ipsilon-20150116
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O pirómano
Michel Houellebecq, um acontecimento na rentrée
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2 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015
Ficha TécnicaDirectora Bárbara Reis
Editores Vasco Câmara,
Inês Nadais
Design Mark Porter,
Simon Esterson
Directora de arte Sónia Matos
Designers Ana Carvalho,
Carla Noronha, Mariana Soares
E-mail: [email protected]
Sumário6: Michel HouellebecqHistória de um fenómeno
12: Daniel MetcalfeDescobriu Angola
14: Wim VandekeybusO demónio interior
16: Alain PlatelNo princípio era a escuridão
17: Mónica Calletem casa nova
18: Teddy ThompsonO fi lho de Richard e Linda Thompson faz a catarse
Quando Lars andava na escola
O Córtex, Lars von Trier e a
Dinamarca – palavras-chave para
a 5ª edição do Festival de Curtas
Metragens, que se realiza no
Centro Cultural Olga Cadaval, em
Sintra.
O dia de abertura, a 12 de
Fevereiro (o festival encerra a
15), é dedicado a Lars von Trier,
com a exibição de dois trabalhos
de escola do cineasta
dinamarquês, produzidos
quando ainda aluno da Danish
Film School: Nocturne e Image of
a Relief. São, então, obras de
formação, realizadas no
momento, aliás, em que Lars
integrou o “Von” no seu nome, e
é legítimo que o espectador
queira encontrar nelas as origens
do que veio a conhecer depois –
obsessões, fobias, medos.
Nocturne, retrato de uma mulher
aterrorizada pela luz, foi
realizada quando Lars tinha 24
anos. Image of a Relief foi o
primeiro filme da escola a ter
distribuição comercial e é
considerado um ensaio para o
que seriam The Element of Crime,
Epidemic e Europa.
Após exibição dos filmes, Peter
Schepelern, professor associado
catedrático na Universidade de
Copenhaga onde Lars estudou
entre 1976-1979 (antes de se
matricular na Danish Film School),
falará sobre eles. E durante o
festival, aquele que é autor de
livros sobre a obra do cineasta (e
de artigos sobre o movimento
Dogma 95), fará uma palestra, o
que poderá saciar a curiosidade
sobre a vida e a obra de Lars.
Não fica por aqui a Dinamarca no
Córtex 2015. Uma nova secção,
Hemisfério, dedicada a uma
instituição cinematográfica
internacional, estreia-se
precisamente com a Escola de
Cinema da Dinamarca,
apresentando 5 curtas-
metragens, realizadas entre 2013
e 2014, por alunos. A
coordenadora internacional da
Danish Film School, Eizabeth
Rosen, estará em Sintra. E haverá
música, no Museu das Artes de
Sintra: de um lado, Mikkel
Solnado; de outro a violinista Lilia
Donkova e o acordeonista
Gonçalo Pescada, que
apresentarão o seu projecto
Symbiosis sobre imagens
projectadas de filmes de Carl
Theodor Dreyer.
O Córtex tem as suas habituais
sessões competitivas, nacional
(entre outras, curtas de Gabriel
Abrantes, Patrick Mendes,
Miguel Clara Vasconcelos) e
internacional, que serão
apreciados por um júri
composto pelos actores
Margarida Vila Nova, Maria de
Medeiros e Filipe Vargas, e por
Manuel Mozos e Pedro Filipe
Marques, realizadores. Pela
primeira vez, o Córtex
programa uma mostra,
competitiva, a pensar no
público infantil. Fá-lo em
associação com a MONSTRA -
Festival de Animação de Lisboa.
Flas
h
Os inícios de Lars von Trier na abertura do Córtex
O ano passado mostraram-nos
Throat Permission Cut, álbum de
estreia criado através da
compilação de sons gravados em
concerto e posteriormente
trabalhados em estúdio para criar
uma outra música.
Grupo com formação variável
(podem ser sexteto, podem ser dez
músicos em palco) capitaneado
por Jonathan Uliel Saldanha, tem Um combo misterioso
agenda de concerto tão rara
quanto intensos são os seus
concertos. Só pode ser portanto
uma boa notícia a de que
poderemos vê-los hoje, sexta-
feira, 16 de Janeiro, no Salão
Brazil, em Coimbra (22h30, com
actuação também de UUMRRK), e
amanhã, sábado, dia 17, no
Musicbox, em Lisboa (24h). Um
concerto no Porto, marcado para
18 de Janeiro no Maus Hábitos, foi
entretanto cancelado. A banda
anunciará brevemente nova data.
Os HHY & The Macumbas são um
combo misterioso: apresentam-se
em palco com máscaras e criam
música sem centro definido, quais
xamãs de vários tempos e
proveniências reunidos num
mesmo palco para, através de
Mário Lopes
HHY & The Macumbas: xamãs em Coimbra e Lisboa
partículas dub, sopros jazz
fantasmagóricos ou kraut-rock em
modo voodoo haitiano, nos
transportar para um outro lugar. Já
os viram o público do Outfest, do
Milhões de Festa, do Amplifest ou do
Sonar. Quem não os viu, melhor será
que aproveite a oportunidade agora
oferecida. A viagem promete ser
surpreendente e recompensadora.
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ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015 | 3
e com uma mão cheia de DJs e
músicos portugueses.
O local físico onde a coisa se
realiza, no dia 21 de Janeiro, é
secreto e apenas para convidados,
mas pode ser visto em todo o
apresentações
especiais a
partir de locais
secretos. Em Lisboa
serão três espaços – um
deles com curadoria dos
Buraka Som Sistema -
acolhendo uma mão cheia de
actuações ao vivo (Buraka,
Moullinex, Batida, Gala Drop, Paus,
Sequin, Jibóia ou a surpresa Mariza
com o seu Ensemble) e de DJs,
como Miguel Torga, Tiago, Trikk,
DJ Ride, Alex FX, IVVVO, Marie
Dior, Bison & Squareffekt ou Nigga
Fox. O acontecimento terá início
pelas 19h00 de dia 21 de Janeiro.
Boiler Room é uma comunidade global ligada para ver e ouvir os melhores DJs e músicos do mundo em apresentações especiais a partir de locais secretos
mundo, via streaming, na internet
(http://boilerroom.tv/live).
É esse o conceito Boiler Room,
uma espécie de comunidade global
ligada para ver e ouvir os melhores
DJs e músicos do mundo em
A terceira edição da experiência
Red Bull Music Academy takeover
– Boiler Room em Lisboa está
envolta de características
especiais, contando com três
espaços diferenciados de actuação
O irmão de Sherlock visto pelo escritor mais alto do mundoContinua a ser o único eleito três
vezes seguidas melhor jogador do
campeonato universitário de
basquetebol dos EUA, que chegou
a proibir durante vários anos os
afundanços por causa da
influência exercida pelo poste de
2,18 metros.
Kareem Abdul-Jabbar prolongou
depois o seu domínio no
desporto profissional: seis vezes
campeão da NBA e jogador mais
valioso da temporada, ainda é o
melhor marcador absoluto da
competição norte-americana,
graças a uma série de atributos
que incluíam o famoso skyhook,
um lançamento de gancho
indefensável.
Abdul-Jabbar, que abandonou o
nome de nascimento Lew
Alcindor quando se converteu ao
Islão, está visto, não foi um atleta
qualquer. Mas também não é o
típico ex-desportista. Actor
esporádico (um combate
memorável com Bruce Lee e a
participação em Aeroplano são os
papéis mais conhecidos),
argumentista e produtor de um
documentário bem recebido,
filantropo, autor regular de
artigos de opinião na Time,
embaixador cultural dos EUA,
mas também escritor de sucesso.
Agora, depois de alguns livros
não ficcionais ou infantis,
prepara-se para lançar o seu
primeiro romance, Mycroft
Holmes, um mistério policial, co-
escrito com Anna Waterhouse,
sobre o irmão – também genial
– de Sherlock Holmes.
“Percebi que poderia ser feito
algo mais com esta personagem
mais velha e inteligente ligada ao
governo britânico, numa altura
em que o Reino Unido era o país
mais poderoso do mundo”,
explicou Abdul-Jabbar,
que começou a ler as
histórias de Arthur
Conan Doyle na sua
época de estreia na
NBA, em 1969.
GEO
RGE
FREY
/ A
FP
apresentações
especiais a
partir de locais
secretos. Em Lisboa
serão três espaços – um
deles com curadoria dos
Buraka Som Sistema -
acolhendo uma mão cheia de
actuações ao vivo (Buraka,
Moullinex, Batida, Gala Drop, Paus,
Sequin, Jibóia ou a surpresa Mariza
com o seu Ensemble) e de DJs,
como Miguel Torga, Tiago, Trikk,
DJ Ride, Alex FX, IVVVO, Marie
Dior, Bison & Squareffekt ou Nigga
Fox. O acontecimento terá início
pelas 19h00 de dia 21 de Janeiro.
mundo em
na internet
ive).
r Room,
nidade global
os melhores
do em
prepara-se para lançar o seu
primeiro romance, Mycroft
Holmes, um mistério policial, co-
escrito com Anna Waterhouse,
sobre o irmão – também genial
– de Sherlock Holmes.
“Percebi que poderia ser feito
algo mais com esta personagem
mais velha e inteligente ligada ao
governo britânico, numa altura
em que o Reino Unido era o país
mais poderoso do mundo”,
explicou Abdul-Jabbar,
que começou a ler as
histórias de Arthur
Conan Doyle na sua
época de estreia na
NBA, em 1969.
GEO
RGE
FREY
/ A
FP
Kareem Abdul-Jabbar começou a ler as histórias de Arthur Conan
Doyle na sua época de
estreia na NBA, em 1969 Manuel Assunção
É já no fim do mês que começa
mais uma edição do Festival de
Angoulême, um dos mais
importantes eventos mundiais
dedicados à banda-desenhada,
mas esta não será uma edição
qualquer. É a edição que acontece
no mesmo mês em que mataram
Cabu, Wolinski, Charb e Tignous.
E por isso e pelo ataque ao jornal
satírico Charlie Hebdo em que
morreram 12 pessoas, entre as
quais os quatro importantes
desenhadores de imprensa e
outros quatro trabalhadores do
semanário, Angoulême criou o
prémio “Charlie da liberdade de
expressão”.
A 42ª edição arranca dia 29 e
prolonga-se até 1 de Fevereiro com
um cartaz desenhado por Bill
“Calvin e Hobbes” Waterson, que
deveria também presidir ao
evento depois de ter ganho no
ano passado o Grande Prémio do
festival mas que anunciou que
vai respeitar a sua tradição da
discrição e não estará presente.
Georges Wolinski, Grande Prémio
de Angoulême 2005, vai ser
recordado com Cabu, Wolinski e
Charb através do novo galardão,
criado dia 8 numa reunião de
urgência na sequência do ataque à
redacção do Charlie Hebdo.
O prémio, segundo o Le Monde,
deve ser entregue anualmente a
um desenhador de imprensa ou
de banda-desenhada que se tenha
visto impedido de exercer a sua
profissão em liberdade plena. E
Angoulême cria prémio Charlie da liberdade de expressão e lança-se à 42.ª edição
tem data de validade. “Este
prémio deve deixar de ser
atribuído no dia em que todos os
ilustradores do mundo se possam
expressar livremente”, segundo o
director-geral do festival Franck
Bondoux. Na cidade francesa,
haverá também tempo e espaço
para recordar o trabalho dos
desenhadores caídos. “A edição
de 2015 será tempo de memória,
de resistência, de debate sobre a
liberdade de expressão, e de
reagrupamento”, disse à AFP.
Plantu, célebre cartoonista do Le
Monde, vai criar o cenário para um
“concerto desenhado” de Areski
Belkacem que reunirá
desenhadores de todo o mundo.
Mesas redondas sobre a liberdade
de imprensa, as melhores capas
do Charlie Hebdo e concursos em
torno das criações dos
desenhadores mortos pelos
irmãos Chérif e Said Kouachi vão
marcar o 42.º Festival de
Angoulême, cuja cerimónia de
encerramento também
homenageará o jornal. Também
serão expostos os resultados –
centenas – do apelo lançado pelo
festival no Facebook por
ilustrações e trabalhos na esteira
do massacre de Paris.
A programação do festival não
foi alterada, apenas revista e
aumentada. Continuam previstas
as mostras dedicadas a Jack
Kirby, a Calvin & Hobbes, uma
monográfica do japonês Jirô
Taniguchi, um mergulho 3D
na obra de Matthias Picard
com Curious Jim (também em
foco na última edição do
AmadoraBD), uma exposição
dedicada às visões sobre os
bluesmen na BD, os cenários de
Fabien Nury, os 35 anos de
criação de Alex Barbier e vários
espaços e mostras para crianças.
Todos os anos passam por
Angoulême cerca de 200 mil
pessoas.
A edição do Charlie Hebdo saída na quarta-feira
Boiler Room em Lisboa com Mariza e Buraka
Joana Amaral Cardoso
SARA MATOS
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4 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015
Todos conhecemos pessoas do-
ces, indolentes, transparentes
ou que se fazem de simpáti-
cas, e que se revelam, sob o
verniz, heróis, tiranos, lou-
cos, sectários ou génios. So-
fremos um choque: como nos tínha-
mos enganado em relação à pessoa
que temos agora à nossa frente e que
está a anos-luz daquela que olháva-
mos ainda há instantes.
Michel Houellebecq é um choque
permanente. Não é possível ignorá-lo.
É o grande homem dos franceses e
da sua literatura, comparado a Bal-
zac, Zola ou Flaubert. É um choque
a sua omnipresença há 15 anos — a
densidade do seu pensamento, a for-
ça do seu estilo. Um choque, também,
a polémica que desencadeia de cada
vez que aparece, obrigando-nos a
questionar-nos.
E eis o mais recente choque: Sou-
mission, que fala da França, do islão,
de política, de vencedores e vencidos,
e que se dirige a uma França já esgo-
tada por 20 anos de debates e de in-
compreensões sobre o islão, a políti-
ca, os vencedores e os vencidos. O
livro será editado em Portugal neste
primeiro semestre pela Alfaguara,
com o título Submissão.
Antes de Submissão, havia Houelle-
becq. Um físico estranho. Uma voz
átona e hesitante. Um olhar de uma
intensidade desconcertante, gestos
suaves e desajeitados. E um passado
atípico para quem pretende ter assen-
to entre os grandes da literatura con-
temporânea.
Os seus primeiros anos são à ima-
gem das personagens que privilegia:
incertos, difusos, parecendo deslizar
entre os obstáculos da vida. Tem uma
data de nascimento oficial (1958) e
uma falsa (1956). Foi a mãe que, pres-
sentindo-lhe o génio, o envelheceu
dois anos para o inscrever na escola,
ou foi ele que, para rejuvenescer, a
falsificou? Há controvérsia, logo mis-
tério. Deverá o seu nome ao acaso de
um passeio ao Monte Saint-Michel. A
família parece disfuncional, não mui-
to atenta a ele. A mãe publicará, de
resto, um livro disparatado onde res-
ponde violentamente ao filho (que se
inspirou nela para diversas persona-
gens femininas).
Quantas estradas secundárias terá
de percorrer antes de nascer verda-
deiramente para o que será a sua vida:
a escrita? A sua superioridade intelec-
tual leva-o a ingressar num curso de
preparação para as Grandes Écoles
d’Ingénieur, onde se selecciona, ex-
plora, tria e forma a nata da nata da
elite francesa. Entra numa célebre es-
cola de Agronomia — tão longe do es-
critor. Afasta-se ainda um pouco mais
ao trabalhar em informática, durante
13 anos, para diversas empresas e ins-
tituições. Ao longo desse tempo, ar-
mazena, sem dúvida, uma matéria em
bruto inestimável aonde vai buscar
mais tarde a sua panóplia de persona-
gens incrivelmente reais, esculpidas
no barro da fabulosa mediocridade do
francês médio. E, sobretudo, vive, so-
brevive, ganha a vida.
Claro que publicou, de vez em quan-
do, revistas e poemas. Gosta de ler,
ama as mulheres, fuma e adora beber.
As grandes bebedeiras de então ainda
não o marcaram. Os seus grandes
olhos azuis ora espantados, ora fugi-
dios, que de repente se fixam intensa-
mente, iluminam um rosto juvenil
com uns lábios finos de fino observa-
dor, emoldurado por cabelos que já
vão rareando, bem penteados e de
uma cor indecisa.
Não há boa literatura com bons sentimentosÉ raro que se faça boa literatura com
bons sentimentos. Tragédias, poli-
ciais, poesia, ensaio ou romance: to-
dos os géneros carregam a sua massa
de sofrimento, mal-estar, dramas a
exorcizar. E Houellebecq é um mestre
na arte de fazer zoom sobre o quoti-
diano de personagens perdidas e algo
desinteressantes para, logo de segui-
da e num movimento inverso, ofere-
cer um panorama particular do mun-
do e uma relação entre factos aparen-
temente insignificantes.
Em 1994 publica Extensão do Domí-
nio da Luta. O romance é marcante,
mas não ultrapassa suficientemente a
norma nas suas tomadas de posição
para o transformar numa estrela. Ne-
le descobrimos, no entanto, os alicer-
ces das obsessões que marcarão os
romances seguintes, bem como o es-
tilo único que contribuirá para tornar
a sua escrita tão singular. Narra a exis-
tência obscura de um solteirão neu-
rasténico. De uma banalidade atroz, a
personagem não deixa de ter parecen-
ças com Houellebecq: informático,
fortemente obcecado pelo sexo, mer-
gulhado numa vida solitária enquanto,
à sua volta, se agita uma sociedade de
consumo obscena que engendra um
combate financeiro e sexual implacá-
vel entre classes e indivíduos.
O virtuosismo de Houellebecq é no-
tável, nomeadamente nas suas litanias
descritivas de factos insignificantes,
do ordinário mais sórdido ou de coisas
aparentemente enfadonhas. Instru-
ções de electrodomésticos, sociologia
de uma empresa, descrição pelo rótu-
lo de um prato ultracongelado, fun-
cionamento do Minitel, relatório de-
talhado dos ruídos produzidos por
uma velha caldeira. Irá mesmo des-
crever com extremo pormenor uma
espécie de mosca em O Mapa e o Ter-
ritório, e aproveitará para agradecer
à Wikipédia por tê-lo ajudado nas suas
diligências! Houellebecq sabe tornar
fascinante um aspirador.
Mas é em 1998, com As Partículas
Elementares, que as portas da forta-
leza dos media e da celebridade tóxi-
ca vão estilhaçar-se. Entra no circo,
ele, o imodesto, tão absolutamente
seguro da sua superioridade. Bebe
com volúpia o cálice da agitação e das
primeiras controvérsias. E o falso tí-
mido explode nos ecrãs.
As Partículas Elementares é uma nar-
rativa prolífica e multiforme. Trata-se
de um simples romance? De um en-
saio? De um estudo biológico ou so-
ciológico? De um manifesto político?
Digamos que é uma narrativa quase
clínica, isto é, sem projecção emocio-
nal do autor nos factos que relata da
vida de dois meios-irmãos, um dos
Não há boa literaturacom bons sentimentos
É alguém que existe de forma muito forte, tem muito talento. Tem a capacidade de identificar aquilo que a sociedade precisa que lhe digam de mais abjecto, o discurso que a sociedade precisa que lhe façam”Jean Birnbaum, jornalista
PHIL
IPPE
CA
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/SYG
MA
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RBIS
escritor geniaSeguindo o rasto de um
de pena envenenada
![Page 5: Ipsilon-20150116](https://reader033.vdocuments.mx/reader033/viewer/2022051000/55cf9360550346f57b9d6307/html5/thumbnails/5.jpg)
ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015 | 5
É o grande homem dos franceses e da sua literatura, comparado a Balzac, Zola ou Flaubert. É um choque a sua omnipresença há 15 anos — a densidade do seu pensamento, a força do seu estilo. Um choque, também, a polémica que desencadeia. Eis o mais recente: Submissão, que fala da França, do islão, de política, de vencedores e vencidos.Jan Le Bris de Kerneal,
![Page 6: Ipsilon-20150116](https://reader033.vdocuments.mx/reader033/viewer/2022051000/55cf9360550346f57b9d6307/html5/thumbnails/6.jpg)
6 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015
em explicações técnicas exageradas,
em cursos de física especializados
que até um engenheiro-cromo teria
dificuldade em seguir. Evidentemen-
te, rejubila quando, inesperadamen-
te, se torna crítico literário e disseca
um autor célebre com a desenvoltu-
ra erudita do especialista. Mas con-
segue dar uma espantosa unidade
aos seus livros com gavetas que não
param de se abrir. E cada vez se quer
mais simples. No programa Boome-
rang da France Inter, diz, a 7 de Ja-
neiro de 2015: “Não quero de manei-
ra nenhuma que se veja como as
coisas são escritas. Isso torna-se ob-
sessivo. Tento minimizar os efeitos,
enfim, não fazer efeitos, ser muito
fluido, muito fácil de ler.”
O génio do escritor está também
em ter sabido escolher temas que
parecem improváveis, nocivos, frac-
turantes, com a ideia de federar, de
ser acessível ou consensual. Fez,
portanto, sucessos comerciais e crí-
ticos falhados.
O fenómeno é também o homemÉ imodesto ao ponto da vaidade. É
incontável o número de declarações
em que se admira a si mesmo e elogia
o seu talento. Representa, aliás, o seu
próprio papel em 2014, no imprová-
vel telefilme L’enlèvement de Michel
Houellebecq. É um fracasso, o que não
o impede de declarar: “Continua a
surpreender-me muito que me con-
siderem um actor. Embora o resulta-
do não seja mau.” Tanto que repro-
duz a experiência com a estreia, no
mesmo ano, do improvável Near De-
ath Experience, no qual é... o único
actor. Narcisismo.
Houellebecq é também um físico
que se parece com uma personagem
de pesadelo saída de uma tela de Hie-
ronymus Bosch, com uma criatura
de BD americana, com o assassino
em série e o imperador Palpatine da
Guerra das Estrelas. Felizmente, pos-
sui uma qualidade maior: o humor e
a autocrítica. Deixemo-lo falar de si
quais, Michel, possui muitos pontos
em comum com Houellebecq. No li-
vro desenvolvem-se de novo as suas
obsessões breteastonellisianas: o se-
xo, necessariamente orgiástico, ob-
sessivo, cru, um pouco perverso, no
limiar da pedofilia; a mulher, neces-
sariamente objecto, consolidado com
o plástico da cirurgia, atraída pelo
dinheiro dos machos e também pelo
seu sexo, claro. O diálogo impossível
entre as pulsões permanentes do ma-
cho e as aspirações da fêmea, causa
de frustração sexual, inibições e inap-
tidões sociais.
Para além destes temas, o roman-
cista desfia outras linhas narrativas:
a doença, o suicídio, o divórcio, o
abandono, a crise dos 40, a clona-
gem, para concluir com um epílogo
que gela: a personagem de Michel,
geneticista, vê o seu trabalho resultar,
após a sua morte, em 2029, na cria-
ção de uma raça de sobre-humanos
desumanizados, liberta das angústias
com que se debatiam as personagens
do livro. Os homens desaparecem da
terra, dando lugar a super-homens
estéreis e eternos, podendo assim
consagrar-se, sem consequências, ao
perpétuo prazer sexual.
Não há fenómenos sem polémicas e sem estiloEm 1998, torna-se, portanto, um fe-
nómeno. Ora, poderá alguém reivin-
dicar o título de “fenómeno” sem
polémicas? Em França, certamente
que não. Escandalosamente porno-
gráfico, lamentavelmente misógino,
forçosamente reaccionário: está sob
fogo, mas o falso simpático, o doce,
o indolente distende-se como uma
mola e transforma-se em demónio
para escapar aos detractores. É astu-
to, é jogador. Borrifa-se nas críticas,
multiplicando as teorias futuristas
(modificar a espécie humana, recriar
o matriarcado, readquirir sentido
através da religião), desmultiplicando
as suas obediências: um dia, diz-se
comunista; no dia seguinte, amigo
dos católicos tradicionalistas anti-
aborto, apologista da sociedade do
consumo ou, pelo contrário, em bus-
ca do misticismo laico.
O mundo da edição dava-o como
grande vencedor do Prémio Gon-
court, mas nada. A decepção será tão
amarga quanto o homem é orgulho-
so e ciente do seu valor.
Em 2000, tendo enriquecido,
expatria-se na Irlanda, terra apazi-
guante para todos os tipos de pro-
blemas de dinheiro. Ei-lo exilado
fiscal, o grande escritor que, não sa-
tisfeito em pôr a França a ferro e
fogo com a sua mania de a questio-
nar e de a voltar a ensinar a ler, de-
sertou para o lado dos ingleses, o
traidor, para aí esconder a sua for-
tuna. Nova tempestade, novo assal-
to da cavalaria político-mediática.
Desta vez, tentará aliviar as tensões,
regressando ao país em 2012.
Mas voltemos atrás: ficámos no du-
che frio que se abate sobre Houelle-
becq quando falha o Goncourt em
1998. Seis anos depois, ei-lo de novo.
A Possibilidade de uma Ilha é publica-
do em 2005. Os temas caros são no-
vamente convocados, de forma es-
pantosa. Enquanto seguimos a vida
de Daniel1, comediante de sucesso
no século XX, o romance intercala a
história das vidas de Daniel2 e Daniel3
até Daniel25, clones que vivem vários
séculos depois do primeiro Daniel.
Este comediante cínico, mestre dos
mecanismos do humor e do sucesso
mediático, não deixa de lembrar um
Dieudonné, controversa vedeta do
humorismo que conjuga perigosa-
mente a provocação anti-semita, o
conflito israelo-palestiniano e a his-
tória colonial e africana de França.
Como sempre em Houellebecq, o
desastre sentimental é um tema
maior, bem como a inexorável que-
da na depressão dos seus heróis. Não
se esquece o sexo, o incesto, o dese-
jo pedófilo, as seitas e a espécie hu-
mana melhorada pela manipulação
genética e pela clonagem. A Possibi-
lidade de uma Ilha é o desejo de ou-
tro lugar, mal endémico da nossa
sociedade contemporânea. Um ou-
tro lugar que Daniel1 não alcançará
ou, pelo menos, não em vida, uma
vez que se suicida no fim, dando as-
sim vida aos seus clones, que her-
dam o relato escrito da vida de Da-
niel1 e a completam, um após outro,
para ir melhorando a linhagem. O
livro é um calhamaço: 500 páginas.
Que deixa o leitor perturbado, tão
denso e ambicioso é o seu objectivo.
Este trabalho notável merecerá o
Prémio Interallié. Gaita, ainda não
é o Goncourt.
Como é que consegue manter os
seus numerosos leitores fascinados
de fio a pavio pela sua obra magistral?
Porque o seu público vai bem além
dos círculos intelectuais rodados no
exercício da leitura de obras impo-
nentes. O escritor é fracturante e exi-
gente, mas popular. É lido por todo
o lado. E se é lido por todo o lado e
por toda a gente, e com uma tal avi-
dez, é porque tem estilo.
Jean Birnbaum, jornalista no Le
Monde e editor do suplemento literá-
rio do diário francês, admite ao Ípsi-
lon: “É alguém que existe de forma
muito forte, tem muito talento. Tem
a capacidade de identificar aquilo
que a sociedade precisa que lhe di-
gam de mais abjecto, o discurso que
a sociedade precisa que lhe façam.”
O homem e o estilo são reconhe-
cíveis por todos e, além disso, asse-
melham-se. Clínicos, fluidos, neu-
tros. Economia de palavras. Ausência
de efeitos. Linguagem clara. Prosódia
sem floreios. Claro que tem um pra-
zer indissimulado quando se lança
Não há fenómenos sem polémicas e sem estilo
O fenómeno é também o homem
O dia do lançamento de Submissão em França foi o dia da capa da Charlie Hebdo satirizando Houellebecq e também o do ataque terrorista contra a revista que conduziria ao balanço dramático de 17 mortos
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![Page 7: Ipsilon-20150116](https://reader033.vdocuments.mx/reader033/viewer/2022051000/55cf9360550346f57b9d6307/html5/thumbnails/7.jpg)
ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015 | 7
France Orange Mécanique (o que lhe
valeu ser classificado como de extre-
ma-direita por certos editorialistas).
A tendência na Ring é crítica em re-
lação ao islão, pró-Bush e anti-siste-
ma, com posições de direita, portan-
to. E Houellebecq afirma que “a Ring
é o melhor site de informação”. Su-
per-inapropriado... E porque não?
O homem é inapropriado em todos
os aspectos. As suas relações com
personalidades ambíguas já não sur-
preendem muita gente.
Podem escrever-se coisas más com maus sentimentosDissemos que não se faz boa litera-
tura com bons sentimentos. Mas,
no momento em que é lançado Sub-
missão, a ideia de que se podem
escrever coisas más com maus sen-
timentos impõe-se. Quase ninguém
ainda leu o livro que eclipsa todos
os outros nesta rentrée (como fre-
quentemente acontece com Houel-
lebecq), mas o fragor surdo da po-
lémica já se faz ouvir ao longe. Já
um mês antes se levantavam as pri-
meiras vozes a denunciar um livro
que qualificam de râncido, nausea-
bundo, islamofóbico, assustador
— em suma, perigoso e indigno de
um grande escritor.
O primeiro problema é que Sub-
missão vem colocar-se no cimo de
uma pilha de livros que batem na
mesma corda: a do declínio francês
face ao perigo muçulmano. Há 15
anos que esta ideia regressa inaba-
lavelmente ao primeiro plano. O úl-
timo escândalo até à data é o livro
do editorialista Eric Zemmour, mui-
to famoso em França, intervindo na
rádio, na TV, na imprensa e nos seus
livros. Embora se considere eterna-
mente censurado pelos bem-pensan-
tes do “sistema”, vemo-lo por todo
o lado, de manhã à noite. Zemmour
publicou Le Suicide Français. Vendas
recorde para este livro que traça um
retrato arrasador da França e apon-
ta sem hesitar os responsáveis pelo
declínio: os imigrantes, os homosse-
xuais, as mulheres (ou, pelo menos,
as feministas) e, depois, a esquerda,
e também, um pouco, a direita, to-
dos os políticos e, claro, os jornalis-
tas e os censores — em suma, tudo o
que não é branco, sexagenário, ca-
tólico e heterossexual.
Temos, então, um Houellebecq
que cavalga esta onda salobra da is-
lamização da França com o cenário
da chegada ao poder de um Presi-
dente da República muçulmano,
chamado Mohammed Ben Abbas, e
a poligamia, e a exclusão das mulhe-
res do mundo do trabalho, e o esta-
belecimento de uma sharia light —
tudo isto sob o olhar desolado de
franceses ultrapassados e apáticos.
E tudo isto é muito. Cá estamos, é o
choque de Submissão. Coloca-se en-
tão a questão da responsabilidade
das elites e dos intelectuais. Porque,
se nos apraz designar como causa
dos nossos males responsáveis saí-
dos do povo (imigrantes, professo-
res, minorias), porque não interro-
garmo-nos sobre a responsabilidade
dos responsáveis pelo país, os líde-
res de opinião, as elites: os políticos,
os media e os intelectuais.
Podem escrever-se coisas más com maussentimentos
Entre os que desfilaram no domingo, em Paris, com a sua boa consciência, há quem tenha sido dos primeiros a dizer que a Charlie Hebdo estava a pedi-las. O escritor não tem de estar preocupado com uma parte da população (...) A literatura é um território sagrado, temos o direito de forçar a nota. Temos direito ao mau gosto e à blasfémia.”Emmanuel Pierrat, advogado
próprio. Eis um extracto de O Mapa
e o Território, onde coloca em cena
uma miríade de personagens reais
do mundo das artes, incluindo — e
sobretudo — ele mesmo:
“Reconhecerá facilmente a casa, é o
relvado mais desleixado das redonde-
zas”, dissera-lhe Houellebecq. ‘E talvez
de toda a Irlanda’, acrescentara.”
“Bateu pelo menos dois minutos à por-
ta, sob chuva forte, antes de Houellebe-
cq abrir. O autor d’As Partículas Ele-
mentares envergava um pijama com
riscas cinzentas que o fazia parecer-se
vagamente com um presidiário de uma
telenovela; o cabelo estava despenteado
e sujo, o rosto vermelho, quase afogue-
ado, e cheirava um pouco mal. A inca-
pacidade de fazer a higiene pessoal é
um dos sinais mais seguros de um esta-
do depressivo, recorda Jed.”
“Com efeito, restos de tostas e de fatias
de mortadela juncavam os lençóis,
manchados de vinho e queimados, aqui
e ali, por cigarros.? “Voltei a recair...
Voltei a recair completamente ao nível
da charcutaria”, prossegue Houellebe-
cq sombriamente. Realmente, a mesa
estava repleta de embalagens de chou-
riço, de mortadela, de salame. Estende
a Jed um saca-rolhas e, logo que a gar-
rafa é aberta, engole um primeiro copo
de um só trago, sem cheirar o bouquet
do vinho, sem sequer se entregar a um
simulacro de degustação. Jed tira uma
dúzia de grandes planos, tentando va-
riar os ângulos.”
Houellebecq, o homem, até então
incompleto, acede à completude.
Entra para o panteão, conquistando
o seu graal, o seu Goncourt, em 2010,
com O Mapa e o Território. O seu quin-
to romance. O Goncourt é atribuído
no muito chique e mítico Restauran-
te Drouant, em Paris. Nesse dia, a
agitação em torno do frágil Houelle-
becq é considerável. Ei-lo cercado
pelas objectivas, sacudido como uma
palha, um pouco esgazeado e perdi-
do, mas exultante. Acaba de entrar
na História.
Na vida, em torno de Houellebecq
gravita a galáxia Houellebecq. Já não
está tão solitário, o escritor goncour-
tizado: esquerdistas intelectuais de
aparência igualmente desleixada e
suja, mas também celebridades, es-
critores famosos e outras persona-
gens mais controversas ou dificil-
mente classificáveis de que a França
possui o segredo. Detenhamo-nos
um instante num extraordinário jan-
tar. A 14 de Novembro de 2010, dia
de remodelação ministerial, o pre-
sidente Nicolas Sarkozy e a sua mu-
lher, Carla Bruni, convidam, em
honra de Houellebecq, algumas per-
sonalidades das artes e dos media.
Por seu lado, Houellebecq convocou
a editora-executiva da Playboy, que
lhe inspirou uma personagem em A
Possibilidade de Uma Ilha. Inapro-
priado. Convidou também o enig-
mático e muito direitista David Ser-
ra, que dirige uma revista on-line,
Ring, e publica escritores como Lau-
rent Obertone, autor de uma obra
sobre a delinquência intitulada La
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8 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015
Na sua primeira edição
deste ano, o Babelia,
suplemento literário do
jornal espanhol El País,
anunciava na capa: “O
ensaio volta a estar em
primeiro plano”. Como os leitores
querem “dar sentido a um mundo
desconcertante”, procuram
“chaves” na filosofia, na política e
na ciência.
Recentemente, o editor Manuel
Alberto Valente defendeu o
mesmo. “Neste momento
assistimos cá, como lá fora, a uma
certa mudança no paradigma
editorial e a uma maior atenção
dos leitores à não-ficção do que
havia até aqui”, disse na sessão de
apresentação das novidades do
grupo Porto Editora. “Vejam o
êxito que está a ter um livro difícil
como o é O Capital no Século XXI,
de Thomas Piketty, que vai com
quase dez mil exemplares
vendidos só em Portugal, o que
para um livro daqueles é notável”.
Quando se olha para o que vai
ser publicado em Portugal nos
A escolha, por Houellebecq, deste
tema candente que esgota os france-
ses há 15 anos pode ser considerada
unicamente artística? Houellebecq é
demasiado sensível ao ar do tempo
e ao jogo mediático para ignorar a
onda de indignação e a ressaca de
aprovação que se vão seguir. Teve de
prever e desejar o (bad) buzz. Aliás,
no dia do lançamento do livro — 7 de
Janeiro —, aos microfones da Radio
France Inter, o crítico Augustin Tra-
penard leu uma passagem de Submis-
são em que Houellebecq fala do gos-
to do escritor Huysmans pela discór-
dia. O jornalista lê o que Houellebecq
escreveu: “Huysmans tem, antes do
mais, necessidade de causar escân-
dalo, de chocar o burguês, naquilo
que se parece bastante com um plano
de carreira.”
“– Quer dizer que isso se aplica a
mim?”, pergunta Michel Houellebe-
cq.
“– Estou a colocar-lhe a questão.
Você também choca o burguês”, res-
ponde Trapenard.
“– OK, aparentemente, sim.”
“– Trata-se de um plano de carrei-
ra?”
“- Hum... enfim, sim”, admite Hou-
ellebecq.
“– Ah, uma cacha, o plano de car-
reira de Michel Houellebecq: chocar
o burguês.
“- Não mais do que Huysmans, mas
também não menos.”
É claro que ninguém sonha asso-
ciar Houellebecq aos últimos e trági-
cos acontecimentos em França. Cro-
nologicamente, é impossível. Embo-
ra tenha pronunciado estas frases
cheias de nuances em 2001, na revis-
ta Lire: “A religião mais estúpida é,
apesar de tudo, o islão. Quando le-
mos o Corão, ficamos abismados.
abismados! (...). O islão é uma religião
perigosa, e isto desde que apareceu.
Felizmente, está condenado. Para já,
porque Deus não existe e, mesmo
que sejamos estúpidos, acabamos
por perceber isso. A longo prazo, a
verdade triunfa. Depois, o islão está
minado internamente pelo capitalis-
mo. O que mais podemos desejar é
que triunfe rapidamente. O materia-
lismo é um mal menor. Os seus valo-
res são desprezíveis mas, apesar de
tudo, menos destrutivos, menos cru-
éis do que os do islão.”
É nessa altura que o advogado pa-
risiense Emmanuel Pierrat encontra
Houellebecq: “Michel Houellebecq
tinha recusado o advogado da edito-
ra Flammarion, que queria que se
fosse pedir desculpa publicamente,
se possível, diante da Grande Mes-
quita de Paris. Ora, Houellebecq que-
ria defender a sua liberdade de ex-
pressão e explicar-se. Procurou-me
e falámos todos os dias durante esse
Verão. Veja como ele é: não pode res-
ponder a uma pergunta sem fazer
uma longa pausa e inalar profunda-
mente o fumo de um cigarro. No tri-
bunal, isso era impensável. Portanto,
desabituei-o à força de adesivos e
treinei-o para responder com voz for-
te e de forma clara e rápida. Foi uma
loucura. Tínhamos contra nós o islão
francês, a Liga Islâmica Mundial (um
órgão da Arábia Saudita), a Federação
Nacional dos Muçulmanos em Fran-
ça, as grandes mesquitas de Paris e
Lyon, e a Liga dos Direitos do Ho-
mem, que o acusava de racismo. Du-
rante um ano elaborámos uma lista
de intelectuais que chamámos a
apoiá-lo. Foi a debandada geral. Aca-
bámos com cinco testemunhas, entre
as quais o escritor Philippe Sollers e
Fernando Arrabal, que fora persegui-
do sob a ditadura de Franco por blas-
femar contra Cristo. Depois, era a
indignação de jornalistas do mundo
inteiro. Tínhamos o mundo intelec-
tual contra nós ou à distância. Ti-
nham acontecido os atentados do 11
de Setembro (as vendas do livro Pla-
taforma caíram a pique). E depois,
na altura do julgamento, houve outro
atentado em Bali, contra uma disco-
teca. Ora esse era exactamente o ce-
nário que Houellebecq descrevia em
Plataforma. Pela minha parte, decidi
invocar o ‘direito à blasfémia’. A au-
diência durou nove horas, a tensão
era muita. Mas senti que a sala, a pou-
co e pouco, reflectia. No fim do dia,
saímos do tribunal: tínhamos dado a
volta ao assunto, Houellebecq tinha
razão. Como por magia, os apoios
que nunca tínhamos conseguido de-
sataram a telefonar: ‘Já agora, lamen-
to não ter estado presente, mas se
precisares...’”
Jean Birnbaum, o chefe de redac-
ção do Le Monde des Livres, mostrou-
se severo no site do Monde.fr sobre
Submissão. “Um livro que suscita a
náusea, a revolta.” Confirma-nos ao
telefone o seu ponto de vista, simul-
taneamente intransigente em relação
ao aspecto puramente estilístico, mas
igualmente em relação ao conteúdo:
“Do ponto de vista literário, este livro
não é um acontecimento. Somos mui-
tos a dizê-lo: imita os seus imitadores,
é bastante preguiçoso na sua cons-
trução, tem facilidades. Sente-se que
ele pega nos mesmos truques, em
temas que antes tratava com virtuo-
sismo mas desta vez com um tom ‘já
conhecem esta cantiga’.”
E sobre a noção de responsabilida-
de dos autores: devemos considerá-
los puros escritores ou eles são outra
coisa? “Não se pode exigir a um es-
critor que seja moderado ou pruden-
te”, prossegue. “Mas como dizia Sar-
tre: ‘As palavras são armas carrega-
das’. É preciso ter mesmo curta
memória para não se ser reenviado
a períodos muito obscuros da nossa
História quando se lê em Submissão
sobre a cobardia, sobre a pertença
de todas as personagens a um grupo
religioso por puro oportunismo, co-
mo isco para o dinheiro e para o sexo.
Nunca por espiritualidade. Não há
ninguém no livro que se converta ao
islão por convicção. É incrível, Michel
Houellebecq joga tudo no facto de
que haverá um público amnésico,
bastante desinvolto ideologicamente
para se sair com o argumento estú-
pido ‘oh, afinal de contas não é mais
do que um romance’. Houellebecq
sabe muito bem quais as consequên-
cias políticas da linguagem e da lite-
ratura. Imagine-se o que um jovem
da cultura muçulmana sente perante
isto, é de chorar.”
Consequências do ruído mediáti-
co anti-árabe: à força de repetir, con-
tribui para instalar uma atmosfera
que permite validar uma desconfian-
ça generalizada em relação aos
Para melhor sUm ano de apostas na não-fi cção
para os leitores que querem interpretar
a actualidade. Também um ano de
literatura polémica. Por Isabel Coutinho
FOTO DE ARQUIVO DE SVETLANA ALEXIEVITCH
próximos meses, essa tendência
parece ter sido levada em conta.
Na editora Gradiva, até ao final do
ano, ficará praticamente
concluída a recolha e a edição de
toda obra publicada do académico
Eduardo Lourenço e que estava
dispersa. Começa com Do Brasil:
Fascínio e Miragem este mês; Sobre
a Pintura em Março; Salazar como
Questão em Maio; Requiem por
Alguns Vivos em Julho; O Cinema
como Mitologia Cultural em
Setembro; Estudos Camonianos
(título provisório) em Novembro.
Também entre os lançamentos
marcantes dos próximos meses,
ainda sem título em português,
está aquele que foi considerado o
livro estrangeiro mais importante
publicado em França em 2013,
obtendo o Prémio Medicis para
livro estrangeiro: La Fin de
L’Homme Rouge, da escritora e
jornalista Svetlana Alexievitch,
que no ano passado apareceu
como forte candidata ao Nobel.
Está a ser traduzido do russo pela
Porto Editora, que o publicará em
Abril. “A escritora é um fruto da
situação criada com a Perestroika
e com a queda do império
soviético. Ela é uma russa, na
verdade nascida na Ucrânia e de
família bielorussa. Este livro é o
retrato do homem soviético antes
e depois da Perestroika, conta-nos
como era a vida quotidiana de um
cidadão soviético antes da
Perestroika e o que passou a ser
depois”, diz o editor. Na Relógio
D’Água, em Fevereiro, será
publicado O Que Quer a Europa?,
de Slavoj Zizek e de Srecko Horvat,
com prefácio de Alexis Tsipras.
De um dos comentadores
económicos mais influentes, o
editor do Financial Times Martin
Wolf, ver-se-á no Clube do Autor
The shift and the schocks, livro
sobre aquilo que aprendemos — e
ainda temos de aprender — com a
crise. E na Bertrand, este mês,
sairá A Ética das Finanças, de
Robert J. Shiller, Nobel da
Economia em 2013, visão analítica
do sistema financeiro e de como
este deve funcionar. Também os
autores de Freakonomics e
Superfreakonomics, Steven Levitt e
Stephen Dubner, estão de volta
com Pense como um Freak, na
Presença.
Um livro “híbrido” da espanhola
Rosa Montero, escrito depois da
Svetlana AlexievitchLa Fin de L’Homme Rouge, da escritora russa que no ano passado apareceu como forte candidata ao Nobel, sai em Abril
![Page 9: Ipsilon-20150116](https://reader033.vdocuments.mx/reader033/viewer/2022051000/55cf9360550346f57b9d6307/html5/thumbnails/9.jpg)
ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015 | 9
r se entender o mundo
Karl Ove KnausgårdO segundo volume de A Minha Luta do escritor norueguês que é dos mais recentes “fenómenos” da literatura nórdica sairá em Maio
ANDRE-LOEYNING
morte com cancro do
companheiro com quem a
escritora viveu 21 anos e inspirado
no diário que Marie Curie
escreveu depois da morte do
marido, A Ridícula ideia de não
voltar e ver-te, sai este mês na
Porto Editora. Começa com a
frase: “Como no he tenido hijos, lo
más importante que me ha sucedido
en la vida son mis muertos”. Em
Maio, na mesma editora, vai ser
publicado 1889, do jornalista e
escritor brasileiro Laurentino
Gomes, que encerra a sua
premiadíssima trilogia e que
recebeu o Prémio Jabuti para o
Melhor Livro de Não-ficção 2014.
O quinto volume da História de
Portugal — Os Filipes, de António
Borges Coelho, sairá em Maio na
Caminho; para Setembro ou
Outubro, a editora prevê Diários
da Prisão, de Luandino Vieira.
Em ano de centenário da
Orpheu, haverá uma programação
na Assírio&Alvim com forte
presença dos modernistas; na
Colecção Pessoa, dirigida por
Jerónimo Pizarro na Tinta-da-
China, sairá em Março 1915, o Ano
do Orpheu — edição fac-similada.
As vidas delesUma biografia de Agostinho da
Silva (1906-1994), O Estranhíssimo
Colosso, realizada pelo académico
António Cândido Franco, é
esperada na Quetzal em Fevereiro.
E na Planeta, em Abril, será
contada a história do
narcotraficante Pablo Escobar
pelo seu filho, em Meu Pai, de Juan
Pablo Escobar. No mesmo mês, a
mesma editora publicará a
autobiografia do actor que se
tornou uma lenda dos Monty
Python: Então, de qualquer
maneira..., de John Cleese.
Na Colecção de Viagens dirigida
por Carlos Vaz Marques na Tinta-
da-China, serão lançados Era Uma
Vez em Goa, de Paulo Varela
Gomes e o clássico Viagem à Volta
do Meu Quarto, de Xavier de
Maistre. Em Setembro, na
Antígona, sairá La Nebbiosa (título
original), do guião-romance de
Pier Paolo Pasolini que estava
inédito na sua versão integral. “Do
guião inicial, repleto de
referências políticas e
sociológicas, (quase) nada ficou,
nem mesmo o título, no filme
realizado por Pino Serpi e Gian
Rocco e proibido a menores de 18
anos, exibido numa única sala de
Milão”, segundo o editor.
Deu polémicaEntre os lançamentos mais
importantes deste primeiro
semestre está Submissão, o
romance de Michel Houellebecq a
publicar pela Alfaguara. A
colectânea de contos da autora
duas vezes distinguida com o Man
Booker Prize, Hilary Mantel, e que
também causou polémica no
Reino Unido, O Assassinato de
Margaret Thatcher, sairá em Março
na Jacarandá. E o mais recente
romance de Martin Amis, The Zone
of Interest, abordagem satírica dos
campos de concentração, será
publicado pela Quetzal.
Muitas obras premiadas
chegarão às livrarias portuguesas.
Os mais recentes livros do Nobel
da Literatura 2014, Patrick
Modiano, L’Herbe des nuits e Pour
que tu ne te perdes pas dans le
quartier, são lançados pela Porto
Editora. A obra que recebeu o
Man Booker Prize 2014, A Senda
Estreita do Norte Profundo, de
Richard Flanagan, está prevista
para Fevereiro na Relógio D’Água.
O Prémio Femina 2013, A Estação
da Sombra, de Léonora Miano,
sairá na Antigona em Abril. O
prémio Alfaguara 2014, O mundo
de fora, de Jorge Franco, e Así
empieza lo malo, o novo romance
de Javier Márias, considerado
pelos críticos do Babelia como a
obra mais importante publicada
em Espanha no ano passado,
sairão na Alfaguara.
O segundo volume de A Minha
Luta, de Karl Ove Knausgård: O
Homem Enamorado, vai ser
lançado pela Relógio D’Água em
Maio, e a Sextante termina a
publicação da saga de Edward St
Aubyn com o quinto volume, Por
Fim, em Abril.
Na Quetzal sairá Cifra, do chinês
Mai Jia. uma das apostas do ano.
Na Gradiva esperam-se Ian
McEwan (The Children Act, Março),
Kazuo Ishiguro (The Burried Giant,
Abril), Peter Carey (Amnésia,
Agosto) e Umberto Eco (Número
Zero, Maio). Na Marcador, ainda
sem título em português, sairão
Imperial Bedrooms, de Bret Easton
Ellis, e Beautiful You, de Chuck
romances de João Tordo, bem
como um romance e uma nova
enciclopédia da estória universal
de Afonso Cruz (na Alfaguara).
Novos livros de Pedro Vieira
(Quetzal), Jorge Reis-Sá (Guerra &
Paz), dos prémios LeYa João
Ricardo Pedro (D. Quixote) e Nuno
Camarneiro (Se Eu Fosse Chão, D.
Quixote) e um novo romance de
Ana Margarida de Carvalho,
Grande Prémio de Romance e
Novela APE, na Teorema.
Em Outubro, publicar-se-á na D.
Quixote a Antologia Poética de
Adonis, com tradução e
organização de Nuno Júdice. Em
Fevereiro, na Relógio D’Água, sairá
Milreos, de João Miguel Fernandes
Jorge, e na Assírio & Alvim um
novo livro de poemas de Adília
Lopes, Manhã. Em Março, uma
edição da Obra Poética de Sophia
de Mello Breyner Andresen na
mesma editora incluirá alguns
poemas inéditos que integram o
espólio da autora em depósito na
Biblioteca Nacional.
Palahniuk. Dois livros que só serão
publicados nos EUA na próxima
rentrée, em Setembro, estão já
agendados para sair em Portugal
na Dom Quixote. O colossal City
on Fire, de Garth Risk Hallberg,
mil páginas que foram a sensação
da Feira do Livro de Londres de
2013, será publicado este ano
ainda sem data, e em Outubro
podemos contar com Purity, de
Jonathan Franzen.
Adília Lopes e Teresa Veiga de regressoQuanto às novidades de autores
portugueses, sabe-se que a autora
de culto Teresa Veiga regressa à
ficção com um livro de contos,
a sair em Março na Colecção de
Ficção de Língua Portuguesa da
Tinta-da-China. António Lobo
Antunes terá novo romance em
Outubro, Da Natureza dos Deuses
(D. Quixote). Haverá novo roman-
ce de Mia Couto, ainda sem título,
na Caminho, e também novo
romance de Pepetela e um livro
em prosa de Nuno Júdice (na D.
Quixote).
Esperam-se também novos dois
“Assistimos a uma mudança no paradigma editorial e a uma maior atenção dos leitores à não-ficção” Manuel Alberto Valente, editor
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10 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015
muçulmanos: -> estigmatização ->
discriminação -> exclusão -> retrac-
ção comunitária da população visa-
da -> risco de recuperação por ex-
tremistas islamistas-> risco de radi-
calização dos indivíduos mais frágeis
-> violência -> nova desconfiança ge-
neralizada, etc.
No dia em que foi lançado Submis-
são, 7 de Janeiro de 2015, a revista
satírica Charlie Hebdo saiu também,
com uma caricatura de Houellebecq
na capa. E estas palavras sobre a fi-
gura do escritor: “As previsões do
mago Houellebecq: em 2015 vou fi-
car sem dentes... Em 2022 observa-
rei o Ramadão!”
Muito bad timing, o dia do lança-
mento de Submissão, que foi o dia da
capa da Charlie Hebdo satirizando
Houellebecq, e também o do ataque
terrorista contra a revista que condu-
ziria ao balanço dramático de 17 mor-
tos. É difícil não nos sentirmos afec-
tados por esta funesta carambola de
acontecimentos, entre os quais sen-
timos existir uma ligação difusa.
É então que Houellebecq desapa-
rece da confusão. Fazem-no sair de
Paris, para sua segurança, e também,
dizem-nos, porque precisava de des-
cansar antes de retomar a promoção
do livro. Outros fazem o mesmo, pru-
dentemente, depois de terem defen-
dido veementemente a tese de Hou-
ellebecq. Alain Finkielkraut, por
exemplo, filósofo famoso, conhecido
pelas suas posições de direita e anti-
imigracionistas: o seu assessor de
imprensa explica ao Ípsilon que do-
ravante não dará mais entrevistas
sobre Houellebecq, tendo em conta
o que acaba de acontecer. Três dias
antes, a 4 de Janeiro, ainda dizia no
programa de Élisabeth Levy na rádio
RCJ: “Michel Houellebecq é o nosso
grande romancista do possível. Entre
a clonagem generalizada e o futuro
turístico da França, compraz-se no
romance de antecipação. Soumission
não foge à regra mas, desta vez, Hou-
ellebecq toca na ferida, e os progres-
sistas de quem era a coqueluche,
apesar do seu pessimismo, soltam
ais (...). A grande preocupação da-
queles que se apresentam como re-
beldes, refractários, resistentes, é
que nada obste às reivindicações do
islão e à sua progressão, e essa é, a
meu ver, a mistificação da esquerda
actual, a sua suprema mentira: quan-
do diz ‘mudança” quer dizer ‘sub-
missão’.”
O seu amigo Emmanuel Carrère,
também ele um escritor maior, Pré-
mio Renaudot por Le Royaume, de-
clara à propósito de Soumission: “Um
livro profético, na linha de 1984 e de
Admirável Mundo Novo, mas mais po-
deroso.”
Fouad Zeraoui está numa posição
privilegiada para avaliar o impacto
destes discursos na juventude mu-
çulmana de França. Fundador da
associação Kelma (“palavra”, em
árabe), de uma revista gay e étnica,
e promotor das noites Black Blanc
Beur que organiza em Paris, tem co-
mo alvo uma população apanhada
entre dois fogos: os muçulmanos
homossexuais. Confrontados com o
racismo fora de casa, são vítimas de
homofobia dentro dela. Eis uma po-
pulação de origem imigrante que
poderia, dada a sua homossexuali-
dade, sentir-se próxima de publica-
ções antimuçulmanas. “Os muçul-
manos sentem que são atacados sem
terem a possibilidade de ripostar”,
diz Zeraoui. “Mesmo que pudessem
fazê-lo, torna-se muito difícil, na me-
dida em que defrontam pugilistas
profissionais que usam de má-fé e,
por vezes, de verdades que carecem
de respostas precisas e complexas.
É difícil criticarmos a nossa comu-
nidade numa altura em que a palavra
de ordem é a união.” Para Zeraoui,
não é possível deixar de se alinhar
pela imagem viril do irmão ou do pai
quando esta é atacada pelo mundo
exterior. “A exacerbação, por parte
dos muçulmanos, da virilidade (de
que os radicais são a encarnação: o
super-homem, o combatente, o ho-
mem que não sofre de nenhuma ta-
ra ocidental), é uma resposta a esse
ataque à virilidade. E os gays saídos
dessa comunidade muçulmana não
têm remédio se não associar-se a es-
sa palavra de ordem implícita: não
haverá degenerados a manchar a
nossa unidade, a nossa postura, o
nosso orgulho singular. Há que ser
masculino.” É a lei do silêncio, não
se participa no debate.
Para Frédéric Pichon, licenciado
em Árabe, professor de Geopolítica
e consultor de comunicação social
que contacta via Internet com jiha-
distas, se é evidente que alguns líde-
res de opinião instrumentalizam este
filão antimuçulmano, não é isso que
leva à radicalização. De resto, consi-
dera o romance de Houellebecq irre-
alista. Não seria possível eleger um
presidente muçulmano “pela simples
razão de que não existe uma comu-
nidade muçulmana em França”: “Há
muitas correntes no islão: a francesa,
a magrebina, a turca, etc. Não conse-
guiriam chegar a um consenso sobre
um presidente.” Em contrapartida,
avança uma explicação curiosa. Há
muito que a nossa cultura ocidental
deixou de oferecer um modelo espi-
ritual interessante. “Ela esqueceu o
sagrado, já não é capaz de transmitir
valores. O que uma parte da juventu-
de muçulmana vai procurar noutro
lado remete para o nosso vazio.” À
força de ver vídeos de jihadistas, dis-
tinguiu três noções importantes, três
elementos que, involuntariamente,
são demonstrados pelos jovens que
se filmam, por vezes, antes de abra-
çar a violência: “1) A regeneração: a
nossa radicalização vai fazer-nos mu-
dar de vida. Metro, trabalho, dormir,
metro, trabalho: isso já eu rejeitava
em França. Acabou-se o haxe e os
desacatos, encontrei um sentido pa-
ra a minha vida. 2) A emoção: os in-
divíduos choram de emoção antes de
passar ao acto, manifestam o seu
amor pelos ‘irmãos’ que encontra-
ram. 3) A ascese: o aspecto marcial,
sacrificial, são a sua nova vida.” De
um lado, portanto, os líderes de opi-
nião que estigmatizam; do outro, um
vazio espiritual que nada vem preen-
cher... até que se têm maus encon-
tros.
O último problema é que Houelle-
becq finge não compreender bem o
que querem dele. Ser responsável?
Responsável por quê? Por nada, uma
vez que, quando questionado, esqui-
va-se, faz-se de ingénuo. Na véspera
do lançamento do livro, Houellebecq
está no telejornal da noite da France
2: o pivô, David Pujadas, interroga-o
sobre o quadro geral apresentado no
livro, que alimenta o medo, e sobre
a responsabilidade subjacente do au-
tor no seu alastramento. Por três ve-
zes Pujadas regressa à pergunta, por
três vezes Houellebecq responde ao
lado. O jornalista conclui: “Parece
minimizar a questão.”
Então mostra reacções de leitores,
entre as quais a de Malek Chebel,
filósofo argelino, tradutor do Corão,
antropólogo das religiões. E cita-o:
“Quando se é um grande escritor,
têm-se mais responsabilidades. Sen-
te isso?” Resposta de Houellebecq:
“Não me lembro de nenhum caso
em que um romance tenha alterado
o curso da História.” Seguem-se vá-
rias não-respostas, como “Nem uma
coisa nem outra”, “Não sei, já não
sei mesmo”, “Então não aprovo nem
condeno [a personagem principal,
que se converte ao islão por facilitis-
mo]”.
Esta questão da responsabilidade
dos intelectuais e da comunicação
social dá azo a viva discussão no pro-
grama C à vous da France 5. Edwy
Plenel, politicamente de esquerda,
director do site Médiapart e ex-direc-
tor do Le Monde, atira: “Nós, os me-
dia, alguns media, fazemos desta
ficção o acontecimento do dia, faze-
mos de um escritor, que tem o direi-
to de pensar o que quiser, o aconte-
cimento político da rentrée. Após
três meses de zemmouradas (...),
consideramos normal, nós, jornalis-
tas, fazer eco disto, promover isto
(...). A que é que damos relevo? A
que o islão é um problema, que os
muçulmanos são um problema. Há
15 anos que somos um país que pro-
move a discriminação em bloco de
uma população devido à sua origem,
ao seu credo, à sua cultura quando
falamos dos muçulmanos, do islão...
Dá-se conta da violência que isto
exerce sobre as pessoas em causa?
Michel Houellebecq é islamofóbico,
reivindica isso mesmo há 15 anos,
basta ler as suas entrevistas, e vocês
fornecem-lhe um púlpito.”
Contactámos David Serra, director
da revista Ring, que se mostra, pelo
contrário, bastante entusiasta: “Para
encontrar o espírito de uma época
não mergulhamos nas notícias dos
jornais, procuramos o escritor que
‘agarrou o século pela garganta’. Um
autor autêntico atira sobre a multi-
dão, rasga o espaço público, e eu fico
contente por reencontrar um pouco
o Michel Houellebecq de Plataforma,
que me dá, desta vez, lições de polí-
tica, de teologia, de moral e de eco-
nomia (...). Não conheço as forças
actualmente em jogo na cabeça de
Michel Houellebecq, mas sinto que
ainda é, na sua solidão genuína, uma
força em acção num turbilhão de es-
critores com plásticas, com rostos
idênticos (...). A identidade é o tema
central, aquele que está em todas as
cabeças, incluindo aquelas que pare-
cem desprezá-lo. O seu público habi-
tual desejava esse tema, mas já não
o esperava. Michel Houellebecq pa-
recia domesticado depois do Gon-
court. Aparecia na comunicação so-
“Nós, alguns media, fazemos desta ficção o acontecimento do dia, fazemos de um escritor, que tem o direito de pensar o que quiser, o acontecimento político da rentrée (...). A que é que damos relevo? A que o islão é um problema, que os muçulmanos são um problema (...). Dá-se conta da violência que isto exerce sobre as pessoas em causa? Michel Houellebecq é islamofóbico (...), basta ler as suas entrevistas, e vocês fornecem-lhe um púlpito”Edwy Plenel, director do site Médiapart
cial do entretenimento e já não pare-
cia suscitar mais do que uma estranha
unanimidade. Finalmente, mostrou
que faz o que quer e que continua a
ser, em última instância, o único se-
nhor de si mesmo.”
Os acontecimentos actuais repli-
cam os de 2001. Um livro polémico,
declarações islamofóbicas então, um
livro sensível hoje, e a coincidência
de atentados hediondos. Catorze
anos depois, o advogado Emmanuel
Pierrat pensa como pensava e não
hesita em afirmar: “Entre aqueles que
desfilaram no domingo, em Paris,
com a sua boa consciência, há quem
tenha sido dos primeiros a dizer que
a Charlie Hebdo estava a pedi-las e
dos primeiros a atiçar o fogo nos su-
búrbios. O escritor não tem de estar
preocupado com uma parte da po-
pulação. Se assim for, entra-se numa
lógica que vai contra os nossos prin-
cípios. Houellebecq é um escritor,
não um panfletário ou um jornalista
como Zemmour. A literatura é um
território sagrado, temos o direito de
forçar a nota. Temos direito ao mau
gosto e à blasfémia. Se os escritores
deixaram de ter direito a isso, então
acabe-se já com a literatura.”
François Samuelson, agente e ami-
go de longa data de Houellebecq, to-
ma também a defesa do escritor. Leu
Submissão há oito meses, mas há uma
semana que é solicitado por todos os
órgãos de comunicação. Tem tempo
para nos responder: “Constato a ir-
responsabilidade daqueles que cen-
suram uma alegada islamofobia, que
são os mesmos que denunciavam a
islamofobia e o mau gosto das cari-
caturas da Charlie Hebdo. Faz-se co-
mo o pirómano que, depois de atear
um incêndio, chama os bombeiros!
O escritor escreve um livro, trata-se
de uma fábula política, como Voltai-
re poderia ter escrito. Infelizmente,
por um terrível acaso, a realidade foi
ao encontro da ficção. É como se dis-
séssemos a uma rapariga violada que
foi bem feito porque se veste de for-
ma provocante. Peço desculpa, estou
um pouco exaltado, mas isto deixa-
me louco.”
Samuelson acrescenta, por fim,
que “está tudo bem”, Michel Houel-
lebecq regressou a Paris. Não vamos
jogar ao “Rapto de Michel Houelle-
becq parte 2”! “Está sobretudo cons-
ternado com a morte do seu amigo
Bernard Maris [jornalista e econo-
mista que escreveu Michel Houellebe-
cq économiste, retomando as análises
económicas do autor que considera-
va pertinentes]. Foi isso que o atingiu.
Está-se nas tintas para a matilha!”
Houellebecq vai sair-se bem. Sai-
se sempre bem. Não será um Dorian
Gray do avesso, trazendo no rosto
os sulcos tortuosos da decadência
de um pensamento ultra-sedutor
que se corrompeu na busca de mais,
de melhor, de sempre ainda mais
forte. Acrobata de equilíbrio inso-
lente mesmo quando o vento sopra,
encontrará a forma de aterrar de pé.
Afinal de contas, trata-se do grande
homem das letras francesas. A sua
produção romanesca cifra-se em seis
livros. Seis livros apenas, uma obra
imensa. Tivemos Houellebecq, te-
mos agora Submissão, aguardamos
a continuação.
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12 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015
Daniel Metcalfe nunca tinha ouvido falar português. Um dia ouviu cantar Ana Moura e apaixonou-se pela língua. Depois descobriu Angola e escreveu um livro.
Em 2008, o jornalista inglês
Daniel Metcalfe ouviu na rá-
dio uma canção de Ana Mou-
ra. Mais do que pela música,
ficou fascinado pelos sons
daquela língua estranha que
nunca antes ouvira. Começou então
a estudar português e a frequentar
uma biblioteca londrina na Belgrave
Square, em Londres, a Hispanic and
Luso-Brazilian Council Library, on-
de se podiam encontrar livros raros
relacionados com a História de Por-
tugal e das suas colónias. “Infeliz-
mente essa biblioteca já não existe”,
conta ao Ípsilon, “era um lugar à
moda antiga e sobrevivia graças a
subsídios”.
Foi nessa biblioteca que conheceu
Rui, um jornalista angolano a viver
entre Luanda e Londres, antigo “tra-
dutor dos senhores da guerra no
mato”, opositor e crítico feroz do
partido que governa Angola desde
a independência, o MPLA. Rui con-
tava histórias sobre os “manda-chu-
vas da comunicação social, os tra-
paceiros e os magnatas do petróleo
que estavam a sugar as riquezas na-
cionais e a transferi-las para as suas
contas bancárias”. Entre as várias
histórias contadas, havia a daquele
empresário angolano que tinha em
casa “uma estátua que urina cham-
panhe”, ou a de outro que andava
sempre com “um chefe pasteleiro
português baixinho a correr atrás
dele”. Daniel Metcalfe poucas vezes
ouvira falar em Angola, e a curiosi-
dade fê-lo perceber que é um país
com uma história difícil e complexa.
E quis estudá-la a fundo. “Angola
tem, provavelmente, mais História
do que aquela a que um país tem
direito.”
A biblioteca londrina era uma es-
pécie de refúgio espiritual para um
estranho grupo de “intelectuais ana-
crónicos, antigos activistas chilenos,
um poeta goês que se orgulhava de
falar em português erudito e uma
misteriosa herdeira colombiana”. O
seu espólio parecia ter estagnado
na década de 1970, na altura em que
os movimentos de libertação das
antigas colónias lusófonas viram
chegar a esperada independência.
Daniel Metcalfe passou então alguns
meses a percorrer esse acervo bi-
bliográfico e a ler tudo o que lhe
pudesse interessar para uma visita
ao país, sensibilizando-o para os
vestígios que iria encontrar, do im-
pério marítimo português aos con-
tornos da Guerra Fria em África,
passando pelo comércio de escra-
vos, e sentindo-se “cada vez mais
fascinado por aquele longínquo pa-
ís, um dos mais singulares e envol-
ventes que é possível visitar”.
Angola simbolizava um importan-
te ponto de viragem entre os conti-
nentes, o reposicionamento do mun-
do dos ricos em relação a África,
aquilo a que alguns já chamam “co-
lonialismo em sentido inverso”. “A
minha faceta de viajante queria co-
nhecer este lugar que vivia um inten-
so crescimento para ver com os meus
próprios olhos os tais chefes paste-
leiros portugueses a passarem pelos
bairros de lata a caminho do traba-
lho”, diz Metcalfe em tom jocoso.
Anos antes, o jornalista financeiro
inglês publicara um livro de viagens
sobre a Ásia Central, Out of Steppe.
Agora tinha um novo projecto para
outro livro de viagens: Dália Azul,
Ouro Negro - Viagem a Angola. Mas
Luanda é a capital mais cara do mun-
do e o orçamento de Daniel Metcalfe
não era abonado. Conhecera entre-
tanto em Londres vários angolanos,
e entre eles um que lhe disse que a
sua família teria todo o gosto em
recebê-lo e acomodá-lo em casa em
Luanda. Metcalfe estava decidido a
tentar perceber “que tipo de socie-
dade vende hambúrgueres a 30 li-
bras e cobra 300 libras por noite
num quarto de hotel pavoroso”: “A
situação é tão extrema que se torna
quase risível. Enfim, um irresistível
desafio.” Mas ao mesmo tempo que-
ria mostrar que não era preciso fretar
um helicóptero ou alugar um jipe
para visitar lugares no interior do
país. Assim, viajaria como o comum
dos angolanos, ao contrário de mui-
tos estrangeiros que encontrou (in-
cluindo bastantes portugueses) que
não querem viajar para fora do lugar
onde trabalham por temerem os pe-
rigos. “Recusava-me a ser um desses
comerciantes-viajantes rabugentos
que se queixam de pagar seis dólares
por uma Coca-Cola no vestíbulo de
um hotel.”
As viagensDaniel Metcalfe viajou duas vezes
para Angola, em 2010 e em 2012,
demorando-se no país um total de
três meses. Na primeira viagem fez
uma paragem de alguns dias em São
Tomé e Príncipe (estada descrita nos
dois primeiros capítulos do livro
Dália Azul, Ouro Negro) para se acli-
matar aos efeitos do colonialismo
português e ao seu legado. Depois,
já em Luanda, aproveitou a hospi-
talidade da casa do amigo para lhe
servir de base, e usou os transportes
públicos entre localidades, nas via-
gens mais longas (quando não exis-
tiam ligações, recorreu a ONG ingle-
sas). Fez quatro rotas: de Luanda a
Saurimo (capital dos diamantes),
passando por Malanje, no Leste do
país; de Luanda ao Cuíto Canavale
(a cidade da célebre batalha entre
forças cubanas e sul-africanas), pas-
sando por Benguela, Lobito, Huam-
bo e Menongue; de Luanda a
M’Banza-Congo, já perto da frontei-
ra Norte; e uma última ao enclave
de Cabinda, a região petrolífera de
Angola.
Metcalfe registou as inúmeras
conversas que teve com as mais va-
riadas pessoas (líderes tribais, tra-
balhadores da indústria petrolífera,
rapazes da rua), e também com al-
guns portugueses. “Parece haver
uma aparente relação de amizade
entre portugueses e angolanos, mas
por vezes é complicada, quase am-
bivalente. Partilham uma língua e
um passado. Estranhamente, muitos
angolanos não falam nenhuma lín-
gua africana — circunstância única
em toda a África subsariana, penso,
desdenhando o quimbundo a favor
do idioma oficial. Há, claro, aqueles
saudosistas do império, e muita nos-
talgia entre os mais velhos. Mas aos
mais novos apenas interessa o tra-
balho, são pragmáticos. E à seme-
lhança dos ingleses, por exemplo,
também me pareceu que os seus
círculos sociais se restringem sobre-
tudo aos do seu país.”
Dália Azul, Ouro Negro — Viagem
a Angola, o livro de histórias de um
viajante optimista, prova a ideia
com que Metcalfe iniciou a viagem,
a de que “existia ali algo de invulgar
e único e que ainda era possível
testemunhar cenas inspiradoras e
ser obsequiado com gestos de ama-
bilidade espontâneos”, apesar de
toda a frustração do povo que ha-
bita os musseques que cercam a
Luanda cosmopolita. É um livro
que depois de lido não se esquece
tão depressa.José Riço Direitinho
Angola, um país com História a mais
DA
NIE
L RO
CH
A
mmmmm
Dália Azul, Ouro
Negro — Viagem
a Angola
Daniel Metcalfe
(Trad. Susana
Sousa e Silva)
Tinta-da-China
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Órgão nos Clérigos I16 Sex · 13:00 Igreja dos ClérigosJonathan Ayerst órgão
Alemanha em concerto16 Sex · 21:00 Sala SuggiaOrquestra Sinfónica do Porto Casa da MúsicaObras de Weber, Lachenmann
e Beethoven
Da música nascem histórias 17 Sáb · 16:00 Sala 2Serviço Educativo · Concertos para Todos
Medo e desejo 17 Sáb · 18:00 Sala SuggiaRemix Ensemble Casa da MúsicaObras de Lachenmann e Wagner/Dove
Jonathan Ayerst órgão18 Dom · 12:00 Sala SuggiaCiclo Piano EDP Obras de Bach, Buxtehude,
Rihm e Brahms
Tradição coral germânica18 Dom · 18:00 Sala SuggiaCoro Casa da MúsicaObras de Lachenmann, Hidalgo,
Stockhausen, Hassler e Schütz
Abertura Oficial
16-18 Jan
PATROCINADOR OFICIAL
ANO ALEMANHA
PATROCINADORES ANO ALEMANHAPATROCINADOR ABERTURA
ANO ALEMANHA
APOIO PORTRAIT
HELMUT LACHENMANN
APOIO PROJECTO
ANO ALEMANHA
APOIO
MECENAS PRINCIPAL CASA DA MÚSICA
MECENAS CICLO BARROCO
MECENAS CASA DA MÚSICA
MECENAS ORQUESTRA SINFÓNICA
APOIO INSTITUCIONALAPOIO INSTITUCIONALMECENAS CICLO PIANO EDPMECENAS SERVIÇO EDUCATIVO
Informações 21 790 51 55 · [email protected] · www.culturgest.ptTicketline Reservas e informações: 1820 (24 horas)��·��Pontos de venda: Agências Abreu, Galeria Comercial Campo Pequeno, Casino Lisboa, C.C. Dolce Vita, El Corte Inglés, Fnac, Megarede, Worten e www.ticketline.sapo.pt
Pocilgade Pier Paolo Pasolini Encenação de John RomãoTEATRO QUI 15, SEX 16, SÁB 17 DE JANEIRO · 21H30 · 12€ · M16
Se me visses um só instante como sou na realidade, correrias aterrorizada a chamar um médico ou uma ambulância. (P.P. Pasolini, Pocilga) · Corpos e porcos são aqui objeto de uma mesma ocultação e depreciação. Pasolini conta a história de um homem cuja paixão é motivo de escândalo, e de uma aliança política para calar “tudo o que não vive”, ou seja, tudo o que não é visto aos olhos do outro.
Alexandra Grimal e Giovanni di DomenicoJAZZ CICLO “ISTO É JAZZ?” · SEX 16 DE JANEIRO · 21H30 · 5€ · M6
O que podia ser uma limitação formal – o duo de piano com instrumento de sopro, uma formação mais usada na música clássica – eles transformam num jogo de exploração de possibilidades. Compositores de jazz com formação académica que também são conhecidos pelas suas incursões na música improvisada, decidiram-se a definir um jogo entre o escrito e o tocado que salta para fora das margens estabelecidas. Pode soar-nos familiar, mas depressa se instala um delicioso e subtil inconformismo.
Norberto LoboMÚSICA · CULTURGEST PORTO SEX 16 DE JANEIRO · 22H · 5€ · M6
Uma das figuras principais da música portuguesa contemporânea, em apresentação do novo disco Fornalha.
Amélia com versos de AmáliaAmélia MugeMÚSICA SEX 23 DE JANEIRO · 21H30 · 18€ · M6
Dificilmente se poderia encontrar quem pegasse nestes poemas de forma mais inteira, sensível e sublime. (Gonçalo Frota, Ípsilon, crítica 5 estrelas ao disco Amélia com versos de Amália, 28.11.14)
Pocilga
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![Page 14: Ipsilon-20150116](https://reader033.vdocuments.mx/reader033/viewer/2022051000/55cf9360550346f57b9d6307/html5/thumbnails/14.jpg)
14 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015
Atiramos tijolos, mas a
Wim Vandekeybus tem esta coisa de se meter com gente que não é da idade dele. Talk to the Demon, que hoje chega ao Theatro Circo, é a peça em que se deixa dominar por um miúdo de sete anos. Falámos com o demónio.
A peça que Wim Vandekeybus
traz agora a Braga é herdeira
do filme que rodou na
Hungria e que se encontra em
pós-produção: nele, trabalhou com 45 miúdos
de rua ciganos e com os seus respectivos
cavalos
DA
NN
Y W
ILLE
MS
DA
NN
Y W
ILLE
MS
vida continua
Inês Nadais
![Page 15: Ipsilon-20150116](https://reader033.vdocuments.mx/reader033/viewer/2022051000/55cf9360550346f57b9d6307/html5/thumbnails/15.jpg)
ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015 | 15
Wim Vandekeybus cres-
ceu com demónios que
o fazem atirar tijolos e
pedras a paredes de
metal, e isto há 27 anos.
Foi a milhares de qui-
lómetros, mas até aqui se ouviu o
estrondo que faziam os rapazes Van-
dekeybus a desabar contra o chão,
na língua estranha e suicida que fa-
lam as peças do coreógrafo flamen-
go desde What the body does not re-
member, o muito afirmativo big bang
com que refundou em 1987, a partir
dos escombros em que a tinha dei-
xado, a nova dança belga.
O corpo dele lembra-se — dema-
siado, diz-nos neste princípio de tar-
de em que atende o telemóvel para
responder às perguntas que temos
sobre o Talk to the Demon, espectá-
culo que hoje traz ao Theatro Circo,
em Braga, para abrir o ciclo A dança
dança-se com os pés e o programa de
comemorações do centenário da sa-
la, que se festejará todo o ano mas
sobretudo em Abril. “Claro que o
meu corpo se lembra. Por exemplo:
passei oito anos a escrever o meu
último filme [Galloping Mind está em
pós-produção e deve estrear-se ainda
em 2015] e seria capaz de represen-
tar os papéis todos como acho que
deviam ser feitos. Mas há uma altura
em que tenho de me afastar e deixar
que os actores levem as personagens
para lugares que eu não tinha previs-
to (a Hungria, por exemplo: foi lá que
filmou com dezenas de miúdos de
rua, dezenas de miúdos ciganos que
passaram por ele a cavalo]. Sou só o
realizador, não posso controlar tu-
do”, explica. Bom, o corpo dele lem-
bra-se até de coisas mais antigas: da
maneira como ficou em carne viva
depois de tantos tijolos lhe caírem
em cima, porque aquilo era a dança
a ser mortal (“E no entanto a vida
continuou, eu ainda estou aqui”), e
da maneira como, muitos anos antes
(cresceu no campo: o pai foi veteri-
nário), intuiu toda uma linguagem a
partir do instinto — e da confiança
sobre-humana que os animais têm
no corpo.
Houve outras coisas que o fizeram
crescer. A música, em que também
sempre mostrou uma confiança
sobre-humana ao ponto de encostar
a ela diversas peças da sua Última
Vez — do David Byrne de In Spite of
Wishing and Wanting, em 1999, ao
David Eugene Edwards de Blush, em
2003, passando pelo Marc Ribot de
Inasmuch as Life is Borrowed..., em
2000. Deixou-a para trás, e o silên-
cio caiu-lhe em cima. “Talk to the
Demon é uma peça sem música — e,
nesse sentido, é uma peça muito
assustadora e muito nua, mas ao
mesmo tempo também muito pura
e muito comovente. A música enche
tudo. Com música parece tudo mui-
to bonito; tiras a música e vês as coi-
sas como realmente são.”
Talk to the Demon é assim: sem
música, mas não propriamente mu-
da (os corpos dos bailarinos estão
amplificados, todo o palco é uma
banda sonora) nem sem palavras,
porque começa logo com uma per-
gunta (não tão difícil de digerir co-
mo a que fazia há mais de dez anos
no fim de Blush: “E tu, engoles?”).
Entre os dois miúdos que aparecem
no palco, há um que teremos de es-
colher, e certamente escolheremos
“o miúdo errado, o mais merdoso”,
como nos faz engolir, em seco, Jerry
Killick, um dos pais que o coreógra-
fo pôs em palco, como se ainda acre-
ditasse que seria possível domar a
energia primitiva, demoníaca, que
é libertada assim que a peça come-
ça (Sarah, que durante os primeiros
meses foi a miúda preterida de Talk
to the Demon, é filha do intérprete-
fetiche de Vandekeybus, o seu Klaus
Kinski, mas “faltou a demasiadas
aulas” e foi substituída entretanto:
“No mundo do espectáculo, nunca
se deve trabalhar com crianças nem
com animais, e o miúdo que vocês
escolheram é ambos”, diz ainda
Killick antes de o circo ter verdadei-
ramente lugar, chicotes e tudo).
Trabalhar com o perigoJá não estamos — passaram uns anos
— no recreio de Radical Wrong, onde
em tempos Vandekeybus encenou
uma adolescência daquelas de cai-
xão à cova com tendas de campis-
mo, roupa interior, motas, cerveja,
bebedeiras, bullying, euforia, pala-
vrões, sexo forçado e sexo consen-
tido, para provar que “não há certo
nem errado numa cabeça com 16
anos, só na cabeça dos pais”. Tem
saudades disso: “É a última idade
em que ainda não pensas em mor-
rer. A força disso é uma coisa que
aos 25 anos já esmoreceu e que aos
35 desapareceu completamente”,
dizia então ao Ípsilon. Passaram uns
anos, escrevíamos, e ele andou para
trás. Passou a trabalhar mais com
crianças e com adolescentes — não
tem vontade nenhuma de formar
bailarinos para a dança contempo-
rânea, prefere abrir as portas do
grande estúdio que entretanto en-
controu num bairro de imigrantes
de Bruxelas, cheio de entulho pós-
industrial, e absorver a fúria de
quem ainda tem tudo para aprender
— e viciou-se nisso. “Ao fim de tanto
tempo é difícil começar do zero. Mas
trabalhar com pessoas novas ajuda.
Não posso confiar que saibam do
que eu estou a falar, e isso obriga-me
a explicar tudo outra vez. Em Março,
vou fazer outro espectáculo, e que-
ro mesmo que seja uma coisa nova,
mais lírica. Para me sentir vivo pre-
ciso de saber que ainda sou capaz
de montar um espectáculo inespe-
rado. É uma tarefa interminável,
atroz, nunca se fará depressa.”
No caso de Talk to the Demon,
trata-se mais de saber se ainda é ca-
paz de desencadear, não de fazer,
um espectáculo interessante. O es-
pectáculo que Vandekeybus traz a
Braga nasceu da gigantesca frustra-
ção de ter tido de desperdiçar o ma-
terial que tinha andado a descobrir
entre a Hungria e a Roménia, com
os tais miúdos de rua não tão dife-
rentes assim daqueles que lhe apa-
recem à porta em Sint-Jans-Molen-
beek. “Passei o último ano ocupado
a filmar mas de repente o projecto
foi cancelado por dificuldades finan-
ceiras, e dei por mim com imenso
tempo livre. Como vinha de traba-
lhar com 45 crianças, achei que de-
via usar essa energia para criar uma
peça sobre a violência e a crueldade
da infância. Basicamente, a ideia era
encontrar um miúdo que fosse o
arquitecto de todo o serão, e deixá-
lo controlar os outros seis bailarinos
a partir das suas possessões, das su-
as crueldades, dos seus caprichos,
dos seus jogos mentais.”
Muitos dos miúdos que via passar
à porta do estúdio em Sint-Jans-Mo-
lenbeek entraram e foi com eles que
Vandekeybus começou a levantar
Talk to the Demon: “A companhia
instalou-se ali há dois anos e meio e
fomo-nos conhecendo pouco a pou-
co. Fiz vários workshops com cerca
de 15 miúdos — sessões de trabalho
muito abertas, em que não lhes dis-
se que estávamos a trabalhar numa
nova produção, e que me permiti-
ram aprofundar imenso as ideias,
através das tarefas que vamos exe-
cutando e que claramente distin-
guem quais são os melhores. Foi um
casting orgânico, um processo que
se foi afunilando.” Aprendeu muito:
que há crianças de oito anos dema-
siado adultas, quase velhas, e que a
combinação de que precisava (fia-
bilidade, frescura, vontade) não se
encontra com muita facilidade.
“Gosto muito de trabalhar com o
perigo. Se ele não estiver lá, não é
interessante para quem está a ver.
Claro que quando existe esse opti-
mismo, essa euforia, essa extrover-
são, é fácil perder o controlo. Quan-
do deixas os miúdos sozinhos em
cima de um palco e não lhes dás ne-
nhuma instrução, eles podem ser
terrivelmente desinteressantes. Ou
terrivelmente selvagens. Mas somos
duros com eles: estão num espectá-
culo e têm de se defender. A verda-
de é que andamos há anos a atirar
tijolos e a vida continua.”
Aqui, além de tijolos, há pedras
atiradas em fúria contra a parede.
Adultos em roupa interior, dispostos
a matarem-se pelo último chocolate.
Corpos presos por elásticos e gan-
chos, gritos, manadas de cavalos
tiranizados por apenas um cowboy
do alto dos seus nove anos, triciclos
e raquetes de badmington. Um mi-
údo escolhido, outro sacrificado. E
perguntas difíceis, vindas do sítio
onde a inocência ainda é selvagem
(“Amas-me?”, “Quando é que eu vou
morrer?”, “Porque é que não há mú-
sica?”). Como espectadores, mania-
camente levados ao limite por um
coreógrafo tão diabólico quanto
curandeiro, podemos escolher entre
a inércia e a cumplicidade, e tere-
mos de aceitar que isso será sufi-
ciente. “Há essa altura em que o
miúdo pergunta ‘porque é que não
há música?’ e em que somos obriga-
dos a parar para o ouvir — porque
eu queria ouvir os miúdos, e os mi-
údos sabem imenso de música. Aqui
parece não haver música — nem
ideias, nem intenção — e no entanto
o espectáculo está cheio disso.”
De tudo aquilo que tínhamos ju-
rado, querido, nunca fazer em fren-
te às crianças.DA
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![Page 16: Ipsilon-20150116](https://reader033.vdocuments.mx/reader033/viewer/2022051000/55cf9360550346f57b9d6307/html5/thumbnails/16.jpg)
16 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015
Inspirado numa esquizofrénica que viveu 20 anos num aterro, tauberbach é Alain Platel a questionar, em Guimarães e Lisboa, o lugar a partir do qual escolhemos relacionar-nos com o mundo.
Gonçalo Frota
Uma lixeira com vista para a lucidez
Mais ou menos a meio de
tauberbach, um dos bai-
larinos da companhia bel-
ga Les Ballets C. de la B.
aproxima-se de outro e
abocanha-o na zona da
laringe. Simula mordê-lo na chama-
da maçã-de-Adão, um pouco como
se detonasse o mundo em que vive-
mos. É uma imagem veemente, que
o próprio Alain Platel confessa ter
incluído na peça, antes de mais, pe-
la intensidade dramatúrgica do mo-
mento. Mas basta olhar em redor,
para um palco coberto de peças de
roupa avulsas e largadas em desma-
zelo, inspirado pela história de uma
mulher brasileira, esquizofrénica,
que viveu durante mais de 20 anos
num aterro sanitário do Rio de Janei-
ro por sua livre escolha, para lhe in-
tuir outro alcance. Estamira, que
dava igualmente nome ao documen-
tário realizado por Marcos Prado em
2005, tornar-se-ia uma obsessão pa-
ra Platel nos últimos anos, tendo o
coreógrafo belga ensaiado várias
abordagens falhadas à história da-
quela mulher em quem via “uma
verdadeira filósofa contemporânea”,
segundo descreve ao Ípsilon.
“O que mais me impressionou”,
admite o coreógrafo, “foi a descober-
ta de que ela vivia na lixeira por de-
cisão pessoal e acreditava poder le-
var uma vida autêntica naquele sítio.
Depois, fiquei deslumbrado com o
facto de usar palavras belíssimas pa-
ra descrever a sua situação e o mun-
do. Há muito no olhar dela que é
verdadeiramente inspirador. Gosto
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da sua forma extrema de encarar a
vida e dos seus estranhos mecanis-
mos de sobrevivência. Por isso, o
filme não é tanto sobre uma mulher
que vive num aterro, mas sobre um
aterro que se torna uma metáfora da
vida ou do caos no mundo”. Uma das
expressões de Estamira no filme, re-
cordada em palco pela actriz Elsie de
Brauw — “Há frases que se perdem
no documentário, mas quisemos
colocá-las em palco por serem tão
mágicas, belas e fortes”, diz Platel —,
é a de que “a incivilização é o que é
feio”. E essa ‘incivilização’ é identi-
ficada a partir de um posto de obser-
vação privilegiado: equilibrada em
cima de todo o lixo produzido por
uma sociedade entregue ao consumo
e ao desperdício desenfreados. O li-
xo, a falta de civilidade, afinal, são
aquilo que Estamira vê quando olha
na direcção da cidade. Não quando
olha para o sítio onde os seus pés se
enterram.
Em parte, aquilo que interessa a
Alain Platel nesta mulher é a assun-
ção plena e carregada de uma luci-
dez desarmante — apesar de um
discurso por vezes tão caótico quan-
to a aparência do cenário em que se
encontra. Segundo o coreógrafo,
este é um tema de discussão fre-
quente na sua vida, o da faculdade
permanente de se fazerem escolhas
e tomarem decisões, recusando
qualquer aprisionamento. “Quer
tenhamos filhos, uma vida familiar
a proteger ou algo assim, estas de-
cisões estão sempre presentes e isso
não significa que tenhamos de ser
egoístas”, defende. Estamira é al-
guém que criou o seu pequeno mun-
do e vive de acordo com as suas
próprias regras.
O coreógrafo não nega, assim, que
Estamira é uma essencial fonte de
inspiração para tauberbach, sobre-
tudo para o trabalho de Elsie de
Brauw. Foi, na verdade, a actriz a
desbloquear o impasse criativo em
que Platel se encontrava relativa-
mente ao material do filme. “Ela
usou-a como inspiração”, relata,
“mas não queríamos copiá-la ou
torná-la uma personagem muito ní-
tida na performance. A Elsie usou
também muito outros elementos da
sua vida pessoal, da sua carreira co-
mo actriz e outros ainda que foram
surgindo no estúdio durante os en-
saios. Não se trata de uma tentativa
de contar em palco a história de Es-
tamira”. Aos poucos, aliás, Alain
Platel foi percebendo que na sua
criação conviviam duas peças soltas
para as quais nunca encontrara o
contexto ideal. Por um lado, Esta-
mira; por outro, Tauber Bach, pro-
jecto de interpretação de música de
Bach por um grupo de cantores sur-
dos, realizado por Artur Zmijewski.
tauberbach, dia 21 no Centro Cultu-
ral Vila Flor (Guimarães), de 23 a 25
no Teatro Maria Matos (Lisboa), é o
choque entre os dois.
Em ambos os casos, Alain Platel
vislumbra uma beleza límpida onde
muitos podem apenas detectar uma
loucura risível ou um esforço ingló-
rio. A armadilha, admite, é que a sua
posição e a forma como a projecta
em palco possam ser confundidas
com “uma forma de arrogância”
diante de um mundo cada vez mais
lesto no desembainhar de acusa-
ções. “Mas sinto-me muito protegi-
do porque as minhas peças são cons-
truídas a partir de uma troca muito
intensa com os performers.” Tauber
Bach, o projecto de Zmijewski, re-
vela uma frágil e comovente leitura
da música do compositor cantada
por intérpretes que ultrapassam um
embaraço: o de saber que as suas
vozes, quando ‘tacteiam’ as melo-
dias, provocam por vezes o riso em
quem ouve. “Mas ao ouvir as grava-
ções”, conta Platel, “fui percebendo
a sua musicalidade. E foi curioso
descobrir que os bailarinos come-
çaram a juntar as suas vozes a partir
de determinado momento, o que
inicialmente parecia impossível”.
Bach para reconstruirBach não é novidade na obra de
Alain Platel. Tem sido, aliás, rastilho
frequente nas suas criações (Pitié!
baseava-se na Paixão segundo São
Mateus) — e não só. “Quanto mais
trabalho e mais o tempo passa”,
confessa, “tomo consciência de que
a sua música é uma fonte de inspi-
ração muito forte e uma fonte im-
portante de consolo em momentos
diferentes da minha vida”. Esse as-
cendente aparece agora, no entanto,
reforçado pela recente revelação da
biografia do compositor assinada
por John Eliot Gardiner, onde o des-
cobriu como “uma pessoa muito
bruta e crua que passou tempos
muito difíceis e que fazia música não
pela graça divina mas por ser al-
guém que vivia muito intensamen-
te”. “Não era nenhum santo”, diz
Platel com alívio, como se finalmen-
te pudesse descer Bach à terra e jus-
tificar a frequente convocatória pa-
ra o seu palco. Também este mara-
vilhamento não exclui — já o
suspeitava — a crueza.
Tal como um músico, compara,
quando se coloca de fora, assistindo
às suas obras, Platel diz não se reco-
nhecer frequentemente nas imagens
estranhas que compõem o quadro
final. Sabe quais foram as opções,
lembra-se de sancionar e seleccionar
cada trecho, mas releva sentir-se sis-
tematicamente diante de um objecto
“fascinante, enigmático e revelador”,
para o qual não tem grandes expli-
cações. A sua certeza é a de que, em
cada nova obra, gosta de se questio-
nar sobre onde tudo começa e a par-
tir de que ruínas é possível recome-
çar. Como Estamira. “Não apenas
para fazermos performances”, subli-
nha. “Mas também para construir-
mos as nossas vidas.”
![Page 17: Ipsilon-20150116](https://reader033.vdocuments.mx/reader033/viewer/2022051000/55cf9360550346f57b9d6307/html5/thumbnails/17.jpg)
ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015 | 17
Foram três anos para Mónica
Calle chegar de Heiner Müller
até Bertolt Brecht. Os mes-
mos três anos que levou a
traçar um percurso do Cais
do Sodré para a Zona J, em
Chelas.
As duas ideias de deslocação uni-
das, de um autor para outro, de uma
área de Lisboa para outra, coincidem
na criação de A Boa Alma. Ao invés
de Hansel e Gretel a largarem miga-
lhas de pão para poderem recuperar
o caminho inverso, Mónica Calle de-
lineou uma viagem de espectáculos,
que podiam ser seguidos até à nova
localização da sua Casa Conveniente,
mas para não mais voltar atrás. Por
ora, a sua nova casa em Chelas é ain-
da um lugar inóspito, com paredes
a serem derrubadas no intervalo dos
ensaios, um frio de gelar os ossos a
atravessar divisões decoradas apenas
por escombros e vista para a rua me-
diada por uma rede azul presa a an-
daimes que engana a chegada da
noite. E é aqui, ao ritmo de cada no-
va peça, que Mónica Calle nos pro-
põe acompanhar o seu recomeço,
numa nova Casa Conveniente. A obra
a que aqui assistiremos terá duplo
sentido - artística e de requalificação
do espaço.
“Não é solitário”, diz a actriz e en-
cenadora sobre este reinício. “Podia
ter recomeçado tudo sozinha, con-
tinuado o caminho de uma outra
forma e feito outras escolhas. Mas
escolhi assim. Não quer dizer que
às vezes não tenha vontade de fugir,
sabendo da dureza e de todo o imen-
so esforço que vai implicar vir para
aqui, todo este recomeço aos 48
anos, quando estou na meia-idade.
Vou começar mais uma vez ao frio,
no entulho, sem luz, sem água, tudo
dificílimo. Mas continua a fazer sen-
tido. E, portanto, continuo a acre-
ditar.”
Foi precisamente por acreditar na
sua relação e das suas propostas ar-
tísticas com o lugar em que se en-
contra que Mónica Calle planeou a
fuga do Cais do Sodré. Quando ali
abriu a Casa Conveniente, em 1991,
o cenário era ainda extensão de uma
marginalidade portuária a pulsar na
vida lisboeta, paredes-meias com a
prostituição e todo um ambiente
nocturno bas-fond. A transformação
profunda da área nos últimos anos,
engolida pelo centro da cidade e fei-
ta escoadouro do Bairro Alto, fez da
Casa Conveniente uma ilha desco-
nexa e desligada da nova identidade.
Ao juntar a este desconforto um tra-
balho continuado de formação de
actores junto da população prisional
de Vale de Judeus, Calle sentiu que
se dava um corte definitivo e foi fa-
zendo a sua deriva afectiva em di-
recção ao Bairro do Condado (Zona
J), ao mesmo tempo que mergulha-
va num ciclo dedicado ao dramatur-
go alemão Heiner Müller.
Através de Müller, chegou então
a Brecht. Mas quis fazê-lo pelo filtro
da escrita de Luís Mário Lopes. Foi
a ele que encomendou uma reapro-
priação de A Alma Boa de Setsuan,
alimentada tanto pelo texto original
de Brecht quanto pelo seu universo
pessoal e pela sua migração iminen-
te. Depois, estendendo o mapa da
cidade, imaginou uma cartografia
que sugerisse um trajecto, ainda que
errante, que documentasse e inte-
grasse a mudança. O autor acabou
então por autonomizar fragmentos
das nove partes que iriam compor
A Boa Alma e repensou-os à luz de
Os Sete Pecados Mortais dos Pequenos
Burgueses, também de Brecht, num
espectáculo partido em sete apre-
sentações (do Teatro da Politécnica
e da Latoaria, à Companhia Olga
Roriz e ao DNA do Teatro Praga)
acontecidos em Dezembro. Foi uma
dramaturgia do abandono do Cais
do Sodré, um limpar os vestígios
para entrar em Chelas já pela mão
de Brecht, com um vazio previa-
mente preenchido. “Quando a Mó-
nica me falou nas sete apresentações
e em usar partes do texto para tam-
bém criarem um caminho textual”,
lembra Luís Mário Lopes, “isso en-
caixava no formato em que tinha
estruturado o texto. Foi uma expe-
riência interessante e bonita de ver
até que ponto uma só parte resistia
num outro espectáculo. Levámos
ao extremo a ideia do teatro épico
do Brecht - que achava possível tirar
alguns fragmentos e a peça resistir
na mesma.”
Mónica, Calle, BasílioA Boa Alma apresenta agora o texto
total, trabalhado por Luís Mário Lo-
pes ao mesmo tempo que o cantau-
tor JP Simões se servia do mote bre-
chtiano para criar nove temas que
servem de separadores entre os vá-
rios capítulos de uma narrativa as-
sombrada pela escrita de Brecht e
pelo mundo de Calle. Em A Boa Al-
ma de Setsuan, três deuses descem
à Terra à procura de uma alma boa,
dando a busca por terminada quan-
do encontram a prostituta Chen Tê,
que lhes dá guarida. Chen Tê muda
depois de vida, abrindo uma taba-
caria. “O jogo que o Brecht faz e que
também quis fazer”, analisa Luís
Mário, “é pensar como nos pensa-
mos ou nos recriamos, às vezes pe-
la dificuldade que sentimos em exis-
tirmos em sociedade e como faría-
mos se fôssemos amorais ou
limitados pela moral em que nos
encontramos mergulhados.” Em vez
de Chen Tê, agora a protagonista
chama-se Mónica, vinda da prosti-
tuição e das ruas próximas dos ca-
minhos-de-ferro (alusão acidental
ao Cais do Sodré, confessa) e muda
de vida ao deslocar-se para um sítio
novo. Esse sítio, inevitavelmente,
formou-se na cabeça do autor com
as imagens e o mapa da Zona J, só
desbloqueando a escrita de A Boa
Alma quando conseguiu introduzir
algum artifício no texto.
Só que A Boa Alma, artificiosa que
possa tentadoramente ser, funciona
em permanência como uma inves-
tigação disso que é ser bom ou fazer
o bem e de uma questão primordial
para Mónica Calle: “Como posso
continuar a ajudar os outros ajudan-
do-me a mim”. A resposta é dada
pela implicação. “O texto permite
uma colagem muito grande a mim”,
confirma a actriz e encenadora. As
personagens centrais, aliás, tomam
os nomes constantes do seu bilhete
de identidade – Mónica, Calle, Basí-
lio. “Só que há muitas coisas que não
têm a ver só comigo, mas com as
histórias de todos nós, do nosso tra-
balho, da Casa Conveniente. Há aqui
uma convocação em que todos nos
podemos encontrar e há também
um lado secreto que é uma maneira
de poder existir numa tentativa de
plenitude. Não gosto da ideia da bio-
grafia, apesar de estar lá totalmen-
te.” Estar totalmente parte também
da lógica comunitária e emocional
que Calle coloca no que faz. As pa-
redes são deitadas abaixo por gente
da construção civil pescada ali ao
lado, as cadeiras para o público são
emprestadas pelos vizinhos, a fábri-
ca de bolos do texto foi extraída re-
almente das imediações. E em cada
esquina do texto, ludibriando-nos
com os ângulos e as sombras que
usa na sua circulação pelo espaço,
estará sempre Mónica Calle. No pon-
to frágil e inicial da sua reconstru-
ção.
Abre as portas da sua Casa Conveniente na Zona J. A Boa Alma, com texto de Luís Mário Lopes e música de JP Simões, é um espectáculo assombrado por Brecht e pela deriva da actriz e encenadora.
Gonçalo Frota
A casa nova de Mónica Calle é um recomeço
BRU
NO
SIM
ÃO
![Page 18: Ipsilon-20150116](https://reader033.vdocuments.mx/reader033/viewer/2022051000/55cf9360550346f57b9d6307/html5/thumbnails/18.jpg)
18 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015
A família ou o suicídio
Desesperado, sem dinheiro, Teddy Thompson, fi lho de Richard e Linda Thompson, teve a mais bizarra das ideias: fazer um disco com todos os compositores da família. Saiu um álbum sobre a importância do clã — e também a catarse do violentíssimo período em que os pais se separaram.
João Bonifácio
Linda e Richard Thompson foram um caso especialíssimo do folk-rock britânico: Shoot Out The Lights fez deles estrelas da noite para o dia
![Page 19: Ipsilon-20150116](https://reader033.vdocuments.mx/reader033/viewer/2022051000/55cf9360550346f57b9d6307/html5/thumbnails/19.jpg)
ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015 | 19
pensar que, “por mais disfuncionais”
que sejam, ainda há ali algo que os
agarra uns aos outros. Mas uma coi-
sa é ter empatia pelo filho/mano/tio
que anda mal da carteira. Outra é
brilhar menos do que ele — e desde
o primeiro momento Teddy aperce-
beu-se de que “havia uma certa com-
petição”, que ele considera “saudá-
vel”. (Ao New York Times, Kami disse
que tinha de fazer a melhor canção
de todas, desse por onde desse.) Te-
ddy “nunca [teve] dúvidas de que os
seus familiares escreveriam boas can-
ções”. De facto, a qualidade era de
tal monta que “após escutar o que
toda a gente fizera” Teddy sentiu
“uma enorme pressão” enquanto
escrevia a sua segunda canção. Aca-
bou por ser a que abre o disco e lhe
é homónima.
É um tremendo pedaço de com-
posição, uma balada folk num ¾ que
traz inquietude às palavras — de uma
mesura e de uma empatia humanas
admiráveis: “My father is one of the
greats/ to ever step on a stage/ my
mother has the most beautifull voice
in the world/ and I am betwixed and
between/ Sean Lennon, you know
what I mean/ (...). It’s family (...)/ My
mother gave me all of the love that she
had/ she lived for us kids (...)/ but she
never dealt with her pain/ and I’ve
done exactly the same”, canta Teddy.
Um portento de canção, uma aber-
tura perfeita que desde logo suma-
riza o que se segue. Há uma razão
para isto.
“Vou contar-te uma coisa”, come-
ça Teddy, sempre no seu tom de
quem é incapaz de não ser honesto:
“Essa foi a última canção escrita pa-
ra o disco. Não conseguia compor
nada de jeito e procrastinei o mais
que pude — e hoje estou feliz por
tê-lo feito. Acho que estava escrito
que tinha de ser assim. É que doutro
modo não poderia ter composto o
que no fundo é uma espécie de sín-
tese do projecto e da ideia de família
em geral. Estou muito orgulhoso
dessa canção”.
Continua, no seu jeito de miúdo
que finalmente se impôs mas ainda
luta para ser ouvido: “Apesar de a
minha família não ser tradicional,
porque os meus pais são músicos,
ainda assim somos uma família — e
temos os mesmos problemas que as
outras famílias. Também temos uma
dinâmica musical que torna as coi-
sas ainda mais confusas, competiti-
vas e por vezes excitantes — acho
eu. Falamos mais uns com os outros
através de canção do que cara-a-
cara.”
Quando Family começou, Teddy
estava a sentir-se “muito só e mal
amado”. Ocorreu-lhe fazer um disco
a solo sobre a família mas rapida-
mente percebeu que se tivesse feito
tudo sozinho se teria suicidado. De-
pois diz isto: “Precisava que a minha
família se unisse em torno de
mim.”
Precisamos todos, Bonny boy. E é
exactamente por tu e os teus terem
sabido transmitir isso tão bem que
Family é possivelmente o mais belo
e comovente disco de final de 2014
e ficará connosco muito tempo.
Que os vossos estejam sempre ao
vosso lado.
E de repente todo o corpo se
arrepia, os pêlos eriçam-se,
a garganta aperta. Estamos
no refrão de Bonny boys, o
quarto tema de Family, pé-
rola folk editada há pouco
por um grupo chamado Thompson
— isto é, Richard e Linda Thompson,
mas também os filhos, sobrinhos e
netos de ambos. Até aí fora Linda a
guiar a canção, que é uma espécie
de aviso de uma mãe aos filhos acer-
ca dos perigos do mundo (costuma
tratá-los por “Bonny boys”, daí o tí-
tulo.) Quando chega o refrão, Ri-
chard junta-se à ex-mulher e ambos
cantam às suas crias “Bound to no-
one, fear nothing (...)/ Dry your tears/
I am at peace/ With your sweet voices
in my ears”. Todo o corpo se arre-
pia.
É que há 40 anos, em End of the
rainbow, nono tema de I Want To See
The Bright Lights Tonight, o primei-
ro disco lançado a meias pelo par,
Richard Thompson, ex-fundador
dos Fairport Convention e inventor
do folk-rock britânico, cantava, com
uma rispidez psicótica “I feel for you,
you little horror/ Safe at your mother’s
breast (...)/ ‘Cause your father is a
bully/ And he thinks that you’re a
pest/ And your sister she’s no better
than a whore”. Muna, a filha mais
velha do casal, tinha acabado de
nascer.
Oito anos depois chegava Shoot
Out The Lights, que viria a ser o úl-
timo disco a meias de um casal que
pouco depois não o era mais. Linda
estava grávida de Kami, a terceira
filha, e as letras de Richard descre-
viam, com uma exactidão cruel, a
violência emocional da separação.
Entre as duas obras-primas, entre
Muna e Kami, nasceu Teddy. Que,
ficámos a saber há dias, quando fa-
lámos com ele, é quem realmente
canta a harmonia de Bonny boys —
numa imitação perfeita da voz do seu
pai anos antes. Teddy, que leva uma
bela carreira em nome próprio, foi
o mentor de Family. Foi dele a ideia
de todos os elementos da família que
se dedicam à música criarem um ál-
bum em conjunto; e foi dele a ideia
de cada um gravar em separado, de
modo a não houvesse lugar a atritos.
As boas intenções, no entanto, têm
um limite — e não tenhais dúvidas de
que quando se houve a voz de Teddy
em Bonny boys no lugar do que devia
ser a voz de Richard, alguém está,
finalmente, a matar o pai.
Tudo começou, como não podia
deixar de ser, com desespero. “Que-
ro deixar isto bem claro: a Verve
[editora que lhe lançava os discos]
não renovou o meu contrato. Admi-
to que me foi difícil ajustar-me à vi-
da sem uma editora que me carre-
gasse. Não sou propriamente um
empreendedor”, confessa Teddy.
O dinheiro não era o único pro-
blema de Teddy na altura. Ou por
outra: “mais tarde”, ele apercebeu-
se de que o dinheiro não era o único
problema, visto que na altura em
que teve a ideia de juntar os pais,
uma irmã directa, uma meia irmã
do segundo casamento da mãe e um
sobrinho para juntos criarem um
álbum, ele estava “apenas à procu-
ra de editar qualquer coisa enquan-
to não decidia o que o próximo dis-
co ia ser”.
Mas, “olhando para trás”, admite
Teddy, “este disco coincidiu com um
período muito difícil”. “Comecei a
colocar muitas questões, a mim e
ao meu terapeuta, sobre a minha
infância e sobre como cheguei a es-
te ponto na minha vida. E devagari-
nho fui-me apercebendo de que
manifestei o desejo de fazer este dis-
co como forma inconsciente de jun-
tar a minha família e reparar alguns
dos danos feitos quanto eu tinha seis
anos.”
Linda Peters conheceu o seu fu-
turo marido nas gravações de Henry
The Human Fly, disco a solo de Ri-
chard que tem a honra de ser o ál-
bum menos vendido em toda a his-
tória da Warner Bros Records. Por
maiores que os Fairport Convention
nos pareçam hoje, a verdade é que
sempre que o seu fundador se dedi-
cava a álbuns a solo as vendas eram
um desastre.
Em 1973, o casal casou-se e cola-
borou em cinco discos, todos com
o mesmo inêxito, até que Shoot Out
The Lights os tornou, da noite para
o dia, estrelas. Teddy Thompson ti-
nha seis anos. Nascera no seio de
uma comunidade islâmica em que
os pais decidiram assentar, por en-
tre dietas que faziam toda a família
passar fome e que — dizem as más
línguas — estarão na origem de epi-
sódios de tremenda violência emo-
cional por parte de Richard. Naque-
le exacto instante em que tudo po-
deria ter sido perfeito, com os
cheques a caírem na conta bancária,
já o mal estava feito — Richard saiu
de casa e Teddy não voltou a ver o
pai até aos 18 anos, quando se bor-
rifou para a universidade e foi viver
com o pai para se tornar cantautor.
Não admira que tenha contas a ajus-
tar com os seus seis anos de idade.
Mas na génese do projecto que
agora chega às lojas não estava qual-
quer vingança — nem sequer era
suposto que o tema fosse a família,
como veio a ser. “Pedi a cada mem-
bro da família que escrevesse can-
ções originais para este disco, mas
não especifiquei tema algum. Nesse
sentido foi interessante ver a respos-
ta que deram — algumas canções
eram claramente sobre a família e o
amor, outras mais pragmáticas.”
Teddy refere-se ao pai que, evasi-
vo como sempre, aproveitou para
escrever um tremendo hino político
sobre os nossos tempos, That’s enou-
gh. Mas em One life at a time, a se-
gunda canção com que contribui
para Family, canta a dada altura “So-
metimes it’s hard to say/ what you got
to say anyway/ I’m gonna have to say/
that I’m not thrilled about you (...)/
You’re building me a prison/ where
freedom is a crime”. Para o melóma-
no atento à vida privada deste ho-
mem, isto é o típico e velho Richard:
sarcástico, bruto, vagamente misan-
tropo mas honesto e certeiro até à
medula.
“Bem”, começa Teddy, “o meu pai
jura que é uma canção política, mas
sem dúvida que eu ouço na canção
o mesmo que tu”. Uma espécie de
confissão: seja qual for a relação que
se tem com uma pessoa, vai sempre
“Apesar de a minha família não ser tradicional, ainda assim somos uma família — e temos os nossos problemas. Também temos uma dinâmica musical que torna as coisas confusas, competitivas e por vezes excitantes. Falamos mais uns com os outros através de canções do que cara-a-cara”
haver momentos em que não a su-
portamos. “Seja o que for que ele
esteja a dizer, adoro a ideia: afasta-te
da minha vida, vive a tua. Acho que
funciona em muitos aspectos.”
Curar a feridaFamily foi gravado de uma forma
particular: todos os membros da fa-
mília mandaram as canções por e-
mail, e Teddy tinha a última palavra
quanto ao que ficava. Só se encon-
trou com o pai, mas não correu pro-
priamente bem: Teddy tinha “difi-
culdade em dizer-lhe ‘Toca menos’,
em dar-lhe ordens”. “Era importan-
te que eu fosse o produtor e tomas-
se decisões, porque alguém tinha
de estar ao comando. E o e-mail era
a única forma possível: juntar esta
gente toda ficava demasiado caro,
porque vivemos em sítios diferentes
— além de provavelmente não ser
boa ideia juntar os meus pais no
mesmo espaço”, diz, com uma sin-
ceridade desarmante.
Teddy parece ser, muitas vezes, o
rapaz “not too secure of himself”, co-
mo se descreve na canção que dá o
título ao álbum. Tem uma necessi-
dade de honestidade tão grande que
é capaz de dizer: “Pessoalmente,
apreciei o processo porque o con-
trolei. E quando os meus pais se se-
pararam, o que eu mais senti foi que
não tinha controlo algum, não fui
tido nem achado no curso dos acon-
tecimentos. Isto ajudou a curar um
pouco a ferida.”
A família, note-se, não levantou
nenhuma objecção ao projecto: “Ti-
nha a certeza de que iam dizer sim.
Eles sabiam que eu precisava”, diz
Teddy — uma resposta que nos faz
![Page 20: Ipsilon-20150116](https://reader033.vdocuments.mx/reader033/viewer/2022051000/55cf9360550346f57b9d6307/html5/thumbnails/20.jpg)
20 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015
É uma das mais magnífi cas vozes da música portuguesa. Nas suas canções, não ouvimos apenas o músico, mas também o homem do teatro ou o realizador – é dessa riqueza de olhares que nasce a sua singularidade. Aprendiz de Feiticeiro é o seu novo álbum.
No início é a só a voz, aquela
imensa voz rouca, cava e tão
expressiva. “Se tu me visses
/ na mentira dos espelhos /
talvez Ulisses / se tu me vis-
ses”. Quase no fim, na déci-
ma sexta das dezassete canções, há
uma viagem à Lua com Meliés, há a
harmónica que Morricone ofereceu
a Sergio Leone em O Bom, o Mau, e o
Vilão, há o ameaçador “are you
talking to me?” de Robert de Niro em
Nova Iorque ou a imortal melodia de
As time goes by em Casablanca. A mãe
das ficções, a Odisseia de Homero, e
aquelas que, no século XX, o homem
inventou com um “comovido cora-
ção a bater a 24 imagens por segun-
do”.
Nelas, feito delas, José Medeiros,
micaelense de nascimento e residên-
cia, lisboeta por adopção, um músi-
co longe de ser “só” músico que vem
construindo ao longo dos anos, dis-
cretamente, um singularíssimo cor-
po-de-obra. Aprendiz de Feiticeiro, o
seu último álbum, sucessor quatro
anos depois de Fados, Fantasmas e
Folias, tem essa singularidade inscri-
ta no título e na edição ela mesma: o
músico, que é também homem do
teatro e do cinema, junta ao CD um
DVD com O Outro Lado do Espelho,
documentário sobre o seu percurso
e documento de como, em palco, faz
das canções teatro musicado.
No disco, como é habitual, José
Medeiros viaja: nas caravelas de Ba-
lada do varandim, pelas sementeiras
na aldeia micaelense de João Bom,
observando a Lua d’Agosto no Rio de
Janeiro, caminhando pela Mancha
de Quixote, pela magia do cinema
ou através da Fanfarra dissonante,
com “a crise e a bancarrota” a “dan-
çar um pas de deux (faîtes vos jeux!)”,
no país ensombrado que é hoje o
nosso.
A música é também ela uma digres-
são por géneros e tempos. Os misté-
rios telúricos da tradição apresentam-
se na magnífica PartIlha feita de flau-
tas, sanfona e violino, a balada
descarnada (e a chanson aqui tão per-
to, apesar da guitarra portuguesa),
encanta em Balada do varandim), há
bossa feita melancolia no balanço da
já citada Lua d’Agosto no Rio de Janei-
ro ou Orientes entrevistos na opulen-
ta A suave inquietação das traineiras.
“De uma forma muito natural, sem
planear nada, eu tenho esta tendên-
cia para ser ecléctico”, afirma.
Homenagem aos mestresJosé Medeiros, 63 anos, ao telefone
desde São Miguel, carro encostado
na berma da estrada e olhar obser-
vando o mar e as nuvens sobre a ilha,
dirá: “Não sei se escolhi a aventura,
talvez a aventura me tenha escolhido
a mim”. Mais à frente, confessará que
isso, a aventura, “é inevitável nos
ilhéus”: “estamos aqui no mar e ten-
tamos estender os braços para os
dois lados do Atlântico, ou para o
país na Europa, ou para as Améri-
cas”. Está a falar dele e está a falar
de um outro açoriano, célebre nou-
tras paragens, a quem tem dedicado
ultimamente muito do seu tempo.
Ao mesmo tempo que recebemos
o novo passo de uma discografia
inaugurada no final da década de
1970 e que lhe valeu em 2004, com
Torna-Viagem, o Prémio José Afonso,
estreia Livreiro de Santiago, docu-
mentário ficcionado, assim o define,
sobre Carlos George Nascimento,
corvino filho de baleeiros emigrado
para os EUA e, depois, para o Chile,
que se tornaria o primeiro editor do
jovem Pablo Neruda (ou de outra
Nobel da Literatura, Gabriela Mis-
tral). Filmado com a equipa de Tiago
Rosas, realizador de O Outro Lado do
Espelho, conta com participação de
Maria do Céu Guerra, Filipa Pais
(uma das vozes de Aprendiz de Feiti-
ceiro) ou de Jorge Palma. Teve antes-
treia quarta-feira em São Miguel e,
em Fevereiro será exibido em Lisboa
(dia 20 na Casa dos Açores, dia 27 no
Teatro A Barraca).
A coincidência da edição do disco,
que tem também documentário, com
o lançamento do filme, é isso mes-
mo, uma coincidência. Mas, inadver-
tidamente, ilustra bem a forma como
José Medeiros encara a criatividade.
“Nunca houve uma fronteira muito
nítida entre as minhas actividades na
música, no teatro ou no cinema, tal-
vez por ser de uma família de actores
e músicos”.
No início da década de 1970, tro-
cou a ida para a Universidade em
Lisboa por uma temporada com a
sua banda no Paquete Funchal – an-
dou entre São Miguel, Lisboa e o
Funchal a tocar canções dos Beatles,
dos Rolling Stones ou de Ray Char-
les, isto enquanto descobria em Jo-
sé Afonso ou Adriano Correia de
Oliveira música que marcaria deci-
sivamente o seu percurso futuro. Foi
depois assistente de realização em
Lisboa, foi nos anos 1980 realizador
da RTP Açores, rodando Xailes Ne-
gros ou Há Mau Tempo no Canal e
compondo as bandas-sonoras dos
filmes produzidos. A sua música tem
inscrita essa indefinição entre lin-
guagens artísticas. Ele é, afinal, e
como se auto-intitula no novo ál-
bum, Aprendiz de Feiticeiro. “[O tí-
tulo] é uma homenagem aos gran-
des mestres. O Chaplin músico, clo-
wn e realizador, um imenso
feiticeiro. O Orson Welles e o Kuro-
sawa. A outro nível o Zeca Afonso,
o Tom Jobim e o Ray Charles, gran-
des feiticeiros que sempre me toca-
ram profundamente. Enquanto tiver
fôlego quero continuar a ser apren-
diz desses grandes feiticeiros”.
Aprendiz de Feiticeiro foi gravado
entre Albarraque, em Sintra, Coim-
bra (para assegurar que Manuel Ro-
cha, da Brigada Víctor Jara, estaria
no disco) e São Miguel. Foi constru-
ído “’with a little help from my frien-
ds’”, como diz, citando a canção dos
Beatles. Teve direcção musical de
Jorge A. Silva, que com Rogério Car-
doso Pires e Gil Alves formaram o
núcleo duro das gravações. Mais
amigos e amigas se juntaram: Filipa
Pais, Sara Vidal, o velho companhei-
ro Carlos Guerreiro, dos Gaiteiros de
Lisboa, ou William “Maninho” Nas-
cimento, músico brasileiro radicado
nos Açores há duas décadas.
É um álbum sem conceito. Uma
colecção de canções, de histórias e
deambulação por diferentes cená-
rios, unidos pela sempre magnífica
voz de José Medeiros e pelo roman-
tismo que carrega. Um álbum extra-
ído da sua vida, das suas leituras, dos
seus filmes. Com uma excepção, um
“desabafo”, como lhe chama. Tal co-
mo as outras canções, aconteceu-lhe.
Falamos da Fanfarra dissonante que
citámos há alguns parágrafos. “É im-
possível olharmos à nossa volta e não
acharmos que a orquestra está desa-
finada”, diz. Canção teatro (delicio-
samente burlesco) para duas vozes
(junta-se à de José Medeiros a de Pi-
lar Silvestre), qual filarmónica de
intervenção, verseja, por exemplo,
“a bem da nação, a bem da nação /
neste grotesco bailado vamos todos
ao casino / que emoção”.
José Medeiros, que cria música
intemporal, música para todos os
tempos, é um feiticeiro atento. Sabe
quando ser sátiro, sabe quando er-
guer a voz. Fê-lo novamente. É um
prazer ouvi-lo.
Mário Lopes
José Medeiros: Talvez a aventura me tenha escolhido
mmmmm
José Medeiros
Aprendiz de
Feiticeiro
Palco de Ilusões
FERN
AN
DO
RES
END
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![Page 21: Ipsilon-20150116](https://reader033.vdocuments.mx/reader033/viewer/2022051000/55cf9360550346f57b9d6307/html5/thumbnails/21.jpg)
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fundação carmona e costaEdifício Soeiro Pereira Gomes (antigo edifício da Bolsa Nova de Lisboa)Rua Soeiro Pereira Gomes, Lte 1- 6.ºA/C, 1600-196 Lisboa (Bairro do Rego / Bairro Santos) | Tel. + 351 217 803 003 / 4www.fundacaocarmonaecosta.pt
Parque de estacionamento mais próximo: Hotel SanaMetro: Sete Rios / Praça de Espanha / Cidade Universitária | Autocarro: 31
Exposição: até dia 21 de Fevereiro de 2015Horário: de quarta-feira a sábado, das 15h00 às 20h00 (excepto feriados)
ALBERTO CARNEIROÁRVORES, FLORES E FRUTOSDO MEU JARDIMDESENHOS E ESCULTURAS
curadoria: Catarina Rosendo
APOIO INSTITUCIONAL MECENAS PRINCIPAL CASA DA MÚSICAMECENAS CASA DA MÚSICAMECENAS ORQUESTRA SINFÓNICA
SinfónicaDescobertas Sinfónicas 31 Jan
18:00 Sala Suggia€ 17 | Cartão Amigo € 12,75
Lugar Coro € 12,75
Jovem/Sénior € 13,6
—
17:00 Cibermúsica
Palestra pré-concerto por
Baldur Brönnimann
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ORQUESTRA SINFÓNICA DO PORTO CASA DA MÚSICA
Baldur Brönnimann direcção musical
Seja um dos primeiros a apresentar hoje este jornal completo na Casa da Música e ganhe um convite duplo para este concerto. Condicionada à disponibilidade da sala, a oferta é limitada aos primeiros 10 leitores e válida apenas para um convite por jornal e por leitor. Obrigatória a apresentação do documento de identificação no acto do levantamento.
![Page 22: Ipsilon-20150116](https://reader033.vdocuments.mx/reader033/viewer/2022051000/55cf9360550346f57b9d6307/html5/thumbnails/22.jpg)
Gentilmente Coelho Radioactivo, Moxila e Flamingos são projectos ligados à Gentle Records, editora on-line que congrega miúdos e graúdos. Mais uma prova de que a música portuguesa está bem e recomenda-se.
No palco do Musicbox Lis-
boa está uma miúda com
orelhas de troll, um cava-
quinho, uma guitarra em
dégradé de azul para cor-
de-rosa e uma voz pueril.
Parece viver num mundo à parte,
um mundo povoado por muitos
animais, elfos, desenhos anima-
dos, gordos a comer Nestum e nu-
vens cor-de-rosa que vêm e vão
num país longínquo onde não há
noite no Verão — e onde ser cres-
cido não é um estatuto assim tão
entusiasmante.
Moxila é o cosmos muito particu-
lar de Mariana Pita, artesã de can-
ções que são autênticos relicários
da infância (mas com letras que não
deixam de ter segundos sentidos),
de uma musicalidade rudimentar
sincronizada com um jeito natural
para criar melodias encantatórias
inundadas de candor e graça, que
se colam ao ouvido, que põem um
sorriso na cara de quem não se leva
demasiado a sério e que se situam
algures entre a K Records, Daniel
Johnston, Kimya Dawson, o twee da
Sarah Records, Frankie Cosmos ou
o tontipop espanhol.
“A Moxila entretém-me e isso é
mesmo espantoso. Gostava que a
minha música tivesse isso, essa ca-
pacidade de surpreender quem ou-Mariana Duarte
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vossos
![Page 23: Ipsilon-20150116](https://reader033.vdocuments.mx/reader033/viewer/2022051000/55cf9360550346f57b9d6307/html5/thumbnails/23.jpg)
“Decidimos criar uma pequena editora on-line. Sem custos, descentralizada e sem compromissos: quem quiser pode editar só uma música na Gentle”Leonel Sousa
Tudo o que dá forma à editora (a escrita, gravação e produção de música; os vídeos, as capas, os cartazes e os concertos) se deve ao núcleo duro da Gentle
ve”, diz Luís Gravito, mais conheci-
do por O Cão da Morte, que nessa
mesma noite — a passada quinta-
feira, dia 8, no Musicbox — acompa-
nhou o amigo Coelho Radioactivo
(nome de guerra de João Sarnadas)
na apresentação em Lisboa de Can-
ções Mortas, novo disco que reúne
um conjunto precioso de canções
clássicas de cadência dulcífica, da-
quelas que conseguem ocupar o seu
próprio tempo e vagar, destilando
sobre os amores e desamores que
nos tocam a todos.
Mas o que é que Mariana, 24 anos,
Luís, 22, e João, 23, têm em comum,
além de fazerem parte de uma co-
munidade de músicos portugueses
estupidamente jovem que faz músi-
ca estupidamente boa? São colegas
na Gentle Records, uma editora com
base no Porto onde miúdos na casa
dos 20 e alguns graúdos, unidos pe-
la música, pelo design e pela ilustra-
ção, dão a ouvir, através de downlo-
ads gratuitos, as canções altamente
recomendáveis que andam a fazer
no quarto lá de casa e, ocasional-
mente, em estúdio.
Tudo o que dá forma à editora (a
escrita, gravação e produção de
música; os vídeos, as capas dos dis-
cos, os cartazes e a marcação dos
concertos) é levado a cabo pelo nú-
cleo duro da Gentle, com quem o
Ípsilon esteve à conversa: João Sar-
nadas (Coelho Radioactivo, Flamin-
gos), Mariana Pita (Moxila, Renata
e os Índios, Sr. Eduardo Urso), José
Cardoso (Tomba Lobos, Zé & Leo-
nel), Leonel Sousa (Zé & Leonel,
Spatial White Noise), João Sobral
( João Nada, emigrado em Londres),
Jorge Amador (Major Dog Ear) e
Luís Gravito (Flamingos), o maestro
das operações em Lisboa. Não há
chefes nem ninguém que queira ser
mais do que os outros, e por isso
foi tão difícil conseguir arrancar-
lhes quem começou com esta his-
tória toda. “Isso não interessa. To-
da a gente faz a sua parte e toda a
gente tem a password para meter
uma música no site ou no Facebook
quando quiser”, atira José Cardoso.
Mas lá acabam por ceder. “Fui eu
e o Zé que começámos com isto em
2012”, conta Leonel Sousa, 36 anos,
o mais velho do grupo, que se pode
orgulhar de ter co-criado a Bor
Land, extinta editora independen-
te que lançou nomes como Norber-
to Lobo, Lobster e Old Jerusalem.
“Decidimos criar uma pequena
editora on-line. Sem custos, descen-
tralizada e sem compromissos:
quem quiser pode editar só uma
música na Gentle. Queríamos que
fosse uma comunidade aberta a to-
da a gente e em que todos os mem-
bros pudessem convidar pessoal”,
explica Leonel. A coisa foi crescen-
do precisamente segundo uma es-
tratégia de contratação livre, com
base na amizade e na admiração
mútua, no amigo puxa amigo e ve-
nham mais cinco — e ninguém leva
a mal quem não ficar ligado à edi-
tora após alianças passageiras. Tal
pode acontecer, por exemplo, na
Singles Week, uma semana espe-
cial, agendada duas vezes por ano
(a próxima é em Março), em que a
Gentle edita uma canção por dia de
pessoas da casa, de convidados e
de quem lhes envia propostas para
a caixa de correio.
Incesto RecordsMusicalmente falando, as referên-
cias da equipa Gentle são de genea-
logia múltipla. Uns falam em Pastels,
outros em Mark Hollis, outros em
Hüsker Dü. Não admira, portanto,
que o resultado seja uma editora
que agrega música diferente entre
si (mas sempre de gentil tacto), on-
de tanto há lugar para canções que
seguem a herança da folk como pa-
ra twee, pop afectuoso ou explora-
ções à guitarra. Apesar das diferen-
ças, quase todos eles acabam por
ter projectos em conjunto. “Isto de-
via chamar-se Incesto Records”,
graceja José Cardoso. “É natural, nós
gostamos todos da música uns dos
outros”, justifica João Sarnadas. “Eu
senti logo que a Gentle era uma ce-
na especial”, declara Luís Gravito,
que entrou oficialmente no gangue
no último Verão para dar corpo a
Flamingos, a nova aventura com
Sarnadas. “Não encontro mais nada
que soe a Moxila, a João Nada ou a
Tomba Lobos”, acrescenta, em re-
gisto de vénia genuína.
O mesmo acontece com a Cafetra,
outra editora de rapazes e raparigas
na casa dos 20, que pelo nosso bem
começaram a fazer música em idade
imberbe (errata: alguma da melhor
música ouvida nos últimos anos em
solo nacional). Sim, metemo-los
aqui ao barulho propositadamente,
pois não faltam pontos de contacto
entre a Cafetra e a Gentle: são ami-
gos, partilham palcos, vêem concer-
tos e gostam das canções uns dos
outros, e vivem do mesmo senti-
mento caseiro, do faça-você-mesmo,
da mesma criatividade imparável,
do mesmo sentido de pertença, da
mesma linguagem mundana mas de
português bem tratado, da mesma
vontade de “querer viver a vida toda
sem merdas de empreendedor” (ou-
vir Dinheiro pra te pagar, de João
Nada), da mesma legitimação da
música entre os pares, sem estarem
demasiado preocupados com a len-
galenga “da música mal tocada e mal
cantada” de detractores exteriores
(citemos o recadinho deixado pelas
Pega Monstro nesse hino chamado
Fetra: “Se isto não é música/ então
faz tu uma canção/ e se eu desafino/
canta lá tu ó meu cabrão”).
Um modo de estar na vida e na
música que nos remete para a revo-
lução discreta que foi a FlorCaveira,
a escola de alguns miúdos da Cafetra
e da Gentle. “Perguntaste porque é
que agora tens tantos putos a fazer
música boa a partir do quarto. Acho
que a FlorCaveira foi muito impor-
tante para isso. Ajudou teres gajos
ao teu lado a fazer essa cena lo-fi e
a mostrarem que podia resultar”,
diz Luís Gravito, que, tal como João
Sarnadas, foi apadrinhado por João
Coração, um dos embaixadores da-
quela editora. “O Coração era bué
‘venham cá todos, vamos tocar can-
ções e mostrar as músicas uns aos
outros’”, lembra Sarnadas.
E é isso que a família Gentle Re-
cords vai continuar a fazer, sempre
com a janela aberta para todos aque-
les que os queiram ouvir. Quanto a
planos para o futuro próximo, ha-
verá discos de Tomba Lobos, de João
Nada e de Flamingos (se o nosso ho-
róscopo não falhar, vem aí assunto
sério), mais concertos (no dia 6 de
Fevereiro, Moxila faz a primeira par-
te de B Fachada no Paço dos Duques
de Bragança, em Guimarães), o
prosseguir das sinergias com a Fa-
vela Discos (uma espécie de irmã da
Gentle mais extrovertida, dada à
fritaria, “e menos fofinha”) e novos
capítulos da videoteca mensal Cine-
alegre. De resto, dizem eles, logo se
vê. Sem pressas, dizemos nós - des-
de que continuem a tratar gentil-
mente dos nossos ouvidos.
![Page 24: Ipsilon-20150116](https://reader033.vdocuments.mx/reader033/viewer/2022051000/55cf9360550346f57b9d6307/html5/thumbnails/24.jpg)
24 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015
Disc
os
Pop
Nostalgia do futuroCriado com o recurso a
aplicações de iPhone e iPad,
é um disco que respira a
dualidade passado-futuro,
com as letras a criarem
um espaço de nostalgia,
enquanto a música nos puxa
para cenários futuristas.
Vítor Belanciano
Beat Spacek
Modern StreetsNinja Tune, distri. Symbiose
mmmmm
Em 2015 o cantor
e músico inglês
Steve Spacek
continua a
reinvenção da
canção soul em
cenários tecnológicos. Foi assim
com Curvatia (2001) e Vintage
Hi.Tech (2003), os admiráveis
álbuns do seu extinto grupo
Spacek, e depois com Space Shift
(2005), assinado já com o nome
Steve Spacek, e mais tarde com 93
Million Miles (2011), subscrito com a
designação Africa HiTech, ao lado
do músico Mark Pritchard.
Agora reinventa-se com a
designação Beat Spacek, naquele
que é o primeiro álbum da editora
Ninja Tune para este ano – estará
nas lojas a 26 de Janeiro. Na
década de 2000 Steve Spacek
representou uma alternativa
sólida aos padrões massificados da
soul ou do hip-hop, entendendo
esses universos como espaço de
fantasia e especulação estética,
através de um som minimalista
descendente de, entre outros,
Voodoo, o muito marcante álbum
de D’Angelo de 2000.
A meio dos anos 2000 chegou a
mudar-se da cinzenta Londres
para a solarenga Los Angeles,
onde o seu trabalho parecia ser
melhor entendido, trabalhando ao
lado de J Dilla ou Sa-Ra, tendo
regressado a Inglaterra anos
depois. É daí que sai agora este
registo. Como sempre a música é
precisa, mas com a necessária
agitação para gerar calor e
atributos rítmicos. A semântica
minimalista está lá, mas em cada
aresta descobrem-se cambiantes e
decifram-se novos mistérios. É
talvez a obra onde mais
transcende géneros, centrando-se
na atmosfera e no balanceamento
rítmico, independentemente das
inspirações.
Criado em grande parte com o
recurso a aplicações de iPhone e
iPad, é um disco que respira a
dualidade passado-futuro, com as
letras a criarem um espaço de
nostalgia, enquanto a música nos
puxa para cenários futuristas. Em
Compact n’ sleep somos
transportados para um panorama
soul espaçoso, com a voz
aveludada de Spacek a brilhar,
enquanto os subgraves de Alone in
da sun ou de I wanna know nos
colocam num local vagamente
marcado pelo dub ou dubstep e
Inflight wave ou I want you
resultam numa pop electrónica
dinâmica que evoca elementos do
pós-punk.
Ou seja, independentemente
dos quadros que são traçados,
consegue sempre um equilíbrio
entre identificação e invenção,
entre voz, gestão rítmica e
desenho melódico, afirmando um
vocabulário a partir de várias
nomenclaturas que, no fim de
contas, acabam por resultar numa
soul de contornos tecnológicos,
como foi sempre o seu carimbo.
Disc
osQue fazer desta revolução?
Belle & Sebastian
Girls In Peacetime Want To DanceMatador Records; distri. Popstock
mmmmm
Ao nono álbum,
os Belle &
Sebastian estão
diferentes. É o
que todos dirão,
mesmo não
tendo como prova mais que The
party line, o primeiro single de
Girls In Peacetime Want To Dance.
A mudança, no caso específico
desta canção, é refrescante.
Cowbell a marcar o ritmo do pré-
refrão, sintetizadores a dançarem
enrodilhados no baixo, batida
funk na tangente do disco e muito
hedonismo, muito elegante: “Jump
to the beat of the party line”, exorta
o refrão e é precisamente isso que
temos vontade de fazer.
Mas The party line é apenas uma
das doze canções do novo álbum, o
que sucede a Write About Love,
editado em 2010. E é, neste álbum
produzido nos EUA por Ben H.
Allen III (Gnarls Barkley, Animal
Collective), o primeiro e decisivo
sinal da apregoada mudança na
banda que inventou para si uma
sensibilidade pop feita de uma
superfície delicada e de dor e crise
existencial abaixo dela.
Nobody’s empire, a canção que
abre o álbum, tem a trompete que
é imagem de marca, coro gospel
para frémito épico e uma guitarra
elegante a abrir caminho para
frases como “If we live by the books
and we live by hope / does it makes us
targets for gunfire?” – é sempre um
prazer reencontrar a pena de
Stuart Murdoch. Allie, a segunda
canção, grande canção, soa a
canção combate à Belle &
Sebastian: dançamos o ritmo
garageiro sem fúria, mas com a
flauta, soprada com intenção, a
colorir a melodia. A guitarra há-de
espingardar e é impossível não
bater o pé ao ritmo da peça. Mas,
nesse momento, o que fazemos
com todo este conforto? “When
there’s boms in the Middle East / you
wanna hurt yourself”, ouvimos no
início; ouviremos mais tarde: “You
made a list of all your heroes / and
you thought about all they went
through / It’s much harder, much
darker then what you went through”.
Quando desembocamos em The
party line, somos tudo entusiasmo:
são os Belle & Sebastian, os da
agudeza da lírica e do ouvido para
a melodia, e são também algo de
diferente. Porém a diferença, esta
diferença, não manterá o seu
encantamento. Atravessamos a
dolência de The power of three”,
cantada por Sarah Martin (secção
de cordas dinâmica em convívio
com sintetizador de viajante
espacial), avançamos pela
belíssima pop de câmara de The cat
with the cream e aterramos depois
em Enter Sylvia Plath. Não é
surpreendente ver os Belle &
Sebastian escreveram sobre a
poeta americana. Surpreendente é
o que fizeram com ela: quase sete
minutos de um synth pop
desenterrado de pesadelos dos
anos 1980 enquanto caricatura
mal-amanhada de Pet Shop Boys
ou dos ABBA. Desconcertante – e
não de uma boa maneira: a
surpresa é só desilusão e
desconforto perante a brincadeira
(só pode ser isso, não é?). Não, não
é. Ouviremos yatch rock barato,
com congas e ritmo disco, em
Perfect couples – o paradoxo entre o
tom bem-disposto e os versos
cantados (“What have we done? /
those perfect couples / keep breaking
up”) é uma boa e velha ideia dos
Belle & Sebastian, a sua
concretização, aqui, nem por isso.
Ouviremos sete minutos de mais
synth-pop, o de Play for today, este
em versão tropical (ou chungaria
80s), onde se canta sobre a miúda
de sorriso fácil que esconde
consigo uma terrível verdade (não,
a vida não lhe sorri).
No fim, damos por nós a pensar,
medido o início irrepreensível do
disco, recordando como a
despedida com Today (This army’s
for piece), balada enublada por
sons atmosféricos, é uma canção
da qual não queremos sair,
reconhecendo que continuamos a
ser surpreendidos pelo universo
lírico de Stuart Murdoch (que não
mudou), pesado tudo isso,
Belle & Sebastian: a festa plástica na pista de dança está longe de lhes assentar bem
Soul e tecnologia: de novo o carimbo de Steve Spacek
![Page 25: Ipsilon-20150116](https://reader033.vdocuments.mx/reader033/viewer/2022051000/55cf9360550346f57b9d6307/html5/thumbnails/25.jpg)
ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015 | 25
Veja os videoclips na edição do ípsilon para tablets
dizíamos, concluímos que neste
Girls In Peacetime Want To Dance a
suave revolução entusiasma e é
bem-vinda, mas que a festa plástica
na pista de dança (a revolução
histriónica, digamos) está longe de
lhes assentar bem. E é uma pena.
Mário Lopes
Courtney Barnett
Double EP: A Sea of Split PeasPopstock
mmmmm
Portugal
continua a ser
um país onde as
coisas chegam
tarde: a empatia
humana, a
democracia, os discos. Double EP:
A Sea of Split Peas, álbum de estreia
da magnífica Courtney Barnett,
lançado na Austrália em 2013,
chegou às nossas lojas em
Dezembro, pelo que meio de
Janeiro parece a altura ideal para
falar deste magnífica elegia ao
engenho musical. Engenho no
sentido em que a senhora Barnett
consegue, com quase nada, criar
melodias deliciosas, arrancar
simples mas brilhantes arranjos e,
como se isto não fosse suficiente,
escrever narrativas hilariantes
baseadas nos pequenos acidentes
do dia-a-dia. O melhor exemplo
deste talento é Avant-gardener, a
história de uma ida ao hospital à
conta de asma, que se edifica
assim: uma slide-guitar cheia de
reverberação desenha uma figura
melódica encantadora, enquanto
Courtney nos põe a par do seu mal
de pulmões num registo vocal
particular, meio narrado, meio
slacker, sempre com uma frase
aguçada pronta a gozar com a sua
condição de pessoa-a-quem-
acontecem-coisas. Em Out of the
woodwork, a abertura, guitarras e
pianos entregam-se a um pequeno
duelo antes de teclas que emulam
violinos ensombrarem o refrão
com ligeira melancolia. Há um
pouco mais de balanço em History
eraser, em que a guitarra surge
mais à frente dos restantes
instrumentos na mistura – Double
EP, diga-se, é uma ode à arte
perdida de fazer de uma guitarra
ritmo o motor de uma canção. Em
certo sentido há muito de Go-
Betweens, aqui, como as seis
cordas de David ou Lance Jr
provam. Mas permitam que
citemos a letra desta última: “I
masturbated to the songs you wrote
(…) it felt wrong, but it didn’t take too
long/ much apreciated all your
songs/ doesn’t mean i like you/ it just
helps me get to sleep”. Quantas vezes
vemos tão delicado tema ser
tratado com tanto descaramento,
tanto humor e tanta classe?
Poucas, muito poucas.
João Bonifácio
![Page 26: Ipsilon-20150116](https://reader033.vdocuments.mx/reader033/viewer/2022051000/55cf9360550346f57b9d6307/html5/thumbnails/26.jpg)
26 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015
Quando morreu, David Foster Wallace deixou aparentemente completos 12 capítulos, 250 páginas, deste romance que o seu editor, Michael Pietsch, transformou numa “neurologia do fracasso”
Livr
os
Ficção
É possível parar o pensamento?O romance inacabado de
David Foster Wallace —
uma trágica e hilariante
dissertação sobre o tédio e a
frustração. Isabel Lucas
O Rei Pálido
David Foster Wallace
(Trad. Maria Dulce Guimarães da
Costa e Vasco Teles de Menezes)Quetzal
mmmmm
O romance
póstumo de
David Foster
Wallace, o
escritor que se
propôs
reinventar uma
fórmula de fazer
literatura e foi
classificado de génio depois de
publicar A Piada Infinita (Quetzal
2012), sai em Portugal ao mesmo
tempo que nos Estados Unidos se
publica David Foster Wallace The
Reader (Little, Brown and
Company), guia de leitura para
quem quiser iniciar-se no autor que
não suportou viver no turbilhão da
sua cabeça. É uma selecção de
alguns dos seus textos mais
significativos, um best-of que varre
a diversidade do seu registo
literário — ensaio, conto,
romance... — e que os mais cínicos
apontam como outro produto da
indústria Wallace, aquela que se
alimenta do suicídio do escritor, em
Setembro de 2008, tinha ele 46
anos, e do culto que o elevou ao
estatuto de ícone da América, a
marca de uma geração que
procurava alternativas nas artes.
O Rei Pálido, o livro que deixou
incompleto e em que trabalhava
havia dez anos, está incluído nesse
volume de mil páginas que tenta
responder à pergunta “por onde
começar?”. É uma das grandes
hesitações. Há caminhos melhores
para este seguidor de Thomas
Pynchon, que partiu do
modernismo para inventar algo
sem nome, experimental às vezes,
outras clássico, no modo como
narra as pequenas histórias que
compõem a sua intrincada teia
literária? Quem já leu Wallace sabe
da dificuldade de penetrar naquele
universo que não deixa um nervo
ileso; da dificuldade de aguentar a
mágoa, de não sucumbir ao delírio,
de aceitar dar um passo em
direcção ao inferno, sabendo que
dificilmente se sairá igual. Isso, essa
capacidade de permanecer
intocado quando se vai em frente
no aventuroso convite de o seguir
no seu tormento e na sua vertigem
inventiva, também não era o que
Wallace queria. Ele fere. Mas não é
gratuito. Estava ferido e era nesse
estado que escrevia. Sobretudo nos
romances. Que sedução pode haver
nisto? A tal garantia de ser tocado.
Foi assim em A Piada Infinita,
original de 1996: um livro de mais
de mil páginas, centrado na figura
de Harold Incandenza, 18 anos,
interno numa academia de ténis,
que serviu ao escritor para satirizar
o permanente convite à alienação
pela indústria do entretenimento
na América de finais do século XX.
A suprema felicidade estava na
suprema capacidade de diversão.
Daí nasceu uma enciclopédia de
sentimentos, emoções à flor da
pele, obsessões, um modo
inclemente e letal de contar a
depressão, a tristeza que vem da
frustração de se ser, e também de
não se ser, um alienado. O Rei
Pálido, de que Foster Wallace
deixou aparentemente completos
12 capítulos, 250 páginas, continua
o seu exercício de perseguir e dar
maior corpo ao imenso projecto de
criar uma nova forma de narrativa
humana, só que com uma herança
pesada: com A Piada Infinita tinha
sido “genial”. E agora? Como não
desmerecer a genialidade que
perseguia e atormentava em doses
iguais? É só uma das especulações
acerca de David Foster Wallace que
ajudam a alimentar o mito.
Outra é este seu romance
póstumo. A versão que se conhece
não seria a que Wallace iria dar a ler
se algum dia a chegasse a publicá-
la. Sabia-se da sua obsessão em
emendar, da busca da perfeição,
mas tudo o que se acrescentar
sobre isto será, mais uma vez,
especulativo. O Rei Pálido é o
trabalho de Foster Wallace mais o
trabalho do seu editor, Michael
Pietsch, sobre o imenso material
que foi encontrado depois da sua
morte no escritório da casa onde
vivia com a mulher, Karen Green,
em Claremont, na Califórnia. Eram
“discos rígidos, pastas de ficheiros,
dossiers com argolas, blocos de
notas de espiral e disquetes”, conta
Pietsch no posfácio, “capítulos
imprimidos, maços de papéis
escritos à mão, notas e muito
mais”. “Apanhei um avião para a
Califórnia”, continua, “e, passados
dois dias, regressei a casa com uma
mochila verde e dois sacos da
Trader Joe’s a abarrotar de
manuscritos. Uma caixa cheia de
livros que o David tinha utilizado
para o trabalho de investigação
seguiu pelo correio”.
A descrição serve para perceber
o trabalho de composição que deu
origem a este O Rei Pálido, Um
Romance Inacabado, que em 2011,
ano em que seria finalmente
publicado, foi um dos três finalistas
do Pulitzer para ficção (não houve
vencedor). Mas O Rei Pálido é mais
do que isso. É um compêndio de
escrita sobre Foster Wallace. As
notas que deixou e que ajudaram o
editor a completar o puzzle sem
fim, o labirinto de possibilidades,
dando forma a essa espécie de
“neurologia do fracasso”,
expressão retirada a uma das
muitas personagens que o autor
criou, são também um modo de o
leitor perceber a oficina obsessiva e
perfeccionista de Wallace.
Depois da diversão extremada de
A Piada Infinita, estamos agora no
terreno do tédio. Na Direcção
Regional de Finanças de AT de
Peoria, Illinois, em 1985, uma série
de personagens vive encerrada
num quotidiano de grande
aborrecimento, um lugar onde é
possível estar-se morto quatro dias
sem que ninguém estranhe a falta
de movimentos desse corpo que
sempre foi quieto e reservado, um
lugar onde um ser humano é
comparado a “um peixe a debater-
se na rede das próprias
obrigações”, num campo absurdo
entre o riso e a lágrima. Do que de
mais íntimo se passa na consciência
de alguém até àquela que é aqui
descrita como mais burocrática das
existências, a de um contabilista,
salta-se sem licença, sem vírgulas. E
salta-se também para outras
personagens, que ajudam na
vertigem. É aí que Wallace quer
estar, na génese do pensamento e
da emoção, quando se inscreve
num curso de contabilidade para
saber como articular essas fórmulas
“secas” com evocações do que de
mais poético e transcendente se
pode passar na mente. Sem
respeito pela cronologia, num
tempo pessoal em confronto com a
precisão do relógio que impõe o
aborrecimento e leva outro estado
de alienação, a do robô, do
executante letárgico como o
Bartleby de Herman Melville, a que
vai sendo comparado.
Mais uma vez, Wallace parte de
um universo muito fechado para o
mais abrangente de todos os
mundos, onde tudo lhe é permitido.
Listas, catálogos, fórmulas
matemáticas e também a paisagem
territorial e humana, o erotismo e o
riso, a demência e o respeitinho que
é muito bonito, tal como ensinam as
regras que Wallace desmonta.
Desmontou-as até onde foi capaz,
no que descrevia como o turbilhão
em que estava metido — assim dele
falava, nas poucas vezes em que
dele falava, ao seu editor.
O Rei Pálido será sempre
inacabado e incapaz de responder
até onde poderia ir Foster Wallace
se não tivesse morrido aos 46 anos.
Mas quem o lê reconhece nele todos
os traços dessa tarefa que foi a sua:
viver à margem sem ser por escolha
e fazer dessa incapacidade de ser
feliz uma obra sobre os intrigantes
limites de estar vivo, desafiando as
convenções da linguagem,
apoiando-se na investigação de
campo, interrogando-se sobre o
trabalho de um escritor, no seu
inferno pessoal. Revelar um pouco
de tudo isso é o grande mérito deste
livro, além, claro, dos muitos
momentos vibrantes.
Sangue novo para o romance de formaçãoUma investigação destemida
sobre tempos e lugares
revistos com mão diurna e
nocturna. Hugo Pinto dos
Santos
A Amiga Genial
Elena Ferrante
(Trad. Margarita Periquito)Relógio D’Água
mmmmm
Uma amiga de
infância de
Elena, a
narradora,
desapareceu sem
deixar rasto. Há
decénios a
separá-las de um
convívio que fora
especialmente próximo. Numa
demanda que lembra tenuemente
![Page 27: Ipsilon-20150116](https://reader033.vdocuments.mx/reader033/viewer/2022051000/55cf9360550346f57b9d6307/html5/thumbnails/27.jpg)
ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015 | 27
Um Estranho Amor (in Crónicas do
Mal de Amor, Relógio D’Água,
2014), o filho da desaparecida
procura a mãe. Por isso contacta
Elena, que acede a recuar mais de
50 anos, desenterrando a sua
infância e a sua adolescência, em
dois momentos narrativos de um
romance que claramente se
anuncia como mais um tomo na
guerra que a vida é até ao fim —
“Vamos ver quem vence, desta
vez” (p. 16). Com estas palavras,
que encerram o prólogo, Apagar o
rasto, se determina o que a leitura
do romance só confirmará: não
estamos perante o perfilar
sossegado de memórias que
deslizem com a mansidão de uma
reminiscência alisada pelo passar
dos anos. O que encaramos é a
turbação que cinco décadas não
fizeram mais do que acidular.
Elena prepara-se para narrar uma
Infância e uma Adolescência numa
disposição de matérias que parece
querer evocar o exemplo de
Tolstói, mas que vai numa
direcção bem mais encrespada,
descendo por galerias de toque
agressivo.
O método eleito pelo romance é
o da antinomia. A mais importante
manifestação desse princípio é a
que opõe Elena e Lila. A vida
recordada e narrada em A Amiga
Genial é uma medição de forças
com aquele outro ser, aquela outra
forma de entender o mundo. O
romance irá, repetida e
obsessivamente, fazer reviver uma
existência entendida em
permanente confronto com o
outro. Que é aqui, antes de tudo, a
amiga — “aquilo que me faltava, ela
tinha, e vice-versa, num jogo
contínuo de trocas e inversões,
que, ora com alegria, ora com
sofrimento, nos tornavam
indispensáveis uma à outra” (p.
205). Para chegar a esta conclusão,
formulada já em plena
Adolescência, Elena teve de erguer
uma construção de notável
engenharia, um todo em que as
partes se digladiam entre si, mas
sem nunca abalarem o edificado.
Desde os bancos da escola
primária, passando pelo momento
em que Elena prossegue os estudos
e Lila fica de fora, mantendo-se
dentro da esfera do saber por
interposta amiga, ou pelo seu
próprio desafectado esforço
autodidacta. Até ao dia em que a
amiga se casa, e Elena se reúne
com a sua própria dissolução —
“não sei o que sou nem o que
realmente quero (…), sinto-me
metade e metade” (p. 262) —,
incapaz de dizer esse sim à vida
que Lila parece pronunciar mesmo
sem falar. Assim, será ela a “amiga
genial” do título, embora tudo o
contradiga. Até a própria Lila, que
dirá a frase de sinal contrário — “Tu
és a minha amiga genial” (p. 249).
Mas talvez aqui “genial” se refira
menos à proeza livresca (que Lila,
no entanto, exibe, de uma forma
sedutoramente desprendida) ou do
conhecimento em sentido lato, do
que a uma outra qualidade mais
oculta e total. É possível que nas
memórias de Elena, que primava
pelos conhecimentos clássicos (e
lembre-se que se aventa a hipótese
de a esquiva Elena Ferrante ser
licenciada em Estudos Clássicos),
fizesse sentido evocar o genius
latino. Isto é, a divindade que
velava por cada ser, o
acompanhava e desaparecia com a
sua morte. Por outras palavras, a
amiga que sempre seguiu Elena
como uma sombra.
A Amiga Genial forma-se
segundo o instrumento de forças
opostas que crescem em
acumulação, e não tanto por fios
que recuem e avancem, à medida
de caprichos composicionais, ou
impulsos do estilo. O sentido é
praticamente unívoco. Após a
brevíssima interrupção do
prólogo, a narrativa avança quase
sempre de forma linear, sem
nunca sobrecarregar de forma
explícita o texto com dados
especificamente cronológicos,
antes deixando que se infira a
passagem das épocas através de
indícios em trânsito elegante no
romance. Um acontecimento
escolar, um acidente doméstico,
uma fissura no edifício social. Essa
harmonia de contrários, que
alimenta a construção do
romance, estender-se-á para lá do
núcleo essencial composto por
Elena e Lila. A comunhão entre as
duas amigas (que seria tentador
figurar como o negativo uma da
outra) está, além do mais, no
próprio nome da amiga. De seu
nome verdadeiro Rafaella, todos a
conhecem por Lina, excepto
Elena, que sempre lhe chamará
Lila. A questão linguística não é,
aliás, acessória. Como sucedia em
Crónicas do Mal de Amor, língua e
não língua, norma e desvio dela,
são um dos instigadores da escrita.
A fórmula “metade em dialecto,
metade em italiano” (p. 14),
aplicada quase no início de A
Amiga Genial, desenvolve-se ao
longo de um romance que colhe
constantemente energias desse
foco de tensão que é a coexistência
crispada desses dois códigos — “em
dialecto era difícil conversar sobre
a corrupção da justiça terrena,
como se via bem durante o almoço
em casa de dom Rodrigo, ou sobre
as relações entre Deus, o Espírito
Santo e Jesus” (p. 206). Porque a
questão da língua é, neste
romance, um exemplo eloquente
de como o contexto envolvente
transcende a função de cenário,
para ser um elemento actuante na
sua dinâmica. É o dialecto
napolitano que estabelece a
demarcação entre os que possuem
escolaridade e os que se agarram à
subsistência possível. É ele que
espreita sempre que a razão
sucumbe à vertigem dos sentidos
ou do álcool. O dialecto faz falar a
carne; só o italiano traduz a
implantação do raciocínio e da
cultura. A pressão resultante desse
atrito de opostos é outro dos eixos
do romance. É uma relação
comparável à que se instala entre o
subúrbio, habitado por estas
personagens, e a cidade de
Nápoles — separados ambos os
pólos por uma jornada que
cumpria percorrer com penosos
transportes. Assim se cava mais
fundo o fosso firmado pelo
romance, separador de realidades
irreconciliáveis: social e
individualmente.
Quando Elena refere a língua
italiana falada pela professora, o
exemplo de que se socorre para a
descrever é a Ilíada. O poema
homérico não lhe serve apenas
para contrastar a correcção da
mestra com o “italiano cheio de
erros” (p. 72) da sua mãe, mas para
introduzir uma nota sobremaneira
importante em A Amiga Genial: a
violência. Ao descrever um rapaz
que captara o seu interesse, a
narradora voltará àquele poema
— “parecia-se com Heitor, tal como
estava representado na versão
escolar da Ilíada” (p. 87). A uma
infância “cheia de violência” (p. 27)
sucede o bairro “cheio de
conflitos” (p. 107) da adolescência.
Nem mesmo as festividades
escaparão a essa pulsão belicista. A
“batalha do fogo-de-artifício” (p.
157), que põe em confronto os
foliões pelo melhor festejo, será
uma imagem clara e inquietante
dos conflitos que agitam o subsolo
das relações familiares e, em
sucessivos anéis de tensão, do
plano mais geral da sociedade. As
imagens de cisão são poderosas
representações dessa cisão.
Nápoles “corta-se, parte-se” (p.
107); o liceu é “esfarrapado” (p.
237). Com o casamento de Lila, que
encerra o romance, a distribuição
desigual de bebidas soará o sinal
derradeiro de futuros conflitos,
que já se adivinham. Tudo
permanecerá, porém, num
adensar que não se distende nem
resolve, nas linhas finais de A
Amiga Genial.
Na adolescência — período da
vida e parte do romance —, os
monstros da primeira parte de A
Amiga Genial sofrem
metamorfoses. Menos lineares,
mais abusadores da ordem que a
própria adolescência põe em
causa. Dom Achille, que era o ogre
da infância, é assassinado por um
“ser, metade masculino e metade
feminino, que está escondido no
esgoto e sai pelas sarjetas, como os
ratos” (p. 82). A imaginação
delirante da infância dá, então,
lugar à fantasia e ao fantasma, à
projecção e ao temor. Um temor,
desta vez, mais da vida do que da
sonhada existência que a infância
fabrica. A adolescência substitui
esses planos pelas limalhas que
recolhe dos seus primeiros
contactos sangrentos com o
mundo. Elena vai surgindo, neste
romance de formação, que é muito
mais do que isso, como a imagem
viva do escritor. Evoluirá de uma
subserviência quieta aos livros e
aos autores a uma crescente
emancipação, em busca de “uma
escrita fluente e sedutora” (p. 220),
o que consegue. Mas,
significativamente, esta descrição
referia-se à escrita de Lila. Daimon
e sombra. Génio.
Um artigo publicado há uma semana neste
jornal, da autoria de um professor da
Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa e investigador no Centro de Estudos
Clássicos (CEC), Rodrigo Furtado, vale como
um eloquente requisitório que mostra, com
força lapidar e abundância de exemplos, as práticas
fraudulentas e a incompetência dos avaliadores no
mundo académico. O título, O Triunfo da
Incompetência: a Avaliação dos Estudos Clássicos em
Portugal, parece responder a uma injunção recorrente
que reclama a necessidade de saber quem avalia os
avaliadores. Mas Rodrigo Furtado não se fica por aí:
faz-nos ver que a avaliação é uma ideologia e que essa
ideologia é o aparelho de justificação de um sistema
que institui uma polícia científica — composta por
comissários que fazem figura de idiotas racionais —
munida de instrumentos e poderes que lhe permitem
instaurar o valor de norma e de verdade. Conta o autor
do artigo que os avaliadores do painel de humanidades
atribuem ao CEC projectos de estudos que estão
completamente ausentes das propostas e dos
programas do referido centro, cometendo ainda por
cima erros nos relatórios que denunciam uma total
ignorância sobre as matérias que estão a avaliar, para
além de reclamarem de quem se dedica aos Estudos
Clássicos que siga os famigerados requisitos do
management empresarial: a inovação e o
pragmatismo tendo em vista a aplicação utilitária, o
que os leva a elogiar uns “guias literários” que
erradamente atribuem ao CEC, mas que, garante
Rodrigo Furtado, “o CEC não editou, não edita, nem
propõe editar”. A grande impostura da avaliação
enquanto prática e doutrina não está apenas instalada
na universidade e na investigação, estendeu-se nos
últimos anos a todos os domínios de actividade
profissional e a todos os sectores da sociedade.
Rodrigo Furtado denuncia essa impostura na sua
dimensão grotesca. Uma definição rigorosa diz-nos de
facto que grotesco é o facto de um indivíduo deter, por
um estatuto adquirido por um acto arbitrário de
nomeação, um poder efectivo de que deveria estar
privado por razões intrínsecas, ou seja, por não ter
qualquer autoridade no campo sobre o qual é
chamado a desempenhar o papel de um sobre-saber.
Na verdade, o poder dos avaliadores institui-se como
uma ciência sobre a ciência, uma competência sobre a
competência. Trata-se de um poder politicamente
constituído que atribui a si próprio, unilateralmente,
legitimidade para exercer um direito que é por
natureza ilegítimo, injustificado e tirânico sobre o
saber, a sua produção e a sua transmissão. A ideologia
da avaliação quer sempre incutir a falsa consciência,
como todas as ideologias, de que é neutra e objectiva,
e não subjectiva e produto de uma vontade particular.
Por isso, prefere punir e humilhar, com a arrogância
de uma pseudo-ciência, os investigadores e os centros,
para não admitir que a maior parte das decisões são
predeterminadas e sobrederminadas por razões que
nada têm a ver com a ciência (veja-se como agiu este
ano a Fundação para a Ciência e Tecnologia e o modo
como quis ocultar decisões prévias de política da
investigação). A avaliação tem uma natureza e uma
função essencialmente estratégicas: nas empresas,
está ao serviço da gestão e da disciplina dos
“recursos humanos”; na universidade e na
investigação, é o “dispositivo” de uma máquina de
governo. Um “dispositivo”, no sentido em que
utilizamos aqui o conceito, é tudo aquilo que
pretender ter a capacidade de capturar, orientar,
determinar, controlar e assegurar as condutas, as
opiniões e os discursos dos indivíduos.
Estação Meteorológica
As imposturas da avaliação
António Guerreiro
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28 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015
A cólera de DeusUm combate com os
enigmas da fé, cheio do som
e da fúria do “gótico sulista”.
Helena Vasconcelos
O Céu É dos Violentos
Flannery O’Connor
(Trad. Luís Coimbra)Relógio D’Água
mmmmm
Em 1964, quatro
anos antes de
morrer vítima de
lúpus, Flannery
O’Connor
publicou O Céu É
dos Violentos, o
seu segundo e
último romance,
uma história apoteoticamente
sombria sobre a morte e a
redenção da alma. O tom
arrebatador com que esta sulista
se lançou na escrita serviu o
propósito, bem delineado desde a
infância, de expor e de articular,
em múltiplos aspectos, duas das
questões essenciais que
preencheram a sua existência: os
abismos da crença religiosa e a
relação conturbada com o espaço
geográfico em que nasceu e viveu.
No vórtice de O Céu É dos
Violentos, a escritora faz convergir
toda a sua filosofia, alimentada e
desenvolvida, sobretudo, pelo
estudo de S. Tomás de Aquino e
do teólogo Pierre Teilhard de
Chardin, já visível no seu juvenil e
profundamente espiritual Diário
de Preces (Relógio D’Água), escrito
entre 1946 e 1947, “descoberto” e
publicado em 2013. De Teilhard de
Chardin, Flannery retirou a crença
de que tudo converge para Deus,
algures num ponto ofuscante
onde ela, a autora, coloca as suas
personagens, dilaceradas entre a
crença feroz e a dúvida perene.
Em O Céu É dos Violentos, esse
combate centra-se num rapaz de
cerca de 14 anos, Francis Marion
Tarwater, a quem o seu tio-avô,
um homem “possuído” — e auto-
proclamado profeta — confia duas
missões: a de lhe dar um enterro
cristão e a de baptizar um outro
sobrinho com problemas mentais,
que vive na cidade com o pai. O
velho Tarwater, que raptou
Francis em criança para lhe
transmitir a sua visão fanática da
religião, cria-o na floresta no
sentido de fazer dele o seu
discípulo e morre efectivamente
no início do livro. O rapaz procura
satisfazer o seu compromisso,
começando a cavar uma sepultura
no solo duro e resistente, mas
interrompe a tarefa árdua e
inglória ao ouvir uma “voz” que
lhe diz para esquecer o velho e
seguir com a sua vida. Incapaz de
tomar uma decisão, embebeda-se,
pega fogo à casa com o cadáver lá
dentro e apanha uma boleia de um
caixeiro-viajante que lhe garante
que “não existe o diabo nem nada
que o valha… não tens de escolher
entre Jesus e o diabo. A escolha é
entre Jesus e ti mesmo” (p. 38). Ao
chegar à cidade, Francis procura o
tio, o professor Rayber, pai de
Bishop, o referido miúdo com
síndrome de Down, que o acolhe e
tenta fazer dele um “ser humano
útil”, desmistificando a falsa
doutrina que impregnou a cabeça
do rapaz. Mas Francis mantém
uma atitude de teimosia e
alheamento, tendo por companhia
a mesma “voz” (o seu amigo, isto é,
o diabo) que o alicia na descrença e
na resistência. A acção decorre ao
longo de uma semana e toda a
narrativa é construída em torno de
flashbacks que dão conta de uma
família disfuncional, cujos
membros, ao longo dos anos, se
debateram com conflitos
alimentados pela ignorância, pela
fraqueza moral e pelo
fundamentalismo messiânico. Os
vértices do triângulo formado por
Francis Tarwater, Rayber e Bishop
simbolizam três forças que se
digladiam impiedosamente e
acabam por se destruir entre si, à
medida que as acções demenciais
se sucedem à luz de visões bíblicas
de baptismos e purificações que
carregam consigo a destruição e a
morte.
O Céu É dos Violentos tem o peso
de uma maldição lançada aos
quatro ventos por esta autora
singular que lia e relia em criança
os contos de Edgar Allan Poe e
manteve uma discussão consigo
própria relacionada com os
enigmas da fé sem nunca perder de
vista uma ironia selvagem que
raiou o grotesco, muito próprio do
“gótico sulista”, uma designação
que serviu para acantonar
escritores tão diferentes quanto
William Faulkner, Carson
McCullers, Tennessee Williams,
Harper Lee, Truman Capote,
Cormac McCarthy e a relutante
Eudora Welty, que se insurgiu
contra essa categorização. Na
realidade, todos eles conheceram e
se deixaram seduzir
perversamente pela ideia, que
transpuseram para a escrita, de um
lugar luminosamente sombrio,
entre chamas purificadoras, o
apaziguamento da água baptismal,
a viagem iniciática e o negrume de
um céu onde os pobres, os
deserdados, os impotentes, os
marginais e os mutilados física e
psicologicamente se movimentam
numa ânsia redentora que os
arrasta por um longo caminho de
martírio. Este quase sadismo a que
O’Connor expõe homens e
mulheres destinados a um
propósito envolto em trevas foi o
que desencadeou a reacção da sua
antiga professora de escrita criativa
no Georgia State College for
Women (cujas aulas frequentou em
1942), que, dez anos mais tarde, ao
ler o primeiro romance da sua
aluna (Sangue Sábio), o atirou pelo
ar e exclamou: “Se ela tivesse
matado o personagem logo no
início, em vez de o fazer no fim,
teria poupado uma grande maçada
a muita gente”. Este desabafo
reflecte o desconforto de leitores
que resistem ao ímpeto
devastadoramente cómico de
O’Connor, cuja força, feita do
apuramento incandescente da sua
escrita, aliado a um imaginário
assombroso, se condensa
essencialmente nas narrativas mais
curtas mas que “explode”
literalmente neste romance.
O’Connor foi uma ardente devota,
mas a questão do seu catolicismo
e a forma como este se revela nos
seus escritos têm sido objecto de
estudos e especulações. O próprio
título deste livro remete para a
ambiguidade da passagem de
Mateus, 11:12 — “Desde os dias de
João Baptista até agora, o reino
dos céus tem sido objecto de
violência e os violentos apoderam-
se dele à força” —, evocativa da
luta perene contra o Mal, que
tenta subjugar o divino para o
diminuir e distorcer. Luta essa que
não exclui a violência e o
confronto brutal, reminiscente do
tumulto que encontramos no
Paraíso Perdido de John Milton.
O’Connor não se coíbe de
desmascarar a ignorância que leva
à intolerância e que, por sua vez,
se desenvolve num fanatismo
grotesco, frequentemente
intrínseco aos seus personagens,
mesmo quando estes estão
imbuídos de uma qualquer visão
redentora. No entanto, essa
espécie de epifania nunca é
pacífica, antes se reveste de um
carácter demolidor que é próprio
da revelação do mistério da morte,
tema central deste romance e
tratado, pela autora, com uma
espécie de desespero irónico,
enquanto transpõe, para a ficção,
tudo aquilo que a atormentou: os
preconceitos e a tibieza moral, o
bem e o mal, as tensões entre o ser
humano e a natureza, entre a razão
e o fanatismo, entre o paraíso e o
inferno.
Fotografia
Vento e águaOs Açores e a família de
Sandra Rocha num livro
de fotografias tocadas pela
paisagem. José Marmeleira
Anticyclone
Sandra RochaEd. Autor
mmmmm
Anticyclone
começa com uma
rapariga em
biquíni.
Enquadrada pelo
azul da capa, tem
a mão sobre o
peito, o queixo
levemente
levantado à procura do sol, os
olhos fechados. É uma imagem de
praia, das que facilmente atraem o
olhar masculino. Quem não
conhece a artista que assina este
livro colocará, talvez, a pergunta:
será a rapariga a autora, Sandra
Rocha? A simples abertura de
Anticyclone, concebido com a
colaboração de André Príncipe e
José Pedro Cortes, desfaz o
equívoco. As imagens vêm de um
lugar, a Ilha Terceira, nos Açores, e
vêm com vento, água e nevoeiro.
Depois da capa, o sol raramente
espreitará das suas páginas.
Realizadas entre 2009 e 2013, as
imagens imobilizam rostos,
espaços domésticos, objectos,
movimentos do mar. Mas esta
imobilização é momentânea, tudo
se move com o folhear das
páginas, permitindo ao leitor
imaginar as narrativas que aquelas
constroem. Prevalecem os olhares
e os corpos de figuras do sexo
feminino que hão-de reaparecer a
longo do livro, com outros
penteados, outras poses, outras
cores. Lentamente, reconhecidas
pelo “leitor que olha”,
transformar-se-ão, então, em
personagens: a ficção instala-se.
Um pequeníssimo texto revela
que fazem parte da família de
Sandra Rocha, mas nada se fica a
saber da sua intimidade, das suas
vidas. Que laços que têm com a
criança que, deitada no chão,
afaga um gato, com o homem que
segura o bebé nas mãos, ou com a
miúda que escreve sobre uma
mesa? Não nos dizem. Sandra
Rocha permite, gentilmente, que
se entre neste universo privado,
mas com uma reserva silenciosa.
Não há imagens do exterior da
casa, de lugares precisos ou
facilmente identificáveis. Não há
nomes.
Que entra em Anticylone
vagueia, assim, entre espaços e
corpos, tacteando emoções e
gestos até que o doméstico se
confunde com o onírico, o
quotidiano com o fantástico: no
mesmo mundo, participam o
nevoeiro que vela um rosto e um
aniversário que aguarda a
celebração numa mesa enfeitada.
A misteriosa rapariga de vestido
branco e a mulher que lê,
conformada, uma revista. Não se
encontram sinais de espaços
urbanos, da cidade, e rareiam os
da tecnologia. A influência do
anticiclone dos Açores, a
personagem invisível, mas
omnipresente, das narrativas,
surge nas cores, nas sombras, nas
paisagens. As imagens não se vêem
apenas, experimentam-se como
Flannery O’Connor foi uma ardente devota, mas a forma como o catolicismo se revela nos seus livros tem sido alvo de especulação
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ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015 | 29
atmosferas: Anticyclone é um
objecto em que o vento e a água
parecem tocar a pele do leitor.
À medida que se caminha para o
fim, vão diminuindo os retratos de
família e os instantâneos do dia-a-
dia em favor das imagens da
natureza representada no mar. É
este que, a princípio distante e
calmo, vai fazendo notar a sua
presença, progressivamente mais
violenta a ponto de, nas últimas
páginas, se lançar sobre as rochas,
“fustigando” a aparente indiferença
das personagens femininas.
“Aparente”, sublinhe-se. No olhar
que devolvem a Sandra Rocha ou
no peso, na densidade dos seus
corpos (de costas viradas para o
leitor, de frente para o horizonte no
último terço do livro), estão uma
serenidade e uma solitude
conscientes da passagem do tempo.
Escreve a artista que ao olhar para
aquelas imagens vê o seu passado,
presente e futuro. Ao leitor não
será difícil colocar-se no mesmo
lugar. Naqueles rostos e corpos
persistem, apesar da hostilidade
indomável do mundo exterior,
tantas desilusões quantas vontades.
É esse o seu e o nosso consolo.
(Nota: Anticyclone pode ser
adquirido em www.sandrarocha.pt
e será apresentado em Bordéus no
mês de Fevereiro, acompanhado
de uma exposição no espaço ACT
Image. Refira-se também que
Sandra Rocha está a preparar um
novo livro a partir de um projecto
realizado em Junho de 2014,
durante uma residência na
Finlândia, e em 2015 começará a
trabalhar numa monografia sobre a
ilha do Pico).
Leia excertos dos livros na edição do ípsilon para tablets
A personagem invisível, mas omnipresente, das narrativas de Sandra Rocha surge nas cores, nas sombras, nas paisagens: as imagens não se vêem apenas, experimentam-se como atmosferas Ci
nem
a Estreiam
A teoria do big bangUma interpretação soberba
de Benedict Cumberbatch
numa meditação sobre a
diferença disfarçada de
thriller de guerra. Jorge
Mourinha
O Jogo da Imitação
The Imitation Game
De Morten Tyldum Com Benedict Cumberbatch, Keira
Knightley, Matthew Goode
mmmmm
Pode parecer algo “insensível”
evocar a popular série de comédia
A Teoria do Big Bang para falar de
Alan Turing, matemático inglês
que lançou as bases dos
computadores modernos e teve
um papel fulcral na decifração dos
códigos militares alemães durante
a II Guerra Mundial. Não é, por
uma simples razão: a própria
estratégia do argumentista Graham
Moore e do realizador Morten
Tyldum em O Jogo da Imitação é
introduzir a personagem ao
espectador (numa cena notável
que brinca com o conceito das
“entrevistas de emprego”) como
um idiot savant que parece existir
numa realidade alternativa, um
génio matemático incapaz de jogar
o jogo social. Esse início algo
brusco e picaresco remete
invariavelmente para Sheldon
Cooper, o físico imaturo da Teoria
do Big Bang – e é essencial para
estabelecer a base do que se
seguirá. O filme é a história da
“aprendizagem” que Turing faz da
necessidade de se integrar na
estrutura social de uma Inglaterra
classista e rígida, mas também a
história de um homem condenado
pela sua genialidade que acabou
por se suicidar em 1954 sem que a
importância do seu trabalho fosse
reconhecida em vida.
O Jogo da Imitação esconde essa
dimensão trágica por trás de uma
narrativa clássica de thriller de
guerra, ligada à corrida contra o
tempo da equipa de criptógrafos
recrutada pelo governo inglês para
descodificar as comunicações
militares alemãs. Por trás desse
problema matemático, é uma
metáfora da própria humanidade
de Turing que se gere: o título
refere-se ao célebre “teste de
Turing” onde um pequeno número
de perguntas seria suficiente para
identificar e diferenciar uma
inteligência humana de uma
inteligência artificial. Mas esse “jogo
da imitação” é também o jogo da
identificação e diferenciação da
“normalidade” e do “desvio”.
Reflecte a tragédia de Turing como
um visionário desfasado do seu
tempo, uma personalidade quase
autista que, apesar dos seus
melhores esforços, nunca
conseguiu integrar-se
completamente na sociedade rígida
da Inglaterra pós-imperial. E o filme
ganha-se precisamente na elegância
com que Morten Tyldum tece o seu
retrato de Turing como prisioneiro
do seu tempo histórico mais do que
como símbolo do que quer que seja.
Para isso contribui sobremaneira
a interpretação espantosa de
Benedict Cumberbatch, que
transforma o cientista quase sem
esforço de proto-Sheldon Cooper
em figura trágica, que transporta às
costas um filme mais inteligente do
que a aparência de “filme de época
britânico” daria a entender (e é
uma produção americana dirigida
por um cineasta norueguês). E é a
maneira certa de falar de Alan
Turing: como uma pessoa
demasiado complexa para um
mundo que não aceitava essa
complexidade.
A mulher que não sabia o que queriaUma comédia atenta
e simpática sobre uma
quase-trintona em fuga para
a frente. Jorge Mourinha
Encalhados
Laggies
De Lynn Shelton Com Keira Knightley, Chloë Grace
Moretz, Sam Rockwell
mmmmm
De Lynn Shelton recordamos
com satisfação duas boas
comédias independentes em
modo semi-improvisado sobre
os quiproquos emocionais dos
trintões contemporâneos,
Humpday/Deu para o Torto
(2009) e, sobretudo, Entre
Irmãs (2011). Encalhados, o
novo filme da realizadora
americana, mais polido e
controlado, tem qualquer coisa
de “exame de acesso” ao
patamar superior do “filme de
estúdio”, sem por isso perder a
tendência atenta e
observacional do seu cinema.
A sua heroína é Megan, uma
quase-trintona que não sabe
o que fazer da vida mas não se
quer comprometer nem
conformar, e que se vê
encostada à parede pelo
pedido de casamento do seu
namorado de sempre.
Encalhados é o retrato da
“fuga para a frente” de
Megan, procurando esconder-se
da idade adulta que lhe assobia
aos calcanhares junto de uma
amiga adolescente, e atrasar o
mais possível a decisão que tem
de tomar. O tema é a
medida de Shelton e do seu
humor suave e
compreensivo, mas as arestas
mais limadas e o acabamento
mais envernizado surgem às
custas de alguma
espontaneidade e alguma
energia. Ainda assim, a
realizadora confirma-se uma
excelente directora de actores
– Keira Knightley vai
lindamente e nem nos
lembramos dela como
presença regular em filmes
de época ingleses – e Encalhados
tem uma vibração humana
O Jogo da Imitação: mais inteligente do que a aparência de “filme de época britânico” dá a entender
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30 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015
que costuma estar ausente
da maioria das comédias
americanas
contemporâneas.
A menina e o criado
Miss Julie
De Liv UllmannCom Jessica Chastain, Colin Farrell,
Samantha Morton
mmmmm
A influência de Strindberg paira
sobre uma grande porção da
dramaturgia cinematográfica
sueca, sendo a obra de Ingmar
Bergman o exemplo mais evidente
e, provavelmente, máximo. Liv
Ullmann, que vem, de corpo e
alma, de dentro do universo
bergmaniano, atira-se aqui a uma
das peças mais célebres de
Strindberg, a Menina Júlia, já
várias vezes passada a filme,
nalguns casos com resultados
extraordinários, como a versão de
1951 assinada por Alf Sjöberg (de
resto, um dos mestres de
Bergman). Se insistimos na ligação
de Ullmann ao mundo
bergmaniano e ao que ele
representa, ligação reforçada
ainda pelo facto de o seu filme
anterior como realizadora
(Infidelidade, de 2000) ter sido
feito com base num argumento
original de Ingmar, é porque nada
nos prepara para a enorme
decepção que é esta Miss Julie,
totalmente instalada no lado
errado do “teatro filmado”.
Transpondo a acção para a
Irlanda, pormenor que acaba por
ser irrelevante e justificar apenas o
inglês falado pelos seus
protagonistas “internacionais”
( Jessica Chastain, Colin Farrell e
Samantha Morton), Ullmann
aborda a peça com uma encenação
austera, bem longe das liberdades
tomadas por exemplo nessa versão
Sjöberg que mencionámos.
Estamos quase sempre em
interiores, as personagens
presentes são mesmo só aquelas
três (a Menina Júlia de Chastain, o
criado de Colin Farrell, a sofrida
cozinheira de Morton), e o filme
avança em longas cenas de diálogo
que nunca se pretendem descolar
de uma respiração propriamente
“teatral”. Mas o que no papel era
“cru”, e bem em sintonia com a
gélida observação das relações de
classe curto-circuitadas pelo
desejo “inter-classista”, acaba por
resultar demasiado limpo, para
não dizer demasiado mole - ver a
escala de planos, por exemplo,
previsível, académica, bastantes
vezes dependente de uma lógica
de campos-contracampos sem
surpresa alguma, próxima do
“tele-teatro” mais desenxabido.
Falta “grão” ao filme - aquele
“grão” que fez da “redução ao
teatro” um dos pilares de algumas
correntes da “modernidade”
cinematográfica - e fora alguns
momentos bem resolvidos (como
as elipses que dão a noite que a
Menina e o criado passam juntos)
resulta tudo tão morno
que depressa se passa da
falta de entusiasmo ao
aborrecimento. Luís Miguel
Oliveira
Continuam
Adeus à Linguagem
Adieu au langage
De Jean-Luc Godard Com Héloïse Godet, Kamal Abdelli,
Richard Chevalier,
mmmmm
Nos idos de 1959, Godard foi um
dos cineastas que “inventou” o
cinema moderno. Meio século
depois, continua a forçar as suas
fronteiras como cineastas com um
terço da sua idade não são capazes
de fazer. Adeus à Linguagem
parece querer apagar a luz e dizer
“quem vier depois que feche a
porta”, mas também dizer que há
outras portas por abrir para as
quais deveríamos olhar.
Desintegrado, fragmentado,
indefinível, indescritível, Adeus à
Linguagem é, nas próprias palavras
de Godard, um “ensaio de
investigação cinematográfica” que
prova como o cineasta-iconoclasta
continua a explorar um território
só seu, pessoal, intransmissível,
um espaço de experimentação
formal e reflexão densa sobre o
poder, as possibilidades e as
armadilhas da imagem, que usa o
3D como nenhum outro cineasta
alguma vez o usou. Não é o melhor
Godard desta “fase ensaística”
iniciada na década de 1980 (que,
para nós, é o sublime Elogio do
Amor), mas mesmo um Godard
menor (o que também não é o
caso) tem mais cinema lá dentro
que todos aqueles que invocam o
seu nome. J.M.
Sono de Inverno
Kis Uykusu
De Nuri Bilge Ceylan, Com Haluk Bilginer, Melisa Sözen,
Demet Akbag
mmmmm
Há todo um filme a percorrer – e
quase três horas e meia dele – para
chegar ao que podia ter sido. Até lá
desenham-se, com redundância,
círculos à volta de um objectivo:
destruir as virtudes intelectuais e
morais de um intelectual – cenário:
a Anatólia coberta de neve. Essa
estratégia cobre-se de outra, e
também com violência: com este
filme, Nuri Bilge Ceylan parece
interromper a incontinência
formalista dos seus últimos
trabalhos, apoiando-se desta vez
em diálogos, que percorrem a
moral, a religião e todo o mundo,
sendo através das palavras que as
personagens se constroem e
destroem. Se pensarmos que a
personagem principal é um
homem vaidoso, dominante e
capaz de oprimir com a elegância
(personagem para o qual o
realizador olha, aliás, com
respeito e gravidade),
podemos ouvir aqui o embate
surdo da auto-reflexão, algo que se
ouvia já em outros filmes do
realizador, como em Climas, em
que Ceylan e a mulher
interpretavam um casal. Isso vibra.
Mas o dispositivo de diálogos e
situações é utilizado aqui da
mesma forma incontinente como,
antes, Ceylan utilizava os
travellings. O realizador de Clouds
of May (1999) e Longínquo (2002)
era, talvez, um cineasta mais
humilde e mais justo para com os
seus limites do que o de Sono de
Inverno. Limites que ele acreditou,
talvez por influência dos rituais dos
festivais, que se alargaram:
decididamente passou a querer
inscrever o seu nome numa
espécie de solenidade prêt-a-porter
do cinema de autor. Era uma vez na
Anatólia, por isso, acabava por ser
uma involuntária demonstração da
impossibilidade de ser Theo
Angelopoulos; aqui mostra-se que
não é possível ser Ingmar Bergman
apesar de Sono de Inverno ser,
fundamentalmente, um conjunto
de cenas de uma vida conjugal. Um
movimento de câmara – a
sequência final – a afastar-se de
uma casa, o céu a desfazer-se em
neve, lá dentro um casal... era isto.
não era? Vasco Câmara
Birdman ou (a Inesperada
Virtude da Ignorância)
Birdman or (the Unexpected
Virtue of Ignorance)
De Alejandro González IñárrituCom Michael Keaton, Zach
Galifianakis, Edward Norton
mmmmm
Eis Riggan Thomson, estrela em
Hollywood nos filmes da série
Birdman. Um dia essa estrela
resolve tentar transcender-se e
ganhar uma diferente legitimidade
montando uma peça de Raymond
Carver e actuando na Broadway. E
com ele e com o dilema desse
actor em busca de autenticidade
Iñárritu passa da montagem
paralela e do ponto de vista de
várias câmaras, as suas armas
anteriores, para um fluxo
contínuo alimentado a planos
sequências, como se tudo não
pudesse ser se não a verdade
captada e nada mais do que essa
verdade. A verdade de um teatro
existencial, em suma: quando a
auto-estima se incha no
Facebook e no Twitter, mas
não se levanta do chão sem a
ficção das redes sociais, quando
os sentimentos e o desejo se
falsificam ou lutam para soarem a
verdade (como aquele actor,
interpretado por Edward Norton,
que só consegue evidenciar a
tusa junto da amante quando
ambos estão em palco). Não é
caso para dizer que Iñárritu
procura, como Riggan Thomson,
ser outra personagem, diferente
da do manipulador de destinos e
de epifanias que costuma ser.
Fiquemo-nos por aqui: há pelo
menos a vibração de uma dúvida a
interagir com os seus
procedimentos habituais e a
vontade de criar para os actores
qualquer coisa próxima de um
microcosmo e das suas “verdades”
e nevroses domésticas mas
essenciais. Talvez não seja por
acaso, e por isso não tão absurdo
assim, que nos tenhamos
lembrado várias vezes ao longo de
Birdman de Noite de Estreia, filme
de John Cassavetes. Mas é também
essa memória que repõe a verdade
no que toca a Iñárritu e à suposta
audácia do seu passo: Cassavetes
chegou lá, ao centro da dor, da
angústia, sem qualquer proeza, a
não ser a magnificência humana
com que trabalhava. O que é
contraditório em Birdman, cujo
material de base sublinha clichés
sobre o logro da fama, é o facto de
o que nele se evidencia ser sempre
o processo para conduzir a um
efeito: o plano sequência e a ilusão
de um único movimento de
câmara, tudo empurrado por um
omnipresente solo de bateria que
parece gritar a coisa; a
performance dos actores, que não
é possível ignorar (Keaton,
Norton, Emma Stone, Naomi
Watts e Zach Galifianakis), mas
Miss Julie: do lado errado do “teatro filmado”
Não é o melhor Godard da “fase ensaística” iniciada nos 80’s, mas tem mais cinema lá dentro que todos os que invocam o seu nome
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ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015 | 31
que nunca conseguem descolar da
sensação de exibição e nada
podem, mesmo que o quisessem,
contra a “máquina” que os
empurra.
Uma Esperança de Liberdade
Rosewater
De Jon StewartCom Gael García Bernal, Kim
Bodnia, Haluk Bilginer
mmmmm
Jon Stewart, ou o Daily Show que
ele conduz, é das poucas coisas na
televisão que não dão vontade de
desligar o aparelho. Toda a
simpatia prévia para este seu
ensaio como realizador, até por
questões de contexto político, as
mesmas que no seu programa
Stewart tenta, por vezes com
brilhantismo, desmontar, virando
do avesso os efeitos mais óbvios
da langue de bois política. Mas
depois o filme, Rosewater, sobre o
vespeiro iraniano, não é bem isso,
antes um objecto certinho e
escorreito, não particularmente
mordaz, que privilegia uma noção
de decência (moral e intelectual)
digna daquele “olhar americano”
tão bem corporizado na tradição
da Hollywood clássica, mas a que
falta quase tudo o resto, rasgo ou
energia. Até Clooney - que como
realizador talvez seja quem tem
estado mais próximo da
sensibilidade de Stewart - já foi
mais feliz a jogar com as mesmas
regras. L.M.O.
Invencível
Unbroken
De Angelina Jolie Com Jack O’Connell, Domhnall
Gleeson, Miyavi
mmmmm
No primeiro filme de Jolie como
realizadora, Na Terra de Sangue e
Mel, ambientado na guerra
Jugoslava dos noventas, havia uma
certa “irregularidade”, uma fuga a
códigos e cânones da produção
hollywoodiana corrente, que
sugeria uma certa teimosia, uma
certa idiossincrasia. Ao segundo
fílme isso começa-se a ver menos:
ainda reconstituição e ainda
guerra (a campanha americana no
Pacífico na II Guerra), tudo está
nos conformes, numa mistura de
eficácia e indiferença que nada
fazem para que o filme se distinga,
nem para que seja “importante”
que a realizadora seja Jolie ou
outra pessoa qualquer. Grandes
vedetas que passam à realização
para fazerem filmes sem estilo
próprio já houve várias - tem
sempre qualquer coisa de
simpático (uma espécie de
“fantasia do anonimato”) mas não
deixa por isso de ser
decepcionante. L.M.O.
Foxcatcher
De Bennett MillerCom Stece Carrell, Channing Tatum
e Mark Ruffalo
mmmmm
Bennett Miller é um ilustrador
simpático - veja-se o seu Capote
- mas precisa, como com o Philip
Seymour Hoffman desse filme,
que lhe tragam personagens
pré-fabricadas, ou já prontas a
usar. Apesar do ecletismo do
elenco (Steve Carell, Channing
Tatum, Mark Ruffalo, tudo actores
de registos habitualmente
dispares), ou justamente por isso,
em Foxcatcher vê-se mais
“interpretação”, mais
performance, do que personagens,
e mais uma espécie de
embevecimento perante os
actores do que vontade de
imprimir uma direcção
narrativa forte, ou um olhar
que enquadre e enforme os
muitos ressentimentos e
recalcamentos que ligam as
personagens umas às outras.
O argumento indicia virtudes,
pelo que é daqueles casos que
pareciam pedir mais realizador e
menos ilustração. L.M.O.
Pasolini
De Abel Ferrara Com Willem Dafoe, Ninetto Davoli,
Riccardo Scamarcio
mmmmm
No Festival de Cannes, em Maio
passado, quando apresentou
Welcome in New York, sobre
Dominique Strauss-Khan,
Ferrara aproximara DSK de
Pasolini, a personagem do seu
filme seguinte, porque em
ambos a solidão era em si
qualquer coisa de herético.
É verdade que em Welcome in
New York Ferrara tinha à
disposição o corpo de
Depardieu, que em si mesmo é
uma afirmação escandalosa, e
com esse escândalo uivante a
personagem de D.S.K.
aparecia como uma figura do
universo do cineasta, como
se a ele pertencesse antes do
mais. Em Pasolini Willem Dafoe é
um impressionante invólucro
para o pensamento de Pier Paolo.
Ferrara sintetiza Pasolini no
seu último dia de vida, depois
de Pier Paolo ter regressado de
Estocolmo onde se encontrou
com Ingmar Bergman. O dia em
que, antes de engatar Pelosi num
bar de Roma e de irem os
dois jantar a um restaurante
que Pasolini frequentava,
deu aquela que seria a sua
última entrevista, a Furio
Colombo. Aí sintetizou a sua
análise sobre o novo totalitarismo
emergente, o consumismo, e
sobre a destruição do que era
ancestral: o humano. Essa
entrevista, que Dafoe e Ferrara
recriam de forma grave, solene,
antecipação do futuro que é hoje,
é a peça central do “corpo de
trabalho” que existe em Pasolini.
Para além disso, Ferrara cria
imagens para Petróleo, o
romance póstumo do escritor,
e imagina o que poderia ter
sido o filme que o cineasta
deixou por fazer, Porno-Teo-
Kolossal, que seria com Ninetto
Davoli e Eduardo De Filippo.
Não um filme sobre Pasolini,
mas um filme para Pasolini?
Tal como um fã à espera de
um sinal de aprovação da
figura idolatrada, Ferrara dá a
ouvir a música que Pasolini
gostava de ouvir (Maria Callas, é
claro). Mostra-se cálido ao
abeirar-se de uma figura decisiva
no mundo de Pier Paolo, a mãe
(interpretada por Adriana Asti,
que foi actriz em Accatone, o que
é um suplemento de emoção na
homenagem). É uma tentativa
de ensaio, palavra grande para
coisa tímida, mas é respeitosa,
sem violência ou escândalo: por
ela Ferrara atreve-se, e falha,
em caminhos fora dos seus,
como os da fábula alegórica - a
imaginação dos bacanais de
Porno-Teo-Kolossal não será
nunca aquilo que
recordaremos do cinema de
Ferrara. Dafoe fala às vezes
italiano mas sobretudo em
inglês, como se o realizador
quisesse reclamar a coisa
amada para o seu cinema. Em
Welcome in New York não
precisava de o fazer,
Dominique Strauss Khan
emergia como invenção
escandalosa de Abel
Ferrara. V.C.
Veja os trailers das estreias na edição do ípsilon para tablets
AS ESTRELAS DO PÚBLICO
JorgeMourinha
Luís M. Oliveira
Vasco Câmara
a Mau mmmmm Medíocre mmmmm Razoável mmmmm Bom mmmmm Muito Bom mmmmm Excelente
Adeus à Linguagem mmmmm mmmmm mmmmm
Birdman mmmmm – mmmmm
Encalhados mmmmm – –Foxcatcher mmmmm mmmmm mmmmm
O Jogo da Imitação mmmmm – –Invencível mmmmm mmmmm –Miss Julie – mmmmm –Mr Turner mmmmm mmmmm mmmmm
Sono de Inverno mmmmm – mmmmm
Uma Esperança de Liberdade mmmmm mmmmm –
Uma Esperança de Liberdade
Invencível: decepcionante
Pasolini: tentativa de ensaio, palavra grande para coisa tão tímida, sem violência ou escândalo
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17 Janeirosábado, 18:00h
18 Janeirodomingo, 19:00h
A viúva alegre
Cuarteto Casals
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21 + 22 Janeiroquarta, 21:00h / quinta, 21:00h
Cappella Andrea BarcaAndrás Schiffschubertmozartdvorákbeethoven
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