jusnaturalismo ao juspositivismo

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FACULDADES INTEGRADAS ANTNIO EUFRSIO DE TOLEDOFACULDADE DE DIREITO DE PRESIDENTE PRUDENTE

DO JUSNATURALISMO AO JUSPOSITIVISMO: UMA BREVE HISTRIA DO PENSAMENTO JURDICO Rodrigo Duarte Gigante

Presidente Prudente/SP2010

FACULDADES INTEGRADAS ANTNIO EUFRSIO DE TOLEDOFACULDADE DE DIREITO DE PRESIDENTE PRUDENTE

DO JUSNATURALISMO AO JUSPOSITIVISMO: UMA BREVE HISTRIA DO PENSAMENTO JURDICO Rodrigo Duarte Gigante

Monografia apresentada como requisito parcial de Concluso de Curso, para obteno do grau de Bacharel em Direito, sob a orientao do Professor Srgio Tibiri Amaral.

Presidente Prudente/SP2010

DO JUSNATURALISMO AO JUSPOSITIVISMO: UMA BREVE HISTRIA DO PENSAMENTO JURDICO

Monografia aprovada como requisito parcial para obteno do Grau de Bacharel em Direito.

Srgio Tibiri Amaral

Cludio Jos Palma Sanches

Sandro Marcos Godoy

Presidente Prudente, 18 de outubro de 2010

O direito no uma simples idia, uma fora viva. Por isso a justia sustenta numa das mos a balana com que pesa o direito, enquanto na outra segura a espada por meio da qual o defende. A espada sem a balana a fora bruta, a balana sem a espada, a impotncia do direito. Rudolf von Ihering

Dedico este trabalho a todos aqueles que entendem pela importncia e necessidade de se pensar o direito.

AGRADECIMENTOS

Agradeo, encarecida e merecidamente, A todos os que, direta ou indiretamente, contriburam feitura deste trabalho. A todos os autores compulsados em minha pesquisa. Sem eles, este trabalho seria impossvel. Ao Professor Srgio, meu orientador, pela proposio de um franco dilogo, desde as nossas primeiras conversas, pela confiana depositada neste projeto e pelo estmulo a pensar o direito. Selma, minha analista e parceira incondicional, por oferecer a base e a segurana necessrias ao meu processo de crescimento, alm das racionais ponderaes e do carinhoso acolhimento. Fernanda Polycarpo, essa linda, que, mesmo distante, sempre se fez to presente, e ainda se faz, presentificando-se em minha vida, e sempre e ainda mais, na forma mesmo de um presente. Ao meu irmo Alexandre, pela referncia, tantas vezes em minha vida, e pelo help final. Aos meus pais, pela minha criao e pelo auxlio, to necessrio, nesses ltimos anos. Aos meus colegas de classe preferidos: Cristiani, Leandro, Paulo e Renata, pelas estimulantes conversas acerca do direito e da vida, e tambm pela cumplicidade em todos os momentos. s Faculdades Integradas Antnio Eufrsio de Toledo, pela excelncia dos servios prestados. A todos os professores, sem exceo, que contriburam enormemente para a minha formao. Em especial, aos Professores Cludio e Sandro, por encaparem o projeto, dispondo de parcela de seus tempos, ao aceitarem meu convite para a composio da banca de avaliao. A todos os funcionrios, pela presteza, solicitude e simpatia no atendimento. Aos meus companheiros de futebol, pelos to necessrios momentos de descontrao. E, finalmente, e em resumo, a todos aqueles que viram o artista-filsofo-promissor, onde tantos outros s puderam ver um msico-mercador-fracassado. Este trabalho uma minha resposta.

RESUMO

Esta apreciao acadmica objetiva uma investigao histrica acerca do pensamento jurdico. Mediatamente, busca tambm uma contextualizao do Jusnaturalismo e do Juspositivismo, para efeitos crticos. A pesquisa foi exclusivamente bibliogrfica e o mtodo preponderante foi o histrico, muito embora tambm outros se faam presente. que a histria foi utilizada como um mero instrumento do pensar. Sob essa perspectiva, partiu-se da genrica conceituao acerca das duas grandes correntes do pensamento jurdico supracitadas, confrontando-as. Em seguida, enveredou-se pela trilha do percurso histrico. J nesse intento, o trabalho foi dividido de acordo com as eras histricas. E o que se observou que, no incio mesmo da civilizao greco-romana, direito e religio eram somente uma e a mesma coisa. medida que se vai avanando no curso da Idade Antiga, mormente pelo advento da Lei das XII Tbuas e a atuao dos filsofos gregos e dos pretores romanos, o direito se vai, cada vez mais, emancipando. Nesse sentido, o cristianismo acaba sendo marco essencial ao nascimento do direito, uma vez que pregava a diviso entre as coisas do cu e as da Terra. Tambm se destacou a diviso entre direito positivo e direito natural levada a termo pelos antigos. No perodo da Idade Mdia, por sua vez, ressaltou-se a importncia do Cdigo de Justiniano, em plena consolidao do Direito Romano que lhe antecede, bem como em seu decisivo contributo ao direito atual. Alm disso, observou-se tambm a tentativa de sobreposio da Igreja ao Estado, conceitualmente calcada nas doutrinas filosfico-crists medievais (a Patrstica e a Escolstica), e alguns prenncios da modernidade (tais como a atuao dos Gibelinos, dos Glosadores e a instituio da Magna Carta). J na Idade Moderna, percebe-se que o direito vai recuperando, e ainda intensificando, a sua autonomia, devido ao desenvolvimento do antropocentrismo. Em consequncia, as discusses poltico-jurdicas passam a recair agora sobre as relaes entre governantes e governados, e no mais sobre as relaes entre Estado e Igreja. Esta vai aos poucos sendo afastada daquela discusso. Nesse intento colocaram-se as doutrinas jusnaturalistas e as suas concepes de contrato social e de direito natural, que acabaram por instrumentalizar a Revoluo Francesa, inauguradora da Idade Contempornea. Nesse sentido, deu-se particular ateno influncia do pensamento iluminista nas primeiras declaraes de direito. A partir de ento, passa a reinar, quase que absolutamente, a doutrina do juspositivismo. Buscando a compreenso dessa passagem, foram analisadas as contribuies das correntes historicistas, a oposio que lhe fez o movimento codicista (em especial no tocante aprovao do Cdigo de Napoleo e infrutfera tentativa de codificao na Alemanha) e tambm a essencial contribuio do utilitarismo ingls para o estabelecimento do juspositivismo. Findada, ento, a parte histrica deste trabalho, foram retomadas as conceituaes de jusnaturalismo e de juspositivismo, agora sob nova perspectiva, para efeitos crticos. Argumentou-se, pois, que o fundamento do direito jusnaturalista, em Deus, na natureza ou na razo, no se sustenta de forma alguma e diversos motivos foram apresentados. Por outro lado, argumentou-se tambm que os dogmas juspositivistas da onipotncia do legislador, da completude do ordenamento jurdico e da estrita aplicao lgico-sistemtica tambm no possuem mais razo de ser nos dias de hoje. Nesse sentido, conclui-se pela necessria incapacidade das duas correntes de dar o enfrentamento questo da fundamentao do direito. Ao mesmo tempo acena-se com novas vertentes do pensamento jurdico, que buscam suprir tais limitaes, seja pela via do aperfeioamento de uma delas, seja pela do parcial acolhimento de cada uma delas, mesclando-as, ou seja ainda pela via da sua dupla negao. Palavras-Chave: Filosofia do Direito. Histria do Direito. Jusnaturalismo. Juspositivismo.

ABSTRACT

The purpose of this academic work is to accomplish a historical investigation of juridical thinking. At the same time, it also seeks a contextualization of Jusnaturalism and Juspositivism, for critical analysis. The research accomplished was exclusively bibliographic and the predominant method was historical, although other methods were also used. In the context, History was used as a mere instrument of thinking. From this perspective, this work started from the generic conceptualization of the two great lines of juridical thinking above cited, confronting them. After that approach, a historical timeline was followed. With this in mind, the work was divided according to historical ages. It was observed that, at the beginning of the greco-roman civilization, law and religion were intrinsically linked to each other. In the course of Ancient Times, especially with the advent of the Law of XII Tables and the performance of the greek philosophers and roman praetors, the law, more and more, emancipated itself. In this sense, Christianity turns out to be the touchstone for the birth of law, once it preached the division between the things of heaven and earth. Furthermore, the division between positive law and natural law carried to term by ancient people was very important. During the Middle Age, on the other hand, the importance of the Justinian Code was emphasized, in full consolidation of Roman Law which predates it, as well as its crucial contribution to modern law. Moreover, it was also observed the attempt of superposition of Church over the Estate, based on the medieval philosophical-Christian doctrines (the Patristic and the Scholasticism), and some harbingers of modernity (such as the performances of the Ghibellines, the Glossers and the institution of the Magna Carta). Once in the Modern Age, it was realized that law could recover itself, and even intensify its autonomy, due to the development of anthropocentrism. Consequently, the political and legal discussions occur now on the relations between governed and rulers, and no more between Estate and Church. This institution will slowly be removed from that discussion. With this intention, the jusnaturalist doctrines were developed, with their conceptions of social contract and natural law, which contributed to the French Revolution, inaugurating the Contemporary Age. In this line, particular attention was given to the influence of Enlightenment thinking in the first bills of rights. From then on, it will dominate, almost absolutely, the doctrine of juspositivism. To understand this passage, the contributions of historicist conceptions were analyzed, together with the opposition made by the coder movement (especially in relation to the sanction of the Napoleon Code and to the unsuccessful attempt of codification in Germany) and also the essential contribution of English Utilitarianism for the establishment of juspositivism. Once finished the historical part of this work, the conceptualizations of jusnaturalism and juspositivism were reviewed, now under this new perspective, for critical analysis. It was argued, therefore, that the foundation of jusnaturalist law, in God, in Nature or in reason, does not sustain itself in any way and several reasons are presented. On the other hand, it is also argued that the juspositivists dogmas of the omnipotence of the legislator, of the completeness of the juridical order and of the strict logic-systematic application of the law also do not make much sense today. In this direction, it was concluded that the two lines of thinking are incapable of completely solving the problem of the foundation of law. At the same time, new directions of juridical thinking are presented, that seek to overcome such limitations, either through the improvement of one of them, or through the partial acceptance of each, mixing them, or either through the negation of both. Keywords: Philosophy of Law. History of Law. Jusnaturalism. Juspositivism.

SUMRIO

1 INTRODUO .................................................................................................................. 9 2 O JUSNATURALISMO E O JUSPOSITIVISMO ....................................................... 15 2.1 O Jusnaturalismo ............................................................................................................. 17 2.2 O Juspositivismo ............................................................................................................. 18 3 A IDADE ANTIGA .......................................................................................................... 19 3.1 O Direito e a Religio ..................................................................................................... 19 3.2 A Lei das XII Tbuas e o Cdigo de Slon .................................................................... 21 3.3 O Direito Natural na Filosofia dos Gregos ..................................................................... 23 3.4 A Antgona de Sfocles .................................................................................................. 26 3.5 O Direito, os Deuses e o Estado ...................................................................................... 28 3.6 O Advento do Cristianismo ............................................................................................ 32 3.7 O Jus Civile e o Jus Gentium .......................................................................................... 33 4 A IDADE MDIA ............................................................................................................ 36 4.1 O Cdigo de Justiniano ................................................................................................... 37 4.2 A Patrstica e a Escolstica ............................................................................................. 40 4.3 O Partido dos Guelfos e o Partido dos Gibelinos ........................................................... 42 4.4 Os Glosadores e a Dogmtica Jurdica ........................................................................... 43 4.5 A Magna Carta e os Direitos Fundamentais ................................................................... 44 5 A IDADE MODERNA ..................................................................................................... 46 5.1 O Antropocentrismo Renascentista e o Direito .............................................................. 47 5.2 O Renascimento e o Moderno Pensamento Cientfico ................................................... 50 5.3 O Estado: Governantes e Governados ............................................................................ 52 5.4 A Doutrina do Contrato Social ....................................................................................... 53 5.5 A Moderna Concepo do Direito Natural em Grotius .................................................. 55 5.6 O Contratualismo Absolutista de Hobbes ....................................................................... 58 5.7 O Contratualismo Liberal de Locke ................................................................................ 60 5.8 A Sntese de Puffendorf .................................................................................................. 62 5.9 O Deus dos Modernos ..................................................................................................... 64

5.10 A exceo em Hume ..................................................................................................... 67 5.11 O Advento do Iluminismo e a Contribuio de Vico ................................................... 69 5.12 A Concretude Racionalista em Montesquieu ................................................................ 71 5.13 Rousseau: o Contrato Social por Natureza ................................................................... 73 5.14 A Moderna Filosofia de Kant ....................................................................................... 77 6 A IDADE CONTEMPORNEA .................................................................................... 80 6.1 A Filosofia da Restaurao ............................................................................................. 83 6.2 O Idealismo Subjetivo de Fichte e O Idealismo Objetivo de Schelling ......................... 85 6.3 O Historicismo Filosfico de Hegel ............................................................................... 87 6.4 O Historicismo Juspositivista de Hugo ........................................................................... 91 6.5 O Embate entre o Historicismo Jurdico de Savigny e o Codicismo de Thibaut ............ 93 6.6 O Cdigo de Napoleo e a Problemtica das Lacunas Legais ........................................ 99 6.7 A Escola da Exegese Francesa e o Pandectismo Alemo ............................................. 103 6.8 O Utilitarismo de Bentham ........................................................................................... 106 6.9 A Sntese Juspositivista de Austin ................................................................................ 109 6.10 O Nascimento do Juspositivismo ................................................................................ 113 6.11 O Positivismo de Comte e as suas Influncias no Direito .......................................... 114 6.12 Ainda o Juspositivismo ............................................................................................... 118 7 PROPOSIES CRTICAS ........................................................................................ 120 7.1 Crtica ao Jusnaturalismo .............................................................................................. 122 7.2 Crtica ao Juspositivismo .............................................................................................. 129 8 CONCLUSO ................................................................................................................ 136 9 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ......................................................................... 139

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1 INTRODUO

A discusso acerca dos fundamentos do direito encontra-se em pleno descrdito. Em uma sociedade eminentemente prtica e imediatista, no se quer perder tempo pensando. Assim, mesmo no mbito acadmico, casa por excelncia do pensamento, bastante comum que as pesquisas venham a privilegiar justamente esse vis prtico e de aplicao imediata. Mormente no campo do direito. Parte-se, pois, em regra, de uma premissa qualquer, escolhida um tanto a esmo, meio a gosto do fregus, e sobre isso no se discute mais. A roda precisa girar. Para frente que se anda, de costume se dizer. O intento nem sempre malvolo, verdade, pois, em muitas das vezes, o que se busca somente evitar a paralisia a que o pensamento de vagar pode concluir (ou no concluir). A luva no entra na mo, contudo, e essa crtica bem melhor endereada aos sonhos e s utopias. No se aplica no mbito de um pensamento que se prope seriedade e dedicao. Ademais, o inevitvel risco do erro encontra-se a espreita em todos os lugares. Revela-se tanto na prxis quanto na teoria. E no direito no diferente. Em sentido contrrio, no obstante, pouco se apercebe que tambm muitas vezes se est a bater insistentemente a cabea em uma parede demasiado dura, quando bem melhor seria a elaborao de um plano que pudesse de fato remov-la. Enxuga-se muito gelo, enfim, neste nosso mundo. Dessa forma, a aparncia de se estar fazendo algo j o suficiente para que se encoste a cabea no travesseiro, de noite, e para que se durma tranquilamente, apesar de tanto barulho. Assim , por consequncia desse todo dito, que tambm o mundo jurdico padece dos mesmos males, somente que de maneira mais especfica: fala-se muito do direito em si (leia-se leis) e da sua aplicao prtica, mas muito pouco sobre o que o fundamenta ou lhe d legitimidade (ou quaisquer outras questes que exijam tempo e paciente dedicao). E foi justamente pensando nisso que se empreendeu aqui esta busca histrica acerca do pensamento jurdico no decorrer dos sculos. O intento eminentemente o de contextualizar o pensamento jurdico. buscar o que foi pensado at agora sobre o direito, em busca de subsdios para o pensamento jurdico na atualidade. preciso pensar o pensamento, afinal. A reflexo sempre foi essencial evoluo humana, e no mbito do direito no diferente. preciso, pois, pensar o direito e pensar o pensamento jurdico. Isso porque a discusso essencial ao direito mesmo e de nada adianta discutir sobre o direito em si, se no se discute sobre o que propriamente o direito e, principalmente, o que o fundamenta, legitima. A tarefa rdua e, sim, muitas vezes inglria. Isso, contudo, no deve servir para efeitos de dissuaso dessa to necessria tarefa. E

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nesse intento especulativo, vrias perguntas podem surgir. Em que se fundamenta o direito (se que se fundamenta em algo)? Porque so obedecidas (quando so) as regras de direito? Porque devem ser obedecidas (se que devem) as regras de direito? O que, na origem da civilizao, justificava o direito? O que passou a fundament-lo posteriormente e porque se deram tais mudanas? O direito carece de legitimidade? Se no, o que o legitima? Se sim, o que o legitimaria? possvel essa legitimao? Como que , enfim, de se pensar o direito? Existe uma forma para isso? Trata-se de um tema inesgotvel, mas que nem por isso deve padecer pela falta de enfrentamento. E claro que essas perguntas todas no sero respondidas neste breve trabalho de concluso de curso de um acadmico de direito. Talvez elas nem sejam de fato, algum dia, satisfatoriamente respondidas. Mas no caminhar em direo a elas que se acaba por mover o mundo. que muitas vezes, importa bastante mais o caminho que a prpria meta. Assim, buscando incentivar essa discusso, mesmo que de maneira limitada, sobre tema de tamanha importncia, que se enveredou por essa trilha do processo histrico do pensamento jurdico. Para tanto, utilizou-se do mtodo histrico, principalmente, mas no se furtando, contudo, ao enfrentamento das indagaes de outros cunhos, tais como o filosfico, o sociolgico ou o jurdico, que por acaso se tenham ofertado anlise. Tambm possvel dizer que o mtodo indutivo e o dedutivo so utilizados aqui. Isso porque parte-se da conceituao ampla e genrica de o que vm a ser o jusnaturalismo e o juspositivismo, os dois grandes polos do pensamento jurdico, para depois buscar a sua observao no mundo factual da vivncia histrica. Privilegia-se, nesse intento, o mtodo dedutivo. No obstante, aps essa incurso histrica, volta-se ao tema inicial, referente s duas correntes supracitadas, para efeito de observao crtica das mesmas. Assim, privilegia-se agora, o mtodo indutivo. Por fim, ao acenar com as tentativas de superao dessa contradio entre essas escolas do pensamento jurdico, utiliza-se tambm do mtodo dialtico, em tentativa de busca por uma sntese entre a tese jusnaturalista e a anttese juspositivista. Tampouco o mtodo comparativo fica de fora desta preleo, pois que as diversas correntes e pensamentos individuais sero, a todo o momento, colocadas lado a lado, buscando-se os seus pontos de contato e de contrariedade. que, hodiernamente, a pluralidade metodolgica uma realidade indeclinvel no mbito da pesquisa acadmica. Tambm no direito. Sobre isso, observa Miguel Reale (2009, p. 84):

Hoje em dia, no tem sentido o debate entre indutivistas e dedutivistas, pois a nossa poca se caracteriza pelo pluralismo metodolgico, no s porque induo e deduo se completam, na tarefa cientfica, como tambm por se reconhecer que cada setor ou camada do real exige o seu prprio e adequado instrumento de pesquisa. No que se refere experincia do Direito o mesmo acontece.

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No obstante, de se afirmar que o mtodo preponderante mesmo o histrico. Entende-se pelo acerto do pensamento de Comte (1978, p. 3) quando afirma que [...] uma concepo qualquer s pode ser bem conhecida por sua histria. Ou ainda que [...] no conhecemos completamente uma cincia se no conhecemos sua histria (COMTE, 1978, p. 29). Isso tudo, em especial, no tocante [...] ao estudo dos fenmenos sociais, que trata do desenvolvimento geral da humanidade, em que a histria das cincias constitui a parte mais importante, embora at aqui a mais negligenciada (COMTE, 1978, p 29). Muito embora tambm seja necessrio ressalvar que no se trata aqui de uma histria qualquer, mas, sim, uma histria da filosofia do direito. Afinal, o prprio intento final dessa incurso tambm de cunho filosfico, conforme j se observou. No se est a propugnar aqui, contudo, uma filosofia da histria do direito, nos moldes hegelianos. que, para Hegel (1999-B, p. 16), [...] em geral a filosofia da histria nada mais significa do que a sua observao refletida, j que a histria possui um sentido racional, pois dotada de Esprito. O assunto, contudo, ser mais adiante retomado. Mas de se deixar claro, desde j, que no esse o intento. Em comentrio sobre o assunto, Bobbio (2004, p. 67), infirma que, hoje, a Filosofia da Histria considerada uma forma de saber tpica da cultura do sculo XIX, algo j superado. O que se busca, portanto, enfim, uma histria do pensamento jurdico, enquanto embasamento para proposies filosficas. A filosofia pertencente ao mbito da cultura, artifcio humano, e no se encontra presa a uma necessidade histrica. Entende-se que a histria no tem um curso necessrio ao qual se devem adequar os homens, mas, sim, que so os prprios homens que fazem esse curso, por meio das suas escolhas. A observao da histria, portanto, serve, no para buscar-lhe o sentido, mas, sim, como maneira de se averiguar como os homens a fizeram no passado. Se a histria no determina o pensamento jurdico, por outro lado, instrumento de grande valia ao exerccio da razo. nesse sentido que Bobbio (2004, p. 44) afirma que:

O problema filosfico dos direitos do homem no pode ser dissociado do estudo dos problemas histricos, sociais, econmicos, psicolgicos, inerentes sua realizao: o problema dos fins no pode ser dissociado do problema dos meios. Isso significa que o filsofo j no est sozinho. O filsofo que se obstinar em permanecer s termina por condenar a filosofia esterilidade.

Estes os termos, pois, em que se coloca a presente apreciao acadmica. Em resumo, pode-se dizer que a histria foi utilizada enquanto instrumento da filosofia. O mesmo

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se d com os demais mtodos utilizados. A pesquisa foi exclusivamente bibliogrfica e privilegiou as obras que versam sobre a insero histrica do pensamento jurdico e tambm aquelas que l foram produzidas, pelos pensadores e viventes de outrora. Seu objeto: toda e qualquer conceituao ou abordagem, seja ela analtica ou crtica, de cunho histrico, filosfico, social ou jurdico, e que trate do tema-alvo da presente pesquisa cientfica, que se descortina desde j, a saber, o direito enquanto pensamento. Assim, o objetivo imediato compreender melhor o que se entende, e se entendeu no curso da histria, por jusnaturalismo e juspositivismo, para efeitos de clareamento da discusso sobre o assunto. Tambm se busca especificar os pontos favorveis e contrrios das duas correntes, contribuindo dessa forma, ainda que modestamente, para a superao do impasse em que parece se colocar o pensamento jurdico na atualidade. De maneira mediata, acaba por propiciar tambm uma maior clareza de pensamento acerca do direito, contribuindo assim tambm para a sua cotidiana aplicao. O caminho percorrido, buscando realizar o intento inicial desta preleo, foi assim. Primeiramente, procedeu-se a uma anlise sobre o que se entende por jusnaturalismo e por juspositivismo. Iniciou-se pela conceituao dessas duas grandes correntes doutrinrias, de maneira a confront-las, para, logo em seguida, estabelecer as suas individuais concepes. Num segundo momento, iniciou-se ento o percurso histrico. De pronto, abordou-se o perodo da Antiguidade, desde a fundao de Roma at o pleno estabelecimento do Jus Gentium. Durante esse caminho, foram abordados: 1) A estreita relao entre direito e religio no direito primitivo, bem como as caractersticas deste ltimo; 2) A vigncia da Lei das XII Tbuas e do Cdigo de Slon, bem como as alteraes sociais que as propiciaram e tambm as que essas leis engendraram; 3) A Filosofia Grega e as suas concepes acerca do direito, em especial o direito natural em Aristteles; 4) A Antgona de Sfocles e a sua problemtica acerca da diviso entre direito natural e direito positivo; 5) As relaes entre os deuses da natureza, o direito e o Estado, contrapondo a viso dos Esticos e de Epicuro concepo da Filosofia Grega Clssica; 6) As transformaes sociais ocorridas em relao ao advento do cristianismo, em especial pela sua influncia nas questes de Estado e no prprio direito; e, por fim, 7) A evoluo interna do Direito Romano, privilegiando-se a passagem do sistema do jus civile para o do jus gentium. Dando continuidade a esta anlise de descortino histrico, enveredou-se pela senda medieval, desde os antecedentes da feitura do Cdigo de Justiniano at os primrdios do Renascimento europeu. Em meio a estes marcos, foram destacados: 1) A importncia, os antecedentes, a estrutura e os efeitos do Cdigo Justinianeu; 2) As doutrinas da filosofia crist, a Patrstica, em Santo Agostinho, e a Escolstica, em Santo Toms de Aquino, e as suas concepes acerca das

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relaes entre Estado, Igreja e o direito; 3) A oposio poltica entre guelfos (pr-Igreja) e gibelinos (pr-Estado), atentando-se para a obra de Marslio de Pdua e a sua antecipao da doutrina do contrato social; 4) A atividade dos glosadores, por meio de sua exegese dos textos jurdicos romanos, em prenncio da dogmtica jurdica; e, finalmente, 5) Os antecedentes dos direito fundamentais, tendo por principal, dentre eles, a Magna Carta inglesa. J no perodo da Idade Moderna, engendrou-se em um arco de progresso do antropocentrismo eminentemente cientfico dos modernos, iniciando-se pelo Renascimento e terminando no Iluminismo. Durante esse percurso, foram abordados: 1) As relaes entre o nascente antropocentrismo dos modernos e as suas estreitas relaes com o direito; 2) Os aspectos gerais do movimento renascentista europeu, destacando-se as suas ntidas pretenses cientificistas; 3) O novo patamar das relaes e discusses acerca dos cidados e do Estado, e a ausncia da Igreja nessa nova realidade; 4) A moderna Doutrina do Contrato Social em suas caractersticas mais gerais e principais; 5) O pensamento de Hugo Grcio, em especial no tocante sua moderna concepo do direito natural; 6) O pensamento do primeiro grande contratualista, Thomas Hobbes, que o fundou em defesa do Estado Absolutista; 7) A fundamentao do contrato social no prprio indivduo, enquanto cidado, em John Locke, buscando a limitao do poder estatal; 8) O pensamento sistemtico de Puffendorf, e a sua caracterstica de sntese do moderno jusnaturalismo; 9) A relao entre Deus e os homens, segundo os filsofos modernos, em geral e no direito; 10) A figura de David Hume, e a incidncia de seu pensamento de exceo entre os filsofos modernos, e j em prenncio contemporaneidade; 11) As principais caractersticas do movimento iluminista, bem como as de Giambattista Vico, um seu expoente; 12) A concreo do direito no tempo e no espao estabelecida por Montesquieu e a sua doutrina poltica da tripartio dos poderes; 13) A profanao do estado de natureza pela sociedade civil em Rousseau, e a sua compensao por meio do contrato social fundado na vontade geral; e, por fim, 14) A filosofia de Kant, auge do Iluminismo, mormente em suas investigaes acerca do conhecimento, da moral e do direito. Por fim, foi devidamente abordada a Idade Contempornea, que se inicia pelo advento da Revoluo Francesa e se protrai at os dias de hoje, especialmente no tocante s implicaes jurdicas de tal passagem. Nesse intento, destacou-se: 1) A tentativa de restaurao das antigas concepes, por meio da crtica aos ideais jusnaturalistas e prpria revoluo; 2) O evolucionismo da filosofia alem, por meio do desenvolvimento do Idealismo Alemo, em Johann Fichte (subjetivista) e em Friedrich Schelling (objetivista); 3) O pensamento objetivamente idealista, e eminentemente historicista, de Georg Hegel, e as suas implicaes no

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campo do direito; 4) A contribuio de Gustav Hugo ao historicismo e ao juspositivismo; 5) O Historicismo Jurdico, sobretudo pelo contributo de Friedrich Savigny, e, em especial, no que se refere sua contenda contra o movimento codicista, representado por Anton Thibaut; 6) O processo de aprovao do Cdigo Napolenico, a sua vedao ao juzo de non liquet, e a consequente problemtica acerca das lacunas de lei; 7) O estabelecimento da legalista Escola da Exegese, na Frana, e da Escola Pandectista, na Alemanha, destacando-se as suas principais caractersticas; 8) A filosofia utilitarista de Jeremy Bentham, bem como o seu ideal codicista e a sua crtica common law na Inglaterra; 9) A fundao do positivismo jurdico, por meio da incidncia do sinttico pensamento de John Austin; 10) O nascimento do juspositivismo na Europa e, em especial, na Frana, na Alemanha e na Inglaterra; 11) O Positivismo de Auguste Comte, a criao da sua Fsica Social, bem como as suas influncias no campo do direito; e, finalmente, 12) Algumas ltimas consideraes acerca do juspositivismo. Finalmente, buscando concretizar aquele primeiro intento filosfico, foram efetivadas algumas proposies crticas s duas principais correntes do pensamento jurdico. Num primeiro momento, tomou-se as duas de maneira conjunta, buscando destacar-lhes os pontos de ligao e os de contrariedade. Ressaltou-se, nesse intento, que a ordem e a justia devem ser vistas como parte de um todo, que o prprio direito, e trabalhadas sempre de maneira conjunta e inter-relacionada. Argumentou-se tambm que tal aparente contradio entre esses dois conceitos (ordem e justia) deve-se justamente a uma ciso promovida tanto por jusnaturalistas quanto por juspositivistas no decorrer do processo histrico. Num segundo momento, passou-se ento a crtica individualizada do jusnaturalismo e as suas fundamentaes do direito em Deus, na natureza das coisas (e humana) e na razo natural. Nesse intento, buscou-se demonstrar a inconsistncia de tais fundamentos, no obstante a importncia que tiveram os jusnaturalistas no curso histrico do pensamento jurdico, em franco contributo sua evoluo. Logo em seguida, buscou-se o mesmo com relao ao juspositivismo, que, fundado exclusivamente no texto de lei, tambm engendrou em excessos e inconsistncias. Se, por um lado, contribuiu para uma autonomia nunca antes vista com relao ao direito, por outro, acabou por deixar outros aspectos importantes para o lado de fora da porta. Por fim, concluiu-se pela predominncia do juspositivismo na sociedade atual, embora no de maneira pacfica. Isso porque aquela primeira viso mais estrita e radicalmente legalista possui ainda muita fora nos dias de hoje, o que no desejvel, necessitando de superao. Essa tentativa, contudo, no se deve dar por meio de um retorno ao passado jusnaturalista. Outros aspectos do juspositivismo, contudo, foram tomados como sendo ainda nascentes, devendo ser, portanto, estimulados.

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2 O JUSNATURALISMO E O JUSPOSITIVISMO

Parte-se da constatao inicial de que, grosso modo, duas grandes correntes de pensamento acerca do direito se destacam, tanto no percurso temporal histrico, quanto at os dias de hoje: o jusnaturalismo e o juspositivismo. Diversas outras correntes h, conforme se ver no curso desta apreciao acadmica, embora, todas elas, em maior ou menor grau, na parte ou no todo, acabam por se colocar num destes dois plos, mais amplos e genricos. Os jusnaturalistas sustentam a existncia de um direito natural, que seria a base e o fundamento do poder coercitivo do Estado, que, do contrrio, seria ilegtimo. Os juspositivistas entendem que o direito positivo, elaborado pelo Estado, na conformidade de seus procedimentos, auto-suficiente no tocante a sua legitimidade, sendo, de fato, o nico direito existente. No obstante a hodierna prevalncia do juspositivismo, e da resistente oposio que insiste em lhe fazer o jusnaturalismo, outras vertentes h, surgidas elas justamente no encalo do embate deflagrado entre essas duas proposies elementares. Basicamente de duas formas elas se apresentam: aquelas correntes de pensamento que buscam uma tentativa de conciliao entre jusnaturalismo e juspositivismo, e aquelas que, de um modo diferente, buscam justamente a superao dessa dualidade. Estas ltimas enxergam tais posicionamentos, no mais das vezes, como sendo duas faces de um mesmo fenmeno. Nesse sentido, a incidncia em um de seus plos ocasionar, inevitavelmente, a reao do outro. No tocante essencial oposio entre essas duas correntes fundamentais, resume o professor Roberto Lyra Filho (2006, p. 28/29):

Vimos que as duas palavras-chaves, definidoras do positivismo e do iurisnaturalismo, so, para o primeiro, ordem, e, para o segundo, Justia. Isto se esclarece bem nas duas proposies latinas que simbolizam o dilema (aparentemente insolvel) entre ambas as posies: iustum quia iussum (justo, porque ordenado), que define o positivismo, enquanto este no v maneira de inserir, na sua teoria do Direito, a crtica injustia das normas, limitando-se ou a proclamar que estas contm toda justia possvel ou dizer que o problema da injustia no jurdico; e iussum quia iustum (ordenado porque justo), que representa o iurisnaturalismo, para o qual as normas devem obedincia a algum padro superior, sob pena de no serem corretamente jurdicas. Este padro tende, por sua vez, a apresentar-se, j dissemos, como fixo, inaltervel e superior a toda legislao, mesmo quando se fala num direito natural de contedo varivel. (original grifado)

Tem-se tambm que, historicamente falando, o jusnaturalismo antecede o juspositivismo, visto que deita suas razes j no alvorecer da civilizao ocidental, em especial

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no da civilizao greco-romana. A fundao de Roma, cujo incio se d no Sculo VIII a.C., por volta dos anos 750 a.C., ser tomada, portanto, como o marco inicial para os efeitos desta preleo. E justamente por causa dessa primeira incidncia do jusnaturalismo que ele ser primeiramente abordado. Isso porque se est a falar aqui de uma das maneiras possveis de se referir ao jusnaturalismo, ou seja, sendo o termo tomado em seu sentido mais amplo, lato. Estritamente, pode-se dizer que o termo referente a um perodo bastante mais restrito, a saber, o que permeia os sculos XVII e XVIII (BOBBIO, 2006, p. 20). Este espao cronolgico ser retomado, no seu tempo devido, no decorrer deste estudo. No , contudo, a esse perodo que se est referindo, mas, tambm, a todo o espao histrico que se lhe antecede, bem como algumas correntes que lhes so posteriores, ao se fazer o uso deste termo, cujo destrinar vem logo a seguir. O mesmo ocorre com o termo juspositivismo, tambm aqui tomado em sentido amplo, lato sensu, referindo-se s doutrinas que em geral entendem o ordenamento jurdico como algo que se legitima a si prprio, por si s, independentemente de um fundamento, qualquer seja ele, que se posicione alm do direito positivo. No se confunde, portanto, com aquele positivismo jurdico outro, mais especfico, tomado em seu sentido mais estrito, e que reinou no sculo XIX, de mos dadas ao positivismo de cunho filosfico e vis sociologizante preconizado por Augusto Conte. Tambm que, por outro lado, foi adotado justamente o termo juspositivismo para que no se confunda o objeto deste estudo, o positivismo estritamente jurdico, com o positivismo filosfico e a fsica social de Comte. que, a expresso positivismo jurdico [...] nada tem a ver com o positivismo filosfico [...] deriva da locuo direito positivo contraposta quela de direito natural (BOBBIO, 2006, p. 15) (original grifado). Ambos os termos, portanto, so aqui empregados em seu sentido mais genrico, amplo. Quando se quiser referir a algum dos termos de maneira mais especfica, isso ser textualmente destacado. Por fim, tambm de se ressaltar que, embora sejam conceitos estritamente ligados, e at mesmo imbricados, no h que se confundir o jusnaturalismo com o direito natural e o juspositivismo com o direito positivo. que tanto o jusnaturalismo quanto o juspositivismo constituem-se, de fato, em meras tentativas de justificao e de entendimento acerca do direito. No so, todavia, o direito mesmo. Nessa senda, tem-se que, para o jusnaturalista, existem duas diferentes espcies de direito, a saber: o direito natural e o direito positivo. O jusnaturalismo , pois, dualista. E essa, justamente, a ideia prevalecente desde os primrdios da civilizao ocidental at a completa formao dos Estados de Direito, contemporaneamente institudos. E somente partir de ento, que se comea a desenhar uma ideia contrria, e prevalecente desde ento, de que o direito natural, absoluta e simplesmente,

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no existe. Ou, se existe, ao menos, no deve ser considerado enquanto direito vlido. O juspositivismo , portanto, monista. Pode-se dizer, resumidamente, que o jusnaturalista cr na existncia de um direito natural, mesmo que se classifique e justifique isso de diversas formas, conforme se ver. J de uma outra forma, o positivismo jurdico aquela doutrina segundo a qual no existe outro direito seno o positivo (BOBBIO, 2006, p. 26) (original grifado). Essas as caractersticas primeiras dessas duas grandes correntes do pensamento jurdico, sobre as quais, agora de maneira mais individualizada, sero tecidas mais algumas observaes.

2.1 O Jusnaturalismo

O jusnaturalismo uma concepo do direito, segundo a qual os seus fundamentos esto alm do ordenamento Estatal. Os jusnaturalistas entendem, em regra, que esse fundamento o prprio ideal de Justia, que seria satisfeito sempre que o direito positivo estivesse em conformidade com o direito natural. Este, por sua vez, origina-se, para os jusnaturalistas, a depender da corrente de pensamento, de Deus, da natureza das coisas ou da razo humana; ou, ainda, como ocorre no mais das vezes, de misturas variadas destes trs fundamentos. De qualquer forma, permanece um trao comum entre essas diversas concepes, qual seja: a crena de que o direito natural o fundamento ltimo do direito e que, justamente por isso, deve instruir o direito estatal, positivado, dando-lhe, pois, plena validade e legitimidade. O pensamento do jusnaturalista caminha nesse sentido porque espelha o entendimento de que: se algo decorre, como para ele se d, em relao ao direito natural, de Deus, da natureza das coisas ou da razo humana, esse algo uma verdade por si s. Ora, pensa ele, se se trata de um preceito divino, ento deve ser seguido. Ou, de outra forma, se essa a prpria natureza das coisas, ou do homem, como contrari-la? Ou, ainda, se a razo est a apontar determinado caminho, este o correto. No incomum at mesmo o pensamento, em espcie de unio de todos os argumentos, de que a razo leva necessariamente natureza das coisas, que, por sua vez, se conforma aos desgnios divinos, representando-o, j que este o seu construtor. Seguindo nessa trilha, tem-se que o direito positivo, se no estiver de acordo com algum destes preceitos, a depender da justificativa escolhida, ou ainda de uma outra que lhes equivalha, no ser de fato um direito verdadeiro, mas, sim, um direito errado, falso. No

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obstante, contemporaneamente falando, mesmo aqueles que entendem pela sua real existncia, em regra, entendem tambm pela necessidade de aplicao do direito positivo que afronte o direito natural, em ateno necessria garantia da ordem e da segurana jurdica.

2.2 O Juspositivismo

J o juspositivismo (ou positivismo jurdico), por seu turno, uma concepo de direito, que se contrape totalmente teoria jusnaturalista, negando-lhe, inclusive, no mais das vezes, a prpria existncia. Para o juspositivista, no existe qualquer outro direito que no aquele posto pelo Estado: o direito positivo. Em consequncia, tambm no existe nenhuma natureza a qual o direito se deva conformar. O direito , portanto, uma questo de escolha, decorre da vontade humana e da devida positivao dessa escolha. Assim, aquilo que estiver previsto no ordenamento jurdico estatal direito. O que no estiver no direito. No existe qualquer fundamento idealizado de justia a que se deva conformar o direito, pois ser justo exatamente aquilo que estiver juridicamente ordenado. Esse direito, ento, vlido e legtimo, somente por que decorre de sano estatal, pois o Estado possuidor do monoplio da produo legislativa. Trata-se de uma viso monista do direito, em contraposio viso dualista do jusnaturalismo, que entendia pela existncia de dois direitos: o positivo e o natural. Dentre as vrias correntes positivistas, algumas tendem mais a um estrito legalismo, sem qualquer observncia de outros aspectos, enquanto outros destacam caracteres historicistas (usos e costumes da sociedade), sociolgicos (fatos da natureza social e prevalncia do mtodo indutivo) ou psicologistas (interpretao dos juristas e/ou filsofos). No fim das contas, contudo, nenhum destes aspectos colocado acima da lei jamais. No mximo, aparecem enquanto fenmenos de colmatao de lacunas, para os que crem nessa existncia, ou de mera interpretao legal. Essas as caracterstica essenciais e gerais dessas duas grandes correntes, que sero, contudo, devidamente matizadas e contrastadas, na exata medida em que forem sendo desenvolvidas as suas devidas contextualizaes histricas.

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3 A IDADE ANTIGA

O objetivo desta busca historiogrfica no o de catalogar e enumerar as correntes filosficas do direito, que diversas so e inmeras peculiaridades possuem, cada uma delas. Desse modo, haveria um demasiado afastamento do tema proposto e perseguido nesta apreciao acadmica. Busca-se, sim, e to somente, um panorama das fundamentaes filosficas do direito no decorrer do processo histrico, visando detectar de que maneira elas acabam por interferir no conceito mesmo do que vem a ser entendido como direito e, em consequncia disso, na sua prpria aplicao. Trata-se de uma busca, portanto, pelo deslinde do pensamento jurdico no decorrer dos tempos. Entende-se pela correo do pensamento expresso por Tercio Sampaio Ferraz Jnior (1980, p. 18) quando afirma que um panorama da Histria da Cincia do Direito tem a virtude de nos mostrar como esta cincia, em diferentes pocas, se justificou teoricamente, e esse justamente o intuito. Para tanto, pina-se, maneira de um curador, os personagens que melhor venham a se adequar ao propsito deste trabalho, ou seja, os que melhor representem a linha progressiva do pensamento jurdico. Assim, buscar tambm o embasamento para a enunciao crtica, referentemente s duas grandes correntes de pensamento jurdico supramencionadas, e que ser levada a termo no captulo sete deste breve estudo. Busca-se instrumentalizar, dessa forma, ainda que de maneira modesta, uma tentativa de superao da atual aparente contradio entre elas, esboada ao final deste estudo.

3.1 O Direito e a Religio

Na origem da civilizao ocidental, antes mesmo do apogeu da civilizao greco-romana, o direito era extremamente fusionado religio (COULANGES, 2005, p. 206/213). Em verdade, fuso sequer o termo mais adequado, pois d a impresso de duas realidades distintas que se encontram unidas. Isso para ns, hoje, talvez seja verdade, mas, para os antigos, o direito e a religio eram to somente uma e a mesma coisa. De fato, [...] o direito antigo era a religio; a lei, um texto sagrado; e a justia, o conjunto de ritos. (COULANGES,

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2005, p. 211). Trata-se de caracterstica essencial do direito primitivo e que permanece como tal durante toda a antiguidade greco-romana, muito embora isso se v amainando com o passar dos tempos, em especial pela aproximao da chamada era crist. De fato, o que ocorria ento que os rituais de adorao aos deuses manes (antepassados mortos, tidos como deuses e dessa forma adorados, tambm chamados lares, demnios ou heris), eram extremamente formalistas. Assim, exigiam, para a sua fiel realizao, o perfazimento de determinadas condutas especficas, as quais eram rigorosamente descritas e que deviam ser tambm rigidamente conduzidas. E as primeiras leis que existiram buscavam justamente garantir a perfeita exatido na execuo destes rituais. Eis o motivo por que os mesmos homens eram, ao mesmo tempo, pontfices e jurisconsultos: o direito e a religio se confundiam em uma s coisa (COULANGES, 2005, p. 207). Isso explica tambm o motivo do extremo formalismo que vigorou durante muito tempo ainda no direito romano e que, sob determinados aspectos, ainda que de maneira residual, persevera at os dias de hoje. Isso de tal forma, que, segundo os parmetros deste intenso formalismo do direito primitivo romano, se um contrato fosse corretamente celebrado, em sua essncia, mas erroneamente quanto a sua entoao ritualstica do preceito legal, o negcio no se havia de fato realizado. Era totalmente nulo. Noutro aspecto a ser ressaltado, tambm por causa dessa total confuso entre direito e religio que se supunha que tais leis eram verdadeiros desgnios divinos, e no propriamente dos legisladores. Assim, para os antigos, Slon, Licurgo, Minos e Numa puderam escrever as leis de suas cidades, mas no as fizeram (COULANGES, 2005, p. 207). As leis eram tomadas como j anteriormente existentes, sendo apenas reduzidas a termo pelos legisladores. Assim, o seu descumprimento era antes de tudo uma afronta aos prprios deuses e no aos homens demais. nesse sentido que Coulanges (2005, p. 209) destaca que no afirmao v a de Plato, de que obedecer s leis obedecer aos deuses. Essa ideia, inclusive, o que permite a Scrates, mesmo com a oportunidade da fuga, tomar a cicuta, submetendo-se, portanto, legislao, e, consequentemente, aos deuses mesmos. Esse teor sacro das leis continuou vigorando por muito tempo ainda e, mesmo na poca em que se passou a admitir que a vontade de um homem ou o sufrgio de um povo resultasse em lei, ainda era indispensvel consultar a religio, e que esta pelo menos o consentisse (COULANGES, 2005, p. 208/209). Ademais, essa sacralizao das leis as tornava imutveis e imprescritveis, chegando-se com frequncia ao ponto de conviverem regras contraditrias entre si, o que chegou a acontecer ainda, inclusive, com a Lei das XII Tbuas. Tampouco se pode dizer que o cdigo de Slon revogou o de Drcon, mas, sim, que a vigncia deste sobreviveu daquele. Por

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fim, de se destacar tambm que, quanto forma, tem-se que as leis eram transmitidas, de incio, oralmente, em versos (carmina para os romanos) ou cnticos (nmoi para os gregos), sendo, em qualquer uma das formas, ritmicamente entoadas. Quando passaram a ser escritas, as foram primeiramente nos textos sagrados. A religio, portanto, como se v, a origem primeira do direito. Nesse sentido, elucidativa a preleo de Fustel de Coulanges (2005, p. 206):

Entre gregos e romanos, assim como entre os hindus, desde o princpio a lei surgiu naturalmente como parte da religio. Os antigos cdigos das cidades reuniam um conjunto de ritos, de prescries litrgicas, de oraes e, ao mesmo tempo, de disposies legislativas. As normas sobre direito de propriedade e de sucesso estavam dispersas entre as regras relativas aos sacrifcios, sepultura e ao culto dos antepassados.

Contudo, o que se percebe, num engenho de anlise histrica deste perodo, que, aos poucos, o direito vai-se emancipando da religio. Alguns resqucios permanecem, mas a separao cada vez maior, provendo o direito, gradualmente, de uma dose bastante razovel de autonomia. dessa forma que ocorre j com a incidncia das chamadas legis regiae, que vigoraram em Roma, juntamente com os costumes (mores), em seu Perodo Rgio (que vai de sua fundao, presumida em 754 a.C. at a expulso dos reis, em 510 a.C.). que, muito embora seja possvel dizer, num sentido, que o direito sagrado (fas) est estreitamente ligado ao direito humano (ius) (VENOSA, 2007, p. 31) (original grifado), em outro, j existem essas duas categorias, diversas, de um mesmo e nico direito. Direito este que j no mais se encontra totalmente fusionado religio, como uma s coisa. Trata-se de um muito tmido primeiro passo, verdade, j que a estreita ligao entre eles ainda permanece. Isso porque, ainda aqui, a jurisprudncia [...] era monopolizada pelo colgio sacerdotal dos pontfices, que tinha o monoplio do ius e do fas (VENOSA, 2007, p. 31) (original grifado). No eram mais a mesma e nica coisa, pois, mas caminhavam ainda bem juntos, de maneira bastante simbitica.

3.2 A Lei das XII Tbuas e o Cdigo de Slon

A evoluo continua, no obstante, e de tal forma que, a partir de determinado

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momento, em especial pelo crescimento e politizao da plebe romana, possvel dizer que, [...] o direito foi tornado pblico e conhecido por todos. No mais o canto sagrado e misterioso [...] que s os sacerdotes escreviam [...] O direito saiu dos rituais e dos livros dos sacerdotes, perdeu o seu mistrio religioso; lngua que todos podem ler e falar (COULANGES, 2005, p. 333). Isso acontece, muito embora a interpretao desse mesmo direito continuasse ainda vinculada ao colgio sacerdotal, e ainda a acontecer de maneira secreta (VENOSA, 2007, p. 44). Contudo, os homens j podem conhecer do direito e isso realmente uma grande mudana. A lei no est mais num livro sagrado. lei, no religio. Trata-se de um passo decisivo nesse processo de autonomizao do direito. Passo esse que foi dado, principalmente, pelo advento de duas leis em especial: A Lei das XII Tbuas (por volta de 450 a.C.), em Roma, durante o seu Perodo Republicano (que vai da expulso dos reis, em 510 a.C., at 27 a.C., com a fundao do principado de Augusto), e da Lei de Slon (594 a.C.), em Atenas. Por fim, tambm interessante constatar como essas Leis, mesmo que tenham sido o golpe de misericrdia no direito primitivo, ainda apresentam, em seus prprios textos, os supracitados resqucios daquele primeiro perodo de total fuso entre direito e religio. No entanto, consubstanciam-se em verdadeiros marcos na conquista pela autonomia do direito. Assim que a Lei das XII Tbuas, por exemplo, tinha uma de suas tbuas totalmente direcionada s previses relativas ao culto dos antepassados. Nela, a Tbua Dcima Do Direito Sacro, podia-se ler, verbi gratia, dentre outros mandamentos, este, que ditava: No devei polir a madeira que vai servir incinerao (MEIRA, 1961, p. 174); tambm este: Que o cadver seja vestido com trs roupas e o enterro se faa acompanhar de dez tocadores de instrumentos (MEIRA, 1961, p. 174); ou ainda este: Que no se lancem licores sobre a pira de incinerao nem sobre as cinzas do morto (MEIRA, 1961, p. 174). Ntidos resqucios, como se v, daquele primeiro direito-religio. Por outro lado, e tambm por fora dessa mesma lei, a emancipao do direito j comea a se prenunciar, e de maneira bastante clara. que, tambm ali, via-se este outro mandamento, da Tbua Dcima Primeira, e que pregava, simplesmente: Que a ltima vontade do povo tenha fora de lei (MEIRA, 1961, p. 175). Tal dispositivo j denota uma conscincia bastante maior acerca da participao do homem e do povo nas questes polticas da cidade. A religio e os deuses ainda imperam, verdade, mas aqui que o homem comea a se reconhecer como sujeito criador de direito, mesmo que ainda timidamente. Um sincretismo muito prximo a este destacado na Lei romana ocorre tambm em Atenas, com o surgimento do Cdigo de Slon que como as doze tbuas, [...] afasta-se do direito antigo em muitos pontos, embora em outros lhe permanea fiel (COULANGES, 2005, p. 339). Essa

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legislao antiga havia sido consolidada por Drcon, formando as chamadas leis draconianas, [...] leis ditadas por uma religio implacvel, vendo em toda a falta uma ofensa divindade, e em toda a ofensa divindade um crime irremissvel (COULANGES, 2005, p. 338). O termo, no toa, virou sinnimo de severa crueldade. Assim, tambm o Cdigo de Slon um texto legal de transio e que propiciava uma maior publicidade ao direito. Eram consequncias, dentre outras coisas, de uma maior estruturao das cidades e bem como da ascenso e politizao da plebe, conforme j observado. Tambm contriburam para o seu aparecimento a perda de poder da famlia, mormente enquanto estrutura poltica, representadas pelos e submetidas aos seus respectivos pater familiaes, juntamente com o declnio da religio do culto domstico. Trata-se, no fim das contas, em ambos os casos, da incipiente materializao de uma nova maneira de se ver o direito e as leis. Aos poucos, de maneira lenta e gradual, vai-se iniciando o desenho de uma nova concepo acerca do direito: a de que so os homens que fazem as leis. por isso que, a partir de ento, origina-se a concepo de que ele pode, inclusive, alter-las, j que as cria. Isso no se pratica ainda, pois tal noo ainda nascente, mas onde ela acabar por desembocar. Trata-se de um ponto essencial no repisado combate entre os adeptos do direito natural e os do direito positivo e ser por isso retomado mais adiante. que antes, na vigncia do direito primitivo, no se cogitava da distino entre direito natural e direito positivo, pois se entendia que a prescrio legal era algo que existia por si s, e no por criao humana. Em consequncia, tinha-se que o desrespeito a tal prescrio era mesmo uma desonra aos deuses, e no aos homens demais. Agora, porm, comeam a se diversificar.

3.3 O Direito Natural na Filosofia dos Gregos

Se, por um lado, o direito vai-se desvencilhando da religio, e a partir da agora isso ocorre cada vez mais; por outro, permanece ainda muito viva na cabea do antigo a concepo de um direito divino, imutvel e universal, embora no mais estritamente dos deuses domsticos (pois agora outros deuses h, como mais adiante se v). Trata-se de um ideal ainda divino, mas que se coaduna perfeitamente com o ideal de justia dos gregos. Est-se falando do direito natural. Assim, pode-se dizer que essa justamente a sua origem. O direito, que anteriormente era mera prescrio religiosa, separa-se agora, pois, em direito natural, ligado

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ideia de divindade, e direito positivo, ligado s contingncias da humanidade. Assim que, em Plato (427/347 a.C.), ainda se v, e em termos bastante claros, essa mais antiga ligao existente entre o direito e os deuses. desta forma, por exemplo, que se expressa o antigo filsofo no seguinte trecho, retirado de sua obra A Repblica (2007, p. 319):

Se acreditarem em mim, crendo que a alma imortal e capaz de suportar todos os males e todos os bens, seguiremos sempre o caminho para o alto, e praticaremos por todas as formas a justia com sabedoria, a fim de sermos caros a ns mesmos e aos deuses, enquanto permanecermos aqui.

Observa-se que Plato estabelece uma ligao estreita entre a justia e os deuses. No obstante, destaca que a prtica sbia da justia tem como finalidade, alm de sermos caros aos deuses, sermos caros tambm a ns mesmos. que com o florescimento da cultura grega, e o seu apogeu filosfico, que lhe rendeu a alcunha de bero da civilizao ocidental, a ideia de um direito divino por si s no mais se sustenta. Pensa-se agora com novas ideias, relativas elas natureza das coisas (muito explorada pelos pr-socrticos) e razo humana. Embora pouco reconhecidos, foram de extrema importncia nesse contexto de separao do direito primitivo em direito positivo e direito natural, os filsofos sofistas. Estes os primeiros a questionar a ligao entre o justo por natureza e o justo por lei (DEL VECCHIO, 2010, p. 16), ligao essa na qual no criam. Alegavam, inclusive, que, se isso fosse verdade, todas as leis seriam iguais (DEL VECCHIO, 2010, p. 16). Ademais, donos de uma retrica impecvel e cticos ao extremo, eles foram os principais adversrios de Scrates, contribuindo, dessa forma, decisivamente para o crescimento da filosofia como um todo (DEL VECCHIO, 2010, p. 16). Foi numa prtica de superao desse pensamento negativista acerca das leis, que Scrates pode encarar com dignidade a sua pena de morte, j que pregava que o bom cidado devia prestar total obedincia s leis, tanto s boas, quanto s ms (DEL VECCHIO, 2010, p. 18). Um pouco mais adiante no curso da histria, j em Aristteles (384/322 a.C.), aparece, e agora com extrema nitidez, a distino conceitual entre: direito natural, ligado ideia de physis, [...] aquilo que por natureza [...] (BOBBIO, 2006, p. 15), em contraposio ao direito legal, atrelado ideia de thsis, [...] aquilo que por conveno ou posto pelos homens (BOBBIO, 2006, p. 15). nesse sentido, acerca das diferenas j percebidas pelo filsofo antigo entre o direito natural e o direito positivo, que se destaca, juntamente com Norberto Bobbio (2006, p. 16), o seguinte excerto da sua tica a Nicmaco (ARISTTELES, 2007-A, p. 117):

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A justia poltica em parte natural e em parte legal. A parte natural aquela que tem a mesma fora em todos os lugares e no existe por pensarem os homens deste ou daquele modo. A legal o que de incio pode ser determinado indiferentemente, mas deixa de s-lo depois que foi estabelecido.

Assim, Aristteles diferencia um direito natural, que no pode ser alcanado pela vontade humana, existente por si s, e um direito positivo, que, a princpio indiferente, mas que, nele, uma vez tendo sido escolhida uma regra, esta deve ser seguida. Segundo o antigo filsofo, a regra que diz [...] que deve ser sacrificado um bode e no duas ovelhas [...] (2007-A, p. 117) acolhida por mera conveno, e no por natureza, mesmo que destaque a necessidade de seu seguimento. J as coisas relativas natureza, dentre as quais o direito (ou justia) natural, tambm segundo o exemplo do filsofo, tem-se que elas so tais que [...] em toda parte tm a mesma fora (como o fogo que arde aqui e na Prsia) [...] (2007-A, p. 117). No obstante, Aristteles reconhece uma caracterstica de mutabilidade no prprio direito natural. Ainda fala em imutabilidade, quando leva em conta a tica dos deuses, mas, de maneira contrria, em mutabilidade, quando se fala pela tica humana. Por isso, conclama que para os deuses talvez no seja verdadeiro de modo algum, mas para ns existe algo que justo mesmo por natureza, embora seja mutvel (2007-A, p. 117/118). Persiste-se, portanto, na ideia de justia por natureza (direito natural), mesmo que mutante na realidade humana. Admite-se, contudo, certa antropomorfizao do ideal de justia, pois, apesar de possvel a sua imutabilidade no mbito divino, tida como mutvel no plano humano. Soa como introduo ideia de equidade, da qual Aristteles tratar um pouco mais adiante. Deve-se destacar ainda, e por fim, que, ainda aqui, tambm se fala em um direito natural originrio dos deuses, mesmo que mutante na realidade humana. Assim, mesmo aqui, no pensamento de Aristteles, muito embora se privilegie as caractersticas de natureza e razo como as principais do direito natural, persiste ainda o argumento divino. Ademais, destaca-se tambm que a prpria ideia de natureza no deixa de ser uma espcie de herana dos deuses, j que frequentemente se entende que so eles prprios os seus construtores e reitores. O filsofo finaliza, ainda e mais uma vez, com a ideia de separao entre direito natural e direito positivo, alvo principal deste destacamento de sua obra: De qualquer modo, existe uma justia por natureza e outra por conveno (2007-A, p. 118). Resumindo: direito que , e direito que se escolhe. Natureza e conveno. Direito natural e direito positivo, j devidamente delineados, em plena Idade Antiga.

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3.4 A Antgona de Sfocles

Endossando essa separao conceitual de direitos, existente, portanto, j na Antiguidade, embora, como visto, somente num segundo momento, aparece tambm a pea Antgona, de 444 a.C., tragdia escrita por Sfocles (496/406 a.C), em poca ainda anterior aos exemplos supracitados e que j possui claramente toda a temtica acerca do confronto entre direito natural e direito positivo. que Antgona, inconformada com a deciso do rei de Tebas, Creonte, de negar sepultamento ao seu irmo, Polinices, presta homenagens fnebres a este, em total contradita quele, por crer estar na posse de um seu direito natural de faz-lo. A pena impingida pelos deuses para o descumprimento dessa lei divina, a saber, a obrigatoriedade de sepultamento e seus ritos, no momento e depois, seria a de que a alma ficaria eternamente a vagar. Isso porque a ausncia de terra sobre o corpo no a prenderia sua nova morada, a da segunda vida, e que jazia por sob a prpria terra. Assim, com o tempo, acabaria por se tornar uma alma perversa, cujo nico intento passaria a ser ento o de atormentar os viventes (COULANGES, 2005, p. 16). No se deve, portanto, olvidar da demasiada coincidncia: ela sustenta um direito natural, justamente naquele ponto onde nasceu o direito, atrelado liturgia fnebre. Exatamente assim ela se pronuncia, ao afirmar que, sim, ousa a desafiar o decreto de Creonte, ao mesmo tempo em que lhe explica os motivos (SFOCLES, 2008, p. 96):

Sim, pois no foi deciso de Zeus; e a Justia, a deusa que habita com as divindades subterrneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; tampouco acredito que tua proclamao tenha legitimidade para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, nunca escritas, porm irrevogveis; no existem a partir de ontem, ou de hoje; so eternas, sim! e ningum pode dizer desde quando vigoram!

Observe-se tambm que a prpria Justia tomada por Antgona como uma deusa. Alm do mais, habitante do subterrneo, juntamente com os deuses manes. Fica aqui, portanto, bastante patente a ligao entre o direito natural, conforme proclamado por Antgona, e o direito primitivo, totalmente sacralizado. Antgona chama-lhe, inclusive, de direito divino. Alm do mais, afirma que esse mesmo direito divino no escrito (em oposio ao direito positivo, portanto), alm de eterno e irrevogvel. Trata-se de caractersticas tpicas do direito natural, conforme apregoado pelos seus mais variados cultores, desde Aristteles at a Idade Moderna. Segundo Bobbio (2006, p. 25), o direito positivo era o prevalecente na ocasio. Isso

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porque Creonte, alm de optar pelo no sepultamento de Polinices, condena Antgona pena de morte, uma vez que ela foi a nica a desobedecer a sua ordem, fielmente obedecida por todos os demais. E isso bastante razovel, pois, conforme o j visto, o direito caminhou por essa poca num freqente processo de dissociao da religio e afirmao do seu carter poltico. Porm, de se observar que Antgona recusa-se obedincia, pois no cr que tal decreto seja justo. Isso mesmo sendo a nica a afirm-lo perante Creonte, e mesmo sendo penalizada de morte pelo seu ato, uma corajosa afronta ao decreto real. Isso tudo significa que a separao entre direito e religio no se deu ainda por completo e que, na cabea do antigo, ainda permanece bastante presente a ideia de ligao entre eles. Somente que, agora, j devidamente transmutada na ideia de direito natural. Ademais, posteriormente, embora no mais a tempo de salvar Antgona da morte, acaba o prprio Creonte prestando homenagens fnebres a Polinices, por temor s advertncias de Tirsias. O que o convence, portanto, o prprio temor perante a ira dos deuses, seres que Tirsias, espcie de sacerdote-adivinho, sabe interpretar. Ademais, esse tipo de argumento foi tambm utilizado por Hmon, por Antgona e pelo Coro dos Ancios de Tebas. O prprio Creonte, embora agindo arbitrariamente, cria estar protegido pelos deuses ao dar a sua fatdica ordem. Por isso que, interpelado pelo Corifeu se no seria coisa dos deuses o misterioso rito fnebre prestado a Polinices (quando ainda no se sabia que era Antgona quem o tinha feito), responde-lhe da seguinte forma: Algum j viu deuses honrando criminosos? (SFOCLES, 2008, p. 91). Ou seja, ele prprio cria (ou pelo menos esperava isso) que os deuses estivessem ao seu lado nessa contenda. Ao final, porm, Creonte no escapa maldio dos deuses, nessa trgica e deificada histria de Sfocles. Assim que acabam por morrer, no somente Antgona, mas tambm a mulher de Creonte, Eurpedes, e o seu filho com ela, Hmon. Hmon acaba por se matar, porque no consegue suportar a dor advinda pela morte de sua ex-futura esposa, Antgona. J Eurpedes, mata-se pela dor da prpria morte de seu filho. Tambm o Coro de Ancios de Tebas, referindo-se indigna opo do homem pelo mal, de um modo geral, e tambm contextualizada essa afirmao na atuao mais especfica de Creonte, roga o seguinte: Quando no governo, freqentemente se torna indigno, abjura as leis da natureza e as leis divinas a que jurou obedecer, e pratica o mal, audaciosamente! (SFOCLES, 2008, p. 93). O coro refere-se a leis naturais e divinas. Isso porque alm da necessidade do rito fnebre, eixo principal de onde decorre toda a trama, outras questes existem, no sentido de mobilizar Antgona em seu intuito de desobedincia. Assim, por exemplo, a questo da igualdade. Se Creonte presta homenagens a Etocles, porque no a Polinices, j que so irmos? Contudo, ressalta-se que, se Creonte negasse o sepultamento

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tambm a Etocles, por acaso tambm no se lhe oporia Antgona? Afinal, essa situao imaginria aplacaria o ideal de igualdade, j que aos dois seria negado o sepultamento, mas no o de justia. Na verdade, seria mesmo uma dupla injustia, pela dupla inconformidade aos preceitos divinos. Imagina-se, portanto que, pelo contrrio, nessa situao, somente maiores motivos teria Antgona para se rebelar. Existe tambm ali, em anlise de um outro aspecto, a questo da democracia. Se todo o povo pensa diferentemente de Creonte, porque no ouvi-lo? Sobre tal, h que se destacar as advertncias de Hmon, seu filho e ento futuro esposo de Antgona, sobre a concordncia do povo com o ato de Antgona, no vendo nele quaisquer resqucios de um crime, sendo que [...] a cidade inteira lamenta o sacrifcio desta jovem [...] Por acaso no merece ela uma coroa de louros? eis o que todos dizem reservadamente (SFOCLES, 2008, p. 104). Esse foi o primeiro argumento, na tentativa de dissuadir Creonte de sua deciso, ou seja, a ilegitimidade do no sepultamento porque em discordncia com o pensamento e a vontade dos cidados tebanos, que, por sua vez, gostariam de ver aplicado o direito divino. Este mesmo tipo de argumento j tambm havia sido utilizado por Antgona: O povo fala. Por mais que os tiranos sejam afeitos a um povo mudo, o povo sempre fala. Fala sussurrando, amedrontado, meia luz, mas fala (SFOCLES, 2008, p. 98). Embora se referisse ao povo inimigo, o povo de Argos, sustenta ainda mais a igualdade dizendo que em todo o caso, no importando o lado em que estavam, Hades exige que ambos os irmos recebam os mesmo ritos! (SFOCLES, 2008, p. 98). Assim, h que se concluir que se trata tambm de um argumento essencial essa questo da querncia do povo. Todavia, o que o povo quer, em ltima instncia, justamente a aplicao das leis divinas. Concordam com a opo de Antgona, de pleitear o rito fnebre a Polinices. Logo, deve-se concluir que, no fundo, substancialmente, o principal motor da reivindicao da protagonista mesmo o direito divino, extremamente ligado aos ritos fnebres da religio dos manes, e que se consubstancia, portanto, em essencial caracterstica desse primeiro e mais antigo direito natural conclamado.

3.5 O Direito, os Deuses e o Estado

Por isso que se entende que, em todas as situaes acima elencadas, do direito primitivo tragdia de Sfocles, passando pelas Leis da XII Tbuas e de Slon, por Plato e

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Aristteles, existe um trao que lhes comum, a saber: a presena dos deuses, ora mais e ora menos, ligados prpria ideia de religio. Mesmo no discurso aristotlico, embora se esteja a falar em direito natural, embora seja bastante mais forte a desvinculao entre direito e religio a essa altura, embora tambm se privilegie o discurso pela razo humana e pela natureza das coisas, ainda assim, h ali muito do direito divino. Os deuses ficam a transparecer no fundo de tudo, enquanto fundamento de todas as coisas e como que pairando acima de todas elas. , portanto, espcie de elo entre as concepes at aqui analisadas. Contudo, no demais observar que os deuses privilegiados nesse perodo ureo da civilizao greco-romana so aqueles ligados prpria ideia de natureza (deuses do tempo, dos mares, dos ventos) e no mais aqueles deuses manes, familiares, que eram os antepassados que haviam morrido e eram, somente por isso, adorados. So os deuses da natureza fsica, deuses do Olimpo, na Grcia, ou deuses do Capitlio, em Roma, mais conformes ao esprito reinante na poca. De fato, embora no se possa precisar, bem possvel que essa religio tenha sido to antiga quanto dos lares domsticos. Somente que, por suas caractersticas, demorou mais para se estabelecer. Fato que, a essa altura, esta religio era predominante e suplantava aquela (COULANGES, 2005, p. 131/133). Basta observar que Antgona, nos trechos supracitados, refere-se a Zeus e a Hades. Este ltimo, alis, uma espcie de elo entre as duas religies j que deus da morte, o que o liga aos lares, e pertencente tambm ao Olimpo. De qualquer forma, a prevalncia destes deuses da natureza, s vem a corroborar o argumento de que, na cabea do antigo, se vo bastante unidos os deuses e a natureza. Assim tambm ocorre com o direito divino e o direito natural. Da mesma forma, para o antigo, tambm se ligavam por completo o indivduo e o Estado. que tambm este se encontrava em plena fuso com o direito e a religio no incio de nossa civilizao. E o at agora narrado processo de autonomizao do direito est em estreita ligao com o da autonomizao do prprio Estado. Logo, tambm da mesma forma, as concepes dos filsofos gregos acerca do Estado esto plenamente encharcadas do iderio naturista, sendo este, por sua vez, conforme j visto, impregnado dos desgnios divinos. Assim, Aristteles (2007-B, p. 56) ir afirmar, em sua Poltica, que, [...] a Cidade uma criao da natureza, e que o homem, por natureza, um animal poltico (isto , destinado a viver em sociedade) [...]. Entende at que o Estado anterior ao indivduo [...] uma vez que o todo necessariamente anterior parte (2007-B, p. 57). Assim, chega ao entendimento de que o Estado superior ao indivduo, sendo que este somente uma sua parte. Del Vecchio (2010, p. 25) traduz o entendimento de Aristteles como se segue: Vale dizer: como no possvel conceber, por exemplo, uma mo viva separada do corpo, assim no pode o indivduo,

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propriamente, pensar sem o Estado. O indivduo, portanto, no pertence a si prprio, mas Plis, ou seja, ao Estado. E tambm o direito se liga a isso tudo, uma vez que [...] a justia o liame entre os homens nas Cidades, pois a administrao da justia, a qual a determinao do que justo, o princpio da ordem na sociedade poltica (ARISTTELES, 2007-B, p. 57). o que permite, pois, essa unidade dos indivduos em sociedade, ligando-os. No entanto, j num momento mais recente, e em total contraposio ao acima afirmado, coloca-se o pensamento dos esticos, que, em total desprezo s leis e aos costumes, propunham uma plena autonomizao do indivduo em relao ao Estado, [...] retornando simplicidade primitiva do estado de natureza (DEL VECCHIO, 2010, p. 30). Observa-se, nesse sentido, que os esticos, que tiveram em Digenes o seu maior expoente, colocam as leis em separado, e at mesmo em oposio, ao estado de natureza. Para eles, o estado de natureza no o Estado. A natureza possui as suas prprias leis e o homem partcipe, por sua natureza, de uma lei que vale universalmente (DEL VECCHIO, 2010, p. 31). Assim, estes filsofos acabam por contribuir para o alargamento do fosso entre o direito natural e o direito positivo, em termos conceptivos. Nesse mesmo sentido de busca por uma dissociao entre Estado e indivduo, e tambm contribuintes, consequentemente, para uma maior dissociao entre direito natural e direito positivo, coloca-se tambm a escola epicuria. De fato, [...] para Epicuro, o direito apenas um pacto utilitrio, e o Estado efeito de um acordo que os homens poderiam romper toda vez que em tal unio no encontrassem a utilidade pela qual a concluram (DEL VECCHIO, 2010, p. 33). Ope-se por completo, portanto, ideia de natureza social do ser humano pregada por Aristteles. Estado, para a escola epicuria, conveno, artifcio. Trata-se de um distante prenncio, portanto, como j havia tambm se dado com os sofistas, da ideia de contrato social, muito explorada durante a Idade Moderna. A possibilidade de dissoluo do Estado tambm encontra ecos na moderna doutrina contratualista, mormente no pensamento de Locke. Ademais, de se destacar tambm a antecipao do pensamento eminentemente utilitarista de Bentham, mais adiante destacado. Apesar disso tudo, aquela velha religio dos manes continuava ainda na cabea dos antigos, tal a sua fora, continuando a aparecer nos textos jurdicos. Assim que Ccero (106/43 a.C.), num perodo j e ainda mais recente, embora ainda na Repblica Romana, em seu Tratado de leis (apud COULANGES, 2005, p. 206), prescrevia, dentre outras coisas: Que ningum se aproxime dos deuses com as mos impuras; que se cuide dos templos dos pais e da morada dos Lares domsticos; que os sacerdotes s empreguem nos banquetes fnebres as iguarias prescritas; que se preste aos deuses Manes o culto devido. No cria ele, contudo, em

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tais prescries. A presena destes preceitos em sua obra deve-se ao fato de que ele pretendia ser fiel s codificaes anteriores, perodo onde a fuso era ainda uma realidade incontestvel. Eram, portanto, meros resqucios das antigas leis. No entanto, de se observar que, se Ccero se sentiu obrigado a essas previses, porque esses cultos ainda possuam alguma fora na Roma de ento, apesar da ento total prevalncia dos deuses da natureza. Mas, Ccero, romanista difusor da filosofia grega, da qual foi um estudioso, era j um adepto da naturalis ratio. Cria que o direito funda-se em opinio arbitrria, mas existe um justo natural, imutvel e necessrio, pelo testemunho inferido da prpria conscincia do homem (DEL VECCHIO, 2010, p. 35). Nas suas prprias palavras, citadas por Del Vecchio (2010, p. 35/36):

Na verdade, a reta razo uma lei conforme natureza, difusa em todos, constante, eterna... no exige quem a explique, ou um outro intrprete. Nem existe outra lei em Roma, outra em Atenas, outra agora, outra depois, mas uma s lei existir para todas as pessoas e em todo tempo, eterna, imutvel... quem no lhe obedecer foge de si mesmo, e tendo desprezado a natureza do homem, sofrer por isso mesmo as maiores penas, embora fuja de outros sofrimentos, que imagine.

Trata-se de um clssico conceito de direito natural e em plena conformidade com as suas principais caractersticas, presentes elas em praticamente todas as conceituaes acerca do mesmo. Primeiramente, Ccero vaticina que a reta razo uma lei natural. Ou seja, est falando da razo natural, a razo que se origina da prpria natureza das coisas e, justamente por isso, o principal instrumento de captao de o que vem a ser essa prpria natureza das coisas. Isso de tal forma, com tal clareza e exatido, que sequer h necessidade de explicao ou interpretao das leis da natureza. E no se deve esquecer que a natureza, para o antigo, so tambm os deuses. Por fim, apregoa tambm a sua total imutabilidade, quer seja no tempo, quer seja no espao, em parcial contrariedade ao pensamento de Aristteles e em pleno acordo com a grande maioria das doutrinas dos demais jusnaturalistas. Entende pela natural existncia de um direito universal e imprescritvel, a ser captado pela via racional. o direito natural, mais uma vez delineado, agora pelo pensamento de Ccero, espcie de unio sinttica entre a produo jurdica romana e a tradio filosfica grega. Alm do mais, j nos limites do incio de nossa era, como que a sintetizar toda a conceituao acerca de um alegado direito originrio da natureza mesma das coisas e captado pela razo humana, a razo natural, a naturalis ratio.

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3.6 O Advento do Cristianismo

E o processo continua. Sempre continua. E medida que os homens se vo mudando, e tambm os seus deuses, assim tambm se vai o direito. E por isso que o direito, em conseqncia a toda uma mudana social, no poderia ficar inclume ao advento do cristianismo, incio de contagem dos anos na nossa civilizao e tambm marco decisivo na histria do direito. que a vitria do cristianismo o marco terminal da sociedade antiga. Com a nova religio se completa a transformao social que vimos comear seis ou sete sculos antes de seu advento (COULANGES, 2005, p. 412). E acontece que, se, por um lado, houve um renascimento do esprito religioso, por outro, no caso do cristianismo, isso no se deu em confuso com as instituies polticas, dentre elas o prprio direito. A nova religio, bastante influenciada pela metafsica dos filsofos gregos, em especial a de Plato e o seu mundo das idias, despregava-se por completo da terra, colocando-se parte das questes mundanas e, em consequncia, das questes polticas, do Estado. dizer, juntamente de Coulanges (2005, p. 413), que o divino foi situado fora e acima da natureza visvel. Em verdade, a pregao crist no se buscava imiscuir nas coisas de Estado. que, conforme destacam Del Vecchio (2010, p. 41) e Coulanges (2005, p. 416), Jesus Cristo pregava que as coisas do Estado, competiam to somente ao imperador. Deus seria o responsvel somente pelos assuntos da alma. A obedincia ao Estado e a obedincia a Deus, logo, passam a ser tomadas como coisas completamente distintas. No se confundem mais o Estado e a religio. Ademais, as questes polticas j andavam deveras amadurecidas para sofrerem maiores influncias religiosas. Assim que se pode concluir que somente aqui que se d por completo a separao entre direito e religio. E justamente esse o pensamento expresso, logo a seguir, por Fustel de Coulanges (2005, p. 417):

O cristianismo a primeira religio que no pretendeu regular o direito; ocupou-se dos deveres dos homens, no de suas relaes de interesses. No vemos o cristianismo controlar nem o direito de propriedade, nem a ordem de sucesso, nem as obrigaes, nem o processo. O cristianismo coloca-se fora do direito, como acima de tudo o que fosse puramente terreno. O direito tornou-se, pois, independente.

Paralelamente, tambm o Imprio Romano evolui e, com ele, o prprio Direito Romano. Somente que agora o direito no mais se confunde com a religio. As regras se vo alterando, medida que Roma vai evoluindo e tambm medida que vai sofrendo influncias

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dos povos que vo sendo conquistados pelo seu exrcito. Isso porque o Imprio Romano vigorou por mais de 12 sculos (j quase 13): desde a fundao da cidade, em aproximadamente 754 a.C., at a morte do imperador Justiniano, em 565 d.C., passando por vrias fases. Existe tambm o entendimento, embora no prevalente, no sentido de que o perodo do Imprio Bizantino, que vai do mesmo ano de 565 d.C. at 1453 d.C., quando os turcos invadiram e tomaram Constantinopla, tambm se trata de um perodo do Imprio Romano. A mais difundida, no entanto, a de que ele se queda juntamente com o corpo de Justiniano. De qualquer forma, o nascimento de Jesus Cristo, e a consequente reviravolta proporcionada pelo cristianismo, acontece logo no incio da terceira fase do Imprio Romano, o assim chamado: Perodo do Principado, que vai de 27 a.C., quando, conforme j se viu, estabeleceu-se o principado de Augusto, at 284 d.C., com a chegada de Diocleciano ao poder. Segundo Venosa (2007, p. 41), desse perodo, por volta de 130 d. C., que os juristas que participaram da obra de Justiniano recolheram o maior cabedal de informaes. O Cdigo Justinianeu ser tratado logo mais adiante, no captulo dedicado Idade Mdia. tambm nesse Perodo do Principado que surgem as duas Escolas Clssicas do Direito Romano, a saber: a dos Proculeanos (fundada por Labeo, e que foi sucedido por Prcules) e a dos Sabinianos (fundada por Capito, que foi sucedido por Sabino). Como se v, um perodo bastante rico para o Direito Romano e, por consequncia, para o prprio direito em si. Sobre a evoluo do Direito Romano aps o advento da Lei das XII Tbuas, necessrio que sejam tecidas mais algumas observaes.

3.7 O Jus Civile e o Jus Gentium

Segundo Silvio de Salvo Venosa (2007, p. 42), tambm conveniente distinguir uma evoluo interna no Direito Romano, dividindo-o em dois grandes quadrantes, o Ius civile ou direito quiritrio (Ius quiritum) e Ius gentium, muito embora outros prefiram uma diviso trifsica. De qualquer forma, no Perodo do Principado, quando, como se viu, nasceu Jesus Cristo, era ainda vigente, embora no exclusivamente, o chamado sistema do Jus Civile, que era um direito extremamente conservador e formalista, e que era aplicado aos limites territoriais da cidade. Era diretamente originrio daquele outro direito anteriormente analisado, o direito primitivo. Por isso que era aplicado aos membros da cidade somente, pois que estes

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eram ligados pelos mesmos deuses. Acontece, contudo, que, a partir de certo perodo, a jurisprudncia deixa de ser secreta para ser aplicada pelos pretores, por meio das frmulas a serem proferidas perante o magistrado (VENOSA, 2007, p. 44). Isso ocorre por volta do sculo II a.C. e engendra uma srie de mudanas no direito. Esses pretores, ento, passaram a publicar determinados programas, os editos, por meio dos quais buscavam dar publicidade aos seus modos de atuao durante o exerccio do cargo. Os editos, por sua vez, quando teis, passaram a ser copiados pelos pretores sucessores, inaugurando dessa forma um novo direito: o Jus Honorarium, que nada mais era do que [...] um corpo homogneo e coerente de frmulas procedimentais, com a funo de ajudar, completar ou corrigir o Direito Civil (VENOSA, 2007, p. 44). Muito embora os pretores no fossem investidos do poder de criar o direito propriamente dito, esse direito formular extremamente importante enquanto fonte do direito de ento. Era bastante aplicado, em virtude de sua estabilidade e grande difuso entre os cidados. Tambm propiciam uma substancial evoluo no mundo jurdico de Roma, j que se exercita com plenitude a aplicao do direito, com a devida publicidade. Acaba tambm, noutro aspecto, servindo de preparao do terreno para o posterior estabelecimento do Jus Gentium. Paralelamente, Roma fortalece e expande o seu comrcio, passando a ter um contato cada vez maior com estrangeiros. E, calcado nisso, e no esprito de publicidade jurisprudencial deflagrado pela atividade pretoriana, estabelece-se o Jus Gentium, o direito das gentes. Trata-se de um sistema de direito bem mais simplificado, despojado do procedimento formular, aplicvel em relao aos estrangeiros, e que foi ganhando uma projeo cada vez maior, medida que Roma aumentava o seu contato com outras civilizaes. Assim, nessa poca, vigoravam, concomitantemente, estes dois sistemas. Aos poucos, porm, o Jus Gentium vai influenciando o Jus Civile, que vai gradativamente perdendo aquele seu formalismo excessivo. Contribui bastante para esse crescimento da importncia do Jus Gentium o trabalho dos pretores, pois que eram, tanto este quanto aquele, bastante influenciados pelos ditames da equidade e do direito natural. Outros fatores fundamentais foram a extenso da cidadania romana a todos os estrangeiros, feita por Caracala em 212 d.C., e a diviso do Imprio Romano em duas partes (Imprio do Ocidente e Imprio do Oriente). O fator, no obstante, decisivo nesse sentido, e que serviu para a fuso definitiva entre os dois sistemas, foi [...] a abolio do procedimento formular feita por Diocleciano (VENOSA, 2007, p. 46). Assim, essa fuso ocorre j no perodo da Monarquia Absoluta, que vai de 284 d.C., com a chegada de Diocleciano ao poder, at a morte de Justiniano, em 565 d.C., perodo no qual tambm se erigiu o maior monumento jurdico da civilizao romana, contributo decisivo para a eternizao do

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seu direito: o Cdigo de Justiniano, tambm chamado, a partir do sculo XII, de Corpus Juris Civilis. E assim, feitas estas ltimas observaes, adentra-se ento no perodo da Idade Mdia, onde sero analisados, dentre outros aspectos, justamente o suprarreferido Cdigo de Justiniano, alm das doutrinas filosfico-crists e suas relaes com o direito e o Estado.

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4 A IDADE MDIA

Viu-se que o cristianismo foi o marco fundamental da dissociao entre direito e religio, e tambm destes em relao ao Estado. que ,a partir de ento, Estado e direito passam a ser vistos como coisas em si, autnomas e independentes, distintas elas da religio. Conjuntamente a essa dissociao, os antigos buscaram elucidar aquilo que se chamou de direito natural, atrelado ideia de justia e fundamentado pelos deuses, pela natureza e pela razo, oposto ideia de direito positivo, artificial, posto pelos homens. O direito natural coloca-se ento como uma espcie de ltima trincheira do misticismo no campo do direito, buscando sobreviver s investidas do direito feito pelos seres humanos. O Cdigo de Justiniano, por sua vez, consubstancia-se em espcie de sntese, no s de todo o direito romano que lhe antecede, mas tambm referentemente s ideias supracitadas. que o Estado Romano, por esses tempos, e em plena concordncia com o pregado pela doutrina crist, exercia o seu poder poltico e militar, em total independncia dos ditames religiosos e divinos. Ademais, o prprio Cdigo Justinianeu exemplo tambm da completa separao entre direito e religio, muito embora, claro, razovel imaginar que as antigas ideias religiosas tenham sido de alguma forma absorvidas pelo ento nascente direito. Direito e religio, contudo, no mais se confundem e este cdigo j um exemplo dessa nova realidade. No obstante, tambm de se destacar que o imperador romano era tido como representante de Deus na Terra, permanecendo, pois, ainda alguns aspectos daquela antiga ligao. E esse ser justamente o mote para a conflituosa unio entre Igreja e Estado, engendrada no curso da Idade Mdia, e referendada pelas doutrinas filosfico-crists deste perodo. Tambm essas doutrinas deram a sua contribuio no mbito do direito, em especial a doutrina escolstica, na pessoa de So Toms, em virtude de sua teorizao acerca do direto natural. No em termos de grandes novidades, verdade, pois seu conceito de direito natural aproxima-se em muito dos at agora vistos. No obstante, a novidade que ele tentar subordinar o direito natural aos ditames divinos, de uma maneira bem mais explcita, ressaltada at, buscando, dessa forma, subordin-lo tambm aos preceitos da Igreja. A anlise destes termos, contudo, ser devidamente enfrentada no decorrer deste captulo. Antes, contudo, foroso que se fale algo a respeito do Cdigo de Justiniano.

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4.1 O Cdigo de Justiniano

Essa obra jurdica, levada a cabo pelo imperador Justiniano, no Imprio Romano do Oriente, nos anos de seu governo (527/565), composta por quatro livros: Cdigo, Digesto, Institutas e Novelas. Trata-se de uma espcie de coroamento e beijo da morte do direito romano. Ao mesmo tempo em que sintetiza todo o direito que lhe precede, prepara tambm as bases para o ento futuro direito moderno. Alm do que, segundo Venosa (2007, p. 48), sua grandeza r