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DANIEL COELHO DE SOUZAProfessor catedrtico da Universidade Federal do Par Ex-membro do Conselho Federal de Educao

INTRODUO CINCIA DO DIREITO

6 edio

editor a C cejup

INTRODUO A introduo cincia do Direito responde, no curso jurdico, necessidade de uma disciplina geral. Os cursos superiores, desenvolvidos por disciplinas especializadas, reclamam que ao estudo setorial preceda outro geral. Esta convenincia mais veemente no curso jurdico, cujo objeto histrico: regras obrigatrias de conduta na sociedade de um tempo, o que, provavelmente, levou Benjamin de Oliveira Filho a reivindicar para a introduo carter eminentemente cultural. No , alis, este imperativo apenas jurdico, qualquer que seja o nvel em que exposto e compreendido, se o seu estudo generalidades, pretenso mais ambiciosa e viso sinttica sugerida por A. B. Alves da Silva. de ordem didtica. O saber o consideremos, s pode ser bem se inaugura pelo exame das suas fecunda do que a sua simples

Objetivo de tal natureza sempre foi almejado. Vrias foram as tentativas de alcan-lo: a enciclopdia jurdica, a filosofia do Direito, a sociologia jurdica, a teoria geral do Direito e a introduo cincia do Direito.Enciclopdia jurdica

A enciclopdia jurdica foi a mais remota. Adotava por padro a estrutura do Corpus Juris, tradicional codificao do Direito romano. Pretendem alguns que a obra de Gulielmus Durantis 1237-1326), oSpeculum Judiciale (1275), seja considerada pioneira no gnero, o que outros

contestam. O texto de Durantis abrangia o Direito romano e o cannico, destinando-se mais propriamente s autoridades judicirias do que ao estudo do Direito. A literatura enciclopdica floresceu a partir do sculo XVI, quando se divulgaram numerosos trabalhos compreendendo todos os ramos do direito de maneira sistemtica, entre os quais se destacaram os de Lagus e Hunnius, atribuindo alguns a este ltimo a verdadeira fundao da enciclopdia jurdica. No sculo XVIII, resultante do divrcio entre a filosofia e as cincias positivas, duas tendncias passaram a atuar na enciclopdia jurdica, do que

decorreu que algumas obras se inclinassem no sentido dogmtico ou positivo, como a de Stphane Ptter, e outras no sentido filosfico, como a de Nettelbladt. No comeo do sculo XIX, sob influncia de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) e Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854), procura-se fazer da enciclopdia uma cincia prpria, no mero repositrio mais ou menos ordenado de informaes. Surgiram, assim, as enciclopdias de Karl Ptter, Friedlaender, Rudhart, Heinrich Ahrens (1808-1874), Walter e outros. A partir da segunda metade do sculo XIX a literatura enciclopdica entra em decadncia, no merecendo referncia seno obra de Adolf Merkel (1836-1896), cuja primeira parte dedicada j ao estudo da teoria geral do direito: conceito, caracteres, diviso e gnese do Direito; elementos, diviso e gnese das relaes jurdicas; aplicao do Direito e cincias jurdicas. O trabalho dos enciclopedistas, sem embargo da amplitude terica de algumas de suas obras, era, principalmente, de organizao do Direito positivo. No podia a enciclopdia emancipar-se da experincia jurdica, alcanar conceitos gerais e servir, assim, de instrumento til para um conhecimento jurdico de base no emprica. Adquirir uma idia sucinta das parcelas, como pondera Eusbio de Queiroz Lima, no ter uma noo exata do todo. E alm disso, repara Ernesto Eduardo Borga, por sua orientao empirista, atendo-se aos fatos, somente poderia resultar numa teoria do Direito Positivo, nunca numa teoria que abarcasse o direito todo, menos ainda o conceito elaborado em vista do Direito Positivo.

Filosofia do direito

A filosofia do direito integrou, durante muito tempo, o currculo jurdico, proporcionando ao estudante contato com as mais gerais noes jurdicas. E certo, conforme anota Huntington Cairns, que a especulao jurdica, atravs de toda a sua histria, apesar do fato de que o seu objeto em grande parte existencial, tomou mais da filosofia do que da cincia.

fora de dvida, porm, que por ela no se poderia jamais iniciar o estudo do Direito. No se conclua da, que no tenha valiosa significao no elenco das disciplinas jurdicas. Apenas, o saber filosfico, do ponto de vista lgico, seno cronolgico, deve suceder ao cientfico. O conhecimento filosfico a sntese mais alta que o homem alcana, a nenhuma sntese se atinge, com exatido e coerncia, sem a prvia anlise dos elementos que a pressupem. A atividade filosfica crtica em alto nvel, e os nveis mais altos de crtica no podem ser alcanados sem que antes tenham sido percorridos os inferiores. O saber filosfico s pode ser atingido apoiado em conhecimento anterior mais modesto porque saber de remate. Nem vivel pretender a filosofia de um objeto sem o seu prvio conhecimento cientfico, dado que aquela, explica Joseph Vialatoux, um retour, uma reentrada, uma re-flexo de um saber ao menos comeado. A tendncia geral, em nossos dias, deslocar a filosofia jurdica do currculo de graduao para o de ps-graduao, posio de culminncia que j lhe fora assinalada por Alessandro Levi. Tambm o nosso Pedro Lessa (1859-1921), que entendeu ter sido um erro grave a eliminao dessa disciplina dos cursos jurdicos, pretendia v-la situada no ltimo ano da academia.

Sociologia jurdica

Podemos estudar os fatos sociais na sua generalidade, naquilo que todos tm em comum, examinlos, portanto, em sentido lato; paralelamente, podemos considerar alguns deles que tm qualificao prpria e promovem um processo adaptativo peculiar. A sociologia geral, consoante Nicholai S. Timacheff, estuda a sociedade em nvel altamente generalizado ou abstrato, e as cincias sociais particulares, sob um determinado e especfico aspecto. Segundo Pitirim Sorokim (1889-1998), a linha de demarcao existente entre estas e aquela decorre do fato de que, se existem, dentro de uma classe de fenmenos, N subclasses, deve haver N + 1 disciplinas para estud-las: N para estudar cada subclasse e mais uma para estudar aquilo que comum a todas, bem como a correlao entre elas. O fato jurdico, sendo social, pode ser objeto de uma delas, a sociologia jurdica. Sucede, porm, que a sociologia jurdica considera o Direito sob o aspecto da sua causalidade histrica, que apenas um elemento para compreend-lo. O Direito , antes de tudo, norma e valor. No cabe

compreendido na sua universalidade sem a pesquisa das exigncias ticas que inspiram suas regras, ao que no atende a sociologia jurdica. Esta , ademais, uma cincia de temtica polmica e de contornos relativamente imprecisos, o que a inabilita para servir de disciplina geral nos estudos jurdicos. o que assinala, tambm, Andr Franco Montoro, quando a caracteriza como disciplina que ainda no se consolidou suficientemente, no sentido de no dispor de um corpo sistemtico de concluses, com objeto e mtodos definidos, atraso de desenvolvimento que atribui hostilidade de dois setores afins: de um lado, os juristas resistem penetrao, em seu campo, de uma disciplina estranha dogmtica jurdica, e, de outro, os socilogos desconfiam da objetividade e do carter cientfico de estudos vinculados normatividade jurdica. Alm disso, a sociologia jurdica no focaliza, nem lhe caberia fazer, a regra jurdica em si, na sua estrita significao normativa. Dedica-se anlise dos seus pressupostos fticos, os fatores sociais que a determinam. E estes, relevantes que sejam para o socilogo ou o historiador, no satisfazem necessidade de pr-conhecimento cientfico do ordenamento jurdico, porque dele no proporcionam uma noo autntica e metdica.

Teoria geral do Direito.

A teoria geral do Direito, no campo dos estudos jurdicos, refletiu a influncia avassaladora do positivismo do sculo XIX. Escola antimetafsica, o positivismo alimentava a convico de que a filosofia jamais alcanaria, como sempre se propusera, o conhecimento das essncias. Sob sua feio ortodoxa, importava verdadeira contestao da autonomia do conhecimento filosfico, dado que entendia caber a este a misso de integrar e coordenar o conhecimento cientfico. No setor dos estudos jurdicos, a filosofia positivista engendrou a teoria geral do direito, que devia substituir a filosofia jurdica. O jurista partiria da anlise da realidade histrico-social para, por comparao e induo, alarse aos conceitos. Cincia, conforme pretendia ser, a sua primordial caracterstica seria a de subordinar-se ao mtodo cientfico. Nenhum saber jurdico poderia convergir para outro objeto que no o prprio direito positivo. Ao jurista competia observar as instituies, determinar as suas

afinidades, assinalar as suas relaes permanentes, e, finalmente, por induo, alcanar as respectivas noes gerais. Embora a teoria geral do Direito no tenha ocupado a posio que almejava, uma vez que dava por sucumbida a filosofia jurdica diagnstico em que falhou totalmente, pois, como assinala Alceu Amoroso Lima (1893), assistimos nos ltimos anos a um recrudescimento em torno dos fundamentos filosficos do Direito, como talvez jamais se tenha visto no decorrer de toda a histria - certo que se integrou definitivamente na doutrina do direito. indubitvel, porm, que ela no exaure os nossos conhecimentos tericos. Basta ter em mente que condenava a fracasso qualquer tentativa de conhecimento jurdico-filosfico, o que contradiz toda a cultura jurdica contempornea.

Introduo cincia do Direito

A introduo uma disciplina cuja meta mais pretensiosa est na formulao de princpios gerais aplicveis ao conhecimento jurdico. uma disciplina epistemolgica, no uma disciplina jurdica em sentido restrito, porque no estuda uma normatividade jurdica histrica. No se ocupa de normas jurdicas, de sistemas de direito positivo, de nenhum ordenamento jurdico vigente. uma cincia da cincia do direito. Considera as noes gerais do direito, tal como podem ser abstratamente formuladas, quase sempre fazendo omisso dos seus matizes histricos reais. Uma das suas caractersticas mais tpicas o seu sentido pragmtico. Seu contedo no rigoroso, exato, rgido. Defensvel, at certo ponto, incluir ou excluir dele certas matrias. Constituem-na noes que professores e tratadistas entendem adequadas para a iniciao ao curso de Direito. Essa circunstncia gera a diversidade dos programas de ensino. Uma das facetas da sua preocupao prtica est em que ela deve servir de trnsito entre o curso mdio e o superior. Problema que hoje objeto de preocupaes e cuidados, justificando a reivindicao de um processo de integrao da escola mdia com a universidade. As dificuldades da passagem daquela a esta no so exclusivas do curso jurdico. Afligem, em parte, os candidatos a outros cursos, como o de

Medicina, o de Engenharia, o de Economia, etc. No curso de Direito, porm, como enfatiza Gaston May, se agravam. Em relao a outros, o currculo mdio proporciona, de algum modo, conhecimento prvio que ter utilidade direta no curso superior. Em Medicina, por exemplo, o estudante j se contactou com a Biologia e a Fsica. Em Engenharia, as noes de Fsica e de Matemtica obtidas no curso mdio so de vantagem decisiva no superior. Para o estudante de Direito, no entanto, h um hiato entre o curso mdio e o superior. por isso que a introduo, sem prejuzo do seu ncleo de idias gerais a que corresponde, em princpio, a chamada teoria geral do Direito colige noes no jurdicas, mas filosficas, sociolgicas e, eventualmente, tambm histricas, e delas se utiliza como ponte entre o curso mdio e o superior. Para justific-la, ainda poderiam ser citadas as palavras de que se serviu Cousin para pleitear a criao dessa disciplina em Frana, transcritas por Lucien Brun: Quando os jovens estudantes se apresentam em nossas escolas, a jurisprudncia para eles um pas novo do qual ignoram completamente o mapa e a lngua. Dedicam-se de incio ao estudo do Direito Civil e ao do Direito romano, sem bem conhecer o lugar dessa parte do Direito no conjunto da cincia jurdica, e chega o momento em que, ou se desgostam da aridez desse estudo especial, ou contraem o hbito dos detalhes e a antipatia pelas vistas gerias. Um tal mtodo de ensino bem pouco favorvel a estudos amplos e profundos. Desde muito tempo os bons espritos reclamam um curso preliminar que tenha por objeto orientar de algum modo os jovens estudantes no labirinto da jurisprudncia; que d uma vista geral de todas as partes da cincia jurdica, assinale o objeto distinto e especial de cada uma delas, e, ao mesmo tempo, sua recproca dependncia e o lao ntimo que as une; um curso que estabelea o mtodo geral a seguir no estudo do Direito, com as modificaes particulares que cada ramo reclama; um curso, enfim, que faa conhecer as obras importantes que marcaram o progresso da cincia. Um tal curso reabilitaria a cincia do Direito para a juventude, pelo carter de unidade que lhe imprimiria, e exerceria uma influncia feliz sobre o trabalho dos alunos e seu desenvolvimento intelectual e moral . Complementarmente, vlido observar que a introduo atua como verdadeiro teste vocacional. A experincia mostra que o universitrio de outros cursos, pelo trato anterior com matrias que a eles pertencem, tem, de um modo geral, embora imprecisamente, relativa informao quanto natureza dos dotes pessoais que lhe sero preferentemente reclamados. O

discpulo que no curso colegial sente predileo pela Matemtica tem razovel probabilidade de xito no curso de Engenharia, ou em outro em que o conhecimento matemtico seja bsico. J o estudante de Direito habitualmente se inclina para o curso por uma escolha negativa. a falta de ajuste s cincias experimentais, quase sempre, que o leva do colgio faculdade, quando no uma inclinao literria ou um simples pendor para as leituras propiciatrias de cultura geral. Essa escolha no escuro encerra o risco de uma opo a que no corresponda inclinao autntica. O estudo jurdico, como o de qualquer curso superior, especializado, o que importa dizer que resultado melhor obtido quando tentado por quem possui real inclinao para as matrias que o integram. Por isso, a introduo, dando ao estudante um primeiro contato com o curso, faculta-lhe julgar das suas prprias habilitaes e retificar ou confirmar uma escolha que pode ter feito sem os elementos imprescindveis sua deciso.

SUMRIO1. Dados filosficos 1.1 Realidade e valor 1.2 Homem e valor 1.3 Direito e justia 2. Dados sociolgicos 2.1 Fato social 2.2 Sociedades humanas 2.3 Fenmeno poltico 3. Dados sociofilosficos 3.1 Normatividade social 3.2 Normas ticas e normas tcnicas 3.3 Normas morais e normas jurdicas 3.4 Normas convencionais 4. Disciplinas jurdicas 4.1 Disciplinas fundamentais e auxiliares 4.2 Filosofia jurdica 4.3 Cincia do Direito 4.4 Teoria geral do Direito 5. Noes fundamentais 5.1 Norma jurdica 5.2 Norma, sano e coao 5.3 Sanes jurdicas 5.4 Fontes do Direito 5.5 Direito subjetivo 5.6 Direitos pessoais e direitos reais 5.7 Proteo dos direitos subjetivos 5.8 Dever jurdico 5.9 Relao jurdica 5.10 Atos jurdicos

5.11 Sujeito de Direito 5.12 Objeto do Direito 5.13 Ato ilcito 6. Instituies jurdicas 6.1 Instituies jurdicas 6.2 O Estado 6.3 Personalidade 6.4 Famlia 6.5 Propriedade 6.6 Posse 6.7 Obrigaes 6.8 Sucesso 7. Enciclopdia jurdica 7.1 Classificao das normas jurdicas 7.2 Problemas de classificao 7.3 Critrios de classificao 7.4 Direito Constitucional 7.5 Direito Administrativo 7.6 Direito Penal 7.7 Direito Processual 7.8 Direito do Trabalho 7.9 Direito Internacional Pblico 7.10 Direito Civil 7.11 Direito Comercial 7.12 Direito Internacional Privado 8. Tcnica jurdica 8.1 Tcnica jurdica 8.2 Vigncia da lei 8.3 Interpretao 8.4 Integrao 8.5 Eficcia da lei no espao 8.6 Eficcia da lei no tempo Bibliografia consultada

1.Dados Filosficos

1.1 REALIDADE E VALOR1.1.1 Realidade e valor

Gustav Radbruch (1878-1949), reportando-se s doutrinas de Wilhelm Windelband (1848-1915) e Heinrich Rickert (1863-1936), considera bsica a distino entre realidade e valor. Comenta, com evidente acerto, que em meio aos dados de nossa experincia, surgidos de maneira uniforme em nossas prprias vivncias, realidade e valor mostram-se-nos mesclados. Homens e coisas, saturados de valor e de desvalor, aparecem associados sem que possamos fazer entre eles ntida distino. Quando refletimos sobre a nossa experincia, percebemos que o valor no est nas coisas e sim em ns mesmos. Se digo de uma tela que bela, a beleza no est nela, mas no meu julgamento. Se digo de um ente que til, a sua utilidade no lhe intrnseca, mas um atributo que lhe confiro. O primeiro ato da conscincia parece ser o de formular uma reivindicao do prprio eu, libertando dos dados de experincia aqueles que so pessoais, e isso leva a distinguir realidade de valor. Realidade e valor pertencem a setores autnomos; realidade objetividade; valor, subjetividade. No podemos falar de valores como se fossem reais ainda que para Max Scheler (1875-1929), segundo Alfred Stern, nos sejam dados antes de toda experincia e, portanto, aprioristicamente; e nem de realidades como se um valor lhes fosse inerente. Ao valor correspondente uma essncia prpria, tambm realidade, outra. Realidade e valor so inconfundveis. Uma , outro deve ser. A realidade existe, um atributo do ser; o valor se afirma, um julgamento do sujeito, sem o qual o mundo, observa Wilhelm Schapp, no teria interesse para o homem. Essa distino bsica para a filosofia jurdica, porque o direito julga o comportamento. Nenhum julgamento pode, logicamente, existir sem a idia de um valor, porque julgar comparar um objeto a um valor, para concluir da sua compatibilidade ou incompatibilidade. O direito, fazendo apreciao da conduta, porque discrimina entre lcito e ilcito, importa estimao de valores. No pertence, portanto, na sua irredutvel essncia, ao plano da realidade.

1.1.2 Ser e dever serDa distino entre realidade e valor resultam duas posies: a que se refere ao ser dos entes e a que se refere ao dever ser do homem. E, como corolrios dessas, os conceitos de lei natural e lei tica, distino essa cujo desconhecimento, conforme Raimundo Farias Brito (1862-1917), atenta contra a natureza das coisas e a mais comum experincia.

1.1.2.1

Juzos enunciativos e valorativos

Esses conceitos so alcanados atravs de juzos que so a alavanca fundamental da atividade cognitiva da inteligncia humana, o que deles faz sejam inteiramente diversos das representaes, mesmo considerados do ponto de vista psicolgico, como afirma Franz Brentano (1838-1917). A experincia tem por objeto coisas e fatos individualizados. Sobre ela a mente do homem elabora o conhecimento. Mas assim no faria, no fosse a sua possibilidade de formular juzos, Essa aglutinao pode dar-se por anlise ou por sntese, isto , ou consiste numa decomposio do objeto da experincia em seus elementos intrnsecos, ou num acrescentamento ao objeto de algo que no lhe pertence por essncia. H, portanto, juzos analticos e sintticos. Segundo Emmanuel Kant (1724-1804), a quem coube formular com clareza a distino, os analticos no ampliam nosso conhecimento, apenas desenvolvem o conceito e o tornam mais inteligvel. Ao contrrio, os sintticos so autnticos juzos de experincia e sobre eles se constrem todas as cincias explicativas. Alm do mais, construdos os juzos sintticos na base da observao, podem eles mesmos ser ligados, numa segunda operao lgica, cujo nvel de criatividade maior. Se temos noes resultantes da experincia de duas coisas singulares e conseguimos aglutin-las, formamos uma terceira noo representativa de uma nova realidade, cuja criao dependeu da experincia apenas indiretamente. E nesse processo atingimos, progressivamente, nveis cada vez mais altos de compreenso e generalidade. Como explica G. J. Romanes, a partir do mais simples juzo possvel e, portanto, da mais simples proposio (correspondente gramatical do juzo), a inteligncia humana elevase de um modo uniforme e ininterrupto. Nem outra a lio de Kant, quando ensina que os juzos estabelecem uma unidade entre as nossas representaes,

pois que a uma representao imediata substituem outra mais elevada que contm a primeira, assim como vrias outras, de modo que muitos conhecimentos possveis so reunidos em um s. Os juzos atendem diferena entre natureza e valor. H juzos pertinentes compreenso do mundo natural e juzos que traduzem valores e definem atitudes do homem sensibilizados por eles. Da a distino entre juzos enunciativos e juzos valorativos. Podemos dizer isto, ou dizer deve ser isto. s vezes a cpula verbal ser , outras, dever ser . Quando usamos ser , para coordenar duas idias, formulamos um juzo enunciativo. Se a coordenao se faz com dever ser , o juzo valorativo. Os enunciativos so juzos de experincia; os valorativos, estimativos de valor. Os enunciativos so descritivos. Quando dizemos de algo que , fazemos apenas uma descrio, tanto mais perfeita quanto mais impessoal. A atitude do naturalista de completa neutralidade: narrao de uma experincia. Por isso, dizemos que os juzos enunciativos so tericos. Medem-se pelo critrio da veracidade, isto , podem ser verdadeiros ou falsos. Um juzo enunciativo verdadeiro quando h coincidncia entre o liame que prende as idias no juzo e o que existe entre as coisas ou fatos a que elas se referem, quando, na frase magistral de Joaqun Xirau (1895), o seu perfil se calca sobre o perfil do ser. Se declaramos que A B, e de fato existir uma ligao objetiva entre A e B, igual que afirmamos, temos um juzo verdadeiro. Ele vincula, logicamente, idias de realidades, tambm naturalmente vinculadas. H perfeita identidade entre a teoria do fato e ele prprio. Falso um juzo equivocado, no qual se pretende estabelecer logicamente relao inexistente no plano da realidade. Os juzos verdadeiros dividem-se em verdadeiros necessrios e verdadeiros contingentes, distino equivalente que se faz entre verdades de razo e verdades de fato, claramente feita por Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716), a qual, na observao de Manoel Garcia Morente (1888-1942), resulta da necessidade de se determinar a curva geral do desenvolvimento das ligaes existentes entre os vrios estados internos da percepo. H idias ligadas entre si por necessidade lgica, de maneira que impossvel a sua recproca desvinculao. Quando o elo que une duas idias tem essa natureza, o juzo que indica a relao descritivo necessrio. Ao dizermos que a linha reta a distncia mais curta entre dois pontos, estamos fazendo uma afirmativa que a razo assevera ser inconcebvel negar em qualquer situao. Se declaramos que duas coisas iguais a uma terceira tambm o so entre si,

afirmamos uma verdade de razo, porque esta evidencia a impossibilidade de haver duas coisas que, sendo iguais a uma terceira, no o sejam entre si. Nesses exemplos enunciamos juzos verdadeiros, descrevendo realidades tais como so, e necessariamente verdadeiros, porque no podemos conceber circunstncia, no tempo e no espao, capaz de desmentir a ligao lgica estabelecida entre as idias no juzo. Um juzo verdadeiro contingente descreve uma realidade como ela se apresenta, mas, sendo essa realidade suscetvel de transformaes (pode ter sido uma ontem, pode ser outra hoje, poder amanh ser uma terceira), a veracidade do juzo fica condicionada a uma certa circunstncia de tempo e espao. Se descrita como hoje, formulamos um juzo; se como ser amanh, talvez formulemos outro juzo. Assim, em referncia temperatura ambiente, se dizemos que est quente, podemos ter feito um juzo verdadeiro, pelo fato de estar efetivamente quente. Se, horas depois, ao calor suceder o frio, o juzo verdadeiro ser outro. Como o prprio objeto do juzo contingente, ele vlido para cada momento da experincia. Os juzos valorativos da conduta so prticos, porque servem realizao de um fim. E postulativos, dado que enunciam exigncias positivas ou negativas de procedimento.

1.1.2.2 Lei natural e lei ticaOs juzos enunciativos e valorativos conduzem aos conceitos de lei natural e lei tica. A natural a frmula mais evoluda do enunciativo; a tica, a mais evoluda do valorativo prtico. Segundo Emmanuel Kant, a filosofia tem esses dois objetos, abrangendo ambas as leis, em dois sistemas particulares, ainda que ambicione sua sntese final. Conquanto no possamos admitir lei natural sem juzo enunciativo, nem lei tica sem juzo valorativo, existe distino entre lei natural e juzo enunciativo, lei tica e juzo valorativo. Numa experincia, submetemos um pedao de metal ao do calor. Verificamos que o metal se dilatou, e declaramos que o metal X, submetido ao calor, se dilatou. Este um juzo descritivo verdadeiro. Pela multiplicao da

experincia e a anlise das suas condies passamos a uma lei geral: o calor dilata os corpos. Quando alcanamos uma noo geral que explica toda a experincia realizada e possvel, temos uma lei natural. Se deixamos cair um objeto, constatamos que ele cai em direo Terra. Pelo mesmo processo, chegamos a determinar a lei da gravidade. A lei natural a generalizao exemplar de um juzo enunciativo. Se no pudssemos assim construir, adverte mile Meyerson (1859-1933), de nada nos valeriam as regras que formulssemos sobre a experincia dos fenmenos, que so infinitamente diversos. Surge, assim, o conceito abstrato de causa, pelo qual se estabelecem relaes entre o passado e o presente, que so, a rigor, meramente provveis devendo a lei natural desempenhar, como observa Jos Juan Bruera, uma funo meramente sintica das regularidades constatadas pela experincia, as quais, embora praticamente equivalentes certeza, dela apenas so, teoricamente, aproximativas. Esta uma contingncia lgica do mtodo indutivo, que se eleva das sensaes generalidade, ainda que adotado com as cautelas recomendadas por Francis Bacon (1561-1626): elevar-se lentamente, seguindo marcha gradual, sem saltar nenhum degrau. Bertrand Russel (1872-1970) d-nos uma clara idia dos princpios a que esse mtodo est submetido: a) quando uma coisa de uma certa espcie, A, for achada com freqncia associada com outra de espcie diversa, B, e nunca for achada dissociada da coisa da espcie B, quanto maior seja o nmero de casos em que A e B se achem associados, maior ser a probabilidade de que se achem associados em um novo caso no qual saibamos que uma delas est presente; b) nas mesmas circunstncias, um nmero suficiente de casos de associao converter a probabilidade da nova associao em quase certeza e far com que se aproxime de um modo indefinido da certeza. Ainda que o mesmo raciocnio no se possa aplicar lei tica (tanto mais que a radical distino entre natureza e valor j foi antes ressaltada), nem por isso podemos ignorar a significao da experincia na orientao da conduta. Vendo uma pessoa agredir outra, julgamos que no deve proceder

assim; valorizamos uma situao, e, portanto, fazemos um juzo valorativo (no deve ser), diante de um acontecimento humano, circunscrito a uma experincia singular. A tica, disciplina filosfica, habilita-nos a alcanar a lei tica, norma de conduta vlida para uma universalidade de situaes. O juzo valorativo, feito em funo do incidente singular, s gera lei quando conduz a regras gerais com pretenso de validade universal. Consoante ensina Wilhelm Dilthey (1833-1911), construmos generalizaes acerca de estados afetivos, valores vitais, virtudes e deveres, e estes recebem por sua vez fora dos sentimentos e impulsos que surgem da imitao do concreto neles contido e do sentimento tranqilo que a sua subordinao nos infunde. Os predicados que distinguem juzo descritivo e valorativo permitem a distino entre lei tica, com as suas caractersticas prprias, e lei natural, com as suas qualificaes particulares. A lei natural um porqu explicativo da realidade, verdadeira ou falsa, exatamente porque o binmio verdade-erro prevalece no mundo terico. Se dizemos que quando ocorre A ocorre B, essa afirmativa uma lei natural, se assim acontecer no plano da realidade ao qual se refere. A lei natural apresenta os fenmenos, dando-lhes explicao coincidente com a sua prpria realidade intrnseca. Caso no coincidam explicao e realidade, estaremos diante de uma lei falsa, porque todas as leis da natureza assentam no pressuposto, que no cientfico, mas filosfico, da invariabilidade da ordem natural, a qual nos concede prever os fatos uns pelos outros, sem o que, consoante afirma Henri Poincar (1854-1912), no se pode aceitar a legalidade e a possibilidade mesma da cincia. Como explica David Hume (1711-1776), todos os raciocnios concernentes causa e ao efeito, que so os cientficos, esto fundados na experincia e todos os raciocnios tirados da experincia esto fundados na suposio de que o curso da natureza continuar sendo uniformemente o mesmo. A lei tica vlida ou invlida. No verdadeira ou falsa, porque, no campo do comportamento, verdade e erro no tm presena, dado que pertencem ao plano das enunciaes. Uma lei justa ou injusta, fundamentada ou arbitrria, eqitativa ou violenta. vlida, neste sentido filosfico, quando expressa um valor autntico e lhe fiel; invlida, quando no traduz um valor ou o faz de modo inadequado. Uma lei natural presumidamente invarivel, no pode ser, em nenhuma circunstncia, em nenhum momento, desmentida pela experincia.

Podemos acumular sculos de observao, concluir uma lei natural, mas se uma experincia desmenti-la, passa a ser falsa. Ter-se- constatado, ento, o acerto da observao de Andr Cresson, quando afirma que uma lei natural se apoia em verificaes que so como zero em relao generalizao que se lhe atribui. J com a lei tica acontece diversamente. S podemos aceitar a sua existncia se ela for suscetvel de infrao. O pressuposto de qualquer uma o de que se dirige a pessoas livres. Quando se diz deve-se fazer assim, est implicitamente admitido outro procedimento. Entre lei natural e lei tica fez Hermann Ulrich Kantorowicz (18771940), um paralelo diferenciador de extrema clareza, ao afirmar que aquela descreve invariveis relaes causais ou conexes estruturais (de fatos, mudanas, quantidades, propriedades); impe obrigaes, no sobre a conduta humana, mas, no caso de veracidade, sobre a inteligncia; constitui matria de cognio e prova, no de sanes, sim de conseqncias; no de autoridade, sim de experincia; no de conscincia, sim de cincia; no de deveres, sim de acontecimentos constantes. A lei natural gira em torno do que real, enquanto que as normas de conduta prescrevem um comportamento que pode ser ou no real, mas que deveria ser real.

1.2 HOMEM E VALORH valores diversos. Segundo o ensinamento de Scheler, so absolutos, maneiras de sentir que no dependem da sensibilidade e da vida, e podem ser classificados numa escala crescente de perfeio: a) b) c) d) teis (utilidade); vitais (nobreza, sade, fora); espirituais (conhecimento, arte, direito); religiosos (sagrado).

A cada valor corresponde o seu oposto, um desvalor. Assim, utilidade corresponde a inutilidade, nobreza o comum, sade a doena, fora o

despauperamento, verdade o erro, ao belo o feio, ao lcito o ilcito, ao sagrado o profano.

1.2.1 Atitudes ante os valoresDiante dos valores, o homem assume atitudes diferentes. Uma delas avalorativa; a Segunda, valorativa; a terceira, supravalorativa, e a ltima, referencial. Nossa atitude cega aos valores, de neutralidade e indiferena, avalorativa. Se nos situamos em posio de sensibilidade aos valores, esta, em contraste com a precedente, valorativa. Entre essas posies extremas, radicalmente opostas, h posies mistas, que participam das antecedentes. Uma a referencial, na qual no nos encaminhamos diretamente para os valores, mas nos conduzimos motivados por ele. A outra a de transcendncia, de superao dos valores, a supravalorativa.

1.2.1.1 Atitude avalorativaPodemos ver os objetos, insensveis aos valores, inclusive na presena daqueles propcios a uma atitude valorativa. Diante de uma tela ou uma escultura sentimos reao esttica. Esta reao valorativa, expressa uma estimativa segundo o valor do belo. Entretanto, um especialista em determinar autenticidade de pinturas, diante de um quadro, apenas analisa a tcnica do pintor na aplicao da tinta, a composio qumica desta, a constituio fsica da tela, etc. Mesmo diante de uma obra de arte que a todos sensibiliza, lhe cumprir sufocar a tendncia para valoriz-la e ficar indiferente aos seus mritos estticos. Os prprios atos humanos so sujeitos considerao avalorativa. O crime, por exemplo, que produz ressentimento coletivo, pode ser friamente analisado por socilogos ou estatsticos, agindo indiferentes a qualquer estimao. A posio avalorativa, indispensvel no estudo da natureza, leva criao das cincias descritivas, ou na expresso de Claude Bernard (1813-1878), cincias contemplativas.

1.2.1.2 Atitude valorativaPodemos nos colocar, ao contrrio, numa posio valorativa.

Nossa mente povoada de valores, que no so arbitrariamente subjetivos, porque, se o fossem, cada um teria os seus prprios e, entretanto, h valores comuns a todos os homens. No podemos defini-los, porque a sua essncia nos escapa. Mas do-nos eles emocionalmente. No entanto, a nossa vida motivada por eles, sejam utilitrios, morais, jurdicos, religiosos, estticos, etc. Tmo-los, permanentemente, diante de ns, o que faz da nossa conduta uma escolha constante de possibilidades. Podemos nos desprender do mundo em sua pura manifestao fenomnica, tentar ascender ao plano dos valores, saber o que so e determinar-lhes a hierarquia. o que faz a filosofia dos valores. Assim como as cincias naturais so frutos da posio avalorativa, a filosofia dos valores resulta da posio valorativa, e se encaminha, segundo Carlos Astrada, para a determinao de um possvel sentido da vida em funo do valor, da sua vivncia e da sua realizao. As atitudes expostas so contrastantes. Numa, eliminamos a sensibilidade para qualquer valor, porque nos interessa apenas ser igual ao espelho que reproduz a imagem. Nossa meta ver e descrever, sem cogitao de como poderia ou deveria ser. Noutra, nos desligamos da experincia imediata, e tentamos alcanar um mundo ideal que a ela se sobrepe. Essas posies podem ser complementadas por mais duas: a supravalorativa e a referencial.

1.2.1.3 Atitude supravalorativaA supravalorativa transcende, ao mesmo tempo, natureza e valor, que se mostram, s vezes, contraditrios. E um dos dramas humanos exatamente o contraste entre o que e o que deve ser. Essa contradio no apenas da conscincia individual, mas tambm da histria dos povos, e nos inspira a tentativa de super-la, de transcend-la, at um plano em que a realidade seja igual a valor e vice-versa. O homem anseia por uma sntese na qual se libere dessa contradio que marca toda sua vida. Se a alcana, confessa, como Nicolas Malebranche (1638-1715): eu concebo que todos esses efeitos que se contradizem, essas obras que se embatem e se destroem, essas desordens que desfiguram o Universo, que tudo isso no assinala nenhuma contradio na

causa que o governo, nenhum defeito na inteligncia, nenhuma impotncia, seno uma perfeita uniformidade. Essa tentativa de alcanar um estado espiritual em que ser e dever ser coincidam, expressa-se na posio supravalorativa. A religio produto desse esforo. Deus , ao mesmo tempo, o que e o que deve ser. Nele, existncia e valor confundem-se. Porque Nele, conforme William James (1842-1910), a quem mile Boutroux (1845-1921) comparava a Blaise Pascal (1623-1662), o crente continua-se num. Eu mais vasto do qual se difundem experincias liberatrias.

1.2.1.5 Atitude referencialFinalmente, como podemos ver somente realidade, somente valor e no ver realidade nem valor, tambm podemos adotar uma ltima posio, a referencial, que ensaia estender uma ponte entre realidade e valor, como que encaminhando a vida para a eternidade, nas palavras de Wilhelm Sauer (18791962). Nela, o que o homem cria no valor em si, mas referncia a valor. Ela engendra a cultura.

1.2.1.5 CulturaCabe aqui dar um conceito de cultura, o que no fcil, pois se trata de vocbulo cuja significao mltipla. Daremos uma idia elementar que nos basta finalidade deste captulo, partindo da distino entre cultura e natureza. A natureza nos dada mas o homem, como ente biolgico que no se basta , que se move para alm de si (Francisco Pontes de Miranda (1892-1979), quebra as pedras para us-las lascadas, depois polidas, descobre o fogo, faz a sua habitao, cultiva o gado e as plantas e acaba conquistando o espao. Na proporo em que progride, emancipa-se da natureza, da qual, segundo Oswald Spengler (1880-1936), torna-se cada vez mais inimigo. Ele implanta no mundo algo ainda inexistente, e que passa a existir como criao sua, o que Paulo Dourado de Gusmo chama o reino das interpretaes, das destinaes, dos sentidos e dos significados. A isso chamamos, embora a idia seja imperfeita e suscetvel de corrigenda, cultura, que, na frase de Max Scheler, antes de mais nada um processo pelo qual o homem se faz homem.

Ao enriquecer o mundo com os seus produtos, o homem cria em funo de fins, inspirado pela motivao de valores. Cria as obras de arte, inspirado pelo belo; o direito, pela justia, etc. Em si mesmo, o valor inatingvel; se atingido, deixaria de s-lo e passaria a realidade. A posio do homem, portanto, como ser que cria cultura, a de referncia e aproximao a valores.

1.3

DIREITO E JUSTIA

Distinguimos realidade de valor para observar que pertencem a hemisfrios incomunicveis, a cada um dos quais corresponde uma atitude humana. O direito no cabe ao plano da natureza. obra de cultura e, portanto, criao visando a valores.

1.3.1 Valores jurdicosO valor inerente a qualquer norma. Quando pretendemos de uma pessoa que se conduza de certo modo, sabendo que pode proceder de outro, fazemo-lo em funo de um motivo, que o valor da pretenso. Se elegemos uma, dentre vrias condutas possveis, fazemo-lo por julg-la meritria. A regra jurdica, como qualquer outra, dirige-se a fins e s tem sentido quando estes so considerados. Sendo tais fins histricos, os valores que lhes correspondem sofrem a seu turno presses sociais, geradas pelo inconsciente e vigoroso sentimento de unidade social a que se refere Alfred Adler (18701937). Os fins almejados pelo direito so diversos: a ordem, a segurana, a harmonia, a paz social, a justia. A eles correspondem outros tantos valores jurdicos. As normas jurdicas se pautam por eles, meios que so para realizlos. Esses valores apresentam, como os demais, uma hierarquia, embora, no raro, sejamos obrigados a sacrificar um superior por outro inferior. O valor jurdico mais alto, aquele que, por excelncia, torna legtima a proposio jurdica, a justia. Embora sendo ela o mais alto, s vezes outros se lhe sobrepem. Em poca de crise social, comumente sobrepujada pela segurana ou pela

ordem. Assim ocorre em perodo de guerra, quando se mutilam as garantias individuais, em benefcio da segurana coletiva. Em estado de normalidade, o direito tanto mais perfeito quanto mais refletir as exigncias humanas de justia. Para Carlos Cossio (1903), a revelao dos valores jurdicos resulta da anlise do homem em suas trs dimenses existenciais: o mundo objetivo, a pessoa e a sociedade. coexistncia enquanto circunstncia (mundo objetivo) correspondem os valores jurdicos da ordem e da segurana. coexistncia enquanto pessoa, o poder e a paz. Por ltimo, coexistncia enquanto sociedade, a cooperao e a solidariedade. Os valores jurdicos formam pares e em cada um destes h um valor autonmico e um valor heteronmico, isto , de expanso da personalidade e de restrio personalidade. So autonmicos: a segurana, a paz e a solidariedade. So heteronmicos: a ordem, o poder e a cooperao. Como os valores de autonomia so suportes dos de heteronomia, situam-se aqueles em plano superior a estes. justia, que sempre consideramos o valor jurdico por excelncia, reservou Cossio sentido semelhante ao que tem na teoria platnica. No lhe pertence um contedo especfico, sombra que de todos os valores bilaterais da conduta, aos quais d equilbrio e proporo, atuando como critrio para a sua realizao simultnea e proporcional.

1.3.2 Teoria da JustiaNo campo da filosofia jurdica, a teoria da justia uma imposio lgica. Referindo-se-lhe a regra de direito, como seu valor peculiar, ela insuscetvel de ser compreendida, interpretada e aplicada, seno em referncia justia.

1.3.2.1 Idia da justiaSe indagamos, porm, o que justia, logo veremos que o seu entendimento polmico. A pergunta uma s, mas as respostas so numerosas e desencontradas, dando lugar a teorias filosficas e sociais e a ideologias polticas, talvez porque o tema, como pensava Pascal, seja sutil demais para ser abordado por instrumentos humanos.

No entanto, observa Lus Recasns Siches (1903), um levantamento dessas teorias demonstra, por trs de sua aparente contradio, alguma identidade. A similitude est em que a noo de justia vem sempre ligada de igualdade. O smbolo desse entrelaamento tambm o da justia: a balana de pratos nivelados e fiel vertical. Se recordarmos algumas definies doutrinrias, teremos confirmada a observao.

1.3.2.1.1 PlatoPlato (428-347 a.C.) meditou sobre a justia como virtude individual e como critrio de organizao social. O princpio comum a ambas, escreve Paul Natorp (1854-1924), o da organizao, segundo o qual uma pluralidade de foras, acompanhadas de seus efeitos, encadeiam-se, promovendo-se mutuamente (e promovendo, portanto, sua obra comum), sem estorvar-se em nenhum ponto. Sob o primeiro aspecto, via nela uma espcie de virtude regente. A alma humana abriga um sem-nmero de tendncias, de sentimentos, de afeies, de inclinaes, e solicitada pelos elementos diversos de que se compe. justia caberia ordenar e unificar esse universo ntimo, dando harmonia s suas partes. Tal como o maestro que tira dos instrumentos de uma orquestra som harmoniosos, a justia daria aos elementos da alma a sua exata medida e os comporia numa tranqila unidade. No se identificaria ela, portanto, como uma virtude ao lado de outras, mas coordenadora de todas. Sobre a justia social, entende Plato que defini-la somente se pode quando se recorda a razo que leva o homem vida social: a existncia de diversas necessidades e a descoberta da maneira pela qual podem ser satisfeitas, mediante a diviso do trabalho. Se uma pessoa atende, somente ela, a uma certa necessidade de todas, das demais obtm a satisfao das suas prprias necessidades, para as quais nada produz. Em conseqncia, uma sociedade , por origem, uma reunio de pessoas desiguais, o que assegura a solidariedade dos seus componentes e resguarda a sua unidade. Proceder justamente desenvolver sua funo prpria, qual devem corresponder as inatas aptides humanas. A sociedade, para ser justa, deve situar cada homem na sua funo adequada, condio da

sua perfeita unidade. As funes sociais correspondem s faculdades da alma individual. Por isso, reduzem-se essencialmente a trs: a produo, realizada pelos trabalhadores, equivalente ao desejo elementar de alimentao, cuja virtude, para quem a realiza, a temperana; a defesa, desempenhada pelos soldados, cuja virtude a coragem; e o governo, que corresponde inteligncia reflexiva, e exige de quem o exerce uma virtude prpria, a prudncia. justa uma sociedade na qual cada indivduo faz o que lhe prprio.

1.3.1.2 AristtelesAristteles (384-322 a.C.) foi o primeiro filsofo a desenvolver exaustivamente o tema, sendo considerado o verdadeiro fundador da teoria da justia, de tal maneira que os estudos posteriores, inclusive os modernos, a ele se reportam como sua primeira fonte. Tambm Aristteles considerou a justia em seu duplo papel, como virtude do indivduo e critrio de ordem social, sem lhe emprestar, porm, no primeiro, a superior posio que lhe conferia Plato, para situ-la como virtude a par de outras. Formulou, dir-se-ia que com perfeita atualidade, a observao de que a justia no pode ser atuante sobre toda a alma porque tutela apenas as relaes dos indivduos entre si. Decalcado na realidade institucional do seu tempo, indicou-lhe as finalidades prprias: a) distribuio de honrarias e riquezas pelos indivduos; b) garantias dos contratos; e c) proteo contra o arbtrio e a violncia. Caberia a primeira tarefa justia distributiva e as duas ltimas justia comutativa. Embora sem outra afinidade entre si, em todas essas modalidades de justia assinalava Aristteles um trao comum: a igualdade. Afirmar-se-ia esta, em relao justia distributiva, sob a forma de proporcionalidade, dado que as benesses sociais deveriam ser distribudas segundo os mritos de seus destinatrios. E o princpio da igualdade aritmtica inspiraria as duas

subdivises da justia comutativa, cabendo aos magistrados, em relao a elas, restabelecer sempre a igualdade em favor do lesado.

1.3.2.1.3 UlpianoOs latinos deixaram algumas, ainda que imprecisas, definies de justia. Nem se poderia diversamente admitir, dado que a grande realizao da civilizao romana foi o direito que est para ela como a filosofia e as artes esto para a civilizao grega. Uma das definies mais conhecidas a de Domicio Ulpiano (170-228 a. C.), consoante a qual a justia consiste em dar a cada um o que lhe devido.

1.3.2.1.4 Toms de AquinoToms de Aquino (1225-1274) estuda o direito como objeto particular de uma virtude especfica, a justia, no podendo ambos ser compreendidos seno como pertinentes condio social do homem. Considera prprio da justia ordenar o homem em suas relaes com os demais, posto que implica certa igualdade e a define como tendo por contedo dar a cada um o que seu, isto , o que lhe est subordinado ou est estabelecido para sua utilidade. No se satisfaz, conforme explica Etienne Gilson (1884), sem que se assegure o respeito igualdade entre pessoas diferentes, interessadas num mesmo ato. Distingue a justia de todas as demais virtudes porque, enquanto estas se voltam diretamente para o agente do ato, exigindo a pureza de intenes, aquela reside na adequao do ato praticado com um modelo extrinsecamente dado de antemo. Inspirado em Aristteles, divide a justia em: legal (colaborao para o bem comum), comutativa (relaes entre os indivduos) e distributiva (partilha de encargos e benefcios pblicos entre os indivduos).

1.3.2.1.5 SpencerHerbert Spencer (1820-1903), observando que na idia de justia duas outras se inserem, uma de afirmao e outra de restrio liberdade

individual, a primeira positiva e a Segunda negativa, comenta que aquela conduz desigualdade em funo dos resultados a que podem chegar os indivduos pela aplicao das suas diferentes possibilidades realizao dos prprios fins, enquanto que a Segunda, limitativa dos inevitveis conflitos a que a prtica da liberdade conduz, leva ao pensamento de que todas as esferas de aes se limitam uma s outras, o que implica uma concepo de igualdade.

1.3.2.1.6 StammlerSegundo Rudolf Stammler (1856-1938), o contedo de uma norma jurdica justo quando ela, em sua peculiar posio, concorda com o ideal social. Por difcil que seja definir este padro, Stammler julgou encontr-lo no modelo de uma comunidade de homens de vontade livre, coexistindo, assim, em condies de perfeita harmonia e espontaneidade.

1.3.2.2 Comentrio crticoEmbora diversas, as teorias sobre a concepo de justia apresentam um trao comum. Em todas elas existe uma referncia direta ou implcita idia matemtica da igualdade. Tpica a noo de Kantorowicz, quando ensina que a essncia da justia est em tratar o que igual como igual. Ou a de Lester Frank Ward (1841-1913), quando afirma que a justia consiste na imposio artificial, pela sociedade, de uma igualdade em condies que so naturalmente desiguais. Ainda a de Friedrich Nietzche (1844-1900), invocando Tucdides (471-395 a. C), quando afirmava que a justia sempre uma compensao e uma troca entre poderes opostos mais ou menos iguais. Tambm a sempre lembrada definio de Dante Alighieri (1265-1321), para quem o Direito seria a proporo real e pessoal de homem para homem que, conservada, conserva a sociedade e que, destruda, a destri. O prprio Hans Kelsen (1881-1973), em cuja doutrina o tema no tem acolhida, entende que o princpio da justia, referido a uma ordem social, no seno o equivalente dos princpios lgicos da identidade e da contradio, sensvel, assim, evidncia dessa constante de todas as definies. Seja ela equilbrio, proporcionalidade ou harmonia, mas qualquer dessas noes nos leva, inevitavelmente, de igualdade.

Agora perguntamos: essas teorias satisfazem as nossas necessidades tericas de formulao do princpio da justia? No. Ao invs de eliminar problemas, adverte Siches, suscitam outros. Se a justia fosse a prpria igualdade, numa relao de troca, perfeita seria aquela em que duas pessoas reciprocassem objetos idnticos. Se tenho um quilo de trigo a trocar, a nica maneira de receber coisa exatamente igual receber outro quilo de trigo. Da se v que a compreenso da justia como frmula igualitria de compensar o homem em suas relaes recprocas nada significa, porque, sempre que mutuamos alguma coisa, por algo distinto, absurdo que permutar coisas iguais. Se eu quiser trocar o trigo por outra mercadoria, como no podemos comparar coisas heterogneas, faz-se necessrio estabelecer um terceiro valor, que, no caso, o preo. Permuto o quilo de trigo por uma certa quantidade de moeda que me habilita a fazer uma aquisio conforme a minha convenincia. Na comparao, e hipoteticamente, com o dinheiro da transao, fico em condies de comprar dois quilos de milho. No sendo possvel realizar essas trocas diretamente, tenho que fazer referncia a um valor, que o econmico. Ainda assim surgem outros problemas. Por que, vendendo um quilo de trigo, no posso, com o produto, comprar um de ouro? A resposta seria que trigo e ouro no se eqivalem, quando referidos ao terceiro elemento da transao (o valor), que atua como determinante dos preos. Mas isso importa reconhecer que o conceito de justia, representando igualdade, formal, esquemtico, no bastando dizer que os homens devem ser dispostos igualitariamente numa sociedade ou que os seus interesses devem ser compostos de acordo com um princpio de igualdade, para alcanar a idia que lhe corresponde. H um sculo atrs, nos termos daquela frmula, poderamos dizer que a igualdade estaria em consentir aos homens massacrarem-se mutuamente a fim de que os mais capacitados sobrevivessem em melhores condies. A livre concorrncia expressa um esquema de igualdade de condies para todos, no qual Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) vira a prpria justia: os homens so iguais, as leis so iguais para todos, deixemo-los disputar segundo suas pretenses. No entanto, numa sociedade moderna, esse esquema produziria flagrante injustia.

Significativas dessa problemtica da justia so as hipteses concebidas por Edgar Bodenheimer (1907). Se todos os membros de uma coletividade, observa, ou mesmo a sua maioria, estiverem reduzidos ao mesmo estado de escravido ou de opresso, no h razo para admitir-se que a justia tenha sido alcanada graas a uma simples igualdade de tratamento. Se criminosos que tenham cometido iguais delitos de pouca gravidade forem todos condenados pena de morte ou de priso perptua, o simples fato de igualdade da sua punio no satisfaz justia. A teoria da justia, repete-se, no esgota a investigao sobre os valores da regra jurdica. um degrau a partir do qual buscamos, no importa sob que denominao, outra escala de valores, que do substncia ao conceito meramente formal de justia. Entendemos que esta, como exigncia humana, no somente idia, mas tambm ideal. A idia essa mesma que assinalamos atravs da histria da filosofia do direito. a regra que nos orienta em sociedade, visando a obter uma satisfao equilibrada dos interesses humanos. , entretanto, vazia de autntica significao, nada mais nada menos que uma equao algbrica (Leon Grinberg), porque, longe de exaurir a problemtica tica ligada a uma ordem social, apenas abre oportunidade para estud-la num plano superior, onde procuramos valores capazes de proporcionar contedo e sentido quele conceito. Esses valores no pertencem ao plano da filosofia, mas ao da histria, o que afina com o ensinamento de Georges Gurvitch (1894), consoante o qual a justia e todos os valores jurdicos so os elementos mais variveis entre todas as manifestaes do esprito, porque variam simultaneamente, em funo: a) das variaes da experincia dos valores; b) das variaes na experincia das idias lgicas e das representaes intelectuais; c) das variaes nas relaes recprocas entre a experincia volitivaemocional e a experincia intelectual; e d) das variaes na relao entre a experincia dos dados espirituais e a prpria experincia.

Explica-se, assim, que o conceito de justia se tenha conservado estvel na filosofia, enquanto o ideal humano que lhe corresponde tanto se tenha alterado.

1.3.3 Formas de justiaA justia apresenta-se debaixo de trs formas e cada uma delas justifica uma posio prpria no seu estudo. Vrias definies de justia podem divergir entre si, e, sem embargo disso, so aceitas, desde que se refiram justia sob formas diferentes. As trs formas so: a subjetiva , a objetiva e a ideal. Na subjetiva, uma virtude. A expresso subjetiva, usada na sua significao verdadeira, quer dizer relativa ao sujeito. Trata-se, pois, de justia como uma virtude do sujeito. No caso, evidentemente, o homem, porque s h justia nas relaes humanas. Quando dizemos de algum que justo, empregamos o vocbulo justo no sentido subjetivo, expressando que a pessoa tem uma virtude, a justia. Na definio de Ulpiano, a justia consiste na disposio de dar a cada qual o que seu. De modo idntico na de Marco Tlio Ccero (106-43 a.C.) tribuere suum cuique. Em ambas a justia vista no seu carter subjetivo. Mas a justia , por excelncia, valor de uma ordem social. Significando critrio debaixo do qual uma sociedade est estruturada, a justia, no seu aspecto objetivo, exterioriza-se em normas. Sob tal modalidade que a sua noo mais se aproxima da de direito. Direito tentativa de afirmao objetiva da justia, definida em regras compulsrias de conduta. Quando Scrates (469-399 a.C.), condenado morte, recusou a fuga, considerando o respeito que devia justia da sua sociedade, a esta se referia no seu sentido objetivo. Quando cumprimos um dever em submisso justia da nossa sociedade, ou acatamos uma norma em obedincia justia do nosso grupo, justia aludimos no mesmo sentido. Finalmente, a justia valor. Sendo todo valor transcendente, ela tambm o . Sob tal feio, permite-nos a crtica da ordem social, essa mesma que se nos apresenta como justia objetiva, e por isso nos obriga a praticar certos atos e nos abster de outros. Isso nos permite senti-la como valor afirmado e como valor contestado. Podemos dizer, por exemplo, que uma sociedade injusta e que outra justa, que uma imposio leal justa e que

outra injusta. A justia, traduzindo valor, referida a um ordenamento social, autoriza-nos a julgar da sua legitimidade ou ilegitimidade.

1.3.4 Modalidades da justiaSo duas as modalidades da justia: geral e particular . A geral converge para o interesse da comunidade. A particular pertinente considerao dos interesses individuais. A justia geral pretende o bem comum. Para realiz-lo prescreve que o indivduo, como parte de uma sociedade, contribua com algo para a sobrevivncia e o desenvolvimento dela. Fixa os deveres de cada um com relao sociedade em que vive, e se realiza quando exige dos indivduos de maneira igual e eqitativa. A sociedade que exigisse de seus membros uma quantia fixa a ttulo de imposto seria injusta, porque tanto o rico como o pobre estariam contribuindo com importncia igual. E injusto seria tambm se o que exigisse no destinasse ao bem comum, mas ao de uma minoria. A justia particular, embora sob um aspecto traduza o exerccio de uma funo social, sensvel s motivaes e s necessidades particulares. Divide-se em justia comutativa e distributiva . A comutativa rege as relaes de troca. Dela a expresso mais fiel exatamente a igualdade. Se alugo uma casa, estou trocando o seu uso pelo dinheiro do aluguel. Se vendo um objeto, troco-o pelo dinheiro do comprador. Sempre que damos alguma coisa para receber outra, a situao regida pela justia particular comutativa, cujo enunciado : aquele que d algo a outrem deve receber, em compensao, valor apropriado ao que deu. Se h correspondncia entre os valores permutados, sejam mercadorias, servios, etc., a transao justa. A justia particular distributiva, embora visando ao interesse do indivduo, corresponde a uma funo social. Toda sociedade, pelo fato de impor limitaes aos indivduos, torna-se depositria de valores, riquezas, utilidades e vantagens, que redistribui pelos seus membros. A justia que deve

presidir a essa atividade a distributiva. O seu critrio o da eqidade e do mrito, no o da igualdade.

1.3.5 Direito pblico e direito privadoAs modalidades de justia, a geral e a particular, a ltima nas suas submodalidades, comutativa e distributiva, do margem a que possamos perceber que as regras jurdicas, que so ou devem ser manifestaes sensveis da justia, podem ser distribudas em dois grandes setores: normas de direito pblico e normas de direito privado. As de direito pblico correspondem justia geral e particular distributiva, e as de direito privado comutativa.

2. Dados Sociolgicos

2.1 FATO SOCIALEstudaremos o fato social em trs partes. Na primeira determinaremos a noo estrita da significao de social. Na Segunda, apresentaremos o seu conceito. Na terceira, analisaremos a sua natureza, considerando a diversidade doutrinria sobre a matria.

2.1.1 Noo de socialFato social um fato humano, ao qual qualificamos de social, tema de uma cincia prpria, a sociologia. O vocbulo social perfeitamente distinto do vocbulo plural. necessrio que pluralidade se acrescente algo mais para que seja considerada manifestao social. de rejeitar, portanto, qualquer tendncia espria, j antes eventualmente manifestada no decurso da histria da sociologia, tendente a ver o social como uma categoria do ser , presente em qualquer realidade, desde a intra-atmica at a dos sistemas estelares. O fenmeno social conduta. Conduzir-se implica uma atitude. Ora, somente os seres dotados de psiquismo tm comportamento. Onde no existe psiquismo no h conduta. Logo, fato social igual a fato social humano. A sociologia uma cincia do homem, investiga processos humanos de convivncia. As prprias supostas sociedades animais, algumas apresentando formas definidas de coexistncia, no podem ser includas no seu campo, nem mesmo em reas perifricas, porque os animais apenas coexistem, o que um fato biolgico. Henri Bergson (1859-1941), a cuja obra Edourard le Royu empresta importncia igual de Kant, escreve que, quando ns vemos as abelhas de uma colmia formarem um sistema to estreitamente organizado que nenhum dos indivduos pode viver isolado alm de um certo tempo, mesmo se lhe fornecermos alimentao e alojamento, temos de reconhecer que uma colmia , realmente, no metaforicamente, um organismo nico do qual cada abelha uma clula unida a outras por laos invisveis. O instinto que anima a abelha confunde-se com a foa de que a clula animada. Logo, o estudo de tais sociedades incumbe Biologia, que se ocupa dos fenmenos da vida, em todas as suas modalidades e sob todos os seus aspectos.

A sociologia, diversamente, se dedica a uma ordem de fenmenos aos quais s a convivncia humana d origem. Num mundo sem humanidade no haveria sociologia, porque no existiria ambiente social, em cujo interior ocorrem os acontecimentos que lhe so prprios. A sociologia estuda as maneiras de comportamento do homem num determinado meio e suas diferentes modalidades de adaptao.

2.1.2 Conceito de fato socialO homem habita em duas ambincias: uma natural e outra social. Natureza e sociedade so climas em que vive. Caracterstica da vida manifestar-se como processo de adaptao. O homem se adapta ao meio natural, atravs de mecanismos fisiolgicos e recursos tcnicos, e ao social, por processos chamados sociais, que se desenvolvem base de interao. Vivendo em grupo, ns interatuamos, isto , cada um de ns exerce sobre os outros uma influncia e, na mesma medida, a recebe dos outros. Esta influncia recproca dos indivduos que convivem a interao. Esta significa, antes de mais nada, qualquer alterao no comportamento de duas pessoas, uma diante da outra. Por isso, diz-se que a interao o correspondente social da ao recproca da Fsica. Fundamental nesse processo de interao a linguagem, porque, como proclama mile Gouiran, a sociedade um fato cujas causas, nem por serem mltiplas, deixam de se reduzir a uma s: a necessidade para o homem de existir pensando e a impossibilidade de pensar sem uma palavra que lhe responda. A sociedade , assim, essencialmente, a linguagem do homem, pois onde o homem se expressa h sociedade e nem se expressa ele seno porque h sociedade. Para sua acomodao ao meio natural o indivduo modifica-se para obedec-lo, ou o modifica, valendo-se das tcnicas. Igualmente, sua adaptao ao meio social, ou a outro indivduo tem duplo sentido: corrente que vai, corrente que vem, em alternativas de influncia subordinante e subordinada. A interao o suporte ftico de toda a realidade social. Sem ela, no existiria fato social. No se deduza da que basta que haja interao para que se produza um fato social. A prpria irradiante interao existente nas

multides no cria seno estados de esprito intensos, mas momentneos, conforme Gustave Le Bom (1841-1931). Para que a interao ultrapasse o recinto da mera realidade psicolgica interindividual, dando lugar a um fenmeno sinttico novo, o social, necessrio que, falta de melhor expresso, diramos, atinja um certo nvel de densidade. Assim, o fato social apresenta caractersticas que bem o distinguem do psicolgico: a) generalidade ( comum aos indivduos); b) coero (traduz uma presso do grupo sobre o indivduo); c) repercusso (a qual se processa independentemente das intenes individuais); d) transcendncia (no sentido de que se situa fora e acima da ao dos indivduos).

2.1.3 Grupos sociaisOs grupos sociais so sistemas mais ou menos permanentes de interao cooperativa. Numa famlia, pais, filhos, irmos, parentes que vivem em comum, h interao. Num grupo de trabalho, as pessoas organizadas para uma tarefa interatuam. Uma comunidade universitria forma um sistema, mais ou menos fechado, de interao, no qual encontramos sistemas menores, sries, turmas, classes, pequenos grupos cujos componentes levam uma vida mais comum. Teremos grupos menores dentro de outros maiores, que estaro dentro de um ainda maior. Cada um deles forma como que uma constelao de influncias, porque um sistema de interaes. O indivduo no est vinculado a um s grupo. Tem a sua famlia, a sua igreja, o seu partido, o seu clube. Ele ocupa, assim, ao mesmo tempo, distintas posies em diferentes sistemas. No a presena fsica do indivduo que d ao sistema a sua autonomia. O grupo social, como sistema de interao, uma entidade abstrata, porque intangvel na sua essncia. Numa escola, acabada a aula, cada estudante volta sua casa, e passa a estar isolado dos colegas. No entanto, o

grupo subsiste. Num quadro de futebol, finda a concentrao ou o jogo, acontece o mesmo. Cada membro regressa sua casa, mas seu grupo subsiste. O grupo existe desde que uma parcela de comportamento do indivduo seja ditada por ele. O estudante que, em casa, dedica-se aos seus deveres escolares, est procedendo de acordo com uma exigncia de seu grupo. Se deixa de ir a uma festa ou dela sai mais cedo, para no perder a aula do dia seguinte, o mesmo acontece. Desde que vrias pessoas, em carter permanente, dediquem parte de sua conduta a um grupo, este existe e subsiste, mesmo quando seus integrantes no esto contactando. exatamente porque mister no se faz que a conduta individual seja consagrada exclusivamente a um grupo, que o indivduo pode participar de vrios e, assim, pertencer a diferentes sistemas de interao, uma vez que colabore com todos.

2.1.4 Formas, processos e relaesOs grupos sociais ordenam-se de formas diferentes. Diversos so os seus procedimentos de manuteno e alterao. E mantm intercmbio uns com outros. Por isso, podem ser considerados quanto sua organizao, aos seus processos de manuteno e de transformao e s suas relaes com outros grupos. A organizao dos grupos variada. Um grupo de presidirios, sujeito a uma rgida disciplina, no est organizado de maneira idntica a um clube ou a uma universidade. A famlia no est organizada, em toda parte, da mesma maneira, e nem o esteve de modo igual em todos os tempos. Relativamente aos processos de conservao e alterao, devemos salientar que a vida social essencialmente dinmica e que os grupos representam sistemas de foras em tenso. Em cada grupo h dois processos fundamentais: um, de conservao, sem o qual ele pereceria; outro, de transformao, sem o qual se anquilosaria. Esses processos, a seu turno, se diferenciam em sua significao especfica: religiosa, ticos, estticos, gnoseolgicos, polticos e econmicos. Finalmente, os grupos sociais entram em contato uns com os outros, o que d origem a fenmenos sociais de uma classe peculiar.

2.1.5 Temas da sociologiaComo os grupos sociais podem ser apreciados sob esses trs aspectos, a sociologia, cincia que os estuda, tem esse trplice objeto. E. em relao a ele, segundo o ensinamento de Leopold von Wiese (1876), procede sempre num ritmo pendular entre a realidade e a abstrao: 1. Abstrai o social interhumano do resto pertencente vida humana; 2. Constata os efeitos do social e do modo como se produzem; 3. Restitui o social ao conjunto da vida humana para fazer compreensveis suas relaes com ela.

2.1.6 Caractersticas dos gruposSo caractersticas essenciais dos grupos sociais: cooperao e participao harmnica. A primeira caracterstica mais evidente. Vida social vida cooperativa, de associao, de conjugao de esforos. Onde o indivduo no colabora, no existe vida social, ipso facto, grupo social. A cooperao se apresenta numa faixa extensa de gradao. Pode ser mnima ou mxima. Se algum d a mxima cooperao a certo grupo social, afasta-se dos demais, e pertence somente quele. Diminuindo, entretanto, a cooperao do indivduo, aumenta a sua possibilidade de fazer parte de outros grupos, doando a cada um deles parcela da sua dedicao. Uma equipe de futebol, jogando num campo, exemplifica de forma exata a cooperao como qualidade grupal. Todos cooperam, indivduo para indivduo, em busca do mesmo fim. Inconscientemente, tambm, esto cooperando num grupo mais amplo. Cada equipe visa a ultrapassar a adversria, mas, se algum tentar interromper a competio, as equipes passam a cooperar para evitar a intromisso. que elas formam um grupo maior, tanto que, atingidas por uma afronta comum, reagem como conjunto, deixam de ser duas equipes distintas, apenas uma s reagindo contra o intruso. E, assim, por que elas acatam regras iguais de procedimento, formando outra unidade maior, com posio prpria diante de terceiros. A segunda caracterstica, mais ntida para definir o contorno de um grupo social, o senso de participao harmnica, isto , o sentir a diferena entre pertencer e no pertencer a um certo grupo. S as pessoas pertencentes a

um grupo tm direitos e deveres, relativamente a ele. Esta conscincia de privilgios, regalias, vantagens, direitos e encargos separa os integrantes de um grupo dos que a ele no pertencem. Autores h que citam caractersticas mais numerosas: pluralidade de indivduos, objetivos comuns, interao mental, relativa durabilidade, certa organizao e sentimento de autonomia. Cremos, porm, todos esses atributos contidos, embora alguns implicitamente, naqueles que citamos, segundo a lio de H. M. Johnson.

2.1.7 Natureza do fato socialHoje a Sociologia no se preocupa com a pergunta metafsica sobre o que sociedade. Nem outras cincias tm mais a mesma veleidade. A Psicologia no indaga mais o que a alma, nem a Fsica pergunta mais o que matria. A Sociologia, como qualquer cincia, observao de fenmenos para a sua compreenso. O interesse do tema est apenas em que ele permite uma sucinta viso da histria da Sociologia. Situemos o problema. Observamos, entre os homens determinados fenmenos que chamamos sociais. S existem quando esto agrupados, no podendo ser explicados apenas em funo de realidades inerentes ao indivduo. Da a pergunta: qual a sua natureza? Podemos determinar, a respeito, quatro posies principais: o fisicismo, o biologismo, o psicologismo e o sociologismo. O fisicismo a explicao do fato social como variante do mecnico. O biologismo a sua explicao como modalidade do biolgico. O psicologismo a sua explicao como maneira de ser do fenmeno psquico. O sociologismo , finalmente, a tendncia para a explicao do fato social por ele mesmo, no como epifenmeno de outro que lhe seja subjacente. Explicado o fato social como mecnico, no existir, a rigor, Sociologia, mas uma mecnica social. Se o explicamos como fato biolgico, a Sociologia ser apenas o ltimo e mais avanado captulo da Biologia. Se dizemos que o fato social manifestao de fenmeno mental, tambm no

haver uma Sociologia, mas uma Psicologia social. Ser preciso afirmar que o fato social no modalidade de outro, que constitui uma realidade irredutvel a qualquer outra, para que possamos ter uma cincia peculiar de seu estudo, a Sociologia. A Sociologia uma cincia recente, cujo batismo ocorreu no sculo XIX, com o positivismo, filosofia de Auguste Comte (1798-1857), o primeiro a reconhecer-lhe autonomia, incluindo-a na sua famosa classificao, na qual distribua as cincias em ordem decrescente de sua generalidade e crescente da sua complexidade. Essa classificao partia da cincia mais ampla e mais simples, a Matemtica, at atingir, no seu termo, uma cincia nova, mais complexa e mais restrita, a Sociologia. Ingressando a Sociologia entre as cincias, surgiram debates sobre a natureza do fato social, caracterizados pela pretenso de explic-lo como variante de outros, j estudados. Ocorreu com ela o que se passa com toda cincia nefita: enfrentar a concorrncia de cincias mais amadurecidas, mais desenvolvidas, tradicionais, que pretendem chamar a si a explicao do novo fato observado, negando-lhe a autonomia, caracterstica essencial para ser objeto de uma cincia prpria.

2.1.7.1 FisicismoSob a rubrica de fisicistas devem ser citados aqueles que, participando de um momento de extraordinrio prestgio da Fsica, cincia que ento parecia a chave para o conhecimento completo da realidade, pretenderam deslocar os seus mtodos para o estudo das manifestaes de vida social. Os grupos sociais seriam considerados semelhana de corpos, e os processos sociais entendidos tal como se interpreta a atuao de foras mecnicas. Wilhelm Ostwald (1853-1932) o mais destacado representante do movimento.

2.1.7.2 BiologismoO biologismo, posio, entre outros, de Spencer, Pavel Federovich Lilienfeld (1829-1903) e Ren Worms (1867-1926), correspondeu a um perodo de euforia da Biologia.

At certa poca, o fato vital, objeto dessa cincia no havia sido caracterizado na sua perfeita autonomia, diante dos fenmenos fsicos e qumicos. Considerava Ren Descartes (1596-1650), um dos filsofos que inauguraram a Idade Moderna da filosofia, os seres vivos em tudo iguais a mecanismos, e suas funes resultantes exclusivamente da disposio de seus rgos, semelhana do que ocorre nos movimentos de um relgio. Assim pensando, observa Marx Frischeisen Kohler, aproximava-se ele da idia de uma derivao histrica dos organismos, partindo da natureza inanimada. Avanando paulatinamente, realizando uma revoluo que E. Boinet compara de Antoine-Laurent Lavoisier (1743-1794) no estudo dos corpos inorgnicos, a biologia foi repudiando tais noes, at que Marie-Franois Bichat (1771-1802) trouxe uma contribuio decisiva para a sua plena autonomia, ao afirmar que o fato vital era inteiramente diverso dos fenmenos fsicos e qumicos que se passam no corpo, tese que ainda repercute nas doutrinas contemporneas de Elsasser e Planyi. No somente diverso, mais exatamente oposto queles. De onde resultou a sua definio, segundo a qual a vida um conjunto de funes que resistem morte. A vida seria um estado de permanente luta, de que o corpo seria cenrio, entre as propriedades fsicas e qumicas da matria, de um lado, e, de outro, suas propriedades vitais. As doenas seriam momentos de crise nessa luta pela sobrevivncia das propriedades vitais, cuja derrota final estaria na morte. Bichat precisou a noo de organismo, como um conjunto sui generis, caracterizado pela recproca dependncia entre o todo e as partes. E foi exatamente o conceito de organismo que pareceu, em certo momento, sedutor demais, a ponto de justificar a sua ampliao ao campo de outras cincias, entre estas a sociologia. A sociedade poderia, ento, ser comparada a um organismo vivo, precisamente porque, nela, tal como sucede neste, o todo depende de cada uma das suas partes e estas daquele. Assim, os mtodos da biologia poderiam ser legitimamente aplicados ao estudo dos fatos e das instituies sociais. Os partidrios da escola organicista, conforme observa Antonio Dellepiane, bifurcam-se: uns identificam a sociedade a um organismo vivo (Lilienfeld, Jacob Novicow (1849-1912), Worms) e outros estabelecem uma analogia mais formal do que substancial entre ambos (Albert E. Friedrich Schafle (1831-1903), Spencer).

Spencer, ambicionando uma sntese global da realidade, via no Universo uma estrutura em forma de pirmide, construda por um incessante processo de evoluo, em cuja base estaria o mundo inanimado (inorgnico), logo em cima o mundo animado (orgnico) e no topo o mundo social (superorgnico). As sociedades seriam, ento, verdadeiros superorganismos, cuja estrutura se determinaria em funo da estatura, da fora, dos meios de defesa, do gnero de alimentao, da distribuio dos alimentos e do modo de propagao, relativamente a cada espcie. semelhana dos organismos, teriam rgos, sistemas, funes, nasceriam, cresceriam, envelheceriam e morreriam. Na escola biologista situa-se o chamado darwinismo social, fundado na tese de Charles Darwin (1731-1802), segundo a qual cada organismo mantm seu lugar por uma luta peridica, o que lhe parecia indubitvel em face da circunstncia de se multiplicarem todos os seres em progresso geomtrica, enquanto que, em mdia, permanece o total da subsistncia; do que resultaria a explicao da evoluo social por esse processo competitivo espontneo. O erro maior da doutrina, consoante observa Marcel Prenant, foi exatamente o de referir sociedade humana a falsa lei de Thomas Robert Malthus (17661834) como se fosse uma lei universal da vida, quando nada mais traduzia do que constataes feitas na sociedade burguesa da Inglaterra. A tese organicista, que a mais representativa da corrente biologista, conduziu a comparaes pitorescas, no esforo de seus tericos de confirmar a pretendida semelhana. As funes de governo corresponderiam s funes nervosas, a produo seria o equivalente da nutrio, os transportes, da circulao, etc., etc.

2.1.7.3 PsicologismoMais tarde, o psicologismo assumiu atitude de contestao s doutrinas anteriores. Foi seu fundador Gabriel Tarde (1843-1904) que, escreve Fernando de Azevedo (1894-1974), conseguiu, numa luta de 20 anos contra todas as formas de biologismo, desprender da Biologia a nova cincia, mas para subordin-la a outra: a Psicologia.

Ensinava ele que um fenmeno somente pode ser objeto de conhecimento cientfico se ele se repete. Assim, por exemplo, acontece na Fsica, com as vibraes que se sucedem, e na Biologia, com a hereditariedade. Os fatos sociais, no seu entender, podem ser reduzidos a um s, de ndole individual, a imitao. Por esta, um sentimento, uma idia, um gesto, transmite-se de uma pessoa a outra. O ponto de partida da imitao a inveno, fato essencialmente individual, porque somente o indivduo inventa. Toda vida comum inveno ou imitao e, unicamente, sob esses aspectos, pode ser estudada. Procurar como se apresenta e se modifica a imitao, em todas as circunstncias, o fim da Sociologia. Considerado o fato social manifestao de um processo nitidamente individual, no se lhe poderia predicar natureza peculiar diversa da natureza do fenmeno mental. A Sociologia, ento, seria uma Psicologia interindividual ou intermental, da qual todos os elementos bsicos seriam dados pela Psicologia de cada um dos indivduos, cuja colaborao produz a vida social.

2.1.7.4 Sociologismomile Durkheim (1858-1917) foi o verdadeiro fundador da Sociologia cientfica. Conceituou os fatos sociais como maneiras de sentir, pensar e agir exteriores e coercitivas. H maneiras de pensar, sentir e agir que dependem do indivduo e so projees da sua mente, cujo estudo incumbe psicologia. Mas outras h que se singularizam pela exterioridade e traduzem obedincia a um padro extramental, em relao aos quais a conduta no pode ser entendida em termos meramente psicolgicos. Nesta situao, o comportamento do indivduo condicionado por fatores que esto fora da sua mente. A exterioridade dos fatos sociais bem se evidencia na circunstncia de existirem independentemente de ns. Precedem-nos e nos sobrevivem. Exemplo: as religies. Dentro de um credo, que nos sobrevive, nascemos e morremos. As crenas no existem como frutos de elaborao da mente individual, mas como realidades sociais que se imprimem no esprito de cada um de ns. Tambm a linguagem, fato social por excelncia, revela o

condicionamento imposto pela sociedade ao indivduo. Se algum quiser se dirigir aos membros do seu grupo, sem usar da linguagem comum, ficar privado de comunicao. Por outro lado, ela, a bem dizer, modela a prpria formao da conscincia do indivduo, to prematura e total a sua imposio. Alm de exteriores, os fatos sociais exercem presso sobre os indivduos, impondo-se sua conduta, e nisso est a sua coercitividade. Segundo Durkheim, a coercitividade que nos permite reconhecer o carter social de um fato, como elemento caracterstico do seu perfil, a marc-lo de modo nitidamente distinto em relao ao fato psquico. A moda, por exemplo, que pode, em termos tericos, ser tida por modelo de conduta facultativa, atua, porm, irresistivelmente, sobre os homens, como autntica realidade social que , a ponto de, como aponta Gustave Le Bom (1841-1931), lev-los a admirar coisas sem interesse e que parecero, alguns anos depois, de extrema fealdade. Durkheim instituiu uma sociologia positiva, visando a descobrir, pelos mtodos ordinrios de observao e induo, as leis que ligam certos fenmenos sociais a outros, por exemplo, o suicdio ao aumento da populao. Fiel maneira positiva de qualquer cincia abordar o seu objeto prprio, recomendou aos socilogos tratassem os fatos sociais como coisas, regra basilar do seu mtodo, da qual os corolrios: a) arredar prenotaes; b) precisar o objeto positivo da pesquisa, mediante o grupamento de fatos em funo dos seus caracteres exteriores comuns; c) apreender os fatos pelo aspecto em que se mostram emancipados das suas manifestaes individuais. Fugindo disperso especulativa dos predecessores, Durkheim concentrou seu esforo terico na precisa conceituao do nico insubstituvel objeto da sociologia, os fatos sociais. Contrapondo-se a Tarde, para quem eles no seriam seno a soma das representaes individuais, no encerrando assim nada mais que j no estivesse nas parcelas, proclamou a sua natureza sinttica e, portanto, a sua autonomia. Da ser a sociedade, para Durkheim, como explica Armand Cuvillier, no apenas um total de indivduos, mas um composto original sui generis.

Da anlise da avassaladora atuao da ambincia social sobre o esprito humano, em conseqncia da qual sociedade se atribuiu a condio de fundamento de todas as funes mentais superiores, resultou verdadeira hipertrofia da importncia da cincia social no elenco das cincias do homem. A psicologia foi aquela cujo objeto prprio mais pareceu comprometido. A essa expanso dos limites cientficos da sociologia correspondeu o movimento doutrinrio rotulado de sociologismo.

2.2 SOCIEDADES HUMANASAs sociedades humanas so grupos sociais caractersticos, ou seja, possuem os atributos comuns a todos os grupos, cooperao e senso de participao harmnica, e outros que lhes so peculiares. Grupo, portanto, gnero; sociedade, espcie. Da a concluso: toda sociedade um grupo social, mas nem todo grupo uma sociedade. A sociedade humana o grupo social plenamente evoludo. Em nossos dias, as idias de sociedade humana e nao tm, freqentemente, a mesma extenso, o que nos autoriza a dizer que as sociedades humanas so grupos totais, no subgrupos de um grupo. Neste sentido nos referimos, por exemplo, sociedade americana, brasileira, etc.

2.2.1 Caracterizao das sociedadesOs atributos, que fazem acreditar a certos grupos humanos a qualidade de sociedades, so: territrio definido, reproduo sexual, cultura de longo alcance e independncia. A primeira caracterstica de uma sociedade humana a definio do seu territrio, da sua rea de implantao geogrfica. A sociedade francesa ocupa um territrio, a americana, outro. A segunda a reproduo sexual, isto , a manuteno da sua massa demogrfica por um processo interno de multiplicao. Isso no exclui a incorporao de elementos estranhos atravs da imigrao. Mas o contingente migratrio, enquanto no assimilado, deve ser sensivelmente menor, na composio populacional, em relao ao das criaturas nela concebidas pelos

seus prprios integrantes natos. A sociedade que contm mais imigrantes que integrantes de origem est fadada a perder sua prpria identidade. A terceira caracterstica a cultura de longo alcance, e o conceito de cultura j foi tratado anteriormente, quando assim consideramos tudo o que o homem faz, pelo seu esforo de criao. Agora, porm, cabe um reparo que faa mais explcito e ntido o conceito, porque, se dizemos que cultura tudo aquilo que o homem faz, corremos o risco de estabelecer confuso entre o que cultura e o que so objetos culturais. A cultura, , realmente, o conjunto de habilitaes que permitem ao homem criar e, neste sentido, a forma interna da criatividade humana, na expressiva linguagem de Oswald Spengler (18801936). Assim, est menos nos objetos criados do que na capacidade de crilos. Um grupo social, para ter nvel de sociedade, deve possuir uma cultura de longo alcance, que lhe assegure a afirmao da sua personalidade cultural prpria. E, como afirma John Dewey (1859-1952), para que um grupo de pessoas forme algo que se possa chamar uma sociedade em seu sentido amplo, necessrio que haja valores estimados em comum. Sem eles, qualquer grupo social, classe, povo ou nao, tende a desperdiar-se em molculas que no tero entre si mais do que conexes de significao meramente mecnica. Embora as relaes intergrupais concorram para aproximar os padres culturais, tal intercmbio no chega a ponto de suprimir as tipicidades de cada sociedade. Por ltimo, uma sociedade humana um grupo independente. Mesmo politicamente dominada, conserva a sua independncia, pela capacidade de resistir a ser absorvida culturalmente pelo grupo dominante. Se politicamente livre, a sua autonomia se afirma como a atitude de decidir nas reas de seu interesse, da qual no pode renunciar.

2.2.2 Sociedades humanas e supostas sociedades animaisAs sociedades humanas, j agora usada a expresso em amplo sentido, no no restrito em que dela nos utilizamos no item precedente, possuem caracteres genricos que as distinguem das supostas sociedades animais. A distino fundamental reside em que a sua natureza repousa num substrato de ndole psicolgica, e a das chamadas sociedades animais, cujos

indivduos so seres incrustados e sumidos na realidade vital correspondente aos seus estados orgnicos (Max Scheler), de base biolgica (instintiva). O homem pertence a uma sociedade tem a conscincia da sua vinculao a ela, conscincia que lhe d tanto maior liberdade quanto mais alto o nvel da sua sociedade, a ponto de Jacques Maritain (1882-1973) afirmar que uma sociedade um organismo feito de liberdade. O animal gregrio associa-se aos demais da mesma espcie por imposio biolgica irresistvel. Dessa distino essencial resultam as demais, que passamos a enumerar. As sociedades animais so estticas. As atividades que os indivduos de uma colmeia desenvolvem hoje so as mesmas anteriormente desenvolvidas e as que sempre desenvolvero. So biolgicas, portanto permanentes e imutveis. As sociedades humanas so dinmicas e evolucionais. Um grupo humano estacionrio entra em decadncia, e seu futuro inexorvel ser o desaparecimento. As sociedades animais so aculturais; as humanas, culturais. Aquelas no tm poder de criao, as humanas, ao contrrio, so essencialmente criadoras. E assim acontece, tambm, porque o gregarismo das supostas sociedades animais mero exerccio de uma imposio instintiva, enquanto que a convivncia dos homens consciente e, por isso, no suprime a personalidade individual. Finalmente, as sociedades humanas so normativas e as supostas sociedades animais, anormativas. Nenhuma sociedade humana pode sobreviver sem um mnimo de preceitos para reger a conduta de seus membros, normatividade de que no necessitam as supostas sociedades animais. Nestas, a conduta, ressalvada a impropriedade do termo, decorrncia de uma estrutura biolgica, e, assim, desempenhada sempre do mesmo modo. Nas sociedades humanas, o indivduo livre desse determinismo, mas, ligado a um grupo, sua liberdade h de ser limitada segundo os interesses gerais. E apenas se pode restringir a conduta de indivduos livres prescrevendo-lhes normas de procedimento.

2.3 FENMENO POLTICOO fenmeno poltico decorrncia necessria do carter normativo das sociedades humanas.

Toda sociedade tem um estatuto de conduta, no somente para limitar o interesse do indivduo, restringindo-lhe a liberdade, como para disciplinar a sua atividade, de modo a p-la a servio dos fins e dos interesses gerais. Quando pretendemos impor a algum que proceda segundo certo padro, s podemos faz-lo por meio de normas. As sociedades so normativas, tambm na medida em que os indivduos exigem dela a satisfao de certas convenincias e utilidades. O fenmeno poltico, do ponto de vista sociolgico, isto , numa posio esvaziada de sentido ideolgico, filosfico ou valorativo, o poder. Quando, num grupo humano, se institui o poder, dotado da faculdade de constranger incondicionalmente os governados (Michel Debrun), este fato poltico, pouco importando a sua natureza, a sua substncia, a maneira pela qual se exerce, a finalidade que colima. Sempre que algum manda e os demais obedecem, h manifestao de poder, fato poltico.

2.3.1 Formao do poderSendo as sociedades normativas, a existncia de um poder lhes inerente. A normatividade seria incua se fosse facultativa, se os indivduos tivessem a liberdade de infringir, inconseqentemente, os cdigos de procedimento. Uma normatividade dessa natureza no representaria fato social; poderia ser um formulrio de princpios ideais, jamais fenmeno social. Se a sociedade impe determinados tipos de comportamento, indispensvel uma entidade que obrigue os indivduos a respeit-los. Da aparecer o titular do poder. Poder ser uma pessoa, ou um grupo, e a forma mais avanada dessa entidade chamamos Estado. O poder assegura a eficcia da normatividade social, conseguindo obter da maioria conduta coerente com os seus padres. No se trata de um fenmeno tardio, pois coincide com a estabilizao do grupo social. O poder, na sua origem, manifesta-se sob aparncia difusa. No existe, ento, entidade que tenha o monoplio da autoridade. Todos so, ao mesmo tempo, governantes e governados. o poder na sua pr-manifestao, ainda no como faculdade de uns exigirem de outros a prtica ou a absteno de certos atos. Ele se alimenta das crenas, das tradies, dos costumes, das convenes, pois todo o grupo os tem, de origem imemorial. O indivduo que os infringe alvo de ressentimento social. O grupo reage como um todo,

voltando-se contra o transgressor, no raro para castig-lo ou, mais freqentemente, para bani-lo. Nessa fase, so os homens de idade avanada que tutelam a comunidade, porque o seu repositrio de tradies maior do que o equivalente de um membro jovem do grupo.

2.3.2 IndividualizaoMais tarde, ocorre a individualizao do poder: a passagem do poder de todos para o de um, ou de alguns. Antes, todos eram, simultaneamente, governantes e governados, cada um obedecia a todos os demais e, a seu turno, fazia parte de todos para julgar e punir os que divergissem dos padres incorporados conduta mdia do grupo. Com a individualizao do poder, desponta propriamente o fenmeno poltico. Essa individualizao realiza-se ao sabor de variadas circunstncias. Acontece sempre, mas no do mesmo modo. So as condies peculiares a cada grupo que estabelecem modalidades diferentes. Num grupo social que vive em constantes guerras, a individualizao d-se em termos militares. o homem mais audacioso, o mais habilitado para a luta, o mais qualificado para o combate que empolga o governo. Com o tempo, o poder, que s se constitua por ocasio de conflitos, torna-se permanente, e assim surge quem governa e quem obedece. A individualizao do poder ainda pode ser atingida em funo de outros processos. H, por exemplo, um fator relevante, de ndole psicolgica. Existem homens predestinados liderana, com personalidade carismtica, capazes de empolgar outros. Trao psicolgico, contrastando com o de muitos, avessos a qualquer comando, tambm responde pela diviso do grupo entre os que governam e os que obedecem. Noutros grupos, a individualizao tem origem religiosa. Houve pocas em que o sacerdote foi tambm governante, porque invocava o sobrenatural, a sano que mais teme o homem primitivo. Essa faculdade lhe dava condio excepcional para o exerccio do governo. Em outras circunstncias, poder o fato econmico gerar o mesmo resultado. o detentor de riqueza, possuidor das terras, senhor de um fator importante de produo, quem governa.

Pouco importa a maneira histrica pela qual o fenmeno se registra. O certo que, em toda sociedade, o poder atravessa duas fases: difuso na origem, logo mais, individualizado, prerrogativa de um ou de alguns.

2.3.3 Maioria e minoriaGera-se sempre uma separao entre maioria e minoria: uma faco minoritria governante e o