atimo - vazio

24
vazio abandono • solidão • indiferença • escuridão • medo ÁTIMO Recife | fevereiro 2014

Upload: jornalismo-2011-ufpe

Post on 13-Mar-2016

240 views

Category:

Documents


3 download

DESCRIPTION

Átimo é a publicação resultante da disciplina de Edição do curso de Comunicação Social - Jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no Departamento de Comunicação (DCOM), do Centro de Artes e Comunicação (CAC).

TRANSCRIPT

Page 1: Atimo - Vazio

vazioabandono • solidão • indiferença • escuridão • medo

ÁTIMORecife | fevereiro 2014

Page 2: Atimo - Vazio

2

O vazio pode ter vários motivos. silêncio da escuridão, naqueles que mal saem de Esta edição de Átimo não é um produto que casa e nas lendas urbanas de terror.

busca solucioná-los, embora pretenda tateá-los. O vazio que é mostrado aqui é o que existe, Desde o princípio, a ideia por trás do tema que todos os dias, em frente a cara de todos nós, que originou este dossiê temático foi o sentimento de que relutamos em enxergá-lo.não há como escapar do vazio, mesmo na multidão Em uma das entrevistas usadas para compor das ruas da cidade moderna. a reportagem de capa, uma mãe que reside na área

A Região Metropolitana do Recife é o maior histórica do bairro da Boa Vista há 30 anos contou aglomerado urbano do Norte e Nordeste brasileiro. seu maior medo. “Meu filho sai todo dia de casa para Com seus 4 milhões de habitantes, está em quinto estudar e eu não sei se ele volta. Nem como volta”, lugar no ranking de concentração urbana no País. Só segredou.na Capital, vivem mais de 1,5 milhão de pessoas. E Naquela tarde, o jovem era apenas mais um apesar de tanta gente, ainda é possível sentir o vazio nas multidões da grande cidade. Tão acompanhado; nas ruas do Recife. quanto sozinho.

Este vazio se manifesta no abandono do Nas angústias dos milhões que transitam Centro Histórico da cidade, na indiferença dos pelas ruas da metrópole, alguns vazios são mais transeuntes, na falta de reconhecimento da arte, no profundos que os outros. •

vazios

editorial

Foto: Suzana Mateus

expediente

ediçãoThiago Soares

textoDaniel MedeirosDébora MírianIgor De QueirozMarcela de AquinoPaulo VerasStamberg JuniorSuzana Mateus

fotoDébora MírianMarcela de AquinoSuzana Mateus

foto de capaSuzana Mateus

diagramaçãoPaulo Veras

Page 3: Atimo - Vazio

3

reportagem

Foto: Suzana Mateus

Por Suzana Mateus via tem um movimento intenso de automóveis. O que não retira dela o vazio que se esconde por trás de

O sinal abre. Os veículos passam em seu casario e de sua beleza transfigurada.disparada. São carros das mais variadas marcas Há mais de 150 anos, a Velha está na terceira transportando gente que se desloca com rapidez e idade. Até o século 18, era chamada de “Rua Nova tem pressa para chegar ao seu destino. Essa gente, da Ponte Velha na Boa Vista”, como bem cita o talvez, na correria cotidiana, não olha para os lados. historiador Pereira da Costa nos “Anais Só para frente. Só para a extensão do Pernambucanos”. Hoje, ao longo de sua extensão, congestionamento ou para os sinais que ainda moradias, loja de eletrônicos, gráfica e ótica faltam até o trajeto ser concluído. Ao olhar para os preenchem o espaço. O pequeno comércio ali empecilhos da modernidade, não contemplam o situado oferece serviços contemporâneos que passado das ruas, que se desgasta na mesma invadem o simbolismo histórico numa discrepância velocidade da frota. É assim na Rua Velha, no bairro comum ao lugar. Progressiva, relaxamento e luzes é da Boa Vista. Irmã primeira da Glória e da Alegria, a o que disponibiliza um salão de beleza localizado em

irmãs

reportagem

Page 4: Atimo - Vazio

4

reportagem

uma casa alaranjada, uma das filhas mais do que na Velha. O comércio por lá quase não dá as conservadas da Velha. caras: a rua conta apenas com a tradicional Padaria

Nos imóveis, as marcas do tempo teimam em Santa Cruz, uma pequena empresa de fardamentos aparecer. Esses traços, em conjunto com o sol e uma gráfica.soberano e impiedoso do Recife, concedem uma A Rua da Alegria, como tantas outras, é angústia latente às construções. Atingidas pelos regrada pela violência da cidade. Um de seus raios, elas franzem a testa como se fossem antigos imóveis é ocupado por uma boca de fumo. humanos. Das rugas formadas, caem ao chão ou Os moradores creem que a situação no local ainda é são levados pelo vento os vestígios de tinta. mais branda do que na Velha e na Glória. Ainda Aparecem, então, as várias camadas sobrepostas, assim, a violência se manifesta como um vírus indícios das tantas histórias que por ali passaram e altamente contagioso. Quem mora na Alegria, é da aura dos velhos tempos que permanece presa à vítima de um isolamento típico da modernidade. As derme, enquanto a superfície se esvai. crianças, que ainda brincavam na via há cerca de 20

A Rua Velha não é esvaziada de gente, mas anos, hoje estão retraídas em suas casas. Não passa por um processo gradativo de perda de criaram um vínculo afetivo, tão comum nos tempos sentido. Tão repleta de memórias, ela cede lugar ao de outrora, com aquele espaço. A relação de gosto e abandono. Ignorada pelo poder público, é vítima da pertencimento dos velhos tempos deu lugar a decadência do centro histórico do Recife. Funciona indiferença.como porta para um quarto escuro onde se deposita Há três anos, as marcas da violência eram as mazelas que a sociedade teima em escantear. ainda mais visíveis. A rua, o espaço de todos, onde o Mas não está sozinha neste caminho. Paralela a ela, direito de ir e vir deve ser plenamente respeitado, foi está a Rua Alegria. Lá, o movimento de carros e de feita de refém e dominada por um grupo de jovens gente é menor. Grande é o número de veículos deliquentes. Para ter a segurança garantida, os parados, o que faz a via parecer uma área exclusiva moradores tiveram que desenvolver uma relação de para estacionamento. Os automóveis, modernos, amizade com um dos rapazes. Hoje, a rua é mais lustrosos e de traços futuristas, destoam de algumas comedida. Mas ainda carrega as chagas da edificações que sofrem com pesar do tempo. As sociedade, que são depositadas nos espaços mais casas, no entanto, são mais conservadas na Alegria vazios na busca pela invisibilidade.

Progressiva, relaxamento e luzes é o que disponibiliza um salão da Rua Velha.

Foto: Suzana Mateus

Page 5: Atimo - Vazio

5

reportagem

Apesar da natureza esvaziada, a Rua da sua extensão por ter tantos filhos doentes, Alegria guarda a harmonia de uma grande família degradados, caindo aos pedaços. Ainda assim, formada por gente nova, como os senegaleses, que guarda de maneira sutil os detalhes da grandeza há poucos anos moram no local, e por gente antiga, passada.como os decentes de judeus, que há mais de 40 As três irmãs da Boa Vista são exemplos anos dividem com a rua as suas vivências. típicos de uma situação que se repete ao longo dos

Diferente da atmosfera da Alegria, a terceira demais bairros do centro histórico da cidade. Basta irmã, a Rua da Glória, é a mais devastada e solitária observar a Travessa do Tuyuti e a Rua Tomazina, no de todas. É formada em sua maioria por Bairro do Recife. Nelas, o processo de degradação pensionatos, por gente que veio de longe para tentar dos prédios é o mesmo observado na Boa Vista. A a vida na capital. Em suas entranhas, boca de fumo e primeira parece uma rua fantasma, impressão que é casa de prostituição encontram abrigo. Os olhos desmentida pelas roupas estendidas nos varais, das casas, que a noite observam o movimento do reveladoras de que a rua ainda respira. Passar pelas tráfico, pouco ou nada querem falar sobre o assunto. duas é viajar no tempo e ser acompanhado pelos Ali reina a lei do silêncio. A mesma que oculta as grafites que tudo observam sem nada julgar. As mazelas dos nossos tempos. Além da violência, o fileiras de carros também se repetem; a degradação perigo está também no casario. Dois edifícios da rua é generalizada. Não raras vezes, trabalhadores e já foram interditados há dois anos por oferecem risco moradores da localidade fecham os olhos para os de desabamento. A Glória é triste na maior parte de delitos cotidianos ali cometidos. Em concordância,

Grafites e pichações caracterizam as ruas

vazias do centro histórico.

Foto: Suzana Mateus

Page 6: Atimo - Vazio

6

reportagem

os próprios prédios já vivem envoltos numa atmosfera de contraste e sigilo, típica de quem muito sabe e nada quer revelar.

Ali, talvez, moraram pessoas influentes nos tempos primeiros. Mas, quem conhece essa história? Junto com o desgaste das antigas construções se vai também elementos afetivos da memória coletiva. E a bela narrativa que constitui o surgimento do território recifense se torna invisível. Os seus símbolos, apagados pelo abandono, são esvaziados de sentido. Tudo ali se transforma em ausência. As mulheres ruas têm a sua história tragada. E o seu futuro, incerto, se desbota ao sol do Recife, enquanto os carros, velozes, seguem sem se distrair.

Tintura de casario se desgasta como símbolo das marcas do tempo.

Por Igor De Queiroz O bairro não só recebia os visitantes e os marinheiros, como os rapazinhos pernambucanos

Não são apenas as pessoas que em busca de divertimento, para iniciação sexual, envelhecem. Os tijolos, a cal e o concreto, que porque naquela época as moças eram obrigadas a compõem a cidade, também chegam ao seu casar virgem. E, naquelas vidas noturnas, em meio momento de decadência. O Bairro do Recife, às boates e pensões, figuravam as mulheres, a durante décadas, desfrutou de um charme e bebida e a boa música que marcaram uma época de esplendor, materializados na boemia, por onde glória. Depois veio a decadência, as boates e as circulavam intelectuais, homens do povo, pensões fecharam e as mulheres passaram a viver estudantes, prostitutas, marinheiros e gringos. Hoje, de outra forma, em casas de massagem. Essa nova nas ruas vazias e nas paredes das casas está configuração se dissociou da boemia e o bairro foi se impregnada a história de seus personagens, como é esvaziando.o caso de Madona dos cachorros, velha conhecida A própria dinâmica da evolução urbana e a das pessoas que por ali circulam. Ela é uma figura mudança de costumes da sociedade contribuíram escondida do esvaziamento espacial, físico e para a decadência do Recife Antigo naquele humano do que restou de um período áureo. momento. A primeira tendência foi o esvaziamento

As cidades portuárias têm uma história c a u s a d o n o b a i r r o , d e v i d o à s n o v a s parecida. Até meados da década de 1960, o Bairro descentralizações, a exemplo da construção da do Recife, em sua boemia, foi vivido intensamente, Avenida Agamenon Magalhães e com o como ponto de referência de negócios e de diversão. desenvolvimento de bairros como Boa Viagem,

Foto: Suzana Mateus

declínio da boemia

Page 7: Atimo - Vazio

morte de sete pessoas e feriu outras oito. A fábula queda dos sobrados moderna sobre a degradação da região que abrigou o primeiro núcleo de povoamento da cidade é só a ponta do iceberg. Os sobrados do Recife desabaram Por Paulo Verasmuito tempo antes.

No início do século XX, o sanitarismo Em junho de 2006, a queda de parte de um provocou a saída da elite recifense dos velhos sobrado no número 201 da Rua Velha provocou a sobrados escuros e mal ventilados do Centro para morte de sete pessoas. A tragédia foi o último outras regiões da cidade, como a Zona Norte e a capítulo de uma história de degradação do imóvel, praia de Boa Viagem. A maioria dos imóveis teve a pela qual passou boa parte do Centro Histórico do parte superior fechada, e seguiu funcionando Recife. Dois anos antes, há muito abandonada, a apenas no comércio do térreo. Em outros casos, a mesma casa havia sido invadida por sem-tetos. No saída da classe mais abastada, que já estava em dia 23 de agosto de 2005, o Batalhão de Choque da processo de mudança para a Conde da Boa Vista e Polícia Militar (BPChoque) foi colocado para cumprir Rua da Aurora desde o século anterior, resultou na uma ordem de reintegração de posse no local que chegada de pessoas de estratos sociais mais baixos acabou em um incêndio que avariou as estruturas do e estrangeiros, atraídos pela possibilidade de morar prédio.em locais baratos e bem localizados. Hoje, boa parte Dez meses depois, em meio a uma briga do casario abriga pensões.judicial entre o proprietário e a Comissão de Defesa

As novas formas de ocupação, porém, não Civil do Recife (Codecir) quanto à recuperação do ocorreram de forma homogênea. Enquanto a Rua da imóvel, houve o desabamento, que acarretou a

7

reportagem

Graças, Casa Forte, além da perda da importância carinhosamente as mulheres do Bairro do Recife - e do porto como principal meio de transporte de carga protegido pela cortina das noites e madrugadas, e de passageiros. foram enredados sonhos, esperanças, dores da

As transformações que foram se dando vida, cansaço e expectativas que transformaram o refletiram “não apenas a queda do poder econômico Recife Antigo no bairro que detinha a substância vital da região, mas também da função portuária, a ao processo de vida.mudança do ponto de prostituição para Boa Viagem, Hoje, o que resta é a sombra do passado, com da revolução cultural e da própria dinâmica da prédios mal conservados e em acelerado processo cidade. Um novo modelo de comportamento social de ruínas, com uma infraestrutura urbana deficiente se impôs”, descreve a socióloga Sevy Madureira, em e subutilização dos espaços. Nos últimos anos, a seu livro “Bairro do Recife: a revitalização e o porto região foi reduzida a uma espécie de periferia central seguro da boemia”. e encarada pela população da cidade como uma

No Bairro do Recife, a boemia foi vivida área marginal sob todos os aspectos. Das durante décadas em toda a sua extensão. A “Ilha dos atividades, ainda se mantém aquelas ligadas ao Navios” foi palco do apogeu que permitiu o serviço portuário, alguns grupos empresariais, congraçamento restrito aos homens, porém, sem poucos prostíbulos e bares remanescentes.negar esse direito a qualquer que fosse a classe O Bairro do Recife, outrora palco de intensas econômica e social, sem demarcação política ou noites, precisa urgentemente voltar a abrigar a intelectual. Neste espaço apaziguado pelas “damas boemia dos intelectuais, estudantes e aqueles que da noite” – era assim que Ascenso Ferreira chamava querem o resgate da zona mais alegre da cidade.

Page 8: Atimo - Vazio

8

reportagem

Imperatriz abriga um importante centro de comércio, região. O fato de a Rua do Aterro ser apenas os primeiros núcleos de povoamento da Boa Vista, parcialmente habitada também contribuiu para que a entre a Rua Velha e a Rua da Glória, sofrem com um elite pudesse construir residências maiores e mais processo mais severo de degradação e abandono. espaçosas que as que existiam mais ao sul. Todo Em sua dissertação de mestrado sobre as condições esse processo foi determinante para que, no futuro, de habitabilidade no Centro Histórico do Recife, a houvesse uma diferença tão marcante entre os urbanista Iana Ludermir defende que essa modos de ocupação das duas partes do Centro discrepância vem de muito antes. No início do século Histórico.XVIII, a queda da ponte que ligava a Rua Velha ao Outras intervenções urbanas também que hoje são os bairros de Santo Antônio e São José, legaram à cidade seus impactos. Ainda no século somado a instalação de um matadouro de gado e de XVIII, a construção do Hospital Dom Pedro II, hoje curtumes no Sítio dos Coelhos, deu início ao Imip, provocou o surgimento de uma vila operária em processo de desvalorização daquela primeira região seu entorno. Lá, na Rua dos Prazeres, se instalou do Centro Histórico. um dos primeiros núcleos de prostituição da cidade.

Por outro lado, na Rua do Aterro, hoje Nos alagados do sítio que havia perto da vila foram Imperatriz, a criação de espaços públicos como uma se instalando mocambos que deram origem à Favela igreja e a Praça Marciel Pinheiro valorizavam a dos Coelhos. •

A queda dos sobrados marca, simbolicamente, a queda da sociedade do Centro Histórico do Recife.

Foto: Suzana Mateus

Page 9: Atimo - Vazio

reportagem

Foto: Suzana Mateus

Page 10: Atimo - Vazio

10

Por Débora Mírian deles há indivíduos quase sempre apressados, sem tempo e envolvidos em seus próprios assuntos, do outro, a vida é mais tranquila. Era no meio da tarde, quando saí a apreciar

Entre ambulantes, pesquisadores, artistas e as pessoas pelas ruas da cidade. Ali, queria sentir, demais indivíduos do lado de lá, foi possível seus mistérios, seus cheiros, seus sons, seus encontrar um vigilante que ficava assentado por trás sujeitos. Toda aquela confluência de uma de um muro baixinho, lugar que colocava um grande multiplicidade única, que somente a atmosfera das cachorro de pelúcia tomando refrigerante. Sua grandes vias é capaz de trazer. O espaço intenção em arrancar algumas risadas, era democratizante, que converge em um mesmo retribuída por quem passava. Também foi deste sent ido, di ferentes seres com objet ivos lado, que com apenas dois reais e cinquenta completamente distintos. centavos, em poucos minutos obtive uma caricatura, Naquele dia, estava disposta a ver, a me e onde um artesão me fez um anel sem a menor encontrar com quem por mim passasse. E vi. pressa e com uma enorme riqueza de detalhes.Entendi que a rua tem dois lados. E que se em um

indiferentes

Fo

to:

bo

ra M

íria

n

crônica

Page 11: Atimo - Vazio

crônicacrônica

Mas, a rua também se unifica. Em algum rua, na qual cotidianamente estamos. Quando instante, sem que ninguém se dê conta, tudo se deixamos de estar nela, para somente passarmos torna um grande e único cenário. Uma aproximação por ela. Quando foi que a rejeitamos como espaço de que procede dos muitos sons individuais. Sons convivência e de vivência e passamos a ignorá-la. únicos, mistos e contraditórios. E os sons das Após alguma reflexão e já um pouco cansada pessoas são tantos... não pude deixar passar um último flagrante. De

- Por favor, venha ver meu trabalho; maneira surpreendente, me deparei com o “Michael - Você pode responder algumas perguntas; Jackson”, devidamente caraterizado que fique claro, - Alô! Não, chego em meia hora; soltando uma cantada a uma garota, que naquele - Não tenho tempo para parar agora; momento só conseguiu demonstrar sua Quanta coisa acontece na rua, quanta gente insatisfação, através de sua visivelmente

diferente, indiferente. Gente, que divide o mesmo desagradada expressão facial. Era mesmo oficial. A espaço todos os dias sem se olhar. Gente, que se sociabilidade havia se extinguido das ruas e esbarra sem se sentir. A rua é este lugar, dos momentos como esse, explicavam muita coisa.encontros invisíveis, dos inúmeros desencontros, da E quando tudo parecia perdido, em meio à multidão solitária. O local onde se circula apenas multidão de indiferenças, alguém resolveu quebrar o para chegar a outro ponto. silêncio. “Não se deve atravessar na frente do

Durante aquelas andanças fiquei pensando, ônibus. É preciso esperar porque é muito perigoso”, em que momento perdemos nossa afetividade pela ela dizia. Assim como a solidão. •

Foto: Débora Mírian

11

Multidão indiferente na

Conde da Boa Vista, uma das avenidas mais

movimentadas do Recife.

Page 12: Atimo - Vazio

perfil

contrastesVilton passou seis anos

viajando pelo Brasil, sem trocar as ruas por

uma galeria.

Luís Carlos trabalha há três anos na Conde da

Boa Vista sem fazer gracinhas.

Fotos: Débora Mírian

12

Page 13: Atimo - Vazio

13

Por Daniel Medeiros banquinho, desenhando alguma figura de destaque, enquanto nenhum anônimo aparece em busca de sua própria caricatura. Celulares nas mãos, compromissos

À noite, quando volta para casa, Luís não inadiáveis nas agendas, quem transita pelas ruas para de trabalhar. Vai se dedicar às encomendas, das metrópoles dificilmente percebe a presença do mas garante, “a rua é mais gratificante”. Mesmo que outro. Um olhar mais atento, entretanto, é capaz de esporadicamente, alguém sempre para e o observa, notar um pouco de vida em meio ao vai e vem dos enchendo de orgulho o artista que sonha um dia transeuntes. Vida que nasce pelas mãos de expor suas obras em alguma galeria.artesãos, músicos e desenhistas. Artistas que

escolheram os centros urbanos para expor e comercializar o que nasce de suas mentes criativas entrosamento e mãos habilidosas.

Em total contraste com a agitação do local, eles produzem seus trabalhos com a calma de quem A poucos metros de distância de Luís Carlos e resolveu abrir mão da máxima “time is money” em de seus desenhos, uma figura chama atenção logo prol de uma vida sem muita pressa. Com maneiras de cara. Sentado no chão, dreadlocks escondidos diferentes de lidar com a rua, todos eles conseguem, por um tecido amarrado na cabeça, Vilton Oliveira é mesmo que momentaneamente, romper com a chamado por alguns de hippie, embora ele não indiferença da multidão solitária. concorde com a nomenclatura. “Não me considero

isso não. Sou um artesão”, rebate. Mas não é só a aparência do recifense que isolamento desperta os olhares das pessoas. Cheio de bom

humor, ele gosta de se comunicar com todos que passam por perto, tentando cativar algum possível Encostados no muro de uma igreja comprador.protestante, os quadros de Luís Carlos atraem

O artista comercializa, em um pano posto sob olhares esporádicos de quem passa pela principal a calçada, assessórios feitos de penas de aves, avenida do Bairro da Boa Vista, região central do casca de coco, madeira e outros materiais da Recife. O desenhista de 34 anos é um especialista natureza. Rejeita qualquer produto industrializado. em fazer caricaturas de famosos. No mostruário, “Meu irmão, a galera dá mais valor a ‘fuleragem’ de Ivete Sangalo e Ronaldinho Gaúcho ficam lado a bijuteria. Olha aí, na orelha da mulher. Rommanel lado de pessoas comuns, que encontraram nos braba”, fala apontando para uma mulher com brincos desenhos uma recordação de si mesmas. de argola que, entretida com seu celular, nem dá Há três anos, ele escolheu o local como ponto bola para a piada soltada por Vilton. de vendas. “Aqui é muito movimentado. É onde meu

A indiferença das pessoas é o que mais trabalho pode ficar mais visível”, explica. De poucas frustra o artesão em seu ofício, mas nem lhe passa palavras, o rapaz não se importa se algumas pela cabeça deixar as ruas. “Trabalhar numa galeria, pessoas não dão atenção ao que ele faz. Para ele, a ou numa loja, é totalmente diferente do meu modo de média de trinta retratos que vende por dia, somados pensar, de interagir com as pessoas”, diz. às encomendas que recebe, é suficiente para

Aos 20 anos, Vilton tomou gosto pelas ruas. sustentar esposa e filha. Passou seis anos conhecendo espaços públicos Ladeado por dois camelôs, o baiano da Brasil afora. Há dois anos, voltou para o Recife e se cidade de Paulo Afonso não tem a mesma aptidão estabeleceu na Boa Vista, onde divide espaço com para atrair clientes que seus vizinhos. É tímido. Não o u t r o s c o m p a n h e i r o s , q u e e l e c h a m a sabe fazer gracinhas e nem tem jeito para anunciar carinhosamente de irmãos. •seu trabalho aos gritos. Prefere ficar em seu

perfil

Page 14: Atimo - Vazio

14

ensaio

noturnoPor Suzana Mateus Noturno, Kawamura busca evidenciar o outro lado

da moeda. O Recife envolto pela noite. Com toda a solidão, beleza e obscuridade que esse período Sob as duas rodas de uma bicicleta, o carrega.fotógrafo e designer Raul Kawamura passeia à noite

Seus passeios acontecem de duas a três pelo centro do Recife quando nem o sol, nem as vezes por semana, sempre após às 23h. Bairro do pessoas e nem o trânsito estão mais presentes. Das Recife, Boa Vista, Santo Antônio e São José são os excursões, surgiu o projeto fotográfico Recife destinos. Usando somente a câmera do celular (com Noturno. Uma série de registros que mostra a capital resolução de 5 megapixels), os lugares mais vazios pernambucana de uma maneira diferente. Sem da cidade se tornam fotografias; documentos que barulho, sem agitação, sem gente. À noite, Recife se exibem uma Veneza brasileira incomum. “Recife se torna solitária. Uma cidade quase abandonada reinventa dependendo do horário”, conta o fotógrafo. repleta de beleza e melancolia. Kawamura, um Os cliques revelam o encanto de uma cidade completo apaixonado pela cidade, conseguiu despida de suas características já conhecidas e capturar, através do próprio celular, a essência da pronta para ser redescoberta. As pontes, as ruas, as noite, o vazio das ruas, a mistura de glamour e paradas de ônibus, tudo é sinônimo de nostalgia, decadência das esculturas do centro.esvaziamento, tranquilidade e sentimentalismo.Nascido na Paraíba, descendente de

As imagens são compartilhadas com o japoneses e desde os dois anos de idade vivendo em público através do Instragram e do Facebook. Por Recife, o fotógrafo já havia realizado outro ensaio enquanto, Kawamura ainda está conhecendo novos sobre o centro da capital pernambucana. Recife em lugares e tem a pretensão de fotografar os espaços Retratos foi desenvolvido entre 2004 e 2007 e com câmeras maiores que possam conceder maior rendeu uma exposição no ano passado, no Centro precisão às imagens. Não sabe onde o projeto irá Cultural Brasil-Alemanha (CCBA). O objetivo do desembocar, mas pensa numa outra exposição. A trabalho foi o de fotografar o cotidiano do centro do intenção de fazer as pessoas descobrirem o vazio Recife expondo detalhes, como a fachada dos noturno das ruas do centro é o que continua sobrados, que passam despercebidos pelos olhares movendo o fotógrafo a sair atrás de belos cliques. •apressados que cruzam a cidade. Com o Recife

Page 15: Atimo - Vazio

15

ensaio

Page 16: Atimo - Vazio

16

ensaio

Page 17: Atimo - Vazio

17

ensaio

Page 18: Atimo - Vazio

18

Por Marcela de Aquino intimidade daquela que está do outro lado do muro, e partilha de suas feições mais solitárias. O muro

Localizada no centro da cidade, a certa como separação, o muro como ligação ao mundo distância da movimentação do comércio e do exterior, se sobrepõe.burburinho da multidão, a rua Barão de São Borja Depois de conviver lado-a-lado com o ainda conserva uma áurea de tranqüilidade no comércio da rua São José, durante três anos, sua cruzamento com a Dom Bosco. Sua outra face, mais chegada a Barão de São Borja é marcada pelo movimentada, desemboca no Centro Histórico da isolamento. “Quando vim pra aqui fiquei cada vez Boa Vista e representa a expansão do urbano sobre mais isolada. Cada vez tinha mais filhos, mais o familiar. Mas o casario de estilo neoclássico insiste doença (do marido) e tudo foi tirando o gosto de em deixar em suspenso uma época em que a mim”. Hoje dificilmente sai pelo desassossego da localidade era reduto de fazendeiros que vinham movimentação dos cavalos a motor e do ritmo com suas famílias apenas nos finais de semana. urbano. “Eu sou do tempo em que aqui passava o

Vila Nocinha, um antigo imóvel rosado, bonde que circulava ali na cidade todinha, na ponte permanece até hoje com os fundos da casa voltados de ferro, na Duque de Caxias, na Rua do Imperador. ao convento beneditino. Delimitando suas fronteiras, Faz medo de ir a rua...o que que eu vou fazer na encontram-se uma comunidade católica e a rua?”tradicional sorveteria do bairro. Nela mora A relação emocional com a São Borja se Conceição Milheiros, uma portuguesa de 83 anos, estabelece de sua associação com a chegada de que há 51 anos compartilha dos humores e afetos seus pais à Vila Nocinha, depois de um longo dessa rua, recatada e comedida nos seus modos. Da período separados. “Eu era filha única, meus pais região interiorana de Portugal, trouxe consigo a vieram de Portugal. A minha mãe veio pra aqui religiosidade da devoção católica e o gosto no quando já estava há 12 anos ou 13, meus pais trabalho ao ar livre no campo. Aqui cultiva um jardim morreram em Portugal. E eu fiquei aqui sozinha”- em volta de sua casa, onde há videiras para se fazer retrata sua solidão marcada pela ausência e perda.o vinho e a pimenta-do-reino para dar sabor à Com o tempo, constrói relações de afeto com lembrança de sua terra. o seu entorno e a vizinhança. “Tinha algumas

Pouco sai, dedicando seu tempo ao cuidado festinhas que eu ia no Salesiano, e eu entrava da casa, mas a rua não lhe é indiferente. Conhece a naquelas brincadeiras, ia na igreja, no Mercado da

perfil

nocinha

Fo

to:

Ma

rce

la d

e A

qu

ino

Page 19: Atimo - Vazio

perfil

‘ Conhece a intimidade daquela que está do outro lado do muro, e partilha de suas

feições mais solitárias. O muro como separação, o

muro como ligação ao mundo exterior, se

sobrepõe.’’

Foto: Marcela de Aquino

Page 20: Atimo - Vazio

perfil

20

Boa Vista. Me dá saudades daquele tempo”. São mesmo... de vez em quando gostava de cantar meus vivências que rompem de forma efêmera uma fados”.solidão persistente e silenciosa que alimentam as De um canto melancólico e dolente próprio recordações na varanda de casa. dos fados, estilo de música popular portuguesa,

“Tenho a contar dos hospitais...” declara, ansiava religar-se à terra além-mar de onde como uma das lembranças que mais lhe marca, provinha; de onde também vieram os pardais para após 20 anos cuidando do marido enfermo. Hoje, cá, como bem relembra Conceição que se revive a sua história de maneira taciturna. “Fico mais autodefine como um pássaro com as asas cortadas. calada, fico sonhando com o passado, quando a As terras brasilianas possivelmente influenciaram os pessoa chega a uma certa idade sonha com tudo... fados com suas modinhas à viola e, decerto, sonho com os amigos que tinha e já se foram.” refinaram o gosto pela solidão. Mas nem por isso a Mesmo na presença e aos cuidados de filhos e rua fora seu desafeto, ao contrário, era com quem netos, afirma já está acostumada a se sentir só. confidenciava suas dores e quem lhe dava consolo

Ela também relembra o quanto era alegre através da calmaria e do jeito peculiar de viver.quando de sua chegada à São Borja e o início de seu É na Vila Nocinha, casa de número 560 da retraimento. “Eu num era assim não, quando eu São Borja, que se abrigam as lembranças de sua cheguei aqui cantava muito, cantava e assobiava, história e de toda uma vida transcorrida longe da assobiava era muito, e o meu marido um dia me terra natal. “Eu quero ficar aqui até quando morrer. repreendeu: você num ta em Portugal no meio do Fui eu quem fiz toda a plantação, fui eu quem teve campo. Aí como num tava em Portugal no meio do zelo com tudo aqui, então ... essa casa simboliza campo eu comecei a me isolar, fiquei isolada muito.” •

Foto: Marcela de Aquino

Dona Conceição mora há 51 anos na Vila Nocinha, na Rua Barão de São Borja.

Page 21: Atimo - Vazio

21

Por Stamberg JuniorNo livro “Assombrações do Recife Velho”,

Gilberto Freyre descreve rapidamente sobre o que Imagine uma rua onde os pecados mais de tão assombroso havia no endereço. Dizia-se que, combatidos pela Igreja eram abertamente cometidos antigamente, aquela rua era um “extenso beco numa época em que a religião ainda era fundida com contendo sete casas do mesmo lado e habitadas por as leis do Estado? Havia todo tipo de pessoas. mulheres fadistas”, cada uma representando um Gente gulosa. Gente avarenta. Gente com luxúria, pecado. Segundo moradores do local, a Rua dos ira. Gente invejosa, preguiçosa e orgulhosa. Sete Pecados Mortais era considerada mágica e Chamada anteriormente de Rua dos Sete Pecados atraia os “pecadores” de todos os bairros do Recife Mortais, a atual Rua Tobias Barreto, no bairro de durante a noite. Hoje, é uma rua comercial onde Santo Antônio, Cento do Recife, continua mantendo predomina a venda de assistência técnica de esse tipo de pessoas. Pelo menos é o que diz celulares.Marilene Cavalcanti, 39, proprietária de um pequeno

Mas os casos de assombrações recifenses restaurante na rua indicada. “Gente ‘recalcada’ é o não param na Tobias Barreto. A história da nossa que mais tem aqui, viu? Nunca vi. É cada olho cidade é tão ligada ao natural quanto ao grande que colocam pra cima de mim, mas eu não sobrenatural. Por meio dos mitos e lendas os ligo. Meu santo é maior”, afirma Marilene. A mulher moradores tentam explicar os fenômenos que relata já ter ouvido “umas histórias que nessa rua atingem suas vidas. Essas histórias, geralmente, t inha umas assombrações, umas coisas. têm uma base histórica: “são fatos antigos que Misericórdia!”, exclama.

assombradas

reportagem

Ilust

raçõ

es:

lio R

och

a

Page 22: Atimo - Vazio

22

tiveram a essência modificada com a repetição da também parece estar esquecida: nenhum dos narrativa por meio da tradição oral: quem conta um entrevistados que trabalham, habitam ou passa pela conto aumenta um ponto, diz o velho ditado”, rua diz ter ouvido falar disso por lá.complementa o jornalista e especialista no assunto, Mas a trama não está morta: vive no livro de Roberto Beltrão. Carneiro Vilela; na minissérie global Amores

É o caso da Emparedada da Rua Nova. A Roubados, que se inspirou na obra; e na memória lenda, eternizada desde o século 19 devido ao livro afetiva e intuitiva dos recifenses, assim como outras homônimo de Carneiro Vilela, narra a história de uma lendas.jovem abastada da época que foi emparedada viva a “À medida que o Centro do Recife (bairros de mando de seu pai. O genitor teria realizado o crime São José, Santo Antônio e Boa Vista, bem como o para encobrir a vergonha familiar causada pelo Recife Antigo) foi progressivamente deixando de ser romance da jovem com um sommelier. local residencial, as histórias de assombrações

Com o tempo, os moradores do local diziam foram diminuindo. Hoje é mais fácil ouvir histórias de que, ao passar pela casa nº 200 da rua que hoje é um bairros da Região Metropolitana do Recife distantes dos maiores pontos de comércio em varejo da do centro” – é o que afirma o editor do blog Recife cidade, ouviam gritos e gemidos de uma mulher Assombrado, André Balaio.clamando por socorro. Agora imagine isso numa O site narra as novas e antigas histórias do época em que as famílias mais ricas da cidade imaginário popular que permeiam as ruas do Recife. residiam no endereço, considerado anteriormente “Tem a"Galega da CTU", que era uma loira fantasma como uma das principais artérias do Recife? que aparecia na garagem da Companhia de

Quem passa hoje em dia na Rua Nova não Transportes Urbanos localizada na Av. Mário Melo, consegue identificar qual era o sobrado em que por trás do Cemitério de Santo Amaro. Há também habita/habitou/habitava a tal Emparedada. A falta de relatos de aparição do fantasma do Visconde de sinalização e a ocupação desordenada de prédios Suassuna nas imediações da rua que leva o seu comerciais que se sobrepõem um ao outro, nome, dentre tantas outras”, complementa o dificultam a identificação do edifício. A tal lenda jornalista. •

reportagem

O Recife é cercado por pontes e mistérios, rios e

fantasmas, ruas solitárias (ou não) habitadas por seres

invisíveis que fazem parte da memória afetiva dos

cidadãos.

Page 23: Atimo - Vazio

23

reportagem

A casa da Rua ImperialConfira outras lendas sobre assombrações nas ruas e Dizia-se que havia uma árvore que fazia parte de um

jardim numa casa da Rua Imperial. Lá eram vistos localidades do centro do Recife:vultos de um casal apontando para o chão, possivelmente indicando o ponto onde estaria enterrada uma botija. No começo do século XX, moradores da casa teriam, de fato, encontrado naquele local um caixão com um tesouro.

Avenida Malaquias

Uma das vias públicas mais antigas do Bairro dos Aflitos. Hoje uma rua residencial com bastante movimento. Mas houve um tempo em que era mais deserta, perigosa e, segundo testemunhas, mal-assombrada. Naqueles tempos, antes da luz elétrica, a iluminação pública era feita com lampiões a gás. Diz-se que havia muitos bichos, vultos e gritos de mocinhas e rapagões.

O mistério da Rua Augusta

Dizia-se que no século XX eram vistos vultos medonhos e ouvidos ruídos misteriosos na Rua Augusta. Durante a noite, os fantasmas costumavam puxar os pés das pessoas adormecidas.

lendas sombrias

Page 24: Atimo - Vazio