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8067d53c-ede3-47f8-bbc7-69214781d85a O pirómano Michel Houellebecq, um acontecimento na rentrée Sexta-feira | 16 Janeiro 2015 | publico.pt/culturaipsilon ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 9042 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE TED SOQUI/CORBIS

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O pirómano

Michel Houellebecq, um acontecimento na rentrée

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2 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015

Ficha TécnicaDirectora Bárbara Reis

Editores Vasco Câmara,

Inês Nadais

Design Mark Porter,

Simon Esterson

Directora de arte Sónia Matos

Designers Ana Carvalho,

Carla Noronha, Mariana Soares

E-mail: [email protected]

Sumário6: Michel HouellebecqHistória de um fenómeno

12: Daniel MetcalfeDescobriu Angola

14: Wim VandekeybusO demónio interior

16: Alain PlatelNo princípio era a escuridão

17: Mónica Calletem casa nova

18: Teddy ThompsonO fi lho de Richard e Linda Thompson faz a catarse

Quando Lars andava na escola

O Córtex, Lars von Trier e a

Dinamarca – palavras-chave para

a 5ª edição do Festival de Curtas

Metragens, que se realiza no

Centro Cultural Olga Cadaval, em

Sintra.

O dia de abertura, a 12 de

Fevereiro (o festival encerra a

15), é dedicado a Lars von Trier,

com a exibição de dois trabalhos

de escola do cineasta

dinamarquês, produzidos

quando ainda aluno da Danish

Film School: Nocturne e Image of

a Relief. São, então, obras de

formação, realizadas no

momento, aliás, em que Lars

integrou o “Von” no seu nome, e

é legítimo que o espectador

queira encontrar nelas as origens

do que veio a conhecer depois –

obsessões, fobias, medos.

Nocturne, retrato de uma mulher

aterrorizada pela luz, foi

realizada quando Lars tinha 24

anos. Image of a Relief foi o

primeiro filme da escola a ter

distribuição comercial e é

considerado um ensaio para o

que seriam The Element of Crime,

Epidemic e Europa.

Após exibição dos filmes, Peter

Schepelern, professor associado

catedrático na Universidade de

Copenhaga onde Lars estudou

entre 1976-1979 (antes de se

matricular na Danish Film School),

falará sobre eles. E durante o

festival, aquele que é autor de

livros sobre a obra do cineasta (e

de artigos sobre o movimento

Dogma 95), fará uma palestra, o

que poderá saciar a curiosidade

sobre a vida e a obra de Lars.

Não fica por aqui a Dinamarca no

Córtex 2015. Uma nova secção,

Hemisfério, dedicada a uma

instituição cinematográfica

internacional, estreia-se

precisamente com a Escola de

Cinema da Dinamarca,

apresentando 5 curtas-

metragens, realizadas entre 2013

e 2014, por alunos. A

coordenadora internacional da

Danish Film School, Eizabeth

Rosen, estará em Sintra. E haverá

música, no Museu das Artes de

Sintra: de um lado, Mikkel

Solnado; de outro a violinista Lilia

Donkova e o acordeonista

Gonçalo Pescada, que

apresentarão o seu projecto

Symbiosis sobre imagens

projectadas de filmes de Carl

Theodor Dreyer.

O Córtex tem as suas habituais

sessões competitivas, nacional

(entre outras, curtas de Gabriel

Abrantes, Patrick Mendes,

Miguel Clara Vasconcelos) e

internacional, que serão

apreciados por um júri

composto pelos actores

Margarida Vila Nova, Maria de

Medeiros e Filipe Vargas, e por

Manuel Mozos e Pedro Filipe

Marques, realizadores. Pela

primeira vez, o Córtex

programa uma mostra,

competitiva, a pensar no

público infantil. Fá-lo em

associação com a MONSTRA -

Festival de Animação de Lisboa.

Flas

h

Os inícios de Lars von Trier na abertura do Córtex

O ano passado mostraram-nos

Throat Permission Cut, álbum de

estreia criado através da

compilação de sons gravados em

concerto e posteriormente

trabalhados em estúdio para criar

uma outra música.

Grupo com formação variável

(podem ser sexteto, podem ser dez

músicos em palco) capitaneado

por Jonathan Uliel Saldanha, tem Um combo misterioso

agenda de concerto tão rara

quanto intensos são os seus

concertos. Só pode ser portanto

uma boa notícia a de que

poderemos vê-los hoje, sexta-

feira, 16 de Janeiro, no Salão

Brazil, em Coimbra (22h30, com

actuação também de UUMRRK), e

amanhã, sábado, dia 17, no

Musicbox, em Lisboa (24h). Um

concerto no Porto, marcado para

18 de Janeiro no Maus Hábitos, foi

entretanto cancelado. A banda

anunciará brevemente nova data.

Os HHY & The Macumbas são um

combo misterioso: apresentam-se

em palco com máscaras e criam

música sem centro definido, quais

xamãs de vários tempos e

proveniências reunidos num

mesmo palco para, através de

Mário Lopes

HHY & The Macumbas: xamãs em Coimbra e Lisboa

partículas dub, sopros jazz

fantasmagóricos ou kraut-rock em

modo voodoo haitiano, nos

transportar para um outro lugar. Já

os viram o público do Outfest, do

Milhões de Festa, do Amplifest ou do

Sonar. Quem não os viu, melhor será

que aproveite a oportunidade agora

oferecida. A viagem promete ser

surpreendente e recompensadora.

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ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015 | 3

e com uma mão cheia de DJs e

músicos portugueses.

O local físico onde a coisa se

realiza, no dia 21 de Janeiro, é

secreto e apenas para convidados,

mas pode ser visto em todo o

apresentações

especiais a

partir de locais

secretos. Em Lisboa

serão três espaços – um

deles com curadoria dos

Buraka Som Sistema -

acolhendo uma mão cheia de

actuações ao vivo (Buraka,

Moullinex, Batida, Gala Drop, Paus,

Sequin, Jibóia ou a surpresa Mariza

com o seu Ensemble) e de DJs,

como Miguel Torga, Tiago, Trikk,

DJ Ride, Alex FX, IVVVO, Marie

Dior, Bison & Squareffekt ou Nigga

Fox. O acontecimento terá início

pelas 19h00 de dia 21 de Janeiro.

Boiler Room é uma comunidade global ligada para ver e ouvir os melhores DJs e músicos do mundo em apresentações especiais a partir de locais secretos

mundo, via streaming, na internet

(http://boilerroom.tv/live).

É esse o conceito Boiler Room,

uma espécie de comunidade global

ligada para ver e ouvir os melhores

DJs e músicos do mundo em

A terceira edição da experiência

Red Bull Music Academy takeover

– Boiler Room em Lisboa está

envolta de características

especiais, contando com três

espaços diferenciados de actuação

O irmão de Sherlock visto pelo escritor mais alto do mundoContinua a ser o único eleito três

vezes seguidas melhor jogador do

campeonato universitário de

basquetebol dos EUA, que chegou

a proibir durante vários anos os

afundanços por causa da

influência exercida pelo poste de

2,18 metros.

Kareem Abdul-Jabbar prolongou

depois o seu domínio no

desporto profissional: seis vezes

campeão da NBA e jogador mais

valioso da temporada, ainda é o

melhor marcador absoluto da

competição norte-americana,

graças a uma série de atributos

que incluíam o famoso skyhook,

um lançamento de gancho

indefensável.

Abdul-Jabbar, que abandonou o

nome de nascimento Lew

Alcindor quando se converteu ao

Islão, está visto, não foi um atleta

qualquer. Mas também não é o

típico ex-desportista. Actor

esporádico (um combate

memorável com Bruce Lee e a

participação em Aeroplano são os

papéis mais conhecidos),

argumentista e produtor de um

documentário bem recebido,

filantropo, autor regular de

artigos de opinião na Time,

embaixador cultural dos EUA,

mas também escritor de sucesso.

Agora, depois de alguns livros

não ficcionais ou infantis,

prepara-se para lançar o seu

primeiro romance, Mycroft

Holmes, um mistério policial, co-

escrito com Anna Waterhouse,

sobre o irmão – também genial

– de Sherlock Holmes.

“Percebi que poderia ser feito

algo mais com esta personagem

mais velha e inteligente ligada ao

governo britânico, numa altura

em que o Reino Unido era o país

mais poderoso do mundo”,

explicou Abdul-Jabbar,

que começou a ler as

histórias de Arthur

Conan Doyle na sua

época de estreia na

NBA, em 1969.

GEO

RGE

FREY

/ A

FP

apresentações

especiais a

partir de locais

secretos. Em Lisboa

serão três espaços – um

deles com curadoria dos

Buraka Som Sistema -

acolhendo uma mão cheia de

actuações ao vivo (Buraka,

Moullinex, Batida, Gala Drop, Paus,

Sequin, Jibóia ou a surpresa Mariza

com o seu Ensemble) e de DJs,

como Miguel Torga, Tiago, Trikk,

DJ Ride, Alex FX, IVVVO, Marie

Dior, Bison & Squareffekt ou Nigga

Fox. O acontecimento terá início

pelas 19h00 de dia 21 de Janeiro.

mundo em

na internet

ive).

r Room,

nidade global

os melhores

do em

prepara-se para lançar o seu

primeiro romance, Mycroft

Holmes, um mistério policial, co-

escrito com Anna Waterhouse,

sobre o irmão – também genial

– de Sherlock Holmes.

“Percebi que poderia ser feito

algo mais com esta personagem

mais velha e inteligente ligada ao

governo britânico, numa altura

em que o Reino Unido era o país

mais poderoso do mundo”,

explicou Abdul-Jabbar,

que começou a ler as

histórias de Arthur

Conan Doyle na sua

época de estreia na

NBA, em 1969.

GEO

RGE

FREY

/ A

FP

Kareem Abdul-Jabbar começou a ler as histórias de Arthur Conan

Doyle na sua época de

estreia na NBA, em 1969 Manuel Assunção

É já no fim do mês que começa

mais uma edição do Festival de

Angoulême, um dos mais

importantes eventos mundiais

dedicados à banda-desenhada,

mas esta não será uma edição

qualquer. É a edição que acontece

no mesmo mês em que mataram

Cabu, Wolinski, Charb e Tignous.

E por isso e pelo ataque ao jornal

satírico Charlie Hebdo em que

morreram 12 pessoas, entre as

quais os quatro importantes

desenhadores de imprensa e

outros quatro trabalhadores do

semanário, Angoulême criou o

prémio “Charlie da liberdade de

expressão”.

A 42ª edição arranca dia 29 e

prolonga-se até 1 de Fevereiro com

um cartaz desenhado por Bill

“Calvin e Hobbes” Waterson, que

deveria também presidir ao

evento depois de ter ganho no

ano passado o Grande Prémio do

festival mas que anunciou que

vai respeitar a sua tradição da

discrição e não estará presente.

Georges Wolinski, Grande Prémio

de Angoulême 2005, vai ser

recordado com Cabu, Wolinski e

Charb através do novo galardão,

criado dia 8 numa reunião de

urgência na sequência do ataque à

redacção do Charlie Hebdo.

O prémio, segundo o Le Monde,

deve ser entregue anualmente a

um desenhador de imprensa ou

de banda-desenhada que se tenha

visto impedido de exercer a sua

profissão em liberdade plena. E

Angoulême cria prémio Charlie da liberdade de expressão e lança-se à 42.ª edição

tem data de validade. “Este

prémio deve deixar de ser

atribuído no dia em que todos os

ilustradores do mundo se possam

expressar livremente”, segundo o

director-geral do festival Franck

Bondoux. Na cidade francesa,

haverá também tempo e espaço

para recordar o trabalho dos

desenhadores caídos. “A edição

de 2015 será tempo de memória,

de resistência, de debate sobre a

liberdade de expressão, e de

reagrupamento”, disse à AFP.

Plantu, célebre cartoonista do Le

Monde, vai criar o cenário para um

“concerto desenhado” de Areski

Belkacem que reunirá

desenhadores de todo o mundo.

Mesas redondas sobre a liberdade

de imprensa, as melhores capas

do Charlie Hebdo e concursos em

torno das criações dos

desenhadores mortos pelos

irmãos Chérif e Said Kouachi vão

marcar o 42.º Festival de

Angoulême, cuja cerimónia de

encerramento também

homenageará o jornal. Também

serão expostos os resultados –

centenas – do apelo lançado pelo

festival no Facebook por

ilustrações e trabalhos na esteira

do massacre de Paris.

A programação do festival não

foi alterada, apenas revista e

aumentada. Continuam previstas

as mostras dedicadas a Jack

Kirby, a Calvin & Hobbes, uma

monográfica do japonês Jirô

Taniguchi, um mergulho 3D

na obra de Matthias Picard

com Curious Jim (também em

foco na última edição do

AmadoraBD), uma exposição

dedicada às visões sobre os

bluesmen na BD, os cenários de

Fabien Nury, os 35 anos de

criação de Alex Barbier e vários

espaços e mostras para crianças.

Todos os anos passam por

Angoulême cerca de 200 mil

pessoas.

A edição do Charlie Hebdo saída na quarta-feira

Boiler Room em Lisboa com Mariza e Buraka

Joana Amaral Cardoso

SARA MATOS

Page 4: Ipsilon-20150116

4 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015

Todos conhecemos pessoas do-

ces, indolentes, transparentes

ou que se fazem de simpáti-

cas, e que se revelam, sob o

verniz, heróis, tiranos, lou-

cos, sectários ou génios. So-

fremos um choque: como nos tínha-

mos enganado em relação à pessoa

que temos agora à nossa frente e que

está a anos-luz daquela que olháva-

mos ainda há instantes.

Michel Houellebecq é um choque

permanente. Não é possível ignorá-lo.

É o grande homem dos franceses e

da sua literatura, comparado a Bal-

zac, Zola ou Flaubert. É um choque

a sua omnipresença há 15 anos — a

densidade do seu pensamento, a for-

ça do seu estilo. Um choque, também,

a polémica que desencadeia de cada

vez que aparece, obrigando-nos a

questionar-nos.

E eis o mais recente choque: Sou-

mission, que fala da França, do islão,

de política, de vencedores e vencidos,

e que se dirige a uma França já esgo-

tada por 20 anos de debates e de in-

compreensões sobre o islão, a políti-

ca, os vencedores e os vencidos. O

livro será editado em Portugal neste

primeiro semestre pela Alfaguara,

com o título Submissão.

Antes de Submissão, havia Houelle-

becq. Um físico estranho. Uma voz

átona e hesitante. Um olhar de uma

intensidade desconcertante, gestos

suaves e desajeitados. E um passado

atípico para quem pretende ter assen-

to entre os grandes da literatura con-

temporânea.

Os seus primeiros anos são à ima-

gem das personagens que privilegia:

incertos, difusos, parecendo deslizar

entre os obstáculos da vida. Tem uma

data de nascimento oficial (1958) e

uma falsa (1956). Foi a mãe que, pres-

sentindo-lhe o génio, o envelheceu

dois anos para o inscrever na escola,

ou foi ele que, para rejuvenescer, a

falsificou? Há controvérsia, logo mis-

tério. Deverá o seu nome ao acaso de

um passeio ao Monte Saint-Michel. A

família parece disfuncional, não mui-

to atenta a ele. A mãe publicará, de

resto, um livro disparatado onde res-

ponde violentamente ao filho (que se

inspirou nela para diversas persona-

gens femininas).

Quantas estradas secundárias terá

de percorrer antes de nascer verda-

deiramente para o que será a sua vida:

a escrita? A sua superioridade intelec-

tual leva-o a ingressar num curso de

preparação para as Grandes Écoles

d’Ingénieur, onde se selecciona, ex-

plora, tria e forma a nata da nata da

elite francesa. Entra numa célebre es-

cola de Agronomia — tão longe do es-

critor. Afasta-se ainda um pouco mais

ao trabalhar em informática, durante

13 anos, para diversas empresas e ins-

tituições. Ao longo desse tempo, ar-

mazena, sem dúvida, uma matéria em

bruto inestimável aonde vai buscar

mais tarde a sua panóplia de persona-

gens incrivelmente reais, esculpidas

no barro da fabulosa mediocridade do

francês médio. E, sobretudo, vive, so-

brevive, ganha a vida.

Claro que publicou, de vez em quan-

do, revistas e poemas. Gosta de ler,

ama as mulheres, fuma e adora beber.

As grandes bebedeiras de então ainda

não o marcaram. Os seus grandes

olhos azuis ora espantados, ora fugi-

dios, que de repente se fixam intensa-

mente, iluminam um rosto juvenil

com uns lábios finos de fino observa-

dor, emoldurado por cabelos que já

vão rareando, bem penteados e de

uma cor indecisa.

Não há boa literatura com bons sentimentosÉ raro que se faça boa literatura com

bons sentimentos. Tragédias, poli-

ciais, poesia, ensaio ou romance: to-

dos os géneros carregam a sua massa

de sofrimento, mal-estar, dramas a

exorcizar. E Houellebecq é um mestre

na arte de fazer zoom sobre o quoti-

diano de personagens perdidas e algo

desinteressantes para, logo de segui-

da e num movimento inverso, ofere-

cer um panorama particular do mun-

do e uma relação entre factos aparen-

temente insignificantes.

Em 1994 publica Extensão do Domí-

nio da Luta. O romance é marcante,

mas não ultrapassa suficientemente a

norma nas suas tomadas de posição

para o transformar numa estrela. Ne-

le descobrimos, no entanto, os alicer-

ces das obsessões que marcarão os

romances seguintes, bem como o es-

tilo único que contribuirá para tornar

a sua escrita tão singular. Narra a exis-

tência obscura de um solteirão neu-

rasténico. De uma banalidade atroz, a

personagem não deixa de ter parecen-

ças com Houellebecq: informático,

fortemente obcecado pelo sexo, mer-

gulhado numa vida solitária enquanto,

à sua volta, se agita uma sociedade de

consumo obscena que engendra um

combate financeiro e sexual implacá-

vel entre classes e indivíduos.

O virtuosismo de Houellebecq é no-

tável, nomeadamente nas suas litanias

descritivas de factos insignificantes,

do ordinário mais sórdido ou de coisas

aparentemente enfadonhas. Instru-

ções de electrodomésticos, sociologia

de uma empresa, descrição pelo rótu-

lo de um prato ultracongelado, fun-

cionamento do Minitel, relatório de-

talhado dos ruídos produzidos por

uma velha caldeira. Irá mesmo des-

crever com extremo pormenor uma

espécie de mosca em O Mapa e o Ter-

ritório, e aproveitará para agradecer

à Wikipédia por tê-lo ajudado nas suas

diligências! Houellebecq sabe tornar

fascinante um aspirador.

Mas é em 1998, com As Partículas

Elementares, que as portas da forta-

leza dos media e da celebridade tóxi-

ca vão estilhaçar-se. Entra no circo,

ele, o imodesto, tão absolutamente

seguro da sua superioridade. Bebe

com volúpia o cálice da agitação e das

primeiras controvérsias. E o falso tí-

mido explode nos ecrãs.

As Partículas Elementares é uma nar-

rativa prolífica e multiforme. Trata-se

de um simples romance? De um en-

saio? De um estudo biológico ou so-

ciológico? De um manifesto político?

Digamos que é uma narrativa quase

clínica, isto é, sem projecção emocio-

nal do autor nos factos que relata da

vida de dois meios-irmãos, um dos

Não há boa literaturacom bons sentimentos

É alguém que existe de forma muito forte, tem muito talento. Tem a capacidade de identificar aquilo que a sociedade precisa que lhe digam de mais abjecto, o discurso que a sociedade precisa que lhe façam”Jean Birnbaum, jornalista

PHIL

IPPE

CA

RON

/SYG

MA

/CO

RBIS

escritor geniaSeguindo o rasto de um

de pena envenenada

Page 5: Ipsilon-20150116

ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015 | 5

É o grande homem dos franceses e da sua literatura, comparado a Balzac, Zola ou Flaubert. É um choque a sua omnipresença há 15 anos — a densidade do seu pensamento, a força do seu estilo. Um choque, também, a polémica que desencadeia. Eis o mais recente: Submissão, que fala da França, do islão, de política, de vencedores e vencidos.Jan Le Bris de Kerneal,

Page 6: Ipsilon-20150116

6 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015

em explicações técnicas exageradas,

em cursos de física especializados

que até um engenheiro-cromo teria

dificuldade em seguir. Evidentemen-

te, rejubila quando, inesperadamen-

te, se torna crítico literário e disseca

um autor célebre com a desenvoltu-

ra erudita do especialista. Mas con-

segue dar uma espantosa unidade

aos seus livros com gavetas que não

param de se abrir. E cada vez se quer

mais simples. No programa Boome-

rang da France Inter, diz, a 7 de Ja-

neiro de 2015: “Não quero de manei-

ra nenhuma que se veja como as

coisas são escritas. Isso torna-se ob-

sessivo. Tento minimizar os efeitos,

enfim, não fazer efeitos, ser muito

fluido, muito fácil de ler.”

O génio do escritor está também

em ter sabido escolher temas que

parecem improváveis, nocivos, frac-

turantes, com a ideia de federar, de

ser acessível ou consensual. Fez,

portanto, sucessos comerciais e crí-

ticos falhados.

O fenómeno é também o homemÉ imodesto ao ponto da vaidade. É

incontável o número de declarações

em que se admira a si mesmo e elogia

o seu talento. Representa, aliás, o seu

próprio papel em 2014, no imprová-

vel telefilme L’enlèvement de Michel

Houellebecq. É um fracasso, o que não

o impede de declarar: “Continua a

surpreender-me muito que me con-

siderem um actor. Embora o resulta-

do não seja mau.” Tanto que repro-

duz a experiência com a estreia, no

mesmo ano, do improvável Near De-

ath Experience, no qual é... o único

actor. Narcisismo.

Houellebecq é também um físico

que se parece com uma personagem

de pesadelo saída de uma tela de Hie-

ronymus Bosch, com uma criatura

de BD americana, com o assassino

em série e o imperador Palpatine da

Guerra das Estrelas. Felizmente, pos-

sui uma qualidade maior: o humor e

a autocrítica. Deixemo-lo falar de si

quais, Michel, possui muitos pontos

em comum com Houellebecq. No li-

vro desenvolvem-se de novo as suas

obsessões breteastonellisianas: o se-

xo, necessariamente orgiástico, ob-

sessivo, cru, um pouco perverso, no

limiar da pedofilia; a mulher, neces-

sariamente objecto, consolidado com

o plástico da cirurgia, atraída pelo

dinheiro dos machos e também pelo

seu sexo, claro. O diálogo impossível

entre as pulsões permanentes do ma-

cho e as aspirações da fêmea, causa

de frustração sexual, inibições e inap-

tidões sociais.

Para além destes temas, o roman-

cista desfia outras linhas narrativas:

a doença, o suicídio, o divórcio, o

abandono, a crise dos 40, a clona-

gem, para concluir com um epílogo

que gela: a personagem de Michel,

geneticista, vê o seu trabalho resultar,

após a sua morte, em 2029, na cria-

ção de uma raça de sobre-humanos

desumanizados, liberta das angústias

com que se debatiam as personagens

do livro. Os homens desaparecem da

terra, dando lugar a super-homens

estéreis e eternos, podendo assim

consagrar-se, sem consequências, ao

perpétuo prazer sexual.

Não há fenómenos sem polémicas e sem estiloEm 1998, torna-se, portanto, um fe-

nómeno. Ora, poderá alguém reivin-

dicar o título de “fenómeno” sem

polémicas? Em França, certamente

que não. Escandalosamente porno-

gráfico, lamentavelmente misógino,

forçosamente reaccionário: está sob

fogo, mas o falso simpático, o doce,

o indolente distende-se como uma

mola e transforma-se em demónio

para escapar aos detractores. É astu-

to, é jogador. Borrifa-se nas críticas,

multiplicando as teorias futuristas

(modificar a espécie humana, recriar

o matriarcado, readquirir sentido

através da religião), desmultiplicando

as suas obediências: um dia, diz-se

comunista; no dia seguinte, amigo

dos católicos tradicionalistas anti-

aborto, apologista da sociedade do

consumo ou, pelo contrário, em bus-

ca do misticismo laico.

O mundo da edição dava-o como

grande vencedor do Prémio Gon-

court, mas nada. A decepção será tão

amarga quanto o homem é orgulho-

so e ciente do seu valor.

Em 2000, tendo enriquecido,

expatria-se na Irlanda, terra apazi-

guante para todos os tipos de pro-

blemas de dinheiro. Ei-lo exilado

fiscal, o grande escritor que, não sa-

tisfeito em pôr a França a ferro e

fogo com a sua mania de a questio-

nar e de a voltar a ensinar a ler, de-

sertou para o lado dos ingleses, o

traidor, para aí esconder a sua for-

tuna. Nova tempestade, novo assal-

to da cavalaria político-mediática.

Desta vez, tentará aliviar as tensões,

regressando ao país em 2012.

Mas voltemos atrás: ficámos no du-

che frio que se abate sobre Houelle-

becq quando falha o Goncourt em

1998. Seis anos depois, ei-lo de novo.

A Possibilidade de uma Ilha é publica-

do em 2005. Os temas caros são no-

vamente convocados, de forma es-

pantosa. Enquanto seguimos a vida

de Daniel1, comediante de sucesso

no século XX, o romance intercala a

história das vidas de Daniel2 e Daniel3

até Daniel25, clones que vivem vários

séculos depois do primeiro Daniel.

Este comediante cínico, mestre dos

mecanismos do humor e do sucesso

mediático, não deixa de lembrar um

Dieudonné, controversa vedeta do

humorismo que conjuga perigosa-

mente a provocação anti-semita, o

conflito israelo-palestiniano e a his-

tória colonial e africana de França.

Como sempre em Houellebecq, o

desastre sentimental é um tema

maior, bem como a inexorável que-

da na depressão dos seus heróis. Não

se esquece o sexo, o incesto, o dese-

jo pedófilo, as seitas e a espécie hu-

mana melhorada pela manipulação

genética e pela clonagem. A Possibi-

lidade de uma Ilha é o desejo de ou-

tro lugar, mal endémico da nossa

sociedade contemporânea. Um ou-

tro lugar que Daniel1 não alcançará

ou, pelo menos, não em vida, uma

vez que se suicida no fim, dando as-

sim vida aos seus clones, que her-

dam o relato escrito da vida de Da-

niel1 e a completam, um após outro,

para ir melhorando a linhagem. O

livro é um calhamaço: 500 páginas.

Que deixa o leitor perturbado, tão

denso e ambicioso é o seu objectivo.

Este trabalho notável merecerá o

Prémio Interallié. Gaita, ainda não

é o Goncourt.

Como é que consegue manter os

seus numerosos leitores fascinados

de fio a pavio pela sua obra magistral?

Porque o seu público vai bem além

dos círculos intelectuais rodados no

exercício da leitura de obras impo-

nentes. O escritor é fracturante e exi-

gente, mas popular. É lido por todo

o lado. E se é lido por todo o lado e

por toda a gente, e com uma tal avi-

dez, é porque tem estilo.

Jean Birnbaum, jornalista no Le

Monde e editor do suplemento literá-

rio do diário francês, admite ao Ípsi-

lon: “É alguém que existe de forma

muito forte, tem muito talento. Tem

a capacidade de identificar aquilo

que a sociedade precisa que lhe di-

gam de mais abjecto, o discurso que

a sociedade precisa que lhe façam.”

O homem e o estilo são reconhe-

cíveis por todos e, além disso, asse-

melham-se. Clínicos, fluidos, neu-

tros. Economia de palavras. Ausência

de efeitos. Linguagem clara. Prosódia

sem floreios. Claro que tem um pra-

zer indissimulado quando se lança

Não há fenómenos sem polémicas e sem estilo

O fenómeno é também o homem

O dia do lançamento de Submissão em França foi o dia da capa da Charlie Hebdo satirizando Houellebecq e também o do ataque terrorista contra a revista que conduziria ao balanço dramático de 17 mortos

JAC

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INA

/AFP

Page 7: Ipsilon-20150116

ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015 | 7

France Orange Mécanique (o que lhe

valeu ser classificado como de extre-

ma-direita por certos editorialistas).

A tendência na Ring é crítica em re-

lação ao islão, pró-Bush e anti-siste-

ma, com posições de direita, portan-

to. E Houellebecq afirma que “a Ring

é o melhor site de informação”. Su-

per-inapropriado... E porque não?

O homem é inapropriado em todos

os aspectos. As suas relações com

personalidades ambíguas já não sur-

preendem muita gente.

Podem escrever-se coisas más com maus sentimentosDissemos que não se faz boa litera-

tura com bons sentimentos. Mas,

no momento em que é lançado Sub-

missão, a ideia de que se podem

escrever coisas más com maus sen-

timentos impõe-se. Quase ninguém

ainda leu o livro que eclipsa todos

os outros nesta rentrée (como fre-

quentemente acontece com Houel-

lebecq), mas o fragor surdo da po-

lémica já se faz ouvir ao longe. Já

um mês antes se levantavam as pri-

meiras vozes a denunciar um livro

que qualificam de râncido, nausea-

bundo, islamofóbico, assustador

— em suma, perigoso e indigno de

um grande escritor.

O primeiro problema é que Sub-

missão vem colocar-se no cimo de

uma pilha de livros que batem na

mesma corda: a do declínio francês

face ao perigo muçulmano. Há 15

anos que esta ideia regressa inaba-

lavelmente ao primeiro plano. O úl-

timo escândalo até à data é o livro

do editorialista Eric Zemmour, mui-

to famoso em França, intervindo na

rádio, na TV, na imprensa e nos seus

livros. Embora se considere eterna-

mente censurado pelos bem-pensan-

tes do “sistema”, vemo-lo por todo

o lado, de manhã à noite. Zemmour

publicou Le Suicide Français. Vendas

recorde para este livro que traça um

retrato arrasador da França e apon-

ta sem hesitar os responsáveis pelo

declínio: os imigrantes, os homosse-

xuais, as mulheres (ou, pelo menos,

as feministas) e, depois, a esquerda,

e também, um pouco, a direita, to-

dos os políticos e, claro, os jornalis-

tas e os censores — em suma, tudo o

que não é branco, sexagenário, ca-

tólico e heterossexual.

Temos, então, um Houellebecq

que cavalga esta onda salobra da is-

lamização da França com o cenário

da chegada ao poder de um Presi-

dente da República muçulmano,

chamado Mohammed Ben Abbas, e

a poligamia, e a exclusão das mulhe-

res do mundo do trabalho, e o esta-

belecimento de uma sharia light —

tudo isto sob o olhar desolado de

franceses ultrapassados e apáticos.

E tudo isto é muito. Cá estamos, é o

choque de Submissão. Coloca-se en-

tão a questão da responsabilidade

das elites e dos intelectuais. Porque,

se nos apraz designar como causa

dos nossos males responsáveis saí-

dos do povo (imigrantes, professo-

res, minorias), porque não interro-

garmo-nos sobre a responsabilidade

dos responsáveis pelo país, os líde-

res de opinião, as elites: os políticos,

os media e os intelectuais.

Podem escrever-se coisas más com maussentimentos

Entre os que desfilaram no domingo, em Paris, com a sua boa consciência, há quem tenha sido dos primeiros a dizer que a Charlie Hebdo estava a pedi-las. O escritor não tem de estar preocupado com uma parte da população (...) A literatura é um território sagrado, temos o direito de forçar a nota. Temos direito ao mau gosto e à blasfémia.”Emmanuel Pierrat, advogado

próprio. Eis um extracto de O Mapa

e o Território, onde coloca em cena

uma miríade de personagens reais

do mundo das artes, incluindo — e

sobretudo — ele mesmo:

“Reconhecerá facilmente a casa, é o

relvado mais desleixado das redonde-

zas”, dissera-lhe Houellebecq. ‘E talvez

de toda a Irlanda’, acrescentara.”

“Bateu pelo menos dois minutos à por-

ta, sob chuva forte, antes de Houellebe-

cq abrir. O autor d’As Partículas Ele-

mentares envergava um pijama com

riscas cinzentas que o fazia parecer-se

vagamente com um presidiário de uma

telenovela; o cabelo estava despenteado

e sujo, o rosto vermelho, quase afogue-

ado, e cheirava um pouco mal. A inca-

pacidade de fazer a higiene pessoal é

um dos sinais mais seguros de um esta-

do depressivo, recorda Jed.”

“Com efeito, restos de tostas e de fatias

de mortadela juncavam os lençóis,

manchados de vinho e queimados, aqui

e ali, por cigarros.? “Voltei a recair...

Voltei a recair completamente ao nível

da charcutaria”, prossegue Houellebe-

cq sombriamente. Realmente, a mesa

estava repleta de embalagens de chou-

riço, de mortadela, de salame. Estende

a Jed um saca-rolhas e, logo que a gar-

rafa é aberta, engole um primeiro copo

de um só trago, sem cheirar o bouquet

do vinho, sem sequer se entregar a um

simulacro de degustação. Jed tira uma

dúzia de grandes planos, tentando va-

riar os ângulos.”

Houellebecq, o homem, até então

incompleto, acede à completude.

Entra para o panteão, conquistando

o seu graal, o seu Goncourt, em 2010,

com O Mapa e o Território. O seu quin-

to romance. O Goncourt é atribuído

no muito chique e mítico Restauran-

te Drouant, em Paris. Nesse dia, a

agitação em torno do frágil Houelle-

becq é considerável. Ei-lo cercado

pelas objectivas, sacudido como uma

palha, um pouco esgazeado e perdi-

do, mas exultante. Acaba de entrar

na História.

Na vida, em torno de Houellebecq

gravita a galáxia Houellebecq. Já não

está tão solitário, o escritor goncour-

tizado: esquerdistas intelectuais de

aparência igualmente desleixada e

suja, mas também celebridades, es-

critores famosos e outras persona-

gens mais controversas ou dificil-

mente classificáveis de que a França

possui o segredo. Detenhamo-nos

um instante num extraordinário jan-

tar. A 14 de Novembro de 2010, dia

de remodelação ministerial, o pre-

sidente Nicolas Sarkozy e a sua mu-

lher, Carla Bruni, convidam, em

honra de Houellebecq, algumas per-

sonalidades das artes e dos media.

Por seu lado, Houellebecq convocou

a editora-executiva da Playboy, que

lhe inspirou uma personagem em A

Possibilidade de Uma Ilha. Inapro-

priado. Convidou também o enig-

mático e muito direitista David Ser-

ra, que dirige uma revista on-line,

Ring, e publica escritores como Lau-

rent Obertone, autor de uma obra

sobre a delinquência intitulada La

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8 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015

Na sua primeira edição

deste ano, o Babelia,

suplemento literário do

jornal espanhol El País,

anunciava na capa: “O

ensaio volta a estar em

primeiro plano”. Como os leitores

querem “dar sentido a um mundo

desconcertante”, procuram

“chaves” na filosofia, na política e

na ciência.

Recentemente, o editor Manuel

Alberto Valente defendeu o

mesmo. “Neste momento

assistimos cá, como lá fora, a uma

certa mudança no paradigma

editorial e a uma maior atenção

dos leitores à não-ficção do que

havia até aqui”, disse na sessão de

apresentação das novidades do

grupo Porto Editora. “Vejam o

êxito que está a ter um livro difícil

como o é O Capital no Século XXI,

de Thomas Piketty, que vai com

quase dez mil exemplares

vendidos só em Portugal, o que

para um livro daqueles é notável”.

Quando se olha para o que vai

ser publicado em Portugal nos

A escolha, por Houellebecq, deste

tema candente que esgota os france-

ses há 15 anos pode ser considerada

unicamente artística? Houellebecq é

demasiado sensível ao ar do tempo

e ao jogo mediático para ignorar a

onda de indignação e a ressaca de

aprovação que se vão seguir. Teve de

prever e desejar o (bad) buzz. Aliás,

no dia do lançamento do livro — 7 de

Janeiro —, aos microfones da Radio

France Inter, o crítico Augustin Tra-

penard leu uma passagem de Submis-

são em que Houellebecq fala do gos-

to do escritor Huysmans pela discór-

dia. O jornalista lê o que Houellebecq

escreveu: “Huysmans tem, antes do

mais, necessidade de causar escân-

dalo, de chocar o burguês, naquilo

que se parece bastante com um plano

de carreira.”

“– Quer dizer que isso se aplica a

mim?”, pergunta Michel Houellebe-

cq.

“– Estou a colocar-lhe a questão.

Você também choca o burguês”, res-

ponde Trapenard.

“– OK, aparentemente, sim.”

“– Trata-se de um plano de carrei-

ra?”

“- Hum... enfim, sim”, admite Hou-

ellebecq.

“– Ah, uma cacha, o plano de car-

reira de Michel Houellebecq: chocar

o burguês.

“- Não mais do que Huysmans, mas

também não menos.”

É claro que ninguém sonha asso-

ciar Houellebecq aos últimos e trági-

cos acontecimentos em França. Cro-

nologicamente, é impossível. Embo-

ra tenha pronunciado estas frases

cheias de nuances em 2001, na revis-

ta Lire: “A religião mais estúpida é,

apesar de tudo, o islão. Quando le-

mos o Corão, ficamos abismados.

abismados! (...). O islão é uma religião

perigosa, e isto desde que apareceu.

Felizmente, está condenado. Para já,

porque Deus não existe e, mesmo

que sejamos estúpidos, acabamos

por perceber isso. A longo prazo, a

verdade triunfa. Depois, o islão está

minado internamente pelo capitalis-

mo. O que mais podemos desejar é

que triunfe rapidamente. O materia-

lismo é um mal menor. Os seus valo-

res são desprezíveis mas, apesar de

tudo, menos destrutivos, menos cru-

éis do que os do islão.”

É nessa altura que o advogado pa-

risiense Emmanuel Pierrat encontra

Houellebecq: “Michel Houellebecq

tinha recusado o advogado da edito-

ra Flammarion, que queria que se

fosse pedir desculpa publicamente,

se possível, diante da Grande Mes-

quita de Paris. Ora, Houellebecq que-

ria defender a sua liberdade de ex-

pressão e explicar-se. Procurou-me

e falámos todos os dias durante esse

Verão. Veja como ele é: não pode res-

ponder a uma pergunta sem fazer

uma longa pausa e inalar profunda-

mente o fumo de um cigarro. No tri-

bunal, isso era impensável. Portanto,

desabituei-o à força de adesivos e

treinei-o para responder com voz for-

te e de forma clara e rápida. Foi uma

loucura. Tínhamos contra nós o islão

francês, a Liga Islâmica Mundial (um

órgão da Arábia Saudita), a Federação

Nacional dos Muçulmanos em Fran-

ça, as grandes mesquitas de Paris e

Lyon, e a Liga dos Direitos do Ho-

mem, que o acusava de racismo. Du-

rante um ano elaborámos uma lista

de intelectuais que chamámos a

apoiá-lo. Foi a debandada geral. Aca-

bámos com cinco testemunhas, entre

as quais o escritor Philippe Sollers e

Fernando Arrabal, que fora persegui-

do sob a ditadura de Franco por blas-

femar contra Cristo. Depois, era a

indignação de jornalistas do mundo

inteiro. Tínhamos o mundo intelec-

tual contra nós ou à distância. Ti-

nham acontecido os atentados do 11

de Setembro (as vendas do livro Pla-

taforma caíram a pique). E depois,

na altura do julgamento, houve outro

atentado em Bali, contra uma disco-

teca. Ora esse era exactamente o ce-

nário que Houellebecq descrevia em

Plataforma. Pela minha parte, decidi

invocar o ‘direito à blasfémia’. A au-

diência durou nove horas, a tensão

era muita. Mas senti que a sala, a pou-

co e pouco, reflectia. No fim do dia,

saímos do tribunal: tínhamos dado a

volta ao assunto, Houellebecq tinha

razão. Como por magia, os apoios

que nunca tínhamos conseguido de-

sataram a telefonar: ‘Já agora, lamen-

to não ter estado presente, mas se

precisares...’”

Jean Birnbaum, o chefe de redac-

ção do Le Monde des Livres, mostrou-

se severo no site do Monde.fr sobre

Submissão. “Um livro que suscita a

náusea, a revolta.” Confirma-nos ao

telefone o seu ponto de vista, simul-

taneamente intransigente em relação

ao aspecto puramente estilístico, mas

igualmente em relação ao conteúdo:

“Do ponto de vista literário, este livro

não é um acontecimento. Somos mui-

tos a dizê-lo: imita os seus imitadores,

é bastante preguiçoso na sua cons-

trução, tem facilidades. Sente-se que

ele pega nos mesmos truques, em

temas que antes tratava com virtuo-

sismo mas desta vez com um tom ‘já

conhecem esta cantiga’.”

E sobre a noção de responsabilida-

de dos autores: devemos considerá-

los puros escritores ou eles são outra

coisa? “Não se pode exigir a um es-

critor que seja moderado ou pruden-

te”, prossegue. “Mas como dizia Sar-

tre: ‘As palavras são armas carrega-

das’. É preciso ter mesmo curta

memória para não se ser reenviado

a períodos muito obscuros da nossa

História quando se lê em Submissão

sobre a cobardia, sobre a pertença

de todas as personagens a um grupo

religioso por puro oportunismo, co-

mo isco para o dinheiro e para o sexo.

Nunca por espiritualidade. Não há

ninguém no livro que se converta ao

islão por convicção. É incrível, Michel

Houellebecq joga tudo no facto de

que haverá um público amnésico,

bastante desinvolto ideologicamente

para se sair com o argumento estú-

pido ‘oh, afinal de contas não é mais

do que um romance’. Houellebecq

sabe muito bem quais as consequên-

cias políticas da linguagem e da lite-

ratura. Imagine-se o que um jovem

da cultura muçulmana sente perante

isto, é de chorar.”

Consequências do ruído mediáti-

co anti-árabe: à força de repetir, con-

tribui para instalar uma atmosfera

que permite validar uma desconfian-

ça generalizada em relação aos

Para melhor sUm ano de apostas na não-fi cção

para os leitores que querem interpretar

a actualidade. Também um ano de

literatura polémica. Por Isabel Coutinho

FOTO DE ARQUIVO DE SVETLANA ALEXIEVITCH

próximos meses, essa tendência

parece ter sido levada em conta.

Na editora Gradiva, até ao final do

ano, ficará praticamente

concluída a recolha e a edição de

toda obra publicada do académico

Eduardo Lourenço e que estava

dispersa. Começa com Do Brasil:

Fascínio e Miragem este mês; Sobre

a Pintura em Março; Salazar como

Questão em Maio; Requiem por

Alguns Vivos em Julho; O Cinema

como Mitologia Cultural em

Setembro; Estudos Camonianos

(título provisório) em Novembro.

Também entre os lançamentos

marcantes dos próximos meses,

ainda sem título em português,

está aquele que foi considerado o

livro estrangeiro mais importante

publicado em França em 2013,

obtendo o Prémio Medicis para

livro estrangeiro: La Fin de

L’Homme Rouge, da escritora e

jornalista Svetlana Alexievitch,

que no ano passado apareceu

como forte candidata ao Nobel.

Está a ser traduzido do russo pela

Porto Editora, que o publicará em

Abril. “A escritora é um fruto da

situação criada com a Perestroika

e com a queda do império

soviético. Ela é uma russa, na

verdade nascida na Ucrânia e de

família bielorussa. Este livro é o

retrato do homem soviético antes

e depois da Perestroika, conta-nos

como era a vida quotidiana de um

cidadão soviético antes da

Perestroika e o que passou a ser

depois”, diz o editor. Na Relógio

D’Água, em Fevereiro, será

publicado O Que Quer a Europa?,

de Slavoj Zizek e de Srecko Horvat,

com prefácio de Alexis Tsipras.

De um dos comentadores

económicos mais influentes, o

editor do Financial Times Martin

Wolf, ver-se-á no Clube do Autor

The shift and the schocks, livro

sobre aquilo que aprendemos — e

ainda temos de aprender — com a

crise. E na Bertrand, este mês,

sairá A Ética das Finanças, de

Robert J. Shiller, Nobel da

Economia em 2013, visão analítica

do sistema financeiro e de como

este deve funcionar. Também os

autores de Freakonomics e

Superfreakonomics, Steven Levitt e

Stephen Dubner, estão de volta

com Pense como um Freak, na

Presença.

Um livro “híbrido” da espanhola

Rosa Montero, escrito depois da

Svetlana AlexievitchLa Fin de L’Homme Rouge, da escritora russa que no ano passado apareceu como forte candidata ao Nobel, sai em Abril

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ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015 | 9

r se entender o mundo

Karl Ove KnausgårdO segundo volume de A Minha Luta do escritor norueguês que é dos mais recentes “fenómenos” da literatura nórdica sairá em Maio

ANDRE-LOEYNING

morte com cancro do

companheiro com quem a

escritora viveu 21 anos e inspirado

no diário que Marie Curie

escreveu depois da morte do

marido, A Ridícula ideia de não

voltar e ver-te, sai este mês na

Porto Editora. Começa com a

frase: “Como no he tenido hijos, lo

más importante que me ha sucedido

en la vida son mis muertos”. Em

Maio, na mesma editora, vai ser

publicado 1889, do jornalista e

escritor brasileiro Laurentino

Gomes, que encerra a sua

premiadíssima trilogia e que

recebeu o Prémio Jabuti para o

Melhor Livro de Não-ficção 2014.

O quinto volume da História de

Portugal — Os Filipes, de António

Borges Coelho, sairá em Maio na

Caminho; para Setembro ou

Outubro, a editora prevê Diários

da Prisão, de Luandino Vieira.

Em ano de centenário da

Orpheu, haverá uma programação

na Assírio&Alvim com forte

presença dos modernistas; na

Colecção Pessoa, dirigida por

Jerónimo Pizarro na Tinta-da-

China, sairá em Março 1915, o Ano

do Orpheu — edição fac-similada.

As vidas delesUma biografia de Agostinho da

Silva (1906-1994), O Estranhíssimo

Colosso, realizada pelo académico

António Cândido Franco, é

esperada na Quetzal em Fevereiro.

E na Planeta, em Abril, será

contada a história do

narcotraficante Pablo Escobar

pelo seu filho, em Meu Pai, de Juan

Pablo Escobar. No mesmo mês, a

mesma editora publicará a

autobiografia do actor que se

tornou uma lenda dos Monty

Python: Então, de qualquer

maneira..., de John Cleese.

Na Colecção de Viagens dirigida

por Carlos Vaz Marques na Tinta-

da-China, serão lançados Era Uma

Vez em Goa, de Paulo Varela

Gomes e o clássico Viagem à Volta

do Meu Quarto, de Xavier de

Maistre. Em Setembro, na

Antígona, sairá La Nebbiosa (título

original), do guião-romance de

Pier Paolo Pasolini que estava

inédito na sua versão integral. “Do

guião inicial, repleto de

referências políticas e

sociológicas, (quase) nada ficou,

nem mesmo o título, no filme

realizado por Pino Serpi e Gian

Rocco e proibido a menores de 18

anos, exibido numa única sala de

Milão”, segundo o editor.

Deu polémicaEntre os lançamentos mais

importantes deste primeiro

semestre está Submissão, o

romance de Michel Houellebecq a

publicar pela Alfaguara. A

colectânea de contos da autora

duas vezes distinguida com o Man

Booker Prize, Hilary Mantel, e que

também causou polémica no

Reino Unido, O Assassinato de

Margaret Thatcher, sairá em Março

na Jacarandá. E o mais recente

romance de Martin Amis, The Zone

of Interest, abordagem satírica dos

campos de concentração, será

publicado pela Quetzal.

Muitas obras premiadas

chegarão às livrarias portuguesas.

Os mais recentes livros do Nobel

da Literatura 2014, Patrick

Modiano, L’Herbe des nuits e Pour

que tu ne te perdes pas dans le

quartier, são lançados pela Porto

Editora. A obra que recebeu o

Man Booker Prize 2014, A Senda

Estreita do Norte Profundo, de

Richard Flanagan, está prevista

para Fevereiro na Relógio D’Água.

O Prémio Femina 2013, A Estação

da Sombra, de Léonora Miano,

sairá na Antigona em Abril. O

prémio Alfaguara 2014, O mundo

de fora, de Jorge Franco, e Así

empieza lo malo, o novo romance

de Javier Márias, considerado

pelos críticos do Babelia como a

obra mais importante publicada

em Espanha no ano passado,

sairão na Alfaguara.

O segundo volume de A Minha

Luta, de Karl Ove Knausgård: O

Homem Enamorado, vai ser

lançado pela Relógio D’Água em

Maio, e a Sextante termina a

publicação da saga de Edward St

Aubyn com o quinto volume, Por

Fim, em Abril.

Na Quetzal sairá Cifra, do chinês

Mai Jia. uma das apostas do ano.

Na Gradiva esperam-se Ian

McEwan (The Children Act, Março),

Kazuo Ishiguro (The Burried Giant,

Abril), Peter Carey (Amnésia,

Agosto) e Umberto Eco (Número

Zero, Maio). Na Marcador, ainda

sem título em português, sairão

Imperial Bedrooms, de Bret Easton

Ellis, e Beautiful You, de Chuck

romances de João Tordo, bem

como um romance e uma nova

enciclopédia da estória universal

de Afonso Cruz (na Alfaguara).

Novos livros de Pedro Vieira

(Quetzal), Jorge Reis-Sá (Guerra &

Paz), dos prémios LeYa João

Ricardo Pedro (D. Quixote) e Nuno

Camarneiro (Se Eu Fosse Chão, D.

Quixote) e um novo romance de

Ana Margarida de Carvalho,

Grande Prémio de Romance e

Novela APE, na Teorema.

Em Outubro, publicar-se-á na D.

Quixote a Antologia Poética de

Adonis, com tradução e

organização de Nuno Júdice. Em

Fevereiro, na Relógio D’Água, sairá

Milreos, de João Miguel Fernandes

Jorge, e na Assírio & Alvim um

novo livro de poemas de Adília

Lopes, Manhã. Em Março, uma

edição da Obra Poética de Sophia

de Mello Breyner Andresen na

mesma editora incluirá alguns

poemas inéditos que integram o

espólio da autora em depósito na

Biblioteca Nacional.

Palahniuk. Dois livros que só serão

publicados nos EUA na próxima

rentrée, em Setembro, estão já

agendados para sair em Portugal

na Dom Quixote. O colossal City

on Fire, de Garth Risk Hallberg,

mil páginas que foram a sensação

da Feira do Livro de Londres de

2013, será publicado este ano

ainda sem data, e em Outubro

podemos contar com Purity, de

Jonathan Franzen.

Adília Lopes e Teresa Veiga de regressoQuanto às novidades de autores

portugueses, sabe-se que a autora

de culto Teresa Veiga regressa à

ficção com um livro de contos,

a sair em Março na Colecção de

Ficção de Língua Portuguesa da

Tinta-da-China. António Lobo

Antunes terá novo romance em

Outubro, Da Natureza dos Deuses

(D. Quixote). Haverá novo roman-

ce de Mia Couto, ainda sem título,

na Caminho, e também novo

romance de Pepetela e um livro

em prosa de Nuno Júdice (na D.

Quixote).

Esperam-se também novos dois

“Assistimos a uma mudança no paradigma editorial e a uma maior atenção dos leitores à não-ficção” Manuel Alberto Valente, editor

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10 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015

muçulmanos: -> estigmatização ->

discriminação -> exclusão -> retrac-

ção comunitária da população visa-

da -> risco de recuperação por ex-

tremistas islamistas-> risco de radi-

calização dos indivíduos mais frágeis

-> violência -> nova desconfiança ge-

neralizada, etc.

No dia em que foi lançado Submis-

são, 7 de Janeiro de 2015, a revista

satírica Charlie Hebdo saiu também,

com uma caricatura de Houellebecq

na capa. E estas palavras sobre a fi-

gura do escritor: “As previsões do

mago Houellebecq: em 2015 vou fi-

car sem dentes... Em 2022 observa-

rei o Ramadão!”

Muito bad timing, o dia do lança-

mento de Submissão, que foi o dia da

capa da Charlie Hebdo satirizando

Houellebecq, e também o do ataque

terrorista contra a revista que condu-

ziria ao balanço dramático de 17 mor-

tos. É difícil não nos sentirmos afec-

tados por esta funesta carambola de

acontecimentos, entre os quais sen-

timos existir uma ligação difusa.

É então que Houellebecq desapa-

rece da confusão. Fazem-no sair de

Paris, para sua segurança, e também,

dizem-nos, porque precisava de des-

cansar antes de retomar a promoção

do livro. Outros fazem o mesmo, pru-

dentemente, depois de terem defen-

dido veementemente a tese de Hou-

ellebecq. Alain Finkielkraut, por

exemplo, filósofo famoso, conhecido

pelas suas posições de direita e anti-

imigracionistas: o seu assessor de

imprensa explica ao Ípsilon que do-

ravante não dará mais entrevistas

sobre Houellebecq, tendo em conta

o que acaba de acontecer. Três dias

antes, a 4 de Janeiro, ainda dizia no

programa de Élisabeth Levy na rádio

RCJ: “Michel Houellebecq é o nosso

grande romancista do possível. Entre

a clonagem generalizada e o futuro

turístico da França, compraz-se no

romance de antecipação. Soumission

não foge à regra mas, desta vez, Hou-

ellebecq toca na ferida, e os progres-

sistas de quem era a coqueluche,

apesar do seu pessimismo, soltam

ais (...). A grande preocupação da-

queles que se apresentam como re-

beldes, refractários, resistentes, é

que nada obste às reivindicações do

islão e à sua progressão, e essa é, a

meu ver, a mistificação da esquerda

actual, a sua suprema mentira: quan-

do diz ‘mudança” quer dizer ‘sub-

missão’.”

O seu amigo Emmanuel Carrère,

também ele um escritor maior, Pré-

mio Renaudot por Le Royaume, de-

clara à propósito de Soumission: “Um

livro profético, na linha de 1984 e de

Admirável Mundo Novo, mas mais po-

deroso.”

Fouad Zeraoui está numa posição

privilegiada para avaliar o impacto

destes discursos na juventude mu-

çulmana de França. Fundador da

associação Kelma (“palavra”, em

árabe), de uma revista gay e étnica,

e promotor das noites Black Blanc

Beur que organiza em Paris, tem co-

mo alvo uma população apanhada

entre dois fogos: os muçulmanos

homossexuais. Confrontados com o

racismo fora de casa, são vítimas de

homofobia dentro dela. Eis uma po-

pulação de origem imigrante que

poderia, dada a sua homossexuali-

dade, sentir-se próxima de publica-

ções antimuçulmanas. “Os muçul-

manos sentem que são atacados sem

terem a possibilidade de ripostar”,

diz Zeraoui. “Mesmo que pudessem

fazê-lo, torna-se muito difícil, na me-

dida em que defrontam pugilistas

profissionais que usam de má-fé e,

por vezes, de verdades que carecem

de respostas precisas e complexas.

É difícil criticarmos a nossa comu-

nidade numa altura em que a palavra

de ordem é a união.” Para Zeraoui,

não é possível deixar de se alinhar

pela imagem viril do irmão ou do pai

quando esta é atacada pelo mundo

exterior. “A exacerbação, por parte

dos muçulmanos, da virilidade (de

que os radicais são a encarnação: o

super-homem, o combatente, o ho-

mem que não sofre de nenhuma ta-

ra ocidental), é uma resposta a esse

ataque à virilidade. E os gays saídos

dessa comunidade muçulmana não

têm remédio se não associar-se a es-

sa palavra de ordem implícita: não

haverá degenerados a manchar a

nossa unidade, a nossa postura, o

nosso orgulho singular. Há que ser

masculino.” É a lei do silêncio, não

se participa no debate.

Para Frédéric Pichon, licenciado

em Árabe, professor de Geopolítica

e consultor de comunicação social

que contacta via Internet com jiha-

distas, se é evidente que alguns líde-

res de opinião instrumentalizam este

filão antimuçulmano, não é isso que

leva à radicalização. De resto, consi-

dera o romance de Houellebecq irre-

alista. Não seria possível eleger um

presidente muçulmano “pela simples

razão de que não existe uma comu-

nidade muçulmana em França”: “Há

muitas correntes no islão: a francesa,

a magrebina, a turca, etc. Não conse-

guiriam chegar a um consenso sobre

um presidente.” Em contrapartida,

avança uma explicação curiosa. Há

muito que a nossa cultura ocidental

deixou de oferecer um modelo espi-

ritual interessante. “Ela esqueceu o

sagrado, já não é capaz de transmitir

valores. O que uma parte da juventu-

de muçulmana vai procurar noutro

lado remete para o nosso vazio.” À

força de ver vídeos de jihadistas, dis-

tinguiu três noções importantes, três

elementos que, involuntariamente,

são demonstrados pelos jovens que

se filmam, por vezes, antes de abra-

çar a violência: “1) A regeneração: a

nossa radicalização vai fazer-nos mu-

dar de vida. Metro, trabalho, dormir,

metro, trabalho: isso já eu rejeitava

em França. Acabou-se o haxe e os

desacatos, encontrei um sentido pa-

ra a minha vida. 2) A emoção: os in-

divíduos choram de emoção antes de

passar ao acto, manifestam o seu

amor pelos ‘irmãos’ que encontra-

ram. 3) A ascese: o aspecto marcial,

sacrificial, são a sua nova vida.” De

um lado, portanto, os líderes de opi-

nião que estigmatizam; do outro, um

vazio espiritual que nada vem preen-

cher... até que se têm maus encon-

tros.

O último problema é que Houelle-

becq finge não compreender bem o

que querem dele. Ser responsável?

Responsável por quê? Por nada, uma

vez que, quando questionado, esqui-

va-se, faz-se de ingénuo. Na véspera

do lançamento do livro, Houellebecq

está no telejornal da noite da France

2: o pivô, David Pujadas, interroga-o

sobre o quadro geral apresentado no

livro, que alimenta o medo, e sobre

a responsabilidade subjacente do au-

tor no seu alastramento. Por três ve-

zes Pujadas regressa à pergunta, por

três vezes Houellebecq responde ao

lado. O jornalista conclui: “Parece

minimizar a questão.”

Então mostra reacções de leitores,

entre as quais a de Malek Chebel,

filósofo argelino, tradutor do Corão,

antropólogo das religiões. E cita-o:

“Quando se é um grande escritor,

têm-se mais responsabilidades. Sen-

te isso?” Resposta de Houellebecq:

“Não me lembro de nenhum caso

em que um romance tenha alterado

o curso da História.” Seguem-se vá-

rias não-respostas, como “Nem uma

coisa nem outra”, “Não sei, já não

sei mesmo”, “Então não aprovo nem

condeno [a personagem principal,

que se converte ao islão por facilitis-

mo]”.

Esta questão da responsabilidade

dos intelectuais e da comunicação

social dá azo a viva discussão no pro-

grama C à vous da France 5. Edwy

Plenel, politicamente de esquerda,

director do site Médiapart e ex-direc-

tor do Le Monde, atira: “Nós, os me-

dia, alguns media, fazemos desta

ficção o acontecimento do dia, faze-

mos de um escritor, que tem o direi-

to de pensar o que quiser, o aconte-

cimento político da rentrée. Após

três meses de zemmouradas (...),

consideramos normal, nós, jornalis-

tas, fazer eco disto, promover isto

(...). A que é que damos relevo? A

que o islão é um problema, que os

muçulmanos são um problema. Há

15 anos que somos um país que pro-

move a discriminação em bloco de

uma população devido à sua origem,

ao seu credo, à sua cultura quando

falamos dos muçulmanos, do islão...

Dá-se conta da violência que isto

exerce sobre as pessoas em causa?

Michel Houellebecq é islamofóbico,

reivindica isso mesmo há 15 anos,

basta ler as suas entrevistas, e vocês

fornecem-lhe um púlpito.”

Contactámos David Serra, director

da revista Ring, que se mostra, pelo

contrário, bastante entusiasta: “Para

encontrar o espírito de uma época

não mergulhamos nas notícias dos

jornais, procuramos o escritor que

‘agarrou o século pela garganta’. Um

autor autêntico atira sobre a multi-

dão, rasga o espaço público, e eu fico

contente por reencontrar um pouco

o Michel Houellebecq de Plataforma,

que me dá, desta vez, lições de polí-

tica, de teologia, de moral e de eco-

nomia (...). Não conheço as forças

actualmente em jogo na cabeça de

Michel Houellebecq, mas sinto que

ainda é, na sua solidão genuína, uma

força em acção num turbilhão de es-

critores com plásticas, com rostos

idênticos (...). A identidade é o tema

central, aquele que está em todas as

cabeças, incluindo aquelas que pare-

cem desprezá-lo. O seu público habi-

tual desejava esse tema, mas já não

o esperava. Michel Houellebecq pa-

recia domesticado depois do Gon-

court. Aparecia na comunicação so-

“Nós, alguns media, fazemos desta ficção o acontecimento do dia, fazemos de um escritor, que tem o direito de pensar o que quiser, o acontecimento político da rentrée (...). A que é que damos relevo? A que o islão é um problema, que os muçulmanos são um problema (...). Dá-se conta da violência que isto exerce sobre as pessoas em causa? Michel Houellebecq é islamofóbico (...), basta ler as suas entrevistas, e vocês fornecem-lhe um púlpito”Edwy Plenel, director do site Médiapart

cial do entretenimento e já não pare-

cia suscitar mais do que uma estranha

unanimidade. Finalmente, mostrou

que faz o que quer e que continua a

ser, em última instância, o único se-

nhor de si mesmo.”

Os acontecimentos actuais repli-

cam os de 2001. Um livro polémico,

declarações islamofóbicas então, um

livro sensível hoje, e a coincidência

de atentados hediondos. Catorze

anos depois, o advogado Emmanuel

Pierrat pensa como pensava e não

hesita em afirmar: “Entre aqueles que

desfilaram no domingo, em Paris,

com a sua boa consciência, há quem

tenha sido dos primeiros a dizer que

a Charlie Hebdo estava a pedi-las e

dos primeiros a atiçar o fogo nos su-

búrbios. O escritor não tem de estar

preocupado com uma parte da po-

pulação. Se assim for, entra-se numa

lógica que vai contra os nossos prin-

cípios. Houellebecq é um escritor,

não um panfletário ou um jornalista

como Zemmour. A literatura é um

território sagrado, temos o direito de

forçar a nota. Temos direito ao mau

gosto e à blasfémia. Se os escritores

deixaram de ter direito a isso, então

acabe-se já com a literatura.”

François Samuelson, agente e ami-

go de longa data de Houellebecq, to-

ma também a defesa do escritor. Leu

Submissão há oito meses, mas há uma

semana que é solicitado por todos os

órgãos de comunicação. Tem tempo

para nos responder: “Constato a ir-

responsabilidade daqueles que cen-

suram uma alegada islamofobia, que

são os mesmos que denunciavam a

islamofobia e o mau gosto das cari-

caturas da Charlie Hebdo. Faz-se co-

mo o pirómano que, depois de atear

um incêndio, chama os bombeiros!

O escritor escreve um livro, trata-se

de uma fábula política, como Voltai-

re poderia ter escrito. Infelizmente,

por um terrível acaso, a realidade foi

ao encontro da ficção. É como se dis-

séssemos a uma rapariga violada que

foi bem feito porque se veste de for-

ma provocante. Peço desculpa, estou

um pouco exaltado, mas isto deixa-

me louco.”

Samuelson acrescenta, por fim,

que “está tudo bem”, Michel Houel-

lebecq regressou a Paris. Não vamos

jogar ao “Rapto de Michel Houelle-

becq parte 2”! “Está sobretudo cons-

ternado com a morte do seu amigo

Bernard Maris [jornalista e econo-

mista que escreveu Michel Houellebe-

cq économiste, retomando as análises

económicas do autor que considera-

va pertinentes]. Foi isso que o atingiu.

Está-se nas tintas para a matilha!”

Houellebecq vai sair-se bem. Sai-

se sempre bem. Não será um Dorian

Gray do avesso, trazendo no rosto

os sulcos tortuosos da decadência

de um pensamento ultra-sedutor

que se corrompeu na busca de mais,

de melhor, de sempre ainda mais

forte. Acrobata de equilíbrio inso-

lente mesmo quando o vento sopra,

encontrará a forma de aterrar de pé.

Afinal de contas, trata-se do grande

homem das letras francesas. A sua

produção romanesca cifra-se em seis

livros. Seis livros apenas, uma obra

imensa. Tivemos Houellebecq, te-

mos agora Submissão, aguardamos

a continuação.

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12 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015

Daniel Metcalfe nunca tinha ouvido falar português. Um dia ouviu cantar Ana Moura e apaixonou-se pela língua. Depois descobriu Angola e escreveu um livro.

Em 2008, o jornalista inglês

Daniel Metcalfe ouviu na rá-

dio uma canção de Ana Mou-

ra. Mais do que pela música,

ficou fascinado pelos sons

daquela língua estranha que

nunca antes ouvira. Começou então

a estudar português e a frequentar

uma biblioteca londrina na Belgrave

Square, em Londres, a Hispanic and

Luso-Brazilian Council Library, on-

de se podiam encontrar livros raros

relacionados com a História de Por-

tugal e das suas colónias. “Infeliz-

mente essa biblioteca já não existe”,

conta ao Ípsilon, “era um lugar à

moda antiga e sobrevivia graças a

subsídios”.

Foi nessa biblioteca que conheceu

Rui, um jornalista angolano a viver

entre Luanda e Londres, antigo “tra-

dutor dos senhores da guerra no

mato”, opositor e crítico feroz do

partido que governa Angola desde

a independência, o MPLA. Rui con-

tava histórias sobre os “manda-chu-

vas da comunicação social, os tra-

paceiros e os magnatas do petróleo

que estavam a sugar as riquezas na-

cionais e a transferi-las para as suas

contas bancárias”. Entre as várias

histórias contadas, havia a daquele

empresário angolano que tinha em

casa “uma estátua que urina cham-

panhe”, ou a de outro que andava

sempre com “um chefe pasteleiro

português baixinho a correr atrás

dele”. Daniel Metcalfe poucas vezes

ouvira falar em Angola, e a curiosi-

dade fê-lo perceber que é um país

com uma história difícil e complexa.

E quis estudá-la a fundo. “Angola

tem, provavelmente, mais História

do que aquela a que um país tem

direito.”

A biblioteca londrina era uma es-

pécie de refúgio espiritual para um

estranho grupo de “intelectuais ana-

crónicos, antigos activistas chilenos,

um poeta goês que se orgulhava de

falar em português erudito e uma

misteriosa herdeira colombiana”. O

seu espólio parecia ter estagnado

na década de 1970, na altura em que

os movimentos de libertação das

antigas colónias lusófonas viram

chegar a esperada independência.

Daniel Metcalfe passou então alguns

meses a percorrer esse acervo bi-

bliográfico e a ler tudo o que lhe

pudesse interessar para uma visita

ao país, sensibilizando-o para os

vestígios que iria encontrar, do im-

pério marítimo português aos con-

tornos da Guerra Fria em África,

passando pelo comércio de escra-

vos, e sentindo-se “cada vez mais

fascinado por aquele longínquo pa-

ís, um dos mais singulares e envol-

ventes que é possível visitar”.

Angola simbolizava um importan-

te ponto de viragem entre os conti-

nentes, o reposicionamento do mun-

do dos ricos em relação a África,

aquilo a que alguns já chamam “co-

lonialismo em sentido inverso”. “A

minha faceta de viajante queria co-

nhecer este lugar que vivia um inten-

so crescimento para ver com os meus

próprios olhos os tais chefes paste-

leiros portugueses a passarem pelos

bairros de lata a caminho do traba-

lho”, diz Metcalfe em tom jocoso.

Anos antes, o jornalista financeiro

inglês publicara um livro de viagens

sobre a Ásia Central, Out of Steppe.

Agora tinha um novo projecto para

outro livro de viagens: Dália Azul,

Ouro Negro - Viagem a Angola. Mas

Luanda é a capital mais cara do mun-

do e o orçamento de Daniel Metcalfe

não era abonado. Conhecera entre-

tanto em Londres vários angolanos,

e entre eles um que lhe disse que a

sua família teria todo o gosto em

recebê-lo e acomodá-lo em casa em

Luanda. Metcalfe estava decidido a

tentar perceber “que tipo de socie-

dade vende hambúrgueres a 30 li-

bras e cobra 300 libras por noite

num quarto de hotel pavoroso”: “A

situação é tão extrema que se torna

quase risível. Enfim, um irresistível

desafio.” Mas ao mesmo tempo que-

ria mostrar que não era preciso fretar

um helicóptero ou alugar um jipe

para visitar lugares no interior do

país. Assim, viajaria como o comum

dos angolanos, ao contrário de mui-

tos estrangeiros que encontrou (in-

cluindo bastantes portugueses) que

não querem viajar para fora do lugar

onde trabalham por temerem os pe-

rigos. “Recusava-me a ser um desses

comerciantes-viajantes rabugentos

que se queixam de pagar seis dólares

por uma Coca-Cola no vestíbulo de

um hotel.”

As viagensDaniel Metcalfe viajou duas vezes

para Angola, em 2010 e em 2012,

demorando-se no país um total de

três meses. Na primeira viagem fez

uma paragem de alguns dias em São

Tomé e Príncipe (estada descrita nos

dois primeiros capítulos do livro

Dália Azul, Ouro Negro) para se acli-

matar aos efeitos do colonialismo

português e ao seu legado. Depois,

já em Luanda, aproveitou a hospi-

talidade da casa do amigo para lhe

servir de base, e usou os transportes

públicos entre localidades, nas via-

gens mais longas (quando não exis-

tiam ligações, recorreu a ONG ingle-

sas). Fez quatro rotas: de Luanda a

Saurimo (capital dos diamantes),

passando por Malanje, no Leste do

país; de Luanda ao Cuíto Canavale

(a cidade da célebre batalha entre

forças cubanas e sul-africanas), pas-

sando por Benguela, Lobito, Huam-

bo e Menongue; de Luanda a

M’Banza-Congo, já perto da frontei-

ra Norte; e uma última ao enclave

de Cabinda, a região petrolífera de

Angola.

Metcalfe registou as inúmeras

conversas que teve com as mais va-

riadas pessoas (líderes tribais, tra-

balhadores da indústria petrolífera,

rapazes da rua), e também com al-

guns portugueses. “Parece haver

uma aparente relação de amizade

entre portugueses e angolanos, mas

por vezes é complicada, quase am-

bivalente. Partilham uma língua e

um passado. Estranhamente, muitos

angolanos não falam nenhuma lín-

gua africana — circunstância única

em toda a África subsariana, penso,

desdenhando o quimbundo a favor

do idioma oficial. Há, claro, aqueles

saudosistas do império, e muita nos-

talgia entre os mais velhos. Mas aos

mais novos apenas interessa o tra-

balho, são pragmáticos. E à seme-

lhança dos ingleses, por exemplo,

também me pareceu que os seus

círculos sociais se restringem sobre-

tudo aos do seu país.”

Dália Azul, Ouro Negro — Viagem

a Angola, o livro de histórias de um

viajante optimista, prova a ideia

com que Metcalfe iniciou a viagem,

a de que “existia ali algo de invulgar

e único e que ainda era possível

testemunhar cenas inspiradoras e

ser obsequiado com gestos de ama-

bilidade espontâneos”, apesar de

toda a frustração do povo que ha-

bita os musseques que cercam a

Luanda cosmopolita. É um livro

que depois de lido não se esquece

tão depressa.José Riço Direitinho

Angola, um país com História a mais

DA

NIE

L RO

CH

A

mmmmm

Dália Azul, Ouro

Negro — Viagem

a Angola

Daniel Metcalfe

(Trad. Susana

Sousa e Silva)

Tinta-da-China

Page 13: Ipsilon-20150116

Órgão nos Clérigos I16 Sex · 13:00 Igreja dos ClérigosJonathan Ayerst órgão

Alemanha em concerto16 Sex · 21:00 Sala SuggiaOrquestra Sinfónica do Porto Casa da MúsicaObras de Weber, Lachenmann

e Beethoven

Da música nascem histórias 17 Sáb · 16:00 Sala 2Serviço Educativo · Concertos para Todos

Medo e desejo 17 Sáb · 18:00 Sala SuggiaRemix Ensemble Casa da MúsicaObras de Lachenmann e Wagner/Dove

Jonathan Ayerst órgão18 Dom · 12:00 Sala SuggiaCiclo Piano EDP Obras de Bach, Buxtehude,

Rihm e Brahms

Tradição coral germânica18 Dom · 18:00 Sala SuggiaCoro Casa da MúsicaObras de Lachenmann, Hidalgo,

Stockhausen, Hassler e Schütz

Abertura Oficial

16-18 Jan

PATROCINADOR OFICIAL

ANO ALEMANHA

PATROCINADORES ANO ALEMANHAPATROCINADOR ABERTURA

ANO ALEMANHA

APOIO PORTRAIT

HELMUT LACHENMANN

APOIO PROJECTO

ANO ALEMANHA

APOIO

MECENAS PRINCIPAL CASA DA MÚSICA

MECENAS CICLO BARROCO

MECENAS CASA DA MÚSICA

MECENAS ORQUESTRA SINFÓNICA

APOIO INSTITUCIONALAPOIO INSTITUCIONALMECENAS CICLO PIANO EDPMECENAS SERVIÇO EDUCATIVO

Informações 21 790 51 55 · [email protected] · www.culturgest.ptTicketline Reservas e informações: 1820 (24 horas)��·��Pontos de venda: Agências Abreu, Galeria Comercial Campo Pequeno, Casino Lisboa, C.C. Dolce Vita, El Corte Inglés, Fnac, Megarede, Worten e www.ticketline.sapo.pt

Pocilgade Pier Paolo Pasolini Encenação de John RomãoTEATRO QUI 15, SEX 16, SÁB 17 DE JANEIRO · 21H30 · 12€ · M16

Se me visses um só instante como sou na realidade, correrias aterrorizada a chamar um médico ou uma ambulância. (P.P. Pasolini, Pocilga) · Corpos e porcos são aqui objeto de uma mesma ocultação e depreciação. Pasolini conta a história de um homem cuja paixão é motivo de escândalo, e de uma aliança política para calar “tudo o que não vive”, ou seja, tudo o que não é visto aos olhos do outro.

Alexandra Grimal e Giovanni di DomenicoJAZZ CICLO “ISTO É JAZZ?” · SEX 16 DE JANEIRO · 21H30 · 5€ · M6

O que podia ser uma limitação formal – o duo de piano com instrumento de sopro, uma formação mais usada na música clássica – eles transformam num jogo de exploração de possibilidades. Compositores de jazz com formação académica que também são conhecidos pelas suas incursões na música improvisada, decidiram-se a definir um jogo entre o escrito e o tocado que salta para fora das margens estabelecidas. Pode soar-nos familiar, mas depressa se instala um delicioso e subtil inconformismo.

Norberto LoboMÚSICA · CULTURGEST PORTO SEX 16 DE JANEIRO · 22H · 5€ · M6

Uma das figuras principais da música portuguesa contemporânea, em apresentação do novo disco Fornalha.

Amélia com versos de AmáliaAmélia MugeMÚSICA SEX 23 DE JANEIRO · 21H30 · 18€ · M6

Dificilmente se poderia encontrar quem pegasse nestes poemas de forma mais inteira, sensível e sublime. (Gonçalo Frota, Ípsilon, crítica 5 estrelas ao disco Amélia com versos de Amália, 28.11.14)

Pocilga

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ui P

alm

a

Page 14: Ipsilon-20150116

14 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015

Atiramos tijolos, mas a

Wim Vandekeybus tem esta coisa de se meter com gente que não é da idade dele. Talk to the Demon, que hoje chega ao Theatro Circo, é a peça em que se deixa dominar por um miúdo de sete anos. Falámos com o demónio.

A peça que Wim Vandekeybus

traz agora a Braga é herdeira

do filme que rodou na

Hungria e que se encontra em

pós-produção: nele, trabalhou com 45 miúdos

de rua ciganos e com os seus respectivos

cavalos

DA

NN

Y W

ILLE

MS

DA

NN

Y W

ILLE

MS

vida continua

Inês Nadais

Page 15: Ipsilon-20150116

ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015 | 15

Wim Vandekeybus cres-

ceu com demónios que

o fazem atirar tijolos e

pedras a paredes de

metal, e isto há 27 anos.

Foi a milhares de qui-

lómetros, mas até aqui se ouviu o

estrondo que faziam os rapazes Van-

dekeybus a desabar contra o chão,

na língua estranha e suicida que fa-

lam as peças do coreógrafo flamen-

go desde What the body does not re-

member, o muito afirmativo big bang

com que refundou em 1987, a partir

dos escombros em que a tinha dei-

xado, a nova dança belga.

O corpo dele lembra-se — dema-

siado, diz-nos neste princípio de tar-

de em que atende o telemóvel para

responder às perguntas que temos

sobre o Talk to the Demon, espectá-

culo que hoje traz ao Theatro Circo,

em Braga, para abrir o ciclo A dança

dança-se com os pés e o programa de

comemorações do centenário da sa-

la, que se festejará todo o ano mas

sobretudo em Abril. “Claro que o

meu corpo se lembra. Por exemplo:

passei oito anos a escrever o meu

último filme [Galloping Mind está em

pós-produção e deve estrear-se ainda

em 2015] e seria capaz de represen-

tar os papéis todos como acho que

deviam ser feitos. Mas há uma altura

em que tenho de me afastar e deixar

que os actores levem as personagens

para lugares que eu não tinha previs-

to (a Hungria, por exemplo: foi lá que

filmou com dezenas de miúdos de

rua, dezenas de miúdos ciganos que

passaram por ele a cavalo]. Sou só o

realizador, não posso controlar tu-

do”, explica. Bom, o corpo dele lem-

bra-se até de coisas mais antigas: da

maneira como ficou em carne viva

depois de tantos tijolos lhe caírem

em cima, porque aquilo era a dança

a ser mortal (“E no entanto a vida

continuou, eu ainda estou aqui”), e

da maneira como, muitos anos antes

(cresceu no campo: o pai foi veteri-

nário), intuiu toda uma linguagem a

partir do instinto — e da confiança

sobre-humana que os animais têm

no corpo.

Houve outras coisas que o fizeram

crescer. A música, em que também

sempre mostrou uma confiança

sobre-humana ao ponto de encostar

a ela diversas peças da sua Última

Vez — do David Byrne de In Spite of

Wishing and Wanting, em 1999, ao

David Eugene Edwards de Blush, em

2003, passando pelo Marc Ribot de

Inasmuch as Life is Borrowed..., em

2000. Deixou-a para trás, e o silên-

cio caiu-lhe em cima. “Talk to the

Demon é uma peça sem música — e,

nesse sentido, é uma peça muito

assustadora e muito nua, mas ao

mesmo tempo também muito pura

e muito comovente. A música enche

tudo. Com música parece tudo mui-

to bonito; tiras a música e vês as coi-

sas como realmente são.”

Talk to the Demon é assim: sem

música, mas não propriamente mu-

da (os corpos dos bailarinos estão

amplificados, todo o palco é uma

banda sonora) nem sem palavras,

porque começa logo com uma per-

gunta (não tão difícil de digerir co-

mo a que fazia há mais de dez anos

no fim de Blush: “E tu, engoles?”).

Entre os dois miúdos que aparecem

no palco, há um que teremos de es-

colher, e certamente escolheremos

“o miúdo errado, o mais merdoso”,

como nos faz engolir, em seco, Jerry

Killick, um dos pais que o coreógra-

fo pôs em palco, como se ainda acre-

ditasse que seria possível domar a

energia primitiva, demoníaca, que

é libertada assim que a peça come-

ça (Sarah, que durante os primeiros

meses foi a miúda preterida de Talk

to the Demon, é filha do intérprete-

fetiche de Vandekeybus, o seu Klaus

Kinski, mas “faltou a demasiadas

aulas” e foi substituída entretanto:

“No mundo do espectáculo, nunca

se deve trabalhar com crianças nem

com animais, e o miúdo que vocês

escolheram é ambos”, diz ainda

Killick antes de o circo ter verdadei-

ramente lugar, chicotes e tudo).

Trabalhar com o perigoJá não estamos — passaram uns anos

— no recreio de Radical Wrong, onde

em tempos Vandekeybus encenou

uma adolescência daquelas de cai-

xão à cova com tendas de campis-

mo, roupa interior, motas, cerveja,

bebedeiras, bullying, euforia, pala-

vrões, sexo forçado e sexo consen-

tido, para provar que “não há certo

nem errado numa cabeça com 16

anos, só na cabeça dos pais”. Tem

saudades disso: “É a última idade

em que ainda não pensas em mor-

rer. A força disso é uma coisa que

aos 25 anos já esmoreceu e que aos

35 desapareceu completamente”,

dizia então ao Ípsilon. Passaram uns

anos, escrevíamos, e ele andou para

trás. Passou a trabalhar mais com

crianças e com adolescentes — não

tem vontade nenhuma de formar

bailarinos para a dança contempo-

rânea, prefere abrir as portas do

grande estúdio que entretanto en-

controu num bairro de imigrantes

de Bruxelas, cheio de entulho pós-

industrial, e absorver a fúria de

quem ainda tem tudo para aprender

— e viciou-se nisso. “Ao fim de tanto

tempo é difícil começar do zero. Mas

trabalhar com pessoas novas ajuda.

Não posso confiar que saibam do

que eu estou a falar, e isso obriga-me

a explicar tudo outra vez. Em Março,

vou fazer outro espectáculo, e que-

ro mesmo que seja uma coisa nova,

mais lírica. Para me sentir vivo pre-

ciso de saber que ainda sou capaz

de montar um espectáculo inespe-

rado. É uma tarefa interminável,

atroz, nunca se fará depressa.”

No caso de Talk to the Demon,

trata-se mais de saber se ainda é ca-

paz de desencadear, não de fazer,

um espectáculo interessante. O es-

pectáculo que Vandekeybus traz a

Braga nasceu da gigantesca frustra-

ção de ter tido de desperdiçar o ma-

terial que tinha andado a descobrir

entre a Hungria e a Roménia, com

os tais miúdos de rua não tão dife-

rentes assim daqueles que lhe apa-

recem à porta em Sint-Jans-Molen-

beek. “Passei o último ano ocupado

a filmar mas de repente o projecto

foi cancelado por dificuldades finan-

ceiras, e dei por mim com imenso

tempo livre. Como vinha de traba-

lhar com 45 crianças, achei que de-

via usar essa energia para criar uma

peça sobre a violência e a crueldade

da infância. Basicamente, a ideia era

encontrar um miúdo que fosse o

arquitecto de todo o serão, e deixá-

lo controlar os outros seis bailarinos

a partir das suas possessões, das su-

as crueldades, dos seus caprichos,

dos seus jogos mentais.”

Muitos dos miúdos que via passar

à porta do estúdio em Sint-Jans-Mo-

lenbeek entraram e foi com eles que

Vandekeybus começou a levantar

Talk to the Demon: “A companhia

instalou-se ali há dois anos e meio e

fomo-nos conhecendo pouco a pou-

co. Fiz vários workshops com cerca

de 15 miúdos — sessões de trabalho

muito abertas, em que não lhes dis-

se que estávamos a trabalhar numa

nova produção, e que me permiti-

ram aprofundar imenso as ideias,

através das tarefas que vamos exe-

cutando e que claramente distin-

guem quais são os melhores. Foi um

casting orgânico, um processo que

se foi afunilando.” Aprendeu muito:

que há crianças de oito anos dema-

siado adultas, quase velhas, e que a

combinação de que precisava (fia-

bilidade, frescura, vontade) não se

encontra com muita facilidade.

“Gosto muito de trabalhar com o

perigo. Se ele não estiver lá, não é

interessante para quem está a ver.

Claro que quando existe esse opti-

mismo, essa euforia, essa extrover-

são, é fácil perder o controlo. Quan-

do deixas os miúdos sozinhos em

cima de um palco e não lhes dás ne-

nhuma instrução, eles podem ser

terrivelmente desinteressantes. Ou

terrivelmente selvagens. Mas somos

duros com eles: estão num espectá-

culo e têm de se defender. A verda-

de é que andamos há anos a atirar

tijolos e a vida continua.”

Aqui, além de tijolos, há pedras

atiradas em fúria contra a parede.

Adultos em roupa interior, dispostos

a matarem-se pelo último chocolate.

Corpos presos por elásticos e gan-

chos, gritos, manadas de cavalos

tiranizados por apenas um cowboy

do alto dos seus nove anos, triciclos

e raquetes de badmington. Um mi-

údo escolhido, outro sacrificado. E

perguntas difíceis, vindas do sítio

onde a inocência ainda é selvagem

(“Amas-me?”, “Quando é que eu vou

morrer?”, “Porque é que não há mú-

sica?”). Como espectadores, mania-

camente levados ao limite por um

coreógrafo tão diabólico quanto

curandeiro, podemos escolher entre

a inércia e a cumplicidade, e tere-

mos de aceitar que isso será sufi-

ciente. “Há essa altura em que o

miúdo pergunta ‘porque é que não

há música?’ e em que somos obriga-

dos a parar para o ouvir — porque

eu queria ouvir os miúdos, e os mi-

údos sabem imenso de música. Aqui

parece não haver música — nem

ideias, nem intenção — e no entanto

o espectáculo está cheio disso.”

De tudo aquilo que tínhamos ju-

rado, querido, nunca fazer em fren-

te às crianças.DA

NN

Y W

ILLE

MS

DA

NN

Y W

ILLE

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Page 16: Ipsilon-20150116

16 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015

Inspirado numa esquizofrénica que viveu 20 anos num aterro, tauberbach é Alain Platel a questionar, em Guimarães e Lisboa, o lugar a partir do qual escolhemos relacionar-nos com o mundo.

Gonçalo Frota

Uma lixeira com vista para a lucidez

Mais ou menos a meio de

tauberbach, um dos bai-

larinos da companhia bel-

ga Les Ballets C. de la B.

aproxima-se de outro e

abocanha-o na zona da

laringe. Simula mordê-lo na chama-

da maçã-de-Adão, um pouco como

se detonasse o mundo em que vive-

mos. É uma imagem veemente, que

o próprio Alain Platel confessa ter

incluído na peça, antes de mais, pe-

la intensidade dramatúrgica do mo-

mento. Mas basta olhar em redor,

para um palco coberto de peças de

roupa avulsas e largadas em desma-

zelo, inspirado pela história de uma

mulher brasileira, esquizofrénica,

que viveu durante mais de 20 anos

num aterro sanitário do Rio de Janei-

ro por sua livre escolha, para lhe in-

tuir outro alcance. Estamira, que

dava igualmente nome ao documen-

tário realizado por Marcos Prado em

2005, tornar-se-ia uma obsessão pa-

ra Platel nos últimos anos, tendo o

coreógrafo belga ensaiado várias

abordagens falhadas à história da-

quela mulher em quem via “uma

verdadeira filósofa contemporânea”,

segundo descreve ao Ípsilon.

“O que mais me impressionou”,

admite o coreógrafo, “foi a descober-

ta de que ela vivia na lixeira por de-

cisão pessoal e acreditava poder le-

var uma vida autêntica naquele sítio.

Depois, fiquei deslumbrado com o

facto de usar palavras belíssimas pa-

ra descrever a sua situação e o mun-

do. Há muito no olhar dela que é

verdadeiramente inspirador. Gosto

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da sua forma extrema de encarar a

vida e dos seus estranhos mecanis-

mos de sobrevivência. Por isso, o

filme não é tanto sobre uma mulher

que vive num aterro, mas sobre um

aterro que se torna uma metáfora da

vida ou do caos no mundo”. Uma das

expressões de Estamira no filme, re-

cordada em palco pela actriz Elsie de

Brauw — “Há frases que se perdem

no documentário, mas quisemos

colocá-las em palco por serem tão

mágicas, belas e fortes”, diz Platel —,

é a de que “a incivilização é o que é

feio”. E essa ‘incivilização’ é identi-

ficada a partir de um posto de obser-

vação privilegiado: equilibrada em

cima de todo o lixo produzido por

uma sociedade entregue ao consumo

e ao desperdício desenfreados. O li-

xo, a falta de civilidade, afinal, são

aquilo que Estamira vê quando olha

na direcção da cidade. Não quando

olha para o sítio onde os seus pés se

enterram.

Em parte, aquilo que interessa a

Alain Platel nesta mulher é a assun-

ção plena e carregada de uma luci-

dez desarmante — apesar de um

discurso por vezes tão caótico quan-

to a aparência do cenário em que se

encontra. Segundo o coreógrafo,

este é um tema de discussão fre-

quente na sua vida, o da faculdade

permanente de se fazerem escolhas

e tomarem decisões, recusando

qualquer aprisionamento. “Quer

tenhamos filhos, uma vida familiar

a proteger ou algo assim, estas de-

cisões estão sempre presentes e isso

não significa que tenhamos de ser

egoístas”, defende. Estamira é al-

guém que criou o seu pequeno mun-

do e vive de acordo com as suas

próprias regras.

O coreógrafo não nega, assim, que

Estamira é uma essencial fonte de

inspiração para tauberbach, sobre-

tudo para o trabalho de Elsie de

Brauw. Foi, na verdade, a actriz a

desbloquear o impasse criativo em

que Platel se encontrava relativa-

mente ao material do filme. “Ela

usou-a como inspiração”, relata,

“mas não queríamos copiá-la ou

torná-la uma personagem muito ní-

tida na performance. A Elsie usou

também muito outros elementos da

sua vida pessoal, da sua carreira co-

mo actriz e outros ainda que foram

surgindo no estúdio durante os en-

saios. Não se trata de uma tentativa

de contar em palco a história de Es-

tamira”. Aos poucos, aliás, Alain

Platel foi percebendo que na sua

criação conviviam duas peças soltas

para as quais nunca encontrara o

contexto ideal. Por um lado, Esta-

mira; por outro, Tauber Bach, pro-

jecto de interpretação de música de

Bach por um grupo de cantores sur-

dos, realizado por Artur Zmijewski.

tauberbach, dia 21 no Centro Cultu-

ral Vila Flor (Guimarães), de 23 a 25

no Teatro Maria Matos (Lisboa), é o

choque entre os dois.

Em ambos os casos, Alain Platel

vislumbra uma beleza límpida onde

muitos podem apenas detectar uma

loucura risível ou um esforço ingló-

rio. A armadilha, admite, é que a sua

posição e a forma como a projecta

em palco possam ser confundidas

com “uma forma de arrogância”

diante de um mundo cada vez mais

lesto no desembainhar de acusa-

ções. “Mas sinto-me muito protegi-

do porque as minhas peças são cons-

truídas a partir de uma troca muito

intensa com os performers.” Tauber

Bach, o projecto de Zmijewski, re-

vela uma frágil e comovente leitura

da música do compositor cantada

por intérpretes que ultrapassam um

embaraço: o de saber que as suas

vozes, quando ‘tacteiam’ as melo-

dias, provocam por vezes o riso em

quem ouve. “Mas ao ouvir as grava-

ções”, conta Platel, “fui percebendo

a sua musicalidade. E foi curioso

descobrir que os bailarinos come-

çaram a juntar as suas vozes a partir

de determinado momento, o que

inicialmente parecia impossível”.

Bach para reconstruirBach não é novidade na obra de

Alain Platel. Tem sido, aliás, rastilho

frequente nas suas criações (Pitié!

baseava-se na Paixão segundo São

Mateus) — e não só. “Quanto mais

trabalho e mais o tempo passa”,

confessa, “tomo consciência de que

a sua música é uma fonte de inspi-

ração muito forte e uma fonte im-

portante de consolo em momentos

diferentes da minha vida”. Esse as-

cendente aparece agora, no entanto,

reforçado pela recente revelação da

biografia do compositor assinada

por John Eliot Gardiner, onde o des-

cobriu como “uma pessoa muito

bruta e crua que passou tempos

muito difíceis e que fazia música não

pela graça divina mas por ser al-

guém que vivia muito intensamen-

te”. “Não era nenhum santo”, diz

Platel com alívio, como se finalmen-

te pudesse descer Bach à terra e jus-

tificar a frequente convocatória pa-

ra o seu palco. Também este mara-

vilhamento não exclui — já o

suspeitava — a crueza.

Tal como um músico, compara,

quando se coloca de fora, assistindo

às suas obras, Platel diz não se reco-

nhecer frequentemente nas imagens

estranhas que compõem o quadro

final. Sabe quais foram as opções,

lembra-se de sancionar e seleccionar

cada trecho, mas releva sentir-se sis-

tematicamente diante de um objecto

“fascinante, enigmático e revelador”,

para o qual não tem grandes expli-

cações. A sua certeza é a de que, em

cada nova obra, gosta de se questio-

nar sobre onde tudo começa e a par-

tir de que ruínas é possível recome-

çar. Como Estamira. “Não apenas

para fazermos performances”, subli-

nha. “Mas também para construir-

mos as nossas vidas.”

Page 17: Ipsilon-20150116

ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015 | 17

Foram três anos para Mónica

Calle chegar de Heiner Müller

até Bertolt Brecht. Os mes-

mos três anos que levou a

traçar um percurso do Cais

do Sodré para a Zona J, em

Chelas.

As duas ideias de deslocação uni-

das, de um autor para outro, de uma

área de Lisboa para outra, coincidem

na criação de A Boa Alma. Ao invés

de Hansel e Gretel a largarem miga-

lhas de pão para poderem recuperar

o caminho inverso, Mónica Calle de-

lineou uma viagem de espectáculos,

que podiam ser seguidos até à nova

localização da sua Casa Conveniente,

mas para não mais voltar atrás. Por

ora, a sua nova casa em Chelas é ain-

da um lugar inóspito, com paredes

a serem derrubadas no intervalo dos

ensaios, um frio de gelar os ossos a

atravessar divisões decoradas apenas

por escombros e vista para a rua me-

diada por uma rede azul presa a an-

daimes que engana a chegada da

noite. E é aqui, ao ritmo de cada no-

va peça, que Mónica Calle nos pro-

põe acompanhar o seu recomeço,

numa nova Casa Conveniente. A obra

a que aqui assistiremos terá duplo

sentido - artística e de requalificação

do espaço.

“Não é solitário”, diz a actriz e en-

cenadora sobre este reinício. “Podia

ter recomeçado tudo sozinha, con-

tinuado o caminho de uma outra

forma e feito outras escolhas. Mas

escolhi assim. Não quer dizer que

às vezes não tenha vontade de fugir,

sabendo da dureza e de todo o imen-

so esforço que vai implicar vir para

aqui, todo este recomeço aos 48

anos, quando estou na meia-idade.

Vou começar mais uma vez ao frio,

no entulho, sem luz, sem água, tudo

dificílimo. Mas continua a fazer sen-

tido. E, portanto, continuo a acre-

ditar.”

Foi precisamente por acreditar na

sua relação e das suas propostas ar-

tísticas com o lugar em que se en-

contra que Mónica Calle planeou a

fuga do Cais do Sodré. Quando ali

abriu a Casa Conveniente, em 1991,

o cenário era ainda extensão de uma

marginalidade portuária a pulsar na

vida lisboeta, paredes-meias com a

prostituição e todo um ambiente

nocturno bas-fond. A transformação

profunda da área nos últimos anos,

engolida pelo centro da cidade e fei-

ta escoadouro do Bairro Alto, fez da

Casa Conveniente uma ilha desco-

nexa e desligada da nova identidade.

Ao juntar a este desconforto um tra-

balho continuado de formação de

actores junto da população prisional

de Vale de Judeus, Calle sentiu que

se dava um corte definitivo e foi fa-

zendo a sua deriva afectiva em di-

recção ao Bairro do Condado (Zona

J), ao mesmo tempo que mergulha-

va num ciclo dedicado ao dramatur-

go alemão Heiner Müller.

Através de Müller, chegou então

a Brecht. Mas quis fazê-lo pelo filtro

da escrita de Luís Mário Lopes. Foi

a ele que encomendou uma reapro-

priação de A Alma Boa de Setsuan,

alimentada tanto pelo texto original

de Brecht quanto pelo seu universo

pessoal e pela sua migração iminen-

te. Depois, estendendo o mapa da

cidade, imaginou uma cartografia

que sugerisse um trajecto, ainda que

errante, que documentasse e inte-

grasse a mudança. O autor acabou

então por autonomizar fragmentos

das nove partes que iriam compor

A Boa Alma e repensou-os à luz de

Os Sete Pecados Mortais dos Pequenos

Burgueses, também de Brecht, num

espectáculo partido em sete apre-

sentações (do Teatro da Politécnica

e da Latoaria, à Companhia Olga

Roriz e ao DNA do Teatro Praga)

acontecidos em Dezembro. Foi uma

dramaturgia do abandono do Cais

do Sodré, um limpar os vestígios

para entrar em Chelas já pela mão

de Brecht, com um vazio previa-

mente preenchido. “Quando a Mó-

nica me falou nas sete apresentações

e em usar partes do texto para tam-

bém criarem um caminho textual”,

lembra Luís Mário Lopes, “isso en-

caixava no formato em que tinha

estruturado o texto. Foi uma expe-

riência interessante e bonita de ver

até que ponto uma só parte resistia

num outro espectáculo. Levámos

ao extremo a ideia do teatro épico

do Brecht - que achava possível tirar

alguns fragmentos e a peça resistir

na mesma.”

Mónica, Calle, BasílioA Boa Alma apresenta agora o texto

total, trabalhado por Luís Mário Lo-

pes ao mesmo tempo que o cantau-

tor JP Simões se servia do mote bre-

chtiano para criar nove temas que

servem de separadores entre os vá-

rios capítulos de uma narrativa as-

sombrada pela escrita de Brecht e

pelo mundo de Calle. Em A Boa Al-

ma de Setsuan, três deuses descem

à Terra à procura de uma alma boa,

dando a busca por terminada quan-

do encontram a prostituta Chen Tê,

que lhes dá guarida. Chen Tê muda

depois de vida, abrindo uma taba-

caria. “O jogo que o Brecht faz e que

também quis fazer”, analisa Luís

Mário, “é pensar como nos pensa-

mos ou nos recriamos, às vezes pe-

la dificuldade que sentimos em exis-

tirmos em sociedade e como faría-

mos se fôssemos amorais ou

limitados pela moral em que nos

encontramos mergulhados.” Em vez

de Chen Tê, agora a protagonista

chama-se Mónica, vinda da prosti-

tuição e das ruas próximas dos ca-

minhos-de-ferro (alusão acidental

ao Cais do Sodré, confessa) e muda

de vida ao deslocar-se para um sítio

novo. Esse sítio, inevitavelmente,

formou-se na cabeça do autor com

as imagens e o mapa da Zona J, só

desbloqueando a escrita de A Boa

Alma quando conseguiu introduzir

algum artifício no texto.

Só que A Boa Alma, artificiosa que

possa tentadoramente ser, funciona

em permanência como uma inves-

tigação disso que é ser bom ou fazer

o bem e de uma questão primordial

para Mónica Calle: “Como posso

continuar a ajudar os outros ajudan-

do-me a mim”. A resposta é dada

pela implicação. “O texto permite

uma colagem muito grande a mim”,

confirma a actriz e encenadora. As

personagens centrais, aliás, tomam

os nomes constantes do seu bilhete

de identidade – Mónica, Calle, Basí-

lio. “Só que há muitas coisas que não

têm a ver só comigo, mas com as

histórias de todos nós, do nosso tra-

balho, da Casa Conveniente. Há aqui

uma convocação em que todos nos

podemos encontrar e há também

um lado secreto que é uma maneira

de poder existir numa tentativa de

plenitude. Não gosto da ideia da bio-

grafia, apesar de estar lá totalmen-

te.” Estar totalmente parte também

da lógica comunitária e emocional

que Calle coloca no que faz. As pa-

redes são deitadas abaixo por gente

da construção civil pescada ali ao

lado, as cadeiras para o público são

emprestadas pelos vizinhos, a fábri-

ca de bolos do texto foi extraída re-

almente das imediações. E em cada

esquina do texto, ludibriando-nos

com os ângulos e as sombras que

usa na sua circulação pelo espaço,

estará sempre Mónica Calle. No pon-

to frágil e inicial da sua reconstru-

ção.

Abre as portas da sua Casa Conveniente na Zona J. A Boa Alma, com texto de Luís Mário Lopes e música de JP Simões, é um espectáculo assombrado por Brecht e pela deriva da actriz e encenadora.

Gonçalo Frota

A casa nova de Mónica Calle é um recomeço

BRU

NO

SIM

ÃO

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18 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015

A família ou o suicídio

Desesperado, sem dinheiro, Teddy Thompson, fi lho de Richard e Linda Thompson, teve a mais bizarra das ideias: fazer um disco com todos os compositores da família. Saiu um álbum sobre a importância do clã — e também a catarse do violentíssimo período em que os pais se separaram.

João Bonifácio

Linda e Richard Thompson foram um caso especialíssimo do folk-rock britânico: Shoot Out The Lights fez deles estrelas da noite para o dia

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ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015 | 19

pensar que, “por mais disfuncionais”

que sejam, ainda há ali algo que os

agarra uns aos outros. Mas uma coi-

sa é ter empatia pelo filho/mano/tio

que anda mal da carteira. Outra é

brilhar menos do que ele — e desde

o primeiro momento Teddy aperce-

beu-se de que “havia uma certa com-

petição”, que ele considera “saudá-

vel”. (Ao New York Times, Kami disse

que tinha de fazer a melhor canção

de todas, desse por onde desse.) Te-

ddy “nunca [teve] dúvidas de que os

seus familiares escreveriam boas can-

ções”. De facto, a qualidade era de

tal monta que “após escutar o que

toda a gente fizera” Teddy sentiu

“uma enorme pressão” enquanto

escrevia a sua segunda canção. Aca-

bou por ser a que abre o disco e lhe

é homónima.

É um tremendo pedaço de com-

posição, uma balada folk num ¾ que

traz inquietude às palavras — de uma

mesura e de uma empatia humanas

admiráveis: “My father is one of the

greats/ to ever step on a stage/ my

mother has the most beautifull voice

in the world/ and I am betwixed and

between/ Sean Lennon, you know

what I mean/ (...). It’s family (...)/ My

mother gave me all of the love that she

had/ she lived for us kids (...)/ but she

never dealt with her pain/ and I’ve

done exactly the same”, canta Teddy.

Um portento de canção, uma aber-

tura perfeita que desde logo suma-

riza o que se segue. Há uma razão

para isto.

“Vou contar-te uma coisa”, come-

ça Teddy, sempre no seu tom de

quem é incapaz de não ser honesto:

“Essa foi a última canção escrita pa-

ra o disco. Não conseguia compor

nada de jeito e procrastinei o mais

que pude — e hoje estou feliz por

tê-lo feito. Acho que estava escrito

que tinha de ser assim. É que doutro

modo não poderia ter composto o

que no fundo é uma espécie de sín-

tese do projecto e da ideia de família

em geral. Estou muito orgulhoso

dessa canção”.

Continua, no seu jeito de miúdo

que finalmente se impôs mas ainda

luta para ser ouvido: “Apesar de a

minha família não ser tradicional,

porque os meus pais são músicos,

ainda assim somos uma família — e

temos os mesmos problemas que as

outras famílias. Também temos uma

dinâmica musical que torna as coi-

sas ainda mais confusas, competiti-

vas e por vezes excitantes — acho

eu. Falamos mais uns com os outros

através de canção do que cara-a-

cara.”

Quando Family começou, Teddy

estava a sentir-se “muito só e mal

amado”. Ocorreu-lhe fazer um disco

a solo sobre a família mas rapida-

mente percebeu que se tivesse feito

tudo sozinho se teria suicidado. De-

pois diz isto: “Precisava que a minha

família se unisse em torno de

mim.”

Precisamos todos, Bonny boy. E é

exactamente por tu e os teus terem

sabido transmitir isso tão bem que

Family é possivelmente o mais belo

e comovente disco de final de 2014

e ficará connosco muito tempo.

Que os vossos estejam sempre ao

vosso lado.

E de repente todo o corpo se

arrepia, os pêlos eriçam-se,

a garganta aperta. Estamos

no refrão de Bonny boys, o

quarto tema de Family, pé-

rola folk editada há pouco

por um grupo chamado Thompson

— isto é, Richard e Linda Thompson,

mas também os filhos, sobrinhos e

netos de ambos. Até aí fora Linda a

guiar a canção, que é uma espécie

de aviso de uma mãe aos filhos acer-

ca dos perigos do mundo (costuma

tratá-los por “Bonny boys”, daí o tí-

tulo.) Quando chega o refrão, Ri-

chard junta-se à ex-mulher e ambos

cantam às suas crias “Bound to no-

one, fear nothing (...)/ Dry your tears/

I am at peace/ With your sweet voices

in my ears”. Todo o corpo se arre-

pia.

É que há 40 anos, em End of the

rainbow, nono tema de I Want To See

The Bright Lights Tonight, o primei-

ro disco lançado a meias pelo par,

Richard Thompson, ex-fundador

dos Fairport Convention e inventor

do folk-rock britânico, cantava, com

uma rispidez psicótica “I feel for you,

you little horror/ Safe at your mother’s

breast (...)/ ‘Cause your father is a

bully/ And he thinks that you’re a

pest/ And your sister she’s no better

than a whore”. Muna, a filha mais

velha do casal, tinha acabado de

nascer.

Oito anos depois chegava Shoot

Out The Lights, que viria a ser o úl-

timo disco a meias de um casal que

pouco depois não o era mais. Linda

estava grávida de Kami, a terceira

filha, e as letras de Richard descre-

viam, com uma exactidão cruel, a

violência emocional da separação.

Entre as duas obras-primas, entre

Muna e Kami, nasceu Teddy. Que,

ficámos a saber há dias, quando fa-

lámos com ele, é quem realmente

canta a harmonia de Bonny boys —

numa imitação perfeita da voz do seu

pai anos antes. Teddy, que leva uma

bela carreira em nome próprio, foi

o mentor de Family. Foi dele a ideia

de todos os elementos da família que

se dedicam à música criarem um ál-

bum em conjunto; e foi dele a ideia

de cada um gravar em separado, de

modo a não houvesse lugar a atritos.

As boas intenções, no entanto, têm

um limite — e não tenhais dúvidas de

que quando se houve a voz de Teddy

em Bonny boys no lugar do que devia

ser a voz de Richard, alguém está,

finalmente, a matar o pai.

Tudo começou, como não podia

deixar de ser, com desespero. “Que-

ro deixar isto bem claro: a Verve

[editora que lhe lançava os discos]

não renovou o meu contrato. Admi-

to que me foi difícil ajustar-me à vi-

da sem uma editora que me carre-

gasse. Não sou propriamente um

empreendedor”, confessa Teddy.

O dinheiro não era o único pro-

blema de Teddy na altura. Ou por

outra: “mais tarde”, ele apercebeu-

se de que o dinheiro não era o único

problema, visto que na altura em

que teve a ideia de juntar os pais,

uma irmã directa, uma meia irmã

do segundo casamento da mãe e um

sobrinho para juntos criarem um

álbum, ele estava “apenas à procu-

ra de editar qualquer coisa enquan-

to não decidia o que o próximo dis-

co ia ser”.

Mas, “olhando para trás”, admite

Teddy, “este disco coincidiu com um

período muito difícil”. “Comecei a

colocar muitas questões, a mim e

ao meu terapeuta, sobre a minha

infância e sobre como cheguei a es-

te ponto na minha vida. E devagari-

nho fui-me apercebendo de que

manifestei o desejo de fazer este dis-

co como forma inconsciente de jun-

tar a minha família e reparar alguns

dos danos feitos quanto eu tinha seis

anos.”

Linda Peters conheceu o seu fu-

turo marido nas gravações de Henry

The Human Fly, disco a solo de Ri-

chard que tem a honra de ser o ál-

bum menos vendido em toda a his-

tória da Warner Bros Records. Por

maiores que os Fairport Convention

nos pareçam hoje, a verdade é que

sempre que o seu fundador se dedi-

cava a álbuns a solo as vendas eram

um desastre.

Em 1973, o casal casou-se e cola-

borou em cinco discos, todos com

o mesmo inêxito, até que Shoot Out

The Lights os tornou, da noite para

o dia, estrelas. Teddy Thompson ti-

nha seis anos. Nascera no seio de

uma comunidade islâmica em que

os pais decidiram assentar, por en-

tre dietas que faziam toda a família

passar fome e que — dizem as más

línguas — estarão na origem de epi-

sódios de tremenda violência emo-

cional por parte de Richard. Naque-

le exacto instante em que tudo po-

deria ter sido perfeito, com os

cheques a caírem na conta bancária,

já o mal estava feito — Richard saiu

de casa e Teddy não voltou a ver o

pai até aos 18 anos, quando se bor-

rifou para a universidade e foi viver

com o pai para se tornar cantautor.

Não admira que tenha contas a ajus-

tar com os seus seis anos de idade.

Mas na génese do projecto que

agora chega às lojas não estava qual-

quer vingança — nem sequer era

suposto que o tema fosse a família,

como veio a ser. “Pedi a cada mem-

bro da família que escrevesse can-

ções originais para este disco, mas

não especifiquei tema algum. Nesse

sentido foi interessante ver a respos-

ta que deram — algumas canções

eram claramente sobre a família e o

amor, outras mais pragmáticas.”

Teddy refere-se ao pai que, evasi-

vo como sempre, aproveitou para

escrever um tremendo hino político

sobre os nossos tempos, That’s enou-

gh. Mas em One life at a time, a se-

gunda canção com que contribui

para Family, canta a dada altura “So-

metimes it’s hard to say/ what you got

to say anyway/ I’m gonna have to say/

that I’m not thrilled about you (...)/

You’re building me a prison/ where

freedom is a crime”. Para o melóma-

no atento à vida privada deste ho-

mem, isto é o típico e velho Richard:

sarcástico, bruto, vagamente misan-

tropo mas honesto e certeiro até à

medula.

“Bem”, começa Teddy, “o meu pai

jura que é uma canção política, mas

sem dúvida que eu ouço na canção

o mesmo que tu”. Uma espécie de

confissão: seja qual for a relação que

se tem com uma pessoa, vai sempre

“Apesar de a minha família não ser tradicional, ainda assim somos uma família — e temos os nossos problemas. Também temos uma dinâmica musical que torna as coisas confusas, competitivas e por vezes excitantes. Falamos mais uns com os outros através de canções do que cara-a-cara”

haver momentos em que não a su-

portamos. “Seja o que for que ele

esteja a dizer, adoro a ideia: afasta-te

da minha vida, vive a tua. Acho que

funciona em muitos aspectos.”

Curar a feridaFamily foi gravado de uma forma

particular: todos os membros da fa-

mília mandaram as canções por e-

mail, e Teddy tinha a última palavra

quanto ao que ficava. Só se encon-

trou com o pai, mas não correu pro-

priamente bem: Teddy tinha “difi-

culdade em dizer-lhe ‘Toca menos’,

em dar-lhe ordens”. “Era importan-

te que eu fosse o produtor e tomas-

se decisões, porque alguém tinha

de estar ao comando. E o e-mail era

a única forma possível: juntar esta

gente toda ficava demasiado caro,

porque vivemos em sítios diferentes

— além de provavelmente não ser

boa ideia juntar os meus pais no

mesmo espaço”, diz, com uma sin-

ceridade desarmante.

Teddy parece ser, muitas vezes, o

rapaz “not too secure of himself”, co-

mo se descreve na canção que dá o

título ao álbum. Tem uma necessi-

dade de honestidade tão grande que

é capaz de dizer: “Pessoalmente,

apreciei o processo porque o con-

trolei. E quando os meus pais se se-

pararam, o que eu mais senti foi que

não tinha controlo algum, não fui

tido nem achado no curso dos acon-

tecimentos. Isto ajudou a curar um

pouco a ferida.”

A família, note-se, não levantou

nenhuma objecção ao projecto: “Ti-

nha a certeza de que iam dizer sim.

Eles sabiam que eu precisava”, diz

Teddy — uma resposta que nos faz

Page 20: Ipsilon-20150116

20 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015

É uma das mais magnífi cas vozes da música portuguesa. Nas suas canções, não ouvimos apenas o músico, mas também o homem do teatro ou o realizador – é dessa riqueza de olhares que nasce a sua singularidade. Aprendiz de Feiticeiro é o seu novo álbum.

No início é a só a voz, aquela

imensa voz rouca, cava e tão

expressiva. “Se tu me visses

/ na mentira dos espelhos /

talvez Ulisses / se tu me vis-

ses”. Quase no fim, na déci-

ma sexta das dezassete canções, há

uma viagem à Lua com Meliés, há a

harmónica que Morricone ofereceu

a Sergio Leone em O Bom, o Mau, e o

Vilão, há o ameaçador “are you

talking to me?” de Robert de Niro em

Nova Iorque ou a imortal melodia de

As time goes by em Casablanca. A mãe

das ficções, a Odisseia de Homero, e

aquelas que, no século XX, o homem

inventou com um “comovido cora-

ção a bater a 24 imagens por segun-

do”.

Nelas, feito delas, José Medeiros,

micaelense de nascimento e residên-

cia, lisboeta por adopção, um músi-

co longe de ser “só” músico que vem

construindo ao longo dos anos, dis-

cretamente, um singularíssimo cor-

po-de-obra. Aprendiz de Feiticeiro, o

seu último álbum, sucessor quatro

anos depois de Fados, Fantasmas e

Folias, tem essa singularidade inscri-

ta no título e na edição ela mesma: o

músico, que é também homem do

teatro e do cinema, junta ao CD um

DVD com O Outro Lado do Espelho,

documentário sobre o seu percurso

e documento de como, em palco, faz

das canções teatro musicado.

No disco, como é habitual, José

Medeiros viaja: nas caravelas de Ba-

lada do varandim, pelas sementeiras

na aldeia micaelense de João Bom,

observando a Lua d’Agosto no Rio de

Janeiro, caminhando pela Mancha

de Quixote, pela magia do cinema

ou através da Fanfarra dissonante,

com “a crise e a bancarrota” a “dan-

çar um pas de deux (faîtes vos jeux!)”,

no país ensombrado que é hoje o

nosso.

A música é também ela uma digres-

são por géneros e tempos. Os misté-

rios telúricos da tradição apresentam-

se na magnífica PartIlha feita de flau-

tas, sanfona e violino, a balada

descarnada (e a chanson aqui tão per-

to, apesar da guitarra portuguesa),

encanta em Balada do varandim), há

bossa feita melancolia no balanço da

já citada Lua d’Agosto no Rio de Janei-

ro ou Orientes entrevistos na opulen-

ta A suave inquietação das traineiras.

“De uma forma muito natural, sem

planear nada, eu tenho esta tendên-

cia para ser ecléctico”, afirma.

Homenagem aos mestresJosé Medeiros, 63 anos, ao telefone

desde São Miguel, carro encostado

na berma da estrada e olhar obser-

vando o mar e as nuvens sobre a ilha,

dirá: “Não sei se escolhi a aventura,

talvez a aventura me tenha escolhido

a mim”. Mais à frente, confessará que

isso, a aventura, “é inevitável nos

ilhéus”: “estamos aqui no mar e ten-

tamos estender os braços para os

dois lados do Atlântico, ou para o

país na Europa, ou para as Améri-

cas”. Está a falar dele e está a falar

de um outro açoriano, célebre nou-

tras paragens, a quem tem dedicado

ultimamente muito do seu tempo.

Ao mesmo tempo que recebemos

o novo passo de uma discografia

inaugurada no final da década de

1970 e que lhe valeu em 2004, com

Torna-Viagem, o Prémio José Afonso,

estreia Livreiro de Santiago, docu-

mentário ficcionado, assim o define,

sobre Carlos George Nascimento,

corvino filho de baleeiros emigrado

para os EUA e, depois, para o Chile,

que se tornaria o primeiro editor do

jovem Pablo Neruda (ou de outra

Nobel da Literatura, Gabriela Mis-

tral). Filmado com a equipa de Tiago

Rosas, realizador de O Outro Lado do

Espelho, conta com participação de

Maria do Céu Guerra, Filipa Pais

(uma das vozes de Aprendiz de Feiti-

ceiro) ou de Jorge Palma. Teve antes-

treia quarta-feira em São Miguel e,

em Fevereiro será exibido em Lisboa

(dia 20 na Casa dos Açores, dia 27 no

Teatro A Barraca).

A coincidência da edição do disco,

que tem também documentário, com

o lançamento do filme, é isso mes-

mo, uma coincidência. Mas, inadver-

tidamente, ilustra bem a forma como

José Medeiros encara a criatividade.

“Nunca houve uma fronteira muito

nítida entre as minhas actividades na

música, no teatro ou no cinema, tal-

vez por ser de uma família de actores

e músicos”.

No início da década de 1970, tro-

cou a ida para a Universidade em

Lisboa por uma temporada com a

sua banda no Paquete Funchal – an-

dou entre São Miguel, Lisboa e o

Funchal a tocar canções dos Beatles,

dos Rolling Stones ou de Ray Char-

les, isto enquanto descobria em Jo-

sé Afonso ou Adriano Correia de

Oliveira música que marcaria deci-

sivamente o seu percurso futuro. Foi

depois assistente de realização em

Lisboa, foi nos anos 1980 realizador

da RTP Açores, rodando Xailes Ne-

gros ou Há Mau Tempo no Canal e

compondo as bandas-sonoras dos

filmes produzidos. A sua música tem

inscrita essa indefinição entre lin-

guagens artísticas. Ele é, afinal, e

como se auto-intitula no novo ál-

bum, Aprendiz de Feiticeiro. “[O tí-

tulo] é uma homenagem aos gran-

des mestres. O Chaplin músico, clo-

wn e realizador, um imenso

feiticeiro. O Orson Welles e o Kuro-

sawa. A outro nível o Zeca Afonso,

o Tom Jobim e o Ray Charles, gran-

des feiticeiros que sempre me toca-

ram profundamente. Enquanto tiver

fôlego quero continuar a ser apren-

diz desses grandes feiticeiros”.

Aprendiz de Feiticeiro foi gravado

entre Albarraque, em Sintra, Coim-

bra (para assegurar que Manuel Ro-

cha, da Brigada Víctor Jara, estaria

no disco) e São Miguel. Foi constru-

ído “’with a little help from my frien-

ds’”, como diz, citando a canção dos

Beatles. Teve direcção musical de

Jorge A. Silva, que com Rogério Car-

doso Pires e Gil Alves formaram o

núcleo duro das gravações. Mais

amigos e amigas se juntaram: Filipa

Pais, Sara Vidal, o velho companhei-

ro Carlos Guerreiro, dos Gaiteiros de

Lisboa, ou William “Maninho” Nas-

cimento, músico brasileiro radicado

nos Açores há duas décadas.

É um álbum sem conceito. Uma

colecção de canções, de histórias e

deambulação por diferentes cená-

rios, unidos pela sempre magnífica

voz de José Medeiros e pelo roman-

tismo que carrega. Um álbum extra-

ído da sua vida, das suas leituras, dos

seus filmes. Com uma excepção, um

“desabafo”, como lhe chama. Tal co-

mo as outras canções, aconteceu-lhe.

Falamos da Fanfarra dissonante que

citámos há alguns parágrafos. “É im-

possível olharmos à nossa volta e não

acharmos que a orquestra está desa-

finada”, diz. Canção teatro (delicio-

samente burlesco) para duas vozes

(junta-se à de José Medeiros a de Pi-

lar Silvestre), qual filarmónica de

intervenção, verseja, por exemplo,

“a bem da nação, a bem da nação /

neste grotesco bailado vamos todos

ao casino / que emoção”.

José Medeiros, que cria música

intemporal, música para todos os

tempos, é um feiticeiro atento. Sabe

quando ser sátiro, sabe quando er-

guer a voz. Fê-lo novamente. É um

prazer ouvi-lo.

Mário Lopes

José Medeiros: Talvez a aventura me tenha escolhido

mmmmm

José Medeiros

Aprendiz de

Feiticeiro

Palco de Ilusões

FERN

AN

DO

RES

END

ES

Page 21: Ipsilon-20150116

Museu da EletricidadeExposição permanente

Circuito MuseuExposições temporárias

7 Mil Milhões de Outros*Vídeo-ExposiçãoAté 8 de fevereiro*Esta exposição é paga. A receita reverte, na íntegra, para o projecto social “Dentista do Bem”

Almada NegreirosDesenho, pintura, livros de artistaAté 29 de março

Alexandre Conefrey The Pit: Dois Abismos – Um Poço Fitando o CéuGravuraAté 5 de abril

Programação Fundação EDP

Terça a Domingo / 10h – 18h / Entrada livreMuseu da Eletricidade, LisboaSaiba mais em: www.fundacaoedp.pt

Vitoriano Braga. Retrato de estúdio de Almada Negreiros, Século XX, Vidro / Gelatina sal de prata © Direção-Geral do Património Cultural / Arquivo de Documentação Fotográfica: Luísa Oliveira (2006)

fundação carmona e costaEdifício Soeiro Pereira Gomes (antigo edifício da Bolsa Nova de Lisboa)Rua Soeiro Pereira Gomes, Lte 1- 6.ºA/C, 1600-196 Lisboa (Bairro do Rego / Bairro Santos) | Tel. + 351 217 803 003 / 4www.fundacaocarmonaecosta.pt

Parque de estacionamento mais próximo: Hotel SanaMetro: Sete Rios / Praça de Espanha / Cidade Universitária | Autocarro: 31

Exposição: até dia 21 de Fevereiro de 2015Horário: de quarta-feira a sábado, das 15h00 às 20h00 (excepto feriados)

ALBERTO CARNEIROÁRVORES, FLORES E FRUTOSDO MEU JARDIMDESENHOS E ESCULTURAS

curadoria: Catarina Rosendo

APOIO INSTITUCIONAL MECENAS PRINCIPAL CASA DA MÚSICAMECENAS CASA DA MÚSICAMECENAS ORQUESTRA SINFÓNICA

SinfónicaDescobertas Sinfónicas 31 Jan

18:00 Sala Suggia€ 17 | Cartão Amigo € 12,75

Lugar Coro € 12,75

Jovem/Sénior € 13,6

17:00 Cibermúsica

Palestra pré-concerto por

Baldur Brönnimann

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22

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ORQUESTRA SINFÓNICA DO PORTO CASA DA MÚSICA

Baldur Brönnimann direcção musical

Seja um dos primeiros a apresentar hoje este jornal completo na Casa da Música e ganhe um convite duplo para este concerto. Condicionada à disponibilidade da sala, a oferta é limitada aos primeiros 10 leitores e válida apenas para um convite por jornal e por leitor. Obrigatória a apresentação do documento de identificação no acto do levantamento.

Page 22: Ipsilon-20150116

Gentilmente Coelho Radioactivo, Moxila e Flamingos são projectos ligados à Gentle Records, editora on-line que congrega miúdos e graúdos. Mais uma prova de que a música portuguesa está bem e recomenda-se.

No palco do Musicbox Lis-

boa está uma miúda com

orelhas de troll, um cava-

quinho, uma guitarra em

dégradé de azul para cor-

de-rosa e uma voz pueril.

Parece viver num mundo à parte,

um mundo povoado por muitos

animais, elfos, desenhos anima-

dos, gordos a comer Nestum e nu-

vens cor-de-rosa que vêm e vão

num país longínquo onde não há

noite no Verão — e onde ser cres-

cido não é um estatuto assim tão

entusiasmante.

Moxila é o cosmos muito particu-

lar de Mariana Pita, artesã de can-

ções que são autênticos relicários

da infância (mas com letras que não

deixam de ter segundos sentidos),

de uma musicalidade rudimentar

sincronizada com um jeito natural

para criar melodias encantatórias

inundadas de candor e graça, que

se colam ao ouvido, que põem um

sorriso na cara de quem não se leva

demasiado a sério e que se situam

algures entre a K Records, Daniel

Johnston, Kimya Dawson, o twee da

Sarah Records, Frankie Cosmos ou

o tontipop espanhol.

“A Moxila entretém-me e isso é

mesmo espantoso. Gostava que a

minha música tivesse isso, essa ca-

pacidade de surpreender quem ou-Mariana Duarte

FERN

AN

DO

VEL

UD

O/

NFA

CTO

S

vossos

Page 23: Ipsilon-20150116

“Decidimos criar uma pequena editora on-line. Sem custos, descentralizada e sem compromissos: quem quiser pode editar só uma música na Gentle”Leonel Sousa

Tudo o que dá forma à editora (a escrita, gravação e produção de música; os vídeos, as capas, os cartazes e os concertos) se deve ao núcleo duro da Gentle

ve”, diz Luís Gravito, mais conheci-

do por O Cão da Morte, que nessa

mesma noite — a passada quinta-

feira, dia 8, no Musicbox — acompa-

nhou o amigo Coelho Radioactivo

(nome de guerra de João Sarnadas)

na apresentação em Lisboa de Can-

ções Mortas, novo disco que reúne

um conjunto precioso de canções

clássicas de cadência dulcífica, da-

quelas que conseguem ocupar o seu

próprio tempo e vagar, destilando

sobre os amores e desamores que

nos tocam a todos.

Mas o que é que Mariana, 24 anos,

Luís, 22, e João, 23, têm em comum,

além de fazerem parte de uma co-

munidade de músicos portugueses

estupidamente jovem que faz músi-

ca estupidamente boa? São colegas

na Gentle Records, uma editora com

base no Porto onde miúdos na casa

dos 20 e alguns graúdos, unidos pe-

la música, pelo design e pela ilustra-

ção, dão a ouvir, através de downlo-

ads gratuitos, as canções altamente

recomendáveis que andam a fazer

no quarto lá de casa e, ocasional-

mente, em estúdio.

Tudo o que dá forma à editora (a

escrita, gravação e produção de

música; os vídeos, as capas dos dis-

cos, os cartazes e a marcação dos

concertos) é levado a cabo pelo nú-

cleo duro da Gentle, com quem o

Ípsilon esteve à conversa: João Sar-

nadas (Coelho Radioactivo, Flamin-

gos), Mariana Pita (Moxila, Renata

e os Índios, Sr. Eduardo Urso), José

Cardoso (Tomba Lobos, Zé & Leo-

nel), Leonel Sousa (Zé & Leonel,

Spatial White Noise), João Sobral

( João Nada, emigrado em Londres),

Jorge Amador (Major Dog Ear) e

Luís Gravito (Flamingos), o maestro

das operações em Lisboa. Não há

chefes nem ninguém que queira ser

mais do que os outros, e por isso

foi tão difícil conseguir arrancar-

lhes quem começou com esta his-

tória toda. “Isso não interessa. To-

da a gente faz a sua parte e toda a

gente tem a password para meter

uma música no site ou no Facebook

quando quiser”, atira José Cardoso.

Mas lá acabam por ceder. “Fui eu

e o Zé que começámos com isto em

2012”, conta Leonel Sousa, 36 anos,

o mais velho do grupo, que se pode

orgulhar de ter co-criado a Bor

Land, extinta editora independen-

te que lançou nomes como Norber-

to Lobo, Lobster e Old Jerusalem.

“Decidimos criar uma pequena

editora on-line. Sem custos, descen-

tralizada e sem compromissos:

quem quiser pode editar só uma

música na Gentle. Queríamos que

fosse uma comunidade aberta a to-

da a gente e em que todos os mem-

bros pudessem convidar pessoal”,

explica Leonel. A coisa foi crescen-

do precisamente segundo uma es-

tratégia de contratação livre, com

base na amizade e na admiração

mútua, no amigo puxa amigo e ve-

nham mais cinco — e ninguém leva

a mal quem não ficar ligado à edi-

tora após alianças passageiras. Tal

pode acontecer, por exemplo, na

Singles Week, uma semana espe-

cial, agendada duas vezes por ano

(a próxima é em Março), em que a

Gentle edita uma canção por dia de

pessoas da casa, de convidados e

de quem lhes envia propostas para

a caixa de correio.

Incesto RecordsMusicalmente falando, as referên-

cias da equipa Gentle são de genea-

logia múltipla. Uns falam em Pastels,

outros em Mark Hollis, outros em

Hüsker Dü. Não admira, portanto,

que o resultado seja uma editora

que agrega música diferente entre

si (mas sempre de gentil tacto), on-

de tanto há lugar para canções que

seguem a herança da folk como pa-

ra twee, pop afectuoso ou explora-

ções à guitarra. Apesar das diferen-

ças, quase todos eles acabam por

ter projectos em conjunto. “Isto de-

via chamar-se Incesto Records”,

graceja José Cardoso. “É natural, nós

gostamos todos da música uns dos

outros”, justifica João Sarnadas. “Eu

senti logo que a Gentle era uma ce-

na especial”, declara Luís Gravito,

que entrou oficialmente no gangue

no último Verão para dar corpo a

Flamingos, a nova aventura com

Sarnadas. “Não encontro mais nada

que soe a Moxila, a João Nada ou a

Tomba Lobos”, acrescenta, em re-

gisto de vénia genuína.

O mesmo acontece com a Cafetra,

outra editora de rapazes e raparigas

na casa dos 20, que pelo nosso bem

começaram a fazer música em idade

imberbe (errata: alguma da melhor

música ouvida nos últimos anos em

solo nacional). Sim, metemo-los

aqui ao barulho propositadamente,

pois não faltam pontos de contacto

entre a Cafetra e a Gentle: são ami-

gos, partilham palcos, vêem concer-

tos e gostam das canções uns dos

outros, e vivem do mesmo senti-

mento caseiro, do faça-você-mesmo,

da mesma criatividade imparável,

do mesmo sentido de pertença, da

mesma linguagem mundana mas de

português bem tratado, da mesma

vontade de “querer viver a vida toda

sem merdas de empreendedor” (ou-

vir Dinheiro pra te pagar, de João

Nada), da mesma legitimação da

música entre os pares, sem estarem

demasiado preocupados com a len-

galenga “da música mal tocada e mal

cantada” de detractores exteriores

(citemos o recadinho deixado pelas

Pega Monstro nesse hino chamado

Fetra: “Se isto não é música/ então

faz tu uma canção/ e se eu desafino/

canta lá tu ó meu cabrão”).

Um modo de estar na vida e na

música que nos remete para a revo-

lução discreta que foi a FlorCaveira,

a escola de alguns miúdos da Cafetra

e da Gentle. “Perguntaste porque é

que agora tens tantos putos a fazer

música boa a partir do quarto. Acho

que a FlorCaveira foi muito impor-

tante para isso. Ajudou teres gajos

ao teu lado a fazer essa cena lo-fi e

a mostrarem que podia resultar”,

diz Luís Gravito, que, tal como João

Sarnadas, foi apadrinhado por João

Coração, um dos embaixadores da-

quela editora. “O Coração era bué

‘venham cá todos, vamos tocar can-

ções e mostrar as músicas uns aos

outros’”, lembra Sarnadas.

E é isso que a família Gentle Re-

cords vai continuar a fazer, sempre

com a janela aberta para todos aque-

les que os queiram ouvir. Quanto a

planos para o futuro próximo, ha-

verá discos de Tomba Lobos, de João

Nada e de Flamingos (se o nosso ho-

róscopo não falhar, vem aí assunto

sério), mais concertos (no dia 6 de

Fevereiro, Moxila faz a primeira par-

te de B Fachada no Paço dos Duques

de Bragança, em Guimarães), o

prosseguir das sinergias com a Fa-

vela Discos (uma espécie de irmã da

Gentle mais extrovertida, dada à

fritaria, “e menos fofinha”) e novos

capítulos da videoteca mensal Cine-

alegre. De resto, dizem eles, logo se

vê. Sem pressas, dizemos nós - des-

de que continuem a tratar gentil-

mente dos nossos ouvidos.

Page 24: Ipsilon-20150116

24 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015

Disc

os

Pop

Nostalgia do futuroCriado com o recurso a

aplicações de iPhone e iPad,

é um disco que respira a

dualidade passado-futuro,

com as letras a criarem

um espaço de nostalgia,

enquanto a música nos puxa

para cenários futuristas.

Vítor Belanciano

Beat Spacek

Modern StreetsNinja Tune, distri. Symbiose

mmmmm

Em 2015 o cantor

e músico inglês

Steve Spacek

continua a

reinvenção da

canção soul em

cenários tecnológicos. Foi assim

com Curvatia (2001) e Vintage

Hi.Tech (2003), os admiráveis

álbuns do seu extinto grupo

Spacek, e depois com Space Shift

(2005), assinado já com o nome

Steve Spacek, e mais tarde com 93

Million Miles (2011), subscrito com a

designação Africa HiTech, ao lado

do músico Mark Pritchard.

Agora reinventa-se com a

designação Beat Spacek, naquele

que é o primeiro álbum da editora

Ninja Tune para este ano – estará

nas lojas a 26 de Janeiro. Na

década de 2000 Steve Spacek

representou uma alternativa

sólida aos padrões massificados da

soul ou do hip-hop, entendendo

esses universos como espaço de

fantasia e especulação estética,

através de um som minimalista

descendente de, entre outros,

Voodoo, o muito marcante álbum

de D’Angelo de 2000.

A meio dos anos 2000 chegou a

mudar-se da cinzenta Londres

para a solarenga Los Angeles,

onde o seu trabalho parecia ser

melhor entendido, trabalhando ao

lado de J Dilla ou Sa-Ra, tendo

regressado a Inglaterra anos

depois. É daí que sai agora este

registo. Como sempre a música é

precisa, mas com a necessária

agitação para gerar calor e

atributos rítmicos. A semântica

minimalista está lá, mas em cada

aresta descobrem-se cambiantes e

decifram-se novos mistérios. É

talvez a obra onde mais

transcende géneros, centrando-se

na atmosfera e no balanceamento

rítmico, independentemente das

inspirações.

Criado em grande parte com o

recurso a aplicações de iPhone e

iPad, é um disco que respira a

dualidade passado-futuro, com as

letras a criarem um espaço de

nostalgia, enquanto a música nos

puxa para cenários futuristas. Em

Compact n’ sleep somos

transportados para um panorama

soul espaçoso, com a voz

aveludada de Spacek a brilhar,

enquanto os subgraves de Alone in

da sun ou de I wanna know nos

colocam num local vagamente

marcado pelo dub ou dubstep e

Inflight wave ou I want you

resultam numa pop electrónica

dinâmica que evoca elementos do

pós-punk.

Ou seja, independentemente

dos quadros que são traçados,

consegue sempre um equilíbrio

entre identificação e invenção,

entre voz, gestão rítmica e

desenho melódico, afirmando um

vocabulário a partir de várias

nomenclaturas que, no fim de

contas, acabam por resultar numa

soul de contornos tecnológicos,

como foi sempre o seu carimbo.

Disc

osQue fazer desta revolução?

Belle & Sebastian

Girls In Peacetime Want To DanceMatador Records; distri. Popstock

mmmmm

Ao nono álbum,

os Belle &

Sebastian estão

diferentes. É o

que todos dirão,

mesmo não

tendo como prova mais que The

party line, o primeiro single de

Girls In Peacetime Want To Dance.

A mudança, no caso específico

desta canção, é refrescante.

Cowbell a marcar o ritmo do pré-

refrão, sintetizadores a dançarem

enrodilhados no baixo, batida

funk na tangente do disco e muito

hedonismo, muito elegante: “Jump

to the beat of the party line”, exorta

o refrão e é precisamente isso que

temos vontade de fazer.

Mas The party line é apenas uma

das doze canções do novo álbum, o

que sucede a Write About Love,

editado em 2010. E é, neste álbum

produzido nos EUA por Ben H.

Allen III (Gnarls Barkley, Animal

Collective), o primeiro e decisivo

sinal da apregoada mudança na

banda que inventou para si uma

sensibilidade pop feita de uma

superfície delicada e de dor e crise

existencial abaixo dela.

Nobody’s empire, a canção que

abre o álbum, tem a trompete que

é imagem de marca, coro gospel

para frémito épico e uma guitarra

elegante a abrir caminho para

frases como “If we live by the books

and we live by hope / does it makes us

targets for gunfire?” – é sempre um

prazer reencontrar a pena de

Stuart Murdoch. Allie, a segunda

canção, grande canção, soa a

canção combate à Belle &

Sebastian: dançamos o ritmo

garageiro sem fúria, mas com a

flauta, soprada com intenção, a

colorir a melodia. A guitarra há-de

espingardar e é impossível não

bater o pé ao ritmo da peça. Mas,

nesse momento, o que fazemos

com todo este conforto? “When

there’s boms in the Middle East / you

wanna hurt yourself”, ouvimos no

início; ouviremos mais tarde: “You

made a list of all your heroes / and

you thought about all they went

through / It’s much harder, much

darker then what you went through”.

Quando desembocamos em The

party line, somos tudo entusiasmo:

são os Belle & Sebastian, os da

agudeza da lírica e do ouvido para

a melodia, e são também algo de

diferente. Porém a diferença, esta

diferença, não manterá o seu

encantamento. Atravessamos a

dolência de The power of three”,

cantada por Sarah Martin (secção

de cordas dinâmica em convívio

com sintetizador de viajante

espacial), avançamos pela

belíssima pop de câmara de The cat

with the cream e aterramos depois

em Enter Sylvia Plath. Não é

surpreendente ver os Belle &

Sebastian escreveram sobre a

poeta americana. Surpreendente é

o que fizeram com ela: quase sete

minutos de um synth pop

desenterrado de pesadelos dos

anos 1980 enquanto caricatura

mal-amanhada de Pet Shop Boys

ou dos ABBA. Desconcertante – e

não de uma boa maneira: a

surpresa é só desilusão e

desconforto perante a brincadeira

(só pode ser isso, não é?). Não, não

é. Ouviremos yatch rock barato,

com congas e ritmo disco, em

Perfect couples – o paradoxo entre o

tom bem-disposto e os versos

cantados (“What have we done? /

those perfect couples / keep breaking

up”) é uma boa e velha ideia dos

Belle & Sebastian, a sua

concretização, aqui, nem por isso.

Ouviremos sete minutos de mais

synth-pop, o de Play for today, este

em versão tropical (ou chungaria

80s), onde se canta sobre a miúda

de sorriso fácil que esconde

consigo uma terrível verdade (não,

a vida não lhe sorri).

No fim, damos por nós a pensar,

medido o início irrepreensível do

disco, recordando como a

despedida com Today (This army’s

for piece), balada enublada por

sons atmosféricos, é uma canção

da qual não queremos sair,

reconhecendo que continuamos a

ser surpreendidos pelo universo

lírico de Stuart Murdoch (que não

mudou), pesado tudo isso,

Belle & Sebastian: a festa plástica na pista de dança está longe de lhes assentar bem

Soul e tecnologia: de novo o carimbo de Steve Spacek

Page 25: Ipsilon-20150116

ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015 | 25

Veja os videoclips na edição do ípsilon para tablets

dizíamos, concluímos que neste

Girls In Peacetime Want To Dance a

suave revolução entusiasma e é

bem-vinda, mas que a festa plástica

na pista de dança (a revolução

histriónica, digamos) está longe de

lhes assentar bem. E é uma pena.

Mário Lopes

Courtney Barnett

Double EP: A Sea of Split PeasPopstock

mmmmm

Portugal

continua a ser

um país onde as

coisas chegam

tarde: a empatia

humana, a

democracia, os discos. Double EP:

A Sea of Split Peas, álbum de estreia

da magnífica Courtney Barnett,

lançado na Austrália em 2013,

chegou às nossas lojas em

Dezembro, pelo que meio de

Janeiro parece a altura ideal para

falar deste magnífica elegia ao

engenho musical. Engenho no

sentido em que a senhora Barnett

consegue, com quase nada, criar

melodias deliciosas, arrancar

simples mas brilhantes arranjos e,

como se isto não fosse suficiente,

escrever narrativas hilariantes

baseadas nos pequenos acidentes

do dia-a-dia. O melhor exemplo

deste talento é Avant-gardener, a

história de uma ida ao hospital à

conta de asma, que se edifica

assim: uma slide-guitar cheia de

reverberação desenha uma figura

melódica encantadora, enquanto

Courtney nos põe a par do seu mal

de pulmões num registo vocal

particular, meio narrado, meio

slacker, sempre com uma frase

aguçada pronta a gozar com a sua

condição de pessoa-a-quem-

acontecem-coisas. Em Out of the

woodwork, a abertura, guitarras e

pianos entregam-se a um pequeno

duelo antes de teclas que emulam

violinos ensombrarem o refrão

com ligeira melancolia. Há um

pouco mais de balanço em History

eraser, em que a guitarra surge

mais à frente dos restantes

instrumentos na mistura – Double

EP, diga-se, é uma ode à arte

perdida de fazer de uma guitarra

ritmo o motor de uma canção. Em

certo sentido há muito de Go-

Betweens, aqui, como as seis

cordas de David ou Lance Jr

provam. Mas permitam que

citemos a letra desta última: “I

masturbated to the songs you wrote

(…) it felt wrong, but it didn’t take too

long/ much apreciated all your

songs/ doesn’t mean i like you/ it just

helps me get to sleep”. Quantas vezes

vemos tão delicado tema ser

tratado com tanto descaramento,

tanto humor e tanta classe?

Poucas, muito poucas.

João Bonifácio

Page 26: Ipsilon-20150116

26 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015

Quando morreu, David Foster Wallace deixou aparentemente completos 12 capítulos, 250 páginas, deste romance que o seu editor, Michael Pietsch, transformou numa “neurologia do fracasso”

Livr

os

Ficção

É possível parar o pensamento?O romance inacabado de

David Foster Wallace —

uma trágica e hilariante

dissertação sobre o tédio e a

frustração. Isabel Lucas

O Rei Pálido

David Foster Wallace

(Trad. Maria Dulce Guimarães da

Costa e Vasco Teles de Menezes)Quetzal

mmmmm

O romance

póstumo de

David Foster

Wallace, o

escritor que se

propôs

reinventar uma

fórmula de fazer

literatura e foi

classificado de génio depois de

publicar A Piada Infinita (Quetzal

2012), sai em Portugal ao mesmo

tempo que nos Estados Unidos se

publica David Foster Wallace The

Reader (Little, Brown and

Company), guia de leitura para

quem quiser iniciar-se no autor que

não suportou viver no turbilhão da

sua cabeça. É uma selecção de

alguns dos seus textos mais

significativos, um best-of que varre

a diversidade do seu registo

literário — ensaio, conto,

romance... — e que os mais cínicos

apontam como outro produto da

indústria Wallace, aquela que se

alimenta do suicídio do escritor, em

Setembro de 2008, tinha ele 46

anos, e do culto que o elevou ao

estatuto de ícone da América, a

marca de uma geração que

procurava alternativas nas artes.

O Rei Pálido, o livro que deixou

incompleto e em que trabalhava

havia dez anos, está incluído nesse

volume de mil páginas que tenta

responder à pergunta “por onde

começar?”. É uma das grandes

hesitações. Há caminhos melhores

para este seguidor de Thomas

Pynchon, que partiu do

modernismo para inventar algo

sem nome, experimental às vezes,

outras clássico, no modo como

narra as pequenas histórias que

compõem a sua intrincada teia

literária? Quem já leu Wallace sabe

da dificuldade de penetrar naquele

universo que não deixa um nervo

ileso; da dificuldade de aguentar a

mágoa, de não sucumbir ao delírio,

de aceitar dar um passo em

direcção ao inferno, sabendo que

dificilmente se sairá igual. Isso, essa

capacidade de permanecer

intocado quando se vai em frente

no aventuroso convite de o seguir

no seu tormento e na sua vertigem

inventiva, também não era o que

Wallace queria. Ele fere. Mas não é

gratuito. Estava ferido e era nesse

estado que escrevia. Sobretudo nos

romances. Que sedução pode haver

nisto? A tal garantia de ser tocado.

Foi assim em A Piada Infinita,

original de 1996: um livro de mais

de mil páginas, centrado na figura

de Harold Incandenza, 18 anos,

interno numa academia de ténis,

que serviu ao escritor para satirizar

o permanente convite à alienação

pela indústria do entretenimento

na América de finais do século XX.

A suprema felicidade estava na

suprema capacidade de diversão.

Daí nasceu uma enciclopédia de

sentimentos, emoções à flor da

pele, obsessões, um modo

inclemente e letal de contar a

depressão, a tristeza que vem da

frustração de se ser, e também de

não se ser, um alienado. O Rei

Pálido, de que Foster Wallace

deixou aparentemente completos

12 capítulos, 250 páginas, continua

o seu exercício de perseguir e dar

maior corpo ao imenso projecto de

criar uma nova forma de narrativa

humana, só que com uma herança

pesada: com A Piada Infinita tinha

sido “genial”. E agora? Como não

desmerecer a genialidade que

perseguia e atormentava em doses

iguais? É só uma das especulações

acerca de David Foster Wallace que

ajudam a alimentar o mito.

Outra é este seu romance

póstumo. A versão que se conhece

não seria a que Wallace iria dar a ler

se algum dia a chegasse a publicá-

la. Sabia-se da sua obsessão em

emendar, da busca da perfeição,

mas tudo o que se acrescentar

sobre isto será, mais uma vez,

especulativo. O Rei Pálido é o

trabalho de Foster Wallace mais o

trabalho do seu editor, Michael

Pietsch, sobre o imenso material

que foi encontrado depois da sua

morte no escritório da casa onde

vivia com a mulher, Karen Green,

em Claremont, na Califórnia. Eram

“discos rígidos, pastas de ficheiros,

dossiers com argolas, blocos de

notas de espiral e disquetes”, conta

Pietsch no posfácio, “capítulos

imprimidos, maços de papéis

escritos à mão, notas e muito

mais”. “Apanhei um avião para a

Califórnia”, continua, “e, passados

dois dias, regressei a casa com uma

mochila verde e dois sacos da

Trader Joe’s a abarrotar de

manuscritos. Uma caixa cheia de

livros que o David tinha utilizado

para o trabalho de investigação

seguiu pelo correio”.

A descrição serve para perceber

o trabalho de composição que deu

origem a este O Rei Pálido, Um

Romance Inacabado, que em 2011,

ano em que seria finalmente

publicado, foi um dos três finalistas

do Pulitzer para ficção (não houve

vencedor). Mas O Rei Pálido é mais

do que isso. É um compêndio de

escrita sobre Foster Wallace. As

notas que deixou e que ajudaram o

editor a completar o puzzle sem

fim, o labirinto de possibilidades,

dando forma a essa espécie de

“neurologia do fracasso”,

expressão retirada a uma das

muitas personagens que o autor

criou, são também um modo de o

leitor perceber a oficina obsessiva e

perfeccionista de Wallace.

Depois da diversão extremada de

A Piada Infinita, estamos agora no

terreno do tédio. Na Direcção

Regional de Finanças de AT de

Peoria, Illinois, em 1985, uma série

de personagens vive encerrada

num quotidiano de grande

aborrecimento, um lugar onde é

possível estar-se morto quatro dias

sem que ninguém estranhe a falta

de movimentos desse corpo que

sempre foi quieto e reservado, um

lugar onde um ser humano é

comparado a “um peixe a debater-

se na rede das próprias

obrigações”, num campo absurdo

entre o riso e a lágrima. Do que de

mais íntimo se passa na consciência

de alguém até àquela que é aqui

descrita como mais burocrática das

existências, a de um contabilista,

salta-se sem licença, sem vírgulas. E

salta-se também para outras

personagens, que ajudam na

vertigem. É aí que Wallace quer

estar, na génese do pensamento e

da emoção, quando se inscreve

num curso de contabilidade para

saber como articular essas fórmulas

“secas” com evocações do que de

mais poético e transcendente se

pode passar na mente. Sem

respeito pela cronologia, num

tempo pessoal em confronto com a

precisão do relógio que impõe o

aborrecimento e leva outro estado

de alienação, a do robô, do

executante letárgico como o

Bartleby de Herman Melville, a que

vai sendo comparado.

Mais uma vez, Wallace parte de

um universo muito fechado para o

mais abrangente de todos os

mundos, onde tudo lhe é permitido.

Listas, catálogos, fórmulas

matemáticas e também a paisagem

territorial e humana, o erotismo e o

riso, a demência e o respeitinho que

é muito bonito, tal como ensinam as

regras que Wallace desmonta.

Desmontou-as até onde foi capaz,

no que descrevia como o turbilhão

em que estava metido — assim dele

falava, nas poucas vezes em que

dele falava, ao seu editor.

O Rei Pálido será sempre

inacabado e incapaz de responder

até onde poderia ir Foster Wallace

se não tivesse morrido aos 46 anos.

Mas quem o lê reconhece nele todos

os traços dessa tarefa que foi a sua:

viver à margem sem ser por escolha

e fazer dessa incapacidade de ser

feliz uma obra sobre os intrigantes

limites de estar vivo, desafiando as

convenções da linguagem,

apoiando-se na investigação de

campo, interrogando-se sobre o

trabalho de um escritor, no seu

inferno pessoal. Revelar um pouco

de tudo isso é o grande mérito deste

livro, além, claro, dos muitos

momentos vibrantes.

Sangue novo para o romance de formaçãoUma investigação destemida

sobre tempos e lugares

revistos com mão diurna e

nocturna. Hugo Pinto dos

Santos

A Amiga Genial

Elena Ferrante

(Trad. Margarita Periquito)Relógio D’Água

mmmmm

Uma amiga de

infância de

Elena, a

narradora,

desapareceu sem

deixar rasto. Há

decénios a

separá-las de um

convívio que fora

especialmente próximo. Numa

demanda que lembra tenuemente

Page 27: Ipsilon-20150116

ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015 | 27

Um Estranho Amor (in Crónicas do

Mal de Amor, Relógio D’Água,

2014), o filho da desaparecida

procura a mãe. Por isso contacta

Elena, que acede a recuar mais de

50 anos, desenterrando a sua

infância e a sua adolescência, em

dois momentos narrativos de um

romance que claramente se

anuncia como mais um tomo na

guerra que a vida é até ao fim —

“Vamos ver quem vence, desta

vez” (p. 16). Com estas palavras,

que encerram o prólogo, Apagar o

rasto, se determina o que a leitura

do romance só confirmará: não

estamos perante o perfilar

sossegado de memórias que

deslizem com a mansidão de uma

reminiscência alisada pelo passar

dos anos. O que encaramos é a

turbação que cinco décadas não

fizeram mais do que acidular.

Elena prepara-se para narrar uma

Infância e uma Adolescência numa

disposição de matérias que parece

querer evocar o exemplo de

Tolstói, mas que vai numa

direcção bem mais encrespada,

descendo por galerias de toque

agressivo.

O método eleito pelo romance é

o da antinomia. A mais importante

manifestação desse princípio é a

que opõe Elena e Lila. A vida

recordada e narrada em A Amiga

Genial é uma medição de forças

com aquele outro ser, aquela outra

forma de entender o mundo. O

romance irá, repetida e

obsessivamente, fazer reviver uma

existência entendida em

permanente confronto com o

outro. Que é aqui, antes de tudo, a

amiga — “aquilo que me faltava, ela

tinha, e vice-versa, num jogo

contínuo de trocas e inversões,

que, ora com alegria, ora com

sofrimento, nos tornavam

indispensáveis uma à outra” (p.

205). Para chegar a esta conclusão,

formulada já em plena

Adolescência, Elena teve de erguer

uma construção de notável

engenharia, um todo em que as

partes se digladiam entre si, mas

sem nunca abalarem o edificado.

Desde os bancos da escola

primária, passando pelo momento

em que Elena prossegue os estudos

e Lila fica de fora, mantendo-se

dentro da esfera do saber por

interposta amiga, ou pelo seu

próprio desafectado esforço

autodidacta. Até ao dia em que a

amiga se casa, e Elena se reúne

com a sua própria dissolução —

“não sei o que sou nem o que

realmente quero (…), sinto-me

metade e metade” (p. 262) —,

incapaz de dizer esse sim à vida

que Lila parece pronunciar mesmo

sem falar. Assim, será ela a “amiga

genial” do título, embora tudo o

contradiga. Até a própria Lila, que

dirá a frase de sinal contrário — “Tu

és a minha amiga genial” (p. 249).

Mas talvez aqui “genial” se refira

menos à proeza livresca (que Lila,

no entanto, exibe, de uma forma

sedutoramente desprendida) ou do

conhecimento em sentido lato, do

que a uma outra qualidade mais

oculta e total. É possível que nas

memórias de Elena, que primava

pelos conhecimentos clássicos (e

lembre-se que se aventa a hipótese

de a esquiva Elena Ferrante ser

licenciada em Estudos Clássicos),

fizesse sentido evocar o genius

latino. Isto é, a divindade que

velava por cada ser, o

acompanhava e desaparecia com a

sua morte. Por outras palavras, a

amiga que sempre seguiu Elena

como uma sombra.

A Amiga Genial forma-se

segundo o instrumento de forças

opostas que crescem em

acumulação, e não tanto por fios

que recuem e avancem, à medida

de caprichos composicionais, ou

impulsos do estilo. O sentido é

praticamente unívoco. Após a

brevíssima interrupção do

prólogo, a narrativa avança quase

sempre de forma linear, sem

nunca sobrecarregar de forma

explícita o texto com dados

especificamente cronológicos,

antes deixando que se infira a

passagem das épocas através de

indícios em trânsito elegante no

romance. Um acontecimento

escolar, um acidente doméstico,

uma fissura no edifício social. Essa

harmonia de contrários, que

alimenta a construção do

romance, estender-se-á para lá do

núcleo essencial composto por

Elena e Lila. A comunhão entre as

duas amigas (que seria tentador

figurar como o negativo uma da

outra) está, além do mais, no

próprio nome da amiga. De seu

nome verdadeiro Rafaella, todos a

conhecem por Lina, excepto

Elena, que sempre lhe chamará

Lila. A questão linguística não é,

aliás, acessória. Como sucedia em

Crónicas do Mal de Amor, língua e

não língua, norma e desvio dela,

são um dos instigadores da escrita.

A fórmula “metade em dialecto,

metade em italiano” (p. 14),

aplicada quase no início de A

Amiga Genial, desenvolve-se ao

longo de um romance que colhe

constantemente energias desse

foco de tensão que é a coexistência

crispada desses dois códigos — “em

dialecto era difícil conversar sobre

a corrupção da justiça terrena,

como se via bem durante o almoço

em casa de dom Rodrigo, ou sobre

as relações entre Deus, o Espírito

Santo e Jesus” (p. 206). Porque a

questão da língua é, neste

romance, um exemplo eloquente

de como o contexto envolvente

transcende a função de cenário,

para ser um elemento actuante na

sua dinâmica. É o dialecto

napolitano que estabelece a

demarcação entre os que possuem

escolaridade e os que se agarram à

subsistência possível. É ele que

espreita sempre que a razão

sucumbe à vertigem dos sentidos

ou do álcool. O dialecto faz falar a

carne; só o italiano traduz a

implantação do raciocínio e da

cultura. A pressão resultante desse

atrito de opostos é outro dos eixos

do romance. É uma relação

comparável à que se instala entre o

subúrbio, habitado por estas

personagens, e a cidade de

Nápoles — separados ambos os

pólos por uma jornada que

cumpria percorrer com penosos

transportes. Assim se cava mais

fundo o fosso firmado pelo

romance, separador de realidades

irreconciliáveis: social e

individualmente.

Quando Elena refere a língua

italiana falada pela professora, o

exemplo de que se socorre para a

descrever é a Ilíada. O poema

homérico não lhe serve apenas

para contrastar a correcção da

mestra com o “italiano cheio de

erros” (p. 72) da sua mãe, mas para

introduzir uma nota sobremaneira

importante em A Amiga Genial: a

violência. Ao descrever um rapaz

que captara o seu interesse, a

narradora voltará àquele poema

— “parecia-se com Heitor, tal como

estava representado na versão

escolar da Ilíada” (p. 87). A uma

infância “cheia de violência” (p. 27)

sucede o bairro “cheio de

conflitos” (p. 107) da adolescência.

Nem mesmo as festividades

escaparão a essa pulsão belicista. A

“batalha do fogo-de-artifício” (p.

157), que põe em confronto os

foliões pelo melhor festejo, será

uma imagem clara e inquietante

dos conflitos que agitam o subsolo

das relações familiares e, em

sucessivos anéis de tensão, do

plano mais geral da sociedade. As

imagens de cisão são poderosas

representações dessa cisão.

Nápoles “corta-se, parte-se” (p.

107); o liceu é “esfarrapado” (p.

237). Com o casamento de Lila, que

encerra o romance, a distribuição

desigual de bebidas soará o sinal

derradeiro de futuros conflitos,

que já se adivinham. Tudo

permanecerá, porém, num

adensar que não se distende nem

resolve, nas linhas finais de A

Amiga Genial.

Na adolescência — período da

vida e parte do romance —, os

monstros da primeira parte de A

Amiga Genial sofrem

metamorfoses. Menos lineares,

mais abusadores da ordem que a

própria adolescência põe em

causa. Dom Achille, que era o ogre

da infância, é assassinado por um

“ser, metade masculino e metade

feminino, que está escondido no

esgoto e sai pelas sarjetas, como os

ratos” (p. 82). A imaginação

delirante da infância dá, então,

lugar à fantasia e ao fantasma, à

projecção e ao temor. Um temor,

desta vez, mais da vida do que da

sonhada existência que a infância

fabrica. A adolescência substitui

esses planos pelas limalhas que

recolhe dos seus primeiros

contactos sangrentos com o

mundo. Elena vai surgindo, neste

romance de formação, que é muito

mais do que isso, como a imagem

viva do escritor. Evoluirá de uma

subserviência quieta aos livros e

aos autores a uma crescente

emancipação, em busca de “uma

escrita fluente e sedutora” (p. 220),

o que consegue. Mas,

significativamente, esta descrição

referia-se à escrita de Lila. Daimon

e sombra. Génio.

Um artigo publicado há uma semana neste

jornal, da autoria de um professor da

Faculdade de Letras da Universidade de

Lisboa e investigador no Centro de Estudos

Clássicos (CEC), Rodrigo Furtado, vale como

um eloquente requisitório que mostra, com

força lapidar e abundância de exemplos, as práticas

fraudulentas e a incompetência dos avaliadores no

mundo académico. O título, O Triunfo da

Incompetência: a Avaliação dos Estudos Clássicos em

Portugal, parece responder a uma injunção recorrente

que reclama a necessidade de saber quem avalia os

avaliadores. Mas Rodrigo Furtado não se fica por aí:

faz-nos ver que a avaliação é uma ideologia e que essa

ideologia é o aparelho de justificação de um sistema

que institui uma polícia científica — composta por

comissários que fazem figura de idiotas racionais —

munida de instrumentos e poderes que lhe permitem

instaurar o valor de norma e de verdade. Conta o autor

do artigo que os avaliadores do painel de humanidades

atribuem ao CEC projectos de estudos que estão

completamente ausentes das propostas e dos

programas do referido centro, cometendo ainda por

cima erros nos relatórios que denunciam uma total

ignorância sobre as matérias que estão a avaliar, para

além de reclamarem de quem se dedica aos Estudos

Clássicos que siga os famigerados requisitos do

management empresarial: a inovação e o

pragmatismo tendo em vista a aplicação utilitária, o

que os leva a elogiar uns “guias literários” que

erradamente atribuem ao CEC, mas que, garante

Rodrigo Furtado, “o CEC não editou, não edita, nem

propõe editar”. A grande impostura da avaliação

enquanto prática e doutrina não está apenas instalada

na universidade e na investigação, estendeu-se nos

últimos anos a todos os domínios de actividade

profissional e a todos os sectores da sociedade.

Rodrigo Furtado denuncia essa impostura na sua

dimensão grotesca. Uma definição rigorosa diz-nos de

facto que grotesco é o facto de um indivíduo deter, por

um estatuto adquirido por um acto arbitrário de

nomeação, um poder efectivo de que deveria estar

privado por razões intrínsecas, ou seja, por não ter

qualquer autoridade no campo sobre o qual é

chamado a desempenhar o papel de um sobre-saber.

Na verdade, o poder dos avaliadores institui-se como

uma ciência sobre a ciência, uma competência sobre a

competência. Trata-se de um poder politicamente

constituído que atribui a si próprio, unilateralmente,

legitimidade para exercer um direito que é por

natureza ilegítimo, injustificado e tirânico sobre o

saber, a sua produção e a sua transmissão. A ideologia

da avaliação quer sempre incutir a falsa consciência,

como todas as ideologias, de que é neutra e objectiva,

e não subjectiva e produto de uma vontade particular.

Por isso, prefere punir e humilhar, com a arrogância

de uma pseudo-ciência, os investigadores e os centros,

para não admitir que a maior parte das decisões são

predeterminadas e sobrederminadas por razões que

nada têm a ver com a ciência (veja-se como agiu este

ano a Fundação para a Ciência e Tecnologia e o modo

como quis ocultar decisões prévias de política da

investigação). A avaliação tem uma natureza e uma

função essencialmente estratégicas: nas empresas,

está ao serviço da gestão e da disciplina dos

“recursos humanos”; na universidade e na

investigação, é o “dispositivo” de uma máquina de

governo. Um “dispositivo”, no sentido em que

utilizamos aqui o conceito, é tudo aquilo que

pretender ter a capacidade de capturar, orientar,

determinar, controlar e assegurar as condutas, as

opiniões e os discursos dos indivíduos.

Estação Meteorológica

As imposturas da avaliação

António Guerreiro

Page 28: Ipsilon-20150116

28 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015

A cólera de DeusUm combate com os

enigmas da fé, cheio do som

e da fúria do “gótico sulista”.

Helena Vasconcelos

O Céu É dos Violentos

Flannery O’Connor

(Trad. Luís Coimbra)Relógio D’Água

mmmmm

Em 1964, quatro

anos antes de

morrer vítima de

lúpus, Flannery

O’Connor

publicou O Céu É

dos Violentos, o

seu segundo e

último romance,

uma história apoteoticamente

sombria sobre a morte e a

redenção da alma. O tom

arrebatador com que esta sulista

se lançou na escrita serviu o

propósito, bem delineado desde a

infância, de expor e de articular,

em múltiplos aspectos, duas das

questões essenciais que

preencheram a sua existência: os

abismos da crença religiosa e a

relação conturbada com o espaço

geográfico em que nasceu e viveu.

No vórtice de O Céu É dos

Violentos, a escritora faz convergir

toda a sua filosofia, alimentada e

desenvolvida, sobretudo, pelo

estudo de S. Tomás de Aquino e

do teólogo Pierre Teilhard de

Chardin, já visível no seu juvenil e

profundamente espiritual Diário

de Preces (Relógio D’Água), escrito

entre 1946 e 1947, “descoberto” e

publicado em 2013. De Teilhard de

Chardin, Flannery retirou a crença

de que tudo converge para Deus,

algures num ponto ofuscante

onde ela, a autora, coloca as suas

personagens, dilaceradas entre a

crença feroz e a dúvida perene.

Em O Céu É dos Violentos, esse

combate centra-se num rapaz de

cerca de 14 anos, Francis Marion

Tarwater, a quem o seu tio-avô,

um homem “possuído” — e auto-

proclamado profeta — confia duas

missões: a de lhe dar um enterro

cristão e a de baptizar um outro

sobrinho com problemas mentais,

que vive na cidade com o pai. O

velho Tarwater, que raptou

Francis em criança para lhe

transmitir a sua visão fanática da

religião, cria-o na floresta no

sentido de fazer dele o seu

discípulo e morre efectivamente

no início do livro. O rapaz procura

satisfazer o seu compromisso,

começando a cavar uma sepultura

no solo duro e resistente, mas

interrompe a tarefa árdua e

inglória ao ouvir uma “voz” que

lhe diz para esquecer o velho e

seguir com a sua vida. Incapaz de

tomar uma decisão, embebeda-se,

pega fogo à casa com o cadáver lá

dentro e apanha uma boleia de um

caixeiro-viajante que lhe garante

que “não existe o diabo nem nada

que o valha… não tens de escolher

entre Jesus e o diabo. A escolha é

entre Jesus e ti mesmo” (p. 38). Ao

chegar à cidade, Francis procura o

tio, o professor Rayber, pai de

Bishop, o referido miúdo com

síndrome de Down, que o acolhe e

tenta fazer dele um “ser humano

útil”, desmistificando a falsa

doutrina que impregnou a cabeça

do rapaz. Mas Francis mantém

uma atitude de teimosia e

alheamento, tendo por companhia

a mesma “voz” (o seu amigo, isto é,

o diabo) que o alicia na descrença e

na resistência. A acção decorre ao

longo de uma semana e toda a

narrativa é construída em torno de

flashbacks que dão conta de uma

família disfuncional, cujos

membros, ao longo dos anos, se

debateram com conflitos

alimentados pela ignorância, pela

fraqueza moral e pelo

fundamentalismo messiânico. Os

vértices do triângulo formado por

Francis Tarwater, Rayber e Bishop

simbolizam três forças que se

digladiam impiedosamente e

acabam por se destruir entre si, à

medida que as acções demenciais

se sucedem à luz de visões bíblicas

de baptismos e purificações que

carregam consigo a destruição e a

morte.

O Céu É dos Violentos tem o peso

de uma maldição lançada aos

quatro ventos por esta autora

singular que lia e relia em criança

os contos de Edgar Allan Poe e

manteve uma discussão consigo

própria relacionada com os

enigmas da fé sem nunca perder de

vista uma ironia selvagem que

raiou o grotesco, muito próprio do

“gótico sulista”, uma designação

que serviu para acantonar

escritores tão diferentes quanto

William Faulkner, Carson

McCullers, Tennessee Williams,

Harper Lee, Truman Capote,

Cormac McCarthy e a relutante

Eudora Welty, que se insurgiu

contra essa categorização. Na

realidade, todos eles conheceram e

se deixaram seduzir

perversamente pela ideia, que

transpuseram para a escrita, de um

lugar luminosamente sombrio,

entre chamas purificadoras, o

apaziguamento da água baptismal,

a viagem iniciática e o negrume de

um céu onde os pobres, os

deserdados, os impotentes, os

marginais e os mutilados física e

psicologicamente se movimentam

numa ânsia redentora que os

arrasta por um longo caminho de

martírio. Este quase sadismo a que

O’Connor expõe homens e

mulheres destinados a um

propósito envolto em trevas foi o

que desencadeou a reacção da sua

antiga professora de escrita criativa

no Georgia State College for

Women (cujas aulas frequentou em

1942), que, dez anos mais tarde, ao

ler o primeiro romance da sua

aluna (Sangue Sábio), o atirou pelo

ar e exclamou: “Se ela tivesse

matado o personagem logo no

início, em vez de o fazer no fim,

teria poupado uma grande maçada

a muita gente”. Este desabafo

reflecte o desconforto de leitores

que resistem ao ímpeto

devastadoramente cómico de

O’Connor, cuja força, feita do

apuramento incandescente da sua

escrita, aliado a um imaginário

assombroso, se condensa

essencialmente nas narrativas mais

curtas mas que “explode”

literalmente neste romance.

O’Connor foi uma ardente devota,

mas a questão do seu catolicismo

e a forma como este se revela nos

seus escritos têm sido objecto de

estudos e especulações. O próprio

título deste livro remete para a

ambiguidade da passagem de

Mateus, 11:12 — “Desde os dias de

João Baptista até agora, o reino

dos céus tem sido objecto de

violência e os violentos apoderam-

se dele à força” —, evocativa da

luta perene contra o Mal, que

tenta subjugar o divino para o

diminuir e distorcer. Luta essa que

não exclui a violência e o

confronto brutal, reminiscente do

tumulto que encontramos no

Paraíso Perdido de John Milton.

O’Connor não se coíbe de

desmascarar a ignorância que leva

à intolerância e que, por sua vez,

se desenvolve num fanatismo

grotesco, frequentemente

intrínseco aos seus personagens,

mesmo quando estes estão

imbuídos de uma qualquer visão

redentora. No entanto, essa

espécie de epifania nunca é

pacífica, antes se reveste de um

carácter demolidor que é próprio

da revelação do mistério da morte,

tema central deste romance e

tratado, pela autora, com uma

espécie de desespero irónico,

enquanto transpõe, para a ficção,

tudo aquilo que a atormentou: os

preconceitos e a tibieza moral, o

bem e o mal, as tensões entre o ser

humano e a natureza, entre a razão

e o fanatismo, entre o paraíso e o

inferno.

Fotografia

Vento e águaOs Açores e a família de

Sandra Rocha num livro

de fotografias tocadas pela

paisagem. José Marmeleira

Anticyclone

Sandra RochaEd. Autor

mmmmm

Anticyclone

começa com uma

rapariga em

biquíni.

Enquadrada pelo

azul da capa, tem

a mão sobre o

peito, o queixo

levemente

levantado à procura do sol, os

olhos fechados. É uma imagem de

praia, das que facilmente atraem o

olhar masculino. Quem não

conhece a artista que assina este

livro colocará, talvez, a pergunta:

será a rapariga a autora, Sandra

Rocha? A simples abertura de

Anticyclone, concebido com a

colaboração de André Príncipe e

José Pedro Cortes, desfaz o

equívoco. As imagens vêm de um

lugar, a Ilha Terceira, nos Açores, e

vêm com vento, água e nevoeiro.

Depois da capa, o sol raramente

espreitará das suas páginas.

Realizadas entre 2009 e 2013, as

imagens imobilizam rostos,

espaços domésticos, objectos,

movimentos do mar. Mas esta

imobilização é momentânea, tudo

se move com o folhear das

páginas, permitindo ao leitor

imaginar as narrativas que aquelas

constroem. Prevalecem os olhares

e os corpos de figuras do sexo

feminino que hão-de reaparecer a

longo do livro, com outros

penteados, outras poses, outras

cores. Lentamente, reconhecidas

pelo “leitor que olha”,

transformar-se-ão, então, em

personagens: a ficção instala-se.

Um pequeníssimo texto revela

que fazem parte da família de

Sandra Rocha, mas nada se fica a

saber da sua intimidade, das suas

vidas. Que laços que têm com a

criança que, deitada no chão,

afaga um gato, com o homem que

segura o bebé nas mãos, ou com a

miúda que escreve sobre uma

mesa? Não nos dizem. Sandra

Rocha permite, gentilmente, que

se entre neste universo privado,

mas com uma reserva silenciosa.

Não há imagens do exterior da

casa, de lugares precisos ou

facilmente identificáveis. Não há

nomes.

Que entra em Anticylone

vagueia, assim, entre espaços e

corpos, tacteando emoções e

gestos até que o doméstico se

confunde com o onírico, o

quotidiano com o fantástico: no

mesmo mundo, participam o

nevoeiro que vela um rosto e um

aniversário que aguarda a

celebração numa mesa enfeitada.

A misteriosa rapariga de vestido

branco e a mulher que lê,

conformada, uma revista. Não se

encontram sinais de espaços

urbanos, da cidade, e rareiam os

da tecnologia. A influência do

anticiclone dos Açores, a

personagem invisível, mas

omnipresente, das narrativas,

surge nas cores, nas sombras, nas

paisagens. As imagens não se vêem

apenas, experimentam-se como

Flannery O’Connor foi uma ardente devota, mas a forma como o catolicismo se revela nos seus livros tem sido alvo de especulação

Page 29: Ipsilon-20150116

ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015 | 29

atmosferas: Anticyclone é um

objecto em que o vento e a água

parecem tocar a pele do leitor.

À medida que se caminha para o

fim, vão diminuindo os retratos de

família e os instantâneos do dia-a-

dia em favor das imagens da

natureza representada no mar. É

este que, a princípio distante e

calmo, vai fazendo notar a sua

presença, progressivamente mais

violenta a ponto de, nas últimas

páginas, se lançar sobre as rochas,

“fustigando” a aparente indiferença

das personagens femininas.

“Aparente”, sublinhe-se. No olhar

que devolvem a Sandra Rocha ou

no peso, na densidade dos seus

corpos (de costas viradas para o

leitor, de frente para o horizonte no

último terço do livro), estão uma

serenidade e uma solitude

conscientes da passagem do tempo.

Escreve a artista que ao olhar para

aquelas imagens vê o seu passado,

presente e futuro. Ao leitor não

será difícil colocar-se no mesmo

lugar. Naqueles rostos e corpos

persistem, apesar da hostilidade

indomável do mundo exterior,

tantas desilusões quantas vontades.

É esse o seu e o nosso consolo.

(Nota: Anticyclone pode ser

adquirido em www.sandrarocha.pt

e será apresentado em Bordéus no

mês de Fevereiro, acompanhado

de uma exposição no espaço ACT

Image. Refira-se também que

Sandra Rocha está a preparar um

novo livro a partir de um projecto

realizado em Junho de 2014,

durante uma residência na

Finlândia, e em 2015 começará a

trabalhar numa monografia sobre a

ilha do Pico).

Leia excertos dos livros na edição do ípsilon para tablets

A personagem invisível, mas omnipresente, das narrativas de Sandra Rocha surge nas cores, nas sombras, nas paisagens: as imagens não se vêem apenas, experimentam-se como atmosferas Ci

nem

a Estreiam

A teoria do big bangUma interpretação soberba

de Benedict Cumberbatch

numa meditação sobre a

diferença disfarçada de

thriller de guerra. Jorge

Mourinha

O Jogo da Imitação

The Imitation Game

De Morten Tyldum Com Benedict Cumberbatch, Keira

Knightley, Matthew Goode

mmmmm

Pode parecer algo “insensível”

evocar a popular série de comédia

A Teoria do Big Bang para falar de

Alan Turing, matemático inglês

que lançou as bases dos

computadores modernos e teve

um papel fulcral na decifração dos

códigos militares alemães durante

a II Guerra Mundial. Não é, por

uma simples razão: a própria

estratégia do argumentista Graham

Moore e do realizador Morten

Tyldum em O Jogo da Imitação é

introduzir a personagem ao

espectador (numa cena notável

que brinca com o conceito das

“entrevistas de emprego”) como

um idiot savant que parece existir

numa realidade alternativa, um

génio matemático incapaz de jogar

o jogo social. Esse início algo

brusco e picaresco remete

invariavelmente para Sheldon

Cooper, o físico imaturo da Teoria

do Big Bang – e é essencial para

estabelecer a base do que se

seguirá. O filme é a história da

“aprendizagem” que Turing faz da

necessidade de se integrar na

estrutura social de uma Inglaterra

classista e rígida, mas também a

história de um homem condenado

pela sua genialidade que acabou

por se suicidar em 1954 sem que a

importância do seu trabalho fosse

reconhecida em vida.

O Jogo da Imitação esconde essa

dimensão trágica por trás de uma

narrativa clássica de thriller de

guerra, ligada à corrida contra o

tempo da equipa de criptógrafos

recrutada pelo governo inglês para

descodificar as comunicações

militares alemãs. Por trás desse

problema matemático, é uma

metáfora da própria humanidade

de Turing que se gere: o título

refere-se ao célebre “teste de

Turing” onde um pequeno número

de perguntas seria suficiente para

identificar e diferenciar uma

inteligência humana de uma

inteligência artificial. Mas esse “jogo

da imitação” é também o jogo da

identificação e diferenciação da

“normalidade” e do “desvio”.

Reflecte a tragédia de Turing como

um visionário desfasado do seu

tempo, uma personalidade quase

autista que, apesar dos seus

melhores esforços, nunca

conseguiu integrar-se

completamente na sociedade rígida

da Inglaterra pós-imperial. E o filme

ganha-se precisamente na elegância

com que Morten Tyldum tece o seu

retrato de Turing como prisioneiro

do seu tempo histórico mais do que

como símbolo do que quer que seja.

Para isso contribui sobremaneira

a interpretação espantosa de

Benedict Cumberbatch, que

transforma o cientista quase sem

esforço de proto-Sheldon Cooper

em figura trágica, que transporta às

costas um filme mais inteligente do

que a aparência de “filme de época

britânico” daria a entender (e é

uma produção americana dirigida

por um cineasta norueguês). E é a

maneira certa de falar de Alan

Turing: como uma pessoa

demasiado complexa para um

mundo que não aceitava essa

complexidade.

A mulher que não sabia o que queriaUma comédia atenta

e simpática sobre uma

quase-trintona em fuga para

a frente. Jorge Mourinha

Encalhados

Laggies

De Lynn Shelton Com Keira Knightley, Chloë Grace

Moretz, Sam Rockwell

mmmmm

De Lynn Shelton recordamos

com satisfação duas boas

comédias independentes em

modo semi-improvisado sobre

os quiproquos emocionais dos

trintões contemporâneos,

Humpday/Deu para o Torto

(2009) e, sobretudo, Entre

Irmãs (2011). Encalhados, o

novo filme da realizadora

americana, mais polido e

controlado, tem qualquer coisa

de “exame de acesso” ao

patamar superior do “filme de

estúdio”, sem por isso perder a

tendência atenta e

observacional do seu cinema.

A sua heroína é Megan, uma

quase-trintona que não sabe

o que fazer da vida mas não se

quer comprometer nem

conformar, e que se vê

encostada à parede pelo

pedido de casamento do seu

namorado de sempre.

Encalhados é o retrato da

“fuga para a frente” de

Megan, procurando esconder-se

da idade adulta que lhe assobia

aos calcanhares junto de uma

amiga adolescente, e atrasar o

mais possível a decisão que tem

de tomar. O tema é a

medida de Shelton e do seu

humor suave e

compreensivo, mas as arestas

mais limadas e o acabamento

mais envernizado surgem às

custas de alguma

espontaneidade e alguma

energia. Ainda assim, a

realizadora confirma-se uma

excelente directora de actores

– Keira Knightley vai

lindamente e nem nos

lembramos dela como

presença regular em filmes

de época ingleses – e Encalhados

tem uma vibração humana

O Jogo da Imitação: mais inteligente do que a aparência de “filme de época britânico” dá a entender

Page 30: Ipsilon-20150116

30 | ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015

que costuma estar ausente

da maioria das comédias

americanas

contemporâneas.

A menina e o criado

Miss Julie

De Liv UllmannCom Jessica Chastain, Colin Farrell,

Samantha Morton

mmmmm

A influência de Strindberg paira

sobre uma grande porção da

dramaturgia cinematográfica

sueca, sendo a obra de Ingmar

Bergman o exemplo mais evidente

e, provavelmente, máximo. Liv

Ullmann, que vem, de corpo e

alma, de dentro do universo

bergmaniano, atira-se aqui a uma

das peças mais célebres de

Strindberg, a Menina Júlia, já

várias vezes passada a filme,

nalguns casos com resultados

extraordinários, como a versão de

1951 assinada por Alf Sjöberg (de

resto, um dos mestres de

Bergman). Se insistimos na ligação

de Ullmann ao mundo

bergmaniano e ao que ele

representa, ligação reforçada

ainda pelo facto de o seu filme

anterior como realizadora

(Infidelidade, de 2000) ter sido

feito com base num argumento

original de Ingmar, é porque nada

nos prepara para a enorme

decepção que é esta Miss Julie,

totalmente instalada no lado

errado do “teatro filmado”.

Transpondo a acção para a

Irlanda, pormenor que acaba por

ser irrelevante e justificar apenas o

inglês falado pelos seus

protagonistas “internacionais”

( Jessica Chastain, Colin Farrell e

Samantha Morton), Ullmann

aborda a peça com uma encenação

austera, bem longe das liberdades

tomadas por exemplo nessa versão

Sjöberg que mencionámos.

Estamos quase sempre em

interiores, as personagens

presentes são mesmo só aquelas

três (a Menina Júlia de Chastain, o

criado de Colin Farrell, a sofrida

cozinheira de Morton), e o filme

avança em longas cenas de diálogo

que nunca se pretendem descolar

de uma respiração propriamente

“teatral”. Mas o que no papel era

“cru”, e bem em sintonia com a

gélida observação das relações de

classe curto-circuitadas pelo

desejo “inter-classista”, acaba por

resultar demasiado limpo, para

não dizer demasiado mole - ver a

escala de planos, por exemplo,

previsível, académica, bastantes

vezes dependente de uma lógica

de campos-contracampos sem

surpresa alguma, próxima do

“tele-teatro” mais desenxabido.

Falta “grão” ao filme - aquele

“grão” que fez da “redução ao

teatro” um dos pilares de algumas

correntes da “modernidade”

cinematográfica - e fora alguns

momentos bem resolvidos (como

as elipses que dão a noite que a

Menina e o criado passam juntos)

resulta tudo tão morno

que depressa se passa da

falta de entusiasmo ao

aborrecimento. Luís Miguel

Oliveira

Continuam

Adeus à Linguagem

Adieu au langage

De Jean-Luc Godard Com Héloïse Godet, Kamal Abdelli,

Richard Chevalier,

mmmmm

Nos idos de 1959, Godard foi um

dos cineastas que “inventou” o

cinema moderno. Meio século

depois, continua a forçar as suas

fronteiras como cineastas com um

terço da sua idade não são capazes

de fazer. Adeus à Linguagem

parece querer apagar a luz e dizer

“quem vier depois que feche a

porta”, mas também dizer que há

outras portas por abrir para as

quais deveríamos olhar.

Desintegrado, fragmentado,

indefinível, indescritível, Adeus à

Linguagem é, nas próprias palavras

de Godard, um “ensaio de

investigação cinematográfica” que

prova como o cineasta-iconoclasta

continua a explorar um território

só seu, pessoal, intransmissível,

um espaço de experimentação

formal e reflexão densa sobre o

poder, as possibilidades e as

armadilhas da imagem, que usa o

3D como nenhum outro cineasta

alguma vez o usou. Não é o melhor

Godard desta “fase ensaística”

iniciada na década de 1980 (que,

para nós, é o sublime Elogio do

Amor), mas mesmo um Godard

menor (o que também não é o

caso) tem mais cinema lá dentro

que todos aqueles que invocam o

seu nome. J.M.

Sono de Inverno

Kis Uykusu

De Nuri Bilge Ceylan, Com Haluk Bilginer, Melisa Sözen,

Demet Akbag

mmmmm

Há todo um filme a percorrer – e

quase três horas e meia dele – para

chegar ao que podia ter sido. Até lá

desenham-se, com redundância,

círculos à volta de um objectivo:

destruir as virtudes intelectuais e

morais de um intelectual – cenário:

a Anatólia coberta de neve. Essa

estratégia cobre-se de outra, e

também com violência: com este

filme, Nuri Bilge Ceylan parece

interromper a incontinência

formalista dos seus últimos

trabalhos, apoiando-se desta vez

em diálogos, que percorrem a

moral, a religião e todo o mundo,

sendo através das palavras que as

personagens se constroem e

destroem. Se pensarmos que a

personagem principal é um

homem vaidoso, dominante e

capaz de oprimir com a elegância

(personagem para o qual o

realizador olha, aliás, com

respeito e gravidade),

podemos ouvir aqui o embate

surdo da auto-reflexão, algo que se

ouvia já em outros filmes do

realizador, como em Climas, em

que Ceylan e a mulher

interpretavam um casal. Isso vibra.

Mas o dispositivo de diálogos e

situações é utilizado aqui da

mesma forma incontinente como,

antes, Ceylan utilizava os

travellings. O realizador de Clouds

of May (1999) e Longínquo (2002)

era, talvez, um cineasta mais

humilde e mais justo para com os

seus limites do que o de Sono de

Inverno. Limites que ele acreditou,

talvez por influência dos rituais dos

festivais, que se alargaram:

decididamente passou a querer

inscrever o seu nome numa

espécie de solenidade prêt-a-porter

do cinema de autor. Era uma vez na

Anatólia, por isso, acabava por ser

uma involuntária demonstração da

impossibilidade de ser Theo

Angelopoulos; aqui mostra-se que

não é possível ser Ingmar Bergman

apesar de Sono de Inverno ser,

fundamentalmente, um conjunto

de cenas de uma vida conjugal. Um

movimento de câmara – a

sequência final – a afastar-se de

uma casa, o céu a desfazer-se em

neve, lá dentro um casal... era isto.

não era? Vasco Câmara

Birdman ou (a Inesperada

Virtude da Ignorância)

Birdman or (the Unexpected

Virtue of Ignorance)

De Alejandro González IñárrituCom Michael Keaton, Zach

Galifianakis, Edward Norton

mmmmm

Eis Riggan Thomson, estrela em

Hollywood nos filmes da série

Birdman. Um dia essa estrela

resolve tentar transcender-se e

ganhar uma diferente legitimidade

montando uma peça de Raymond

Carver e actuando na Broadway. E

com ele e com o dilema desse

actor em busca de autenticidade

Iñárritu passa da montagem

paralela e do ponto de vista de

várias câmaras, as suas armas

anteriores, para um fluxo

contínuo alimentado a planos

sequências, como se tudo não

pudesse ser se não a verdade

captada e nada mais do que essa

verdade. A verdade de um teatro

existencial, em suma: quando a

auto-estima se incha no

Facebook e no Twitter, mas

não se levanta do chão sem a

ficção das redes sociais, quando

os sentimentos e o desejo se

falsificam ou lutam para soarem a

verdade (como aquele actor,

interpretado por Edward Norton,

que só consegue evidenciar a

tusa junto da amante quando

ambos estão em palco). Não é

caso para dizer que Iñárritu

procura, como Riggan Thomson,

ser outra personagem, diferente

da do manipulador de destinos e

de epifanias que costuma ser.

Fiquemo-nos por aqui: há pelo

menos a vibração de uma dúvida a

interagir com os seus

procedimentos habituais e a

vontade de criar para os actores

qualquer coisa próxima de um

microcosmo e das suas “verdades”

e nevroses domésticas mas

essenciais. Talvez não seja por

acaso, e por isso não tão absurdo

assim, que nos tenhamos

lembrado várias vezes ao longo de

Birdman de Noite de Estreia, filme

de John Cassavetes. Mas é também

essa memória que repõe a verdade

no que toca a Iñárritu e à suposta

audácia do seu passo: Cassavetes

chegou lá, ao centro da dor, da

angústia, sem qualquer proeza, a

não ser a magnificência humana

com que trabalhava. O que é

contraditório em Birdman, cujo

material de base sublinha clichés

sobre o logro da fama, é o facto de

o que nele se evidencia ser sempre

o processo para conduzir a um

efeito: o plano sequência e a ilusão

de um único movimento de

câmara, tudo empurrado por um

omnipresente solo de bateria que

parece gritar a coisa; a

performance dos actores, que não

é possível ignorar (Keaton,

Norton, Emma Stone, Naomi

Watts e Zach Galifianakis), mas

Miss Julie: do lado errado do “teatro filmado”

Não é o melhor Godard da “fase ensaística” iniciada nos 80’s, mas tem mais cinema lá dentro que todos os que invocam o seu nome

Page 31: Ipsilon-20150116

ípsilon | Sexta-feira 16 Janeiro 2015 | 31

que nunca conseguem descolar da

sensação de exibição e nada

podem, mesmo que o quisessem,

contra a “máquina” que os

empurra.

Uma Esperança de Liberdade

Rosewater

De Jon StewartCom Gael García Bernal, Kim

Bodnia, Haluk Bilginer

mmmmm

Jon Stewart, ou o Daily Show que

ele conduz, é das poucas coisas na

televisão que não dão vontade de

desligar o aparelho. Toda a

simpatia prévia para este seu

ensaio como realizador, até por

questões de contexto político, as

mesmas que no seu programa

Stewart tenta, por vezes com

brilhantismo, desmontar, virando

do avesso os efeitos mais óbvios

da langue de bois política. Mas

depois o filme, Rosewater, sobre o

vespeiro iraniano, não é bem isso,

antes um objecto certinho e

escorreito, não particularmente

mordaz, que privilegia uma noção

de decência (moral e intelectual)

digna daquele “olhar americano”

tão bem corporizado na tradição

da Hollywood clássica, mas a que

falta quase tudo o resto, rasgo ou

energia. Até Clooney - que como

realizador talvez seja quem tem

estado mais próximo da

sensibilidade de Stewart - já foi

mais feliz a jogar com as mesmas

regras. L.M.O.

Invencível

Unbroken

De Angelina Jolie Com Jack O’Connell, Domhnall

Gleeson, Miyavi

mmmmm

No primeiro filme de Jolie como

realizadora, Na Terra de Sangue e

Mel, ambientado na guerra

Jugoslava dos noventas, havia uma

certa “irregularidade”, uma fuga a

códigos e cânones da produção

hollywoodiana corrente, que

sugeria uma certa teimosia, uma

certa idiossincrasia. Ao segundo

fílme isso começa-se a ver menos:

ainda reconstituição e ainda

guerra (a campanha americana no

Pacífico na II Guerra), tudo está

nos conformes, numa mistura de

eficácia e indiferença que nada

fazem para que o filme se distinga,

nem para que seja “importante”

que a realizadora seja Jolie ou

outra pessoa qualquer. Grandes

vedetas que passam à realização

para fazerem filmes sem estilo

próprio já houve várias - tem

sempre qualquer coisa de

simpático (uma espécie de

“fantasia do anonimato”) mas não

deixa por isso de ser

decepcionante. L.M.O.

Foxcatcher

De Bennett MillerCom Stece Carrell, Channing Tatum

e Mark Ruffalo

mmmmm

Bennett Miller é um ilustrador

simpático - veja-se o seu Capote

- mas precisa, como com o Philip

Seymour Hoffman desse filme,

que lhe tragam personagens

pré-fabricadas, ou já prontas a

usar. Apesar do ecletismo do

elenco (Steve Carell, Channing

Tatum, Mark Ruffalo, tudo actores

de registos habitualmente

dispares), ou justamente por isso,

em Foxcatcher vê-se mais

“interpretação”, mais

performance, do que personagens,

e mais uma espécie de

embevecimento perante os

actores do que vontade de

imprimir uma direcção

narrativa forte, ou um olhar

que enquadre e enforme os

muitos ressentimentos e

recalcamentos que ligam as

personagens umas às outras.

O argumento indicia virtudes,

pelo que é daqueles casos que

pareciam pedir mais realizador e

menos ilustração. L.M.O.

Pasolini

De Abel Ferrara Com Willem Dafoe, Ninetto Davoli,

Riccardo Scamarcio

mmmmm

No Festival de Cannes, em Maio

passado, quando apresentou

Welcome in New York, sobre

Dominique Strauss-Khan,

Ferrara aproximara DSK de

Pasolini, a personagem do seu

filme seguinte, porque em

ambos a solidão era em si

qualquer coisa de herético.

É verdade que em Welcome in

New York Ferrara tinha à

disposição o corpo de

Depardieu, que em si mesmo é

uma afirmação escandalosa, e

com esse escândalo uivante a

personagem de D.S.K.

aparecia como uma figura do

universo do cineasta, como

se a ele pertencesse antes do

mais. Em Pasolini Willem Dafoe é

um impressionante invólucro

para o pensamento de Pier Paolo.

Ferrara sintetiza Pasolini no

seu último dia de vida, depois

de Pier Paolo ter regressado de

Estocolmo onde se encontrou

com Ingmar Bergman. O dia em

que, antes de engatar Pelosi num

bar de Roma e de irem os

dois jantar a um restaurante

que Pasolini frequentava,

deu aquela que seria a sua

última entrevista, a Furio

Colombo. Aí sintetizou a sua

análise sobre o novo totalitarismo

emergente, o consumismo, e

sobre a destruição do que era

ancestral: o humano. Essa

entrevista, que Dafoe e Ferrara

recriam de forma grave, solene,

antecipação do futuro que é hoje,

é a peça central do “corpo de

trabalho” que existe em Pasolini.

Para além disso, Ferrara cria

imagens para Petróleo, o

romance póstumo do escritor,

e imagina o que poderia ter

sido o filme que o cineasta

deixou por fazer, Porno-Teo-

Kolossal, que seria com Ninetto

Davoli e Eduardo De Filippo.

Não um filme sobre Pasolini,

mas um filme para Pasolini?

Tal como um fã à espera de

um sinal de aprovação da

figura idolatrada, Ferrara dá a

ouvir a música que Pasolini

gostava de ouvir (Maria Callas, é

claro). Mostra-se cálido ao

abeirar-se de uma figura decisiva

no mundo de Pier Paolo, a mãe

(interpretada por Adriana Asti,

que foi actriz em Accatone, o que

é um suplemento de emoção na

homenagem). É uma tentativa

de ensaio, palavra grande para

coisa tímida, mas é respeitosa,

sem violência ou escândalo: por

ela Ferrara atreve-se, e falha,

em caminhos fora dos seus,

como os da fábula alegórica - a

imaginação dos bacanais de

Porno-Teo-Kolossal não será

nunca aquilo que

recordaremos do cinema de

Ferrara. Dafoe fala às vezes

italiano mas sobretudo em

inglês, como se o realizador

quisesse reclamar a coisa

amada para o seu cinema. Em

Welcome in New York não

precisava de o fazer,

Dominique Strauss Khan

emergia como invenção

escandalosa de Abel

Ferrara. V.C.

Veja os trailers das estreias na edição do ípsilon para tablets

AS ESTRELAS DO PÚBLICO

JorgeMourinha

Luís M. Oliveira

Vasco Câmara

a Mau mmmmm Medíocre mmmmm Razoável mmmmm Bom mmmmm Muito Bom mmmmm Excelente

Adeus à Linguagem mmmmm mmmmm mmmmm

Birdman mmmmm – mmmmm

Encalhados mmmmm – –Foxcatcher mmmmm mmmmm mmmmm

O Jogo da Imitação mmmmm – –Invencível mmmmm mmmmm –Miss Julie – mmmmm –Mr Turner mmmmm mmmmm mmmmm

Sono de Inverno mmmmm – mmmmm

Uma Esperança de Liberdade mmmmm mmmmm –

Uma Esperança de Liberdade

Invencível: decepcionante

Pasolini: tentativa de ensaio, palavra grande para coisa tão tímida, sem violência ou escândalo

Page 32: Ipsilon-20150116

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FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN

musica.gulbenkian.ptmecenasconcertos de domingo

mecenasciclo piano

mecenascoro gulbenkian

mecenasciclo grandes intérpretes

17 Janeirosábado, 18:00h

18 Janeirodomingo, 19:00h

A viúva alegre

Cuarteto Casals

Andrew Davis Susan Stroman

lehár

mozart

21 + 22 Janeiroquarta, 21:00h / quinta, 21:00h

Cappella Andrea BarcaAndrás Schiffschubertmozartdvorákbeethoven

a. s

chif

f ©

ph

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raph

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risk

a ke

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