como o conhecimento científico pode ser construído pela teoria de gênero
TRANSCRIPT
Educação e Cidadania nº 16 (2014) 24
COMO O CONHECIMENTO CIENTÍFICO PODE SER CONSTRUÍDO PELA
TEORIA DE GÊNERO?
AS SCIENTIFIC KNOWLEDGE CAN BE BUILT BY THE THEORY OF GENDER?
Luciana Vieira Rubim Andrade1
Maíra Costa2
Resumo: A partir do diálogo entre Keohane e Tickner sobre a teoria feminista e pesquisas no campo de RI,
analiso autores clássicos da teoria metodológica para a área das ciências sociais, mais especificamente para a
Ciência Política, e tento traçar um breve panorama de como as pesquisas de forma geral e também as teóricas
feministas precisam percorrer um caminho científico, mas que há outras formas de conceber as pesquisas
científicas e o lugar do(a) pesquisador(a) no campo de conhecimento.
Palavras-chave: Metodologia. Teoria feminista. Ciência política.
Abstract: From the dialogue between Keohane and Tickner on feminist theory and research in the IR field,
analyze classical authors of methodological theory to the social sciences, specifically for Science Policy, and try
to draw a brief overview of how research general and also the feminist theorists need to go a scientific way, but
there are other ways of conceiving scientific research and the place of (a) researcher (a) in the field of
knowledge.
Keywords: Methodology. Feminist theory. Political science.
1 INTRODUÇÃO
A produção do conhecimento científico tem sido historicamente um espaço de
predominância masculina, com relativa escassez de pesquisadoras em determinadas áreas, o
que poderia, de alguma forma, evidenciar as marcas do sexismo na produção científica.
Assim, a partir da década de 70, teóricas feministas passam a se dedicar também a questionar
as bases da Ciência Moderna, caracterizada por valores e perspectivas masculinistas
(BANDEIRA, 2008).
Nesse sentido, foram criticadas dicotomias presentes na concepção de ciência
ocidental como razão/emoção, relacionando a primeira ao masculino e a segunda ao feminino,
bem como universal/particular, questionando a possibilidade de um fazer ciência universal,
neutra, racional, descolada de aspectos particulares, culturais. Dessa forma, o conhecimento
científico atuou e atua também como uma “tecnologia do gênero”, pois é um mecanismo que,
simultaneamente, o produz e reproduz (LAURETIS, 1994).
1 Mestranda em Ciência Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais.
E-mail: [email protected]. 2 Graduada em Ciências Sociais na Universidade Federal de Viçosa.
Educação e Cidadania nº 16 (2014) 25
O presente trabalho se propõe a analisar autores clássicos da teoria metodológica para
a área das ciências sociais, mais especificamente para a Ciência Política, de forma a tentar
explicitar o caráter gender-blind desta literatura para a construção do que denominam como
boa pesquisa, ou pesquisas científicas. Esse esforço se nutre da contribuição do campo de
gênero feminista, qual seja, a capacidade de
interpelar, de re-colocar e re-significar permanentemente os conteúdos e as formas
daquilo que se apresenta como contingentemente universal, [...] na constante
problematização das hierarquias e das subordinações, na crítica contumaz às
opressões de todas as ordens. (MATOS, 2008, p.350).
Isto é, parte-se do pressuposto que o fazer ciência não é neutro e tal ciência,
considerada como hegemônica para o campo calcou na exclusão das mulheres e de uma visão
emancipatória do saber científico, embasado na racionalidade e na ciência positivista.
Sabendo-se disso, pretendo analisar como algumas teóricas feministas propõem formas de se
construir conhecimento científico, mas considerando o lugar, a identidade e processos
emancipatórios, conceitos tão caros à agenda feminista.
Para tanto o artigo está organizado em três seções, além desta breve introdução: a
primeira, a partir de um artigo escrito por Keohane em diálogo com Ann Tickner sobre a
Teoria Feminista e os estudos de Relações Internacionais, apresento quais seriam para este
autor, King e Verba, as condições e características necessárias para a construção de uma
pesquisa científica, o que denominarei como boa ciência. Também serão apresentadas críticas
feitas a estes autores sobre como propõem, de forma primordialmente quantitativa, a
elaboração do conhecimento. Na segunda seção são apresentadas críticas feministas a forma
positivista de cientificismo, além de trabalhar com uma perspectiva científica a partir do
método da desconstrução. Por fim, a conclusão, na qual espero ter traçado um breve panorama
de como as pesquisas de forma geral e também as teóricas feministas e da teoria de gênero
precisam percorrer um caminho científico, mas que há formas diferentes de se conceber a
ciência, o conhecimento científico e o lugar do(a) pesquisador(a) no campo de conhecimento.
2 ELABORAÇÃO DE BOAS PESQUISAS NAS CIÊNCIAS SOCIAIS
Em 1998, Robert O. Keohane escreveu um artigo para revista Internacional Studies
Quarterly em resposta ao artigo de Ann Tickner, para a mesma revista, intitulado “You Just
Don´t Understand: Troubled Engagements Between Feminists and IR Theorist”. Apesar de
Educação e Cidadania nº 16 (2014) 26
tratarem sobre as abordagens das teorias feministas e críticas destas para o campo de estudo
das Relações Internacionais, creio que o debate possa ser extrapolado para a Ciência Política,
por considerar pertinentes tanto as críticas feitas por Ann Tickner, quanto alguns
apontamentos de Keohane, que ao meu ver, se mostrou receptivo ao debate, além de fazer
contribuições de temas que considera importantes de serem estudados por teóricas(os) nas
Relações Internacionais, apresentando perspectiva de gênero.
Nesta seção abordarei questões mais amplas da resposta de Keohane, e que são
encontradas também no célebre livro que se tornou manual científico de metodologia no
campo da Ciência Política, de autoria de Gary King, Robert Keohane e Sidney Verba:
Designing Social Inquiriy: Scientific Inference In Qualitative Research, de 1994. Serão
apontadas também algumas das críticas que os autores receberam pelo seu caráter
quantitativista. Já as questões referentes à teoria de gênero e feminista especificamente, serão
abordadas na próxima seção destinada a tratar sobre como algumas teóricas feministas
analisam a construção do conhecimento científico, de forma a tentar um diálogo com os
autores apresentados nesta seção, considerados hegemônicos para o campo de conhecimento
das ciências sociais.
Keohane (1998) analisa que, tanto as pesquisas científicas feministas e de gênero,
quanto qualquer outro tipo de pesquisa científica, deve se caracterizar por alguns
procedimentos e regras básicas de cientificidade. Nas palavras do autor,
feminist IR scholars will need to supply answers that will convince others —
including those not ideologically predisposed to being convinced. Specifying their
propositions, and providing systematically gathered evidence to test these
propositions, will be essential: scientific method, in the broadest sense, is the best
path toward convincing current nonbelievers of the validity of the message that
feminists are seeking to deliver. We will only “understand” each other if IR scholars
are open to the important questions that feminist theories raise, and if feminists are
willing to formulate their hypotheses in ways that are testable — and falsifiable —
with evidence. (KEOHANE, 1998, p.197).
Além disso, Keohane (1998) analisa que o sucesso científico não é a realização da
verdade objetiva, mas a realização de inferências descritivas e suas relações causais. Ademais,
para o autor, o método mais básico para a construção científica nas ciências sociais permanece
o mesmo, realizar conjecturas acerca da causalidade. Formular hipóteses, de acordo com a
teoria estabelecida, especificar suas implicações observáveis, e por fim, assegurar que os
procedimentos realizados sejam públicos. Por fim, é de suma importância que o(a)
Educação e Cidadania nº 16 (2014) 27
pesquisador(a) utilize métodos que sejam transparentes e possibilitem que outros(as)
pesquisadores(as) os repliquem em diferentes contextos (KEOHANE, 1998).
Como pode-se observar, Keohane elenca acima algumas das características necessárias
para o que ele, King e Verba (1994) denominam como boa pesquisa, ou nos termos dos
autores, uma pesquisa científica. Para ser reconhecida como tal, é preciso que o desenho da
pesquisa siga determinados passos, que seriam, para os autores, as características básicas
definidoras de pesquisas científicas na área das ciências sociais: (1) O objetivo é a inferência;
(2) os procedimentos devem ser públicos; (3) as conclusões são incertas; e (4) o conteúdo da
ciência é o método.
Apesar de criarem normativas para que o desenho de pesquisa seja feito de forma
eficiente e válida, King, Keohane e Verba (1994) analisam que ele não pode ser um processo
mecânico, mas ao contrário, espera-se que o(a) pesquisador(a) seja inovador(a), dinâmico(a) e
que esteja numa busca contínua por novos dados e questões. De fato, este processo raramente
ocorre de forma regular ou numa ordem pré-determinada. Mas, ainda assim, o desenho de
pesquisa deve considerar uma estrutura e regras de inferência, composta por quatro
componentes: 1) Pergunta da pesquisa; 2) Teoria; 3) Dados; e 4) Utilização dos dados.
Segundo King, Keohane e Verba (1994), as pesquisas científicas, tanto qualitativas
quanto quantitativas, teriam um objetivo final comum: a realização de inferências descritivas
– ou seja, descrever a partir do que pode ser observado, o não observado -, e causais –
inferências com intuito de explicar a causalidade dos fenômenos. Para estes autores, as
pesquisas na área das ciências sociais têm uma dualidade de objetivos: descrever e explicar.
Nessa perspectiva, os autores determinam que não há mais valor em explicar (buscar
causalidade) do que em descrever, uma vez que não é possível construir explicações causais
bem fundamentadas sem uma boa descrição. Da mesma forma, em si só, a descrição perde seu
interesse, a não ser que esteja ligada a relações causais. Considerando que todo conhecimento
e inferências não conseguem atingir exatidão perfeita, independente do estilo de pesquisa, é
preciso que os(as) pesquisadores(as) registrem a estimativa de incerteza de suas inferências.
Me detenho aqui a esta característica apresentada pelos autores, qual seja, a da
inferência como objetivo final, isto porque King, Keohane e Verba provocaram uma
revolução no entendimento de inferência causal para as ciências sociais. A partir da percepção
de que trabalhos qualitativos que estavam sendo realizados apresentavam qualidade
inferencial muito baixas, propuseram que conceitos da inferência causal utilizados para as
pesquisas de cunho quantitativo, como a perspectiva estatística (regressão e a própria
Educação e Cidadania nº 16 (2014) 28
estimativa de incerteza através de fórmulas quantitativistas, por exemplo) fossem apropriadas
em estudos qualitativos.
No entanto, ter sido uma análise revolucionária para as ciências sociais não isentou
King, Keohane e Verba de críticas, muito pelo contrário, foi pelo teor quantitativista aplicado
aos métodos essencialmente qualitativos os fatores que levaram a que os autores recebessem
as maiores críticas, como por exemplo, Brady e Collier, com o livro Rethinking social
inquiry - diverse tools, shared standard, e em artigos em diálogo com Seawright (2004), além
de Mahoney (2010) e outros autores.
Para estes autores, apesar de muito importante, o argumento utilizado no DSI é fraco,
simplista e insuficiente para entender as perspectivas de inferências nas pesquisas qualitativas,
determinando que a inferência causal é produzida de maneira diferente, a depender de como
são feitas as observações, e isso vai depender se o método utilizado pelo(a) pesquisador é de
cunho quantitativo ou qualitativo. Nas palavras de Mahoney (2010), citando passagens de
Collier, Brady e Seawright (2004):
The new methodology, by contrast, links process tracing not to regression norms but
to a distinctive qualitative approach to causal analysis. Collier, Brady, and
Seawright’s discussion of two kinds of observations is useful for highlighting this
difference.9 These authors use the label “data-set observation” (DSO) to refer to an
“observation” in the normal statistical and KKV sense. A DSO is equivalent to a
row in a rectangular data set—that is, the scores for a given case on all measured
variables. In mainstream statistical research, adding DSOs is a standard method for
increasing degrees of freedom. By contrast, a “causal-process observation” (CPO) is
“an insight or piece of data that provides information about context, process, or
mechanism, and that contributes distinctive leverage in causal inference” (p.277).
The in-formation contained within a CPO reflects in-depth knowledge of one or
more particular cases rather than data collected as part of a system-atized array of
variables. The leverage gained for causal inference from CPOs is correspondingly
distinct from though not incompatible with DSOs: “A causal-process observation
sometimes resembles a ‘smoking gun’ that confirms causal inference in qualitative
research, and is fre-quently viewed as an indispensable supplement to correlation-
based inference in quantitative research as well”. (COLLIER; BRADY;
SEAWRIGHT, 2004, apud MAHONEY, 2010, p.124).
Collier, Brady e Seawright (2004) analisam que a distinção entre as observações de
conjunto de dados e observações dos processos causais pode oferecer uma nova base de
reflexão sobre a aplicação de métodos de cunho essencialmente quantitativos para diferentes
tipos de pesquisas. Na visão destes autores, existem procedimentos quantitativos elaborados
para avaliar inferências feitas com observações por conjunto de dados. Por outro lado,
observações de processos causais nos forçam a fazer julgamentos complexos sobre inferência
e probabilidade, sem a orientação explícita de ferramentas quantitativas. É precisamente a
Educação e Cidadania nº 16 (2014) 29
ênfase em testes quantitativos que leva King, Keohane e Verba (1994) a cometerem o erro:
subordinar observações de processo causal a um quadro quantitativo convencional.
Apesar das críticas apresentadas ao Designing Social Inquiriy: Scientific Inference In
Qualitative Research, é inegável a preciosa contribuição que esta obra apresenta para a
construção metodológica consciente em pesquisas na área das ciências sociais. Por mais que
não sigamos à risca as regras propostas por King, Keohane e Verba, no que diz respeito a
elaboração de pesquisas de cunho qualitativo, por exemplo, é preciso que tenhamos em mente
suas recomendações ao elaborarmos pesquisas que almejam pelo cunho de científicas,
prestando atenção às características que os autores elencam como primordiais para um bom
desenho de pesquisa.
No entanto, saibamos que também que há outras visões não-hegemônicas de
construção do conhecimento científico, como as que serão apresentadas a seguir, mas que
também partem do pressupostos elencados por estes autores, como por exemplo, que os
métodos, base de dados, caminhos percorridos, anotações de campo, entre uma miríade de
informações referentes à elaboração e execução da pesquisa sejam disponibilizadas para
demais pesquisadores(as).
3 COMO SE ARTICULAM AS TEORIAS DE GÊNERO E AS CIÊNCIAS?
Retomarei brevemente aqui ao artigo de Keohane (1998), onde o autor faz críticas a
forma com que Ann Tickner – e aqui extrapolo as críticas para as teorias feministas e de
gênero – com relação às dicotomias que estas teorias se propõem a visibilizar e desnaturalizar:
What I will argue here is that Professor Tickner herself relies too much on three key
dichotomies, which seem to me to have misleading implications, and to hinder
constructive debate. The first of these dichotomies contrasts “critical theory” with
“problem-solving” theory. “Problem-solving [theory] takes the world as it finds it
and implicitly accepts the prevailing order as its framework” (1997:619). The
second dichotomy pits “hermeneutic, historically-based, humanistic and
philosophical traditions” against positivist epistemologies modeled on the natural
sciences. Finally, Tickner contrasts a view that emphasizes the social construction of
reality with an atomistic, asocial conception of behavior governed by the laws of
nature (1997:616, 618-9). International relations theory is portrayed as problem-
solving, positivist, and asocial; feminist theory as critical, post-positivist, and
sociological. (KEOHANE, 1998, p.194).
Se formos pensar num espectro, Keohane (1998) analisa que os (as) pesquisadores(as)
não deveriam ocupar um lugar em nenhum dos dois pólos extremos das dicotomias
apresentadas, bem como King, Keohane e Verba (1994) analisam que deveríamos ocupar um
Educação e Cidadania nº 16 (2014) 30
contínuo entre formas determinísticas e probabilísticas de inferências. No entanto, concebe-se
aqui o campo científico enquanto um campo de disputa, cujos membros possuem também
interesses particulares, perspectivas pessoais, o que repercute na forma de conhecer, nos
processos de produção do conhecimento (SANTOS, 2005). Partirei dessa concepção para
nortear as discussões e questionamentos sobre a forma dominante de produção do
conhecimento a partir do viés feminista.
Lourdes Bandeira analisa que os pressupostos fundadores da Ciência Moderna, alvo
das discussões feministas em torno do processo de produção do conhecimento científico,
quais sejam: argumentos naturalistas, condição de neutralidade da ciência, com perspectiva
masculinista e com linguagem androcêntrica; e dimensão universal atribuída ao conhecimento
científico, assim como pela crença no caráter progressista da racionalidade científica
(BANDEIRA, 2008), fizeram com que houvesse invisibilidade e marginalização das mulheres
neste meio, reproduzindo a dominação masculina e a submissão feminina, desta forma,
legitimando-os e reproduzindo tais padrões encontrados nas sociedades ocidentais, onde a
mulher é majoritariamente vista como “o outro”, em segundo plano na vida pública,
econômica, cultural.
Silvana Aparecida Mariano (2007) observa que, nas ciências humanas, comumente é
apresentado o problema de “naturalização” derivada da autoridade que é dada à explicação
científica e reafirmar a força do social em atribuir significado à diferença sexual, que
ou acaba por produzir um reforço/conformismo frente aos ditames das sociedades,
ou produz banalização da ideia de uma sociedade moderna que tende “naturalmente”
pelo seu progresso a uma igualdade entre os sexos. Nessa tensão, contra esse
segundo tipo de “naturalização”, se constitui o campo de estudos de gênero.
(MARIANO, 2007).
Tem-se então o campo da teoria de gênero como desqualificado por não seguir aos
princípios positivistas da ciência, ou seja, neutralidade e objetividade, num campo onde
sujeito/sujeito estão em constante interação sem que haja a liminaridade e distanciamento
entre pesquisador(a) e objeto. No lugar da objetividade, tem-se a abordagem subjetiva, onde
as especificidades históricas, de classe, raça, etária, e de são levadas em consideração.
Boaventura de Sousa Santos (2005) analisa que um aumento significativo no número
de mulheres que participam e partilham da vivência em instituições científicas e na ciência em
si, não resultaria, necessariamente, em uma modificação e/ou transformação destas
instituições, tendo em vista que ainda deixam marginalizadas as demandas das mulheres e
suas especificidades. Tal análise evidencia o importante papel das críticas feministas diante da
Educação e Cidadania nº 16 (2014) 31
necessidade de transformação não só das instituições científicas, mas da Ciência como um
todo.
Portanto, a crítica feminista se volta para as formas de conhecimento ditas como
universais, já que estas, por esse caráter universal, acabando por criar parâmetros imutáveis,
inclusive no que diz respeito ao poder, e defende que os contextos sociais estão relacionados
às posturas teóricas, se direcionando fundamentalmente à crítica das compreensões teóricas
predominantes fundadas em totalidades e universalismos (MATOS, 2008). Nas palavras de
Matos:
o feminismo acrescenta criticamente ao saber e à racionalidade científicas,
diretamente de encontro à afirmação ocidental de um contexto homogêneo, estável
ou plano unidimensional baseado na univocidade de sentidos (uma palavra, um
significado) e de relações duais de racionalidade, a concentração e a valorização
crítica, multicultural, emancipatória e reflexiva de configurações transversais e
multidimensionais dos saberes que, ainda que não desconsiderem por completo as
polarizações dicotômicas, dialéticas ou antinômicas, as recoloca num plano de
densidades diversas (inclusive contraditórias) e complexas. (MATOS, 2008, p.348).
Claudia de Lima Costa (2002) analisa que para que a teoria de gênero e feminista
consiga desembaraçar as articulações da diferença configuradoras dos interstícios, ela deve
empregar uma heterogeneidade de métodos críticos que privilegiem “análises complexas, de
engajamento múltiplo, porém com foco local” sobre a relação entre a subjetividade e as
matrizes da dominação/subordinação.
Desta forma há para as teóricas feministas uma necessidade de que tenhamos
disponível uma miríade de técnicas inferenciais e de diferentes métodos, que possam, quando
utilizados em conjuntos e de uma forma parcimoniosa – como sugerem os autores
mencionados no início deste artigo – dar conta de entender problemas do mundo real, e de
uma forma mais enfática aqui, os problemas pelos quais estão imbrincadas as vidas das
mulheres e dos grupos politicamente minoritários: complexos e multicausais, multifatoriais,
além de serem interseccionais. O uso de diferentes métodos, e também da junção de técnicas
qualitativas e quantitativas, são mais apropriadas para darem conta de tais problemas.
A fim de conseguir isso, precisamos enfocar também o conceito de lugar nas teorias
feministas sobre identidade, diferença e subjetividade de modo que, como feministas,
possamos nos tornar mais responsáveis em relação às coisas que dizemos e fazemos e aos
lugares/posições a partir dos quais dizemos e fazemos tais coisas (COSTA, 2002). Não são,
desta forma, os métodos quantitativos ou qualitativos que irão definir se uma pesquisa possui
Educação e Cidadania nº 16 (2014) 32
ou não caráter feminista ou se é considerada como uma teoria de gênero, mas o uso que os(as)
pesquisadores(as) fazem das técnicas disponíveis.
4 CONCLUSÕES
A partir do que foi abordado nesse artigo, é possível reiterar, finalmente, que as
críticas feministas, no que tange à ciência, visam outras possibilidades que se opõem ao
conhecimento científico hegemônico, a partir das reflexões acima elencadas, buscando,
preponderantemente, abolir a condição de subordinação e opressão das mulheres também no
que diz respeito ao campo científico, que colocam em cheque a capacidade, as reflexões e
perspectivas das mulheres no fazer ciência.
É evidente, ainda, que houve avanços se considerarmos o momento que as
reivindicações relativas à produção do conhecimento passaram a ser pauta concreta do
movimento feminista, na década de 1970. Entretanto, muitos ainda são os desafios para a
promoção de uma efetiva transformação da produção do conhecimento perpetrada por valores
ocidentais e positivistas, não só no que diz respeito à questão das mulheres, mas a outros
grupos, caracterizados como minorias políticas, que também são excluídos da construção da
hegemônica Ciência Moderna, seus pressupostos e métodos, posto que essas novas
perspectivas ainda são tratadas enquanto formas complementares ou até mesmo alternativas
de ciência.
Se para King, Keohane e Verba (1994), para que um bom desenho de pesquisa o
conteúdo da ciência tenha que ser o método, para a teoria de gênero e feminista, o método é a
desconstrução a destradicionalização. Onde haja a valorização do modo de pensar e de suas
consequências, não apenas de descrições tidas como neutras sobre o mundo. (MATOS, 2008).
É pensar em formas complementares e não apenas no que nos é dado ou disponibilizado a
partir de construções norte-globais e masculinas. Nas palavras da teórica política feminista:
Ou seja: sabendo e reconhecendo que o conhecimento (científico) é capaz de intervir
e agir sobre o mundo, que ele possui conseqüências sobre o mundo, que ele é ação
sobre o mundo, é que proponho a sustentação teórica, epistemológica e política do
campo de gênero e feminista como sendo da ordem de um universal histórico e
contingente que opera dinâmica e paradoxalmente na busca constante e responsável
de um devir gênero que por sua vez se desdobra na afirmação radicalizada de um
devir ciência. (MATOS, 2008, p.352).
REFERÊNCIAS
Educação e Cidadania nº 16 (2014) 33
BANDEIRA, Lourdes. A contribuição da crítica feminista à Ciência. Estudos Feministas.
vol.16 no.1 Florianópolis Jan./Apr. 2008.
COLLIER, D; BRADY, H. and SEAWRIGHT. Sources of leverage in causal inference:
toward an alternative view of methodology. In: Brady, H e Collier, David. Rethinking social
inquiry - diverse tools, shared standards. 2004.
COSTA, Claudia de Lima. O sujeito no feminismo: revisitando os debates. Cadernos Pagu.
Campinas, n.19, p.59-90, 2002.
HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o
privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, p.07-42, 1995.
KEOHANE, Robert O. Beyond Dichotomy: Conversations Between International Relations
and Feminist Theory. In: International Studies Quarterly, Vol. 42, Nº 1 (Mar. 1998), 193-197.
KING, Gary; KEOHANE, Robert; VERBA, Sidney. Designing social inquiry: scientific
inference in qualitative research. New Jersey: Princeton University Press, 1994.
LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de.
Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro, Ed. Rocco,
1994, PP.206-242.
MAHONEY, Jamess. (2010). After KKV: The New Methodology of Qualitative Research.
World Politics. 2010. 62, pp 120-147.
MATOS, Marlise. Teorias de gênero ou teorias e gênero? Se e como os estudos de gênero e
feministas se transformaram em um campo novo para as ciências. Estudos Feministas, n. 16,
v. 2, p. 333-357. 2008.
NEVES, Sofia. Investigação feminista qualitativa e histórias de vida: a libertação das vozes
pelas narrativas biográficas. In: Magalhães, Maria José (ed.), Lima Cruz, Angélica (ed.),
Nunes, Rosa (ed.) (2012) Pelo fio se vai à meada: percursos de investigação através de
histórias de vida. Lisboa: Ela por Ela.
SANTOS, Boaventura de Souza de. Introdução: Para ampliar o cânone da ciência: a
diversidade epistemológica do mundo. In: Semear outras soluções. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira: 2005.