lipovetsky, gilles. narciso ou a estratégia do vazio

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Lipovetsky, Gille. (2005) ―Narciso ou a estratégia do vazio‖. In: ___________. A era do vazio. Barueri: Manole, p.31-58. Narciso ou a estratégia do vazio Cada geração gosta de se reconhecer e de encontrar a sua identidade em uma grande figura mitológica ou lendária, que reinterpreta em função dos problemas do momento: Édipo como emblema universal, Prometeu, Fausto ou Sísifo como espelhos da condição moderna. Hoje em dia é Narciso que, aos olhos de um considerável número de pesquisadores, principalmente americanos, simboliza os tempos atuais: ―O narcisismo se tornou um dos temas centrais da cultura americana1 . Quando o livro de R. Sennett 2 Les Tyrannies de l’intimité (T.I.) acabava de [p.32] ser traduzido para o francês, The Culture of Narcissism (C.N.) tornou-se um verdadeiro best-seller em todo o continente americano. Sem levar em conta a moda com sua agitação e algumas caricaturas que se podem fazer aqui e lá a respeito deste neonarcisismo, sua entrada no palco intelectual suscita o interesse maior de nos impelir a registrar, em todo o seu radicalismo, a mutação antropológica que se realiza diante dos nossos olhos e faz com que cada um de nós a sinta de algum modo, mesmo que confusamente. Instala-se um novo estágio de individualismo: o narcisismo designa o surgimento de um perfil inédito do indivíduo nas suas relações consigo mesmo e com o seu corpo, com os outros, com o mundo e com o tempo no momento em que o ―capitalismo‖ autoritário cede lugar a um capitalismo hedonista e permissivo. A idade de ouro do individualismo, concorrente no nível econômico, sentimental no nível doméstico 3 , revolucionária nos níveis político e artístico, chega ao fim e um individualismo puro se desenvolve, desembaraçado dos últimos valores sociais e morais que ainda coexistiam com o reino glorioso do homo occonomicus, da família, da revolução e da arte; emancipada de qualquer 1 C. Lasch, The Culture of Narcissism, Nova York, Warner Books, 1979, p. 61. Sobre a temática narcisística, além dos trabalhos de R. Sennett, C. Lasch cita os de: Jim Hougan, Decadence: Radical nostalgia, narcissism and decline in the seventies, Nova York, Morrow, 1975; Peter Marin, The new narcissism, Harper‘s, out. 1975; Edwin Schur, The Awareness Trap: self-absorption instead of social change, Nova York, Quadrangle, N.Y. Times, 1976, bem como um número importante de trabalhos de inspiração psi (cf. notas p. 404-7); principalemente P. L. Giovachinni, Psychoanalysis of Character Disorders, Nova York, Jason Aronson, 1975; H. Kohut, The Analysis of the self, Nova York, International Universities Press, 1971; O. F. Kernberg, Borderline conditions and pathological narcissism, New York, Jason Aronson, 1975. Depois deste texto estar redigido, o livro de C. Lasch foi traduzido sob o título Le Complexe de Narcisse, 1980. As páginas indicadas aqui são as da edição americana. 2 Richard Sennett, Les Tyrannies de l’intimité. trad. fr. de Antoine Rerman e Rebecca Folkman, Paris. Ed. du Seuil, 1979. 3 Edward Shorter. Naissance de la famille moderne. Paris, Ed. Du Seuil, trad. Franc. 1977.

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Page 1: Lipovetsky, Gilles. Narciso ou a estratégia do vazio

Lipovetsky, Gille. (2005) ―Narciso ou a estratégia do vazio‖. In: ___________. A era do vazio. Barueri:

Manole, p.31-58.

Narciso ou a estratégia do vazio

Cada geração gosta de se reconhecer e de encontrar a sua identidade em uma

grande figura mitológica ou lendária, que reinterpreta em função dos problemas do

momento: Édipo como emblema universal, Prometeu, Fausto ou Sísifo como espelhos

da condição moderna. Hoje em dia é Narciso que, aos olhos de um considerável número

de pesquisadores, principalmente americanos, simboliza os tempos atuais: ―O

narcisismo se tornou um dos temas centrais da cultura americana‖ 1. Quando o livro de

R. Sennett2 Les Tyrannies de l’intimité (T.I.) acabava de [p.32] ser traduzido para o

francês, The Culture of Narcissism (C.N.) tornou-se um verdadeiro best-seller em todo o

continente americano. Sem levar em conta a moda com sua agitação e algumas

caricaturas que se podem fazer aqui e lá a respeito deste neonarcisismo, sua entrada no

palco intelectual suscita o interesse maior de nos impelir a registrar, em todo o seu

radicalismo, a mutação antropológica que se realiza diante dos nossos olhos e faz com

que cada um de nós a sinta de algum modo, mesmo que confusamente. Instala-se um

novo estágio de individualismo: o narcisismo designa o surgimento de um perfil inédito

do indivíduo nas suas relações consigo mesmo e com o seu corpo, com os outros, com o

mundo e com o tempo no momento em que o ―capitalismo‖ autoritário cede lugar a um

capitalismo hedonista e permissivo. A idade de ouro do individualismo, concorrente no

nível econômico, sentimental no nível doméstico3, revolucionária nos níveis político e

artístico, chega ao fim e um individualismo puro se desenvolve, desembaraçado dos

últimos valores sociais e morais que ainda coexistiam com o reino glorioso do homo

occonomicus, da família, da revolução e da arte; emancipada de qualquer

1 C. Lasch, The Culture of Narcissism, Nova York, Warner Books, 1979, p. 61. Sobre a temática

narcisística, além dos trabalhos de R. Sennett, C. Lasch cita os de: Jim Hougan, Decadence: Radical

nostalgia, narcissism and decline in the seventies, Nova York, Morrow, 1975; Peter Marin, The new

narcissism, Harper‘s, out. 1975; Edwin Schur, The Awareness Trap: self-absorption instead of social

change, Nova York, Quadrangle, N.Y. Times, 1976, bem como um número importante de trabalhos de

inspiração psi (cf. notas p. 404-7); principalemente P. L. Giovachinni, Psychoanalysis of Character

Disorders, Nova York, Jason Aronson, 1975; H. Kohut, The Analysis of the self, Nova York, International

Universities Press, 1971; O. F. Kernberg, Borderline conditions and pathological narcissism, New York,

Jason Aronson, 1975.

Depois deste texto estar redigido, o livro de C. Lasch foi traduzido sob o título Le Complexe de Narcisse,

1980. As páginas indicadas aqui são as da edição americana. 2 Richard Sennett, Les Tyrannies de l’intimité. trad. fr. de Antoine Rerman e Rebecca Folkman, Paris. Ed.

du Seuil, 1979. 3 Edward Shorter. Naissance de la famille moderne. Paris, Ed. Du Seuil, trad. Franc. 1977.

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enquadramento transcendental, a própria esfera privada muda de sentido, uma vez

entregue aos desejos variáveis dos indivíduos. Se a modernidade se identifica com o

espírito do empreendimento e com a esperança futurista, é claro que, devido a sua

indiferença histórica o narcisismo inaugura a pós-modernidade, a última fase do homo

aequalis.

NARCISO SOB MEDIDA

Depois da agitação política e cultural da década de 1960, que ainda poderia

aparecer como investimento de massa da coisa pública, há uma desafeição generalizada

que ostensivamente se expande no social, tendo como corolário o refluxo dos interesses

para as preocupações puramente pessoais, e isso independentemente da crise

econômica. A despolitização e a ―dessindicalização‖ atingem proporções jamais vistas,

a esperança revolucionária e a contestação estudantil desapareceram, a contracultura se

esgota, raras são as causas ainda capazes de galvanizar as energias a longo prazo. A res

publica se desvitalizou, as grandes questões ―filosóficas‖, econômicas, políticas ou

militares despertam uma curiosidade semelhante àquela despertada [p.33] por qualquer

acontecimento comum, todas as ―superioridades‖ vão minguando aos poucos,

arrebatadas que são pela vasta operação de neutralização e banalização sociais. Apenas

a esfera privada parece sair vitoriosa dessa maré de apatia; cuidar da saúde, preservar a

própria situação material, desembaraçar-se dos ―complexos‖, esperar pelas as férias:

tornou-se possível viver sem ideais, sem finalidades transcendentais. Os filmes de

Woody Allen e o sucesso que têm são o próprio símbolo desse hiperinvestimento do

espaço privado; ele próprio declara que: ―soluções políticas não funcionam‖ (citado por

C. Lasch, p. 30), e de muitas maneiras, esta fórmula traduz o novo espírito da época, o

narcisismo que nasce da deserção da política. Fim do homo politicus e advento do homo

psychologicus, à espreita do seu ser e do seu maior bem-estar.

Viver no presente, nada mais do que o presente, não mais em função do passado

e do futuro: é esta ―perda do sentido da continuidade histórica‖ (C.N., p. 30), esta erosão

do sentimento de pertencer a uma ―sucessão de gerações enraizadas no passado e se

prolongando para o futuro‖ que, segundo C. Lasch, caracteriza e engendra a sociedade

narcisista. Hoje em dia vivemos para nós mesmos, sem nos preocuparmos com nossas

tradições e com a nossa posteridade: o sentido histórico foi abandonado, da mesma

maneira que os valores e as instituições sociais. A derrota no Vietnã, o caso Watergate,

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o terrorismo internacional e também a crise econômica, a escassez das matérias-primas,

a angústia nuclear, os desastres ecológicos (C.N., p. 17 e 28) criaram uma crise de

confiança nos lideres políticos, um clima de pessimismo e de catástrofe iminente que

explicam o desenvolvimento das estratégias narcisísticas de ―sobrevida‖ que prometem

a saúde física e psicológica. Quando o futuro parece ameaçador e incerto, resta

debruçar-se sobre o presente, que não paramos de proteger, arrumar e reciclar,

permanecendo em uma juventude sem fim. Ao mesmo tempo em que coloca o futuro

entre parênteses, o sistema procede à ―desvalorização do passado‖, em razão de sua

avidez de soltar-se das tradições e das limitações arcaicas, de instituir uma sociedade

sem amarras e sem opacidade; com essa indiferença pelo tempo histórico instala-se o

―narcisismo coletivo‖, sintoma social da crise generalizada das sociedades burguesas,

incapazes de enfrentar o futuro de outro modo, a não ser com desespero.

Sob a aparência de modernidade, o essencial não estará escapando por entre os

nossos dedos? Na ansiedade de querer atribuir o narcisismo à bancarrota do sistema e

interpretá-lo sob o signo da ―desmoralização‖, segundo [p.34] uma sacrossanta tradição

marxista (C.N., p. 18), não estamos dando uma importância exagerada, por um lado, a

―tomada de consciência‖ e, por outro, para a situação conjuntural? De fato, o narcisismo

contemporâneo se desdobra em uma ausência espantosa de niilismo trágico; é numa

apatia frívola que ele surge maciçamente, a despeito das realidades catastróficas

largamente exibidas e comentadas pela mídia. Quem, com exceção dos ecologistas, tem

a consciência permanente de viver uma era apocalíptica? A ―tanatocracia‖ se

desenvolve, as catástrofes ecológicas se multiplicam sem que por isso surja uma

sensação trágica de ―fim do mundo‖. Aos poucos nos habituamos sem aflição ao ―pior‖,

que consumimos por meio da mídia; instalamo-nos na crise que, ao que parece, não

interfere na tendência para o bem-estar e os lazeres. A ameaça econômica e ecológica

não conseguiu penetrar em profundidade na consciência indiferente de hoje; precisamos

nos decidir, o narcisismo não é o último refúgio do Eu desencantado devido à

―decadência‖ ocidental, e que se atira de corpo e alma no prazer egoísta. Sem ser uma

nova versão do ―divertimento‖ ou da alienação - a informação jamais foi tão

desenvolvida - o narcisismo abole o trágico e aparece como uma forma inédita de apatia

feita de sensibilização epidérmica ao mundo e, ao mesmo tempo, de indiferença

profunda em relação a ele: paradoxo que explica parcialmente a pletora de informações

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pela qual somos assaltados e a rapidez com que os acontecimentos veiculados pela

mídia de massa se substituem, impedindo qualquer emoção duradoura.

Por outro lado, jamais se explicará o narcisismo a partir de um acúmulo de

acontecimentos e dramas conjunturais: se o narcisismo é, como C. Lasch nos convida a

pensar, uma consciência radicalmente inédita, uma estrutura constitutiva da

personalidade pós-moderna, é preciso encará-lo como a resultante de um processo

global que rege o funcionamento social. Novo perfil coerente do indivíduo, o

narcisismo não pode resultar de uma constelação heteróclita de acontecimentos pontuais

ainda que ela fosse acompanhada por uma ―tomada de consciência‖ mágica. Na

verdade, o narcisismo foi gerado pela deserção generalizada dos valores e finalidades

sociais, ocasionada pelo processo de personalização. A anulação dos grandes sistemas

de sentido e hiperinvestimento no Eu andam de braços dados: nos sistemas com

―aparência humana‖, que funcionam para o prazer, o bem-estar, a despadronização, tudo

concorre para a promoção de um individualismo puro, ou seja, psicológico,

desembaraçado dos enquadramentos de massa e projetado para a valorização general do

indivíduo. É a revolução das necessidades [p.35] e a sua ética hedonista que,

atomizando suavemente os indivíduos e esvaziando aos poucos as finalidades sociais de

seus significados profundos, permitiu que o discurso psi se enxertasse no social, se

tornasse um novo éthos de massa; foi o ―materialismo‖ exacerbado das sociedades da

abundância que, paradoxalmente, tornou possível a eclosão de uma cultura centrada na

expansão subjetiva, não por reação ou ―suplemento de alma‖, mas, sim, por isolamento

à escolha de cada um. A onda do ―potencial humano‖ psíquico e corporal não é mais do

que último momento de uma sociedade que está se libertando da ordem disciplinar e

completando a privatização sistemática já operada pela era do consumismo. Longe de

derivar de uma ―tomada de consciência‖ desencantada, o narcisismo é o efeito do

cruzamento entre uma lógica social individualista hedonista, impulsionada pelo

universo dos objetos e dos sinais, e uma lógica terapêutica e psicológica, elaborada

desde o século XIX a partir da aproximação psicopatológica.

O ZUMBI E O PSI

As sociedades pós-modernas conhecem ao mesmo tempo a revolução

informática e uma ―revolução interior‖, um imenso ―movimento de consciência‖

(―awareness movement‖, C.N., p. 43-8), um entusiasmo sem precedentes pelo

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conhecimento e realização de si mesmo, como demonstra a proliferação de organismos

psi, técnicas de expressão e de comunicação, meditação e ginásticas orientais. A

sensibilidade política da década de 1960 dá lugar a uma ―sensibilidade terapêutica‖; até

mesmo os mais duros (aliás, principalmente eles) entre os ex-líderes contestatários

sucumbem ao encanto da self-examination: enquanto Rennie Davis abandona o combate

radical para seguir o guru Maharaj Ji, Jerry Rubin relata que entre 1971 e 1975 praticou

com prazer a gestalt-therapie, a bioenergia, o rolfing, as massagens, o jogging, o tai chi,

o Esalen, o hipnotismo, a dança moderna, a meditação, o Silva Mind Control, a Arica, a

acupuntura, a terapia reichiana (citado por C. Lasch, p. 43-4). No momento em que o

crescimento econômico perde fôlego, o desenvolvimento psíquico toma impulso, no

momento em que a produção é substituída pela informação, o consumo de consciência

se torna uma nova bulimia: ioga, psicanálise, expressão corporal, zen, terapia primal,

dinâmica de grupo, meditação transcendental; à inflação econômica respondem a

inflação psi e o formidável impulso narcisístico que ela produz. Canalizando as paixões

para o Eu, que assim se promove a umbigo do mundo, a terapia [p.36] psi, ainda que

seja colorida por corporalidade e filosofia oriental, gera uma figura inédita de Narciso,

hoje identificado ao homo psychologicus. Narciso obcecado por si próprio não sonha,

não é surpreendido pela narcose, mas, sim, trabalha assiduamente pela libertação do

Eu, para poder seguir seu grande destino de autonomia e de independência: renunciar ao

amor, ―to love myself enough so that I do not need another to make me happy‖ (―amar a

mim mesmo o bastante para não precisar de outra pessoa para me fazer feliz‖), este é o

novo programa revolucionário de J. Rubin (citado por C. Lasch, p. 44).

Neste dispositivo psi, o inconsciente e o recalque ocupam uma posição

estratégica. Pelo desconhecimento radical que instituem sobre a verdade do indivíduo,

são operadores cruciais do neonarcisismo; usar o artifício do desejo e o controle do

recalque é uma provocação que desencadeia irresistível tendência à reconquista da

verdade do Eu: ―Devo chegar lá onde aquilo estava‖. O narcisismo é uma resposta ao

desafio do inconsciente: intimando a se reconhecer, o Eu se precipita num trabalho

interminável de libertação, observação e interpretação. Reconheçamos que o

inconsciente, antes de ser imaginário ou simbólico, teatro ou máquina, é um agente

provocador cujo efeito principal é um processo de personalização sem fim: cada qual

deve ―dizer tudo‖, libertar-se dos sistemas de defesa anônimos se opondo à

continuidade histórica do sujeito, deve personalizar seu desejo por associações ―livres‖,

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e, hoje em dia, pelo não-verbal, pelo grito e pelo sentimento primal. Por outro lado, tudo

que poderia funcionar como resíduo (o sexo, o sonho, o lapso, etc.) vai ser reciclado na

ordem da subjetividade libidinal e dos sentidos. Desta maneira, ampliando o espaço da

pessoa, incluindo todas as escórias no campo do sujeito, o inconsciente abre caminho

para um narcisismo sem limites, que revela de uma outra maneira os últimos avatares

psi nos quais a palavra de ordem não é mais a interpretação, mas, sim, o silêncio do

analista: libertado da palavra do Mestre e do referencial da verdade, o analisado fica

entregue apenas a si próprio numa circularidade regida apenas pela auto-sedução do

desejo. Quando o significado cede lugar aos jogos do significante e o próprio discurso

se submete à emoção direta, quando as referências exteriores desaparecem, o narcisismo

não encontra mais obstáculos e pode se realizar em todo o seu radicalismo.

Deste modo, a autoconsciência substituiu a consciência de classe, a consciência

narcisística tomou o lugar da consciência política; essa substituição não deve ser

atribuída ao eterno debate sobre o derivativo para a [p.37] luta de classes. O essencial se

encontra em outro ponto. Instrumento muito eficiente na socialização, o narcisismo, por

sua auto-absorção, permite uma radicalização do desinteresse pela esfera pública e

assim uma adaptação funcional ao isolamento social, reproduzindo ao mesmo tempo a

sua estratégia. Tornando o Eu o alvo de todos os investimentos, o narcisismo se dedica a

ajustar a personalidade à atomização sorrateira engendrada pelos sistemas

personalizados. Para que o deserto social seja viável, o Eu deve-se tornar a preocupação

central: a relação está destruída, mas pouco importa, já que o indivíduo está apto a se

absorver em si mesmo. Assim, o narcisismo realiza uma estranha ―humanização‖

escavando a fragmentação social: solução econômica para a dispersão generalizada, o

narcisismo, em uma circularidade perfeita, adapta o Eu ao mundo que o gerou. O

adestramento social não se efetua mais pelo constrangimento disciplinar e nem pela

sublimação, mas sim, pela auto-sedução. O narcisismo, nova tecnologia de controle

suave e autogerado, socializa dessocializando, e coloca os indivíduos de acordo com um

social pulverizado, glorificando o reino da expansão do Ego puro.

No entanto, talvez o narcisismo encontre sua mais alta função no esvaziamento

dos conteúdos rígidos do Eu, que a demanda inflacionária de verdade sobre si mesmo

realiza inevitavelmente. Quanto mais se investe no Eu, quanto mais se faz dele objeto de

atenção e de interpretação, mais aumentam a incerteza e a interrogação. O Eu se torna

um espelho vazio à força de ―informações‖, uma pergunta sem resposta à força de

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associações e análises, uma estrutura aberta e indeterminada que exige sempre e cada

vez mais terapia e anamnese. Freud não se enganou quando, num texto célebre,

comparou-se a Copérnico e a Darwin, por ter infligido um dos três maiores

―desmentidos‖ à megalomania humana. Narciso não mais se encontra imobilizado

diante da sua imagem fixa, aliás, nem mesmo mais imagem tem e nada mais é do que

uma busca interminável de Si Mesmo, um processo de desestabilização ou flutuação psi

comparável à flutuação monetária ou à flutuação da opinião pública: Narciso se colocou

em órbita. O neonarcisismo não se contentou em neutralizar o universo social

esvaziando as instituições de seus investimentos emocionais, é o Eu que desta vez se

apresenta despido, esvaziado de sua identidade, paradoxalmente por seu

hiperinvestimento. Como o espaço público se esvazia emocionalmente por excesso de

informações, de solicitações e de estímulos, o Eu perde suas referências e sua unidade

por excesso de atenção: o Eu se tornou um ―conjunto impreciso‖. Há por [p.38] todo

lado o desaparecimento do real pesado, trata-se da dessubstancialização, última etapa

da perda de territorialidade que comanda a pós-modernidade.

Trata-se da dissolução do Eu que abre a nova ética permissiva e hedonista: o

esforço saiu de moda, tudo o que é constrangedor e disciplina austera desvalorizou-se

em benefício do culto ao desejo e da sua satisfação imediata, tudo acontece como se a

intenção fosse levar as últimas conseqüências o diagnóstico de Nietzsche sobre a

tendência moderna de favorecer a ―fraqueza da vontade‖, ou seja, a anarquia dos

impulsos ou das tendências e, correlativamente, a perda de um centro de gravidade

hierarquizando o conjunto: ―O pluralismo e a desagregação dos impulsos, a falta de

sistema entre eles conduz a uma ‗vontade fraca‘; a sua coordenação com o predomínio

de um deles leva a uma ‗vontade forte‘‖ 4. Associações livres, espontaneidade criadora,

ausências de diretivas - ao estimular a dispersão em detrimento da concentração, o

temporário em detrimento do voluntário, nossa cultura da expressão e nossa ideologia

do bem-estar trabalham para o esmigalhamento do Eu, para a aniquilação dos sistemas

psíquicos organizados e sintéticos. A falta de atenção dos alunos, da qual hoje em dia

todos os professores se queixam, não passa de uma forma dessa nova consciência cool e

desenvolta, em todos os pontos semelhante à consciência telespectadora, captada por

tudo e por nada, excitada e indiferente ao mesmo tempo, super-saturada de informações,

4 Nietzsche, Le Nihilisme européen. Fragmentos póstumos reunidos e traduzidos por A. Kremer-Marietti,

p. 207. Paris, UGE, col. «10/18».

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uma consciência opcional, disseminada, nas antípodas da consciência voluntária,

―introdeterminada‖. O fim da vontade coincide com a era da indiferença pura, com o

desaparecimento dos grandes finalidades e grandes empreendimentos pelos quais a vida

merece ser sacrificada: ―tudo já, agora‖ e não mais per aspera ad astra5···. ―Divirtam-

se‖, lê-se de vez em quando nos grafites; acabou-se o temor: o sistema se encarrega

disso; o Eu foi pulverizado em tendência parciais de acordo com o mesmo processo de

desagregação que fez explodir a socialidade num conglomerado de moléculas

personalizadas. E o social átono é exatamente a réplica do Eu indiferente, de vontade

enfraquecida, um novo zumbi embaraçado em mensagens. Inútil se desesperar, o

―enfraquecimento da vontade‖ não é catastrófico e nem prepara uma humanidade

submissa e alienada, ele não anuncia de [p.39] modo algum a ascensão do totalitarismo:

a apatia desenvolta representa muito mais uma muralha contra os sobressaltos de

religiosidade histórica e os grandes desígnios paranóicos. Obcecado por si mesmo, à

espreita da sua realização pessoal e do seu equilíbrio, Narciso opõe obstáculo à idéia de

mobilização de massas; hoje em dia os apelos à aventura, aos riscos políticos, não

encontram eco; se a revolução ficou desclassificada, não é o caso de se incriminar

qualquer ―traição burocrática‖: a revolução se apagou sob os holofotes sedutores da

personalização do mundo. Assim a era da ―vontade‖ desaparece: mas não há

necessidade alguma de recorrer, a exemplo de Nietzsche, a qualquer tipo de

―decadência‖. É a lógica de um sistema experimental baseado na rapidez do

agenciamento das combinações, que exige a eliminação da ―vontade‖ como obstáculo

ao seu funcionamento operacional. Um centro ―voluntário‖ com as suas certezas

íntimas, sua força intrínseca, ainda representa um foco de resistência à aceleração das

experimentações: mais vale a apatia narcisística, o Eu instável, que é o único capaz de

se movimentar em sincronia com uma experimentação sistemática e acelerada.

Liquidando as rigidezes ―introdeterminadas‖, incompatíveis com os sistemas

―flutuantes‖, o narcisismo trabalha tão bem na dissolução da ―extrodeterminação‖ que,

aos olhos de Riesman, era a personalidade rica em devir, mas que logo revelou não ser

mais que uma última personalidade de massa, correspondente ao estágio inaugural dos

sistemas de consumo e intermediária entre o indivíduo disciplinar-voluntário

(introdeterminado) e o indivíduo narcisístico. No momento em que a lógica da

personalização reorganiza a integralidade dos setores da vida social, a

5 Par delà les obstacle, vers les étoiles, citado por D. Riesman, La Foule solitaire, Arthaud, 1964, p. 164.

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extrodeterminação, com a sua necessidade de aprovação do Outro, seu comportamento

orientado pelo Outro, dá lugar ao narcisismo, a uma auto-absorção que reduz a

dependência do Eu em relação aos outros. R. Sennett tem razão em parte: ―As

sociedades ocidentais estão passando de um tipo de sociedade mais ou menos dirigida

pelas outras a uma sociedade dirigida do interior‖ (T.I., p. 14). Na hora dos sistemas à

escolha, a personalidade não pode mais ser do tipo gregário ou mimético, mas, sim,

deve aprofundar sua diferença, sua singularidade: o narcisismo representa esse

desprendimento do domínio do Outro, a ruptura com a ordem da padronização dos

primeiros tempos da ―sociedade de consumo‖. Liquefação da identidade rígida do Eu e

suspensão da primazia do olhar do Outro - em todos os casos o narcisismo funciona

como agente do processo de personalização.

[p.40] Comete-se um grande erro quando se quer avaliar a ―sensibilidade

terapêutica‖ a partir de qualquer ruína da personalidade causada pela organização

burocrática da vida: ―O culto da intimidade não tem a sua origem na afirmação da

personalidade, mas, sim, na sua queda‖ (C.N., p. 69). A paixão narcisística não procede

da alienação de uma unidade perdida, não compensa uma falta de personalidade, mas,

sim, gera um novo tipo de personalidade, uma nova consciência, feita de

indeterminação e flutuação. Que o Eu se torne um espaço ―flutuante‖, sem fixação ou

referência, uma disponibilidade pura, adaptada à aceleração das combinações, à fluidez

dos nossos sistemas, esta é a função do narcisismo, instrumento flexível dessa

reciclagem psi permanente, necessária à experimentação pós-moderna. E, ao mesmo

tempo, expurgando do Eu as resistências e os estereótipos, o narcisismo torna possível a

assimilação dos modelos de comportamento aperfeiçoados por todos os ortopedistas da

saúde física e mental: instituindo um ―espírito‖ sujeito à formação permanente, o

narcisismo coopera para a grande obra de gestão científica dos corpos e das almas.

A erosão das referências do Eu é a réplica exata da dissolução hoje em dia

sofrida pelas identidades e pelos papéis sociais, antigamente estritamente definidos,

integrados que estavam nas oposições uniformes: desta maneira os status da mulher, do

homem, da criança, do louco, do civilizado, etc. entraram num período de indefinição,

de incerteza, no qual a interrogação sobre a natureza das ―categorias‖ sociais não pára

de se desenvolver. Mas enquanto a erosão das formas da alteridade deve ser atribuída,

pelo menos em parte, ao processo democrático, ou seja, ao trabalho da igualdade, cuja

tendência consiste - como M. Gauchet demonstrou de maneira notável - em reduzir tudo

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o que configure a alteridade social ou a diferença de substância entre os seres pela

instituição de uma similitude independente dos dados visíveis6, aquilo que chamamos de

dessubstanciação do Eu procede em primeiro lugar do processo de personalização. Se o

movimento democrático dissolve as referências tradicionais do Outro, esvazia-o de toda

dessemelhança substancial ao estabelecer uma identidade entre os indivíduos, sejam

quais forem as suas diferenças aparentes; o processo de personalização narcisística faz

vacilar as referências do Eu e o esvazia de todo o conteúdo definitivo. O reino da

igualdade transformou de alto a baixo [p.41] a apreensão da alteridade, do mesmo modo

que o reino hedonista e psicológico transforma de alto a baixo a apreensão da nossa

própria identidade. E mais: a explosão psi sobrevém no momento exato em que todas as

figuras da alteridade (perverso, louco, delinqüente, mulher, etc.) se vêem contestadas e

tendem para daquilo a que Tocqueville chama de ―igualdade de condições‖. Não é

exatamente quando a alteridade social dá maciçamente lugar à identidade e a diferença

cede lugar à igualdade que o problema da identidade própria, íntima, desta vez, pode

surgir? Não é devido ao fato de que o processo democrático se encontra generalizado,

sem fronteiras ou limites delineados, que pode surgir a irresistível onda psicológica?

Quando o relacionamento consigo mesmo supera o relacionamento com o outro, o

fenômeno democrático deixa de ser problemático; neste caso, o desdobramento do

narcisismo significaria a deserção do reino da igualdade que, no entanto, nem por isso

deixará de prosseguir com sua obra. Tendo resolvido a questão do outro (que hoje em

dia não é mais reconhecido, tendo-se tornado objeto de solicitude e de interrogação), a

igualdade limpou o terreno e permitiu o surgimento da questão do Eu; neste momento, a

autenticidade sobrepuja a reciprocidade, o conhecimento de si mesmo está acima do

reconhecimento. Porém, ao mesmo tempo em que ocorre esse desaparecimento da

figura do Outro do palco social surge uma nova divisão: a do consciente e do

inconsciente, a clivagem psíquica, como se a divisão devesse ser reproduzida

constantemente, mesmo que de um modo psicológico, a fim de que a obra de

socialização possa prosseguir. ―Eu é um Outro‖ esboça o processo narcisístico, o

nascimento de uma nova alteridade, o fim da familiaridade do Si Consigo, quando

aquele que está diante de mim deixa de ser inteiramente Outro: a identidade do Eu

vacila quando a identidade entre os indivíduos é perfeita, quando todo ser se torna um

―semelhante‖. Deslocamento e reprodução da divisão – ao se interiorizar, o conflito

6 Marcel Gauchet. ―Tocqueville, l‘Amérique et nous‖. In: Libre, n.7, p.83-104

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sempre assume uma função de integração social7, desta vez menos por meio da

conquista da dignidade pela luta de classe que por meio da pretensão da autenticidade e

da verdade do desejo.

O CORPO RECICLADO

[p.42] Se quisermos comparar, à maneira de R. Sennett, o narcisismo ao

psicologismo, logo nos defrontaremos com a dificuldade maior representada pelo

cortejo de solicitudes e cuidados dos quais o corpo se encontra rodeado, promovido

assim a um verdadeiro objeto de culto. Trata-se de um investimento narcisístico do

corpo diretamente demonstrado por mil práticas diárias: angústia da idade e das rugas

(C. N., p. 351-67); obsessões com a saúde, com a ―linha‖, com a higiene; rituais de

controle (check-up) e de manutenção (massagens, sauna, esportes, regimes); cultos

solares e terapêuticos (consumo exagerado de cuidados médicos e de produtos

farmacêuticos), etc. Sem a menor sombra de dúvida, a representação social do corpo

sofreu uma mutação cuja profundidade pode ser posta em paralelo com o abalo

democrático da representação do outro; o narcisismo resulta do advento desse novo

imaginário social do corpo. Do mesmo modo que a apreensão da alteridade do outro

desaparece em benefício do regime de identidade entre os seres, o corpo perde o seu

status de alteridade, de res extensa, de materialidade muda, em proveito da sua

identificação como o ser-indivíduo, com a pessoa. O corpo não mais designa uma

abjeção ou uma máquina, mas designa nossa identidade profunda da qual não mais se

tem motivo para sentir vergonha; podemos exibi-lo nu nas praias ou em espetáculos, em

toda sua verdade natural. Enquanto pessoa, o corpo ganha dignidade; deve-se respeitá-

lo, quer dizer, cuidar constantemente do seu bom funcionamento, lutar contra a sua

obsolescência, combater os signos da sua degradação por meio de uma reciclagem

permanente (cirúrgica, esportiva, dietética, etc.); a decrepitude ―física‖ tornou- se uma

torpeza.

C. Lasch demonstra muito bem que o medo atual de envelhecer e de morrer faz

parte do neonarcisismo. O desinteresse pelas gerações futuras intensifica a angústia da

morte, enquanto a degradação das condições de existência das pessoas idosas e a

permanente necessidade de ser valorizado, admirado pela beleza, pelo charme e pela

celebridade tornam intolerável a perspectiva do envelhecimento (C. N., p. 354-7). De

7 M.Gauchet, ibid., p.116.

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fato, é o processo de personalização que, esvaziando sistematicamente toda a posição

transcendental, engendra uma existência puramente atual, uma subjetividade total sem

finalidade nem sentido, entregue à vertigem da auto-sedução. O indivíduo, fechado em

seu gueto de mensagens, hoje em dia enfrenta sua condição mortal sem qualquer apoio

―transcendental‖ (político, moral ou religioso). ―Para dizer a verdade, o que [p.43]

revolta em relação à dor não é a dor em si, mas o nonsense da dor‖, dizia Nietzsche. O

mesmo acontece com a morte e com a velhice, e é o seu nonsense contemporâneo que

exacerba o horror. Nos sistemas personalizados, então, resta apenas durar o máximo

possível e divertir-se, aumentar a confiabilidade do corpo, ganhar tempo e ganhar a

―corrida‖ contra o tempo. A personalização do corpo apela para o imperativo da

juventude, para a luta contra a adversidade temporal, o combate para conservar nossa

identidade sem hiatos ou panes. Permanecer jovem, não envelhecer: é o mesmo

imperativo da funcionalidade pura, o mesmo imperativo da reciclagem, o mesmo

imperativo da dessubstanciação que impede a manifestação dos estigmas do tempo a

fim de dissolver as heterogeneidades da idade.

Como todas as grandes dicotomias, a do corpo e a do espírito se esfumou; o

processo de personalização, mais particularmente aqui a expansão do psicologismo,

apaga as hierarquias e oposições rígidas, confunde as referências e as identidades

marcadas. O processo de psicologização é um agente de desestabilizador e sob seu

registro todos os critérios vacilam e flutuam numa incerteza generalizada; assim, o

corpo deixa de ser relegado a um estado de positivismo material opondo-se a uma

consciência acósmica e se torna um espaço incerto, um ―objeto-sujeito‖, um misto

flutuante de senso e de sensibilidade, como dizia Merleau-Ponty. Com o advento da

expressão corporal e da dança moderna (a dança Nikolaïs, Cunningham, Carolyn

Carlson), com a eutonia e a ioga, com a bioenergia, o rolfing, a terapia gestalt, onde o

corpo começa ou termina? Suas fronteiras recuam, tornam-se diluídas; o ―movimento de

consciência‖ é simultaneamente uma redescoberta do corpo e de seus poderes

subjetivos. O corpo psicológico substituiu o corpo objetivo e a tomada de consciência

do corpo a respeito de si mesmo tornou-se a própria finalidade do narcisismo: fazer com

que o corpo exista por si mesmo, estimular a sua auto-reflexão, reconquistar a

interioridade do corpo, tal é a obra do narcisismo. Se o corpo e a consciência se

comunicam, se o corpo fala, do mesmo modo que o inconsciente, é preciso amá-lo e

escutá-lo, é preciso que ele se expresse, se comunique e daí emana a vontade de

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redescobrir o corpo de dentro, a busca desenfreada de sua idiossincrasia, ou seja, o

próprio narcisismo, esse agente de psicologização do corpo, esse instrumento de

conquista da subjetividade do corpo por meio de todas as técnicas contemporâneas de

expressão, concentração e relaxamento.

Humanização, subjetivação, R. Sennett está certo: estamos, de fato, em uma

―cultura da personalidade‖, com a condição de precisar que o próprio [p.44] corpo se

torna um indivíduo e, assim, deve ser colocado na órbita da libertação, por meio da

revolução sexual, é claro, mas também estética, dietética, sanitária, etc. sob a égide de

―modelos diretivos‖ 8. Não omitir que ao mesmo tempo em que exerce uma função de

personalização, o narcisismo realiza também uma missão de normalização do corpo: o

interesse febril que temos pelo corpo não é, de modo nenhum, espontâneo e ―livre‖, pois

obedece a imperativos sociais, tais como a ―linha‖, a ―forma‖, o orgasmo, etc. O

narcisismo joga e ganha em todas as tabelas funcionando concomitantemente como

operador de despadronização e operador de padronização, sendo que esta jamais se

reconhece como tal, mas se dobra diante das mínimas exigências da personalização: a

normalização pós-moderna se apresenta sempre como o único meio de o indivíduo ser

realmente ele mesmo, jovem, esbelto, dinâmico9. A exaltação do corpo é como a

inflação psi: o narcisismo se aplica a liberar o corpo dos tabus e fardos arcaicos,

tornando-o assim permeável às regras sociais. Paralelamente à dessubstanciação do Eu,

a dessubstanciação do corpo, ou seja, a eliminação da materialidade selvagem ou

estática por um trabalho que não se realiza mais como antes, segundo uma lógica

ascética por ausência, mas, sim, por meio de uma lógica pletórica que reúne

informações e normas. O narcisismo, pela atenção cuidadosa que dá ao corpo, por seu

cuidado permanente para que haja um funcionamento perfeito, derruba as resistências

―tradicionais‖ e torna o corpo disponível para todas as experimentações. O corpo, assim

como a consciência, torna-se um espaço flutuante, um espaço sem lugar fixo, entregue à

―mobilidade social‖: o narcisismo age limpando os lugares, obtendo o vazio por meio

da saturação, abatendo os núcleos refratários à infiltração das normas. Daí se percebe o

quanto é ingênuo vê-lo surgir, segundo os termos de R. Sennett, com a ―erosão dos

8 J. Baudrillard fala justamente de um ―narcisismo dirigido‖; cf. L’Echange symbolique e la mort. Paris,

Gallimard, 1976, p. 171-3. 9 O processo de personalização anexou a própria norma, assim como anexou a produção, o consumismo,

a educação ou a informação. A norma dirigista ou autoritária foi substituída pela norma ―indicativa‖,

suave, pelos ―conselhos práticos‖, as terapias ―sob medida‖, as campanhas de informação e de

sensibilização por meio de filmes humorísticos e publicidades repletas de sorrisos.

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papéis públicos‖, quer dizer, com a supressão de tudo quanto é convenção, artifício ou

uso, considerado hoje em dia como ―algo de seco, de formal, senão de artificial‖ (T.I., p.

12), e como algo que opõe [p.45] obstáculos à expressão da intimidade e da

autenticidade do Eu. Esteja onde estiver a validade parcial desta tese, ela não resiste à

prova de idolatria regulamentada do corpo sobre a qual, curiosamente, R. Sennett não

diz uma única palavra: se o narcisismo é mesmo ocasionado por uma onda de

desafeição, são as finalidades e valores ―superiores‖ que estão em jogo, não os papéis e

regras sociais. Nada menos do que o grau zero do social, o narcisismo procede de um

hiperinvestimento de regras e funciona como tipo inédito de controle social sobre a

alma e o corpo.

UM TEATRO DISCRETO

Com o que R. Sennett chama a ―condenação moral da impessoalidade‖, que

equivale à erosão dos papéis sociais, começa o reino da personalidade, a cultura

―psicomórfica‖ e a obsessão moderna do Eu em seu desejo de revelar seu ser verdadeiro

ou autêntico. O narcisismo não designa apenas a paixão do conhecimento de si mesmo,

mas também a paixão da revelação íntima do Eu, como, aliás, testemunham a atual

avalanche de biografias, de autobiografias e a psicologização da linguagem política. As

convenções nos parecem repressivas, ―as questões impessoais só suscitam nosso

interesse quando as consideramos — incorretamente — sob um ângulo personalizado‖

(T.I., p. 15); tudo deve ser psicologizado, dito na primeira pessoa: é preciso implicar a si

mesmo, revelar suas próprias motivações, liberar sua personalidade e suas emoções

sempre que possível, expressar seu sentimento íntimo, sem o que soçobraremos no vício

imperdoável da frieza e do anonimato. Em uma sociedade ―intimista‖, que mede tudo

pelo metro da psicologia, a autenticidade e a sinceridade se tornam, como Riesman já

havia comentado, virtudes cardinais, e os indivíduos, absortos que estão pelo seu eu

íntimo, tornam-se cada vez mais incapazes de ―representar‖ os papéis sociais: nós nos

tornamos ―atores particulares da arte‖ (T.I., p. 249). Com sua obsessão pela verdade

psicológica, o narcisismo enfraquece a capacidade de lidar com a vida social, torna

impossível toda a distância entre o que se sente e o que se exprime: ―A capacidade de

ser expressivo se perde porque tentamos identificar sua aparência com seu ser profundo

e porque ligamos o problema de expressão afetiva ao da sua autenticidade‖ (T.I., p.

205). É aí que se encontra a armadilha, pois quanto mais os indivíduos se libertam das

regras e dos costumes em busca de uma verdade pessoal, mais seus relacionamentos se

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tornam ―fratricidas‖ e associais. Sempre exigindo mais imediatismo e proximidade,

[p.46] esmagando o outro sob o peso de confidências pessoais, deixamos de respeitar a

distância necessária para manter o respeito pela vida particular dos demais: o intimismo

é tirânico e ―incivilizado‖. ―A civilidade é a atividade que protege o eu dos outros e nos

permite o prazer da companhia das demais pessoas. O uso de máscara é a própria

essência da civilidade... Quanto mais houver as máscaras, mais a mentalidade ‗urbana‘

reviverá, assim como o amor à urbanidade‖ (T.I., p. 202). A sociabilidade exige

barreiras, regras impessoais que são a única coisa capaz de proteger os indivíduos uns

dos outros; onde, ao contrário, reina a obscenidade da intimidade, a comunidade viva se

despedaça e as relações humanas se tornam ―destruidoras‖. A dissolução dos papéis

públicos e a compulsão de autenticidade engendraram uma incivilidade que se

manifesta, de um lado, pela rejeição às relações anônimas com os ―desconhecidos‖ na

cidade e a intimidade confortável no nosso gueto interior; por outro lado, ela se

manifesta pelo declínio do sentimento de pertencer a um grupo e, correlativamente, a

acentuação dos fenômenos de exclusão. Eliminada a consciência de classe, passamos a

nos confraternizar tendo por base o bairro, a região ou os sentimentos comuns: ―O ato

de partilhar dirige cada vez mais a operações de exclusão ou, ao contrário, de inclusão...

A fraternidade nada mais é do que a união de um grupo seletivo que rejeita todos os que

não fazem parte dele... A fragmentação e as divisões internas são o produto da

fraternidade moderna‖ (T.I., p. 203).

Digamos sem rodeios, a idéia de que o narcisismo enfraquece a energia lúdica e

se revela incompatível com a noção de ―papel‖ não resiste ao exame. Claro, as

convenções rígidas que enquadravam as condutas foram arrastadas no processo de

personalização que, por toda a parte, tende a eliminar as regras e a suavizar os quadros

estritos; neste sentido, é verdade que os indivíduos recusam os constrangimentos

―vitorianos‖ e aspiram a mais autenticidade e liberdade em seus relacionamentos.

Contudo, isso não quer dizer que o indivíduo está entregue a si mesmo, desembaraçado

de todas as regras sociais. O processo de personalização não elimina as regras, apenas as

degela impondo outras regras adaptadas ao imperativo de produzir exatamente uma

pessoa pacificada. Dizer tudo, talvez, porém sem gritos; diga o que você quiser, só que

não passe à ação; mais ainda, essa libertação do discurso, ainda que acompanhada por

violência verbal, irá contribuir para a regressão do uso da violência física:

hipervalorização das confidências íntimas e, correlativamente, esvaziamento da

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violência física – por esse deslocamento, o strip-tease psi se revela um instrumento de

controle e de pacificação [p.47] social. Mais do que uma realidade psicológica atual, a

autenticidade é um valor social e, como tal, não pode de modo algum explodir sem

constrangimento em qualquer lugar: a intemperança da revelação sobre si mesmo deve

se dobrar diante das novas regras, quer seja na sala do analista, no gênero literário ou no

―sorriso familiar‖ do político quando aparece na TV. De qualquer maneira, a

autenticidade deve corresponder ao que esperamos dela, às regras da autenticidade: uma

manifestação exuberante demais e um discurso teatral demais não têm o efeito de

sinceridade, que deve adotar o estilo cool, caloroso e comunicativo; mais ou menos do

que isso é histrionismo, é neurose. É preciso se expressar sem reserva (e até mesmo

isso, na verdade, deve ter nuanças delicadas, como veremos) e livremente, porém dentro

de um plano preestabelecido. Há a busca da autenticidade, mas de modo nenhum da

espontaneidade: Narciso não é um ator atrofiado, as faculdades expressivas e lúdicas

não são mais nem menos desenvolvidas hoje do que eram ontem. Observe a proliferação

dos ―truques‖ da vida cotidiana, os estratagemas e ―trapaças‖ no mundo do trabalho: a

arte da dissimulação e as máscaras não perderam nada da sua eficácia. Observe o quanto

a sinceridade é ―interdita‖ diante da morte: devemos esconder a verdade do moribundo,

não devemos ostentar a dor pela perda de uma pessoa querida e fingir ―indiferença‖, diz

Ariès10

: ―A discrição aparece como a forma moderna da dignidade‖ 11

. O narcisismo se

define menos pela explosão livre das emoções do que pelo recolhimento em si mesmo,

ou seja, pela ―discrição‖, sinal e instrumento do self-control. Principalmente, nada de

exagero, de excesso, de tensão que possam fazer a pessoa ficar fora de si; é o

dobramento sobre si mesmo, a ―reserva‖ ou a interiorização que caracterizam o

narcisismo, não a exibição ―romântica‖.

Aliás, longe de exacerbar as exclusões e de engendrar o sectarismo, o

psicologismo tem efeitos inversos: a personalização age para desarmar os antagonismos

rígidos, as excomunhões e as contradições. O laxismo se impõe ao moralismo ou ao

purismo e a indiferença, à intolerância. Absorvido demais por si mesmo, Narciso

renuncia às militâncias religiosas, destitui as grandes ortodoxias, suas adesões seguem a

moda, são flutuantes e sem grande motivação. Tanto aqui como em outros lugares, a

personalização conduz ao desinvestimento do conflito, ao repouso. Nos sistemas

10

Ph. Ariès. Essais sur l’histoire de la mort en Occident. Paris, Ed. du Seuil, 1975, p. 187. 11

Ibid., p.173

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personalizados, [p.48] os cismas, as heresias já não têm sentido: quando uma sociedade

―valoriza o sentimento subjetivo dos atores e desvaloriza o caráter objetivo da ação‖

(TI., p. 21), aciona um processo de dessubstanciação das ações e doutrinas, cujo efeito

imediato é uma ―descrispação‖ ideológica e política. Neutralizando os conteúdos em

benefício da sedução psi, o intimismo generaliza a indiferença, coordena uma estratégia

de desarmamento nos antípodas do dogmatismo das exclusões.

A tese de R. Sennett a respeito das relações intersubjetivas não é também das

mais convincentes: ―Quanto mais íntimas são as pessoas, mais seus relacionamentos se

tornam dolorosos, fratricidas e associais‖ (T.I., p. 274). As convenções rituais impediam

os seres humanos de se matarem, de se despedaçarem uns aos outros? A cultura pública

ignorava a esse ponto a crueldade e o ódio? Foi preciso esperar a era intimista para que

a luta das consciências tivesse seu grande impulso? Se é evidente que não possível

aderir a tal maniqueísmo ingênuo (máscaras = civilidade; autenticidade = incivilidade),

se é verdade que no avesso da apatia narcisística subsiste um problema precisamente no

local dessa dramatização do conflito, então o que leva a uma tal representação

catastrófica? O que faz dela uma idéia dominante no nosso tempo?

APOCALYPSE NOW?

A mesma constatação trágica se encontra em C. Lasch, desta vez sob a forma de

um discurso nitidamente apocalíptico; quanto mais a sociedade apresenta uma imagem

tolerante de sim mesmo, na verdade mais o conflito se intensifica e se generaliza: assim,

passamos da guerra de classes à ―guerra de todos contra todos‖ (C. N., p. 125).

Primeiramente, no universo econômico reina uma rivalidade pura, esvaziada de toda

significação moral ou histórica: acabou-se o culto do self-made man e ao

enriquecimento como sinal de progresso individual e social. Agora o ―sucesso‖ não tem

mais do que um significado psicológico: ―A busca da riqueza não tem qualquer outro

objetivo a não ser excitar a admiração ou a inveja‖ (C. N., p. 118). Nos sistemas

narcisísticos, cada qual lisonjeia seus superiores para alcançar melhores posições, quer

ser mais ser invejado do que respeitado, e a nossa sociedade, indiferente ao futuro,

apresenta-se como uma selva burocrática onde reina a manipulação e a concorrência de

todos contra todos (C. N., p. 114-7). Até mesmo a vida particular deixou de ser um

refúgio e reproduz este estado [p.49] generalizado de guerra: peritos em comunicação

redigem tratados psicológicos para assegurar aos indivíduos uma posição dominante nos

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coquetéis, enquanto novas estratégias, como a assertiveness therapy, buscam

desembaraçar as pessoas dos sentimentos de ansiedade, de culpa e de inferioridade

freqüentemente utilizados por seus oponentes para alcançar seus objetivos. As relações

humanas, públicas e particulares, tornaram-se relações de dominação e de conflitos

baseados na sedução fria e na intimidação. Por fim, sob a influência do neofeminismo,

os relacionamentos entre o homem e a mulher se deterioram consideravelmente depois

de serem libertados das regras pacificadoras da cortesia. A mulher, com as suas

exigências sexuais e as suas capacidades orgásticas vertiginosas — os trabalhos de

Masters e Johnson, K. Millett, M. J. Sherfey apresentam a mulher como ―insaciável‖ —,

torna-se para o homem uma parceira ameaçadora, intimidante e geradora de angústia:

―O espectro da impotência assombra a imaginação contemporânea‖ (C. N., p. 345), essa

impotência masculina que, segundo os últimos relatórios, teria aumentado devido ao

medo em relação à mulher e à sua sexualidade liberada. Neste contexto, o homem

alimenta um ódio sem freio contra a mulher, como testemunha o tratamento que elas

recebem nos filmes atuais, que apresentam com grande freqüência cenas de estupro (C.

N., p. 324). Ao mesmo tempo, o feminismo desenvolve na mulher o ódio pelo homem,

comparado a um inimigo, fonte de opressão e de frustração; apresentando cada vez mais

exigências ao homem que se torna incapaz de atendê-las, o ódio e a recriminação se

estendem no sexual warfare característico da nossa era.

C. Lasch, rejeitando as teorias de Riesman e de Fromm que, aos seus olhos, são

culpados de terem exagerado a capacidade de socialização das pulsões agressivas pela

sociedade permissiva, não faz mais do que voltar à representação dominante, mass-

midiática, da ascensão da violência no mundo moderno: a guerra está às nossas portas,

vivemos sobre um barril de pólvora, basta ver o terrorismo internacional, os crimes, a

insegurança das cidades, a violência racial nas ruas e escolas, os assaltos à mão armada,

etc. (C. N., p. 130). O estado natural de Hobbes encontra-se, assim, no fim da História: a

burocracia, a proliferação das imagens, as ideologias terapêuticas, o culto ao

consumismo, as transformações da família, a educação permissiva engendraram uma

estrutura da personalidade, o narcisismo, indo a par com as relações humanas cada vez

mais bárbaras e conflituosas. Os indivíduos se tornam mais sociáveis e cooperativos

apenas aparentemente; por trás da tela do hedonismo e da solicitude, cada um explora

cinicamente os [p.50] sentimentos dos outros e satisfaz seus próprios interesses sem a

menor preocupação com as gerações futuras. É curioso que concepção desse narcisismo,

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apresentado como estrutura psíquica inédita e que se encontra de fato aprisionada nas

redes do amor-próprio e do desejo de reconhecimento, já tenha sido percebido por

Hobbes, Rousseau e Hegel como responsável pelo estado de guerra. Se o narcisismo

representa um novo estágio do individualismo - esta é hipótese mais proveitosa nos

atuais trabalhos americanos, muito mais do que o seu conteúdo, inclinado demais a um

catastrofismo simplista -, é preciso notar que ele se acompanha de um relacionamento

original com o Outro, assim como implica em uma relação inédita com o corpo, o

tempo, o afeto, etc.

Essa transformação da dimensão intersubjetiva já se encontra bastante aparente,

tanto no que concerne ao espaço público quanto ao espaço privado. O primado da

sociabilidade pública e a luta pelos sinais manifestos do reconhecimento começam a se

apagar correlativamente à ascensão da personalidade psi. O narcisismo tempera a selva

humana pelo desinvestimento que opera nas classes e hierarquias sociais por meio da

redução do desejo de ser admirado e invejado por seus semelhantes. Profunda revolução

silenciosa do relacionamento pessoal: o que importa no momento é ser absolutamente si

mesmo, desenvolver-se independentemente dos critérios do Outro; o sucesso visível e a

busca da cotação honorífica tendem a perder o seu poder de fascínio, o espaço da

rivalidade inter-humana cede lugar aos poucos a uma relação pública neutra em que o

Outro, esvaziado em toda a sua espessura, não é mais hostil nem concorrente, mas, sim,

indiferente, sem substância, a exemplo dos personagens de P. Handke e Wim Wenders.

Enquanto o interesse e a curiosidade a respeito dos problemas pessoais do Outro,

mesmo que ele seja um estranho para mim, não pára de aumentar (sucesso do ―correio

sentimental‖, das confidências nas ondas sonoras, das biografias), como deve acontecer

em uma sociedade baseada sobre o indivíduo psicológico, o Outro como pólo de

referência anônimo se encontra desafeiçoado, do mesmo modo que as instituições e os

valores superiores. Claro, a ambição social está longe de se ter desaparecido de maneira

idêntica para todos: assim, categorias inteiras (dirigentes e quadros de empresas,

políticos, artistas, intelligentsia) continuam a lutar avidamente para ganhar prestígio,

glória ou dinheiro; mas que não vêem, ao mesmo tempo, que se trata antes de tudo de

grupos que pertencem, em graus diferentes, ao que podemos muito bem chamar de

―elite‖ social, que se reserva de algum modo [p.51] o privilégio de reconduzir um éthos

de rivalidade necessária para o desenvolvimentos das nossas sociedades. Em troca, para

um crescente número de indivíduos, o espaço público deixou de ser o teatro onde se

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agitavam as paixões ―arrivistas‖; resta apenas a vontade de se realizar à parte e se

integrar nos círculos de convívio ou de calor humano que se tornam os satélites psi de

Narciso, suas ramificações privilegiadas: a queda da intersubjetividade pública não

conduz unicamente à relação de si para si, ela vai de par com o investimento emocional

dos espaços privados, que não é menos eficiente por ser instável. É assim que, deixando

de lado o desejo de reconhecimento e temperando os desejos de elevação social, o

narcisismo dá prosseguimento de outra maneira, ou seja, de dentro, no caso, ao processo

de igualar condições. O homo psychologicus aspira menos a se içar acima dos outros do

que a viver num meio ambiente tranqüilo e comunicativo, nos meios ―simpáticos‖, sem

altura e sem pretensão excessiva. O culto do relacional personaliza ou psicologiza as

formas de sociabilidade, corrói as últimas barreiras anônimas que separam os homens,

atuando como um agente da revolução democrática que trabalha continuamente para a

dissolução das barreiras sociais.

Assim sendo, é natural que a luta pelo reconhecimento não cesse; mais

exatamente, ela se privatiza, manifestando-se com prioridade nos circuitos íntimos, nos

problemas relacionais; o desejo de reconhecimento foi colonizado pela lógica

narcisística e torna-se cada vez menos competitivo, cada vez mais estético, erótico,

afetivo. O conflito de consciências se personaliza, está menos em jogo a classificação

social do que o desejo de agradar, de seduzir - e isto, por um longo tempo, se possível -

o desejo de ser ouvido, aceito, protegido, amado. É por isso que hoje em dia há menos

agressividade, domínio e servidão nos relacionamentos e conflitos sociais do que nos

relacionamentos sentimentais de pessoa a pessoa. Por um lado, a cenário público e as

condutas individuais não param de se pacificar por meio da auto-absorção narcisística;

por outro, o espaço particular se psicologiza, perde as suas amarras convencionais e se

torna uma dependência narcisística na qual cada um encontra apenas o que ―deseja‖: o

narcisismo não significa a exclusão dos outros, designa a transcrição progressiva das

realidades individuais e sociais para o código da subjetividade.

Apesar de suas rumorosas declarações de guerra e de seu apelo à mobilização

geral, o neofeminismo, por sua vez, não encontra sua verdade na intensificação,

finalmente superficial, da batalha dos sexos. A relação de forças que parece definir por

enquanto o relacionamento entre os sexos talvez [p.52] seja o último sobressalto da

divisão tradicional dos sexos e, ao mesmo tempo, o sinal da sua extinção. A

exacerbação do conflito não é o essencial e provavelmente permanecerá circunscrita às

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gerações ―intermediárias‖, que foram fragilizadas e desconcertadas pela revolução

feminista. Estimulando uma interrogação sistemática sobre a ―natureza‖ e o estatuto da

mulher, buscando a sua identidade perdida, recusando toda e qualquer posição pré-

estabelecida, o feminismo desestabiliza as oposições normatizadas e desorganiza os

pontos de referência estáveis: assim começa realmente o fim da antiga divisão

antropológica e dos seus conflitos concomitantes. Não mais a batalha dos sexos, mas,

sim, o fim do mundo do sexo e de suas posições regulamentadas. Quanto mais o

feminismo questiona a existência do feminino, mais este se apaga e se perde na

incerteza; quanto mais a mulher derruba partes inteiras de seu status tradicional, mais a

própria virilidade perde sua identidade. As classes relativamente homogêneas do sexo

vão sendo substituídas por indivíduos cada vez mais aleatórios, por combinações até

então improváveis de atividade e de passividade, por miríades de seres híbridos sem

laços fortes de grupo. É a identidade pessoal que se torna problemática, é o ser si

mesmo, para além das oposições constituídas do mundo do sexo, que o neofeminismo

constrói fundamentalmente. Mesmo que ele consiga, por muito tempo ainda, mobilizar

o combate das mulheres por meio de um discurso militar e unitário, há quem perceba

desde agora que a jogada é outra: mais ou menos por toda a parte, as mulheres se

reúnem, conversam e escrevem liquidando por meio desse trabalho de autoconsciência a

sua identidade de grupo, seu pretenso narcisismo de antigamente, eterna ―vaidade

corporal‖ que Freud ainda lhes atribuía. A sedução feminina, misteriosa ou histérica, dá

lugar a uma auto-sedução narcisística que homens e mulheres partilham igualmente,

sedução essa fundamentalmente transexual, separada das distribuições e atribuições

respectivas do sexo. A batalha dos sexos não acontecerá: longe de ser uma máquina de

guerra, o feminismo é mais uma máquina de despadronização do sexo, uma máquina

que se dedica à reprodução ampliada do narcisismo.

24 MIL WATTS

À guerra de cada um contra todos vem juntar-se uma guerra interior, dirigida e

amplificada pelo desenvolvimento de um Sobre-Eu duro e punitivo, resultante das

transformações da família, tais como a ―ausência‖ do pai e [p.53] a dependência da mãe

em relação aos peritos e conselheiros psicopedagógicos (C. N., cap. VII). O

―desaparecimento‖ do pai, devido à freqüência dos divórcios, leva a criança a imaginar

a mãe como castradora do pai: é nessas condições que os filhos alimentam o sonho de

substituí-lo, de ser o falo, ganhando celebridade ou se juntando aos que representam o

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sucesso. A educação permissiva e a socialização crescente das funções dos pais, que

tornam difícil a interiorização da autoridade familiar, não destroem o Sobre-Eu, mas

transformam seu conteúdo num sentido cada vez mais ―ditatorial‖ e feroz (C. N., p.

305). O Sobre-Eu se apresenta atualmente sob a forma de imperativos de celebridade e

de sucesso que ao não serem alcançados desencadeiam críticas implacáveis contra o Eu.

Assim se explica o fascínio exercido pelos indivíduos célebres, estrelas e ídolos,

vivamente estimulado pela mídia que ―intensifica os sonhos narcisísticos de celebridade

e de glória, encorajando o homem ‗comum‘ a se identificar com estrelas, a odiar o

‗rebanho‘, e torna cada vez mais difícil para ele aceitar a banalidade da existência

cotidiana‖ (C. N., p. 55-6): a América tornou- se uma nação de ―fãs‖. Do mesmo modo

que a proliferação de conselheiros médico-psicológicos destrói a confiança dos pais na

própria capacidade educativa e aumenta a sua ansiedade, as imagens da felicidade

associadas a imagens de celebridade têm como efeito engendrar mais dúvidas e

angústias. Ativando o desenvolvimento de ambições desmesuradas e tornando suas

realizações impossíveis, a sociedade narcisística favorece a autodepreciação e o

desprezo por si mesmo. A sociedade hedonista produz tolerância e indulgência apenas

superficialmente, ao passo que a ansiedade, a incerteza e a frustração jamais se

desenvolveram tanto quanto nela. O narcisismo alimenta mais ódio do que admiração

pelo Eu (C. N., p. 72).

Culto à celebridade? Ao contrário, o que é muito mais significativo é a queda de

veneração conhecida pelas vedetes e os grandes deste mundo. O destino das ―estrelas‖

de cinema corre paralelo ao dos grandes líderes políticos e dos pensadores ―filosóficos‖.

As figuras imponentes do saber e do poder se apagam, pulverizadas por um processo de

personalização que não pode tolerar por muito tempo a manifestação ostentatória de

uma tal desigualdade, de uma tal distância. O mesmo momento vê a dissolução dos

sagrados discursos marxistas e psicanalíticos, o fim dos gigantes históricos, o fim das

estrelas, pelas quais se cometiam suicídios simultaneamente à multiplicação de

pequenos mestres pensadores: surge o silêncio do psicanalista, das estrelas de um verão,

das considerações intimistas dos políticos. Tudo [p.54] aquilo que designa o absoluto,

uma altura exagerada, desaparece e as celebridades perdem a sua aura enquanto a sua

capacidade de galvanizar as massas enfraquece. As vedetes não duram muito mais

tempo do que os cartazes, as novas ―revelações‘ anulam as de ontem de acordo com a

lógica da personalização, que é incompatível com a sedimentação, sempre susceptível

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de reproduzir um endeusamento impessoal. A obsolescência dos objetos responde a

obsolescência das estrelas e dos gurus; a personalização implica a multiplicação e

aceleração na rotação das ―figuras que estão nas primeiras páginas dos jornais‖ a fim de

que nenhuma delas possa se tornar um ídolo inumano, um ―monstro sagrado‖. É por

meio do excesso de imagens e de sua celeridade que se realiza a personalização: a

―humanização‖ vem com a inflação galopante da moda. Deste modo, à medida que há

cada vez mais ―vedetes‖, cada vez mais diminui o investimento emocional em relação a

elas; a lógica da personalização gera uma indiferença aos ídolos feita de entusiasmo

passageiro e de desafeição instantânea. O tempo é menos a favor da devoção ao Outro

do que da realização e transformação de si mesmo, como dizem, cada qual com sua

linguagem e em diferentes graus: os movimentos ecológicos, o feminismo, a cultura psi,

a educação cool das crianças, a moda ―prática‖, o trabalho intermitente ou em tempo

parcial.

Dessubstancialização das grandes figuras da Alteridade e do Imaginário,

concomitante com uma dessubstancialização do real pelo mesmo processo de

acumulação e aceleração. Por todo lado o real deve perder a sua dimensão de alteridade

ou de espessura selvagem: restauração dos bairros antigos, proteção dos sítios,

animação das cidades, iluminação artificial, mirantes, ar condicionado, é preciso sanear

o real, expurgá-lo das suas últimas resistências criando um espaço sem sombra, aberto e

personalizado. O princípio de realidade foi substituído pelo princípio de transparência

que transforma o real em um lugar de trânsito, um território no qual o deslocamento é

imperativo: a personalização é um lance de circulação. O que dizer desses subúrbios

intermináveis dos quais só se pode fugir? Climatizado e saturado de informações, o real

se torna irrespirável e condena ciclicamente a viajar: ―mudar de ares‖, ir não importa

onde desde que haja movimento, traduz essa indiferença que hoje em dia afeta o real.

Todo o nosso ambiente urbano e tecnológico (estacionamento subterrâneos, galerias de

lojas, auto-estradas, arranha-céus, desaparecimento de praças públicas nas cidades,

jatos, automóveis, etc.) é organizado para acelerar a circulação dos indivíduos, entravar

a fixação e, assim, pulverizar a sociabilidade: ―O espaço público se [p.55] tornou um

derivado do movimento‖ (T. I, p. 23), nossas paisagens ―removidas pela velocidade‖,

como disse muito bem Virílio12

, perdem sua consistência ou índice de realidade.

12

P. Virílio. ―Un confort subliminal‖ In : Traverses, n.14-15, p. 159. Sobre o ―constrangimento à

movimentação‖, ver igualmente P. Virílio, Vitesse et politique, Paris, Galilée, 1977.

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Circulação, informação, iluminação trabalham para um mesmo enfraquecimento do real,

o que, por sua vez, reforça o investimento narcisístico: uma vez o real se tornando

inabitável, resta o dobrar-se para dentro de si mesmo, o refugiar-se na autarquia, que a

nova voga dos decibéis, dos fones de ouvido e dos concertos pop tão bem ilustra.

Neutralizar o mundo pelo poder sonoro, fechar-se em si mesmo, flutuar e sentir no

corpo o ritmo dos amplificadores. Hoje em dia o barulho e as vozes da vida se tornam

parasitas, é preciso identificar-se com a música e esquecer a exterioridade do real. Já dá

para ver isso: adeptos do jogging e do skate praticando os seus esportes com

transmissores estereofônicos diretamente nos tímpanos, automóveis equipados com

aparelhos de som com amplificadores que funcionam a 100 W, discotecas com

amplificadores com 4.000 W de potência, concertos pop nos quais o som atinge 14.000

W; enfim, toda uma civilização que ultimamente vem fabricando, como dizia Le

Monde, uma ―geração de surdos‖, jovens que já perderam 50% da sua capacidade

auditiva. Surge uma nova indiferença ao mundo que já não acompanha nem mesmo o

êxtase narcisístico da contemplação de si mesmo; hoje em dia Narciso se desoprime

rodeado por amplificadores, com fones de ouvido, auto-suficiente em sua prótese de

sons ―graves‖.

O VAZIO

―Se pelo menos pudesse sentir alguma coisa!‖ Esta frase traduz o ―novo‖

desespero que aflige um número cada maior de pessoas. Neste ponto, parece que é geral

a concordância dos psicólogos: depois dos vinte e cinco ou trinta anos são as

perturbações de tipo narcisístico que constituem a maior parte das perturbações

psíquicas tratadas pelos terapeutas, enquanto as neuroses ―clássicas‖ do século XIX,

histerias, fobias, obsessões, sobre as quais a psicanálise tomou corpo, não representam

mais a forma predominante dos sintomas (T. I., p. 259 e C. N., p. 88-9). As perturbações

narcisísticas se apresentam menos sob a forma de ―perturbações com sintomas nítidos e

bem definidos‖ e mais sob a forma de ―perturbações do caráter‖ [p.56] que se

manifestam por meio de um mal-estar difuso e invasor, de um sentimento de vazio

interior e de absurdo da vida, de uma incapacidade de sentir as coisas e as pessoas. Os

sintomas neuróticos, que correspondiam ao capitalismo autoritário e puritano, deram

lugar, sob a pressão da sociedade permissiva, às desordens narcisísticas, sem formas e

intermitentes. Os pacientes não sofrem mais de sintomas fixos, mas, sim, de

perturbações vagas e difusas; a patologia mental obedece à lei do tempo, cuja tendência

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é a redução das rigidezes assim como a liquefação das referências estáveis: a crispação

neurótica foi substituída pela flutuação narcisística. Impossibilidade de sentir, vazio

emotivo, a dessubstancialização a esta altura está se completando, revelando a verdade

do processo narcisístico como estratégia do vazio.

Além disso, de acordo com C. Lasch, os indivíduos aspirariam a um desapego

emocional cada vez maior por causa dos atuais riscos de instabilidade das relações

pessoais. Ter relações interindividuais sem apego profundo, não se sentir vulnerável,

desenvolver a independência afetiva, viver só13

: este seria o perfil de Narciso (C. N., p.

339). O medo de se decepcionar e o medo das paixões incontroladas traduzem no nível

do subjetivo o que C. Lasch chama the flight from feeling – ―a fuga diante do

sentimento‖ - processo que se revela tanto na proteção íntima quanto na separação em

que todas as ideologias ―progressistas‖ querem realizar entre o sexo e o sentimento.

Enaltecer o cool sex e as relações livres, condenar o ciúme e a possessividade, trata-se

na realidade de climatizar o sexo, de expurgá-lo de toda a tensão emocional e de, assim,

alcançar um estado de indiferença, de desapego, não apenas para se proteger das

decepções amorosas, como também para se proteger dos próprios impulsos que sempre

arriscam ameaçar o equilíbrio interior (C. N., p. 341). A liberação sexual, o feminismo,

a pornografia trabalham para uma mesma finalidade: erguer barreiras contra as emoções

e manter à distância as intensidades afetivas. Fim da cultura sentimental, fim do happy

end, fim do melodrama e surgimento de uma cultura cool em que cada qual vive num

bunker de indiferença, ao abrigo das próprias paixões e das dos outros.

[p.57] Com certeza C. Lasch tem razão ao sublinhar o refluxo da moda

―sentimental‖, destronada que é pelo sexo, pelo prazer, pela autonomia e pela violência

espetacular. O sentimentalismo sofreu o mesmo destino que a morte; torna-se incômodo

exibir as próprias emoções, declarar ardentemente uma paixão, chorar, manifestar com

demasiada ênfase os impulsos interiores. Como acontece com a morte, a

sentimentalismo se tornou embaraçoso; trata-se de manter a dignidade em questões de

afeto, quer dizer, manter a discrição. Porém, longe de designar um processo anônimo de

desumanização, o ―sentimento proibido‖ é um efeito do processo de personalização que

aqui trabalha pela erradicação dos sinais rituais e ostentatórios do sentimento. O

13

Entre 1970 e 1978 o número de americanos entre quatorze e os trinta e quatro anos vivendo sós, fora de

toda e qualquer situação familiar, quase triplicou, passando de um milhão e meio para 4.300.000. ―Hoje

em dia, 20% dos lares americanos se reduzem a uma pessoa que vive sozinha... quase um quinto dos

compradores atualmente são solteiros‖. Alvin Toffler, La Troisième Vague, Paris, Denoël, 1980, p. 265.

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sentimento deve alcançar um estado personalizado, eliminando os sintagmas

congelados, a teatralidade melodramática, o kitsch convencional. O pudor sentimental é

comandado por um princípio de economia e de sobriedade constitutivo do processo de

personalização. Deste modo, o que caracteriza o nosso tempo é menos a fuga diante do

sentimento que a fuga dos sinais do sentimentalismo. Não é verdade que as pessoas

estejam procurando um distanciamento emocional e uma proteção contra a irrupção do

sentimento; a este inferno povoado de mônadas insensíveis e independentes é preciso

opor os clubes de encontros, os ―pequenos anúncios‖, as ―agências‖, enfim, todas essas

milhares de esperanças de encontros, de ligações, de amor que são cada vez mais

difíceis de se realizarem. É aí que o drama se torna mais profundo do que o pretenso

desapego cool: homens e mulheres continuam aspirando (talvez nunca tenha havido

tanta ―demanda‖ afetiva como nesses tempos de deserção generalizada) à intensidade

emocional dos relacionamentos privilegiados, e quanto mais a esperança é forte, mais o

milagre da união se torna raro ou, pelo menos, breve14

Quanto mais a cidade desenvolve

as possibilidades de encontros, mais os indivíduos se sentem sós; quanto mais as

relações se tornam livres, emancipadas das antigas restrições, mais rara se torna a

possibilidade de conhecer uma relação intensa. Por todo o lado há solidão, vazio,

dificuldade de sentir, de ser transportado para fora de si [p.58] mesmo; daí uma fuga

para as ―experiências‖, que apenas traduz a busca de uma ―experiência‖ emocional

forte. Por que eu não posso amar e vibrar? Desolação de Narciso, muito bem

programado em sua absorção em si mesmo para poder ser afetado pelo Outro, para sair

de si mesmo e, no entanto, insuficientemente programado, uma vez que ainda deseja um

relacionamento afetivo.

14

O processo de despadronização precipita a duração das ―aventuras‖, os relacionamentos repetitivos,

com sua inércia ou peso, fazendo dano à disponibilidade e à ―personalidade‖ viva do indivíduo. Para ter

alegria de viver é preciso reciclar os afetos, jogar fora tudo que envelhece: nos sistemas desestabilizados,

a única ―ligação perigosa‖ é uma ligação indefinidamente prolongada. Daí quedas e elevações cíclicas da

tensão: do estresse à euforia, a existência torna-se sismográfica. Cf. Manhattan, de W. Allen.