomos da espécie, os gametas são ditos haplóides (haplós = simples), enquanto que as células somáticas são denominadas diplóides (diploós = duplo). Chamando o número haplóide de n, pode­se dizer, também, que os gametas têm n e as células somáticas tem 2n cromossomos.

Tendo em vista a constituição cromossômica da mulher, conclui­se que os óvulos por ela produzidos são todos de um mesmo tipo quanto à fórmula cromossômica, pois, em decorrência da meiose, todos possuem 22 autossomos mais um cromossomo X. As mulheres constituem, portanto, o sexo

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homogamético, enquanto os homens constituem o sexo heterogamético, já que produzem dois tipos de espermatozóides quanto aos cromossomos sexuais, isto é, 22 autossomos mais X ou 22 autossomos mais Y.

Após a fertilização do óvulo pelo espermatozóide (fecundação), forma­ se o ovo ou zigoto, o qual terá 46 cromossomos, 23 de origem paterna e 23 de origem materna, restabelecendo­se, assim, o número diplóide (2n) das células somáticas. O sexo genético do ser que irá se desenvolver a partir do ovo será masculino ou feminino, conforme o zigoto contenha 44 cromossomos autossômicos mais XY ou 44 cromossomos autossômicos mais XX e dependerá, apenas, do espermatozóide, que normalmente terá, além dos autossomos, um cromossomo X ou Y.

O número de cromossomos, assim como o número e ordenação dos genes, em cada cromossomo, é geralmente constante, numa mesma espécie. Podem, no entanto, ocorrer alterações nessas constantes, sendo o fenômeno conhecido como aberrações cromossômicas. A partir de 1959, quando Lejeune e Turpin verificaram que os indivíduos chamados mongolóides apresentavam 47 cromossomos, isto é, apresentavam um cromossomo a mais do que os indivíduos normais, acumularam­se numerosas informações sobre o assunto. Recentemente, informa Manuel Ayres, Jacobs (1965), estudando pacientes mentalmente retardados, com propensões perigosas, violentas ou criminais, verificou que cerca de um terço tinha complemento sexual XYY. Esses achados e os de Casey (1966), numa amostra semelhante, sugerem que um ou mais desses atributos, numa população com essas características, pode estar associado com a presença de um cromossomo Y adicional. Os indivíduos XYY distinguiam­se pela sua altura em relação a outros membros da amostra. Aproximadamente 50% dos criminosos com 1,83m ou mais eram do tipo XYY. Numa pesquisa semelhante Welch (1967) não encontrou, porém, associação evidente entre a constituição XYY e agressividade.

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7.7 DIREITO PROCESSUAL

O Direito Processual estuda o processo em sentido restrito, o processo judiciário, atividade de órgãos do Estado, no exercício da função jurisdicional.

As idéias de Direito Processual e de processo em sentido amplo, expressão debaixo da qual situamos qualquer atividade desenvolvida pelos órgãos estatais visando à formulação e aplicação de normas.

No caso da atividade judiciária, ela culmina com a elaboração de uma norma individual, a sentença. No da atividade legislativa, ela desemboca na de normas gerais, as leis.

Apreciada a sistemática habitual do Direito Positivo, encontramos um tríplice nível de atividade processual: o constitucional (formulação de normas constitucionais), o legislativo (formulação de normas legais) e o judiciário (formulação de normas judiciais).

O desfecho do processo judiciário é a sentença, norma particular, que se dirige a pessoas determinadas e só para elas, participantes do pleito judicial, possui eficácia.

O processo em sentido restrito tem por fim a aplicação de normas gerais (direito substantivo) a casos concretos e particulares. Para que ele se instaure é preciso, via de regra, haja litígio de interesses.

As normas do processo em sentido restrito têm dupla finalidade: dispõem sobre a estrutura dos órgãos que exercem a atividade processual, ou sobre a atividade mesma desses órgãos. As primeiras são orgânicas, as outras, procedimentais.

7.7.1 Dinâmica processual

A dinâmica processual evolui a partir de um fato, que é a infração real ou aparente do Direito Positivo. Consumada a infração, cabe a alguém a iniciativa de aplicar a sanção adequada. A iniciativa se faz como apelo ao Estado para que exerça a função jurisdicional. Pode competir a uma entidade

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do próprio Estado, ou à pessoa direta ou indiretamente alcançada pela infração.

A iniciativa de pedir do Estado a função jurisdicional faz­se pelo exercício do direito de ação, cujo curso obedece a normas de processo em sentido restrito.

Após a iniciativa, a atividade processual atravessa três fases: conhecimento, julgamento e execução. Daí dizermos que existe um processo de conhecimento, um de julgamento e um de execução.

Na primeira fase, o juiz recebe as pretensões recíprocas dos litigantes, suas alegações contraditórias e colhe as provas a que cada um se arrima.

Segue­se a fase de julgamento. O fato deve estar com os seus contornos perfeitamente nítidos, o direito deve ter sido objeto de discussão que eliminou as aparentes contradições. Clareada a matéria de fato, passa o juiz a enquadrá­ la na norma que se lhe aplica. O enquadramento da situação concreta no preceito abstrato do direito positivo é o julgamento.

A última fase do processo é a execução. A sentença conclui por atribuir direitos e deveres. Os deveres impostos são exigíveis. Se a pessoa obrigada à sua execução não o faz espontaneamente, o órgão jurisdicional a compele a fazer, usando, para isso, de recursos de constrangimento.

7.7.2 Princípios do processo

O processo organiza­se e desenvolve­se mediante princípios que variam de acordo com a concepção que se faz da sua natureza e função. As concepções podem se reduzir basicamente a duas: uma privatista outra publicista.

Para a primeira, a atividade processual é consagrada à proteção dos interesses individuais. O processo, no seu conjunto, são regras de uma competição de pretensões. A posição do juiz é passiva, cabendo­lhe deixar que o processo se impulsione e desenvolva pela atuação das partes.

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A concepção publicista vê no processo uma atividade social, ligada a uma função estatal, a qual deve ser organizada, coordenada e impulsionada para a distribuição da justiça, sendo a posição do juiz essencialmente ativa.

Ambos os entendimentos sugerem diferentes princípios do processo: o dispositivo e o inquisitivo, havendo, assim, processos dispositivos e inquisitivos.

7.7.2.1 Princípio dispositivo

Pelo princípio dispositivo, a iniciativa processual pertence ao paciente da infração da norma, a prova é produzida exclusivamente pelos litigantes e as alegações de direito a serem estimadas na sentença são apenas as que aqueles tiverem produzido. Este princípio reflete­se num postulado que foi quase dogma do Direito Processual: o juiz julga segundo o alegado e o provado. O juiz é como que árbitro de um duelo, assiste impassivelmente à atuação dos litigantes. Coordena­os consoante as disposições legais, porém, não tem nenhuma interferência, nem mesmo para o impulso processual, isto é, para a promoção de atos tendentes a desenvolver o processo no sentido convergente da sentença.

7.7.2.2 Princípio inquisitivo

O princípio inquisitivo dá ao juiz ampla liberdade, a ponto de permitir­ lhe a própria iniciativa processual. Confere­lhe autoridade para determinar a produção de provas, quando as partes tiverem sido negligentes e não houverem produzido suficientes para gerar o seu convencimento, e liberdade de pronunciar­se segundo a verdade jurídica, arredando as alegações dos interessados, ultrapassando­as, completando­as, substituindo­as, para decidir, afinal, de acordo com a regra de direito e, assim, distribuir justiça sem atenção ao que os demandantes hajam alegado. À concepção inquisitiva do processo corresponde um aforisma de Direito Processual moderno: o juiz julga de acordo com o seu livre convencimento.

Ambos esses princípios, no seu tom ortodoxo, parecem impraticáveis. Não podemos aceitar um processo totalmente inquisitivo, porque o interesse das partes é sempre respeitável. Nem podemos admitir um processo exclusivamente dispositivo, que sacrifica os interesses superiores da justiça.

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Por isso, um processo é dispositivo, quando nele prepondera o princípio dispositivo sobre o inquisitivo, e inquisitivo quando acontece inversamente.

7.7.2.3 Oralidade

Outro princípio do processo moderno é o da oralidade, que se contraporia, acaso a palavra existisse em vernáculo, ao da escrituralidade. No processo escrito todos os atos são reduzidos a peças escritas: depoimento das testemunhas, laudos dos peritos, razões dos pleiteantes e sentença. A tantos atos processuais acompanharão outros tantos documentos escritos em cujo conjunto se corporifica o processo.

A esse princípio contrapõe­se, pela influência de um outro mais amplo, o da celeridade, o princípio da oralidade, que preconiza o abandono da forma escrita pela oral, na qual se ouvem as partes, inquirem­se as testemunhas, sopesam­se as provas e prolata­se a sentença, tudo num ato apenas oral, restando, quando muito, para efeito de prova e execução, simples notícia lacônica das ocorrências.

A oralidade é de implantação difícil, até mesmo porque falta aos órgãos jurisdicionais uma infra­estrutura de equipamentos permitindo a sua adoção. Por outro lado, a oralidade enfrenta grave obstáculo: a existência de dupla instância processual. Em princípio, as decisões dos órgãos jurisdicionais podem ser revistas, pelo menos uma vez, por instância superior. A maneira pela qual se submete a decisão de um órgão judiciário a outro é o recurso. Ora, se o processo for exclusivamente oral, a instância ad quem, isto é, aquela para a qual se recorre, terá dificuldade de julgamento, dada a ausência de seus titulares aos atos do processo.

Do princípio da oralidade decorrem outros dois: o da concentração e o da identidade física do juiz.

7.7.2.4 Concentração

O princípio da concentração postula que todos os atos do processo sejam realizados com o menor intervalo de tempo possível. Ideal seria que os interessados comparecessem perante o juiz, expusessem os fatos e as razões a que se apegam, produzissem as suas respectivas provas, e o juiz, julgado fatos,

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alegações e provas, de pronto decidisse, porque é evidente que a sua memória só lhe permitiria julgar um feito processado oralmente, se todos os atos fossem recentes em relação à data da sentença.

7.7.2.5 Identidade do juiz

A oralidade também impõe a identidade física do juiz. O juiz perante o qual as provas foram produzidas deve ser o mesmo que prolata a sentença. Se os atos judiciais não são convertidos em documentos escritos, o juiz, para sentenciar, deve ter presenciado a sua prática. Se o processo se inicia com um juiz, deve prosseguir com ele até ser sentenciado. O juiz da instrução deve ser o mesmo do julgamento, o que não é muito comum, porque, dado o grande volume de serviço dos órgãos judiciários, é freqüente haver juizes de instrução que ouvem os litigantes e colhem as provas, e juizes do julgamento que prolatam as sentenças.

Essa duplicidade é defendida por alguns processualistas, convictos de que, sendo assim organizado o processo, o ato de julgamento é mais sobranceiro e tem garantia de mais tranqüilidade e isenção do que teria se coubesse ao próprio juiz de instrução, sensibilizado por elementos extraprocessuais do litígio.

7.7.3 Requisitos do processo

O processo perfeito deve obedecer a quatro requisitos: o lógico, o jurídico, o político e o econômico, formulados por Manfredini e, entre nós, citados por João Monteiro (1805­1904) e Aureliano de Gusmão.

7.7.3.1 Lógico

A primeira qualidade do processo é ser lógico, desenvolver­se à semelhança de um raciocínio, cujo desfecho deve ser a verdade. No processo há sempre duas partes em litígio. A diz que B lhe deve certa importância. B retruca que não deve. O processo se inicia por uma perplexidade. Compara­se ao estado em que estamos quando, entre duas decisões possíveis, ficamos em dúvida e indagamos a nós mesmos o que seria mais acertado fazer, motivados, simultaneamente, pelas nossas razões em conflito, até que uma domina a

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outra, e então nos definimos. Igualmente acontece com o juiz diante de fatos conflitantes e razões contraditórias. O processo não pode se exaurir nessa perplexidade, tem que atingir a sentença que é verdade legal.

O requisito lógico impõe seja a sentença também uma verdade lógica. Para isso, é necessário esteja o juiz, ao termo da causa, em condições de proferir uma sentença justa, o que conseguirá se os atos processuais forem habilmente concatenados.

7.7.3.2 Jurídico

O requisito jurídico exige que os atos processuais sejam coordenados de modo que as partes tenham as mesmas oportunidades. Um processo mal articulado pode criar circunstância em que um dos demandantes leve vantagem.

7.7.3.3 Político

O terceiro princípio do processo é o político.

A ação culmina na sentença. Prolatada, abstração feita dos recursos que se possam interpor dela, inaugura­se a fase de execução. O juiz manda citar a parte vencida para cumprir a sentença. Não sendo cumprida, recorre à coação.

Enquanto não há sentença, não existe direito líquido. Portanto, seria injusto sujeitar qualquer das partes a constrangimento, antes de vencida no pleito.

Ao mesmo tempo, cumpre evitar o processo inócuo, ou seja, aquele que, por falta de constrangimento prévio, a futura sentença se torne ineficaz. Devem ser autorizadas, para isso, medidas anteriores, que já importem coação. Por exemplo, a prisão preventiva é uma coerção antes do julgamento. Ainda se ignora se o acusado é ou não um delinqüente, e, no entanto, já se manda recolhê­lo ao presídio. Mas de nada valeria um processo criminal que desse ao acusado chance de evasão. O mesmo acontece no processo civil. Assim, duas pessoas litigam sobre um objeto do qual ambas se dizem proprietárias, embora uma delas o tenha em seu poder. Acautelando a possibilidade de a outra ser a

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verdadeira proprietária, o juiz determina o sequestro, mandando depositá­lo para garantir a eficácia do julgado.

A eficácia do processo às vezes conflita, como se vê, com a regra de liberdade, pela qual ninguém pode sofrer constrangimento judicial antes da sentença. O princípio político preconiza que as medidas de exceção, anteriores à sentença, sejam mínimas, e adotadas em circunstâncias excepcionalmente justificadas.

7.7.3.4 Econômico

O princípio econômico defende a gratuidade ou, pelo menos, a redução do custo do processo.

Com efeito, é estranho que o Estado, tendo o monopólio da coação e negando ao indivíduo a defesa de seus direitos, destes exija que o apelo à justiça seja retribuído. Tal imposição faz que o processo seja acessível apenas às pessoas melhor aquinhoadas.

O princípio econômico, embora não podendo ser adotado como significativo de total gratuidade, porque envolve o risco da iniciativa processual temerária ou caprichosa, justifica medidas que corrijam o caráter oneroso do processo. Tais são a isenção de despesas e patrocínio judiciário grátis para as pessoas reconhecidamente privadas de recursos econômicos.

7.7.4 Organização judiciária

A função jurisdicional, como qualquer outra, não pode ser exercida sem órgãos. Os órgãos jurisdicionais obedecem a certas normas de organização e funcionamento, as normas orgânicas do Direito Processual.

Examinaremos, apenas, os problemas pessoais ligados ao exercício da atividade jurisdicional: investidura nos cargos iniciais da magistratura, promoção e acesso de juizes e os requisitos da capacidade e independência dos magistrados.

7.7.4.1 Investidura

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À carreira da magistratura, como às outras, o ingresso é dado mediante uma investidura inicial.

Como a magistratura é uma corporação de elite, surgem, em relação ao provimento dos seus cargos iniciais, problemas que não se suscitam em relação aos demais serviços públicos.

Cinco sistemas disputam a preferência: o da eleição, o da livre nomeação, o da nomeação por proposta, o da nomeação ad referendum e o da nomeação por concurso.

7.7.4.1.1 Eleição

O sistema da eleição invoca sua qualidade excelentemente democrática. Se os poderes são três, Executivo, Legislativo e Judiciário, e é regra da democracia que os titulares do poder sejam investidos por eleição, não haverá razão para que assim não sejam escolhidos os do Judiciário. A eleição dos magistrados existe em alguns países, também em certos Estados da Federação norte­americana. Nesse sistema critica­se a sua extrema instabilidade e o sacrifício da independência do magistrado, porque a transitoriedade é da essência dos cargos eletivos. O magistrado eleito, para permanecer em função, deve ser reeleito, o que importa exigir­se dele a prestação periódica de um tributo às imposições de natureza político­partidária.

7.7.4.1.2 Nomeação

No extremo oposto, temos o sistema da livre nomeação, pelo qual os magistrados ingressam na carreira por nomeação do Poder Executivo. O critério firma­se no postulado de que o ato de nomeação é administrativo, e o Executivo é o titular de todas as funções administrativas. A essa razão de ordem teórica, ela mesma suscetível de objeção, contrapõe­se ser a magistratura titular de um poder, o Judiciário, e os poderes deverem ser autônomos entre si. Tal regra de autonomia seria quebrada se o Executivo tivesse completa liberdade de nomeação dos magistrados. E é certo que não é mais salutar para recrutamento de juizes idôneos.

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Há fórmulas ecléticas: a de nomeação por proposta e a de nomeação ad referendum.

7.7.4.1.3 Nomeação por proposta

Pelo primeiro sistema, compete ao Executivo nomear os magistrados por proposta dos próprios colegiados superiores da magistratura. A ele se opõe o comentário de que criaria uma espécie de magistratura em casta fechada.

7.7.4.1.4 Nomeação ad referendum

Ao sistema de nomeação pelo Executivo ad referendum do Legislativo, critica­se que subordina o juiz a conveniências políticas em dois níveis: o das conveniências do Executivo e do Legislativo.

7.7.4.1.5 Concurso

O critério que parece alvo da preferência geral, considerado tecnicamente ótimo e democraticamente salutar, é o da nomeação por concurso, prova pública à qual tem acesso todos quantos não estejam privados de idoneidade moral. No concurso, os candidatos provam o seu tirocínio pela exibição de títulos, e a sua habilitação, pela prestação de provas intelectuais.

7.7.4.2 Promoção

Para a promoção dos juizes há dois critérios: merecimento e antigüidade.

As promoções por merecimento, sem dúvida válidas, como em qualquer outra carreira, e até mesmo em qualquer situação da vida, pretendem ser prêmio ao mérito pessoal. Além disso, se as promoções se fazem exclusivamente pelo mérito, isso estimula o magistrado a preservar sua integridade moral e aperfeiçoar sua cultura, sem o que ficará estagnado nos quadros inferiores da carreira.

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Avaliado teoricamente o critério, é impossível se lhe objetar qualquer restrição. A prática, porém, desmente a sua pretendida excelência, pela inexistência de padrões objetivos de apreciação do mérito.

Ao critério do mérito contrapõe­se o da antigüidade. Há judiciaristas que entendem devam os magistrados ser promovidos de cargos inferiores para superiores, até os culminantes da carreira, exclusivamente por antigüidade, o que lhes daria a certeza de, a seu tempo, serem promovidos, tornando desnecessária qualquer subalternidade para ascensão mais rápida.

No Brasil, as leis adotam ambos os critérios, alternadamente. As promoções se fazem, uma por merecimento, outra por antigüidade.

7.7.4.3 Garantias

Os magistrados exercem uma função excelsa e são, mais do que quaisquer outros servidores públicos, pressionados por uma série de condições adversas ao exercício impecável do seu mister. Por isso, as leis de organização judiciária, no sentido de preservar a sua independência, atribuem­lhes garantias extraordinárias: a vitaliciedade, a inamovibilidade e a suficiência e irredutibilidade dos vencimentos.

7.7.4.3.1 Vitaliciedade

Pela vitaliciedade, o magistrado recebe sua nomeação para toda a vida, naturalmente dentro do limite que condiciona o exercício ativo de qualquer função pública a um máximo de idade. Não pode ser demitido senão por um processo judiciário, no qual lhe é assegurada ampla defesa. Nisso a vitaliciedade distingue­se da efetividade, pois o servidor efetivo está sujeito a demissão por mero processo administrativo.

7.7.4.3.2 Inamovibilidade

Desfrutam também os magistrados de inamovibilidade. O juiz nomeado para uma determinada circunscrição judiciária não será removido para outra, sem sua aquiescência. Cabe­lhe até recusar promoção, que poderia ser forma indireta de retirar­lhe a garantia.

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7.7.4.3.3 Remuneração

Ambas essas garantias jurídicas seriam precárias, se não se lhes acrescentasse outra, de natureza econômica: remuneração suficiente e irredutível.

A magistratura tem que ser suficientemente paga para lograr independência econômica, sem a qual qualquer outra é fictícia. O magistrado deve ganhar a quantia necessária para se manter e à sua família, adquirir os elementos do seu preparo intelectual e assegurar representação compatível com o cargo. E os seus vencimentos devem ser irredutíveis, a fim de que a sua independência não fique à mercê dos poderes Legislativo e Executivo.

7.8 DIREITO DO TRABALHO

O Direito Privado ocidental disciplina as relações contratuais sob a égide do princípio da autonomia da vontade. As pessoas têm, em princípio, a liberdade de contratar entre si quanto lhes convier.

Esse princípio mostrou­se inadequado para reger relações provenientes do desenvolvimento de algumas atividades econômicas, que foram progressivamente adquirindo seu próprio estatuto. Ao conjunto dessas regras que se aplicam a certos tipos de relações humanas polarizadas ao redor de atividades econômicas chamamos, em sentido amplo, Direito Social.

É claro que essa denominação pode ser objeto de reparo, porque não há direito que não seja social. No entanto, é a usual, apesar da sua impropriedade. Não deixa, porém, de ter clareza, porque os estatutos que formam o direito social decorreram da necessidade de apaziguamento dos conflitos de classes, sentida pelo Estado liberal, simbolizada na luta entre o capital e o trabalho. A questão social foi o fator determinante do advento do Direito Social. Daí a adjetivação comum a ambos.

O Direito Social tende a se especializar. No momento, compreende pelo menos quatro ramos: o Direito do Trabalho, o previdenciário, o de minas e o

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rural ou agrário, reduzidos por alguns autores a três, fundindo os dois primeiros num só.

O Direito do Trabalho tutela as relações entre empregado e empregador, caracterizadas pela sua natureza hierárquica e permanente. O Empregador exerce sobre o empregado uma supremacia porque tem o comando da empresa. Por outro lado, as relações entre ambos são permanentes, não se confundem, por exemplo, com as que existem entre um cliente e um profissional liberal.

O objeto do Direito do Trabalho é o regime do trabalho assalariado.

Ao Direito do Trabalho soma­se o da previdência, que dispõe sobre a seguridade social. O previdenciário mira, principalmente, proteger o empregado contra os riscos do futuro, através de medidas ligadas a ocorrência fortuitas: a idade, que traz a incapacidade para o trabalho e lhe faculta a aposentadoria; a doença, que lhe gera a mesma incapacidade, provisória ou definitiva, e faculta um auxílio provisório ou a aposentadoria definitiva; a pensão às pessoas que dependem economicamente do empregado; o seguro contra acidentes, etc. Integra também a previdência social, especialmente nos países em que o poder aquisitivo do trabalhador é ínfimo, a assistência à saúde.

O Direito de Minas é o estatuto dos mineiros. A exploração de minas, atividade que se realiza por uma técnica sui generis. Por outro lado, a própria natureza do trabalho realizado para alcançar tal resultado gerou, também, a autonomia desse ramo do Direito Social, cujos princípios, de um modo geral, se aplicam à administração dos recursos de produção mineral e à distribuição, ao comércio e ao consumo dos produtos minerais. Distinguida a propriedade do solo da do subsolo, a exploração das riquezas deste fugiu ao âmbito do Direito Civil para situar­se nesse novo ramo, que regula os direitos sobre as massas individualizadas de substâncias minerais ou fósseis, encontradas na superfície ou no interior da terra, o regime do seu aproveitamento e a fiscalização governamental da pesquisa, da lavra e de outros aspectos da indústria mineral. A pesquisa consiste na execução dos trabalhos considerados necessários à definição da jazida, sua avaliação e determinação da exeqüibilidade do seu aproveitamento econômico, compreendendo trabalhos de campo (exemplo: levantamentos geológicos) e de laboratório (exemplo: análise de amostras). A lavra é o conjunto de operações executadas para o aproveitamento industrial da jazida, desde a extração das substâncias minerais

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até o seu beneficiamento. Jazida é toda massa individualizada de substância mineral ou fóssil, aflorando à superfície ou existente no interior da terra, que tenha valor econômico. Mina é a jazida em lavra.

Submetem­se às normas do direito de minas a garimpagem, a faiscação e a cata. Garimpagem é o trabalho individual de quem utiliza instrumentos rudimentares, aparelhos manuais ou máquinas simples e portáteis, na extração de pedras preciosas, semipreciosas e minerais metálicos ou não­metálicos, valiosos, em depósitos de eluvião, nos álveos dos cursos de água ou nas margens reservadas, bem como nos depósitos secundários ou chapadas, vertentes e altos morros. Faiscação é o trabalho individual de quem utiliza instrumentos rudimentares, aparelhos manuais ou máquinas simples e portáteis na extração de metais nobres nativos em depósitos de eluvião ou aluvião, fluviais ou marinhos. Cata é o trabalho individual de quem faz, por processos equiparáveis aos da garimpagem e faiscação, na parte decomposta dos afloramentos dos filões e veeiros, a extração de substâncias minerais úteis, sem o emprego de explosivos e as apura por processos rudimentares.

A classe rural, na sua quase totalidade, mora no próprio local de trabalho. Ocorre com o trabalhador rural algo diferente do que sucede ao da indústria urbana, que reside, freqüentemente, muito distante das suas atividades. No ambiente rural, trabalho e vida se entrosam numa unidade existencial, que, por esta condição peculiar, reclama um estatuto jurídico independente, dispondo sobre o trabalhador do campo, protegendo seus interesses e tutelando a sua atividade. Ao conjunto de suas disposições dá­se a denominação de Direito Agrário.

Camilo Nogueira da Gama dá como seu objeto as atividades agrícolas, sob os múltiplos aspectos em que elas se desdobram, num conjunto de atos, fatos e relações em que aparecem a terra, o homem, o trabalho e o capital. Refere­se, ainda, às definições de Giovanni Carrara, Raul Mugaburu, Garbarini Islas e Eurico Bassannelli. Para o primeiro constituem o Direito Agrário normas que regulam a atividade agrícola em suas pessoas, nos bens que a ela se destinam e nas relações jurídicas constituídas para exercê­las. Para Mugaburu, ele é o conjunto de preceitos jurídicos que recaem sobre as relações emergentes de toda a exploração agropecuária, estabelecidos com o fim principal de garantir os interesses dos indivíduos ou da coletividade, derivados daquela exploração. Segundo Islas, o Direito Agrário é o conjunto de normas jurídicas aplicadas especialmente às pessoas e aos bens do campo e às obrigações que tenham por sujeito aquelas ou por objeto a estes.

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Finalmente, para Bassannelli, ele é o complexo e normas jurídicas que regulam as relações atinentes à agricultura.

Ainda na lição de Camilo Nogueira da Gama, tem o Direito Agrário marcante caráter político, dado que a agricultura exige a contínua intervenção do Estado em suas múltiplas atividades, para evitar que estas, deixadas ao seu livre curso, ocasionem a confusão, o desajuste, a injustiça, o desperdício de energias, a exploração capitalista, a ruína das classes menos favorecidas, o pauperismo e outros males. Suas preocupações principais são: propriedade territorial ou fundiária, arrendamentos, regime de exploração em parceria, meação, cercas, tapumes, servidões, caça, pesca, marcas e sinais, padronização e classificação de produtos agropecuários, arbitragem, avaliações, controle leiteiro, registro genealógico e sistema florestal.

Quando, em seguimento, nos referimos ao Direito do Trabalho, nele não estaremos incluindo o previdenciário, o de minas, nem o rural.

7.8.1 Evolução

Na orientação de Aftalión, Olano e Vilanova, a boa compreensão do Direito do Trabalho depende do retrospecto da sua formação histórica. A condição jurídica, econômica e social do trabalho, no curso dos séculos, nos faz compreender as motivações deste ramo novo do Direito.

7.8.1.1 Antigüidade

O trabalho era, na Antigüidade, escravo. O escravo equiparava­se às coisas, não era pessoa, sim objeto de direito. Essa situação pareceu tão normal no mundo antigo, que foi reconhecida até por homens que tiveram a mais alta eminência no pensamento do tempo.

A escravidão é um estado aviltante e, de modo geral, banido do mundo. Mas, se compararmos a condição do escravo à do trabalhador industrial do século XIX, talvez que, do foco exclusivamente biológico, a daquele fosse melhor. O dono do escravo zelava por ele, que possuía um valor econômico, como o homem rural zela pelos seus animais e pelos seus instrumentos.

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7.8.1.2 Idade Média

Durante a Idade Média, sendo a vida econômica fundada na propriedade do solo, a organização social era nitidamente hierárquica, estando na sua base o servo, que, como acessório da terra, pertencia à gleba onde havia nascido.

Há, também, caráter aviltante na condição do servo, embora as relações humanas da época fosse dispostas segundo a idéia de vassalagem, e o servo, salienta Jônatas Serrano, fosse já uma pessoa, não coisa. A vassalagem importava uma relação de reciprocidade. O vassalo prestava serviços ao senhor, mas deste recebia proteção. Havia uma estrutura mais moralizada nessa situação do que na do século XIX, quando o trabalhador tinha condição jurídica livre.

Ao fim da Idade Média surgiram as primeiras cidades e só no clima urbano há ambiente para transformações sociais dinâmicas. Aparecem as indústrias, na sua forma embrionária, o artesanato. O artesão, sendo ele mesmo artífice, fornecedor da matéria­prima e proprietário do equipamento necessário à produção, era um homem economicamente completo, ao contrário do trabalhador moderno, que só dispõe de um elemento produtivo: a sua força muscular. Diz Amoroso Lima que nele ainda não se tinham separado o capital do trabalho. E Rousseau afirmava que de todas as condições a mais independente é a do artesão, tão livre quanto é escravo o lavrador.

Organizaram­se, com grande prestígio, as corporações de artes e ofícios, que visavam ­ daí por que foram vivamente combatidas pelo liberalismo ­ a proteger os artesãos, impedindo a concorrência, e zelar pela qualidade do artigo produzido, para garantir a sua receptividade nos mercados. Eram entidades fechadas, cujos membros se dispunham numa hierarquia que ia dos aprendizes, pelos companheiros, aos mestres. Aprendiz era quem se iniciava como artífice, companheiro, o artesão mais qualificado e, no topo da corporação, dirigindo­a, estavam os mestres, artesões altamente qualificados.

7.8.1.3 Idade Moderna

O trânsito da Idade Média para a Moderna traz o desmantelamento dessa estrutura do trabalho urbano. A Revolução Francesa, motivada por fatores de ordem econômica, ligados à descoberta de novos continentes e às grandes invenções que abriram horizontes amplos de riqueza desfraldou a

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bandeira da total liberdade. Essa liberdade iria, levada ao paroxismo, criar os mais graves problemas sociais.

As corporações de há muito eram acusadas de violar o princípio da liberdade de trabalho.

Por isso, em França, sofreram violento combate, desde antes da Revolução Francesa, oposição que se iniciou em 1776, com a lei de Anne Robert Jacques Turgot (1721­1781), e que se encerrou em 1791, quando foram completamente extintas, pela lei Le Chapelier.

O aparecimento da máquina e o seu aproveitamento na produção, além de haver destruído toda uma estrutura secular da vida humana, segundo afirma Nicolai Berdiaev (1874­1948), transformou radicalmente a economia.

A máquina funcionou como sucedânea da força muscular. O seu emprego desencadeou a Revolução Industrial, prematura na Inglaterra, no século XVIII, mais tardia na Europa continental e na América do Norte, onde ocorreu no século XIX.

7.8.1.4 Revolução Industrial

Conforme informação de Phillys Deane, Arnold Joseph Toynbee (1889­ 1975) apontou como seu marco inicial o ano de 1760. J. U. Nef foi buscar suas origens na passagem do século XVI para o XVII. W. Hoffman entende que a data significativa foi o ano de 1780, quando houve um acentuado incremento na taxa percentual do crescimento industrial, até então estagnada por mais de um século. O próprio Deane esclarece que a convenção corrente é datá­la de a partir da década de 1780, quando as estatísticas do comércio exterior britânico assinalam uma tendência ascendente expressiva. E acrescenta que, segundo essa convenção, W. W. Rostow sugeriu um limite histórico ainda mais preciso e desenvolveu a teoria de que o período compreendido entre 1783 e 1802 se constituiu na grande linha divisória de águas na vida da sociedade moderna.

Como quer que seja, a Revolução Industrial produziu total reforma na estrutura do trabalho. A mais sensível delas foi o trabalho ficar desintegrado da figura do trabalhador, sendo pela primeira vez na história, equiparado às mercadorias. A consciência desse estado influiu incisivamente, acentua

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Ferdinand Tonnies (1855­1936), no ulterior aparecimento das organizações sindicais.

A incorporação da máquina à produção apressou o aparecimento de uma sociedade urbana, desencadeou o êxodo rural, criou grandes parques fabris, grandes bairros e até grandes cidades operárias. A oferta de trabalho passou a ser superior à demanda. Subordinado o trabalho à lei da oferta e da procura, num mercado de oferta excessiva e demanda escassa, o seu preço foi se aviltando, até que mal satisfazia às necessidades rudimentares do trabalhador.

Nisso consistiu a proletarização do trabalhador. A expressão tem conexão com a decantada lei de bronze do salário, a coisa mais típica da economia clássica e liberal. O salário, como mercadoria, está sujeito à lei da oferta e da procura. Ora, o preço de qualquer mercadoria, lançada num mercado competitivo, tende a aproximar­se do seu custo de produção. O custo de produção do trabalhador, sendo o suficiente para que ele se mantenha e prolifere, seria este: salário que lhe dê alimentação para sobreviver e procriar.

As condições do trabalhador foram degradadas como em nenhuma outra época, sem que a sociedade burguesa, afirmam K. T. Heigel e Fritz Endres, tivesse olhos para contemplar essa degradação. Na Inglaterra, a lei estipulava o horário máximo de trabalho de menores em 12 horas. Explorava­se o trabalho do homem, da mulher e da criança. Na frase de Max Stirner (1806­ 1856), citado por Mariano Antônio Barrenechea, o trabalho era a presa de guerra dos ricos. A classe trabalhadora enfrentava o problema, não da melhoria de condições, mas da sobrevivência.

Acontece, porém, quando interesses humanos são violentamente comprometidos, sobrevem reação. Na base desta reação foram construídos os antecedentes do Direito do Trabalho atual.

Nasceu do movimento sindicalista internacional.

A fragilidade do trabalhador decorria de ele ser um homem isolado, e como tal nada podia contra uma estrutura. A partir de quando se formou a consciência de que, pela associação, poderia competir, poderia lutar pela reivindicação de vantagens, definiu­se um momento novo na história do trabalho. Alvoreceu o sindicalismo, movimento obreiro internacional. Os sindicatos, nos quais se pretendeu ver a ressurreição das corporações, foram

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no começo energicamente combatidos, mais tarde tolerados, e finalmente aceitos, como entidades representativas de classes.

Formados os sindicatos, desencadeou­se a luta entre o capital e o trabalho. Os trabalhadores, fortalecidos nas suas associações, dispondo, na sua unidade, de um elemento poderoso de combate, entraram em conflito com os empregadores. Não cabe recordar a história desse conflito, as suas fases agudas, os seus dramas. A ele nos referimos como questão social, guerra entre o capital e o trabalho.

Essa luta abalou os fundamentos do Estado liberal, Estado gendarme, não intervencionista. Chegou a um ponto em que, se o Estado perseverasse na sua indiferença, deixando que patrões e empregados se digladiassem na arena social, ruiriam suas próprias estruturas. Sentiu ele a necessidade de intervir, de abandonar parte do seu liberalismo, de ditar normas protecionistas ao trabalho, limitando a exploração empresarial.

O Direito do Trabalho é produto dessa intervenção do Estado na disputa de classes, quando ela chegou à exacerbação e se transformou em verdadeira guerra civil.

7.8.2 Caracteres

Em decorrência mesmo das circunstâncias históricas que cercaram a sua formação, o Direito do Trabalho apresenta traços característicos, cuja identificação é imprescindível para o seu entendimento.

Dentre esses traços devem ser destacados:

a) protege os interesses da classe trabalhadora;

b) entende o trabalho como um valor, recusando­se a considerá­lo simples mercadoria;

c) padroniza o contrato de trabalho, de modo que suas cláusulas sejam legais, e, em conseqüência, inoperantes os ajustes que se desviem do modelo legal.

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7.8.3 Valores

Em consonância com tais princípios, Mascaro Nascimento cita o elenco dos valores trabalhistas:

a) liberdade de trabalho, sobrepujando instituições e tradições contrárias: escravidão, colonato, servidão, corporação, etc.;

b) valorização do trabalho que, de aviltante e indigno, passou a motor da vida social e cultural, a vértice da economia moderna, nas palavras de Miguel Reale;

c) dever de trabalhar, ônus de todo indivíduo para a comunidade;

d) direito ao trabalho;

e) garantias trabalhistas: sindicalização, escolha de profissão, greves, etc.;

f) igualdade no trabalho; indistinção de sexo, nacionalidade, cor, etc.;

g) justiça salarial;

h) segurança no trabalho, pela proteção à inatividade, à integridade física, à saúde, à higiene, etc.;

7.8.4 Instituições

As principais instituições do Direito do Trabalho, em parte segundo a legislação brasileira, são indicadas a seguir.

7.8.4.1 Duração do trabalho

A legislação trabalhista prevê a duração normal da jornada de trabalho, a qual somente pode ser acrescida de horas suplementares, dentro de certos limites, ou pela ocorrência de necessidade imperiosa.

Essa jornada ordinária é reduzida para certas categorias profissionais, como, por exemplo: ascensoristas, bancários, empregados em serviços de

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telefonia, telegrafia submarina e subfluvial, radiotelegrafia e radiotelefonia, operadores cinematográficos, empregados em câmaras frigoríficas, empregados em minas no subsolo, jornalistas profissionais, etc.

7.8.4.3 Salário mínimo

Aos empregados é assegurada, qualquer que seja a modalidade de prestação do trabalho, uma remuneração nunca inferior à mínima fixada em lei, por dia normal de serviço, capaz de lhes satisfazer as necessidades de alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte.

7.8.4.3 Férias

Ao termo de cada período anual de atividade, tem o empregado direito a repouso, mais ou menos longo, sem prejuízo da respectiva remuneração. Trata­se de medida higiênica, que visa a restaurá­lo da estafa resultante do próprio trabalho. Desse período não se descontam as faltas ao serviço, e o pagamento da remuneração que lhe corresponde deve ser feito até a véspera do seu início.

7.8.4.4 Indenização

Se o empregado é dispensado sem justa causa (improbidade, má conduta, condenação criminal, desídia, embriagues, indisciplina, etc.), cabe­ lhe receber do empregador uma importância em dinheiro, como indenização da dispensa injusta, proporcional ao seu tempo de serviço.

7.8.4.5 Aviso prévio

Pode o empregador, a seu arbítrio, dispensar o empregado, mas é seu dever dar a este prévio aviso da sua deliberação. Se não o faz, sujeita­se a lhe pagar remuneração que corresponde àquela que o empregado receberia durante o prazo de duração do aviso prévio. A comunicação é também devida pelo empregado ao empregador.

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7.8.4.6 Estabilidade

Algumas legislações trabalhistas dão ao empregado estabilidade depois de um período relativamente longo (no Brasil, 10 anos) de serviço efetivo na empresa. Adquirida a estabilidade, ele só será dispensado se cometer falta grave reiterada ou que constitua séria violação das suas obrigações. Ainda nesta hipótese, pode o empregador apenas suspendê­lo enquanto promove a instauração do competente inquérito judiciário, ao termo do qual, comprovada a falta, consuma­se a dispensa.

No Brasil, a partir de 1966, cabe ao empregado optar entre a estabilidade e a sua participação no Fundo de Garantia de Tempo de Serviço. Para a constituição deste, as empresas são obrigadas a depositar, mensalmente, em conta bancária vinculada, importância correspondente a 8% da remuneração paga a cada empregado. A conta bancária é beneficiada pela correção monetária e capitalização de juros. A sua utilização pelo empregado pode ser feita ao final do contrato de trabalho, segundo critérios diversos, se a dispensa resulta de causa justa, de ato unilateral da empresa ou de cessação das atividades desta, ou ainda, durante a vigência do contrato de trabalho, após certo tempo de serviço, para a aquisição de moradia. Em caso de falecimento do empregado, a sua conta transfere­se aos seus dependentes, assim habilitados perante a Previdência Social, e entre eles é rateada, segundo o critério adotado para concessão de pensões.

7.8.4.7 Convenções coletivas

As convenções coletivas de trabalho constituem, fora de dúvida, o fator mais importante na dinâmica atual do Direito trabalhista. Por um lado, assegurando igualdade de competição aos interesses de patrões e assalariados, permitem que estes obtenham daqueles condições de trabalho mais favoráveis do que as estritamente estipuladas em lei. Por outro, permitem também que as condições sejam, pela sua flexibilidade e casuística, mais especificamente adequadas a certas modalidades de trabalho.

As convenções coletivas são acordos de caráter normativo, celebrados entre sindicatos de categorias econômicas (empregadores e profissionais (empregados), dispondo sobre condições de trabalho aplicáveis apenas no âmbito das respectivas representações.

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7.8.5 Justiça do trabalho

A legislação do trabalho tem nítido sentido protecionista. Assegurando ao trabalhador determinadas vantagens legais, ela almeja, com isso, compensar­lhe as deficiências econômicas. Além do mais, os dissídios entre empregadores e empregados reclamam solução rápida, já porque não têm situação financeira compatível com a longa expectativa de um processo moroso, já porque, às vezes, a sua repercussão social impõe pronto desfecho.

Não podiam, assim, as normas de Direito do Trabalho ter a sua aplicação entregue à justiça comum, que se exerce subordinada ao princípio de igualdade dos litigantes e se desenvolve dentro de um formalismo lento e complexo. Em conseqüência, em quase todos os países, existe uma justiça especial para conhecer e julgar os dissídios trabalhistas, sejam individuais ou coletivos.

No Brasil, o Direito do Trabalho praticamente passou a existir depois de 1930, data do movimento revolucionário que pôs fim à chamada I República.

7.9 DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO

Tradicionalmente, define­se o Direito Internacional Público como o ramo do Direito que tem por objeto a disciplina jurídica das relações entre os Estados. Os Estados, como sabemos, têm dupla face, uma interna, outra externa. No plano externo convivem entre si. Ao Direito Internacional Público pertence o regime jurídico dessa convivência.

De certo tempo a esta parte, porém, aquela clássica definição, como pondera Hildebrando Accioly (1888), tornou­se obsoleta, em vista de as relações internacionais não serem entretidas apenas pelos Estados. Outras entidades também dispõem de personalidade internacional, o que basta para pô­las sob a tutela do direito internacional público.

Por outro lado, com a crescente dignificação do indivíduo, ganhou este representação internacional, tendo merecido a condição de destinatário de direito outorgados por atos internacionais, dentre os quais merece referência,

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para exemplo, a Declaração dos Direitos do Homem. Ainda que a execução do que nela se preceitua tenha ficado a depender dos próprios Estados que formam a comunidade internacional, é indiscutível uma acentuada tendência para buscar proteção internacional aos direitos outorgados. Neste sentido se pronunciaram as nações americanas na Conferência Interamericana de 1945.

Também a proteção que a comunidade internacional procura dispensar às chamadas minorias nacionais objetiva, basicamente, os direitos dos indivíduos que as compõem. Matéria tratada, pela primeira vez, na Conferência de Paz que debatia o pacto da Sociedade das Nações, após a I Guerra Mundial, frutificou uma série de tratados versando a situação de minorias existentes na Europa, em relação a certos Estados do continente, ganhando, de então em diante, progressiva importância e sentido universalista.

Contemporaneamente, já não pode haver dúvida quanto a ser o indivíduo sujeito de direitos internacionais. Basta lembrar a existência da Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e as Liberdades Fundamentais, firmada em Roma, em 1950, por 15 membros do Conselho da Europa. Este Conselho, na acertada observação de Gerson de Brito Mello Boson, oferece o melhor exemplo atual, ainda que num quadro relativamente restrito, em matéria de proteção aos direitos individuais do homem.

No seu art. 25.1 legitimou qualquer pessoa, grupo ou organização, como partes para representarem, pedindo acesso à Corte, em caso de ofensa a direito fundamental por Estado signatário.

Dois casos a Corte apreciou com repercussão. O primeiro, analisado por juristas em monografias, foi o da queixa contra a Irlanda, oferecida à Comissão por G. R. Lawless, cidadão que se dizia arbitrariamente preso por incurso em lei de segurança do Estado, e que pedida indenização. Após o termo conciliatório entre as partes, a Corte passou a decidir, julgando as questões preliminares de competência; e, no mérito, resolveu absolver a República da Irlanda, ante a prova do estado de comoção intestina, que autoriza o levantamento por prazo conhecido de certos direitos, tal como prevê a própria Convenção sobre Direitos Humanos e a generalidade das Constituições, na defesa da ordem e das instituições.

O julgamento do caso Lawless, pela primeira vez na história, convocou um Estado soberano perante instituição jurisdicional livremente

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convencionada, para submetê­lo à decisão judicial reclamada por pessoa privada, investida de personalidade de direito internacional.

Tais circunstâncias mostram ser insatisfatória a clássica definição de Direito Internacional Público a que de início aludimos. Na verdade, ele tutela as relações dos sujeitos de direitos subjetivos internacionais. Ora, se tais sujeitos são, além dos Estados, outras entidades e os próprios indivíduos, então será certo conceituá­lo como o ramo do Direito que dispõe sobre as relações de todos esses entes, no plano internacional.

7.9.1 Divisão

O Direito Internacional Público, como qualquer disciplina jurídica particular, divide­se em dois ramos: um teórico, outro prático. O primeiro é formulação doutrinária, obra dos juristas, dos políticos, dos filósofos. É o que se entende deva ser o Direito Internacional Público na sua normatividade ideal. O segundo é o que resulta dos acordos existentes entre os Estados ou conjunto de princípios que, embora não elaborados em texto, são aceitos por eles, principalmente pela força das tradições e dos precedentes.

O Direito Internacional Público prático ou positivo subdivide­se em convencional ou escrito e consuetudinário ou não escrito. O convencional integra o texto de tratados ou convenções firmados pelos Estados, a cuja obediência estes se obrigam. O consuetudinário, como seu étimo o diz, deriva dos usos e costumes internacionais que a prática consagra ao correr do tempo.

7.9.2 Fontes

As fontes do Direito Internacional Público são convencionais e costumeiras, o que corresponde, em escrito paralelismo, à sua divisão em escrito (convencional) e não escrito (consuetudinário).

As fontes convencionais são os tratados e convenções internacionais, e, também, como elementos formadores de ambos, as conferências internacionais. Tratados e convenções versam expressamente sobre as relações entre Estados. As conferências, conquanto nem sempre consagrem disposições conclusivas, representam elemento germinador do Direito Internacional Público positivo. Elimina, progressivamente, as arestas e as contradições

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existentes entre os Estados, o que representa marcha significativa no sentido de pô­los acordes em relação a certos princípios.

O costume é fonte de Direito Internacional como o é de direito interno.

7.9.3 Fundamento

O Direito Internacional Público, em função de suas peculiaridades, justifica a indagação filosófica sobre o seu fundamento. Quanto aos diversos ramos do direito público interno, seria ocioso formular problemas semelhante. São autênticos direitos, porque constituídos por um conjunto de regras que emanam de autoridade competente e, aplicadas por um órgão também competente, têm a garantia da sanção jurídica na sua feição típica de sanção coercitiva.

Assim não ocorre com o Direito Internacional Público. Indagar­se­ia em vão sobre qual o seu legislador, sobre quais os tribunais e que autoridades aplicam as suas sanções. Realmente, os Estados não se subordinam a qualquer legislador internacional, senão e quase sempre apenas na medida das suas conveniências, pelos tratados que aceitam ou impõem no exercício da sua ilimitada soberania. Se infringem uma regra, a nenhum tribunal são chamados. Acaso julgados por um tribunal, nenhuma entidade lhes impõe as sanções cominadas.

Ora, Direito sem legislador, sem tribunais, sem autoridades sancionadoras, será direito? É exatamente esta pergunta que origina o problema sobre o fundamento do Direito Internacional Público.

É evidente que há quem negue a sua existência como direito. A respeito é significativa a frase no nosso preclaro Tobias Barreto (1839­1889), a quem Guilherme Francovich qualifica de orgulhoso e agressivo, num episódio relatado por Omer Mont’Alegre, segundo o testemunho de Gumersindo Bessa, afirmando, certa vez, que o direito internacional nada mais era do que a boca dos canhões. Há, mesmo, quem chegue a considerá­lo prejudicial ao bom encaminhamento das relações internacionais, como sugerem, na América do Norte, as posições de George Kennan e Hans Morgenthau. Mas outros entendem que aquelas peculiaridades negativas antes apontadas não invalidam a sua índole científica, cujas características, pelo plano próprio em que

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incidem as suas normas, não podem ser as mesmas das demais disciplinas jurídicas, atuantes no contexto interno dos Estados.

7.9.3.1 Grócio

Citaremos, em resumo, as teorias mais conhecidas, a começar pela de Hugo Grócio (1583­1645), seu verdadeiro fundador, com a publicação do livro intitulado Do Direito da Guerra e da Paz, em 1613, com o qual lançou, também, as bases da doutrina do Direito Natural.

Segundo Grócio, haveria um direito em si, fruto da própria sociabilidade do homem, cuja existência não poderia ser concebida em função de nenhuma vontade: nem a divina, nem a humana. Este seria o chamado Direito Natural. Haveria, paralelamente, um direito voluntário, divino ou humano, conforme adviesse da vontade de Deus ou da vontade dos homens. O voluntário humano dividir­se­ia em Direito Civil: menos extenso que o civil e mais extenso que o civil. Ao direito voluntário humano mais extenso que o civil corresponderia o Direito Internacional Público, por ele chamado direito das gentes, cuja existência repousaria no consentimento expresso ou tácito dos povos.

Seus princípios e suas convenções teriam por fundamento a própria sociabilidade. Daí a inviolabilidade natural dos pactos internacionais.

7.9.3.2 Pufendorf

A orientação de Samuel von Pufendorf (1632­1694) situa­se na linha de Grócio, num sentido mais radical e numa concepção mais autenticamente filosófica. Para ele, a base única do Direito Internacional Público é o Direito Natural. Estados são como pessoas, e se há uma lei natural que se aplica à conduta destas, haverá também uma lei natural que disciplina a convivência daqueles. Esta lei natural de convivência dos Estados é o próprio cerne do Direito Internacional Público, que nela se exaure, por ser impossível conceber­ se um direito internacional positivo, uma vez que, soberanos, os Estados não podem aceitar autoridade superior à sua.

7.9.3.3 Escola positiva

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Depois de Pufendorf, e adotando posição frontalmente contrária à dele, apareceu a escola positiva, na qual se destacaram Cornelius Bynkershoek (1673­1742), George von Martens (1756­1821) e Justus Möser (1720­1794). Esta escola reagiu contra a jusnaturalística anterior, sustentando que somente seriam objeto de estudo do Direito Internacional Público as regras positivas vigentes na comunidade das nações. Estas, a seu turno, formar­se­iam empiricamente, ao sabor das experiências da vida internacional. Sua validade e seu prestígio deveriam ser estimados pela medida dos precedentes acumulados.

7.9.3.4 Bentham

Jeremy Bentham (1748­1832), o mais renomado teórico do utilitarismo, conduziu sua tese filosófica ao exame das relações internacionais. Para ele, é a simples conveniência recíproca ou comum dos Estados que responde pela formação do Direito Internacional Público. Convém aos Estados que as suas relações obedeçam a uma certa normatividade. E aos internacionalistas cabe, a serviço e pela pressão dessa conveniência, pesquisar as regras que atendam à utilidade geral da comunidade internacional.

As escolas até aqui citadas podem ser todas referidas como antigas. As novas possuem uma estrutura doutrinária mais perfeita e firmam­se em fundamentos teóricos mais válidos. São elas a de Jellinek e Pütter (autolimitação), de Wenzel e Erich Kaufmann (primado do direito nacional) e de Kelsen (normativa).

7.9.3.5 Autolimitação

Jellinek observa que a dificuldade essencial de uma concepção científica do Direito Internacional Público está em que esbarra no princípio da soberania dos Estados. Sendo as regras do Direito Internacional Público, exatamente, limitativas da soberania dos Estados no sentido absoluto, como conciliar os termos desta contradição?

A solução estaria em aceitar uma limitação espontânea dos estados à sua própria soberania. Se os Estados retraem a área da sua autoridade, cabe ao Direito Internacional Público cobrir o vácuo daquela retração.

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Em conseqüência, os deveres internacionais dos Estados são verdadeiras auto­obrigações.

É evidente a vulnerabilidade dessa teoria. As relações jurídicas, qualquer que seja o nível em que se estabeleçam, acarretam sempre direitos e deveres correlatos. Isso é da sua essência. Um direito a que corresponda um dever autônomo, e por isso fundado num assentimento espontâneo, não pode ser considerado como direito.

7.9.3.6 Primado do direito interno

A teoria do primado do direito interno pareceu resolver, de maneira bastante hábil, o problema da contradição entre a idéia de soberania e a existência do Direito Internacional Público.

Como é sabido, os tratados internacionais, ainda que negociados em nível diplomático, só obrigam os Estados participantes, depois de aprovados (ratificados) pelo órgão de seu Poder Legislativo. Passam, então, a fazer parte do direito interno, e deste modo a função daquele poder é precisamente formular esse direito.

Convém ressaltar que essa teoria, além de outros reparos que se lhe podem fazer, é inteiramente insatisfatória para explicar a validade das regras do Direito Internacional Público consuetudinário.

7.9.3.7 Kelsen

A teoria de Kelsen, chamada normativa, pela qual se ajustam Alfred Verdross e Dionísio Anzilotti, é parte integrante da sua própria lógica jurídica. Não se pode, assim, explicá­la, sem invocar os fundamentos desta. Para ele, tendo a ordem jurídica estrutura sistemática e unitária, sob um critério dinâmico de produção escalonada e hierarquizada das normas (desde a Constituição, seguindo pelas leis e regulamentos, até os preceitos concretos e individualizados dos contratos, das resoluções administrativas e das sentenças judiciais), não é possível admitir­se conjuntamente uma ordem jurídica estatal de um lado e, separada e à parte desta, outra internacional, porque a construção jurídica deve, logicamente, ter unidade. Esta unidade pode

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alcançar­se de duas maneiras: ou bem sobre a hipótese da primazia do direito estatal, ou bem sobre a da primazia do direito internacional, caso em que a ordem jurídica estatal haverá de ser tida como demarcação delegada daquela.

O fundamento de uma norma só podendo ser outra, como já antes explicamos em relação ao autora, uma regra de direito internacional jamais poderá estar fundada na vontade singular ou coletiva dos Estados, mas também numa norma, encontrada no imemorial preceito que os latinos formulavam nestes termos: pacta sunt servanda. Em vernáculo, os contratos devem ser observados. A força obrigatória do Direito Internacional Público nasce dessa regra válida em si mesma (recorde­se que Kelsen distingue claramente a validade da eficácia).

O mérito da teoria de Kelsen tem sido também discutido com relação à sua capacidade de explicar a vigência do direito internacional consuetudinário. Mas ele mesmo se refere ao direito internacional, caracterizado pela auto­ ajuda (justiça pelas próprias mãos), como susceptível de ser interpretado da mesma maneira que uma ordem jurídica primitiva, caracterizada pela vingança privada, embora isso apenas referindo­se às suas qualidades técnicas, não quanto à sua existência e à sua validade intrínseca.

7.10 DIREITO CIVIL

A noção de Direito Civil deve ser formulada conforme a oportunidade histórica em que a matéria é considerada. Não se pode alcançá­la sem prévio retrospecto do sentido que a expressão vem tendo, no curso da história, nas fases principais da sua transformação.

No Direito romano, o sentido mais importante em que se empregava a expressão jus civile era para indicar o direito próprio dos cidadãos romanos, por oposição à expressão direito das gentes, jus gentium, que era o direito comum a todos os povos ou a todos os homens, sem distinção entre nacionais e estrangeiros. Era, então, o Direito Civil, um conjunto de regras cuja aplicação estava condicionada à qualificação de cidadania dos indivíduos.

Durante a Idade Média, até pela influência que o Direito romano continuou a exercer, mesmo depois das invasões bárbaras, usava­se da

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denominação Direito Civil para designar o próprio Direito romano, tal como contido nas compilações de Justiniano. O Direito Civil compreendia, ao tempo, todo o Direito, salvo o canônico, próprio da Igreja.

Ainda na Idade Média, mais tarde, com a gradual emancipação do Direito Público, o civil passou a abranger somente o Direito Privado, mas na sua totalidade.

Atualmente, já não é mais o Direito Civil compreensivo da totalidade do Direito Privado. É apenas um dos seus ramos.

Conceituá­lo­emos com o ramo do Direito Privado.

As definições de Direito Civil são tão numerosas quanto os autores. Sem embargo dessa multiplicidade, quase todas o identificam pela indicação das relações jurídicas de interesse individual a que as suas regras se aplicam.

Na doutrina nacional assim ocorre. Almáquio Diniz (1880­1936), por exemplo, diz que o Direito Civil aplica­se à relação entre o indivíduo e a sua pessoa, os seus bens e as suas obrigações.

Serpa Lopes afirma que ele se destina a regulamentar as relações de família e as patrimoniais, formadas entre os indivíduos encarados como membros da cidade.

Eduardo Espínola e Espínola Filho atribuem ao Direito Civil aplicação às relações entre os indivíduos, às relações entre estes e as associações particulares, às destas entre si e às relações entre indivíduos e associações particulares e públicas, quando estas tanto quanto o indivíduo podem atuar como sujeito de direitos e obrigações.

Definições desse tipo são meramente enumerativas, nada esclarecendo sobre a matéria desse ramo do Direito. No esforço de referir todas as relações privadas a que se consagra o Direito Civil, algumas dessas definições são exaustivas. É o que sucede, por exemplo, com a do civilista argentino Raymundo Salvat. Diz ele que o Direito Civil estabelece as regras gerais que regem as relações jurídicas dos particulares, sejam entre eles, sejam com o Estado, enquanto essas relações tenham por objeto satisfazer necessidades de caráter humano e, ainda, regulamenta a família, as obrigações e contratos, a propriedade e outros direitos e as sucessões.

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Tais definições, citando as relações a que as normas presidem, fazem­no em função das pessoas que daquelas participam, sem precisar a sua essência..

A noção de Direito Civil obtém nitidez, quando a entendemos acolhendo a antiga idéia de ser ele o direito privado comum. Com efeito, os indivíduos parecem ocupar em sociedade, mesmo enquanto considerados em relação aos seus interesses estritamente particulares, uma posição genérica e várias possíveis posições especiais. Daí porque podemos aludir a um direito privado comum para todos, e a vários ramos do mesmo direito privado que somente a alguns se aplicam. Por exemplo: há indiferentes profissões. Segundo a natureza especial da sua atividade, sujeitam­se a um regime legal peculiar, que se lhes aplica em função de uma certa modalidade específica dos seus interesses. No entanto comerciantes, agricultores, operários, industriais, funcionários, médicos, advogados, magistrados, antes e acima de tudo, são homens essencialmente iguais uns aos outros. Há uma série de interesses comuns a todos, e fatos que se sucedem a todos igualmente, com a mesma importância e significação: o nascimento, o casamento, a morte, etc. No curso da vida toda as pessoas estabelecem compromissos entre si, possuem algo de sua exclusividade que por morte passam a outras. Exatamente a essas situações, na sua essência idênticas para todos, e às relações que delas emergem é que se destinam as regras de Direito Civil. É por isso que Clóvis Beviláqua, referindo­se ao Direito Civil, no seu sentido objetivo, define­o como o complexo de normas relativas às pessoas, na sua constituição geral e comum.

7.10.1 Divisão

Logicamente, o Direito Civil divide­se em três partes:

a) direito de família;

b) direito das coisas;

c) direito das obrigações.

Cada uma dessas partes corresponde a uma instituição autônoma: família, propriedade e obrigações.

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No entanto, no Direito Positivo, àquelas partes acrescenta­se o direito das sucessões, dispondo sobre a transferência do patrimônio das pessoas após a sua morte.

Se analisarmos a estrutura do direito sucessório, veremos que é a fusão de elementos retirados do direito de família, do da propriedade e do das obrigações. É que o vínculo entre o sucedido e o sucessor tem natureza pessoal patrimonial, idêntico ao obrigacional, e a sucessão é um meio pelo qual a propriedade de alguém se transfere a outrem, segundo, e princípio, a relação de família entre ambas.

7.10.1.1 Seriação sistemática

Aceita a divisão do Direito Civil em quatro partes (família, propriedade, obrigações e sucessões), é polêmica a maneira pela qual devem elas compor­ se sistematicamente, em especial quando se cuida do ramo inaugural, aquele que deve iniciar a sistematização.

Os classificadores dividem­se em três grupos:

a) os que, como Roth, Giuseppe D’aguanno (1862­1908) e Beviláqua, começam pelo direito de família;

b) os que partem do direito de propriedade, como Gierke, Pietro Gogliolo, Savigny e Carlos de Carvalho;

c) os que entendem deva­se principiar do direito das obrigações, entre os quais estão F. Endemann, Heinrich Dernburg (1829­1907) e Coelho Rodrigues (1846­1919).

Os que iniciam a exposição sistemática pelo direito de família consideram que a este corresponde uma instituição primordial na própria história da vida humana. Para os que iniciam pelo direito das obrigações, é considerado relevante o conhecimento deste porque a sua noção fundamental, a de relação jurídica, é significativa para todos os ramos do Direito. E os que principiam pelo direito das coisas (propriedades) são sensíveis ao fato de ser ele o mais fácil dos ramos do Direito Civil.

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O Código Civil Brasileiro, que resultou de anteprojeto elaborado por Clovis Beviláqua, começa pelo direito de família e segue, em ordem, pelo das coisas, o das obrigações e o das sucessões. No entanto, no ensino jurídico, nem sempre é esse o critério de sistematização adotado, preferindo­se partir do direito das obrigações.

7.10.2 Conteúdo

Tomando para referência o Código Civil Brasileiro, e deste destacando a chamada Lei de Introdução (que encerra preceitos aplicáveis a todos os ramos do direito civil), o Direito Civil divide­se em duas partes: uma geral, outra especial.

Na parte geral dispõe:

a) sobre as pessoas, sua divisão em naturais e jurídicas e seu domicílio;

b) sobre os bens e sua classificação

c) sobre os fatos jurídicos e a aquisição de direitos e seu perecimento.

A parte especial divide­se nas quatro já citadas: família, coisas, obrigações e sucessões.

Na parte de direito de família, cuida do casamento, seus efeitos jurídicos e regimes de bens, da dissolução da sociedade conjugal, da proteção à pessoa dos filhos, das relações de parentesco, da tutela, da curatela e da ausência.

Na de direito das coisas, refere­se à posse, à propriedade, aos modos de aquisição e perda desta, aos direitos reais sobre coisas alheias, etc.

A parte relativa ao direito obrigacional estuda as obrigações em geral, sua divisão, efeitos, etc., e as obrigações em espécie.

Na última parte, o Código dispõe sobre a sucessão legítima e a testamentária, o inventário e a partilha.

7.10.3 Modificações atuais

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Passa o Direito Civil, de algum tempo a esta data, por acentuadas modificações, que assumem tal porte a ponto de alguns autores se referirem a uma verdadeira crise do Direito Civil. Outros preferem aludir à publicização do Direito Civil. E terceiros, à sua socialização ou proletarização. Para Hely Lopes Meirelles, passamos de um liberalismo extremado que privatizou o direito público para um socialismo atenuado, que vem publicizando o Direito Privado.

Para que possamos compreender esse processo, faz­se mister remontar às influências históricas que plasmaram o moderno Direito Civil. Uma delas foi o Cristianismo, por ter sido o primeiro a reconhecer a liberdade humana e a desvincular a criatura quer da propriedade do seu dono, quer do poder do pai e do marido. A outra adveio da concepção de liberdade trazida pela Revolução Francesa e consagrada pelo Código de Napoleão, que considerava a liberdade como franquia total da propriedade e como consagração da mais ampla autonomia contratual e como norma segundo a qual todas as coisas devem ser julgadas de direito (Jorge A. Frias).

De tudo isto resultou que o Direito moderno apresentou durante muito tempo, como a mais característica de suas facetas, o individualismo, que o fazia insensível a qualquer tipo de exigência social.

A afirmação, em tom quase dogmático, da propriedade como um direito absoluto e ilimitado, e do princípio pelo qual os indivíduos podiam contratar livremente entre si, estabeleceu situações que, embora legais, foram se tornando progressivamente intoleráveis pela sua injustiça.

Processava­se a chamada Revolução Industrial, a cujas conseqüências já nos referimos. O Direito Civil começou a mostrar sintomas de inadaptação exatamente para o mundo que emergiu daquele acontecimento. O seu estatuto das relações humanas a tal ponto pareceu odioso que certo autor chegou a se referir a ele como o direito do marido, do proprietário e do patrão.

As modificações operaram­se no Direito Civil em dois sentidos:

a) certas relações e regime de certos bens foram subtraídos a este, passando a temas de estatutos autônomos;

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b) outras situações passaram a obedecer a regras de inspiração menos privatísticas, conforme a preocupação social de proteção às pessoas mais fracas.

Como exemplos do primeiro item figuram a subtração dos contratos de trabalho ao Direito Civil e a criação de estatutos especiais sobre o aproveitamento da energia hidráulica, das riquezas do subsolo, da caça, da pesca, etc.

Considerando as instituições que continuaram contidas no Direito Civil, apenas alteradas pelo que se chamou de sua socialização, as transformações ocorridas devem ser mencionadas em relação a cada um dos seus ramos.

7.10.3.1 Família

Neste ramo apontam­se a crescente proteção jurídica aos filhos naturais, em tudo já quase equiparados aos legítimos, e à proteção à concubina, também para muitos efeitos patrimoniais e assistenciais equiparada à esposa, para a qual Adahyl Lourenço Dias patrocina a incorporação de preceitos expressos à lei civil, a exemplo do que se observa no direito trabalhista e de previdência social, evitando­se a controvérsia jurisprudencial que a sua situação tem ensejado. Cite­se, também a radical transformação do conceito do pátrio poder, que passou de uma soma de direitos para uma de deveres, de modo que a autoridade conferida aos pais tem mera natureza instrumental, isto é, a de meio para o cumprimento daqueles deveres. A esposa foi promovida juridicamente ao mesmo nível do marido. Deve­se aludir, ainda, à profunda transformação verificada no instituto da adoção, outrora um expediente jurídico que atribuía prole a quem naturalmente não pudesse tê­la, hoje modalidade por excelência de assistência às crianças desamparadas.

7.10.3.2 Propriedade

Talvez esta tenha sido a parte do Direito Civil que sofreu maior modificação. A propriedade deixou de ser instituição fundamentalmente destinada a servir aos interesses individuais. Passou a ter legitimação e extensão julgadas na medida da sua função social. Daí certa limitação dos bens suscetíveis de apropriação particular, como, a caça, a pesca, as minas, etc., e o fato de a apropriação mesma dos bens não estimados como riquezas

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públicas ter o seu exercício condicionado e confinado pelo interesse social, além dos encargos atribuídos ao proprietário, que Hermes Lima 1902­1978) considera a face mais significativa das restrições atuais ao direito de propriedade. Ampliou­se o horizonte das desapropriações por ato do poder público, antes somente feitas em rígidos e poucos casos de necessidade ou utilidade pública. Os conceitos de utilidade e necessidade dilataram­se, com o que se definiram novas hipóteses que justificam a desapropriação. Consoante resume Sabino Álvarez Gendim, a causa eficiente das desapropriações tomou formas desconhecidas, muito menos rígidas, severas ou individualistas, que, impondo­se em certas esferas e para certos fins de conveniência social, jamais poderiam ser formuladas segundo a concepção conservadora do Estado liberal. Finalmente, adveio um novo caso de desapropriação, típico da crescente preponderância do interesse social no julgamento da legitimidade da propriedade: a desapropriação por interesse social, dos bens improdutivos pela ociosidade dos seus proprietários.

7.10.3.3 Obrigações

Neste campo do Direito Civil as alterações efetuadas traduzem restrições ao princípio da liberdade contratual. Como já foi antes notado, a plena liberdade de contratação pode ser inócua se as partes contratantes estão em condição de desigualdade econômica. Nesta hipótese, a parte mais forte impõe ao contrato as cláusulas de sua exclusiva conveniência, de modo que somente para ela tem sentido a liberdade de contratar, enquanto que para a outra, na verdade esta liberdade não existe.

Estas considerações levaram ao que se convenciona chamar de dirigismo contratual, ou seja, certos contratos são tutelados pelo Estado, não sendo, portanto, em relação a esses, exclusiva e total a eficácia da vontade dos interessados.

Mencionaremos, em seguida, as manifestações mais expressivas e gerais dessa tendência.

Uma dessas manifestações é a fixação de um teto limite de juros no contrato de mútuo.

Outra é a imposição, por força de lei, de cláusulas obrigatórias em alguns contratos, como no de locação (limitação e congelamento de aluguéis,

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proibição de certas exigências aos inquilinos, etc.), no de transporte, no de arrendamento rural, no de parceria agrícola, etc.

Há contratos em que é mais acentuado o dirigismo contratual. Por exemplo, nas locações de prédios destinados a comércio, o contrato pode ser renovado compulsoriamente, cabendo à autoridade judicial fixar o valor do respectivo aluguel.

Encontramos uma das mais importantes manifestações do dirigismo contratual na atualizada aplicação da cláusula rebus sic stantibus, a qual, segundo Arnoldo Medeiros da Fonseca, foi elaborada pelos juristas do Direito canônico e aplicada, principalmente, aos contratos de prestações continuadas ou trato sucessivo. Por ela, diz­se que, em certos contratos, o vínculo se deve considerar subordinado à permanência do estado de fato existente ao tempo de sua formação, de modo que, se este é modificado por motivos supervenientes e imprevisíveis, a força obrigatória do contrato cessa, incumbindo à autoridade judicial revê­lo ou rescindi­lo. Como se vê, admite­se, na hipótese, modalidade insólita de pronunciamento judicial sobre contratos, já não mais para assegurar­lhes a eficácia e sim para revê­los ou extingui­los, contra a vontade de uma das partes. Resta, porém, em relação à matéria, o problema que se encontra suscitado por Karl Larenz, quanto à conveniência de ser o emprego do julgamento fundado nessa cláusula generalizado ao exame de todos os contratos, sem nenhuma limitação a pressupostos de fato determinados por circunstâncias temporárias. O próprio Larenz opina negativamente, entendendo que, como instituição permanente, viria a quebrar todo o sistema do direito obrigacional, por contrair os princípios fundamentais em que o mesmo se baseia. Entre nós, Paulo Carneiro Maia, invocando José A. Prado de Fraga, Eduardo Espínola e Francisco Campos, defende a sua inclusão no Direito Positivo (dado que ainda hoje é matéria de criação jurisprudencial), exigindo, porém, de igual modo, que para caracterizar sua aplicação seja necessária a existência de um acontecimento extraordinário.

7.10.3.4 Sucessão

No direito sucessório, as manifestações mais evidentes da tendência à socialização podem ser assim alinhadas:

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a) proibição da sucessão de bens de produção, admitida, apenas, a de bens de uso e consumo, situação que apenas prevalece nos países radicalmente socialistas;

b) limitação da vocação hereditária a descendentes, ascendentes e irmãos;

c) pesada e progressiva taxação fiscal.

7.11 DIREITO COMERCIAL

Direito comercial é o ramo do direito privado que objetiva a exposição e aplicação das normas relativas à atividade mercantil.

Destinam­se, portanto tais normas a uma atividade econômica, mas ressalve­se desde logo que o conceito jurídico de comércio é mais extenso do que o seu correspondente econômico.

Comércio, em sentido restrito, no elenco das atividades econômicas, é a atividade que se intercala entre a produção e o consumo das riquezas. Quem a pratica exerce mediação diretamente ligada à circulação das mercadorias. Comerciante é quem adquire mercadorias para revendê­las. Fá­lo na expectativa de uma vantagem (o lucro) que espera conseguir pela obtenção de um preço de venda superior à soma do preço de compra, das despesas de transporte e dos encargos fiscais. Como esse resultado satisfatório é incerto, porque o preço das mercadorias, no momento de serem entregues ao consumidor, é afetado por inúmeras circunstâncias, nem todas facilmente previsíveis, a vantagem esperada é aleatória: poderá ou não ser obtida. Por isso, o comércio é atividade especulativa.

O comércio, durante muito tempo, foi concebido como simples iniciativa intercalar entre a produção e o consumo. No entanto, com a transformação pela qual passou a sociedade após a Revolução Industrial e o incremento da economia capitalista em larga escala, tudo aliado à extraordinária multiplicação e rapidez dos meios de transporte e comunicação, está ultrapassando este conceito limitado. Donde um sem número de atividades outras, sem aquela característica originária, que são também consideradas comerciais, e, consequentemente, subordinadas ao direito

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comercial. Assim, por exemplo, bancos, seguros, bolsas de valores, leilões, etc.

7.11.1 Comércio

Waldemar Martins Ferreira confere à noção de comércio o caráter de síntese de quatro elementos: troca, moeda, transporte e crédito.

Troca é o fato social embrionário e condicionante da existência do comércio. Decorre de uma condição inerente ao próprio homem, que está na base de um processo sem o qual seria impossível qualquer evolução social: a diferenciação das atividades individuais.

Pela diversidade da sua constituição e das suas habilitações, não podem os homens entregar­se, com os mesmos resultados, a todas as atividades. Por isso, ultrapassado bem cedo o recuadíssimo momento em que cada um podia satisfazer todas as suas necessidades, logo passaram a dedicar­se a uma atividade exclusiva. É claro que alguém, dedicando­se a um só trabalho, produz muito mais do que reclamam as suas necessidades. Daí a iniciativa intuitiva de permutar o excedente da produção individual de um com o excedente da produção de outro. Dá­se a troca direta de mercadorias. Quem somente pesca, por exemplo, troca o produto de seu labor por cereais com quem somente planta.

É de ver a insuficiência desse sistema para a satisfação das heterogêneas necessidades humanas, tanto mais agravada quanto mais se intensificava a especialização do trabalho.

Sobreveio, assim, o imperativo de se encontrar artigo que, pela sua utilidade universal, pudesse operar como denominador comum de todas as riquezas. Se tal houvesse, já então não estaria o homem sujeito ao azar de ocorrer ou não a coincidência necessária para a permutação direta das utilidades. Trocar­se­ia, então, qualquer mercadoria por essa de utilidade universal, e esta por qualquer outra mercadoria, quando e onde fosse oportuno.

A moeda veio exatamente atender a essa necessidade, como mercadoria capaz de ser permutada por qualquer outra, funcionando como denominador comum das riquezas. Nem foi ela, na sua origem, in natura, senão mesmo mercadoria no sentido usual da palavra. Com efeito, o gado foi, durante muito

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tempo e para muitos povos, moeda, o que está explícito na significação etimológica da palavra latina pecunia. Mais tarde, passou também a ser, como ensina Louis Baudin, medida e reserva de valor ou instrumento de poupança.

Quando apareceu a moeda a permuta se transformou em compra e venda, operação na qual bens heterogêneos são balanceados em referência a um terceiro valor (preço), pelo qual são estimados.

O transporte veio depois integrar essencialmente a noção de comércio. A partir dele a atividade mercantil passou a exercer a sua função econômica característica de promover a circulação das riquezas.

Dinamizada a vida comercial, sobrevieram outros problemas, entre eles o de que a compra e venda de mercadorias nem sempre podia ficar condicionada à disponibilidade imediata da moeda. Veio, então, o crédito originariamente facultado às transações entre produtores e comerciantes, ou destes entre si, e também aos negócios entre comerciantes e consumidores. Mais tarde, o crédito passou a desempenhar talvez a sua missão econômica mais relevante, como processo de circulação incorpórea da moeda. Além disso, outros efeitos úteis, todos com incidência direta sobre a atividade mercantil, podem­lhe ser atribuídos, no ensinamento de E. Laveleye (1822­ 1892), citado por Carlos Porto Carreiro: a) proporciona ao trabalho o capital de que carece para produzir; b) dá emprego a economias, impedindo a ociosidade do capital; c) faz passar o capital para as mãos daqueles que melhor podem utilizá­lo; d) permite a execução imediata de grandes trabalhos, obras e empreendimentos.

7.11.2 Divisão do comércio

O comércio divide­se segundo três critérios: quanto ao espaço, ao tempo e ao modo.

Quanto ao espaço, pode ser: terrestre, náutico, aéreo, interno e externo.

O terrestre é o sedentário ou o que utiliza transportes terrestres: caravanas, ferrovias, rodovias.

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O náutico, aquele no qual o transporte das mercadorias se faz por água. Subdivide­se em marítimo, fluvial e lacustre, conforme as águas sejam de mares e oceanos, rios e lagos.

O marítimo, a seu turno, pode ser de grande e pequena cabotagem. Pequena cabotagem é a da navegação costeira. Na grande cabotagem as embarcações cruzam mares e oceanos.

Qualquer que seja o meio de transporte utilizado, o comércio, ainda quanto ao espaço, pode ser: interno e externo. Interno é o que se realiza no interior das fronteiras de um Estado, e, externo, entre lugares de Estados diferentes.

O comércio externo pode ser de importação, de exportação, de reexportação e de trânsito.

Em relação às praças às quais as mercadorias se destinam, o comércio é de importação. O mesmo fato, visto das praças das quais as mercadorias provêm, constitui comércio de exportação.

Às vezes uma certa mercadoria é importada para, depois de beneficiada, ser exportada. Essa operação é freqüente nos países parcos de recursos naturais mas ricos de industrialização e tecnologia, como o Japão. Esse comércio é chamado de reexportação.

Comércio de trânsito ocorre quando as mercadorias, saindo de uma praça localizada no território de um Estado para Estado diverso, têm de atravessar um terceiro que entre eles se intercala. Em relação ao Estado intercalar essa modalidade é chamada comércio de trânsito, podendo representar resultados econômicos que consistem nas vantagens auferidas com a cobrança de fretes, estivas, capatazias, armazenagens, taxas diversas, etc.

Quanto ao tempo, há comércio em tempo de paz e comércio em tempo de guerra, sendo claro que esta divisão apenas se aplica ao comércio externo.

O comércio em tempo de guerra sofre determinadas restrições. Pode ser direto e indireto. Direto se as mercadorias navegam em embarcações de bandeira dos beligerantes, indireto se em embarcações de países neutros.

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Quanto ao modo, o comércio se efetiva por atacado e a varejo. No comércio por atacado, o vendedor não contata com o consumidor. É realizado em grande escala e diretamente do produtor ao comerciante ou aos seus distribuidores e revendedores. Quase sempre é especializado, girando com mercadorias da mesma natureza: gêneros alimentícios, tecidos, produtos farmacêuticos, veículos automotores, etc.

O comércio a varejo, também chamado retalhista, faz­se entre o comerciante e o consumidor, segundo as necessidades quantitativas deste. Tira a sua denominação de uma antiga medida de extensão, a vara. Ao contrário do comércio por atacado, é quase sempre heterogêneo, o que atinge o máximo nos atuais magazines, drugstores e supermercados.

Devem ainda ser referidas duas subdivisões do comércio:

a) público e privado;

b) sedentário e ambulante.

O privado é o promovido pela iniciativa individual. O público tem esta qualificação quando é posto sob tutela do Estado e quando é monopólio deste.

O sedentário realiza­se sempre no mesmo local. É o chamado comércio estabelecido. O ambulante desloca­se de um lugar para outro. O comércio das caravanas, na Antigüidade, por exemplo, era ambulante. Nos centros urbanos existe intenso comércio ambulante de artigos de pequeno porte e baixo preço. No chamado ciclo da borracha havia na Amazônia ativa e rica modalidade de comércio ambulante, o regatão. Embarcações abundantemente supridas de mercadorias diversas iam de um ponto ao outro da extensa rede hidrográfica, nos quais vendiam as suas mercadorias ou as permutavam por borracha, para vendê­la nos locais de exportação.

7.11.3 Ato de comércio

Tópico crucial do Direito Comercial é a idéia de ato de comércio. Podemos dizer que ela está para o Direito Comercial assim como a de ato administrativo para o Direito Administrativo e a de crime para o Direito Penal.

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Enquanto o comércio foi apenas atividade profissional nenhuma dificuldade existia, pois o ato mercantil era exatamente aquele praticado por quem a exercesse. De alguns anos para cá, todavia, a vida comercial se tornou extremamente complexa, ocorrendo o quase se chama de comercialização da vida, o que levou certas atividades, em si mesmas não comerciais, a ficarem sujeitas ao Direito Comercial, se exercidas em regime empresarial.

Para definir o que seja ato de comércio nos valemos de elementos subjetivos e objetivos.

O ato mercantil pode ser caracterizado subjetivamente, isto é, em função da pessoa que o pratica (o comerciante). Este é, na linguagem do nosso Código Comercial, quem faz da mercância profissão habitual. Ato de comércio é aquele para o qual concorrem três elementos: ser intermediário, possuir fim lucrativo e ser a profissão habitual do agente.

Mas atos de comércio há sem aquelas características. No entanto, não deixam de sê­lo, desde que assim determina a lei comercial. Por outras palavras, se um ato está sujeito à legislação mercantil, é ato de comércio, qualquer que seja a sua intrínseca natureza. Neste caso, o ato é considerado de comércio na sua própria objetividade, independentemente da sua função econômica e do fim da profissão de quem o pratica.

7.11.3.1 Classificação

É tradicional, no Brasil, a classificação de José Xavier Carvalho de Mendonça (1861­1930):

a) atos de comércio por natureza;

b) atos de comércio por dependência ou conexão;

c) atos de comércio por força de lei.

Atos de comércio por natureza são em regra aqueles caracterizados pelo elemento subjetivo. Sendo o ato de comércio íntegro (não pode ser mercantil para uma das partes e não para outra), são atos de comércio por natureza todos aqueles praticados por comerciantes no exercício da sua profissão.

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Exemplos:

a) compra ou troca de coisas móveis para revenda;

b) compra de gêneros de um comerciante a outro;

c) compra de gêneros por pessoa não comerciante a comerciante;

d) compra de madeiras para revendê­las depois de manufaturadas, etc.

São atos de comércio por dependência ou conexão os que, não sendo mercantis por si mesmos, são assim tidos porque praticados em virtude ou num interesse do comércio.

Exemplos:

a) compra de qualquer objeto feita por comerciante para o exercício de seu comércio;

b) aquisição de máquinas para o desempenho da profissão comercial;

c) mandato para a gestão de negócios mercantis;

d) gestão de negócios mercantis, etc.

Finalmente, são atos de comércio por força de lei aqueles em relação aos quais é indiferente sejam praticados por comerciante ou não, uma só vez ou reiteradamente. São atos cuja comercialidade se arrima numa declaração legal.

Exemplos:

a) operações relativas a letras de câmbio e notas promissórias;

b) operações relativas a seguros marítimos, riscos e fretamentos;

c) cheques, etc.

J. M. de Carvalho Santos patrocina uma classificação mais simples, dividindo os atos de comércio apenas em duas categorias:

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a) os que tiram o seu caráter de lei;

b) aqueles cuja comercialidade depende da qualidade comercial de quem os pratica.

7.11.4 Tendências atuais

À ampliação da atividade comercial correspondeu paralela extensão do Direito Comercial. Além dos seus ramos tradicionais (direito comercial terrestre e marítimo), surgiram verdadeiras novas disciplinas jurídicas mercantis, para as quais alguns doutrinadores têm pleiteado autonomia.

São elas: o Direito Industrial, que protege a propriedade industrial (patentes de invenção, insígnias, marcas de fábricas, etc.), o Direito Cambial (títulos cambiais), o Direito Falimentar (que dispõe sobre como se resolve a insolvência do devedor comerciante), o Direito Securitário (operações de seguro) e o Direito Aeronáutico, cuja autonomia, na opinião de Otto Riese e Jean T. Lancour, se justifica por analogia à do Direito Marítimo.

7.12 DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

A existência do Direito Internacional Privado está subordinada a duas circunstâncias, que se podem eliminar por abstração, jamais realmente: a diversidade do Direito Privado de cada Estado, o que, assinala o clássico Pasquale Fiore (1837­1914), é um fato natural, e a mobilidade dos indivíduos acrescida do fato de as suas relações jurídicas nem sempre se projetarem apenas no limite espacial de um ordenamento jurídico.

Com efeito, sendo o Direito Internacional Privado a disciplina que ministra soluções para os conflitos das leis no espaço e existindo estes apenas quando, numa situação jurídica, há um elemento estrangeiro, fácil é constatar que sem aqueles pressupostos ele não existiria.

Se o Direito Privado dos povos não variasse, não haveria conflitos pela uniformidade da legislação. E se as relações jurídicas estivessem confinadas

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ao território de cada Estado, igualmente não haveria, por impossível, neste caso, como invocar­se norma estrangeira.

Mas a realidade é bem diversa. Ao contrário, aumenta sempre a mobilidade dos indivíduos e internacionalizam­se progressivamente as relações jurídicas. Observa Haroldo Valadão que, com a extraordinária intensificação dos meios de comunicação, tornando vizinhos os pontos mais distantes do globo, quebrando desconfianças e preconceitos, as relações humanas pessoais ou por mensagens, familiares e econômicas, multiplicam­se a cada momento entre pessoas de origens diversas, de nações, de Estados, de províncias, de religiões, de raças, de costumes diferentes. Como resultado, são cada vez mais freqüentes situações jurídicas nas quais entram em choque leis autônomas, cada qual com a sua órbita, sem dependência hierárquica de umas a outras.

O Direito Internacional Privado apresenta uma característica que o distingue dos demais. Enquanto estes prevêem fatos e indicam conseqüências, ele prevê conflitos de preceitos e dispõe sobre como resolvê­los. As suas normas não são sobre fatos, mas sobre normas. Daí ser considerado, com inteira propriedade, um superdireito.

Em relação à evolução histórico­doutrinária da matéria e aos sistemas de solução dos conflitos das leis no espaço, remetemos o leitor ao que será exposto no capítulo 8.5.

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8 Técnica Jurídica

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8.1 TÉCNICA JURÍDICA

A técnica jurídica é um departamento da ciência do Direito, ao lado da sistemática jurídica. O seu objeto, como já antecipamos, é o estudo dos problemas relacionados com a aplicação do Direito Positivo aos casos concretos. Referimo­nos apenas à técnica de aplicação, que cabe em princípio ao Poder Judiciário e que se realiza visando a fins singulares, não à de formulação, que interessa ao Legislativo e busca fins gerais.

A aplicação da norma ao caso está condicionada pela estrutura daquela, na qual se conjugam dois elementos: pressuposto e disposição. O pressuposto prevê, genericamente, uma hipótese possível; a disposição indica a conseqüência que, numa situação específica, alcançará a pessoa que naquela hipótese se encontrar. Aplicar o Direito consiste sempre em caracterizar um fato e enquadrá­lo numa hipótese, para aplicar à pessoa ligada àquele a conseqüência prevista na disposição.

Por isso é que se diz que a técnica de aplicação opera consoante uma fórmula silogística, na qual a premissa maior é a norma, a menor é o fato, e a conclusão é a imputação da conseqüência normativa a alguém. Exemplificando: dado que o locatário deve pagar o aluguel ao senhorio (premissa maior), e sendo fulano locatário de sicrano (premissa menor), deve ser que fulano deva pagar o aluguel a sicrano (conclusão imputativa).

Esse esquema simplista não resolve todas as dificuldades que a aplicação da norma enfrenta. Nem é o único que nos permite compreendê­la, mas está adotado aqui pela sua clareza.

A conclusão imputativa há de ser feita sempre a alguém. Essa operação pode ser simples ou complexa.

Assim, se duas pessoas contratam entre si, é evidente que a imputação só pode alcançar uma delas ou ambas.

Se a imputação decorre apenas de um ato hipoteticamente previsto na norma, do mesmo modo é evidente que se fará ao seu agente.

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Algumas vezes não basta o simples liame entre a pessoa e o fato. Se a norma atribui a responsabilidade de indenizar ao proprietário do veículo ou da empresa, nesse caso a atribuição da conseqüência depende de uma qualificação do sujeito. Não bastará seja identificado o agente direto do dano. Será necessário reconhecer­lhe uma qualificação (ser proprietário), sem a qual a conseqüência não o atingirá, sim a outra pessoa, que a tiver.

A afirmativa de que a aplicação do Direito se faz por um raciocínio silogístico tem sido objeto, da parte de numerosos e renomados autores, de crítica severa. Destacam­se, entre eles, Jhering, Oliver Wendell Holmes (1841­1935), Karl N. Llewellyn (n. 1893), Joachim Hruschka, Carlos Cossio, Kantorowicz, Jerome Hall e Recaséns Siches, este último autor de extenso trabalho em que arrola e explica, além da sua, as doutrinas que se contrapõem àquele entendimento.

Garcia Máynez observa, porém, com aparente procedência, que a crítica provém de autores que passaram por alto uma distinção fundamental, aquela que existe entre a forma ou estrutura dos raciocínios que possibilitam a aplicação de normas abstratas a casos concretos da experiência jurídica e os procedimentos que conduzem à formulação das premissas desses mesmos raciocínios. O equívoco evidencia­se até mesmo numa expressão de Recaséns Siches, quando enfatiza que o verdadeiro miolo da função judicial consiste na eleição de premissas por parte do juiz. E aduz: uma vez eleitas as premissas, a mecânica silogística funcionará com toda a facilidade.

Quando se assevera que a aplicação do direito abstrato ao caso concreto faz­se por lógica silogística, não se pretende simplificar a complexidade da tarefa, nem afirmar que o aplicador parte da norma para, através do fato, chegar à conclusão. Até mesmo porque o primeiro passo da aplicação é o conhecimento do fato (premissa menor). O que se pretende, diversamente, é revelar que a aplicação culmina, sempre, numa estrutura silogística, quaisquer que tenham sido os processos e as atividades desenvolvidas para a determinação das respectivas premissas. E isso é requisito de sua legitimidade, pois, conforme observa Karl Engisch, qualquer que seja a função que possam desempenhar as fontes irracionais de descoberta do juízo ou da sentença judicial, o juiz, perante o seu cargo (função) e sua consciência, só poderá sentir­se justificado quando sua decisão também possa ser fundada na lei, o que significa ser dela deduzida.

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8.1.1 Problemas

A técnica jurídica aborda cinco problemas:

a) determinação da vigência;

b) interpretação;

c) integração

d) eficácia da lei no espaço;

e) eficácia da lei no tempo.

8.2 VIGÊNCIA DA LEI

A primeira questão que se nos apresenta quando cuidamos de aplicar uma norma legal, é verificar se ela está em vigor, o que se resolve em três perguntas:

a) já está em vigor?

b) Ainda está em vigor?

c) Estando em vigor, tem aplicação ao caso?

Regra geral, a lei entra em vigor a partir do dia de sua publicação.

Há casos, porém, em que, estando já publicada, a sua vigência não é imediata: quando ela própria dispõe sobre sua vigência em data ulterior ou quando, sem qualquer dispositivo a respeito, fica subordinada a uma regra legislativa geral, que indica o intervalo que deve fluir entre a publicação e o começo de vigência das leis.

No Brasil, há tal preceito na Lei de Introdução ao Código Civil.

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Nessas hipóteses, no tempo que vai da publicação à vigência, continua vigorando a lei anterior. A esse período denomina­se vocatio legis, vacância da lei, em vernáculo.

8.2.1 Vocatio legis

A vocatio legis encerra­se de duas maneiras, às quais correspondem dois sistemas: o sistema instantâneo e o sucessivo.

O sistema é instantâneo ou imediato quando o prazo se extingue ao mesmo tempo em todo território nacional, como acontece atualmente no Brasil: 45 dias.

Outrora, adotávamos o sistema sucessivo. A lei ia entrando em vigor, paulatinamente, em zonas do território nacional, cuja distância era progressivamente maior, a partir da capital da República: primeiro no Distrito Federal, a seguir no Estado do Rio, depois em Minas Gerais e nos estados marítimos, finalmente nos demais estados.

Na época isso se justificava pela dificuldade de comunicação, embora fosse estranho que uma lei estivesse em vigor no Rio de Janeiro, por exemplo, e ainda não em Pernambuco. Hoje a situação é diversa. Uma lei ainda em discussão já é conhecida de todos, graças à imprensa, à televisão e ao rádio. Por isso, quase todas têm vigência imediata.

8.2.2 Lei geral e especial

Pode, também, uma norma estar vigendo, dizer respeito a certa matéria, mas não lhe ser aplicável. Tal ocorre quando o mesmo fato é objeto de uma disposição geral e de outra especial. Há norma que regula a situação de todos os estrangeiros no Brasil, por exemplo. Há outra especial para os portugueses. O mesmo fato, a situação de estrangeiro no Brasil, é regido por uma lei geral (todos os estrangeiros) e por uma lei especial (os portugueses). Se um cidadão português indaga sobre certa faculdade, e a lei geral responde negativamente, poderá acontecer que a especial responda afirmativamente. A geral não revoga a especial, e vice­versa. Esta aplica­se à circunstância específica, sem afetar a outra, que prevalece para os demais casos.

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8.2.3 Revogação

Finalmente, a norma pode estar revogada. A revogação, na maior parte das vezes, não é expressa, mas tácita, os dispositivos das ulteriores, cancelando os das anteriores, quando com estes são incompatíveis.

Expressa ou tácita, a revogação pode ser de toda a lei (total) ou apenas de algum ou de alguns dos seus dispositivos (parcial). À primeira denomina­se ab­rogação e à segunda, derrogação.

8.3 INTERPRETAÇÃO

O problema da interpretação dificilmente pode ser apresentado de modo apenas didático. Em relação a ele tudo é controverso. O seu caráter polêmico bem pode ser avaliado, se atendermos à extensa gama de problemas que lhe são correlatos, desde as abstratas considerações sobre a natureza, a origem e a função da norma jurídica, até as dificuldades evidentes de aplicação cotidiana da regra aos casos correntes.

É imprescindível ao conhecimento da essência do tema o exame de duas maneiras básicas de compreender a interpretação, bem caracterizadas na classificação que faz Carlos Cossio dos métodos interpretativos: intelectualista e voluntaristas.

Os intelectualistas entendem a interpretação como atividade intelectual, pela qual se alcança a significação mais profunda do sentido da lei. Pouco importa o meio pelo qual esse resultado é atingido: o exame gramatical da regra, a indagação da vontade do legislador, a reconstituição das circunstâncias históricas em que a lei foi elaborada, etc. Em qualquer circunstância, o aplicador terá de exercer apenas um trabalho intelectual. A sua meta será descobrir o que a lei diz ou quer dizer, penetrar­lhe na sua significação mais íntima, revelar as suas motivações mais autênticas, numa palavra, encontrar a verdade legal.

Os métodos voluntaristas entendem que a função do intérprete não se esgota na mera descoberta da normatividade total da lei, nem deve ele, quando

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ao conteúdo desta procurar conhecer, levar seu raciocínio a esforço lógico extremo. A lei é simples norma geral que delimita um horizonte mais ou menos amplo de decisão. O intérprete conhece a lei para traçar a órbita da sua liberdade de decidir. Mas, ao decidir, o seu ato é tão criador quanto o do legislador. Assim, o juiz também cria o direito, como órgão do Estado. Entre a sua função e a do legislador há uma só diferença: ele cria normas individualizadas para casos específicos, enquanto aquele cria normas gerais para situações genéricas. Se o ato de criar é sempre um ato de vontade, a interpretação é uma atividade volitiva.

Não nos parece que qualquer desses modos de entender contenha toda a verdade. Eles atentam mesmo contra a própria realidade estrutural da mente humana. Nesta não se podem separar inteligência e vontade, como entidades psíquicas distintas ou rótulos abrangentes de atividades autônomas. A qualquer ato de vontade precede uma decisão sempre fruto de uma reflexão (atividade intelectual). E a reflexão sobre o que fazer culmina numa decisão (atividade volitiva).

É altamente valioso para compreender o tema lembrar que Geny recomendava ao intérprete que visse na lei uma expressão da vontade inteligente do legislador. Com isso atribuía à atividade do legislador, que por um ato de vontade edita a lei, um suporte intelectual. Da mesma natureza nos parece a atividade do juiz, o intérprete por excelência da lei. Sem dúvida que, ao prolatar a sentença, criando a norma individualizada, ele pratica um ato de vontade, no sentido jurídico da palavra. Mas, como a do legislador, a sua vontade é inteligente, pré­orientada por um trabalho intelectual, que, durante muito tempo, foi considerado toda a interpretação: conhecer esgotadoramente a lei, até retirar dela a sua total possibilidade de aplicação.

Diríamos, em conclusão, que a interpretação é tarefa pela qual se procura, em primeiro lugar, conhecer a lei na sua mais extensa e recôndita significação, de modo a extrair dela a sua capacidade normativa explícita e implícita, e, em segundo lugar, traçar o campo da liberdade de decisão de quem a aplica.

O entendimento meramente intelectualista da interpretação prevaleceu durante muito tempo. Levou a resultados estéreis e gerou a consagração de fórmulas vazias de importância, entre as quais a idéia de que a atividade interpretativa seria eventual, justificada apenas na hipótese de não ser clara a lei. Foi multissecular o prestígio de um brocardo latino: interpretatio cessat in

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claris, o qual, porém, adverte Alípio da Silveira, colide com a própria natureza da interpretação, só se compreendendo como fruto de uma obsessão de supremacia da lei inspirada pela ortodoxia do liberalismo.

Na Argentina, Salvat, embora observando que a aplicação e a interpretação da lei estão intimamente relacionadas, por não ser possível fazer aplicação correta da lei sem também interpretá­la corretamente, resvala para a errônea noção tradicional, quando diz que o juiz recorre à interpretação para suprir o silêncio ou a obscuridade da lei.

M. A. Coelho da Rocha (1793­1850), em Portugal, enuncia conceito típico desse entendimento, conferindo à interpretação a finalidade de expor o verdadeiro sentido de uma lei que seja obscura ou ambígua.

Entre nós, os clássicos trabalhos de Carlos Maximiliano e Paula Batista (1811­1881), consagram a mesma noção. O primeiro, apesar de ressaltar a finalidade histórica do processo, acaba dando­lhe como fundamento o fato de ser toda lei obra humana, aplicada por homens, logo imperfeita na forma e no fundo e de resultados duvidosos, desde que não se lhe atente para o sentido. Paula Batista afirma categoricamente que a interpretação é a exposição do verdadeiro sentido de uma lei obscura, por defeito de redação, ou duvidosa com relação aos fatos ocorrentes.

Clóvis Beviláqua, cuja orientação é visivelmente superior, ainda insiste em condicionar a atividade interpretativa às insuficiências da lei.

A interpretação, como processo intelectual de explicação, é também assim compreendida por Eduardo Espínola e Eduardo Espínola Filho. Carvalho Santos assevera que a lei é imperfeita, reclamando interpretação, se não é claramente formulada ou não reveste a precisão necessária.

Esta orientação nos foi legada pela doutrina dos civilistas franceses que tanta influência exerceram sobre a nossa, talvez por ter sido na França que, pelo prestígio do racionalismo, surgiu o movimento codificador.

Assim, Planiol diz que da interpretação valem­se juizes e tribunais, quando aplicam lei cujo sentido é discutido. E Henri Capitant (1865­1937) entende ser a interpretação mister essencialmente intelectual, quando, observando que a lei é obra consciente e refletida de homens, conclui que

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interpretá­la é precisar a manifestação de vontade que lhe deu nascimento, o pensamento de seus autores.

Rafael Sañudo, fiel àquela influência, chega a ponto de afirmar que o juiz somente deve interpretar as leis obscuras, porque não é possível ao legislador prever todos os casos forenses.

Entendida, assim, a interpretação se apresenta, em sua natureza mesma, como atividade subalterna, válida numa eventualidade e fruto de uma contingência que será, acaso, inevitável, mas que se pode logicamente eliminar.

Curioso é constatar que essa noção de tal maneira se radicou na doutrina que inclusive a ela não escaparam escolas mais avançadas, que investiram contra a mera supletividade da função judicial, que admitiram julgamento contra lei e propugnaram pela liberdade de convencimento e decisão do juiz, tanto que a este outorgam poderes em termos de substituição do legislador. Isso se vê no próprio famoso artigo 1º do Código Civil Suíço e até na modesta disposição do artigo 114 do nosso Código de Processo Civil de 1939 (suprimida no novo Código). Tanto num como noutro, a faculdade que se concede ao juiz de elaborar a norma, longe de admitida como inerente à sua função, é dada pela simples outorga a ele de competência que incumbe ao legislador.

Mas é verdade que a interpretação é uma atividade permanente de qualquer procedimento aplicativo da norma. Não é lateral à regra, sim condição da sua capacidade de atuar, dado que a do preceito é meramente virtual. Interpretação e legislação, diz sabiamente Max Ascoli, são dois tempos essenciais de um ritmo cíclico: elevação da realidade à norma, retorno da norma sobre a realidade.

A norma jurídica, reportando­se a um valor, genericamente, abrange uma universalidade de situações com o que é levada, inevitavelmente, conforme assevera Djacir Menezes, a esquematizar fortemente a realidade. Por isso, não opera por si, mas reclama ajustamento a cada caso particular. Esse ajustamento converte­a de abstrata em concreta, de genérica em especial, de potencial em atuante. Nesse processo de conversão começa a interpretação, que vai até problemas mais complexos, quando a norma individualizada não pode ser obtida pelo simples enquadramento do fato no preceito.

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Kelsen reformou profundamente a doutrina. Para ele, a interpretação não é processo intelectual que pretenda a simples compreensão da norma.

Opondo­se ao tradicional binômio criação­aplicação, reconheceu que a interpretação integra a própria dinâmica da vida jurídica, é uma atividade também criadora de normas, exercida no limite de outras mais graduadas. A sentença judicial é concreção da norma jurídica legal e abstrata, continuação do processo de produção jurídica do geral para o particular. Esse processo não é simples ajustamento da lei ao fato, nem criação livre, porque limitado pelos horizontes de permissividade em que se exerce.

Quando o jurista interpreta uma norma o faz nos limites de outra superior. Por exemplo, a de um regulamento no limite da lei. Se o juiz, ao prolatar sentença, está criando uma norma individualizada, não pode fazê­lo senão interpretando norma superior, a lei. A sua sentença, por sua vez, será interpretada por outras normas que serão criadas, como os despachos que vierem a ser proferidos na execução do julgado.

A interpretação não se restringe a apreender o conteúdo da norma. Ela existe porque é próprio do dispositivo legal apenas delimitar um recinto de possibilidade, dentro do qual o juiz (livre naquele limite) profere a sentença, que pode ser tão entendida como um ato de vontade jurídica quanto o é a própria lei.

Se por interpretação entendêssemos a mera verificação do sentido da norma, ter­se­ia que chegar à conclusão de que, em caso de variedade de entendimento, somente uma interpretação seria verdadeira, do que resultaria a mais indesejável rigidez da jurisprudência. Mas observa, Kelsen, a interpretação de uma lei não tem que conduzir necessariamente a uma só decisão, sim possivelmente a várias, todas do mesmo valor, embora uma só delas chegue a ser direito positivo no ato da sentença judicial.

Este conceito novo de interpretação como vontade, sem prejuízo do elemento intelectual que a informa, é, para Kelsen, imanente ao próprio direito, cujo ordenamento atua de círculos maiores para menores, uns na dependência relativa dos outros.

Conforme explica Lacambra, é próprio do direito regular ele mesmo sua criação, de tal maneira que a produção de uma norma está regulada por outra superior, e, a seu turno, determina o modo de produção de outra inferior. A

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produção de qualquer norma representa, além disso, relativamente à superior que a regula, um ato de execução. A norma criada neste ato será executada de novo, mediante outro fato criador de uma norma inferior.

Nas expressões do próprio Kelsen, a tarefa de extrair da lei a sentença justa ou o ato administrativo justo é essencialmente a mesma de criar, dentro dos limites da Constituição, as leis justas. A diferença é apenas quantitativa e não qualitativa, visto que a sujeição do legislador, no aspecto material, é menor que a do juiz.

Como se vê, a atividade do intérprete não se arrima numa simples contingência, acaso consistente na impossibilidade de prever o legislador todas as hipóteses ocorrentes.

Ensina Cossio que nenhuma lei pode eliminar a mobilidade de quem a aplica, porque este terá sempre de chegar a uma norma individualizada, por mais elementar que seja o respectivo processo.

Carnelutti, evidenciando a esterilidade da idéia intelectualista da interpretação, repara que ela conduz a completo contra­senso. Ou serve como declaração o que o declarante pensou, sem ter­se em conta o que o destinatário compreendeu, ou bem o que este tenha compreendido, independentemente do que o outro haja pensado. Em qualquer dessas hipóteses, a declaração fracassa na sua finalidade, que é a de transmissão do pensamento. No primeiro caso, considera­se como pensado algo que não se tenha compreendido e, no segundo, como compreendido, algo que não se tenha pensado.

Tais idéias não desnaturam a noção de que o intérprete deve esgotar a capacidade normativa do preceito. Trata­se menos de rever o que tem sido e é historicamente a interpretação do que de penetrar no seu inteiro sentido e, logicamente, compreendê­la.

Com efeito, exaurir as possibilidades normativas de uma regra não leva somente a entendê­la cabalmente, mas resulta também numa consciência de liberdade maior ou menor para o seu aplicador. O processo de compreensão é meio para um fim. Revela o contorno da regra a aplicar e culmina no ato da sua aplicação.

8.3.1 Elementos

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Para o perfeito entendimento da normatividade do preceito legal e exata delimitação do seu horizonte de liberdade, vale­se o intérprete de duas séries de elementos: os gramaticais e os lógicos. Daí dizer­se que há interpretação gramatical e lógica, conforme a natureza do elemento utilizado.

Se o sentido da norma é explicitado pela análise da sua fórmula gramatical, faz­se interpretação gramatical. Se pela determinação de outros elementos, não pertencentes ao texto, faz­se interpretação lógica.

É conveniente ressaltar que a essas duas modalidades de proceder não podemos nos referir como se fossem autônomas. Assim, as expressões interpretação gramatical e interpretação lógica são impróprias, se delas nos servimos para significar atividades independentes uma da outra. Toda interpretação é, ao mesmo tempo, gramatical e lógica. O ato de entender o que está escrito na lei já é lógico, pois as palavras desta, como todas as outras, têm apenas valor indiciário, conforme doutrina Philipp Heck (1858­1943). E, se nos distanciamos do texto para nos servir de outros elementos, não podemos nos desembaraçar de todo dele.

Apenas, em certo caso, o elemento lógico é o preponderante da interpretação e, em outro, preponderante é o gramatical.

8.3.1.1 Interpretação gramatical

A interpretação gramatical socorre­se, como é óbvio, dos chamados elementos intrínsecos da norma, isto é, as suas próprias palavras que, na frase do juiz James E. Clayton, são o meio mais certo para a má interpretação. Os vocábulos são significações, e como tal devem ser entendidos. Procura o intérprete no texto escrito o que ele essencialmente exprime. Essa pesquisa poderá ser mais ou menos fácil, segundo a propriedade ou impropriedade e a univocidade ou a multivocidade dos vocábulos.

Na interpretação gramatical são comuns os problemas que indicaremos a seguir.

As palavras podem ter significação vulgar e técnica. A interpretação concluirá por uma ou outra, conforme a orientação geral do texto.

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A rubrica de um texto quase sempre delimita o seu alcance, ainda que ela mesma não constitua lei. Numa lei sobre propriedade, por exemplo, as palavras dos seus diversos dispositivos devem ser entendidas como pertinentes apenas a essa instituição.

As palavras podem ter um sentido estritamente gramatical e serem usadas com mais lata pretensão. Neste caso, a intenção com que foram empregadas prevalece sobre o seu reduzido conteúdo gramatical.

A mesma palavra pode apresentar grande diversidade de sentidos. Caberá ao intérprete precisar o sentido único ou os sentidos múltiplos em que está utilizada.

8.3.1.2 Interpretação lógica

Para se clarear de maneira cabal o sentido de uma norma são quase sempre insatisfatórios os seus elementos gramaticais. Quando assim ocorre, a interpretação emancipa­se do texto e procura nos seus elementos extrínsecos os subsídios necessários para a sua total compreensão. Ao conjunto daqueles chamamos elementos lógicos da interpretação. São eles: a ratio legis, a intentio legis, a occasio legis e o confronte de normas.

Valemo­nos da ratio legis (razão da lei), quando indagamos dos motivos que determinaram a promulgação de uma lei. Sabendo­se que as leis são elaboradas pela pressão de elementos históricos circunstanciais, se estabelecemos de maneira nítida a relação existente entre elas e a necessidade social que a ditou, teremos valiosa contribuição para compreendê­las com clareza e amplitude.

Pela intentio legis (intenção da lei), procuramos determinar a finalidade da lei. Não basta conhecer a que necessidade uma lei procurou atender, senão que é também indispensável precisar de que maneira quis fazê­lo. Para identificá­la é particularmente importante a reconstituição dos trabalhos de elaboração da lei.

A occasio legis (ocasião da lei) resulta caracterizada pelo levantamento dos elementos históricos concomitantes ao momento de criação da lei. O clima que cerca a formação de qualquer lei nela influencia decisivamente, quer nos seus elementos explícitos, quer nos subjacentes ao seu texto.

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O mais importante procedimento da interpretação lógica é, sem dúvida, o confronto das regras, que nos permite uma visão global da lei, o seu pleno entendimento e a determinação do que há de sistemático nela. Disso advém uma compreensão da lei que dilata o horizonte do intérprete e o ensejo de aplicá­la mais lucidamente.

Na interpretação lógica, encontramos ainda os chamados argumentos, cujo valor desde há bastante tempo é considerado secundário.

Citaremos os mais conhecidos:

a) Argumento a pari (por analogia). Serve de fundamento ao raciocínio ampliativo, ou à interpretação extensiva. Pela analogia aplica­se uma norma conhecida a casos não previstos, desde que em relação a estes haja identidade das razões ou das finalidades que inspiraram a norma para o caso previsto.

b) Argumento a contrario (ao contrário). Se, ocorrendo duas hipóteses radicalmente inversas, a lei só previu uma, regulando­a de uma certa maneira, conclui­se que quis dispor de maneira diferente para a outra.

c) Argumento a majori ad minus (da maior para a menor). Se a lei prevê uma hipótese atendendo determinado motivo em que prevaleça uma hipótese não prevista, a esta também é aplicável a sua disposição.

d) Argumento ex absurdo (partindo do absurdo). Se uma norma legal pode ser entendida de duas maneiras contraditórias e uma delas conduz a absurdo, dir­se­á que a outra traduz a interpretação adequada.

8.3.2 Métodos

São três os métodos interpretativos mais conhecidos: o jurídico­ tradicional, o histórico­evolutivo e o da livre investigação científica. A eles podemos aditar o da chamada escola do direito livre, cuja maneira de entender a interpretação se desvia muito do sentido desta.

8.3.2.1 Método jurídico­tradicional

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O método jurídico­tradicional está ligado ao apogeu do racionalismo jurídico e à chamada Era das Codificações, iniciada com o Código Civil Francês, em 1804.

Ele parte do pressuposto de ser a lei uma obra completa, contendo, de maneira ostensiva ou latente, todas as soluções jurídicas. O Código Civil Francês quando divulgado, afigurou­se obra total e definitiva. Ao magistrado assistia interpretá­lo e seguir com a mais rígida fidelidade o que o seu texto dizia ou queria dizer.

Incumbiria ao intérprete, quando não encontrasse a solução na limpidez das palavras da lei, através de um processo que Antônio Ramos Carvalho de Brito denomina inferência jurídica, restaurar o pensamento do legislador, procurando sua intenção ou finalidades, principalmente nos trabalhos preparatórios da lei.

Correspondeu este método a um momento em que, mais prestigiado do que nunca o princípio da separação dos poderes, não cabia ao juiz senão dizer estritamente aquilo que a lei manifestava ou o que o legislador havia pretendido.

Das numerosas objeções que se fazem ao método exegético destaca­se a de que ele conduz a modelos artificiais de interpretação. Além disso, supondo um liame permanente entre a lei e o legislador, despreza elementos preciosos, notadamente os de natureza histórica e social para a exata compreensão daquela. Doutrinariamente, repara Henri Lévy­Ullmann, fazendo da definição do Direito corolário da de lei, eliminava a possibilidade da primeira.

Entre os seus defensores sobressaíram­se Demante, Laurent e Jean C. Florent Démolombe (1804­1887).

8.3.2.2 Método histórico­evolutivo

O método histórico­evolutivo, do qual foram patronos Savigny e Raymond Saleilles (1855­1919), situa­se em posição doutrinária oposta, ainda que mantenha o princípio de fidelidade ao texto da lei.

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Influenciados pelo historicismo jurídico, os seus patronos não vêem na lei apenas obra e fruto da atividade do legislador, mas a resultante de imposições da consciência social. Assim, a lei deve ser olhada como um preceito objetivamente autônomo, tendo­se em conta mais suas ligações com a ambiência social do que seus vínculos com a vontade ou intenção de quem a formulou.

A par disso, nenhuma lei tem sentido se não é aplicada de acordo com a necessidade social a que pretende atender. Se esta varia, cabe ao intérprete entendê­la de maneira a lhe corresponder. Como explica Mário Frazen de Lima, quando o pensamento da lei se manifesta em contraste com o que o intérprete considera expressão da consciência coletiva do povo, deve este preferir a revelação direta dessa fonte comum e mais profunda.

Assim, a própria interpretação seria evolutiva, variaria no tempo, de um resultado a outro, conforme este correspondesse às conveniências de sua aplicação.

À interpretação cumpriria promover uma permanente atualização da lei.

8.3.2.3 Livre investigação científica

Foi seu fundador François Geny, autor de trabalho que se tornou clássico na matéria: Métodos de interpretação e fontes em direito privado positivo.

Fiel à orientação do método exegético, enquanto este afirma que a interpretação deve ter por escopo a revelação da vontade do legislador, Geny parte da noção de integral respeito à lei como a primeira e mais importante fonte formal de direito. A lei é a vontade de um órgão social, que lhe fixa o contorno e define seu conteúdo.

Geny cingiu­se, escrupulosamente, à opinião de que a lei manifesta uma intenção do legislador, à qual o intérprete deve fidelidade tal como no momento de sua formação, não no da sua aplicação. Com isso, contestava radicalmente as teorias que inspiraram o método histórico­evolutivo.

Seria desnaturar a lei encará­la como produto imediato e direto do meio social, o que importaria confundi­la com o costume. E concluía que o jurista,

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enquanto permanece na esfera da interpretação propriamente dita, só pode ter por objetivo encontrar na lei aquilo que é da sua essência: expressão de uma vontade inteligente.

O que, todavia, singularizou a posição doutrinária de Geny foi sua oposição a todo jogo de raciocínio mais ou menos artificial pelo qual os métodos precedentes, notadamente o exegético, pretendiam extrair da norma legal soluções que nela evidentemente não se encontravam. Na sua maneira de entender, dever­se­ia aplicar a lei, com autenticidade, no justo sentido que lhe emprestou quem a formulou, mas apenas nele, sem nada lhe aditar por presunções ou construções lógicas. Assim, desde que a lei não fornecesse solução direta, cessava a interpretação, e o jurista iria buscar a norma em outros elementos.

O primeiro deles estaria na analogia, a qual não seria mais do que uma exigência da igualdade jurídica, que reclama se apliquem a situações idênticas sanções iguais. Sendo apenas um processo lógico, nem por isso pode ser tida como interpretação propriamente dita, porque se arrima na inexistência de norma legal para uma situação concreta.

No sistema de Geny, averigua­se a vontade do legislador por elementos internos e externos. Entre os primeiros estão a expressão literal do preceito (interpretação gramatical) e o conhecimento da sua mais profunda significação (interpretação lógica restrita). Entre os segundos estão o fim pretendido pelo legislador (ratio legis) e o meio social em que a lei surgiu com as circunstâncias históricas (occasio legis).

Se não há lei escrita nem solução analógica para o problema, deve o intérprete valer­se do costume, que se caracteriza pelo seu uso persistente aliado à convicção de que está amparado por uma sanção de Direito.

Quando a lei, analogia e costume não ministram solução, não há que insistir em quaisquer procedimentos supostamente lógicos. É então que a teoria de Geny mostra a sua originalidade, ao reclamar a necessidade de uma criação científica livre para suprir as lacunas da ordem jurídica. Esta investigação deve realizar­se com inteira autonomia face às fontes formais, porque a sua oportunidade somente se configura diante de um caso concreto. De certo modo, assemelha­se à que faz o próprio legislador, porque ela também procura a justiça e a utilidade social. Geny a caracterizou com precisão: livre investigação científica. Livre, porque realizada fora da ação de

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uma autoridade positiva; científica, porque apoiada em elementos objetivos revelados cientificamente. A livre investigação científica firma­se em dois elementos: os da própria civilização contemporânea, enquanto reveladores de um estado de equilíbrio, e as tendências de uma época, seus precedentes históricos, sua organização econômica e seus aspectos marcantes patenteados pela análise sociológica.

A investigação científica do direito exige extensa pesquisa científica, porque o seu propósito é evidenciar o que Geny chamava a natureza das coisas. É precisamente essa natureza das coisas que informa ao intérprete quando lhe falecem as fontes formais, residindo essa natureza principalmente no fato de que as relações da vida social acomodam­se de acordo com um processo espontâneo de equilíbrio, ao qual o jurista deve ser sensível.

É pela aplicação adequada dos juízos formados segundo sua própria razão e experiência que o intérprete serve à utilidade geral.

A maneira de conceituar a interpretação preconizada por Geny impõe ao jurista a disponibilidade de um complexo arsenal de conhecimentos: sociológicos, históricos, psicológicos, filosóficos, etc.

8.3.2.4 Escola do direito livre

A escola de François Geny (1861­1959) consagrou a idéia da liberdade do juiz ao formular a norma decisória para uma situação concreta. A escola do Direito livre exacerbou essa posição. Foram seus precursores Kirchmann, que assinalou o contraste entre os esforços vãos da doutrina e da jurisprudência e as sempre novas exigências da lei; Siegmund Schlossmann, que previu a existência de um direito criado sob inspiração científica; Eugen Ehrlich (1862­ 1922) que, ampliando o conceito de lacuna, reivindicou para o juiz a liberdade de criar uma regra específica, desde que as fontes formais não indicassem solução direta para uma hipótese: Ernest Zitelmann que, inspirado em Jellinek, opôs contradita frontal à concepção da plenitude lógica do Direito. O seu mais lídimo representante, porém, foi Kantorowicz, que publicou, em 1908, sob o pseudônimo Gnaeus Flavius, monografia intitulada A luta pela ciência do direito. A ele seguiram­se: Gmelin, Somlò, Spiegel e outros.

Kantorowicz, observando o quanto fora deturpado no continente europeu o princípio da separação dos poderes, promoveu verdadeira

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ressurreição da teoria do direito natural. Admitiu, assim, a existência de um direito livre, paralelo ao estatal, e que consistia na sua verdadeira fonte.

A ciência do Direito deve desenvolver­se inteiramente autônoma da lei com liberdade, criando as suas próprias definições e atuando por um procedimento integralmente livre. Por isso, tem de ser anti­racionalista e antidogmática, rejeitando os métodos tradicionais de interpretação. Nunca deve valer­se da analogia e, coerentemente, de qualquer processo de interpretação extensiva, tendo por obrigação sempre rejeitar as ficções e a indagação da ratio legis.

Para substituir a antiga dogmática, Kantorowicz recomenda uma criação radicalmente livre do direito, cuja autenticidade seria assegurada pela sua popularidade, pela sua independência, pelo seu ideal de justiça e pela sua prática por juizes afeitos aos fatos da vida.

O dever do juiz seria aplicar a lei enquanto essa contivesse solução clara. Caso contrário, não lhe competiria indagar da vontade do legislador, mas decidir consoante regra fundada na convicção de que ela teria sido a escolhida pelo legislador, na época do julgamento. Se, contudo, não chegar a qualquer convicção, deve socorrer­se do costume e, enfim, criar com toda liberdade e total imparcialidade a sua própria regra pessoal.

A liberdade que a escola de Geny e a de Kantorowicz atribuem ao juiz, sem embargo de poder ser julgado em si mesma, em termos exclusivamente teóricos, é mais ou menos compatível com o direito legislado segundo a natureza deste. Com efeito, enquanto em certos países as leis procuraram ser casuísticas e minuciosas em suas previsões hipotéticas, em outros são concebidas em termos mais genéricos e imprecisos, que deixam ao aplicador larga margem de decisão pessoal. Assim acontece, por exemplo, nos Estados Unidos. Alexander H. Pekelis declara sem hesitação que aquele país não tem a rigor uma Constituição escrita. E acrescenta: as grandes cláusulas da Constituição, assim como as disposições mais importantes das leis americanas fundamentais não contêm senão um apelo à honestidade e à prudência daqueles sobre quem pesa a responsabilidade de sua aplicação. Dizer que a compensação deve ser justa, a proteção das leis igual para todos, que as penas não devem ser cruéis nem inusitadas, que as cauções ou multas não devem ser excessivas, nem os seqüestros imotivados, nem ser o cidadão privado de sua vida, de sua liberdade ou de sua propriedade sem o procedimento jurídico devido, não é outra coisa que dar­se base à atividades dos juizes para criar o

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Direito, mais ainda, a própria Constituição, já que se lhes deixa em liberdade para definir o que é cruel, razoável, excessivo, devido ou igual, em cada caso sob sua apreciação.

8.3.3 Origem

Quanto à sua origem, a interpretação pode ser autêntica, judicial e doutrinária.

A interpretação autêntica compete ao legislador, que por lei nova, torna mais clara uma anterior. A lei interpretativa é, em princípio, retroativa, a menos quando esbarra em situações que não possam ser revistas, como, por exemplo, a coisa julgada.

A interpretação judicial é feita pelos juizes e tribunais.

A doutrinária é obra dos juristas; sua importância mais se afirma quando incorporada à jurisprudência.

8.4 INTEGRAÇÃO

Diante de uma situação levada a seu conhecimento, cabe ao juiz decidi­ la conforme a lei.

Em não havendo lei que encerre disposição para a controvérsia, nem por isso pode eximir­se de proferir sentença. Dir­se­á que há uma lacuna na lei. Ao processo de supri­la se chama de integração. Para realizá­lo, recorre o juiz:

a) à criação de normas análogas a outras já existentes;

b) à pesquisa de normas nas fontes supletivas: costume, jurisprudência e princípios gerais de direito (doutrina).

8.4.1 Lacunas

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As lacunas apresentam­se:

a) quando a lei dá ao juiz apenas uma orientação geral, cabendo­lhe estimar cada caso concreto;

b) quando o próprio critério estimativo legal só pode ser fixado em cada caso concreto (boa­fé, abuso de direito, etc.);

c) quando a lei é completamente omissa para uma questão;

d) quando existe contradição frontal entre dispositivos legais a ponto de todos eles se tornarem ineficazes.

8.4.2 Analogia

Pela analogia o juiz procede de um caso previsto para outro não previsto, desde que ambos possam ser compreendidos numa norma geral que os domine.

Para Savigny a analogia cabe em duas hipóteses:

a) quando aparece uma relação jurídica nova para a qual não existe instituição jurídica como modelo no Direito Positivo atual;

b) quando, dentro de uma instituição jurídica já conhecida, surge novo problema jurídico particular.

Na analogia há uma espécie de indução incompleta ou, como diz Carlos Maximiliano, uma indução imperfeita, pela qual se vai do preceito existente até uma regra mais geral e mais alta que abranja dois casos semelhantes, chegando­ se depois à norma especial de que se necessita para resolver um deles.

Analogia é autêntico procedimento de integração, não de interpretação, porque serve para suprir lacunas legais.

Em doutrina, distinguem­se duas modalidades de analogia: a legal e a jurídica. Cumpre, porém, notar que o processo analógico é, em si, um só. A dualidade resulta do nível em que o raciocínio se realiza.

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8.4.2.1 Analogia legal

Na analogia legal, existe norma adequada para regular certa matéria e não outra que, se prevista, deveria ter sido regulada da mesma maneira. Há, portanto, uma disposição expressa cuja normatividade se amplia na medida mesma em que é ampla a razão que a sugeriu.

8.4.2.2 Analogia jurídica

Quando falta preceito aplicável, ainda que de forma indireta, há necessidade de ponderar um complexo de normas que regem certo campo jurídico e, por analogia de matérias e motivos, aplicá­las a outro. A este procedimento chama­se analogia jurídica.

É sempre preciso que o caso não previsto seja semelhante ao previsto, tenha com este alguns elementos comuns e, principalmente, que a razão motivadora da disposição existente prevaleça com relação à situação não prevista.

Na lição de Ferrara, todo fato jurídico contém elementos essenciais que caracterizam e formam a ratio juris da norma, e elementos acidentais e contingentes que o acompanham. No confrontar o fato já regulamentado com o fato a regular, devemos isolar o primeiro dos outros, colhendo­lhe somente os traços juridicamente relevantes, as notas decisivas; apenas assim estabelecer­se­á, ou não, uma relação de semelhança. Pode acontecer que dois fatos, na aparência disformes, porque diferenciados por caracteres particulares, sejam semelhantes na sua essência, e, por isso, capazes de ser submetidos, por analogia, ao mesmo tratamento, e, vice­versa, que dois fatos, mostrando­se extremamente semelhantes, sejam intimamente diversos. É preciso determinar a semelhança jurídica dos dados e a coincidência dos elementos juridicamente principais que informam a disposição.

Sobre a analogia Karl Engisch explica que, quando nos voltamos para o seu fundamento axiológico, podemos afirmar que, para que exista uma conclusão de analogia juridicamente admissível, requer­se a prova de que o caso particular, em relação ao qual a regulamentação é omissa, tenha de comum com o particular, para o qual existe regulamentação, os elementos sobre os quais a regulamentação jurídica se apoia. À vista disso, pondera, o

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argumento jurídico da analogia não se nutre apenas da sua segurança lógica e da sua aplicação jurídico­prática, baseada na semelhança jurídica, mas mergulha as suas raízes ainda mais profundamente no chão do Direito, ao pressupor que, para a aplicação deste, os preceitos legais e consuetudinários podem e devem ser frutuosos não só direta como também indiretamente. E assim porque os juízos de valor gerais da lei e do Direito consuetudinário devem prevalecer não só em relação aos casos a que dizem respeito de modo imediato, mas também em relação àqueles que apresentem configuração semelhante.

Com igual clareza e debaixo da mesma ótica, Georges Malinowski escreve que os fatos que têm, do ponto de vista jurídico, o mesmo valor implicam as mesmas conseqüências jurídicas. Por isso, quando se alude ao fundamento do raciocínio analógico, em Direito, tal raciocínio tem configuração diversa da que apresenta em relação ao mundo dos objetos naturais. Fundá­lo na mera suposição de que, tendo o legislador disposto de certo modo para um caso, provavelmente disporia do mesmo modo para outro assemelhado, é logicamente correto, mas juridicamente insatisfatório. É que o jurista não saberia, de fato, o que fazer com essa proposição de probabilidade, ainda que o seu grau estivesse determinado com a maior precisão possível, dado que tem necessidade de saber com certeza qual é a regra que se aplica ao caso não previsto, e não qualquer outra. É que o nervo do raciocínio jurídico por analogia encontra­se no juízo de valor acerca da igualdade do valor dos fatos comparados.

A analogia é típica manifestação da coerência ética de qualquer ordem jurídica, não mera tentativa por probabilidade, como pretende João Mendes Neto. Por isso, no processo de integração, o seu emprego, ainda que mais freqüente em relação à lei e ao costume, não está confinado a uma posição rígida, pois é perfeitamente admissível que por analogia também se estenda à aplicação de uma regra jurisprudencial ou doutrinária.

8.4.3 Consulta às fontes mediatas

Sendo inútil o raciocínio analógico em relação à lei, passa o aplicador a integrar pela consulta às fontes mediatas: costume, jurisprudência, princípios gerais de direito (doutrina), matéria que já foi objeto de exposição no capítulo 15 deste trabalho, ao qual o autor se reporta.

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8.4.4 Conclusão

A aplicação do Direito obedece a uma sistemática, que indica as soluções jurídicas em níveis sucessivos. Assim, cabe ao aplicador:

a) aplicar a lei;

b) servir­se da analogia legal ou jurídica;

c) aplicar o costume;

d) servir­se da analogia consuetudinária;

e) aplicar a jurisprudência;

f) invocar os princípios gerais: do Direito Nacional e do Direito Universal.

É necessário anotar que, embora sendo essa a ordem sistemática de consulta às fontes, não lhe corresponde o desenvolvimento destas no curso da história. Assim, quanto à sua precedência cronológica, a ordem é justamente oposta: primeiro surgiram os costumes, depois a jurisprudência e, por último, a lei. E há também quem sustente, como Leopoldo Alas, lembrando as mais antigas tradições gregas, que antes do próprio costume teria surgido a jurisprudência.

Além disso, nenhuma razão de ordem estritamente doutrinária pode ser invocada para justificar o primado da lei sobre o costume ou o deste sobre aquela. A preferência é resultante apenas de circunstâncias históricas.

Assim, em relação à matéria, dois tipos de ordenamentos jurídicos podem ser identificados:

a) o da tradição romanista (nações latinas e germânicas) caracterizado pela supremacia do preceito legal, em detrimento do Direito consuetudinário;

b) o da tradição anglo­saxônica, no qual o direito se revela pelos usos e costumes e pela jurisprudência, construída sobre eles, mais do que pelo trabalho de órgãos legislativos.

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Segundo o comentário de Miguel Reale, o confronto entre um e outro sistema tem sido muito fecundo, inclusive porque demonstra que, nesse terreno, o que prevalece, para explicar o primado desta ou daquela fonte, não são razões abstratas de ordem lógica, mas apenas motivos de natureza social e histórica.

8.5 EFICÁCIA DA LEI NO ESPAÇO

A lei tem uma validade espacial limitada porque integra um ordenamento jurídico, implantado num território, o do Estado que a promulgou. Os limites do território do Estado são também os da eficácia espacial de sua legislação.

Numa relação jurídica, porém, podem ocorrer elementos estranhos ao ordenamento jurídico ao qual está subordinado o juiz que dela conhece.

Assim, por exemplo, o fato de um cidadão argentino que, no Brasil, promovesse a execução de um contrato celebrado no Chile, tendo por objeto um imóvel na Venezuela. Este é um exemplo simples, no qual estão presentes elementos de múltiplas legislações. No Brasil levanta­se a controvérsia, a nacionalidade do indivíduo é de outro Estado, o ato jurídico foi praticado em outro e, finalmente, num quarto está o bem negociado.

Em tal hipótese, o juiz, ao julgar o problema, há de fazer prévia escolha da lei aplicável.

Para dirimir o conflito há dois princípios: o da personalidade e o da territorialidade da lei. Pelo primeiro, diz­se que a lei é pessoal. Pelo segundo, que é territorial. De acordo com o primeiro, o interessado tem a faculdade de invocar a sua própria lei onde quer que esteja, portanto, mesmo quando submetido à jurisdição de um Estado que não aquele do qual é súdito. Pelo segundo, a lei territorial aplica­se, de modo total, a todas as situações levadas ao conhecimento dos juizes nacionais, quaisquer que sejam os elementos estrangeiros nelas existentes.

O segundo é de ordem geral, o primeiro de aplicação excepcional.

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8.5.1 Território

Sendo os Estados soberanos, cada um pode assegurar a eficácia plena da sua lei no seu território, negando aplicação a qualquer lei estrangeira.

Não basta, porém, dizer que o limite da eficácia espacial da lei coincide com o limite do território nacional, porque esta noção tem um sentido geográfico e um político­jurídico.

No sentido geográfico, território nacional é o solo no qual o Estado exerce o seu império. No jurídico­político, a expressão tem significação mais alta, abrangendo outras parcelas.

8.5.1.1 Solo

A primeira parcela do território nacional é a superfície terrestre, o solo, em sentido geográfico.

Pode ser contínua ou descontínua, isto é, una ou fragmentada. Quando a superfície se estende sem solução de continuidade até a fronteira, temos território contínuo. Do foco do poder político irradia­se o ordenamento jurídico dentro de um contorno único.

Entretanto, tendo o Estado a sua sede de poder implantada numa área, às vezes também o exerce sobre outras, das quais está separado. É o caso de superfície descontínua.

A descontinuidade pode ser geográfica e política. Dá­se a primeira quando a solução de continuidade resulta da existência, entre a superfície contínua e a descontínua, de um acidente geográfico, um lago, um mar, um oceano. Por exemplo, Trindade é uma ilha oceânica, integra o território brasileiro, mas entre o território continental do Brasil e a ilha está o Oceano Atlântico, sobre o qual o Brasil não exerce soberania.

Às vezes, a superfície terrestre, em si mesma, é contínua, mas duas áreas do território do Estado estão separadas porque entre elas há uma faixa territorial sob a soberania de uma nação estrangeira. O exemplo sempre

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citado, porque caracteriza tipicamente a situação, é o da Alemanha depois da I e antes da II Guerra Mundial. A Alemanha tinha a sede do seu poder político numa área, mas a sua soberania também se estendia à Prússia Oriental, região da qual estava separada por um corredor, que dava à Polônia acesso a Dantzig.

8.5.1.2 Águas territoriais

O segundo elemento do território nacional são as águas territoriais, sobre as quais o Estado também exerce domínio.

As águas territoriais são: marítimas, fluviais e lacustres.

Os Estados marítimos exercem soberania sobre uma faixa das águas marítimas ou oceânicas que os banham, em traçado paralelo à sua costa, até um determinado limite, este polêmico.

A primeira tentativa de traçá­lo (primeira porque nações houve, como Inglaterra, Portugal e Espanha que, em certo tempo, pretenderam soberania sobre mares e oceanos) baseou­se na tese de que ele deveria ir até onde alcançasse um tiro de canhão postado na costa, segundo a idéia de que o poder político vai até onde o poder das armas alcança.

Mais tarde, o limite geralmente aceito passou a ser de três a 12 milhas. Ulteriormente, outras situações mostraram a escassez desse limite, ligadas à necessidade de segurança e à de proteção a interesses econômicos. Então, os Estados dilataram os limites das suas águas marítimas. As brasileiras, foram fixadas em 200 milhas, limite já antes adotado pelo Chile, pelo Peru e pelo Equador, o que tem ensejado dificuldades internacionais, porque outros países recusam­se a aceitar essa extensão desmedida da soberania de um Estado sobre as águas oceânicas.

Em função dessas dificuldades, foi patrocinada, no assunto, uma solução original, capaz de resguardar, sem maiores repercussões políticas internacionais, os interesses econômicos dos países que ampliaram seu mar territorial para 200 milhas.

Far­se­ia a distinção entre mar territorial ou jurisdicional, sobre o qual, como parcela do seu território, o Estado exerceria soberania plena, e mar patrimonial ou econômico, sobre cujas águas e respectivo leito o Estado

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exerceria apenas direitos ligados à sua exploração econômica. Assim, por exemplo, no limite de 200 milhas, o mar jurisdicional poderia conservar a medida habitual de 12 milhas, e as restantes 188 constituiriam mar patrimonial, neste franqueada à navegação, sem qualquer controle.

Cumpre observar, por último, que, atualmente, os Estados que mais se opuseram à ampliação do mar territorial para 200 milhas vêm adotando essa mesma deliberação, bastando citar os exemplos dos países­membros do Mercado Comum Europeu e dos Estados Unidos da América.

Quanto às águas territoriais fluviais, há que distinguir os rios interiores dos fronteiriços. Se o rio é interior, ambas as suas margens estão no território de um Estado, só a este pertencem as suas águas. Se o rio é fronteiriço, uma de suas margens pertencendo a um Estado e outra, a diferente, as águas são divididas, cabendo uma parte a cada. Serve como linha divisória o talvegue, canal do rio, a sua linha de maior profundidade.

Os lagos, se interiores, pertencem exclusivamente ao Estado em cuja superfície estão contidos. Se fronteiriços, as suas águas são divididas, tomando­se como referência os pontos de encontro das fronteiras terrestres dos respectivos territórios.

8.5.1.3 Plataforma submarina

Também integra o território nacional a plataforma submarina.

Esta expressão foi usada pela primeira vez em documento público oficial em duas proclamações assinadas pelo Presidente Harry Truman (1884), que datam de 1945.

Na Antigüidade, e mesmo na Idade Média, a questão não foi focalizada. Somente Valin, ao publicar, em 1681, sua obra denominada Novo comentário sobre a ordenança da Marinha, propôs fosse o mar territorial levado até onde uma sonda não pudesse tocar o fundo.

A plataforma submarina pode ser definida em termos científicos e jurídicos.

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As definições científicas variam porque se baseiam em critérios diferentes, tais como:

a) critério batimétrico (profundidade);

b) critério morfológico (que considera as características morfológicas);

c) critério geológico;

d) critério biológico;

e) critério da primeira ruptura.

As definições jurídicas são mais assemelhadas. Pode­se citar como padrão a de Marcel Sibert: a plataforma é o prolongamento do território levemente inclinado, para além do mar territorial, até a ruptura das grandes profundidades.

Os continentes, em muitas regiões, parecem assentar sobre uma espécie de base ou plataforma submersa, que se alonga em declive suave, até chegar a uma profundidade de cerca de 200 metros, daí caindo para as profundidades abissais.

No Brasil, a plataforma foi integrada ao território nacional pelo Decreto nº 28.840, de 08 de novembro de 1950.

A grande definição no campo jurídico internacional é dada pela Convenção de Genebra de 1888, cujo artigo 1º diz:

“A expressão plataforma continental designa:

a) o leito do mar e o subsolo das regiões submarinas adjacentes às costas, mas situadas fora do mar territorial, até uma profundidade de 200 metros, ou, além deste limite, até o ponto em que a profundidade das águas sobrejacentes permita o aproveitamento dos recursos naturais das referidas regiões;

b) o leito do mar e o subsolo das regiões submarinas análogas adjacentes às costas das ilhas.”

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Na verdade, não existe um critério uniforme para a delimitação da plataforma. Pela geologia sabe­se que a plataforma é a mesma terrestre que constitui o continente, formada de uma parte emersa e de outra submersa. A submersa vem a ser a plataforma propriamente dita. As águas que a cobrem têm profundidade relativamente pequena (em média até o limite de 200 metros) em comparação com as profundidades submarinas em alto mar.

A plataforma submarina suscita grande interesse, quer pela proteção e exploração das espécies animais, quer das riquezas minerais do fundo do mar, tais como o carvão, o ferro, e, sobretudo, o petróleo. Incorporada ao território nacional em 1950, no Brasil, ganhou o país mais de 800.000 km².

8.5.1.4 Espaço aéreo

O quarto elemento do território nacional é o espaço aéreo, coluna de ar que se levanta acima da superfície terrestre, contínua ou descontínua, das águas territoriais marítimas, fluviais e lacustres.

Durante algum tempo, a ilimitação ou a limitação do espaço aéreo foi tema de controvérsia. Doutrinadores sustentavam que a soberania nacional sobre ele era ilimitada, prolongava­se até o infinito em sentido vertical. Desde que foram lançados satélites artificiais, os fatos sobrepujaram o debate, tanto que nenhum Estado reclama hoje contra satélites sobrevoarem o seu território.

8.5.1.5 Navios e aeronaves

Navios e aeronaves de guerra são, também, território nacional, onde quer que estejam. Um navio de guerra brasileiro, singrando águas territoriais brasileiras, mar alto, águas territoriais estrangeiras e mesmo ancorado em porto estrangeiro, é território brasileiro. Reciprocamente, um navio estrangeiro, mesmo em águas territoriais brasileiras, ou ancorado num porto brasileiro, é território estrangeiro. Tudo o que nele acontece está sujeito à lei e à jurisdição de sua bandeira.

Em relação aos navios e aeronaves mercantes, a situação é diversa: são ou não território nacional, de acordo com a sua posição. Um navio mercante é território nacional enquanto está ancorado em porto nacional, singrando águas territoriais nacionais e em alto mar. A partir do momento em que passa a

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singrar águas territoriais estrangeiras ou em que fica ancorado em porto estrangeiro, passa a ficar subordinado à legislação e à jurisdição de outro Estado.

8.5.1.6 Legações diplomáticas

O último elemento integrante do território nacional é a sede das legações diplomáticas.

O prédio da embaixada brasileira em França é território brasileiro, e vice­versa.

É em função da extra­territorialidade de que desfrutam as sedes de legações e embaixadas que se deve o direito de asilo diplomático. O indivíduo sob a jurisdição de um Estado, que se refugia na sede de uma legação, passa a estar em território estrangeiro, onde não pode mais ser alcançado pela autoridade do Estado no qual está sediada a legação.

8.5.2 Conflito de leis

Como já vimos, no início deste capítulo, sem uma situação jurídica parece exposta à incidência de leis de Estados diferentes, define­se um conflito de leis no espaço. Para dirimi­lo aplica­se o princípio da territorialidade, cujo amplo sentido resulta claro da extensão jurídica do conceito de território. Por exceção, admitem os Estados a aplicação da lei estrangeira a situações e feitos pendentes de sua jurisdição. Mister se faz, portanto, definir os termos em que se realiza essa convivência fora da regra geral e, portanto, excepcional, o que faremos a seguir.

8.5.3 Evolução da doutrina

Ao expor, em traços gerais, a evolução da doutrina sobre o assunto, iremos constatar a eventual preponderância, ora do princípio da personalidade, ora do princípio da territorialidade, conquanto atualmente não se excluam, antes se completem.

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8.5.3.1 Invasões bárbaras

O princípio da personalidade da lei, embora vigente nos primeiros tempos do direito romano, segundo observa Ebert Chamoun, predominou na Idade Média, no período subsequente às invasões bárbaras. As tribos traziam os seus costumes, e os mantinham nos territórios que ocupavam, respeitando, ao mesmo tempo, os costumes, as tradições e as leis dos povos vencidos. Habitando a mesma área, vencedores e vencidos regiam­se pelas suas respectivas legislações.

Segundo Montesquieu, o caráter distintivo mesmo das leis dos bárbaros consistiu em que sua aplicação não era territorial.

O princípio da personalidade da lei foi, por largo tempo, condição para garantia da identidade dos grupos sociais.

8.5.3.2 Feudalismo

No feudalismo, o princípio da personalidade da lei foi substituído pelo da territorialidade, levado à mais extrema ortodoxia. Aquele só pôde prevalecer enquanto os grupos humanos se conservaram isolados, embora habitando a mesma região. Na medida em que passaram a manter interesses comuns, tornou­se inevitável a necessidade de uma lei comum.

Ao tempo, o direito de propriedade e o poder político se enlaçavam. Essa circunstância haveria necessariamente de conduzir ao princípio da territorialidade.

A Europa estava fragmentada em pequenas parcelas territoriais chamadas feudos, cada uma com o seu próprio senhor, exercendo o poder absoluto e dispondo de direito próprio. O indivíduo que se deslocava de um deles para outro ficava completamente submetido à lei deste. Isso importava numa situação de intranqüilidade e, não raro, a indefinição da própria condição jurídica da pessoa.

A insegurança jurídica resultante da aplicação ortodoxa do princípio da territorialidade patenteou­se de maneira crítica na Itália., retalhada em inúmeras unidades territoriais. Por isso, ali despontou a tendência de revê­lo.

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8.5.3.3 Escola estatutária

Assim nasceu a escola estatutária no século XIII, primeira tentativa de solução científica dos problemas ligados à eficácia espacial da lei.

Surgiu de um comentário do glosador Francesco Accursio (1182­1260) a certo texto do Direito romano. Sua interpretação teve influência na época, porque, na Europa, o Direito romano era o direito comum, e os seus textos consolidados constituíam Direito Positivo. O comentarista, por um hábil raciocínio, afirmou que se podia aplicar a um indivíduo, em determinada circunstância, a lei de sua Nação e não a do território em cuja jurisdição estava. Se sua conclusão provinha, não de uma criação doutrinária, mas de uma interpretação do Direito Positivo, o precedente tornou possível admitir­se a aplicação extraterritorial da lei.

Seguindo Accursio, dois grandes juristas italianos, Bartolo de Saxoferrato (1313­1357) e Pietro Baldo (1319­1400), lançaram os fundamentos doutrinários da nova escola.

Bartolo e Baldo fizeram a distinção entre estatuto pessoal e estatuto real.

Diziam eles haver dois gêneros de relações jurídicas: umas de pessoa para pessoa ou pertinentes à sua própria condição (família, estado, capacidade, tudo o que dissesse respeito à pessoa em si mesma), submetidas a um estatuto pessoal, outras com as coisas (propriedade, direitos reais e obrigacionais), submetidas a um estatuto real. As do segundo estariam submetidas à legislação do lugar da coisa; às do primeiro, à lei da pessoa, que a acompanharia aonde quer que estivesse. Assim, o cidadão de um país teria, em território estrangeiro, a faculdade de invocar a sua lei de origem, e a jurisdição deste a obrigação de aplicá­la, sempre que estivesse em jogo um direito de natureza pessoal.

A escola estatutária, do século XIII ao XVII, obteve imenso prestígio em toda a Europa. A integridade do sistema veio a ficar comprometida pela impossibilidade de, em certas situações, determinar­se a sua característica pessoal ou real. Se há situações marcadamente pessoais, como o direito à emancipação conseqüente da idade, e outras, assinaladamente reais, como a extensão dos direitos concedidos ao proprietário, existem terceiras em que o

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aspecto pessoal e o real mostram­se mesclados. Assim, no direito hereditário, o vínculo jurídico tem natureza pessoal, mas incide sobre coisas, e, portanto, o direito que dele emerge é real. Para enfrentar a dificuldade, a escola admitiu um estatuto misto, compatível com essas situações ecléticas. Não obstante, esse estatuto misto abalava a base doutrinária da dicotomia, porque invalidava o seu próprio fundamento.

8.5.3.4 Escola flamenga

No século XVII, a escola estatutária continuo prestigiosa, porém a doutrina sofreu transformação, sob a influência da escola holandesa ou flamenga, na qual se destacam os nomes de Ulrich Huber (1636­1694) e Paul Voet (1647­1714). A alteração não investiu, propriamente, contra as fórmulas que aquela havia oferecido, sim contra o fundamento das suas soluções. Propôs­se novo fundamento, despido de mérito científico, o que representou um retrocesso na doutrina.

Para a nova escola, que refletia uma época de intenso nacionalismo na Holanda, os Estados deveriam aplicar sua lei soberanamente em todo o seu território, a nacionais e a estrangeiros, assim como a quaisquer relações, pessoas e bens sujeitos à sua jurisdição. No entanto, podem, por uma questão de gentileza internacional, comitas gentium, aceitar a lei estrangeira, não por uma imposição doutrinária, mas sim meramente por um ato de gentileza política, o que redundaria no princípio da reciprocidade. O Estado toleraria a lei estrangeira no seu território, quando ela fosse a de um Estado que, a seu turno, aceitasse a dele.

8.5.3.5 Savigny

Foi já no século XIX que se deu realmente um grande passo na matéria. Devemo­lo a Savigny, que lançou as bases do Direito Internacional Privado Moderno.

Savigny afirmava que, na medida em que o mundo evolui, em que os povos se aproximam, em que as relações jurídicas se internacionalizam, passando a se estabelecer entre indivíduos sujeitos à jurisdição de vários Estados, ultrapassando fronteiras territoriais, o princípio da territorialidade das leis torna­se anacrônico, devendo ser substituídos pelo da comunidade de

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direito. Todos os indivíduos teriam de ser reconhecidos na sua condição humana mesma, tendo os Estados a obrigação de aceitar uma real comunidade de direito existente entre os povos.

Quando o jurista examinasse uma situação em que a presença de um elemento estrangeiro originasse conflito de leis, não deveria atender à distinção entre nacionais e estrangeiros, mas analisar a natureza mesma da relação jurídica. A lei aplicável não deveria ter senão esse fundamento.

Tendo qualquer relação jurídica uma sede, a lei que se deve aplicar, de acordo com a sua peculiar natureza, é a desta sede.

As leis de aplicação possível seriam: a do domicílio, a do lugar da coisa, a do lugar do ato e a do lugar do foro, aplicadas, respectivamente, ao estado e ao matrimônio, aos direitos reais, às obrigações (lugar de execução) e ao direito sucessório.

8.5.3.6 Mancini

Veio a doutrina de Savigny a sofrer contestação, ainda no século XIX, do internacionalista italiano Pascoale Estanislao Mancini (1817­1888), que lançou a teoria da nacionalidade.

Dizia Mancini que o Estado, ao julgar da aplicação da sua própria lei, tem de constatar que há matérias em que prevalecem interesses de ordem pública, em relação às quais a aplicação deve ser territorial.

Nas situações em que existe apenas o interesse individual, os próprios indivíduos podem escolher a lei que entenderem. Mas há relações jurídicas que, não sendo de ordem pública, são, todavia, incompatíveis com essa plena franquia. Por exemplo, a lei que rege o estado civil, a capacidade, o direito de família, é mais de interesse individual do que social; entretanto, não se pode admitir que alguém seja casado num país e solteiro noutro, aqui maior, acolá menor, aqui capaz, além incapaz. Semelhantes situações devem ter regime legal estável. Para essa terceira classe de situações a lei deve ser pessoal; para Savigny, o domicílio era pessoal, enquanto para Mancini era nacional.

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Já agora se vê que o princípio da personalidade só tem de invariável a afirmativa de que a lei pessoal rege certos interesses do indivíduo. Mas saber qual deva ser enseja a subdivisão: lei domiciliar, lei nacional.

É preponderante hoje o entendimento de que a lei pessoal deva ser a domiciliar, porque o domicílio é liame mais constante, de mais fácil determinação e mais significativo para a pessoa do que a nacionalidade. Esta, às vezes, é de determinação difícil, havendo pessoas que têm mais de uma e outras sem nenhuma.

Além disso, o vínculo domiciliar é mais significativo. No Brasil, há estrangeiros domiciliados há dezenas de anos. Seria absurdo que esses, cuja vida transcorreu quase toda no Brasil, pudessem, após tantos anos, invocar a sua legislação nacional.

8.5.3.7 Pillet

Antoine Pillet propõe uma teoria original. Reputa a aplicação territorial da lei decorrência necessária do respeito à soberania dos Estados, que devem aplicar ao máximo a sua legislação interna e reduzir ao mínimo as exceções a esta regra.

Para esse máximo de aplicação mister se faz sejam alcançadas generalidade e permanência. A generalidade obtém­se pela aplicação do direito interno a todas as pessoas em território nacional. A permanência, aplicando­o aos jurisdicionados em qualquer circunstância ou lugar.

No entanto, essas pretensões (generalidade e permanência) são conflitantes. O máximo da generalidade gera o mínimo de permanência e o máximo de permanência, o mínimo de generalidade. A solução está em conciliar os dois objetivos. Impera uma lei interna, de maneira geral, quando a importância da generalidade domina a da permanência. E impera o direito interno de modo permanente, quando a importância de permanência supera a da generalidade.

Dois exemplos nos habilitarão a compreender em que consistem essas conveniências. Tomemos as normas relativas à situação dos menores. É evidente que falhariam à sua finalidade se não se lhes aplicassem permanentemente. O Estado, para assegurar a constância da sua lei em relação

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aos seus cidadãos, admite a aplicação da lei estrangeira aos nacionais de outros Estados. Em outras situações, a conveniência é oposta. Então, convém ao Estado aplica a sua legislação a nacionais e estrangeiros, indistintamente (generalidade), ainda que os seus cidadãos, em território de outro país, fiquem privados de invocar a sua própria lei.

A importância maior da generalidade ou da permanência verifica­se pela análise do objeto social da lei.

8.6 EFICÁCIA DA LEI NO TEMPO

As leis atendem a necessidades sociais cambiantes. Consequentemente, têm começo e fim.

A vigência de uma perdura até que outra venha a revogá­la.

8.6.1 Conflito de leis

A aplicação das leis no tempo enseja conflitos quando uma relação jurídica se constitui, ou um direito se adquire no regime de uma lei, e mais tarde vêm a ser objeto de outra.

Pergunta­se: continua o direito a se regular pela lei do tempo em que foi adquirido, e a relação produzir efeitos, tal como previsto na lei anterior? Ou atinge a lei nova todas as relações e situações sobre as quais dispõe?

A propósito, defrontam­se os princípios da irretroatividade e da retroatividade, constituídos em regra e exceção.

8.6.1.1 Princípios

Em apoio ao princípio da irretroatividade, invoca­se a necessidade de segurança das relações jurídicas. O indivíduo que pratica um ato de acordo com o figurino legal deve ficar tranqüilo quanto à sua eficácia.

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O princípio da irretroatividade, porém, não é radical e em nossos dias sofre grandes restrições, porque o seu fundamento filosófico é individualista, o que tem algo de decadente. Na medida em que se acentua esse declínio, vai a irretroatividade ganhando mais flexibilidade e se esvaziando da rigidez inicial.

Consoante o princípio oposto, o da retroatividade, as leis devem acompanhar as transformações sociais. Se toda lei aceitasse o quanto se fez sob a anterior, respeitando cegamente as situações constituídas, as alterações sociais seriam profundamente prejudicadas, porque a eficácia efetiva da nova lei só poder­se­ia afirmar a prazo muito longo. A par disso, presume­se que o legislador, estatuindo lei nova, atenda melhor ao imperativo do momento.

Nem se deve admitir, acentua Meltíades Theodosiadés, citado por Bento de Faria (1875­1959), que a orientação do sistema de uma época constitua paradigma para limitar o pensamento e a cultura das gerações porvindouras.

8.6.2 Conceito jurídico da irretroatividade

O princípio da irretroatividade pode ter apenas feição lógica. Se dizemos que uma lei só se aplica depois de entrar em vigor, não estamos expressando qualquer princípio jurídico, mas lógico.

A irretroatividade, na sua formulação jurídica clássica, não se traduzia neste enunciado; exigia que a situação jurídica constituída ao tempo de uma lei continuasse a se reger por ela, ainda que já revogada.

Suponhamos que em três anos consecutivos tivéssemos tido três leis, uma em cada ano, sobre locação de prédios urbanos. De acordo com o dogmático princípio da irretroatividade, no último dos três anos, quando já revogadas as leis dos dois anteriores, o juiz aplicaria essas leis revogadas às locações que ao seu tempo se tivessem constituído. Assim, a lei anterior invadiria o tempo da posterior.

Atualmente, a irretroatividade tem fórmula menos rigorosa, ligada à análise mais justa da matéria e imposta pelas necessidades da época, que reclamam rapidez de mudança.

8.6.2.1 Natureza positiva

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A irretroatividade pode ser um princípio constitucional, de lei ordinária, ou simplesmente doutrinário. Na mesma ordem, será mais ou menos rígida a sua aplicação.

Se é constitucional, não será somente o juiz a ficar proibido de aplicar as leis retroativamente; também o legislador não poderá promulgar leis que tenham efeito retroativo.

Se é de lei ordinária, obriga ao juiz, que está sujeito à norma legal; ao legislador, não. Sendo a lei irretroativa, o juiz não pode aplicá­la retroativamente, porque há norma geral que o prescreve; mas se retroativa, ele assim a aplica porque, sendo lei ordinária, é do mesmo nível hierárquico da outra.

Se é apenas doutrinário, os juizes aplicam a lei de acordo com a interpretação que lhes parece mais idônea, retroativa ou irretroativamente, considerando a sua finalidade e a conveniência de seu emprego mais ou menos inflexível.

8.6.3 Doutrina

O princípio da irretroatividade não é absoluto. Se o fosse, contradiria a imperiosidade de reforma legislativa. A doutrina procura determinar o seu limite, indicando os casos em que a lei deve ter eficácia total, ainda que esta represente exceção à irretroatividade.

Quatro teorias parecem mais importantes: a de Savigny, a dos direitos adquiridos, a de Julien Bonnecasse (1878­1950) e a de Paul Roubier.

8.6.3.1 Savigny

Para Savigny, as leis devem ser irretroativas quando dispõem sobre a aquisição de direitos, a maneira de adquiri­los; se sobre a própria existência dos direitos, devem ter vigência total, imediata, e alcançar todas as situações, ainda que se lhes precise atribuir, para isso, eficácia retroativa.

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Figuremos uma lei que regule sobre como adquirir a propriedade do solo. Se lei nova vem modificar as condições anteriormente exigidas para tal fim, ela respeitará o direito dos adquirentes sob o regime da antecedente.

Mas se declarasse extinta a propriedade privada da terra, sua eficácia seria total. Ninguém poderia alegar, contra ela, que havia adquirido terra precedentemente à sua vigência. No Brasil, a lei que aboliu a escravatura foi dessa natureza. Os escravos haviam sido negociados em forma legal. No entanto, no momento em que a escravidão foi suprimida, ninguém podia invocar, a seu favor, para se manter como senhor de escravos, o fato de os Ter comprado anteriormente à lei nova.

8.6.3.2 Direitos adquiridos

A teoria dos direitos adquiridos desfrutou de extraordinária notoriedade, incorporando­se à legislação de muitos países, inclusive à nossa. É adotada por um número apreciável de autores, embora alguns destes a formulem com características próprias. No seu patrocínio destacam­se Lassale, Carlo Francesco Gabba e, principalmente, seu mais autêntico representante, G. Marie Pierre Gabriel Baudry­Lacantinerie (1837­1913).

A teoria encerra, na sua essência, uma afirmativa no sentido profundamente impreciso: o princípio da irretroatividade resolve­se no respeito aos direitos adquiridos. Lei nova, versando sobre situação jurídica objeto de lei anterior, aplica­se até onde não importe ofensa ao direito adquirido. Somente se a pessoa está em mera expectativa de direito é que a ela se aplica, sem que nada lhe caiba argüir.

Segundo Baudry­Lacantinerie, o conceito de direito adquirido, que foi e continua sendo muito discutido, eqüivale ao da faculdade exercida. A ordem jurídica concede­nos faculdade de agir. Depende da nossa vontade exercê­las ou não. Se, assegurada uma faculdade, alguém a exerce, e surge lei suprimindo­a ou alterando­a, esta não atingirá o direito que pelo exercício daquela tenha sido adquirido.

A teoria incorporou­se ao nosso Código Civil, para o qual o direito adquirido é aquele que o seu titular pode exercer, ou cujo exercício depende de condição ou termo inalteráveis a arbítrio de terceiro.

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A teoria dos direitos adquiridos, dentro da doutrina geral da irretroatividade, é uma das fórmulas mais radicais do individualismo jurídico.

Falta­lhe, também, base doutrinária, porque, a rigor, a expressão direito adquirido é ilógica. Ou o indivíduo adquiriu o direito e o tem, ou não o adquiriu e não o tem.

Além disso, as restrições ao princípio da irretroatividade alcançam exatamente os direitos adquiridos, porque em situações em que não os haja não existem dificuldades. Se há simples expectativas, a lei ao se aplicar de maneira plena, não atrita com o princípio da irretroatividade.

8.6.3.3 Bonnecasse

Bonnecasse, para distinguir os casos em que a lei deve ter aplicação irretroativa daqueles em que pode ser aplicada sem restrições, discriminou entre situações jurídicas abstratas e situações jurídicas concretas.

Uma situação jurídica abstrata é puramente teórica e eventual. Numa situação jurídica concreta há, ao contrário, algo de realizado e atual. O Direito prevê situações que não se constituem por si mesmas, mas que dependem de um fato ou da iniciativa do indivíduo. Só se formam por uma espécie de resultado fecundador da vontade individual e dos fatos. Enquanto a vontade não se enuncia ou o fato não se realiza, a situação é abstrata, potencial, teórica, poderá ou não vir a se configurar. A partir do momento em que ocorre o ato ou o fato que a norma prevê como capaz de desencadear os seus efeitos, aquela situação teórica e potencial transforma­se noutra efetiva, real e concreta.

Se a lei nova dispõe sobre uma situação jurídica, há que distinguir as pessoas para as quais ela era simplesmente abstrata daquelas para as quais era concreta. Não respeita situações jurídicas abstratas, só as concretas.

Um exemplo torna clara a distinção. Entre pessoas vivas, a situação hereditária, decorrente do parentesco, é uma situação jurídica abstrata, uma vez que ainda não ocorreu o fato que a transformaria em jurídica concreta, a morte de uma delas.

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Se uma lei suprimisse os colaterais de entre os herdeiros, irmãos que estivessem vivos não poderiam alegar, pela morte ulterior de um deles, que, ao tempo em que viviam, a lei reconhecia entre eles a sucessão hereditária, porque todos estavam numa situação abstrata. Mas se a lei encontrasse já se processando a transmissão hereditária de um irmão a outro, ela não a prejudicaria, porque a morte havia transformado a situação abstrata noutra concreta.

8.6.3.4 Paul Roubier

Atualmente, a doutrina da irretroatividade vem sendo gradualmente contida em limites bastantes restritos. Um dos autores que mais contribuíram para dar ao princípio uma dimensão compatível com as necessidades de transformação legislativa, expurgando­o do gigantismo que havia assumido em épocas de profundo individualismo, foi Paul Roubier.

Diz Roubier que quanto uma lei entra em vigor atinge os efeitos de todos os atos e situações que encontre, sem ter por isso alcance retroativo, tão­ somente imediato. Para ter eficácia retroativa é necessário ir de encontro ao passado, sacrificando efeitos consumados. A lei, defrontando­se com uma situação jurídica constituída e atingindo apenas os seus efeitos futuros, mesmo modificando­os, não será retroativa.

São três os efeitos da lei: retroativo, imediato e diferido.

É retroativo, quando se estende a efeitos de situações criadas anteriormente. Essa aplicação é desaconselhada, porque infringe uma regra de segurança jurídica.

É imediato, quando a lei nova alcança os efeitos futuros dos atos jurídicos, mesmo constituídos sob lei anterior, sendo isso normal.

Por exceção, uma lei pode ter os seus efeitos diferidos para o tempo de outra ulterior, se esta aceita que uma situação jurídica constituída ao tempo daquela continue a produzir efeitos sob o regime dela. Este é o efeito diferido: lei já revogada ainda aplicada, no tempo de vigência de lei nova, justamente o que outrora se entendia por irretroatividade.

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