formação acadêmica do urbanista

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1 Por uma Micropolítica na Formação Acadêmica do Urbanista Saber, Poder e Subjetivação e o novo Paradigma Ético- Estético. Discursar sobre a formação acadêmica do Urbanista na atualidade, tema a ser debatido neste Seminário, constitui uma oportuna reflexão frente ao acelerado processo de urbanização no planeta e, particularmente, em nosso país, tema que envolve diferentes abordagens, ou seja, um conjunto de questões e problemas. Inicialmente, tratarei da formação acadêmica do ponto de vista estritamente conceitual, isto é, situando a questão no plano conceitual, filosófico e, para tanto, utilizarei a Lógica da Diferença, também denominada Lógica da Multiplicidade, enquanto forma contemporânea de pensar que equivale a entender a formação acadêmica do urbanista em nível de uma micropolítica sob a égide do novo paradigma ético-estético. Três eixos orientarão esta apresentação: A tríade conceitual Saber-Poder-Subjetivação. As três formas de pensar e criar: Filosofia, Ciência e Arte. Experiência empírica, Forma de pensar e visão de mundo, enquanto Ética no exercício de uma micropolítica. De início, cumpre-me dizer que o tema proposto será tratado no âmbito de uma diferente forma de pensar, adotando para esta análise a Lógica da Diferença e seu repertório conceitual, o que equivale a introduzir e atualizar discursivamente a questão sugerida, ou seja, a formação acadêmica do Urbanista, proplematizando-a enquanto micropolítica que se insere na forma de pensar rizomática, a qual, muito se diferencia da forma de pensar herdada da modernidade: a Dialética e sua lógica binária. E ainda, caracterizar a diferença na formação acadêmica do Urbanista entre as Sociedades Disciplinares do capitalismo industrial e as “Sociedades de Controle” do capitalismo pós- industrial, também denominado capitalismo informacional. Vale salientar que a Macropolítica não é uma redução dimensional, uma miniaturização em escala da Macropolítica, a qual se relaciona diretamente como o Mundo da representação (universo macro, molar), do Real e do Possível. A Micropolítica é de diferente natureza, ela pressupõe a complexidade que emerge como

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Por uma Micropolítica na Formação Acadêmica do Urbanista Saber, Poder e Subjetivação e o novo Paradigma Ético- Estético. Discursar sobre a formação acadêmica do Urbanista na atualidade, tema a ser debatido neste Seminário, constitui uma oportuna reflexão frente ao acelerado processo de urbanização no planeta e, particularmente, em nosso país, tema que envolve diferentes abordagens, ou seja, um conjunto de questões e problemas. Inicialmente, tratarei da formação acadêmica do ponto de vista estritamente conceitual, isto é, situando a questão no plano conceitual, filosófico e, para tanto, utilizarei a Lógica da Diferença, também denominada Lógica da Multiplicidade, enquanto forma contemporânea de pensar que equivale a entender a formação acadêmica do urbanista em nível de uma micropolítica sob a égide do novo paradigma ético-estético. Três eixos orientarão esta apresentação:

• A tríade conceitual Saber-Poder-Subjetivação. • As três formas de pensar e criar: Filosofia, Ciência e Arte. • Experiência empírica, Forma de pensar e visão de mundo,

enquanto Ética no exercício de uma micropolítica. De início, cumpre-me dizer que o tema proposto será tratado no âmbito de uma diferente forma de pensar, adotando para esta análise a Lógica da Diferença e seu repertório conceitual, o que equivale a introduzir e atualizar discursivamente a questão sugerida, ou seja, a formação acadêmica do Urbanista, proplematizando-a enquanto micropolítica que se insere na forma de pensar rizomática, a qual, muito se diferencia da forma de pensar herdada da modernidade: a Dialética e sua lógica binária. E ainda, caracterizar a diferença na formação acadêmica do Urbanista entre as Sociedades Disciplinares do capitalismo industrial e as “Sociedades de Controle” do capitalismo pós-industrial, também denominado capitalismo informacional. Vale salientar que a Macropolítica não é uma redução dimensional, uma miniaturização em escala da Macropolítica, a qual se relaciona diretamente como o Mundo da representação (universo macro, molar), do Real e do Possível. A Micropolítica é de diferente natureza, ela pressupõe a complexidade que emerge como

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veremos a seguir, dos processos construtivos de Subjetivação individual e/ou coletiva. O Urbanismo enquanto Saber é uma estratificação histórica, pois, trata-se de um singular Estrato antropomórfico enquanto acumulação, sedimentação de saberes (conhecimentos) e que possuem grande mobilidade e transformação ao longo do tempo. Qualquer Estrato que se considera seja físico-químico, orgânico ou antropomórfico (humano), pressupõe a relação indistinta entre Forma e Substância, ou seja, Código e Meio. Os estratos possuem uma dupla articulação: Formas de expressão e Formas de conteúdo, ou seja, o que se diz o que se enuncia discursivamente e o que se vê. No caso do saber urbanístico, por exemplo, os pressupostos teóricos (ampla bibliografia existente em permanente atualização discursiva), e o que vê através de intervenções concretas nas cidades existentes ou em cidades novas, ou seja, “As palavras e as coisas” (Foucault). Dupla articulação esta que se equivalente aos dos pensadores Deleuze/Guattari: Agenciamentos coletivos de enunciação e Agenciamentos maquínicos, ou seja, o que se enuncia (regime de signos, sistemas semióticos) e o que se faz (ações e paixões). Todavia, essas formas ou agenciamentos, não se identificam, são heterogêneos, são diferentes O que se diz ou o que se enuncia, não habita no que se vê ou no que se faz concretamente. Elas apenas se pressupõem reciprocamente. Para exemplificar, tomemos em um contexto urbano uma edificação, por exemplo, uma prisão. A forma de expressão é o que se diz sobre a delinqüência, ou seja, o código penal, as leis, regulamentos, normas, etc. A forma de conteúdo é a própria edificação/prisão, o que se vê. A substância destas formas: os delinqüentes. O que se diz sobre eles nos códigos, na lei, não se identifica, não é a mesma coisa do que se vê a prisão como arquitetura, construção, formas que apenas se pressupõem reciprocamente, pois, são formas e/ou agenciamentos de natureza diferente. O urbanismo enquanto saber (conhecimento) tem em sua história acumulado multiplicidade e heterogeneidade de formas de expressão e de conteúdo, enquanto agenciamentos coletivos de enunciação e que se configuram em extensa produção bibliográfica, e isso, em correspondência com uma multiplicidade e heterogeneidade de experiências urbanas empíricas. De um lado, atualizações discursivas de conceitos em teorias, enunciados, proposições, lógicas; do outro, realizações práticas em contextos

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urbanos existentes e/ou em cidades novas. Vale salientar que o Saber, quando considerado em sua função do que se enuncia e do que se faz coletivamente, não atinge o limiar epistemológico da condição de ciência, ou seja, não entra no regime da relação verdadeiro/falso. Portanto, como afirma Foucault, o Saber não é Ciência. Contudo, vale ressaltar que não existe Saber enquanto variável histórica independente de outra variável, também, histórica: o Poder. Trata-se de uma relação indissociável e presente no ditado popular: “quem sabe pode”. Por sua vez, a relação Saber/Poder, enquanto rede aberta, pressupondo uma outra e indissociável variável: a Subjetivação. Portanto a relação existente e indissociável entre Saber, Poder e Subjetivação, constitui o eixo maior desta apresentação... Para Foucault, o Poder é uma relação de forças. Toda relação de forças é uma “Relação de Poder”. O Poder não é uma Forma, por exemplo, a forma Estado. A força, enquanto conceito em sua atuação, nunca está no singular, e tem com característica essencial estar em relação com outras forças. A relação de forças ultrapassa a violência e não pode se definida por ela, pois, a violência afeta corpos, objetos ou seres determinados, cuja forma ela destrói ou altera. O poder é: “Uma ação sobre ação, (...) um conjunto de ações sobre ações possíveis”. O poder possui diferentes características: incitar, induzir, desviar, tornar fácil ou difícil, ampliar ou limitar. E mais ainda: dividir no espaço (práticas específicas de internar, enquadrar, ordenar, colocar em série); ordenar no tempo (subdividir o tempo, programar o ato, decompor o gesto; compor no espaço-tempo todas as maneiras de constituir forças produtivas). Dessas características, Foucault conclui: o poder não é essencialmente repressivo, desde quando incita, suscita e produz. Ele se exerce antes de se possuir, entretanto, só se possui sob um determinado Dispositivo. Ontem: sob a égide do Estado Nação e Previdenciário: a escola, a prisão, a fabrica, o hospital, entre outros dispositivos enquanto espaços confinados das Sociedades Disciplinares, dispositivos estes que ainda perduram. Hoje, nas Sociedades de Controle, os dispositivos são de outra natureza e se realizam em espaços abertos, particularmente, através dos

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processos midiáticos da informação e comunicação que resultaram dos avanços tecnológicos. O poder enquanto rede de micropoderes passa pelos dominados tanto quanto pelos dominantes. Em relação ao Poder sempre emergem as seguintes perguntas: o que é o poder? De onde vem? Como se exerce? Para Foucault, o exercício de poder aparece como afeto, ou seja, poder de afetar outras forças (com as quais ele entra em relação) e, ao mesmo tempo, de ser afetado. Incitar, suscitar, produzir e que são afetos ativos e produzem efeitos úteis, não esquecendo, porém, que toda força afetada não deixa de ter uma capacidade de resistência, de também afetar (força reativa). O poder de ser afetado é como uma “matéria” da força e, o poder de afetar é como uma função da força, uma física da ação abstrata, pois tratá-se de uma pura matéria não formada, i indissociável das substâncias formadas. Entre as relações de forças que constituem o poder e as relações de formas que constituem o saber (conteúdo e expressão), ou seja, Poder e o Saber são de natureza heterogênea, todavia indissociáveis, embora não se identificam e apenas se pressupõem reciprocamente e estabelecem capturas mútuas e primado de um sobre o outro. Considerando que o poder não passa por formas, mas, apenas por forças e o saber diz respeito a matérias formadas, formas de expressão e de conteúdo (o que se vê e o que se diz, Luz e Linguagem), o Poder, ao contrário, é diagramático, mobiliza matérias e funções não estratificadas e procede através de um segmentaridade flexível, pois ele não passa por formas, mas por pontos, pontos singulares que marcam, a cada vez, a aplicação de uma força, a ação ou reação de uma força em relação às outras, no sentido de um afeto (afetar), um poder sempre local, instável e difuso. As relações de poder não emanam de um ponto central, de um ponto único de soberania, mas no interior de um campo de forças, de uma rede de poderes enquanto inflexões, retrocessos, retornos, giros, mudança de direção, resistências, por isso que essas relações não são localizadas numa instância ou outra. Neste sentido, elas constituem uma Estratégia, enquanto exercício do não estratificado, pois, “as estratégias são anônimas, quase mudas e cegas, pois escapam às formas estáveis do visível e do enunciável”. Justamente, é a instabilidade das relações de poder que define um

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meio estratégico ou não estratificado, e por isso que para Foucault o poder remete a uma “Microfísica”. Resumindo, pode-se afirmar que “o poder é um exercício e o saber um regulamento”. Complementando, diria que o poder é um exercício invisível e o saber um regulamento visível. A relação Saber/Poder constitui o “Fora do mundo da representação, do que se convencionou denominar de Objetividade, normalmente, socialmente se exige Ser objetivo, a Subjetividade não entra em cena, ela fica sempre nos bastidores”. Vale observar que quando um cidadão qualquer enquanto indivíduo se encontra inserido em uma formação social, não escapa ao dobramento (à “Dobra” do “Fora” enquanto relação Saber/Poder), todavia, a dimensão da subjetividade que deriva do poder e do saber, não depende deles, pois, individualmente, trata-se de uma relação consigo, uma nova dimensão irredutível à relação saber/poder, mas se fabrica em presença dela. Considerando que o Poder ao tomar com objetivo a vida, revela, suscita uma vida que resiste ao poder, o que significa que a força do lado de fora não para de subverter, de derrubar dispositivos e diagramas de forças “ocultas”. O lado de fora não é um limite fixo, mas uma matéria móvel, animada de movimento peristáltico, de pregas e dobras que constituem o lado de dentro, ou seja, nada além do lado de fora, mas justamente o lado de dentro do lado de fora. Se o lado de fora é a força em relação com outras forças, espontaneidade de afetar, e receptividade de ser afetada, o lado de dentro constitui uma relação diferente, pois, trata-se de forças consigo, um poder de se afetar a si mesmo, um afeto de si por si, enquanto construção da Subjetividade. Questão essa que leva à seguinte pergunta: como dominar os outros se não existe um domínio de si mesmo? Longe de ignorarem a interioridade, o dentro, a individualidade, a subjetividade, os gregos inventaram a “Estética da existência”, a relação consigo, no sentido da regra facultativa do “homem livre”. Disto decorre a idéia fundamental de Foucault: a subjetividade que deriva da dobra do fora (saberes/poderes) na construção do dentro, não depende deles no sentido de uma mera imposição, aceitação, mas também por resistência. Basicamente, podemos registrar quatro (4) dobras de subjetividade.

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A primeira dobra depende da parte material de nós mesmos, o corpo e seus prazeres para os gregos, para os cristãos a carne e seus desejos, ou seja, o organismo como um dos mais imanentes elementos de estratificação dos indivíduos. A segunda dobra diz respeito às relações de forças (o poder) em sua atuação mais presente, pois, é sempre segundo uma regra singular que a relação de forças é dobrada para tornar-se relação consigo, podendo gerar tanto uma aceitação, consenso, ou então, uma atitude de resistência, de dissenso. A terceira dobra relaciona-se com o saber enquanto regime de pressuposição da verdade, uma ligação do que é verdadeiro com o nosso ser, dobra historicamente bastante mutável enquanto subjetivação do saber em virtude da multiplicidade e heterogeneidade deles. Embora, como afirma Foucault, o saber não é ciência, não passa necessariamente pelo filtro epistemológico. Por fim, a quarta dobra é aquela do próprio lado de fora: a interioridade da espera. È dela que o sujeito de diversos modos; pressupõe ou não a imortalidade ou a eternidade, a salvação, a liberdade, a morte, o desprendimento. As quatro dobras exemplificam as quatro causas da subjetividade: final, a quarta; formal a terceira; eficiente, segunda; e material, a primeira. Essas dobras são extremamente variáveis e ocorrem em ritmos diferentes e essas variações, mutações, constituem modos irredutíveis de subjetividade. Todavia, elas operam interiorizando códigos e regras que emanam dos saberes e poderes dobrados, mas não sem que outras dobras ocorram e ajudam a criar resistências aos poderes dominantes que se dobram na interioridade individual e/ou coletiva. A luta que se anuncia, hoje, passa por resistir às duas formas de sujeição. A primeira consiste em nos individualizar de acordo com as exigências do poder dominante; a segunda, em ligar cada indivíduo a uma identidade fixa, conhecida, configurada uma vez por todas. Então, a luta interna da subjetividade se apresenta como direito a diferença, Esse discurso sobre o conceito de subjetividade vem a propósito de sua repercussão no entendimento do universo de saberes e poderes e que tem interfaces com as práticas do Planejamento

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Urbano, do Urbanismo, da Arquitetura e dos saberes em geral. Se de um lado os gregos inventaram a “Estética da Existência, e do outro, Espinosa atualizou discursivamente o conceito de Ética, dando-lhe uma nova e criativa dimensão, resta saber como atualmente, estes dois conceitos se relacionam”. E isso, em decorrência do processo da banalização da estetização da vida, incitando as populações através de sofisticadas composições e arranjos de natureza estética, frente ao poder de sedução de suas formas, enquanto aplicadas no irrefreável universo do consumo e da espetacularização da existência. Pois, as tecnologias avançadas dos processos midiáticos muito têm contribuído para a aceitação de uma vida extremamente mercantilizada, em que tudo vira mercadoria, inclusive o ensino. Outro eixo da exposição do tema proposto se relacionada com as três formas de pensar e criar: Filosofia, Ciência e Arte e que se diferenciam pelas seguintes características:

• A filosofia tem por objetivo traçar um Plano de Imanência e criar Conceitos (virtuais, incorporais) que habitam num Plano, no caso, de Plano de Imanência e onde o pensamento se orienta para pensar. Exemplificando, habitualmente se pensa dialeticamente utilizando a lógica binária com seus, conceitos herdados da tradição milenar, ou então, contemporaneamente, adotados a lógica da Multiplicidade e seus novos conceitos.

• A Ciência atualiza (atual) discursivamente conceitos (vituais) em estados de coisas, corpos e seres vivos e tem por objetivo criar novas funções (Functivos). Pressupõe um Plano de Referência, o qual pressupõe variáveis, constantes, estabelece limites e formula proposições. É o universo da relação verdadeiro/falso.

• A arte pertence ao universo fenomenológico do Real e do Possível e tem por objetivo criar novas percepções (Perceptos) e Afectos, ou seja, adota a lógica do sentido, a lógica da sensação. O Plano da arte é o da Composição. A Arte compõe variedades.

Essas formas se cruzam, se entrelaçam e fazem do pensamento uma Heterogênese, o clímax deste processo ocorre quando o conceito se torna conceito de função ou de sensação; a função se torna função de conceito ou de sensação; a sensação se torna sensação de conceito ou de função, e isso, sem síntese nem

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identificação e nem dominância de uma dessas formas de pensar e criar sobre as outras duas. Nesse breve panorama, onde entra o urbanismo? Embora alguns teóricos lhe atribuem a condição de ciência, o urbanismo é antes de tudo é arte! O urbanismo compõe (composição) a cidade, pertence basicamente ao universo fenomenológico da arte, onde os conceitos filosóficos e as funções científicas se tornam conceitos e funções de sensações. A ciência e a tecnologia entram na arte, todavia não a determinam. Qualquer criação ou intervenção urbanística pressupõe percepções e desejável que sejam novas percepções (Perceptos), ou seja, criações perceptivas e afetivas (Afectos), e isso, porque afetam os corpos dos cidadãos e de seus sentidos. É o universo da “Lógica do Sentido” que todavia não é discursiva como a lógica científica. Vale salientar que no pensamento herdado da Modernidade positivista, a hegemonia da ciência e da tecnologia sobre a arte e a filosofia é visível e, todavia, esse preconceito ainda perdura e se expressa na posição que ocupa a ciência e a tecnologia no entendimento do que seja a própria vida e de sua valorização primordial. Nessa direção preconceituosa, o próprio CNPq coloca no pódio do saber as ciências da terra, seguida das ciências da vida e, em último lugar, as ciências sociais e as ciências sociais aplicadas em que entram a arquitetura e o urbanismo. Talvez o mais justo seria que não houvesse dominância, prioridade de uma dessas formas de pensar e criar sobre as outras duas. Afinal, a cidade passou ser o lugar da vida, do exercício e do conforto dos corpos e da psique (enquanto subjetividade) dos seus cidadãos em movimento (acessibilidade e em atendimento às suas exigências visuais, sonoras, olfativas, hápticas e alimentícias). A cidade é o lugar por excelência da biopolítica, todavia, não como poder sobre a vida, mas, poder da vida, enquanto potência da vida! Emancipada dos controles hoje existentes. Urbanismo é o campo da sensibilidade cidadã. O urbanista se familiariza com a cidade, o solo e suas variedades, com a paisagem e a vegetação que a recobre, observa as áreas de riscos, deslizamentos e alagamento, rios e enchentes, mar e ressacas. Alerta para poluição sonora, visual, olfativa, atento às variações climáticas, ao para conforto ambiental urbano; propõe a valorização do espaço público combatendo a sua crescente privatização;

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procura privilegiar o transporte público em detrimento do individual; atento à distribuição igualitária dos serviços públicos (água/esgoto, energia, telefone/celular, Internet, coleta de lixo entre outros); prioriza a destinação de áreas para a realização de conjuntos habitacionais de interesse social. Enfim, ser dotado de uma visão de mundo, ou seja, utilizar a estética, as sensações e afetos que a cidade pressupõe, enquanto dimensão ética. Sua grande contribuição relaciona-se com o Desenho Urbano na composição da cidade, criando novas percepções e afetividades urbanas em que as importantes contribuições científicas e tecnológicas entram em sua composição, todavia, não o determinam. Estabelecidos esses eixos conceituais, passemos a considerar a formação acadêmica do urbanista em instituições públicas e/ou privadas detentoras de saberes específicos e configurados em um currículo mínimo, ou seja, uma grade curricular de matérias e subseqüentes disciplinas. Todavia, antes mesmo de falar sobre o currículo e sua genealogia, um esclarecimento se torna necessário, ou seja, uma definição, um entendimento do que seja um aparelho de Estado. Utilizarei a definição lapidar de Deleuze e Parnet:

(...) o aparelho de Estado é um agenciamento que efetua a máquina de sobrecodificação de uma sociedade. Essa máquina, por sua vez, não é, portanto, o próprio Estado, é a máquina abstrata que organiza os enunciados dominantes e a ordem estabelecida de uma sociedade, as línguas e os saberes dominantes, as ações e sentimentos conformes, os segmentos que prevalecem sobre os outros. A máquina abstrata de sobrecodificação assegura a homogeneização dos diferentes segmentos, sua convertibilidade, sua traduzibilidade, ela regula as passagens de um nos outros e sob que prevalência. Ela não depende do Estado, mas sua eficiência depende do Estado como do agenciamento que a efetua em um campo social (...) Não há ciências de Estado, mas máquinas abstratas que têm relações de interdependência com o Estado. Por isso, sobre as linhas de segmentaridade dura, devem-se distinguir os segmentos de poder que codificam os segmentos diversos, a máquina abstrata que os sobrecodifica e regula suas relações, o aparelho de Estado que efetua essa máquina. (Deleuze/Panet, Diálogos, 1998, p. 150).

Nesse contexto do parelho de Estado, uma instituição como o Ministério da Educação, ou mesmo em um sistema hierarquizado, a exemplo de uma Secretaria Estadual de Educação, ou ainda uma Universidade Estadual como a UNEB, decide criar o único curso de Urbanismo no Brasil, o procedimento é similar ao do Ministério da Educação quando decide elaborar um currículo para qualquer profissão, e no caso, educação em nível superior. Procede-se por convocação do ministério, ou da Secretaria Estadual, ou mesmo, da

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Reitoria, dependendo de interesses específicos, um conjunto de especialistas ‘e/ou consultores de reconhecida atuação na área que se deseja implantar o curso, e isso, com o objetivo de codificar o conjunto de saberes (conhecimentos) que é necessário para a formação profissional de uma determinada área, no caso específico do tema em pauta, o curso para a formação do Urbanista. Essa codificação permite estabelecer uma grade curricular de matérias que se desdobraram em disciplinas. Processada essa codificação é sobrecodificada por instâncias hierárquicas superiores e efetuada pelo aparelho de Estado, decretando, assim, a criação do curso pleiteado. Estabelece-se, assim, uma grade curricular formada por disciplinas, e estas constituídas por ementas, conteúdo programático, objetivos, metas, metodologia, cronograma e bibliografia. Contudo, vale entender o que de fato caracteriza uma disciplina que se analisa? Adotando a forma de pensar contemporânea da Lógica da Diferença e considerando que uma disciplina aplica discursivamente, conceitos filosóficos (virtuais, incorporais), ela pode ser considerada uma “máquina abstrata”. “Dependendo da forma de pensar de quem ministra a disciplina, ela pode ser considerada não apenas uma máquina abstrata, mas, uma máquina abstrata binária”. Por sua vez, inserida num contexto sócio econômico de uma sociedade capitalista, cujo axioma maior adotado é o da “propriedade”, normalmente, qualquer disciplina ministrada nessas condições, pode ser considerada uma ”máquina abstrata, binária e axiomática”. Vale salientar que nas instituições de ensino, lugar da transmissão de diferentes conhecimentos, constata-se muito mais reprodução de saberes do que criação, entretanto, nessa transmissão de apenas os saberes são evidenciados. O poder, pela sua invisibilidade não aparece, embora tanto a própria instituição, quanto o docente que ministra e o discente que incorpora, interioriza as disciplinas, constituem diferentes instâncias hierarquizadas de exercício de poder. Nessa caracterização do “Fora” enquanto indissociável relação Saber/Poder de uma disciplina, vale considerar a preexistente construção subjetiva do docente, o qual vem dobrando em sua própria experiência de vida, em sua experiência empírica, o Fora, podendo esse dobramento ser tanto de adesão ao saber/poder já sobrecodificado e dominante e definido pela competência de sua

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aplicação, quanto um contra-saber-poder de resistência, performático, criativo, de inovação e que, sem dúvida, perturba o ambiente acadêmico, normalmente voltado para o atendimento ao mercado de trabalho. No primeiro dobramento de adesão ao sistema vigente de poder, há um entendimento unitário, genérico, universal e harmônico da composição social e de suas necessidades a serem atendidas, propriamente sem um questionamento dos fundamentos do sistema dominante. O segundo dobramento de dissenso alerta para a hierarquização, o controle, o desemprego generalizado, a insegurança, a segregação e exclusão social. Justamente por essa enorme diferenciação, particularmente num país como o nosso, é que emergem os contra-saberes-poderes que uma vez dobrados, formam a subjetividade daqueles que não se deixam sobrecodificar pelo aparelho de Estado, oferecendo resistência e colocam novas questões e problemas voltados para a criação de uma nova modalidade do Ser, não mais apenas ontológico, mas, enquanto ser social. Neste caso, esses docentes e discentes, constituem o que no pensamento contemporâneo se costuma denominar de “máquinas de guerra” (conceito deleuzeano), as quais não têm a guerra por objetivo, mas, desenvolvem estratégias e táticas, evitando, assim, que sejam capturadas pelo aparelho de Estado. Vale salientar que ainda são bem poucas essas máquinas de guerra em instituições de ensino público e inexistente em instituições privadas. O que de fato amplamente ocorre é que esses processos de subjetivação não são considerados nas práticas de ensino, pois, o Saber/Poder, ou seja, o Fora do mundo da representação, da macropolítica e o que nele prevalece é apenas o Saber que através de seus enunciados e realizações concretas enquanto Realidade objetiva, independente a quem esse saber é destinado ou favorece, pois se pressupõe que ele tem uma dimensão universal em sua aplicação indistinta e supostamente neutra. Mera ilusão! Tal pressuposição de neutralidade não ocorre, pois, o que realmente acontece e, normalmente não se apresenta ou não se questiona numa instituição de ensino, é o que sensíveis pensadores contemporâneos alertam e chamam à atenção, pois, no encontramos frente às “Sociedades de Controle” do capitalismo pós-industrial, do consumismo compulsório e onde o saber com qualquer coisa torna-se mercadoria e o ensino não escapa a essa

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condição. Pois, objetivo geral da formação acadêmica, seja qual for a área de conhecimento, visa exclusivamente formar competências para o mercado de trabalho sob a égide da competição e do desemprego generalizado. Pensar de outra maneira, com outro entendimento, torna-se inconcebível. Além disso, no mercado das competências, há uma acirrada competição sob a enganosa afirmação de que: “o importante não é ganhar, mas competir”, todavia, o que de fato ocorre é que poucos ganham e a grande maioria perde competindo e essa guerra competitiva se rebate nas atribuições profissionais. Basta relatar a violência discursiva injusta promovida pelo Instituto de Arquitetos do Brasil e pela ABEA - Associação Brasileira de Escolas de Arquitetura e Urbanismo contra a única exclusiva escola de Urbanismo no País e seu rebatimento na restrição imposta à específica profissão do urbanista na lei que criou o CAU - Conselho de Arquitetura e Urbanismo. Essa injustificada guerra se explica apenas em função do interesse de tradicionais atribuições profissionais que, todavia, andam na contramão da complexa e ampla divisão do trabalho que o capitalismo pós-industrial das sociedades de controle impõe. Em paises altamente desenvolvidos, há um pleno reconhecimento da profissão do Urbanista formada por específicas instituições de ensino. O último eixo temático diz respeito às outras três variáveis, também indissociável e que se relacionam com as práticas de ensino, e incidem na formação acadêmica do urbanista, São elas:

• A experiência empírica de docentes e discentes. • A forma de pensar que eles adotam. • A visão de mundo, e isto, enquanto posicionamento ético

adotado, ou seja, aspiração de emancipação do controle social existente.

A experiência empírica constitui, basicamente, o dobramento do Fora e isso, no empreendimento de ações, sejam elas de adesão ou de resistência ao Saber/Poder dominante, entretanto, tais ações pressupõem uma forma de pensar que definirá que plano de imanência filosófica e que conceitos são utilizados e transmitidos pelos docentes e receptivamente acatados ou não pelos discentes. Apesar das novas lógicas e novos conceitos que emergiram contemporaneamente, há uma inércia generalizada nas instituições de ensino, tanto entre docentes quanto discentes em mudar a forma de pensar herdada da modernidade, ou seja, o pensamento

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dialético sob a égide da lógica binária e seu tradicional repertório conceitual em que são privilegiados discursivamente os seguintes conceitos, frequentemente usados nas academias: Unidade, Identidade, Homogeneidade, Continuidade, Ordem, Estrutura, Organismo, Sistema entre outros e os pares conceituais Princípio e Fim, Causa e Efeito. Os conceitos acima referidos enquanto virtuais, são atualizado e relacionados discursivamente no mundo da representação, universo macro, molar, que pode ser configurado através das quatro ilusões apontadas por Deleuze: a primeira, a Identidade do conceito, A=A; a segunda, a Analogia do juízo (a cidade é um organismo); a terceira; Oposição dos predicados (sim/não, bem/mal, finito/infinito, etc.); a quarta ilusão, a Semelhança do percebido (São Paulo a Nova Iorque da América do Sul). Meras exterioridades daquilo que se percebe! Afastando-se desse entendimento e ciente dessas ilusões, a vertente do pensamento contemporâneo adotada por teste autor, tem procurado desconstruir, ou seja, não no sentido de destruir esse pensamento milenar (assim como a física quântica não destruiu a mecânica clássica), mas, visando retirar a hegemonia da forma de pensar herdada do pensamento moderno, pois essa nova forma de pensar adota a lógica da Multiplicidade e, discursivamente, privilegia os seguintes conceitos que adquirem hegemonia nos discursos e se opõem respectivamente aos conceitos acima referidos, a exemplo Multiplicidade em lugar de Unidade, Diferença ao de Identidade, Heterogeneidade, Descontinuidade (Ruptura), Caos (não como desordem, mas lugar de todas as formas, da criação, oceano da dessemelhança), Corpo sem órgãos, sistema enquanto rede aberta encontrar-se sempre no Meio, no Entre das circunstâncias, sem princípio nem fim, Acontecimento, Criação, Devir-outro. Dessa comparação de formas de pensar e diferentes lógicas resulta a importância que tem a forma de pensar na construção da subjetividade individual e coletiva dos indivíduos. Por fim, a Visão de mundo, ou seja, expressão que se relaciona com o entendimento da potencialidade da existência em sua dimensão subjetiva, individual e/ou coletiva, e isso, posicionando-se politicamente, aderindo ou resistindo ao regime dominante de poder e controle. Trata-se de uma inevitável atitude política (não partidária), em que não há neutralidade, pois, ou se participa

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preservando uma moral conservadora sobrecodificada, regulada e de controle, ou então se adere a uma ética de emancipação desse controle, visando um Devir-outro da existência. Considerando que o urbanismo tem sua presença nas intervenções sobre a cidade e, como afirmamos acima, se situa prevalentemente no universo da arte, da lógica do sentido, portanto, as suas composições urbanas pressupõem a inevitável presença de valores estéticos. Diferente da visão da arte moderna que proclamava sua autonomia, ou seja, a arte pela, o pensamento contemporâneo funde, incorpora os valores estéticos e de maneira indissociável com a dimensão ética estabelece, assim, o novo paradigma Ético-Estético e que envolve as práticas do urbanismo. O mesmo espera-se que venha ocorrendo com o paradigma Ético-Científico e o paradigma Ético-filosófico Pois, nada existe fora da política, em sua dimensão de micropolítica exercitada através da subjetividade em sua atuação individual e/ou coletiva. Portanto, tanto a Arte, quanto a Ciência e a filosofia, são formas de pensar e criar indissociáveis da macropolítica do Sabe/Poder, isto é do “Fora”. Entretanto, essa macropolítica coexiste e pressupõe, embora não de forma declarada e assumida, mas, nas “entrelinhas” da ocultação, da invisibilidade, na coxia do palco do mundo da representação, os processos de subjetivação individual e coletiva. São processos que não dependem diretamente do “Fora”, pois, pressupõem uma relação individual de si para consigo mesmo, ou seja, de adesão ao saber/poder constituído e dominante, ou de um contra-saber/poder emergente e de resistência. Concluindo, o paradigma Ético-Estético acima referido, tem sua dimensão molecular e pressupõe o exercício de uma micropolítica, a qual se fundamenta nas práticas da subjetividade individual e/ou coletiva e que afeta a profissão do Urbanista e das práticas artísticas em geral. Vale salientar que mudanças, transformações contínuas nessas práticas urbanas como em qualquer outra prática profissional, a construção da subjetividade individual e/ou coletiva, passa, indiscutivelmente pela micropolítica, e as grandes revoluções pensadas utopicamente pela modernidade, passaram a ser utopias de micro “revoluções”. Falando de processos de subjetivação individual e/ou coletiva, particularmente, no que se refere à subjetivação coletiva, teríamos de adotar o conceito Multidão, atualizado discursivamente por diferentes pensadores contemporâneos, e que vem contribuindo

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para a superação dos conceitos: Povo, Massa e Comunidade, os quais primam pela homogeneização dos seus componentes e que sob a limitada conceituação de Unidade e Identidade, ainda perduram imaginário acadêmico. Multidão enquanto conceito é um agregado informal, portanto sem contorno, constituído de multiplicidade e heterogeneidade de diferentes indivíduos, que se caracteriza por ser um agregado descentrado, centrífugo, nômade e anônimo. Considerar o Urbanismo sob esse novo enfoque conceitual, exige uma outra exposição, por sinal, bastante complexa para abordá-la neste momento. aqui. Fico por enquanto por aqui e agradeço a atenção dispensada. Itaparica, agosto de 2011. Pasqualino Romano Magnavita