sexualidade e gÊnero - editora ufpb

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Marcela Zamboni Helma J. S. de Oliveira Mariana Melo Juciane de Gregori Emylli Tavares Organizadoras SEXUALIDADE E GÊNERO CONTROLE E SUBVERSÃO

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Marcela ZamboniHelma J. S. de Oliveira

Mariana MeloJuciane de Gregori

Emylli TavaresOrganizadoras

SEXUALIDADE E GÊNEROCONTROLE E SUBVERSÃO

SEXUALIDADE E GÊNEROCONTROLE E SUBVERSÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

Reitor VALDINEY VELOSO GOUVEIA Vice-Reitora LIANA FILGUEIRA ALBUQUERQUE Pró-Reitor PRPG GUILHERME ATAÍDE DIAS

EDITORA UFPB

Diretor NATANAEL ANTÔNIO DOS SANTOS Coordenadora de editoração SÂMELLA ARRUDA ARAÚJO Chefe de produção JOSÉ AUGUSTO DOS SANTOS FILHO

Conselho editorial Adailson Pereira de Souza (Ciências Agrárias) ElianaVasconcelosdaSilvaEsvael(Linguística,LetraseArtes) FabianaSenadaSilva(Interdisciplinar) GiseleRochaCôrtes(CiênciasSociaisAplicadas) IldaAntonietaSalataToscano(CiênciasExatasedaTerra) Luana Rodrigues de Almeida (Ciências da Saúde) MariadeLourdesBarretoGomes(Engenharias) MariaPatríciaLopesGoldfarb(CiênciasHumanas) Maria Regina Vasconcelos Barbosa (Ciências Biológicas)

Conselhocientífico MariaAuroraCuevas-Cerveró(UniversidadComplutenseMadrid/ES) JoséMigueldeAbreu(UC/PT) JoanManuelRodriguezDiaz(UniversidadeTécnicadeManabí/EC) JoséManuelPeixotoCaldas(USP/SP) LetíciaPalazziPerez(Unesp/Marília/SP) AneteRoese(PUCMinas/MG) RosângelaRodriguesBorges(UNIFAL/MG) SilvanaAparecidaBorsettiGregorioVidotti(Unesp/Marília/SP) LeilahSantiagoBufrem(UFPR/PR) MartaMariaLeoneLima(UNEB/BA) LiaMachadoFiuzaFialho(UECE/CE) ValdonilsonBarbosadosSantos(UFCG/PB)

Editora filiada à:

Marcela ZamboniHelma J. S. de Oliveira

Mariana MeloJuciane de Gregori

Emylli Tavaresorganizadoras

SEXUALIDADE E GÊNERO controle e subversão

EditoraUFPBJoão Pessoa

2020

Direitosautorais2020–EditoraUFPB EfetuadooDepósitoLegalnaBibliotecaNacional,conformea Leinº10.994,de14dedezembrode2004. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS À EDITORA UFPB Éproibidaareproduçãototalouparcial,dequalquerformaou porqualquermeio. Aviolaçãodosdireitosautorais(Leinº9.610/1998) écrimeestabelecidonoartigo184doCódigoPenal. Oconteúdodestapublicaçãoédeinteiraresponsabilidadedoautor.

Projeto gráfico EditoraUFPB

Editoração eletrônica e Design da capa Mônica Câmara

Foto da capa Jim/Pexels

Catalogação na fonte: Biblioteca Central da Universidade Federal da Paraíba

S518 Sexualidadeegênero:controleesubversão/Marcela Zamboni...[etal.],organizadores.-JoãoPessoa:EditoraUFPB,2020.

191p.:il.

Recursodigital(3MB)Formato:PDFRequisitodoSistema:AdobeAcrobatReader

ISBN:978-65-5942-046-9

1.Gêneroesexualidade.2.Políticas identitárias. 3.Lutassociais.4.Feminicídio.5.Transfeminicídio.I.Zamboni,Marcela.II.Oliveira,HelmaJ.S.de.III.Melo,Mariana.IV.Gregori,Jucianede.V.Tavares,Emylli.VI.Título.

UFPB/BC CDU347.156:323.1

Livro aprovado para publicação através do Edital Nº 01/2020/Editora Universitária/UFPB - Programa de Publicação de E-books.

EDITORA UFPB CidadeUniversitária,CampusI,PrédiodaeditoraUniversitária,s/n JoãoPessoa–PB CEP58.051-970 http://www.editora.ufpb.br E-mail:[email protected] Fone:(83)3216.7147

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .............................................................................. 07

O ESGOTAMENTO DAS POLÍTICAS IDENTITÁRIAS NAS LUTAS SOCIAIS: UMA LEITURA A PARTIR DE JUDITH BUTLER ........................................................................ 12

Maria Joaquina da Silva Cavalcanti

FEMINICÍDIOS: GENERIFICAÇÃO DA POLÍTICA E POLITIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA................................................ 27

Emylli Tavares do Nascimento

TRANSFEMINICÍDIO: ENTRE ABJEÇÃO E PRECARIEDADE ............................................................................ 49

Ana Carolina Gondim de Albuquerque Oliveira

OS EFEITOS DA PASSABILIDADE: AS DIFERENTES EXPERIÊNCIAS DE MULHERES TRAVESTIS E TRANSEXUAIS E HOMENS TRANSEXUAIS NO TRABALHO ................................................................................ 70

Felipe Franklin Anacleto da Costa

ENTRE FEMINICÍDIO E LGBTQI+FOBIA: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE CRIMES DE ÓDIO NO FLUXO DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL ................................................................. 84

Helma J. S. de OliveiraMariana MeloMarcela Zamboni

NOTAS INTRODUTÓRIAS SOBRE A IMPORTÂNCIA DA DIMENSÃO RACIAL NOS ESTUDOS DE GÊNERO E SEXUALIDADE .............................................................................104

Juciane de Gregori

ARTICULAÇÕES NAS RELAÇÕES DE PODER: PERFORMATIVIDADES DE GÊNERO E SEXUALIDADE NA PRÁTICA DA REVISTA ÍNTIMA .........................................124

Eloisa Slongo

DIREITOS REPRODUTIVOS DAS MULHERES BRASILEIRAS: ENTRE A MATERNIDADE E A MORTE ......... 147

Monique Ximenes Lopes de Medeiros

“MENINOS DO BLACK BLOC”: ENTRE A REPRODUÇÃO DE PAPÉIS DE GÊNERO E SUA ABOLIÇÃO NA PRÁTICA ANARQUISTA DE PROTESTO RADICAL ...............................168

Florian Grote

SOBRE AS AUTORAS/ORGANIZADORAS ................................186

SOBRE OS AUTORES .......................................................................189

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APRESENTAÇÃO

Estetrabalhoresultadeumaconstruçãocoletivadedebatesgestadosnadisciplina“Gêneroesexualidade”,ministradaporumadasorganizadorasdaobra,aprofessoraMarcelaZamboni,noProgramadePós-GraduaçãoemSociologiadaUniversidadeFederaldaParaíba(PPGS/UFPB)edacolaboraçãodepartedasintegrantesdoGrupodeRelaçõesAfetivaseViolência(GRAV).Astemáticasabordadasestãorelacionadasàspesquisassobregêneroesexualidadedesenvolvidaspelos(as)alunos(as)vinculados(as)nãosóaoProgramadePós-GraduaçãoemSociologia(PPGS),mastambémàPós-GraduaçãoemCiênciasJurídicas(PPGCJ)damesmainstituição,evidenciandoapreocupaçãodos(as)autores(as)comaspráticassociaisejurídicas,afimnãosódeexplicarosfenômenossociaisrelacionadosareferidatemática,mastambémdeinstigarmudançassociaiselegaisquegarantammaiorequidadedegênero,apartirdeumalentesociológica.

Inicialmente,Maria JoaquinaCavalcantidelimitaumimportantedebateacercadaspolíticasidentitáriascontemporâneasem O Esgotamento Das Políticas Identitárias Nas Lutas Sociais: Uma leitura a partir de Judith Butler. Partindodeumaperspectivabutlerianaarespeitodoscorposnãopassíveisdeluto,dasvidasprecáriasedaconstruçãosocialdaidentidade,discorresobreoalcanceeimportânciadaspolíticasidentitáriasnaexpressãodasidentidadesquevêmdemonstrando-seobjetosmaiscomplexoseintersec-cionados.Elaapontaanecessidadedeosprojetospolíticosdaesquerdacoordenaremdiferentesmarcadoressociaisdadiferença,natentativademelhorararepresentaçãodosmaisdiversossujeitos,articulandodebatesparaalémdasdiferençasdeclasse.Acompanhaemsuareflexão,assim,aproblemáticadaspretensasunidadesemtornodegruposcategorizáveis,comoapontadoporButler

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Sexualidade e gênero: controle e subversão

aotratardacategoria“mulher”eseulugarnacríticafeminista.Aautoradestacaaindacomoaperspectivaidentitáriaatuasobreaformulaçãodepolíticasdereconhecimentoeseusefeitosnaapreensãodesujeitos.

Nosegundoartigo,intituladoFeminicídios: generi-ficação da política e politização da violência,aautoraEmylliTavaresdoNascimentoapresentaacategoriagênerocomouminstrumento/discursoestratégicodosmovimentosfeministasnointuitodequeoEstadoeasociedadeentendamagravidadedasmortesviolentasdemulheres,aopassoqueproblematizaacompreensãodosfeminicídioscomoumaformadeviolênciaexplicávelexclusivamentepor“razõesdegênero”.Destemodo,aautoracolocaempautaascategoriassociaisderaça/etnia,classe,sexualidade,territorialidade,etc.entrelaçadasaogênero,comorecursosdeanálisedoexercíciodenecropolítica,segundoacompreensãodeAchilleMbembe,comvistaaperceber(oucomprovar)quaismulherestêmsuasvidasvalorizadase,portanto,têmsuasvidaspassíveisdeluto(BUTLER,2017)–oude“pranteamentocoletivodaperda”(EFREMFILHO,2016)–,ou,emsentidooposto,quaismulheressão“escolhidas”peloEstadoparateremsuasvidasnegligenciadas,parao“deixarmorrer”.

OartigoTransfeminicídio: entre abjeção e precariedade, de Ana CarolinaGondimdeAlbuquerqueOliveira,apontaoassassinatodemulherestransexuaisetravestiscomoexpressãodamáximaprecariedadequeconstituiasvidasdaspessoasquevivemàsmargensdamatrizdeinteligibilidadeculturalhegemônica.Utilizando-sedorepertóriodeJudithButler(2017),aautoraobservaqueosatosdeviolênciabrutalqueculminamnasmortesdessasmulheresnãogeramcomoçãosocial,pois,desdeoprincípio,essescorpossãotidoscomoabjetoseestãodesprovidosdascondiçõesnecessáriasparaamanutençãoeproteçãodasvidasconsideradasviáveisedignasdeenlutamento.Porfim,fazendousodedadoscoletadosemrelatóriosedossiêsnacionaiseinternacionais,aautora

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demonstraqueaviolênciadotransfeminicídiodeveseranalisadaenquantoumfenômenointerseccional,queenvolverelaçõesdegênero,sexualidade,classeeraça,asquaisatuamnaconformaçãodequempodeserreconhecidacomopessoahumanadetentorade“direitos”e“dignidade”peranteesferasjurídicasesociais.

Emseguida,noartigoOs Efeitos da Passabilidade: as diferentes experiências de mulheres travestis e transexuais e homens transexuais no trabalho,oautorFelipeFranklinAnacletodaCostaabordaocontrasteentreasexperiênciasdaspessoastransfrenteaomercadolaboral.Tomandocomochavedeleituraoconceitodepassabilidade,seutrabalhoénorteadoporumarevisãobibliográficaacercadastemáticasdegêneroesexualidade,tendocomobasesuapesquisadesenvolvidasobreosimpactosdo“ProgramaTranscidadania”naempregabilidadedetravestisetransexuais.Alémdisso,tambémapresentaumaentrevistarealizadacomumhomemtrans,indicandoosdesafios,consequênciaseproblemáticasenvoltosaidentidadedegêneroecondiçõesdetrabalho.

NoartigoEntre feminicídio e LGBTQI+fobia: breves considerações sobre crimes de ódio no fluxo do Sistema de Justiça Criminal,HelmaJ.S.deOliveira,MarianaMeloeMarcelaZamboniobservamossentidosmobilizadosdentrodoSistemadeJustiçaCriminalarespeitodacategoriaódioconfrontandodefiniçõesepráticasjurídicasbaseadasnaLeinº13.104/2015,queinstituiuofeminicídiocomoqualificadoradocrimedehomicídio,ededecisãodoSupremoTribunalFederal(STF)que,em2019,compreendeuahomofobiaeatransfobiacomocrimesderacismo,conformeostermosdaLeinº7.716/1989.PartindodeavaliaçõesadvindasdepesquisasempíricasrealizadaspelasautorasnoâmbitodostribunaisdojúriededelegaciasemJoãoPessoa,oartigopromoveumdebatesobreassignificaçõesatribuídasàcategoriaódiodiantedasnormasedaspráticasjurídicasreferentesaosfeminicídioseaoshomicídiosmotivadosporLGBTQI+fobia.Destemodo,asautorassugerem

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Sexualidade e gênero: controle e subversão

que,emboraestejamanalisandocrimesdeódio,aemoçãoviolentachegaaseranunciadacomomotivadapeloódiooupaixãodiantededeterminadasperformatividadesdegêneroesexualidadeconfiguradasnasatitudesafirmativasdasvítimasouemsuposiçõesdecomportamentosdistantesdospapéisheteronormativos.

JucianedeGregorinosapresentaumnecessáriodebatesobrea importânciadadimensãoracialnosestudossobregêneroesexualidade.EmNotas Introdutórias Sobre a Importância da Dimensão Racial nos Estudos de Gênero e Sexualidade,aautorachamaatençãoparareflexõesemtornodainterseccionalidade,dosmarcadoressociaisdadiferençaedosfeminismoscontemporâneoscomoelementosindispensáveistantonaacademiaquantonosprojetosdetransformaçõessociais.AautoraconcordaassimcomMcClintock(2010)sobreaimpossibilidadedepensarcategoriassociaisdemaneiraisolada;raça/cor,capital,gênerosãoessenciaisparaaconstruçãodeexperiênciasaseremanalisadasemseusprocessosdeformação,afastando-sedasformasdecentralidadecomunsemdiversosestudos.ComodestacaGregori:“Nãoháinterseccionalidadesemfeminismonegroevice-versa”.

OartigoArticulações nas Relações de Poder: performatividades de gênero e sexualidade na prática da revista íntima,deEloisaSlongo,apresentacomoesforçoteóricoprincipalademonstraçãodasrelaçõesdepoderqueperpassamaspráticasestataisdoambienteprisional.Aautoraquestionaadinâmicada“revistaíntima”quetemcomopropósitolegalainterceptaçãodeobjetose/ouinstrumentosparaointeriordaspenitenciárias,conquantosirvaefetivamenteparaoexercícioestataldevigilânciaecontrolesobreoscorposdos/asvisitantes,especialmentedasmulheresfamiliaresdepresos.Noentanto,aautoraapontaqueessaeoutrasregrasdecondutaaomesmotempoemqueregulamtambémproduzemperformatividadesdegêneroedesexualidade,queganhaminteligibilidadenocontextodasprisões.Nesteartigo,Slongoinveste

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tantonaanálisedosprocessosdedegradaçãoeassujeitamentodasmulheresfamiliaresquantonasformasdeagênciaelaboradasporelasparaenfrentarocotidianoprisional.

Nooitavoartigo,intituladoDireitos Reprodutivos das Mulheres Brasileiras: entre a maternidade e a morte,aautoraMoniqueXimenesLopesdeMedeirosdiscuteoscontornoslegaisdeliberdadesexualereprodutivadasmulheresapartirdaanálisecríticadaLeidePlanejamentoFamiliaredoCódigoPenalBrasileiro,noquedizrespeitoàrestriçãodecirurgiasdeesterilizaçãoeàcriminalizaçãodoaborto,respectivamente.Paratanto,aautoraobservaamaternidadeeaheterossexualidadereprodutoradeacordocomperspectivasfeministaseadota,especialmente,asreflexõesdeJudithButler,AchilleMbembeeMichelFoucaultparacompreenderasconsequênciasdabiopolítica/necropolíticaexercidapeloEstadobrasileirosobavidadasmulheres,considerandoasinterseccionalidadesdegênero,raça,etnia,classe,condiçãoeconômica,escolaridadeeregionalidade.

Porfim,FlorianGroteapresentaoartigointitulado“Meninos do Black Bloc”: entre a reprodução de papéis de gênero e sua abolição na prática anarquista de protesto radical.ApartirdeumaanáliseemtornodasJornadasdeJunhode2013noBrasil,oautorrelacionaasquestõesdegênerocomospapéissociais,hierarquiaseviolênciasqueatravessamaspráticasanarquistasdosBlack Bloc. Para tanto,Groteconceituaeretomaaspectosteóricosehistóricos,associandoessetemaamídiaetrazendocomobase,autorasfeministascontemporâneas.Noconfrontoentreareproduçãoeaaboliçãodospapéisdegênero,evidenciam-secaminhospossíveisdetransformaçãodasociedade,associadascomcontribuiçõesdaspráticasanarquistas.

As organizadoras

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O ESGOTAMENTO DAS POLÍTICAS IDENTITÁRIAS NAS LUTAS SOCIAIS: UMA LEITURA A PARTIR DE JUDITH BUTLER

Maria Joaquina da Silva Cavalcanti1

1 INTRODUÇÃO

Dentrodaslutastravadaspelaesquerdadesdeoúltimoséculo,aschamadaspolíticasidentitárias–conceitoquesurgiunasegundametadedoséculoXXevemsedesenvolvendodesdeentão–passaramaocuparumespaçocentral,sendoatualmenteograndepontodepartidadeondeasdiversaslutassociaisdaesquerdaemanam2.

Tendoemvistaofocodirecionadoàconstituiçãodossujeitoseàsidentidadesqueestesadotamoudeixamdeadotarbemcomoaformacomoessasidentidadesserelacionamentresi,aesquerdacontemporâneatematualmenteseperdidodentrodessascategoriasidentitárias.

Dessaforma,JudithButler(2017;2018),nasobrasabordadasnestetrabalho,buscaentendercomoaformaçãodessasidentidadessedáe,paraalémdisso,comoelasseencaixamdentrodeumalutaprogressista.Emseusensaiossobreoquechamade“vidaprecária”,Butlercriticaessaperspectivadaesquerdaatualdetercomofoco

1 MestrandapeloProgramadePós-GraduaçãoemCiênciasJurídicasdaUniversidadeFederaldaParaíba(PPGCJ-UFPB).E-mail:[email protected].

2 Sobreestetema,ver:Asaporiasdolugardefala:comoapolíticaidentitáriaafetouaesquerda(MORAIS,2018).

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centralascategoriasidentitáriasemdetrimentodeumapercepçãoqueenfoquenaprecariedadedavida.

Portanto,nestetrabalhopretende-sediscorrersobreoqueseriamessaspolíticasidentitárias,easformaspelasquaiselasserelacionamentresi.Toma-secomoreferênciaopensamentodeHelenaHirata(2014),RobertoEfremFilho(2017),e,finalmente,oentendimentodeJudithButler,emsuasobrasProblemasdeGênero(2017)eQuadrosdeGuerra(2018),acercadessasidentidadesequalolocalqueelasdevemocuparnaspolíticasdaesquerdacontemporânea.

2 AS POLÍTICAS IDENTITÁRIAS E SEU ESGOTAMENTO

Aexpressãopolítica identitáriavemdeumdiscursopolíticodoColetivoCombaheeRiver(CCR),coletivodemulheresnegraselésbicas,de1977.Nestediscurso,oCCRdesenvolveuaideiadeumapolíticaradicalqueteriacomocentrosuasprópriasidentidadeseexperiências,poisacreditavamqueaforçadesuapolíticaviriadaíenãodaopressãoqueeraexercidasobreelas.Noentanto,conformeasprópriasprodutorasdestediscursopontuaram,issonãosignificaumaperspectivanaqualapolíticadeveriaserreduzidaapenasaestasidentidades(HAIDER,2019,p.32).

Assim,ofoconasdiversasformasdeidentidadecomeçaasedesenvolver,buscandoumasuperaçãodeumaideiaqueanteriormentesedisseminavadentrodaesquerda,adequeaorigemdetodasasopressõeséasociedadedeclasseseque,portanto,aerradicaçãodosistemadeproduçãocapitalistalevariaaerradicartambémasopressõesdegênero,sexoeraça.ConformeoCCRargumentavaemsuacarta,“oprojetodesocialismorevolucionáriohaviasidominadopeloracismoesexismonaesquerda”(ibidem,p.

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31),sendo,então,incorretoafirmarqueumapolíticadeesquerdabaseadaprimariamentenalutacontraocapitalismoseriasuficienteparaerradicartaisopressões.

Nestesentido,otermointerseccionalidade surgetambémnamesmaépoca,sendousadoparaespecificar“ainterdependênciadasrelaçõesderaça,sexoeclasse”pelajuristaafro-americanaKimberléW.Creshaw(HIRATA,2014,p.62).InicialmenteforjadodentrodomovimentoconhecidocomoBlackFeminismdosanos1970–movimentodoqualoCCRfezparte,equeseopunhaao“feminismobranco,declassemédiaeheteronormativo”(ibidem),otermoeseussignificadoscomeçaramasedesenvolverrealmenteapenasnadécadade1990.

Ainterseccionalidadeéumaformadecompreenderoentrelaçamentodasdiversasidentidades,levandoemcontasuasmúltiplasfacetas,e,alémdisso,entendeainteraçãodossistemasdeopressõesnaproduçãoereproduçãodasdesigualdadesdentrodasociedade(BILGE,2009,apudHIRATA,2014,p.63).ÉumtermoquesedesenvolveapartirdasreflexõesdeCrenshawprimordialmenteacercadosentrelaçamentosentresexoeraça(HIRATA,2014,p.64).

Poroutrolado,naóticadaconsubstancialidade,ofocoprimordialselocalizanospontosdeencontroentreasopressõesdesexoeclasse,propostanofinaldadécadade1970naFrançaporDanièleKergoat.Estavisãofazumacríticaàinterseccionalidadeesuapercepção“geométrica”daintersecçãoentreasopressões,argumentandoqueasposiçõessociaissãodinâmicas,estãoemconstantemudançaenuncasãofixas(KERGOAT,2010,apudHIRATA,2014,p.65-66).

Indomaisafundonestacrítica,Hirata(2014)demonstraaperspectivadeKergoatedaconsubstan-cialidadeemmaisalgunspontos,comooperigodacisãoefragmentaçãodaspráticassociaistendoemvistaaenormequantidadedepontosdeentrada,como

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religião,raça,nação,entreoutros.Essafragmentação,ainda,levaaoriscodecontribuiràprópriaproduçãodessasmesmasviolências.

AcríticacentraldeKergoatàinterseccionalidade,portanto,residenofatodequeaperspectivainterseccional“nãopartedasrelaçõessociaisfundamentais(sexo,classe,raça)emtodasuacomplexidadeedinâmica”e,alémdisso,“aanáliseinterseccionalcolocaemjogo,emgeral,maisopargênero-raça,deixandoadimensãoclassesocialemumplanomenosvisível”(HIRATA,2014,p.65-66).

JánoentendimentodeJudithButler(2017),aquestãodaidentidadevinculadaaodebatefeministasurgenosanos1990comoumanovaformadecompreenderdeondedeve-separtirapróprialutafeminista.Paraaautora,aformaçãodacategoria“mulheres”comosujeitodofeminismoocorrediscursivamenteeétambémefeitodeuma“políticarepresentacional”,constituídapelomesmosistemapolíticoquedeverialevaràsuaemancipação.

Assim,Butlerargumentaqueomovimentofeministadevereconheceressaformação,afirmandoque:

acríticafeministatambémdevecompreendercomoacategoriadas‘mulheres’,osujeitodofeminismo,éproduzidaereprimidapelasmesmasestruturasdepoderporintermédiodasquaissebuscaaemancipação(BUTLER,2017,p.20).

Paraalémdesseproblema,aautoraaindaapontaparaaquestãodequeaconcentraçãodeidentidadesnumtermoúnico“mulheres”possaacabarsugerindoqueexistaalgumtipodeidentidadecomum,desconsiderandoosdiversoseheterogêneossujeitosqueexistemparaalémdessapretensaunidadedeumsujeitodofeminismo.

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Dentrodessaperspectiva,éimportantenotarqueogênerohistoricamentenãoseconstituiudeformacongruenteecoesabemcomoétambématravessadopordiversasquestõesderaça,classe,sexoeregionalidades,que,porsuavez,tambémsãoconstituídasdiscur-sivamente.Assim,nãoépossívelsepararogênerodessesentrelaçamentosemqueeleéproduzidoetambémmantido(BUTLER,2017).

NaesteiradesteentendimentodeButler,umaoutraterminologiaparacompreenderessesentrela-çamentosentreasdiversas formasdeopressão foi forjadapeloprofessorRobertoEfremFilho(2017),quedenominaessasinterligaçõesdereciprocidades constitutivas.Paraoprofessor,quedesenvolveuestetermoemsuatesededoutorado,essasreciprocidadespodemserdefinidascomo“relaçõesdeclasse,gênero,sexualidadeeter-ritoriaisreciprocamenteconstituídas”(EFREMFILHO,2017,p.36-37)queproduzemumasàsoutrasetambémsãoproduzidaseaomesmotempoprodutorasdeviolências.

Opróprioautorpontuaqueesteconceitoéherdeirodasconcepçõesabordadasanteriormentedeinterseccionalidadeeconsubstancialidade,argumentandoque,dessasduasabordagens,asreciprocidadesconstitutivaseentrelaçamentosdentrodasrelaçõessociaiséoquesepodeapreenderdemelhor.Assim,coadunandocomopensamentotambémdeButler,compreendeoprofessorquetaisrelaçõesnãopodemsersomadasumasàsoutrasoualternadasnemmesmosubstituídas,poissãoconstituídaseseconstituememconjuntoumascomasoutras.

Portanto, tendo em vista essas diversas formas decompreendereperceberasidentidadeseseusentrecru-zamentos,bemcomoosprocessosdeopressãoqueperpassamaconstruçãodessasmesmasidentidades,podemosretornaraoquestionamentotrazidoporButlerdequeanoçãoestáticadegêneronãopodemaisserapremissadalutafeminista.Assim,Butler(2017)afirmaque:

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aidentidadedosujeitofeministanãodeveserofundamentodapolíticafeminista,poisaformaçãodosujeitoocorrenointeriordeumcampodepodersistematicamenteencobertopelaafirmaçãodessefundamento(BUTLER,2017,p.25).

Adentrando,então,aesferadoreconhecimentodosujeito,Butler(2018)chamaatençãoparaaquestãodoenquadramentodentrodoqualosujeitoéconstituído,entendendoqueasmoldurasqueconstituemaformacomoapreendemos(ounãoapreendemos)asvidasdeoutroscomopassíveisdeluto,perdidasoulesadasestãopoliticamentesaturadasesãooperaçõesdepoderemsimesmas(BUTLER,2018,p.14).Assim,apercepçãodacondiçãoprecáriadavidahumanasedádentrodeoperaçõesdeapreensão,inteligibilidade,reconhecimentoeenquadramento.

Paraquesejapossível,então,umaampliaçãodereivindicaçõespolíticasesociaissobreproteçãoesobrevivência,énecessáriorepensaressaprecariedadeetodososprocessosdecorrentesdela,entendendo-acomoopontodepartidadalutasocialparapolíticasprogressistasnaesquerda,afimdesuperarascategoriasidentitáriascomocentrodessaluta(ibidem,p.16).

Paraisso,éimportantecompreendercomosedáoprocessodoreconhecimentodosujeito,partindodaideiadequeacapacidadedeapreenderounãoumavidaéalgoquedependedofatodessavidaserounãoproduzidaemconformidadecomasnormasqueaestabelecemcomopartedavida(ibidem).Nestesentido,Butlerapontaparaanecessidadededefiniroqueé,emsi,apreendere,porconseguinte,reconhecerumavida.

Osenquadramentosqueestabelecemessasvidascomopossíveisounãodeseremapreendidas,naperspectivadeButler,“nãosóorganizamaexperiênciavisualcomotambémgeramontologiasespecíficasdosujeito”(ibidem,p.17).Assim,énecessário

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diferenciaroprocessodereconhecimentoeoprocessodeapreensãodeumavida,entendendocomoosdoissãoconstituídosedequeformaatuamnesseenquadramento.

Enquantooreconhecimentoéotermomaisconhecidoedisseminado,aapreensãosediferenciadestenamedidaemquetemumamenorprecisãoconceitual,podendosignificarumreconhecimentosem,noentanto,oplenoconhecimento.Nestesentido,aprópriaapreensãosedábaseadanasnormasdoreconhecimento,masnãoélimitadaporelas.Assim,épossívelapreenderalgoquenãoéreconhecido,oquefazcomqueaapreensãopossasetornarumabaseparaaprópriacríticadoreconhecimento(ibidem,p.18).

ParaButler,portanto,oimportantenessacompre-ensãoébuscarentendercomoasnormasdoreconhe-cimentoagemparatornaralgunssujeitos“reconhecíveis”eoutrosnão,argumentandoque:

Oproblemanãoéapenassabercomoincluirmaispessoasnasnormasexistentes,massimconsiderarcomoasnormasexistentesatribuemreconhecimentodeformadife-renciada(BUTLER,2018,p.20).

Aautoraaindasedebruçasobreoutradistinçãoentredoistermosqueestãopresentesnesseprocessodoreconhecimento,quaissejamaapreensão,anteriormenteapontadacomoumaformadeconhecerquenãochegaaserreconhecimento,eainteligibilidade,que,paraela,deveserentendidacomo“oesquema(ouesquemas)históricogeralqueestabeleceosdomíniosdocognoscível”(ibidem,p.21).Portanto,

Nemtodososatosdeconhecersãoatosdereconhecimento,emboranãosepossaafirmarocontrário:umavidatemqueserinteligívelcomoumavida,temdeseconformaracertasconcepções

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doqueéavida,afimdesetornarreconhecível.Assim,damesmaformaqueasnormasdacondiçãodeserreconhecidopreparamocaminhoparaoreconhecimento,osesquemasdeinteligibilidadecondicionameproduzemessasnormas(BUTLER,2018,p.21).

Essesesquemasdeinteligibilidadeeasformasdeapreensãodavidaatuamdetalformaaproduziremnarrativasdevidaenarrativasdemorte,ondeasdiscussõesacercadoqueéounãovida(ouacercadeapartirdequalpontoavidacomeçaequandoelatermina)sãolocalizadas,ensejandonaconclusãodequenãohávidaoumortesemumenquadramentodeterminado.

Daídepreende-sequeépossívelconceberumavidacomo“viva”,deacordocomosesquemasdeinteligibilidade,sem,contudo,reconhecê-lacomoumavida.Portanto,Butlerafirmaque:

Umafiguravivaforadasnormasdavidanãosomentesetornaoproblemacomoqualanormatividadetemdelidar,maspareceseraquiloqueanormatividadeestáfadadaareproduzir:estávivo,masnãoéumavida(BUTLER,2018,p.22).

Napercepçãodacondiçãoprecáriaedaprecariedadedeumavida,énecessárionãosóapreenderestavidacomovida,mastambémperceberaprecariedadecomoumacaracterísticaapreendidatambémnestesujeitoqueestávivo.Nessesentido,reconheceraprecariedadedosujeito,paraButler,deveriaseropontodepartidadaslutasemproldaspolíticassociaisvoltadasparaessesprópriossujeitos“precários”ou“abjetos”(ibidem,p.30),localizadosàmargemdasociedade.

Noentanto,aautoraafirmaqueaprecariedadenãopodeseradequadamentereconhecidaemsi,sendopossívelapenas

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serapreendida,entendidaepressupostapelasnormasdoreconhecimentoquetambémapodemrejeitar.Naconcepçãobutleriana,narealidadeaprecariedadedeveriaserreconhecidacomocondiçãocompartilhadaportodaahumanidade,tendoemvistaquetodavida(humanaenãohumana)éprecária.

Quandoafirma-sequeumavidapodeserlesadaouatémesmodestruída,afirma-setambémqueessavidaéprecária,eaprecariedadeacarretaviversocialmente,deformaqueavidadeumcertosujeitoestásempre,deumaformaoudeoutra,nasmãosdeumoutrosujeito.Nestesentido,pode-seconceberque,primariamente,todavidapodeserperdida(ibidem,p.31-32).

ParaButler,aprecariedadeeacondiçãoprecáriasãoconceitosqueseentrelaçam.Conformeaautora:

Acondiçãoprecáriadesignaacondiçãopoliticamenteinduzidaaqualcertaspopulaçõessofremcomredessociaiseeconômicasdeapoiodeficienteseficamexpostasdeformadiferenciadaàsviolações,violênciaseàmorte(2018,p.46).

Assim,pode-secompreenderquetodavidaésimprecária,comoafirmadoanteriormente,porémascondiçõesdeprecariedadevariamconformeoscontextossociais.

Nestesentido,Butler(2018)aindaargumentaquepopulaçõesquesãoexpostasàviolênciaarbitráriadoEstadotêmsuacondiçãodeprecariedademaximizada,apontandoqueessasmesmaspopulações,namaiorpartedoscasos,nãotêmaquemrecorreranãoseraopróprioEstadoparacoibiraviolênciaqueeleprópriopraticacontraelas.Assim,“elasrecorremaoEstadoembuscadeproteção,masoEstadoéprecisamenteaquilodoqueelasprecisamserprotegidas”(ibidem,p.47).

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Poressarazão,Butlercompreendequeocaminhoparaareorientaçãodaesquerdaparasuperaras“antinomiasliberais”queatualmenteaconsomemévoltar-separaasformasilegítimasdeviolênciaper-petradaspeloEstado, pontuandoqueosenquadramentosatravésdosquaisaesquerdaépensadacontempo-raneamenteprecisamserredirecionadostendoemvistaessasformasdeviolênciaestatal(ibidem,p.49).

Tendoemvistaesseentendimento,Butlerargumentaemdireçãoaumamudançadeparadigmadentrodalutadaesquerda,indicandoqueoreco-nhecimentodaprecariedadecompartilhadapelahuma-nidadeapontapara“compromissosnormativosdeigualdadeeconvidaaumauniversalizaçãomaissólidadosdireitos”(ibidem,p.50)quesereferemàsnecessidadesbásicashumanas.

Todavia justamente por conta dessa precariedadecompartilhada,nosentidoanteriormenteabordadodequeumavida(queéprecária)sempreseencontrainevitavelmentenasmãosdeoutrossujeitos(quetambémtêmvidasprecárias),équeasrelaçõesdedominaçãoaparecem,poisessessujeitospercebem-secomoameaçadosunspelosoutros.Nestesentido:

Acondiçãocompartilhadadeprecariedadeconduznãoaoreconhecimentorecíproco,massimaumaexploraçãoespecíficadepopulações-alvo,devidasquenãosãoexatamentevidas,quesãoconsideradas‘destrutíveis’e‘nãopassíveisdeluto’(BUTLER,2018,p.53).

Portanto,comoessaspopulaçõesjásãoenquadradascomo“perdíveis”,nãoconstituemobjetodelutopelasociedadequandosãoefetivamenteperdidas.

Dentrodesseentendimentodevidasprecáriasedeprecariedadecompartilhada,apercepçãoprincipaldeButleréadoesgotamentodaspolíticasidentitáriascomopontodepartida

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daslutastravadaspelaesquerda.Aautoracompreendequeofocodapolíticadaesquerdadeveresidir,primariamente,nacríticaàviolênciaestatal,tantonaguerraquantonasviolênciasdiáriaspraticadaspeloEstado,inclusiveaprópriaprivaçãoderecursosbásicosparaminimizaressaprecariedade.Alémdisso,pontuatambémqueessefoco.

[...]Deveriarecairmenosnaspolíticasidentitárias,ounostiposdeinteressesecrençasformuladoscombaseempretensõesidentitárias,emaisnaprecariedadeeemsuasdistribuiçõesdiferenciais,naexpectativadequepossamseformarnovascoligaçõescapazesdesuperarostiposdeimpassesliberaismencionadosanteriormente(BUTLER,2018,p.55).

Assim,paraButler,aprecariedadeéumaquestãoqueperpassatodasascategoriasidentitárias,devendoserabaseparaumapolíticadirecionadanaoposiçãoàviolênciaestataleàsformascomooEstadoproduz,exploraedesignaessascondiçõesprecárias(ibidem).Portanto,énecessáriotomaraquestãodaprecariedadecomopontodepartidaparacriaressasaliançaspolíticasdentrodaesquerda.

Dessa forma,pode-seperceberque,naperspectivabutleriana,ossujeitosquecompõemasmargensdasociedadedevemse apegarmenos às categorias identitárias (oquenãosignificadescartarouignoraressasidentidadesesuaspotencialidadesparaaluta)esevoltarparaessaprecariedadequeperpassatodosessessujeitosqueselocalizamnessamesmamargem,afetando-osdeformasdiferentesdeacordocomascondiçõesprecáriasdentrodasquaiscadaumseinsere,masreverberandoemtodoselesinevitavelmente.

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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diantedoquefoiabordadoacima,épossíveldepreenderqueaspolíticasidentitáriassurgiramcomoumarejeiçãoàconcepçãoengessadadaesquerdasocialistaqueacreditavanocapitalismocomoorigemdetodasasopressõessociais.Talperspectivasedemonstraequivocadatendoemvistaacontinuidadedasopressõesdentroderegimespolíticossocialistas.

Porém,emborasurjacomessapretensão,aperspectivaidentitáriacaminhoudetalformaqueatingiuumesvaziamentopolíticodeseusignificadoeconsequenteapropriaçãodocapitaldasidentidades,fazendocomqueaesquerdaseperdessedentrodessesimpassesliberais.

Procurou-seaquientendercomoas identidadessãoconstituídasepercebidasemseusentrelaçamentosequalaformadesuperaresseesgotamentodessaspolíticasidentitáriasdentrodaesquerda.Paraisso,percebe-seaquiqueacompreensãodeButler(2018)danecessidadedamudançadeparadigma,dentrodalutadaesquerda,paraaprecariedadedavidahumanacomopontodepartidadalutaprogressistaécrucialparaconstruirumalutapolíticaqueexcedaoslimitesdoidentitarismo(sem,todavia,ignoraridentidadesesuaimportânciapolítica).

Umexemplodessamudançadeperspectivadentrodalutaprogressistaéofocoqueomovimentofeministalatino-americanovemdando,dentrodalutapelalegalizaçãodoaborto,àsmortesdemulheresporabortosilegaisrealizadosirregularmente.Ocentrodaquestãodeixadeseraautonomiadamulherparaescolherounãolevaremfrenteumagestação(emborasejaumpontotambémimportante,masnãoofoco)paraseradefesadavidadasmulheres,notadamenteasmulherespobresemajoritariamentenegras,vistoquemulherescujacondiçãofinanceiranãoésuficientementeabastada buscam clínicas clandestinas sem segurança ou

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automedicaçãodemedicamentosabortivoseacabammorrendoemdecorrênciadeabortosmalexecutados.

Assim,nesseexemploépossívelperceberodeslocamentodoenfoquenaquestãomaispróximaàpolíticaidentitária-aautonomiadocorpodamulhereseupoderdedecisãosobresimesma-paraaquestãodaprecariedadedavidadessasmulheres,quesãoossujeitosabjetosquesofremaviolênciaestatalnamedidaemquesãopreteridaspeloEstadonesseprocesso,bemcomosãoasvidasquenãosãoenlutadasporteremsuasvidasnãoreconhecidascomovidaspassíveisdeluto.

Outroexemplo,ligeiramentediferente,masdentrodoqualtambémpodesertraçadaessalinhaderaciocíniodesenvolvidaporButler,éalutapelalegalizaçãodasdrogasnoBrasil.

Recentemente têm-se falado cadavezmenosnumalegalizaçãodasdrogasquetenhacomopontodepartidaalutapelaautonomiadocorpodousuáriodedrogas,quepodeedevedecidirqualsubstânciaconsumirparasuarecreação,ecadavezmaisnumalegalizaçãoquepartadofatodequejovensnegrosdeperiferiasãoosalvosdapolíticadedrogasatualnoBrasil.Assim,percebe-secomoapolíticadedrogasnoBrasiléumexemplodisso,tendoemvistaoEstadosairdeseupapeldeprotetordapopulaçãoeassumirumpapelativonumprocessodeextermíniodajuventudenegranopaís3.

Dessaforma,aspessoas,organizaçõesecoletivosquepautamalutapelalegalizaçãodasdrogastêmseorganizadotendocomopontodepartidaofracassodalegislaçãosobredrogasvigentenopaís,aqualfortaleceeperpetuaaviolênciaestatalparacomos

3 Sobreestetema,ver:Guerraàsdrogaseamanutençãodahierarquiaracial(FERRUGEM,2019);GenocídiodajuventudenegranoBrasil:asnovasformasdeguerra,raçaecolonialidadedopoder.(FLORES,2016);Mãosnacabeça!Dejoelhos!Genocídionegro,biopoder,necropolíticaeoEstadobrasileiro(FLORES,2018).

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sujeitosqueocupamasmargensdasociedade.Parte-se,então,damargemedossujeitosabjetosatingidosporessapolítica,enãododiscursovagodeautonomiadoscorposparadecidirsobreusarounãodrogasdeformarecreativa.

É,portanto,aíquesepercebeaurgênciadessamudançadeperspectivadentrodalutapolíticadeesquerda,poisasquestõesidentitáriasporsisónãoconseguemabarcaraenormecomplexidadedeprocessospelosquaissãoformadasasopressõessociais,chegando,assim,aumesgotamentopolíticodoalcanceestratégicodessaspolíticasidentitárias.

REFERÊNCIAS

BUTLER,Judith.Problemas de gênero:feminismoesubversãodaidentidade.15.ed.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,2017.BUTLER,Judith.Quadros de guerra:quandoavidaépassíveldeluto?5.ed.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,2018.EFREMFILHO,Roberto.MATA-MATA:reciprocidadesconstitutivasentreclasse,gênero,sexualidadeeterritório.2017.248f.Tese(DoutoradoemCiênciasSociais)–UniversidadeEstadualdeCampinas,InstitutodeFilosofiaeCiênciasHumanas,Campinas,SP.Disponívelem:http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/322704.Acessoem:12dez.2019.FERRUGEM,Daniela.Guerra às drogas e a manutenção da hierarquia racial.BeloHorizonte:EditoraLetramento,2019.FLORES,Tarsila.GenocídiodajuventudenegranoBrasil:asnovasformasdeguerra,raçaecolonialidadedopoder.In:MACEDO,Aldenora;LAPA,RaphaelSantos;LIRA,LuanaMenezes;FLORES,Tarsila(Orgs.).Direitos Humanos–DiversasAbordagens.RiodeJaneiro:CâmaraBrasileiradeJovensEscritores,2016.

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FLORES,Tarsila.Mãosnacabeça!Dejoelhos!Genocídionegro,biopoder,necropolíticaeoEstadobrasileiro.In:DASILVA,AltinaAbadia;KUNZ,SidelmarAlvesdaSilva(Orgs).Direitos humanos e educação.Culturatrix:Uberlândia,2018(Ebook).HAIDER,Asad.Armadilha da identidade:raçaeclassenosdiasdehoje.SãoPaulo:Veneta,2019.HIRATA,Helena.Gênero,classeeraça:interseccionalidadeeconsubstancialidadedasrelaçõessociais.Tempo social:revistadesociologiadaUSP,SãoPaulo,v.26,n.1,p.61-73,jun.2014.MORAIS,LaysB.Vieira.As aporias do lugar de fala: como a políticaidentitáriaafetouaesquerda.2018.226f.Dissertação(MestradoemCiênciaPolítica)–UniversidadeFederaldeGoiás,Goiânia,2018.

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FEMINICÍDIOS: GENERIFICAÇÃO DA POLÍTICA E POLITIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA

Emylli Tavares do Nascimento4

1 INTRODUÇÃO

Opresenteartigotemcomoobjetivoprincipalproblematizaranoçãodequeofenômenodosfeminicídios5podesercompreendidocomoumtipodeviolênciaquedecorreexclusivamentedasrelaçõesde gênero.

Inicialmente,pretendemosevidenciarcomoafundamentaçãodos feminicídios como“assassinatosdemulheresporseremmulheres”oupor“condiçãodegênerofeminino”–expressõesrecorrentesnaslegislaçõesepolíticasestatais–éconsubstanciadapeloparadigmadopatriarcado,enquantosistemaqueproduzumaopressãouniversal.Talfundamentação,emboratenharesultadoemganhospolíticosparaas“lutas”feministas,costumadesconsideraruma

4 MestrandapeloProgramadePósGraduaçãoemCiênciasJurídicasdaUniversidadeFederaldaParaíba(PPGCJ-UFPB).EspecialistaemDireitoPúblicopelaPUC-Minas.GraduadaemCiênciasJurídicaspelaUniversidadeFederaldaParaíba(UFPB).IntegrantedoGrupodeRelaçõesAfetivaseViolência(GRAV-UFPB).E-mail:[email protected].

5 Algumasconvençõesgráficasmarcamotexto,demodoqueestãoemitálico:ascategorias“sobsuspeita”comofeminicídios,exatamenteporqueconsistememchavesdeinteligibilidade;aspalavrasgrafadasemlínguaestrangeiraeasobrasdeautoras/esquesãocitadas.Porsuavez,estãoentreaspas:asexpressõesêmicas,como“ódioàsmulheres”eascategoriasteóricasutilizadasquesãodeorigemdeoutras/osautoras/es.

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articulaçãomaisaprofundadadogênerocomoutrascategoriassociaisnaproduçãodasviolências.Parapromoveressaabordagem,realizaremosumarevisãobibliográficaqueperpassaosestudosdeWâniaPasinato,GayleRubin,RobertoEfremFilhoeJudithButler,dentreoutras/osautoras/es.

Emseguida,prosseguiremosnossapesquisaapartirdascontribuiçõesdeAdrianaViannaeLauraLowenkron,JoanW.Scott,MelissaW.Wright,AchilleMbembeetc.,parapensarafeituramútuadogêneroedossentidosepráticasdeEstadonosentremeiosdeuma“necropolítica”queproduzviolênciasdiversas.Nessesentido,apolíticadamorteéassinaladanoscorposdossujeitos,elesmesmossaturadosporrelaçõesreciprocamenteconstituídasporgênero,classe,raça,sexualidadeeterritório.

Aofinaldoartigo,esperamoselucidarquenoçõescomo“discriminaçãodegênero”ou“ódioàsmulheres”(dentretantasoutras)servemparagarantirainteligibilidadedosfeminicídios, sobretudo,diantedeesferasestatais.Todavia,asrelaçõessociaisqueoportunizamasviolênciassãomuitomaiscomplexaseguardamíntimarelaçãocomoutrascategoriassociaisecomasdinâmicaspolítico-econômicasdecadaterritório.

2 PRIMEIROS DEBATES E O PARADIGMA DO PATRIARCADO NAS POLÍTICAS DE GÊNERO

Otermofemicide foiinseridonaliteraturamundialpelasociólogaefeministaDianaRussell,paradesignarosassassinatosdemulheresqueocorrememrazãodeasvítimasseremmulheres.Posteriormente,naobraFemicide: the politics of woman killing (1992),oconceitofoirefinadopelaautoracomacolaboraçãodeJaneCaputiepassouareferenciaropontomáximodeum“continuum de terrorantifeminino”,considerandoqueasexperiênciasdevidadas

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mulheressãopermeadasporviolênciaseviolaçõesoportunizadasporumsistemapatriarcaldedominação.

Osabusosverbaisoufísicos,estupros,prostituição,mutilaçãogenital,proibiçãoaoaborto,heterossexualidadecompulsóriaouquaisquer“outrasformasdeterrorismo”queresultememmorte,nostermosdasautoras,devemsercompreendidascomofemicide, poisseenquadramnumaeconomiasimbólicapatriarcal,definidapeloódioediscriminaçãoaogênerofeminino(RUSSELLeCAPUTI,1992,p.15).

Noentanto,foramnospaísesdaAméricaLatinaqueofemicide ou femicídioganhounotoriedade,principalmente,apartirdocontextodedesaparecimentos,estuproseassassinatosdemulheresemCiudadJuárez,noMéxico.OterritórioemquestãofazfronteiracomosEstadosUnidosdaAméricae,segundoosrelatosdeWâniaPasinato(2011),passoupormudançaseconômicasepolíticasemrazãodoassentamentodeindústriasdetransformaçãodebensnadécadade1970,asquaisalteraramosarranjosdegênerodaregiãoaodarpreferênciaàmãodeobrabaratafeminina.Asmortestiveraminícionosanosde1990,quandoaquelazonageográficajáhaviaseconsolidadocomopalcoparaatividadesrelacionadasaomercadodedrogasilícitas,contrabando,tráficodearmasedepessoas.

O modus operandi específicodosassassinatosdasmulheres,sobretudodeoperáriaspobresemigrantes,assinalavarituaisdeterrorcomelevadoníveldetorturaedesprezoaoscorposfemininos.Comopassardosanos,eaausênciaderespostasouapresentaçãodeculpadosplausíveisporpartedogoverno,várias/osacadêmicas/oseorganizaçõesdasociedadecivilpassaramaelaboraratesedequeosassassinatosdemulheresocorriamnosentremeiosdasdisputasporpoderdegruposlocais,comoenvolvimentodiretoouindiretodeagentesdeEstado.

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Paragarantirinteligibilidadeàquelecenáriodecrueldade,aantropólogafeministaedeputadafederalmexicana,MarcelaLagarde, cunhouo termo feminicídio, paraassinalar “[...]oconjuntodedelitosdelesahumanidadequecontémoscrimeseosdesaparecimentosdemulheres”(LAGARDEapudPASINATO,2011,p.232).Suaintençãoeradestacarocontextodeimpunidadepelaomissãoenegligênciaestatalempreveniroscrimes,comotambémeminvestigar,processarecondenarosculpados.Paraela,ofeminicídiotorna-secrimedeEstadoquandoestenaturalizaaviolênciadegêneroefalhaemsuamissãodecriarcondiçõesegarantiasparaqueasmulheresvivamemsegurança.

Talperspectivaganhoucorporeidadenaslegislaçõesnacionaisdepaíseslatino-americanosecaribenhosqueincorporaramafigurado feminicídio,adespeitodeasmortesviolentaseintencionaisdemulherespossuíremmotivaçõesdistintaseserempraticadasporagentesdiferentes,adependerdascircunstânciashistóricasepolítico-econômicasdecadalocalidade.Porexemplo,alegislaçãobrasileira sobre feminicídio (Leinº13.104/2015)servecomoqualificadoradocrimedehomicídioquandoesteérealizado“contraamulherporrazõesdacondiçãodesexofeminino”,envolvendoviolênciadomésticaefamiliare/oumenosprezooudiscriminaçãoàcondiçãodemulher(art.121,VI,§2º-A,doCódigoPenalde1940).

Evidentemente,alegislaçãoacimafoiadaptadaparadarcontadeumcenáriodeconjugalidade,queconstituia“violênciadomésticaefamiliar”eparececircunscreveramaterializaçãodamaiorpartedosassassinatosdemulheresbrasileiras.Comefeito,àépocadapromulgaçãodalei,oMapa da Violênciade2015apontavaqueem33,2%dasmortesviolentasdemulheresosresponsáveispeloscrimesforamosparceirosouex-parceirosdasvítimas.Alémdisso,oAtlas da Violênciade2019indicaque39,2%doshomicídiosfemininosocorremnaresidênciadavítima,demonstrandoumaaltaprobabilidadedecorresponderemaosfeminicídios íntimos.

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Amaiorpartedas/osativistasdeDireitosHumanos,feministas e teóricas/os progressistas de gênero optou,estrategicamente,porconsolidarumanoçãoampladequeosfeminicídiossãoassassinatosdecorrentesdadiscriminaçãodegênero,comaconivênciadeagentesdeEstadoquenegligenciamaspolíticasdeprevençãoeenfrentamentoàviolênciacontraamulher.Sendoassim,adelimitaçãoteórico-jurídicadosfeminicídios foipromovidanosentidodediferenciá-losdos“crimescomuns”.

ConformenosrelataWâniaPasinato,continuamsendotrêsaspreocupaçõescentrais:1)osfeminicídios precisamsedistanciardosdiscursosrelacionadosaos“crimespassionais”,poisessecaminhoargumentativoafastaaintencionalidadedoagenteepossibilitapenasmaisbrandas;2)osfeminicídios sediferenciamdasmortesresultantesdacriminalidadeurbana,nasquaisasvítimasestãoimplicadasnaatuaçãodegangues,quadrilhas,facçõesemáfias(cenáriosemqueosprocessoscostumamserarquivados)equetêmcrescidoempaísescomoElSalvador,HonduraseGuatemala;e3)osfeminicídios nãosãoherançadostemposemquepaísescomoNicarágua,GuatemalaeElSalvadorexperienciaramconflitosinternosarmados(PASINATO,2011,p.235).

Preocupaçõescomoasdescritasacimasãoacompanhadasdanecessidadedereafirmarpolíticaeanaliticamentequeasmortesdemulheressãoresultantesdeumaopressãodegêneroquetemapotencialidadedeatingiratodas,indistintamente.Essetipodeexplicaçãounívocaétributáriadoparadigmadopatriarcadouniversalereiteraosdiscursossobrea(inescapável)dominaçãomasculinasobreoscorposdasmulheres.

RecordandoosdebatesefetuadosporGayleRubin(1993)naobra O Tráfico de Mulheres: notas sobre a “Economia Política” do Sexo, vemosqueaformulaçãoteóricadopatriarcadoacabadesignandoemumúnicotermotantoacapacidadehumanaparaconstruirumsistemasocietáriocombasenas“diferençassexuais”,quantoàs

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formasempíricasde“opressãosexual”emqueessassociedadessãoorganizadas.Alémdisso,Rubinapontaqueousodo“patriarcado”paracaracterizarasrelaçõesdequalquersociedade,demodoinvariável,fazcomqueotermopercasuaforçaanalítica.Segundoela,o“patriarcado”éumaformadedominaçãomasculinaespecífica,quedeveterseuusorestritoparatratarsobreascomunidadessimilaresasdoVelhoTestamento,deondeotermoseoriginou(RUBIN,1993,p.6).

Ouso do patriarcado em condições a-históricas einflexíveissinalizaqueenquantohouverrelaçõesdegênerohaveráopressãodegênero,bemcomoqueadominaçãomasculinaéinevitável,nãoambíguaeinvariávelporquedecorrentedeumsistemaestruturaldeopressão.Assim,“opatriarcado”torna-seimprecisoeinadequadoparademonstrarqueemboraacategoriadegêneropossuaautonomamenteregraspróprias,elaatuanasrelaçõessociaisdeformaintimamenterelacionadaàsoutrascategoriassociaiscomoraça,classe,sexualidadeetc.;alémdeestarestreitamenteligadaàinstauração,manutençãoeatualizaçãodesistemaspolítico-econômicos.

Estendendoessacríticaàsmortesviolentasdemulheresque,emteoria,seriamocasionadasexclusivamentepeladiscriminaçãofundamentadanogênero,percebemosaoperaçãodeapagamentodediversascircunstânciasqueconformamasubjetividadedossujeitossociais,circunscrevemsuasexperiênciasdevidae,nofim,possibilitamsuasmortes.Considerarapenasogênerocomoaspectofundamentalparaaviabilizaçãodaviolênciacontraasmulheresimplicariaafirmarqueexisteumaessênciatranscendentequereuniriasignificadoparaaexperiênciado“sermulher”,pormeiodeumaopressãouniversalqueatingiriaatodasdamesmaformaecomamesmapotencialidade.

Ocorrequeofenômenodofeminicídio nuncapoderáserapreendidoemtodasuacomplexidadesecontinuarsendoanalisado

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demaneiradesentranhadaaosconflitossociaisquepossibilitamessetipodeviolênciaequecaracterizamossujeitos–vítimaseagressores–neleenvolvidos6.Éprecisoconsiderarogêneroemmeioàarticulaçãodeoutrascategoriassociaiscomosexualidade,raça,classe,territórioetc.,paraexplicardemodosatisfatórioascircunstânciasquelevamàsmortesdemulheres.Issoporque,comonosexplicaAnneMcClintock,emsuaobraCouro Imperial, as categoriassociaisnãoexistemdemodoisolado,pelocontrário:“[...]cadaumaexistenumarelaçãosocialcomoutrascategorias,aindaquedemodosdesiguaisecontraditórios”(2010,p.27).

SeguindoaspistasdeMcClintock,RobertoEfremFilho(2017)desenvolveuoconceitode“reciprocidadesconstitutivas”,paratratardomodocomoessascategoriassociaissãoconstituídasinternaeumbilicalmente,umaatravésdasoutras,aolongodasrelaçõesdepoderqueproduzemepermeiamasexperiênciasconcretasdasvidasdossujeitos.Essetipodeanáliselhepermiteumamelhorcompreensãosobreacomplexidadedastramassociaisqueoportunizamosatosdeviolênciaemsi,comotambémsobreasdisputasdepoderqueocorrememtornodalegitimidadedasvítimas.Taisdisputasganhammaterialidadepormeiodamobilizaçãodenarrativasemveículosmidiáticos,relatóriosoficiaiseprocessosjudiciais,quebuscamapresentara“verdade”sobreasmortesesobreasvidasdossujeitosenvolvidosnoatodaviolência.Segundooautor,gênero,raça,sexualidade,classe(etantasoutrascategoriasemsuasrelaçõesrecíprocas)perfazemessasdisputasdenarrativasemtornodareivindicaçãodaviolênciaedalegitimaçãodavítimae,adependerdasrelaçõesdepoder,tornam(im)possível

6 EsteargumentofoiprimeiramentedesenvolvidonoTrabalhodeConclusãodeCursodaautora,intitulado:“GêneroeSexualidadenaConstruçãoNarrativadoFeminicídioÍntimo:percepçõesdosjuízesleigosdosTribunaisdoJúrideJoãoPessoa(2015–2017)”(2018).

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oreconhecimentodaquelacomouma“vidapassíveldeluto”,novocabuláriodeJudithButler(2017).

OrepertórioteóricodeButlernosauxiliaaperceberqueoqueapreendemoscomoumcorpoquedeveserpreservado,comoumavidaquedeveserprotegidacontraaviolência,nãoéumaobviedade.Narealidade,afilósofanosindicaqueumavidasópodeserreconhecidacomotal–noaspectomaisprofundodotermo–quandoé,desdesempre,dignadeenlutamento.Emsuaspalavras,“[...]apossibilidadedeserenlutadaéumpressupostoparatodavidaqueimporta”(BUTLER,2017,p.33).Nãoobstante,asoperaçõesepistemológicasparaoreconhecimentodeumavidaqueimportaestãoemolduradasporrelaçõesdepoder,forjadaspelosconflitossociaisepornormasdegênero,sexualidade,raça,classeetc.

Nestaperspectiva,explicarosfeminicídios, exclusivamente,emrazãoda“condiçãodemulher”oudas“relaçõesdegênero”interessamaiscomoumaatuaçãoestratégicademovimentosfeministaseorganizaçõesdemulheres,quandodareivindicaçãopolíticasobrea inadmissibilidadedessasmortes.Comesseintuito,atospúblicos,denúnciasnasmídiasediversosdiscursossãomanejadosparagarantiracompressãodoquecaracterizaosfeminicídios. Ainteligibilidadedessetipodeviolênciaéforjadaapartirdoresgatenarrativodeumcontinuumdeagressõesanterioresàmorte;doacionamentode“imagensdebrutalização”doscorposdasmulherescomoresultadodo“machismo”;dosocorrodiscursivoaoincontávelnúmerodebalasoufacadasemseios,vaginasenasfacesdasvítimas,quesópoderiamserexplicadaspelo“menosprezo”epela“repulsa”aogênerofeminino.

ChegoaessapercepçãopelotextoCorpos Brutalizados: conflitos e materializações nas mortes de LGBT,noqualRobertoEfremFilho(2016)fazessemesmomovimentoanalíticoparapensaraatuaçãoda“homofobia”comouma“chavedeinteligibilidade”paraacaracterizaçãodaviolêncianoscorposLGBTcomo“crimesde

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ódio”.Oautoralegaqueoódioeahomofobia,porsisós,nãosãosuficientesparaexplicarasmortes,nemparaexplicarasnumerosaspedradas,facadaseoutrasbrutalidadesàsquaisossujeitosLGBTsãosubmetidosnomomentoextremodaviolêncialetal.Contudo,achave da homofobiatraçaocaminhodainteligibilidadeaovincularasviolênciasàsquestõesdasexualidade(EFREMFILHO,2016,p.329).

Analogamente, o feminicídio serve como chave de inteligibilidadeempregadanosdiscursosfeministasparaanunciarqueasmortesdemulheressãoocasionadaspelo“ódioemenosprezoaogênerofeminino”,pela“dominaçãomasculina”quepermiteaoshomensenxergá-lascomo“propriedade”edemandar-lhesuma“submissãofeminina”,quequandoédesobedecidaculminaemviolêncialetal.

Essetipodenarrativaéprópriodasreivindicaçõespor“direitos”edas“lutasporjustiça”,mobilizadasfrenteàsesferasestatais.Essesespaçosoperamsegundoumalinguagemjurídicaquedesempenhaafunçãonormativaderepresentação,ouseja,produzemeregulamossujeitosnosentremeiosdasdisputaserelaçõesdepoder–medianteleis,normas,práticaseinstituições–e“após”alegamapenasrepresentaroqueproduziram,comanoçãode“sujeitodedireito”perantealei(FOUCAULTapudBUTLER,2014,p.53-54).Porissomesmo,asrelaçõesdepoderdegênero,sexualidade,classe,racializaçãoetc.(queconstituemossujeitosealimentamosconflitossociais)precisamserdesfocadas,demodoaseenquadrarememlógicasbináriassimplificadorasqueservemànoçãoderepresentaçãocaracterísticadalinguagemjurídica.

Trazendoessasprovocaçõesparaaanálisedoqueéreivindicado como feminicídio, éinteressanteperceberqueanoçãodeque“asmulheresmorremporquesãomulheres”,ouporquesofremcomuma“opressãodegênero”estruturadaporum“sistemapatriarcal”,atuaparaasimplificaçãodascircunstâncias,motivosecontextosdiversosquelevamàsmortes,vistoqueafinalidade

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dapráticapolíticaéencaminharsoluçõeslegislativasemedidasgovernamentaisparatratarsobreaviolênciacontraasmulheres.Essasimplificaçãoénecessáriaparaqueasmortesseenquadrememesquemasdeinteligibilidade,emqueavítimadesempenhaseupapeldepassividade,oréuéovioladordopactosocialeoprocessojudicialsegueseupercursológicorumoàpunibilidade.Obedecem-seaosnexosdecausalidadeprópriosàlinguagemjurídicaeconvalidam-sesentidosdeEstado,noentanto,poucoseavançanosestudosteóricossobreofenômenodaviolênciadosfeminicídios.

3 ARTICULANDO CATEGORIAS: GÊNERO, VIOLÊNCIA E NECROPOLÍTICA

Buscandocomplexificaraanálisedosfeminicídios,tomamoscomoprimeiropassoinvestigativoacompreensãodas“dinâmicasmutuamenteprodutivas”degêneroedeEstado.EssemovimentometodológicoéfeitoporAdrianaViannaeLauraLowenkronnoestudosobreO duplo fazer do gênero e do Estado: interconexões, materialidades e linguagens(2017).

Trata-sedeapreendercomoaproduçãodenormaseasperformatividadesdegênerosãofundamentaisparaosprocessossociaisquematerializamopróprioEstadoeviabilizamasregulaçõessociais,e,reciprocamente,comooqueentendemosporgênerotorna-seinteligívelmedianteaspráticasesentidosdeEstado.Logo,gêneroeEstadonãoestãoposicionadosdemodoexternoumaooutro–comoumadimensãoouumaesfera–,elessãoconstituídosdemodointrínsecoeestãoindissociavelmentecosturados.FazeresseexercícioanalíticoédeslocaralinguagemrepresentacionaledarlugaraoaspectomutuamenteprodutivodegêneroedeEstadonointeriordasrelaçõessociais.

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EntendimentomuitosemelhantefoiapresentadoporJoanW.Scott,jáem1988,noensaioO gênero: uma categoria útil para a análise histórica, noqualaautoracriticaanoçãodequea“históriadasmulheres”devesercontadaapartadadahistóriapolíticaeeconômica.ScottrecordaquequandoosestudosdegênerocomeçaramaapontarnaacademianoséculoXX,muitoshistoriadoresatéconcordavamemfazeruma“análisedegênero”,desdequeissosignificassetratarsobreasexperiênciasligadasaosexo,àfamília,aocasamentoetc.Emcontrapartida,ahistoriadoraafirmaqueasrelaçõesdepoderqueproduzemoqueseentendepor“história”sãodesdesempregenerificadas,demaneiraqueéimpossívelpensarelementoscomoaguerra,adiplomaciaeaaltapolítica(processosdeEstado)semconsiderarsuaconstituiçãoporsímbolosesentidosdegênero.Paraela,asformasdeparentesco,omercadodetrabalho,aeducaçãoeoregimegovernamental,namedidaemqueconstroemasdinâmicasdaorganizaçãoeconômicaepolíticatambématuamnaconstituiçãodogênero(SCOTT,2008,p.53-54).

EssetipodeanáliseoperadaporViannaeLowenkron,etambémporScott,coadunacomacompreensãodequeacategoriadogênero–demodoisolado–nãoésuficienteparaexplicarascircunstânciasemotivaçõesdosfeminicídios. Comefeito,essasmortesganhamespecificidadesapartirdascondiçõeshistóricasepolítico-econômicasdecadaterritórioeestãoimbricadascomafeituraderepresentaçõesepolíticasdeEstado(emutuamente,degênero).

Seguindoessepontodevista,MelissaW.Wrighttratasobreasrelaçõesentregênero,violênciaepolíticanosfeminicídios e nos assassinatosligadosaomercadodedrogasilícitasocorridosemCiudadJuárez–México.EmNecropolitics, Narcopolitics, and Femicide: Gendered Violence on the Mexico – U. S. Border(2011),Wrighttemcomoobjetivoinvestigarosdiscursosmobilizadosporempresários,

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agentesestatais,ativistasdeDireitosHumanoseONGsfeministasemtornodaescaladadeviolêncianoterritóriomexicano,analisandoasdisputasdepoderacercadossignificadosatribuídosàsmortes.

Aautoranotacomoaselitescorporativistasegovernamentaispropagamnoçõesdequeasmulherespassíveisdeseremvitimadaspelosfeminicídios sãoaquelas“mulherespúblicas”,queocupamoespaçopúblico,emumtipodediscursonoqualacaracterizaçãodasvítimasdeslizadafigurade“trabalhadoras”nasindústriaspara“prostitutas”derua.Noutrostermos,osagentesdeesferasestataiseempresariaistransferemaculpabilizaçãodosfeminicídios paraasprópriasvítimas,pornãodesempenharemasperformatividadesdesignadasaogênerofemininoderecatodomésticoesexual.Quantoàsmortesmasculinasenquadradasnosesquemasde“guerradonarcotráfico”ou“violênciadasdrogas”,aquelesmesmossujeitosrecorremàpolíticadegêneroparaargumentarqueos“criminosos”estãomatandoentresi,emrazãodasdisputasporterritórioeporconsumidores.Osagentesestataiseempresariaisgarantemquenãosetratamdepessoasdescontroladas,portandoarmasparamatardeformaaleatória,pelocontrário,osassassinatosguardamumaracionalidadeinerenteaos“homensdenegócios”.Novamente,napolíticadegênerodesenvolvidaporrepresentantesdeEstado,aculpabilidaderecaisobreasvítimas.

AanálisedeWrightganharelevâncianamedidaemqueospontosdeconexãoentrepolítica,economianeoliberal,gêneroeafeituradaviolênciasãoressaltados.Afinal,osprincipaisalvosdaviolênciaassociadaao“narcotráfico”sãooshomenstrabalhadorespobresdacidadeeosdosfeminicídios sãoasmulherestrabalhadoraspobresemigrantes,cujostrabalhosprodutivosasseguraramaposiçãodeCiudadJuáreznocenáriodaindustrializaçãoglobalepossibilitaram,nadécadade1990,oAcordodeLivreComérciodaAméricadoNorte(NAFTA)eocrescimentoeconômicodaregião

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comoprocessamentodemercadorias(lícitasounão)eexportaçõesaolongodafronteira.

MelissaWrightobserva,sobretudo,queasnarrativasdeEstadoedosgruposeconômicossãoindicadorasdeuma“necropolítica”,aodefinirquempodeviverequemdevemorrer.FazendousodaferramentateóricacunhadapelohistoriadorefilósofocamaronêsAchilleMbembe,elasalientaqueosdiscursossobreasmortessãogenerificados,oscorpossãoterritorialmentesexualizadosedefinidospoliticamentecomodescartáveis,umavezqueasviolênciasdesempenhamafunçãode“limpeza”socialdaquelessujeitosconsideradosindesejáveis.

NoensaiointituladoNecropolítica,AchilleMbembeevidenciacomoafeituradapolíticanamodernidadeéconstituídaporexperiênciasdedestruiçãohumana,emque“inimigosficcionais”sãosuscitadosparalegitimarviolênciasejustificarregimesdeemergênciacontraum“terror”estabelecido.Nessecontexto,apolíticaatuaparaconcretizarotrabalhodamorte,considerandovidashumanascomodescartáveisesupérfluas,easoberaniapassaasercaracterizadaporumelementofundamental,qualseja:“[...]acapacidadededitarquempodeviverequemdevemorrer”(MBEMBE,2018,p.5).

Aproximando-sedasformulaçõesdeMichelFoucaultsobre“biopoder”,Mbembeassinalaqueparadefinirquemdeveviverequemdevemorreréprecisopromoverumacesuraentregruposhumanos,demaneiraataxarasvidasqueimportameasquenão.Talcesuraéindispensávelparaadistribuiçãodamorteeseenquadracomoracismo,nostermosdeFoucault,enquantotecnologiaquepermiteoexercíciodo“biopoder”.

Oautorcamaronêsreforçaqueasdiscriminaçõesbaseadasnaraçacontinuamsendoumelementocrucialparaoexercíciodasoberanianaatualidade(aexemplodeseusestudossobreaocupaçãocolonialtardo-modernanoApartheid daÁfricadoSul).

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Todavia,diferentementedeFoucault,eleafirmaqueapolíticacontemporâneaestámaisconcentradanaproduçãodamorte,medianteformasdemassacreeaniquilamento,doquecomaregulaçãocalculadadavida.Mbembeapontaqueosconceitosde“biopoder”e“biopolítica”deMichelFoucaultsãoinsuficientesparalidarcomosconflitosdenossaépoca,porissoadicionaasnoçõesde“necropoder”e“necropolítica”.Paraele,aindaqueopoderdependadeumcontroledecorpospormeiodadisciplina,davigilânciaedopoliciamento,comoformadegestaredocilizarossujeitos,asnovastecnologiasdedestruiçãoestãomaispreocupadaseminscreveroscorposnuma“ordemdeeconomiamáxima”representadapelomassacreoupeloextermínio(MBEMBE,2018,p.59).

AselucidaçõesdeMbembesobrea“necropolítica”estãointimamenterelacionadasàsmovimentaçõesdocapitalglobaleàfalênciadaspolíticasneoliberais.Apartirdisso,podemosinferirqueasatualizaçõesdomododeproduçãocapitalistanacontemporaneidadedemandamqueoexercíciodopodersoberanoconcedaprimaziaàmorte,emdetrimentodavida,comoformadegestãodepopulaçõeseterritórios.Taladministraçãodamorteédesenvolvidamediantemecanismosracistasedesumanizadores.

Essasconsideraçõesratificamoentendimentodequeafeituradaviolêncianãopodeserdissociadadasdinâmicaspolítico-econômicasqueconformamterritóriosespecíficos,aomesmotempoemquedenunciamoencadeamentoconstitutivodasrelaçõesdegênero,sexualidade,classe,raçaetc.namaterializaçãodosconflitossociais.

A aplicação dessas noções ao cenário brasileiro éextremamenteoportunaparaproblematizarmosaexistênciadeumadesigualdaderacialnadistribuiçãodaviolêncialetaledosprocessosdecriminalização.Comefeito,asmulheresnegras(pretasepardas)sãoasprincipaisvítimasdehomicídiosnoBrasil, com elevados índicesdevitimizaçãonegraquandocomparadosàsmortesde

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mulheres brancas7,comotambémfiguramcomoalvopreferencialdeuma“necropolítica”voltadaparaoencarceramentoemmassa,pormeiodeumacriminalizaçãodasatividadesrelacionadasaomercadodedrogasilícitas.

Nessesentido,oAtlas da Violência 2019 apontaqueaproporçãodemulheresnegrasentreasvítimasdeviolêncialetalcorrespondea66%detodasasmulheresassassinadasnoBrasilnoanode2017,sendoosEstadosdoRioGrandedoNorte(11,4/100milhab.),Ceará(9,9/100milhab.)eRoraima(9,5/100milhab.),emordemdecrescente,aquelescommaioresíndicesdemortesdemulheresnegras(2019,p.38-46)8.Nãoporacaso,oestadopotiguareoestadocearenseestãonarotadeescoamentodemercadorias,armasdefogoedrogasilícitas,queadentramnoterritóriobrasileiropeloAcreeseguemdestinorumoaoNordesteparadistribuiçãolocaleparaexportaçãointernacional9,ematividadesoperadaspelasmaisconhecidas“facçõescriminosas”dopaís(eseusaliadosregionais):oPrimeiroComandodaCapital(PCC)eoComandoVermelho(CV)(AtlasdaViolência,2019,p.7-11).

Tambémnãocoincidentemente,noperíodode2007a2017,cresceramastaxasdehomicídiosdemulherescometidoscomarmasdefogo,tantoaquelesrealizadosnoexterior(17,5%)quanto

7 NoBrasil,astaxasdevitimizaçãodemulheresnegrascresceramem60,5%eastaxasdemulheresnão-negrasaumentaram1,7%,duranteodecêniode2007-2017(CERQUEIRA,2019,p.38).

8 Emumrankinggeralquecontabilizaasmortesdemulheresnegrasenão-negrasnoBrasil,temososseguintesestados:1º)Roraima;2º)RioGrandedoNorte;3ºAcre;4ºCearáe5ºGoiás(CERQUEIRA,2019,p.38).

9 EstarotaseinicianoPeruevaiparaoAcre,paraentãochegaraoNordeste.Arotanordestinafoicriadaemmeadosdosanos2000,quandoaproduçãodecocaínanaColômbiahaviaenfraquecidoeprejudicadoarotasul/sudeste,quetemcomoportadeentradaosEstadosdoMatoGrossodoSul(viaBolívia)edoParaná(viaParaguai)(MANSOeDIAS,2017,p.20).

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nointerior(29,8%)dasresidênciasdasvítimas(AtlasdaViolência,2019,p.41).Noquadrogeraldehomicídiosdopaís,novamentesãoosestadosdoAcre(+538,4%),RioGrandedoNorte(+286,9%)eCeará(+254,7%)quelideramorankingdeaumentonastaxasdeviolênciaarmada(AtlasdaViolência,2019,p.83-84).

Por sua vez, o Levantamento Nacional de Informações Penitenciáriasrevelaqueataxadeaprisionamentofemininoaumentou525%noBrasil,noperíododedezesseisanos,demodoqueopaísocupaa5ªposiçãoemumrankingcomasmaiorespopulaçõesdemulheresencarceradasnomundo.Ademais,62%dapopulaçãoprisionalfemininabrasileiraécompostapormulheresnegrase62%dasmulheresqueestãoprivadasdeliberdaderespondemporcrimesligadosaomercadodedrogasilícitas,namodalidadede“associaçãoaotráfico”(INFOPENMULHERES,2017,p.17-53).

Os dados quemostram umamaior vitimização demulheresnegraspormortesviolentaseporpolíticasestataisdeencarceramentoemmassasomam-seàsinformaçõesdorelatórioVisível e Invisível: a vitimização das mulheres no Brasil(2019),asquaiselucidamqueasmulheresnegrasestãomaissuscetíveisasofreremviolênciastantonoâmbitodoméstico(nasuaresidênciae/ounadeparentes)quantonaviapública(naruae/ouemespaçosdetrabalhoelazer),quandocomparadasàstaxasdevitimizaçãodemulheresnão-negras(brancas,amarelaseindígenas).Quandoreunidos,essesnúmerospodemsignificarqueasmortesdemulheresnegrasocorrememcontextosdefeminicídios íntimoscomotambémporoutrasformasdefeminicídios eviolênciasletais.

Essasinformaçõesdemonstramacomplexidadeemtornodasmortesviolentaseintencionaisdemulheres,quepodemserdecorrentesdeviolênciadoméstica,familiareconjugal–quandosãopraticadasporfamiliarese(ex)parceirosíntimos,geralmentenaresidênciadasvítimas–comotambémpodemestarrelacionadasàsdinâmicasmaisabrangentesdacriminalidadeurbana–quando

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asmortesestãoligadas(diretaouindiretamente)aosconflitosarmadosentregruposesujeitosquedisputamterritórioseintegramomercadodedrogasilícitas.Detodomodo,somentequandodesentranhamososconflitossociaiséquepercebemosqueasdinâmicasrelativasàsmortesviolentasdemulheressãomúltiplasequeoutrascategoriasalémdogênero,comoraçaeterritório,atuamnamaterializaçãodessaviolência.

Emborasejapatenteaexistênciadeumaacumulaçãosocialdaviolênciasobreasmulheresnegras,frisamosqueacategoriadaraçadeveatuarnofornecimentodepistasparaacompreensãodoporquêessasmulheressãoosalvospreferenciaisdaviolênciafeminicídaoudosprocessosestataisdeencarceramento,demodoalgumaraçadevefigurarcomoacausaouomotivoporsisóparaaconcretizaçãodessasformasdedestruiçãodevida.

RelembrandoaselucidaçõesdeAchilleMbembe,temosqueosprocessosderacializaçãoatuamprioritariamenteparaadistribuiçãodepráticas“necropolíticas”,sejamelasconcretizadasporórgãosestataisouporindivíduosegruposprivados(comomilíciasegruposdeextermínio).Dessaforma,gêneroeraçasãotecidosintimamenteaosprocessosesentidosdeEstado,queconformamcorposeterritóriosprecáriosepossibilitamqueasvidas(easmortes)decertoshomensemulheressejamconstituídascontingencialmentepelaviolência,especialmenteemzonasecircunstânciasdeexclusãosocial.

Asarticulaçõesentre“necropolítica”enquantotrabalhodamorteeasrelaçõesraciaissãofundamentaisparapensarmosquaissãoasvidasdignaseindignasdeluto,cujapossibilidadedaperdafazcomqueelassejampreservadasoudescartadassocialmente,desdeoprincípio.Nessaperspectiva,JulianaBorges(2018),analisandoacategoriada“necropolítica”,afirmaqueháumalógicasistêmicadedescartabilidadedasvidasnegras,queencontraexpressãotantonamortequantonocárcereeépossibilitadapor

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processosdedesumanizaçãodessessujeitosperanteasociedade.Naoperacionalidadedessalógica,asrelaçõesneoliberaisservemaoextermíniodapopulaçãoracializadaeempobrecidaedosgrupossociaisquenãoapresentamutilidadeaosistemacapitalista,demodoquedeslizamosdeumapolíticadeexclusãoparaumapolíticadeextermíniodecorposconsiderados“descartáveis”(BORGES,2018,p.266-267).

Todosessesdados,provenientesdepesquisaserelatóriosdistintos,nãosãosimplescoincidências,massimindicadoresdecaminhosinvestigativosaserempercorridos.Elesdenunciamquehámuitoaserextraídodasrelaçõesreciprocamenteconstitutivasentregênero,raça,classe,sexualidadeeterritório.Essascategoriasforjamossujeitos,compõemasrelaçõessociaisqueoportunizamaviolênciaeintegramasdinâmicasda“necropolítica”,pormeiodeum“duplofazer”degêneroedeEstado.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Asnarrativasteóricasepolíticasesboçadasnesteartigodemonstraramque,desdesempre,asrepresentaçõesdegêneroeaspráticasdeEstadosãoproduzidasmutuamente.Evidênciadissoéaatuaçãodeativistasedemovimentosfeministasque,aoreivindicarasmortesdemulherescomoumtipodeviolênciaespecíficaresultantedadiscriminaçãodegênerooudaopressãopatriarcal,demandaperanteoEstadooreconhecimentodofeminicídio comoumainadmissibilidadehistórica.

ÉessetipodediscursosobreasmortesqueseconformaaosnexosdecausalidadedeEstado,demaneiraqueofeminicídio age comochavedeinteligibilidadeparagarantiadacaracterizaçãodasvítimasnosprocessosjudiciaiseparaqueasinvestigaçõessobreasviolênciasseencaminhemparaapuniçãoestataldosculpados.

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Todavia,acompreensãodofenômenodasmortesviolentasdemulheres,paraalémdalógicarepresentacional,dependedaabordagemdogêneroapartirdasrelaçõessociaisquelhedãomaterialidade–pormeiodasquaisépossívelapreenderaarticulaçãoreciprocamenteconstitutivadaraça/etnia,sexualidade,dasrelaçõesdeclasseedoscontextosterritoriaisqueatuamnaconstituiçãodossujeitos–,paraexplicarporquemúltiplasformasdeviolênciaatingemmulheresdediferentestipos.

Assim,apesquisaetnográficadeMelissaW.Wrightadquirerelevânciaparaasdiscussõestraçadasnopresenteartigo,poispartederelaçõesconcretasparaentenderosfeminicídios e as violências deCiudadJuárezqueatingeas/ostrabalhadoras/espobres,alémdeobservarasdinâmicaspolítico-econômicasdaqueleterritórioeomodocomorepresentaçõesdeEstadoforamproduzidaspormeiodareivindicaçãodossignificados(degênero)dasmortes.

Demodosemelhante,osíndicesdevitimizaçãoextraídosdoAtlasdaViolênciaedeoutrosrelatóriosoficiaisesboçamasimbricaçõesdediversascategoriassociaisnasmortesdemulheresbrasileiras,comdestaqueparaaraça.Osdadostambémpermitiramentreverasdinâmicassociaisrelacionadasàconcentraçãoterritorialdaviolência,tomandocomoexemploatrilhadeixadapelomercadodedrogasilícitaseafacilitaçãoaoacessodearmasdefogonessescenárioseterritórios.

Porseuturno,acategoriada“necropolítica”éresgatadaporJulianaBorgesparapensarapolíticadamorteapartirdadistribuiçãodaviolênciaconformepráticaserepresentaçõesracistasque,emúltimaanálise,perfazemsentidosdeEstado.Esseexercícioanalíticonosfornecepistasparaacompreensãodosmotivosquelevamasmulheresnegrasaseremasprincipaisvítimasdemortesviolentaseintencionaise,potencialmente,defeminicídiosnocontextobrasileiro.

Longedeapontarrespostasconcretas,esperamosqueasprovocaçõestraçadasincitemoutraspesquisadorassobre

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feminicídiosaseguirorumoquejáforaapontadoporWâniaPasinatodesde2011,quandofalavasobreanecessidadedeexpandirosconhecimentosrelativosàviolênciaeàcriminalidadeurbana,àsrelaçõesdegêneroeàspolíticasdesegurançapública,demaneiraanãoreproduziralógicailusóriaegenerificadaqueseparaespaçopúblicoeprivado.

REFERÊNCIAS

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TRANSFEMINICÍDIO: ENTRE ABJEÇÃO E PRECARIEDADE

Ana Carolina Gondim de Albuquerque Oliveira10

1 INTRODUÇÃO

Imemorialmente,asociedadeépautadapornormasque,àprimeiravista,têmafinalidadedegarantiromínimoequilíbriodas,e,nasrelaçõessociais.Entretanto,algumasregrasultrapassamasbarreirasdaindividualidadehumanaevislumbramdisciplinaraesferaextremamenteprivada,ouseja,aidentidadedegêneroeasexualidadedosindivíduos.

Amatrizculturalhegemônicaquecompreendeasrelaçõessociaisébaseadanaseguinteregra:existemdoissexosquesãoestruturasbiológicas,portanto,seencontramforadosdomíniosculturais,sãoimanentesàcondiçãodeserhumano.Cadasexocorrespondeadadocomportamento,absolutamentecaracterísticodecadaume,porsuavez,amanifestaçãodasexualidadehumanaestávinculadaaestadualidadeúnica,demodolinear,comúnicapossibilidade,aheterossexualidade.Destemodo,osqueultrapassamasfronteirasbináriassãorelegadosaumnão-lugar,nãoencontramespaçonasociedade.Muitasvezeseliminadosatravésdaviolênciamaisvil,cruenta,naspalavrasdeBento(2014),queensejam,segundoEfremFilho(2016),imagensdebrutalidade.

10 DoutorandapeloProgramadePós-GraduaçãoemCiênciasJurídicasdaUniversidadeFederaldaParaíba(PPGCJ-UFPB).MestraemCiênciasJurídicas(PPGCJ-UFPB).IntegrantedoGrupodePesquisaTeoriasdosDireitosHumanos,DireitoeSociedade:genealogiaeprospectivasdopensamentojurídico(UFPB).Pesquisadoranaáreadeviolênciadegênero.E-mail:[email protected].

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Nestaperspectiva,aspessoastransexuaisvivemempermanentevulnerabilidadeporquantodesobedecemamatrizculturaldeinteligibilidade(BUTLER,2008)queregulaasociedade.Porsuavez,asmulherestransexuaiseastravestisseencontramemsituaçãodehipervulnerabilidadeemrazãoderomperemdemodomaisvisívelobinarismoheterossexual.Aoassimprocederem,sedeparamcomviolênciaeletalidade.Porconseguinte,restaoquestionamento:otransfeminicídio,consideradocomoaviolêncialetaleintencionalcontraasmulherestrans11 eastravestis,éaexpressãodaaniquilaçãodevidasnãopassíveisdeluto?

Estepaperapresentabreverevisãodeliteraturasobreotransfeminicídiocomoexpressãodaprecariedadedevidasconsideradasnãopassíveisdeluto.Paraacontextualizaçãoeanálisedoproblema,oaporteteórico,prioritariamente,partiudopensamentobutleriano,atravésdeduasdesuasobras–“ProblemasdeGênero”e“QuadrosdeGuerra:quandoavidaépassíveldeluto?”–,natentativadecompreenderaproblemáticadanormatizaçãodocorpoedasperformatividadesdegênero,apreendidaseinternalizadasnoprocessodesocialização.

11 ConsoanteestudorealizadoporBarbosa(2013,p.355),aexpressão”trans”podedesignarou“[...]englobardiversascategoriasdeidentificação”.Aindaexistemuitadiscussãosobreaspossibilidadesdesignificaçãodotermoque,emlinhasgerais,poderáserutilizadoparaaludirastransgeneridades,noqueestãoinclusasaspessoastravestis,transexuais,transgêneros,dentreoutros.Destaforma,seconstituicomopalavrapolissêmica,emrazãodos“[...]múltiplosagenciamentosqueperpassameconstituemossujeitos”(BARBOSA,2013,p.356).Todavia,arealizaçãodacirurgiaderedesignaçãosexualaindaéconsiderada,“[...]usualmente”(ibidem, p.362)comooreferencialparadiferenciartransexuaisdetravestis.Contudo,essasassertivasnãosãoconclusivas,tampouco,taxativasemrazãodotermo“trans”açambarcarsubjetividadesqueultrapassamquaisquerenquadramentos,conformeacompreensãobutleriana.Apartirdoexposto,esteestudoutilizaotermo‘trans’paradenominarasmulherestransexuaisetravestis.

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Apesquisafoirealizadanoperíododeagostoadezembrode2019duranteocursodeGêneroeSexualidade,componenteconstitutivodamatrizcurriculardoProgramadePós-GraduaçãoemSociologiadaUniversidadeFederaldaParaíba(PPGS/UFPB).Noquedizrespeitoaosaspectoséticosdapesquisa,oestudogaranteascitaçõesdasautoriasedasfontesbibliográficasutilizadasparaelaboraçãodestemanuscrito.Apósolevantamentobibliográficoeafasedaleituraexploratória,seguidadaleituraseletiva,empreendeu-seleituraanalítica,comointuitodeordenaresistematizarasinformaçõesobtidasnasfontesdepesquisaparaaapreensãodoconhecimentosobretransfeminicídioesuarelaçãocomascategoriasprecariedade,abjeçãoepassividade.Porfim,efetuou-seasínteseintegradoradomaterialinvestigadoqueseráapresentadaemduasseçõesqueseseguem.

Comissoemmente,oobjetivodesteestudofoidemonstrarqueotransfeminicídioéoresultadodaprecariedadedevidasemrazãodestasromperemcomobinarismoheteronormativoenãoserem,portanto,passíveisdeluto.

2 TRANSFEMINICÍDIO: ASSASSINATO DA “TRAVESTI”12 PRETA E POBRE

Atransgressãoàlógicabinária,heterossexualefalocêntrica,viaderegra,vemacompanhadadeprocessosdemarginalização,

12 Aexpressão“travesti”éutilizada,àprimeiravista,comoumaformadepreciativaparaadesignaçãodepessoatransgênero,dentreestas,mulherestransexuaisetravestis.Contudo,naatualidade,éutilizadocomoestratégiapolíticadomovimentoLGBT+àmedidaquepromovearessignificaçãodetermo,antespejorativo,comométododeenfrentamentoàviolênciaeaosprocessosdeexclusãoemarginalização.Referidotermofazpartedocampoempíricodeestudodapesquisadora/autora,consubstanciando-secomoumacategoriaêmica,ouseja,éumainterpretação/designaçãooriundadoprópriomovimentoLGBT+.

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violênciaeexclusãocontraasmulhereseaspessoascujogêneroédissidenteaomodelohegemônico(RUBIN,2017;BUTLER,2008;BENTO,2018).Emmuitassituaçõesestaviolênciaéletal.Àvistadisto,entreasdissidentes,aspessoastransexuaissãorelegadasàcondiçãodepermanentesubalternidadeeexclusãoe,dentreestas,asmulherestransexuaiseastravestisaindaseencontramemmaiorvulnerabilidade,poisestãoimersasemsituaçãodeviolênciacontínuaediscriminaçãodúplice:primeiroporviolaremasregrasbináriase,emseguida,porassumiremacondiçãofeminina.

Aviolêncialetaleintencionalcontrapessoastransexuais,especialmenteasmulherestranseastravestissãorecorrentesnoBrasil.Essasmortes,emsuamaioria,nãoocorremporcausasnaturais,sãocriminosas.Segundorelatóriosproduzidospelaorganizaçãonão-governamentalinternacionalTransgenderEurope(TGEU)epublicadosemedições,atravésdoprojetoTransMurderMonitoring13(TMM),entrejaneirode2008edezembrode2015,cercade2.016pessoastransexuaisoudegênero-diversoforammortasem68países,edestemontante,emnúmerosabsolutos,noBrasilforam845homicídios.Esteresultadocolocaopaísemprimeirolugarnorankingcomoomaisviolentoparaaludidapopulação,seguidopeloMéxicocom247assassinatos.Asformasmaiscomunsdessasmortessão:poralvejamento(733pessoas);seguidoporesfaqueamento(406pessoas);porespancamento(213pessoas);estrangulamento(79pessoas);porapedrejamento(52pessoas);decapitação(36pessoas);cortenagarganta(27pessoas);asfixia(30pessoas);tortura(26pessoas);queimadura(23pessoas);

13 Oprojetomonitora,atravésdenotícias,casosdeviolênciaapessoastransexuaisemtodomundo,estabelecendoparceriasemtodososcontinentes,submetendoestesdadosàanálise.Asinformaçõessãoobtidasatravésdeinstituiçõeseorganizaçõesinternacionaisdeproteçãoaosdireitoshumanos,porgruposeassociaçõesnão-governamentaiseporqualquerpessoaqueconheçaouestáinseridaemsituaçãodeviolênciafundadaemtransfobia.

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poratropelamento(23pessoas);outrascausas(27pessoas)enãoreportado(341pessoas).

OBrasilocupouoprimeirolugarnostrêsprimeirosrelatórios,ondeseobservam171mortes,entre2016e2017,e136mortes,entre2015e2016.Observa-se,portanto,quesãomortesperpetradaspormeiosquedenotamacrueldade,corroborandoasimagensdebrutalidadecatalogadasporEfremFilho(2016)aorelatarque:

SobreocorpodeJoséRenatodosSantos,osperitoscontaram26facadas.SobreodeSandroAlmeidaLúcio,30.JurandirLeitefoiestrangulado.Seucadávertraziamarcasdelutacorporal.LaísMartinssofreuviolênciasexualantesdeserassassinada.Seurostofoicompletamentedesfiguradoporpedrada[...]CarlosdeLimarecebeudiversostiros.AcabeçadeJeováAlbinofoiesmagadacomumapedra[...](EFREMFILHO,2016,p.313).

Emregra,mesmoadespeitodaformacruel,pelaqualaviolênciaextremaéperpetradacontraaspessoasquerompemasnormasbinárias,tornarestaviolência/brutalidadevisível,continuaEfremFilho(2016,p.314),seriaummododeoupretensãode“[...]implicarcertoreconhecimentopúblicoparaasvulnerabilidadesdas‘vidasprecárias’”,evocandoButler.Paratanto,osmeiosempregadosnapráticadosatosviolentoseletaisreafirmamqueasrelaçõesdegêneroedesexualidadesãoindispensáveisparacompreenderamotivaçãodetaiscrimes.Omodus operandidasmortespermitemsuacompreensãocomo‘crimesdeódio’,postoque,naspalavrasdeEfremFilho(p.314),“Asbrutalidadesexemplificamascrueldades”.Ademais,“Abrutalizaçãodosexooudasexualidadesedesenvolvenumcenárioemqueasexualidade,crimeeviolênciaseconstituemreciprocamente”(EFREMFILHO,2016,p.329).

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OsrelatóriosdoprojetoTransMurderMonitoringtambémapontamqueosassassinatosocorrem,sobretudo,emespaçospúblicos,comoseconstataráaseguir:narua(531mortes);naprópriacasa(283mortes);árearural/floresta(89mortes);estrada/rodovia(56mortes);emveículoautomotor(36mortes);empraia/rio(35mortes);parque/praçapública/mercadopúblico(36mortes);hotel/motel(38mortes);bar/restaurante/boate(23mortes);canteirodeobras/prédioabandonado(26mortes);emsalãodebeleza(16mortes);residênciadecliente(18mortes);prisão/delegacia(11mortes);ferrovia/metrô(9mortes);outroslocais(78mortes);nãoreportado(731mortes).Seforlevadoemconsideraçãoosnúmerosapontados,àexceçãodositens‘outroslocais’e‘nãoreportado’,seobservaráquedosomatóriodositens‘rua,árearural,estrada/rodovia,praia/rio,praçapública,prisãoeferrovia’(consideradoslocaispúblicos)apresentarátotalde767pessoasassassinadas,percentualmente63,54%.

OdossiêanualdaAssociaçãoNacionaldeTravestiseTransexuaisdoBrasil(ANTRA)de2018corroboracomosdadoscatalogadospeloprojetoTransMurderMonitoring.Nopaísocorreram163assassinatosdepessoastrans,sendo158travestisemulherestransexuais,4homenstranse1pessoanão-binária.Ressalte-sequesobreestesnúmerospesamassubnotificaçõeseainvisibilidadedestasmortesviolentas.Omesmodossiêestimaquehouveaumentodecercade30%desubnotificaçõesdoscasos(37%dasmídiasnãorespeitamaidentidadedegênerodasvítimasouainda,34casosquenãoconstaramestemarcador).Ademais,aviolênciadegênerosereforçaquando97,5%(aumentode3%emrelaçãoa2017)dosassassinatosforamcontrapessoastransdogênerofeminino(158casos)(BENEVIDES,NOGUEIRA,2018).

OdossiêelaboradopelaANTRA(2018)reiteraoargumentodeHirata(2014)sobreaexistênciadeumainterdependêncianoquetangeasrelaçõesdepoderentreraça,gêneroeclassesocial.Ouseja,

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háumliamequevinculaaviolênciasofridapelossujeitos,nocaso,asmulherestransetravestis,àclasseeàraçaaqualestaspertencem,umavezque82%doscasosdehomicídiosidentificadospelaANTRA(2018)vitimammulherestransetravestisnegrasepardas.

Destemodo,aviolênciaseconsolidaatravésdemuitasformasdeopressãosimultâneas,queestãoontologicamentevinculadas.Ouseja,sãocategoriasindissociáveis.Entretanto,aindissociabilidade,porsisó,passaaserconsideradacategoriaanalítica,denominadade‘interseccionalidade’.Hirata(2014)esclarecequeotermointerseccionalidade,apesardeserrelativamentenovo,começouaserprojetadocomoBlack Feminism,aindanosanos1970,eseaplicaasrelaçõesentregêneroeraça.Outrossim,aclassesocialsecoadunaaogêneroearaçacomocategoriasanalíticasqueproduzeminterfasesatuandonasrelaçõessociaisenasrelaçõesdepoder.

Acorrelaçãoentregêneroeclassesocialfoinominada‘consubstancialidade’,debatidaamplamenteporDanièleKergoat,desdeadécadade1970,consolidando-secomacriaçãodoGrupodeEstudossobreaDivisãoSocialeSexualdoTrabalhonaacademiafrancesa,aindanadécadade1980(HIRATA,2014).Todavia,osignificadodeconsubstancialidadealcançarátambémacategoriaraça,promovendoenlaçamentoentreclasse,sexoeraça.Estafusãoentreadefiniçãodeinterseccionalidadeeconsubstancialidadesejustificaemrazãoda“[...]nãohierarquizaçãodasformasdeopressão”(HIRATA,2014,p.63).Ademais,Hiratarelataascríticasfeitasàteoriadainterseccionalidade,emrazãodestaalocara“dimensãoclassesocialemumplanomenosvisível”(2014,p.66),aotempoemqueafiançaqueexistemoutrasopiniõesapontandoque,paraalémdaraça,daclasseedosexo,háoutrasvariáveiscomoaidade,areligião,bemcomoanacionalidade.

AsponderaçõesdeHiratasobreamultiplicidadedevariáveissociais,queintegramaperspectivadainterseccionalidade,sãocorroboradaspelapesquisapublicadapelaTransgenderEurope

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(TGEU)noiníciode2018,organizadaporFedorkoeBerredo(2017),aqualdispõesobreocicloviciosodaviolênciavoltadaparaasquestõesqueenvolvemaexploraçãodotrabalhosexualnoscontextosdemigração,evidenciandoanacionalidadeearaçacomoelementosque,somadosàclasseeaogênero,produzemaviolênciaextrema,chegandoaosseguintesresultados:43%daspessoastransassassinadasnaEuropasãoprofissionaisdosexoimigrantes.EstenúmeroaumentanaItália,onde78%daspessoastransassassinadassãoprofissionaisdosexoimigrantes.

Irrefutavelmente, essas pessoas estão expostas: àdiscriminaçãoracial,poisamaioriaémigrantedepaísesperiféricos,e:àdiscriminaçãosocial,poissãopessoasquefogemdapobrezaemseuspaísesdeorigem,demodoqueamigração,porsisó“[...]éumreflexodeopçõesdesubsistêncialimitadasederecursoseconômicoslimitados”(FEDORKO,BERREDO,2017,p.07).Assim,deacordocomapesquisadesaúde,intitulada‘OverdiagnosedbutUnderserved’,tambémelaboradapelaTGEU,em2017,erealizadaem5países(Geórgia,Polônia,Sérvia,EspanhaeSuécia),cercade70%daspessoasqueseocuparamnotrabalhosexualnosdozemesesanterioresàpesquisadecidiramfazê-loprincipalmenteparasubsistência;eaxenofobia,emrazãodesuacondiçãodeimigrante.FedorkoeBerredo(2017)registramquemulherestrans,profissionaisdosexo,assassinadasnosEUAsão,percentualmente:72%afrodescendentes;9%latinas;2%americanas(nativas)e17%deetniasdesconhecidas.

Aspessoastransprofissionaisdosexoenfrentamestigmaediscriminaçãointerseccionaisdevidoaoseu statusenquantopessoatranseprofissionaldosexo,comoutrosfatoresdeinfluência,incluindo-seoracismo,misoginia,capacitismo,elitismoexenofobia.Muitasdestaspessoassãoimpactadaspeladiscriminaçãoemcontextosdemoradia,pelo

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excessivopoliciamentoefaltadeacessoàjustiça,serviçosdesaúdeebenefíciossociais,umavezqueotrabalhosexualnãoéreconhecidocomotrabalhoemseusrespectivospaíses(FEDORKO,BERREDO,2017,p.09).

Outrofatorassociadoàinterseccionalidade/consubs- tancialidadeéafaixaetária.OdossiêdaANTRAaduzqueamaioriadasvítimas(60,5%)demortesviolentasletaiseintencionais,noBrasil,em2018,foramjovensmulherestransetravestis,comidadeentre17e29anos.Estima-seque,emmédia,aos13anosdeidadeasadolescentestravestisetransexuaissãobanidasdesuascasaspelospais.Destas,cercade0,02%conseguemacessarauniversidade,porém,72%nãoconcluemoensinomédioe56%nãoconcluemoensinofundamental.Porconseguinte,estabaixaescolaridadeirátambémmitigaraspossibilidadesdeinserçãonomercadoformaldetrabalho,forçando-asaprocurarasubsistêncianaprostituiçãoeemsubempregos.Nestaperspectiva,oDossiê2018daANTRAasseveraquecercade90%dapopulaçãodetravestisemulherestrans,noBrasil,utilizamaprostituiçãocomoúnicafontederendaepossibilidadedesubsistência,devidoabaixaescolaridadeprovocadapeloprocessodeexclusãoescolar.AANTRA(2018)contabilizouque65%dosassassinatosforamdirecionadosàsmulherestransetravestisquesãoprostitutase,destemontante,60%delesaconteceunasruas(BENEVIDES,NOGUEIRA,2018).Dessemodo,aexclusãofamiliaracarretaumagamadeconsequênciasmaléficas:

Arejeiçãofamiliaréumfatorsignificativoquecontribuiparaaexperiênciadaspessoastranscomafaltademoradiaenabuscadeestratégiasderemuneraçãoimediatasparasobreviver(FEDORKO,BERREDO,2017,p.08).

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Emrazãodestedesprezodas famílias, adolescentestransexuaisnãousufruemdodireitoàeducação,saúde,moradia,dentreoutros,gerandoconsequências,detodasasordens,portodaasuavida.

Istoposto,odossiê2018daANTRArevalidaestudoanteriorcompiladopelaComissãoInteramericanadeDireitosHumanos(CIDH/OEA),publicadoem2015eorelatóriodoprojetoTransMurderMonitoringdaTGEU(2008-201514).Emambos,seconstatouqueaviolência,opreconceitoeadiscriminaçãopredominantesnasociedadeenasfamíliasreduzemaspossibilidadesdeasmulherestransobteremeducação,serviçosdesaúde,abrigosexclusivoseacessoaomercadoformaldetrabalho,e,comoconsequênciadestesfatoresdar-seoenvolvimentoemocupaçõesqueaspõememmaiorperigo,potencializandoaprobabilidadedeviolênciaecriminalização.Aviolêncialetalcontraasmulherestransexuaiseastravestiséumfatosocialincontroverso.Nestaacepção,Bento(2014)reiteraque:

[...]ofemininorepresentaaquiloqueédesvalorizadosocialmente,quandoestefemininoéencarnadoemcorposquenasceramcompênis ,háumtransbordamentodaconsciênciacoletivaqueéestruturadanacrençadequeaidentidadedegêneroéumaexpressãododesejodoscromossomasedoshormônios.(BENTO,2014,p.01).

Aconjunturadehostilidadeeviolênciaemdesfavordamulhertransexualedatravestiéconsequênciadosconflitossociais

14 Das2.016pessoastransexuaisassassinadasentrejaneirode2008edezembrode2015,483eramprofissionaisdosexo.Imperiosoobservarquedentreos2.016casosdehomicídios,em1.280casosnãoháregistrodaprofissãodavítima(TGEU/TMM,2016).

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relacionadosàrupturacomasnormasdegêneroedasbarreirasbinárias,istoporqueosdiscursossobreosexoguardamlugardedestaquenasociedade.Istoposto,mesmoadespeitodealgunsavançoslegislativosparaqueaviolênciacontraasmulheressejasuperada(emespecialaLeinº13.104/201515),astransexuaiseastravestis,pornãoseremconsideradaslegalmentecomotal,nãosãotuteladasepermanecemdesprotegidas,oquedenotaaausênciadepolíticacriminalvoltadaparaestaparceladasociedadecomoconsequência,consoanteCampos(2013),dosistemapenaledaprópriacriminologiaestar,historicamente,centradaemabordagemandrocêntrica.

Dessemodo,adominaçãomasculinaestápresentetambémnasestruturasdocontrolepunitivo,obinarismoheterossexistatambémasconstitui,porquantoaLeidoFeminicídioteveseualcancereduzido,umavezqueolegisladorutilizounaconfecçãodotextoacategoria‘sexo’emdetrimentodacategoria‘gênero’,restringindoasuaaplicaçãoapenasaoshomicídioscometidoscontraasmulherescisgênero,assimconsideradasapenaspelaóticabiológica.Portanto,mesmoqueadiscussãodegênerotenhasetransformadoemcategoriadeanálisecientífica(SCOTT,2008),demodoinquestionável,aciênciafoi/éinstrumentalizadapelomasculino,sendohistoricamenteandrocêntrica.

Nestaacepção,Foucault(2009)asseveraqueumdospoderescapazesdeproduzirossujeitosedizeranormalidadeéoDireitoque,naconcepçãodeOlsen(2000),aindaéandrocêntrico.Condicionaossujeitosque,porseuturno,estãoadstritos,“formados,definidosereproduzidos”àsexigênciasdesuasnormas,ouseja,“Opoderjurídico‘produz’inevitavelmenteoquealegameramenterepresentar”(BUTLER,2008,p.18-19).Comoconsequência,acriminologiatambémsetornouumdiscursomasculinizado,umavezqueaprodução

15 Alcunhada de Lei do Feminicídio.

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intelectualrefletetodasascontradiçõessociaiseasrelaçõesdeopressãoqueassustentam(MENDES,2014;CAMPOS,2013).

3 MULHERES TRANS E TRAVESTIS: CORPOS ABJETOS EM VIDAS PRECÁRIAS

Duranteséculosenxergarasociedade,asrelaçõessociaiseoscomportamentosatravésdelentesculturaisfoialgoinconcebívelemfunçãodasteoriasessencialistassedebruçaremsobreahumanidadeproduzindometanarrativasduranteoprocessodesocializaçãoquesãointernalizadaspelaspessoasereproduzidas,noqueBourdieu(2010) designou habitus.

Nestedebate,asexualidadehumananãoficaàmargem.Todavia,aformacomoseconcebeasexualidade,assimcomoasnormaspelasquaisestaésubmetidasãoculturais.Ossignificadosdocorpoedasexualidadedependemdosprocessoshistóricoseculturais,sãocontingentes,noquecorroboraMerleau-Ponty(2006)aoafirmarqueohomeméumaideiahistóricaenãoumaespécienatural.Destemodo,umadasdiscussõesafloradasnaatualidadeéodebatedasciênciassociaissobreafronteiraentrenaturezaecultura.Afinal,oquepertenceaomundodanaturezaeaomundodacultura?Dequemodosedáainterfaceentreambos?Equaisseriamasconsequênciasoriundasdessarelação?

DiantedestesquestionamentosecomrespaldoemFoucault(2009)eButler(2008),ocorpo,osexoeasexualidadesãoespéciesdetecnologiasbiopolíticascomplexas,noquecorroboraBozonaoasseverarquea“construçãosocialtemumpapelcentralnaelaboraçãodasexualidadehumana[...]oshomensnãosabemmaissecomportarsexualmenteporinstinto”,indelevelmente,asexualidadeé“construçãosocial[...]apreendidaatravésdacultura”(2004,p.13).Osexonãoé,porsisó,umaestruturaunicamentebiológica,mas

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ferramentadecontroleedominação,e,igualmenteaogênero,umartefatocultural,pois,“arigor,talvezo‘sexo’sempretenhasidoogênero,detalformaqueadistinçãoentresexoegênerosereveleabsolutamentenenhuma”(BUTLER,2008,p.25).Portanto,oquesecompreendepornaturezahumanaseriaconsequênciaouefeitodeummecanismosocialque,entreoutrasprovidências,traduzcomonatural,porexemplo,aheterossexualidade,obinarismo,asuperioridademasculinaque,porfim,sãodiscursosproduzidosereproduzidossocialmente.Porconseguinte,aideiaqueosexoéumacategoriapré-discursivaémeramenteretórica,“efeitodoaparatodeconstruçãoculturalquedesignamosporgênero”(BUTLER,2008,p.25-26),pois“inexistecorpoemestadonatural,sempreestácompreendidonatramasocialdesentidos”(LEBRETON,2007),melhordizendo,inexistecorponeutro,semsignificadosculturais.

Ocorpoclassificadocomomasculinooufemininofoiconstruídoàmedidadasnecessidadessociaisepolíticas,noqualforamimputadossentidosepráticasaolongodahistoriografiahumana.Ocorpoésocialmenteconstruído,naafirmaçãodeLeBreton(2007);portanto,nãoéacausa,masoefeitodaculturaemdeterminadaépoca,condicionadoporsabereseinteressesdeordemmédica,políticaejurídica,porexemplo(FOUCAULT,2009).Portanto,nãoexistecorpoimuneàinterpretaçãoeenquadramento(BUTLER,2015),aossignificadosculturais.E,porsuavez,finalizaButlerqueosexonãopodeserconsiderado“umafacticidadeanatômicapré-discursiva”,porque“ocorpo,éemsimesmo,umaconstrução,assimcomooéamiríadede‘corpos’queconstituiodomíniodossujeitoscommarcasdegênero”(BUTLER,2008,p.27).

Nestaperspectiva,ascríticasàconcepçãodoscorposedasexualidadecomodadosnaturaissãocontundentes,umavezqueestessãorealidadesconstruídaspelacultura,pelasideologias,pelalinguagemepeloscódigosdecomportamentoque,conjugados,determinamhierarquiasdeidentidadesedesujeitos:incluídosou

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excluídos;dignosouabjetos.Assim,aindaconformeasimpressõesdeButler,ocorponãopodeserumarealidadeneutraporestáexpostoa“forçasarticuladassocialmenteepoliticamenteeasexigênciasdasociabilidade”(2015,p.16),nasquaisestãoinclusasalinguagem,otrabalho,odesejo.E,aobediênciaounãoaessasexigências,éoqueproporcionaviabilidadeaoscorpos.

Porconseguinte,oscorposconsideradosnormais,e,portanto,aceitáveis,sãoosquerespeitamoscódigosimpostoseashierarquias,enquantoosdissidentesficariamàmargemdosistema(BUTLER,2008;FOUCAULT,2009)edaprópriacondiçãodeserhumano.Porquanto,mesmoadespeitodaconcepçãomodernasobreauniversalidadeeimanênciadadignidadedapessoahumana,asnormassociaisproduzem-nadesigualmentee,noquelheconcerne,ahumanidadeéprivilégioparaalguns,apenas.Àmargemestãooscorposabjetosquerefletemvidasprecárias,hipervulneráveis,desconsideradasemfunçãodasnormasdegênero,consoanteasseveraButler:

Secertasvidasnãosãoqualificadascomovidasouse,desdeocomeço,nãosãoconcebíveiscomovidasdeacordocomcertosenquadramentosepistemológicos,entãoessasvidasnuncaserãovividasnemperdidasnosentidoplenodessaspalavras(BUTLER,2015,p.13).

Istoposto,depreende-seque,aonãoseamoldaremaobinarismoheteronormativo,osindivíduosnãoterãosuacondiçãodepessoareconhecidae,porconsequência,oseulugarnasociedade.Seriaaprecariedadepotencializada16decorposnãodesejáveise,portanto,nãotutelados.Éumcorpoque,mesmoexpostoauma“[...]modelagemeaumaformasocial”nãoseamoldaaestaforma

16 Butler(2015,p.14)afirmaqueavida,porsisó,temcondiçãoprecária.

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pré-determinada,estes“‘sujeitos’nãosãoexatamentereconhecíveiscomosujeitosehá‘vidas’quedificilmente–ou,melhordizendo,nunca–sãoreconhecidascomovidas”(BUTLER,2015,p.16).Estasvidase,porsuavez,oser,apessoadestavidaéconstruídaeganhasignificadose,esomentese,secoadunaraoqueopoderimpõe,demodoque“[...]nãopodemosfazerreferênciaaesse‘ser’foradasrelaçõesdepoder”(BUTLER,2015,p.14),pois,“estávivo,masnãoéumavida”(ibidem,p.22).

Bento(2017)aduzqueossujeitosabjetosatépoucotemponãoeramobjetodeinteressedasociologia,mas,mesmoadespeitodestafaltadeinteresse,torna-seconceitofundamentalparaacompreensãoediscussãodolugar(ounãolugar)reservadonasociedadeaoscorposquenãosãointeligíveis,aexemploaspessoastransexuais.Porsuavez,Butler(2008)utilizouaideiadeabjeçãonadiscussãodeinteligibilidadehumanaapartirdaconcepçãodeKristeva.Abjetoéoquecausarepulsa,osdejetoscorporais,numaperspectivaindividual,eosdejetossociais,numaperspectivacoletiva.Assimsendo,abjetoéoqueasociedadeexecra,repulsa,ooutroabjetoéo“nãoeu”,éooutroexcremento,“queviramerda”(BUTLER,2008,p.191).Paratanto,abjeção,aindaconsoanteBentoé:

[...]umconjuntodepráticasreativas,hegemo- nicamentelegitimadas,queretiradosujeitoqualquerníveldeinteligibilidadehumana.Osatributosconsideradosqualificadoresparaoscorposentraremnorolde‘sereshumanos’nãoencontrammoradaquandoseestádiantedeumapessoanaqualoaparatoconceitualdequesedispõeparasignificaçãodeexistênciahumananãoalcança.Alinguagementraempane,emcolapso.E,nessafaltade‘texto’,onojoeaviolênciaseinstauram(BENTO,2017,p.50).

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ÉpeloprismadaabjeçãoqueButler(2008)introduzodebatesobreavulnerabilidadedaspessoastransgênero(transexuais,travestis)edasintersexuaisemrazãodaheteronormatividade.Corposecondutasdevemseamoldaràsprescriçõesnormativasdeterminadasparaomasculinoeparaofeminino.Devemserinteligíveis,ouseja,manterrelaçõesdecoerênciaecontinuidadeentresexo,gênero,práticaedesejosexual.Lésbicas,gays,bissexuais,transexuais,travestis,intersexuaisequeers(LGBTTIQ),ou seja, todas as pessoas que rompema coma regra daheterossexualidadeecomobinarismoultrapassamafronteiradanormalidadecausandoestranhamentoàsociedade,sãorelegadosàmarginalizaçãoeaviolência,postoqueaheterossexualidadeénormadominante,estabeleceprivilégios,promovedesigualdadeselegitimaviolências.

Aspessoasquesetornamfronteiriças,alterandoseuscorpos,exteriorizandoassimsuadissidência,sãoconsideradasabjetas.Aeliminaçãodestaspessoasensejaaausênciadolutosocialporquesãovidasquenãosãoreconhecidascomoválidas,legítimas,inteligíveiseque,portanto,nãodevemserconservadas,istoé,“semcondiçãodeserenlutada,nãohávida,háalgoqueestávivo,masqueédiferentedeumavida[...]equenãoseráenlutadaquandoperdida”(BUTLER,2015,p.32-33).Dizrespeitoaolutosocial.Oluto,comosentimentodeperdadequeméimportante,paracomasvidasquedeveriamserpreservadas.Asociedadeseenlutapeloshumanos,paratanto,olutoseriaumfatordeterminantedaprópriaideiadedignidadehumana.Dignoéquemensejaosentimentodeperdae,portanto,deluto,deentristecimento,criandograusdedignidadeedehumanidade,certamente.Ouseja,hápessoasquetêmmaisvalorsocialdoqueoutras.

Aconjunturadehostilidadeeviolênciaemdesfavordaspessoastranséconsequência,consoanteButler(2015),darecusaaoenquadramentosocial,ouseja,mencionadosindivíduosconstroem,

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vivenciamexperiênciaidentitáriaquetemcomocaracterísticaoconflitocomasnormasdegênero,rompendoasbarreirasbinárias,e,porconseguinte,ainteligibilidade.Istoporqueosexoguardalugardedestaque;dáacesso,aomesmotempo,àvidadocorpoeàvidadaespécie,conformeafirmaFoucault(2009).E,emdecorrênciadestaimportância,asexualidadepassaaserpreocupaçãofundamentalcomoobjetivonãoapenasderegularoscorposindividualmente,masderegularaspopulações,ouseja,ocorposocial.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Inegavelmente,naatualidade,oentendimentoqueaspessoassãodetentorasdedireitoshumanosestáconsolidada.Todavia,nãoobstantetalconcepção,aindasãonotóriospreconceitosediscriminaçõesvivenciadosporpessoasquenãoseenquadramnopadrãoconsideradonormalpelasociedade,emrazãodenãosecoadunaremàsregrassociais.

Nestaperspectiva,umdosrequisitosparaqueosindivíduosgozemdedignidadeemrazãodoreconhecimentodesuacondiçãodepessoahumanae,consequentemente,desujeitodedireitos,ésuacompatibilidadecomomodelobinárioheterossexista.Estaéaregra.Aludidacondiçãodizrespeito,sobretudo,aspessoastransexuais,quepossuem,demodogeral,identidadedegênerodiversadosexoatribuídoquandodeseunascimento.Porsuavez,referidaconvicçãoéconsideradatransgressãosocialeaosesentiratingida,asociedadereúneesforçosnointuitodedesconsiderar,deslegitimar,punir,eeliminarosquesepropõemacolocaremriscoasupostanormalidadesexuale,conseguintemente,obinarismo,quedemarcaosconfinsdomasculinoedofeminino.Significandoqueoscorposnãodevemserremodelados;ascondutasnãopodemserressignificadaseosdesejosdevemencontraros

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opostos,ouseja,homensdesejammulheres,queporsuavez,desejamhomens,apenas.

Desconsiderarooutroemrazãodestenãoseguirasregrasbináriaseheterossexuaisensejaapotencializaçãodaprecariedadedestasvidasedestescorpos,muitasvezesmaterializadapelaviolêncialetal.Todavia,estasmortesnãoserãosentidassocialmente,nãohaveráo‘luto’social,principalmentediantedarealidadedasmulherestransexuaisedastravestis.Estascausamrepulsa,nojosocialporteremexistênciaininteligível.Aludidasmulheressãoexemplosdecorposconsideradosabjetos.

Istoposto,sedepreendequeodireitoàvidaérelativoecondicionado.Inexistem,portanto,direitosinerentesàcondiçãodeserhumano,poisaprópriacondiçãohumananãoéimanenteàpessoa,corroborandoateoriabutlerianaquerefutaaideiadeumcorpoanterioraqualquersignificação,(des)essencializandoosujeito,ensejandoapossibilidadedeasidentidadesseremvariáveisporqueaprópriaconcepçãodoqueéohumanoécontingente.Porconseguinte,otransfeminicídioéaexteriorizaçãodestaabjeçãoedadestituiçãodolutodestaspessoas.

REFERÊNCIAS

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OS EFEITOS DA PASSABILIDADE: AS DIFERENTES EXPERIÊNCIAS DE MULHERES TRAVESTIS E TRANSEXUAIS E HOMENS TRANSEXUAIS NO TRABALHO

Felipe Franklin Anacleto da Costa17

1 INTRODUÇÃO

Assimcomoemdiversasinstituiçõessociais,sobretudoempaísesdaperiferiacapitalista,omercadodetrabalhoéumambientequeproduzereproduzgrandesdesigualdadesestruturais.Asdiferençasentreastrajetóriasdehomensemulheres(mesmoquandoemconsonânciacomacisgeneridade18emsuasexperiênciaslaboraisevidenciaaurgênciadaproblemáticadadesigualdadedegênero.Menoressaláriosparaosmesmoscargos,nãocumprimentoefetivodedireitoscomoalicençamaternidadeemaioresobstáculosparaalcançarcargosdegestãoeliderançasãoapenasalgunsdosproblemasenfrentadospelasmulheresnotrabalho.

Jánocasodaspessoastravestisetransexuais,enfrentam-seoutros tiposdebarreiras, queexpandemas condiçõesdesafiadoras.Emummundoquebaseiasuasrelaçõessociaisna

17 MestrandopeloProgramadePós-GraduaçãoemSociologia(PPGS-UFPB).GraduadoemComunicaçãoSocialcomhabilitaçãoemRelaçõesPúblicaspelaUniversidadeFederaldaParaíba(UFPB).IntegraoLaboratóriodeEstudosePesquisasemPolíticasPúblicaseTrabalho(LAEPT-UFPB)eoGrupodeEstudosemEtnografiasUrbanas(GUETU-UFPB).E-mail:[email protected].

18 Acisgeneridadepodesercompreendidacomoumtermoquedizrespeitoapessoascujasidentidadesdegêneroestãoemconsonânciacomassuasanatomiasesexosbiológicos.

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heteronormatividade,pessoasquenãoseenquadramnospadrõesesperadosdegêneroesexualidadesofremsançõesqueocorremapartirdediversostiposdeviolência,dasfísicasàssimbólicas.Osproblemasmuitasvezescomeçamjánainfânciaemmeioàfamíliaevãoatéavidaadulta,quandoháanecessidadedelutarpelasubsistênciaatravésdotrabalho,cujomercadoformal,émaisumainstânciadeexclusão,emboraemalgunscasosaindahajagozodedeterminadasvantagensemrelaçãoaoutros.

Esteartigovisadiscutirdiferençasentreasexperiênciasvivenciadaspormulherestravestisetransexuaisehomenstransexuaisnomercadodetrabalho.Nestesentido,oconceitodepassabilidade adquirecaráterfundamental,poistratadascondiçõesqueestaspessoasapresentamounãoparaquesuasidentidadesdegêneropassemdespercebidasnoslugaresquefrequentam.

Medianterevisãodeliteraturasobreobrasquetratamdastemáticasgêneroesexualidadeetrabalhoegênero,alémdeumaentrevistarealizadaemvisitasiniciaisaocampodeumapesquisademestradoemandamentointituladaOs impactos do Programa Transcidadania (PMJP/PB) na empregabilidade de travestis e transexuais,defendoqueatrajetóriadehomenstransexuaiséfacilitadaportermaior passabilidadeemrelaçãoàsmulherestravestisetransexuais.

2 QUANDO O GÊNERO INTERDITA O TRABALHO: A REALIDADE DE MULHERES TRAVESTIS E TRANSEXUAIS “NÃO PASSÁVEIS”

Sea inserçãonomercadodetrabalhoformalparaasmulherescisgênerasocorreemmeioaprocessosquepromovemdesigualdadesdeoportunidadesemrelaçãoaoshomenscisgêneros,asexperiênciasdemulherestravestisetransexuaisemrelaçãoaotrabalhorevelamnamaioriadasvezestrajetóriasrepletasde

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obstáculosquesematerializamnadiscriminaçãoenaexclusãodestaspessoasdoespaçoformaldetrabalho.

A empresa capitalista é uma das instituições cujainteligibilidadenãoabarcaindivíduosquenãoseenquadramnospadrõeshegemônicosderaça,gêneroecondiçãofísica19. Embora hajamatualmentediversasiniciativasvoltadasparaaintegraçãodepessoasnegras,LGBTsepessoascomdeficiênciasaosquadrosfuncionaisdasempresase/ounodesenvolvimentodeprodutosdirecionadosaestespúblicos,denominadaspelaliteraturadocampodaAdministraçãode“gestãodadiversidade”(FLEURY,2000),compreendoquesãoaçõesinsuficientesdiantedeumaproblemáticadeexclusãomacroestrutural.

Aforteocorrênciadahomofobiainstitucional20atestaestefato.DeacordocomdefiniçãodaextintaSecretariadeDireitosHumanosdaPresidênciadaRepública,essarealidadetratade“formaspelasquaisinstituiçõesdiscriminampessoasemfunçãodesuaorientaçãosexualouidentidadedegêneropresumida”(BRASIL,2011).EmpesquisaquerealizeinoCentrodeReferênciadeEnfrentamentoaLGBTfobianoEstadodaParaíba–EspaçoLGBT,verifiqueimaisde30casosdehomofobiainstitucionalocorridosnacidadedeJoãoPessoaentre2011e2013(COSTA,2014).

Analisaraquestãodaidentidadedegênerosuscitavariadaspolêmicas,aindamaisemcontextosdecerceamentodaliberdadeacadêmicaparadiscutirdeterminadostemasconsideradoscomo

19 Nestecasoapontomaisespecificamenteparaaquestãodadeficiênciafísica,emboratenhaconhecimentoderelatosdepessoasqueforamrejeitadasporempregadoresporestaremacimadopeso.

20 Opteiporadotarnestetextoaexpressão“homofobiainstitucional”porserotermoqueutilizadopeloreferidoórgãoquefaziapartedaadministraçãofederal.CompreendoqueLGBTfobiainstitucionaltalvezsejaumadenominaçãomaisinteressanteporabarcartambémaspessoasbissexuais,travestisetransexuais.

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passíveisde“doutrinaçãoideológica”.Estetermoeclodenobojodeumaconjunturasociopolíticamarcadapelanovaascensãodoconservadorismo,concretizadapelaeleiçãoem2018deumgovernodeextremadireitanoBrasil.Todavia,édeextremanecessidadepersistirnadiscussãoenaproposiçãodeestratégiasdeenfrentamentoaosproblemascausadospeladiscriminaçãoquemantêmoBrasilanoapósanonaliderançadorankingdeassassinatosdepessoastransexuais.

SegundoosrelatóriosdaorganizaçãonãogovernamentalTransgenderEurope,167transexuaisforamassassinadosnoBrasilentre1deoutubrode2017e30desetembrode2018(QUEIROGA,2018),númerosqueposicionamopaíscomooquemaismataestapopulaçãoemtodoomundo.NãoéatoaqueaexpectativadevidadeumapessoatransexualnoBrasilédeapenas35anos(BORTONI,2017).

UmadasautorasquecontribuiconsideravelmenteparaodebateacadêmicoacercadadesconstruçãodeumaidentidadefixadegêneroéJudithButler.SuaobraProblemas de gênero: feminismo e subversão da identidade,lançadaem1990nosEstadosUnidos,tevenãoapenasrepercussõesteóricas,mastambémpolíticas,poissepropôsaquestionarosujeitoparaoqualalutafeministaestavadirigida.Obinômiosexo/gêneroqueconsideraosexocomoalgonaturaleogênerocomocaractereculturalmenteconstruídopodesercompreendidocomoabasequealicerçouateoriafeminista,constituindo-secomopontodepartidaparaacríticadaautora(BUTLER,2019).

Embasando-se emFoucault21 e sua genealogia, queinvestigavaasmaneirascomoaconstruçãodesabereseaação

21 Foucault(2014)afirmaqueasexualidadeéumdispositivohistóricoquefoialvodeconstantedisciplinamentoecontrole,sobretudopelaspolíticasdeEstado.Taispolíticassãoobservadasmedianteoconceitodebiopoder,que,

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deinstituiçõesconformavampoderesquenãoerambaseadosnadominaçãoenarepressão,masabsorvidospelosindivíduos,Butler(2019)investigacomoaheterossexualidadecompulsóriaeofalocentrismoproduzempoderesediscursosquedefinemasformashegemônicase,portanto,legítimasdevivenciarogêneroeasexualidade.

Demaneiraprovocativa,aautoraquestionaapróprianoçãodesujeito,quenãopodemaisserconsideradocomoumaentidadeestávelepermanente,comonaincessanteafirmaçãodofeminismonadefesadosdireitosda“categoriamulher”.Nolugardadefiniçãodeumsujeitoespecífico,queincideemenquadramentosqueexcluemoutrossujeitos,porquenãopensarnumaconstruçãovariáveldaidentidade?Destafeita,aautoraproblematizaaconstruçãodasidentidadesperformadasdegênerodetravestis,transexuaiseintersexuais,queparaeladeveriamserincluídospelalutafeminista(BUTLER,2019).

Asinscriçõescorporaisdasmulherestravestisetransexuaissãopartefundamentalnaconstruçãodesuasidentidadesdegênero.Trata-sedecorposreinventados,naexpressãocunhadaporBento(2008)paraproporcionaratributosfísicosqueseaproximemdaperformatividadefemininaapresentadapelosseusgestos,indumentáriaseformasdepercebereinterpretararealidadesocial.

Énestadireçãoqueépensadooconceitodepassabilidade,queconformePonteseSilva (2018,p.403): “[..] expõeodesenvolvimentodecontornosetraçoscorporaisque,nolimite,garantemapossibilidadedeumapessoaserreconhecidacomocisgênera”.EmdiálogocomPaulBeatrizPreciado,reflete-sesobreapossibilidadedaagêncianaconstruçãodogêneroedasexualidade,ouseja,asformaspelasquaisosindivíduospodemseutilizarde

emresumo,podeserentendidocomoestratégiasempreendidascomênfasedosgovernosparadisciplinaremoscorposdosindivíduos.

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tecnologiasdediversostipos,aexemplodautilizaçãodefármacosedarealizaçãodecirurgias,quepodemserdefinidaspeloconceitode“tecnogênero”(PRECIADO,2018;PONTES;SILVA,2018).

Aotrazeremrelatosdeumconjuntodeinterlocutoresformadopormulheresehomenstrans,essaspesquisasevidenciamumasériederelaçõesqueseformammedianteautilizaçãodestastecnologias,gerandohierarquiasentrequemtemocorpomaispassávelounão,assimcomooreforçoàcisnormatividadecomonormahegemônicadegênero/sexualidade,vistoqueabuscapelapassabilidadeserelacionacomoobjetivode“passarporcis”.Tambémrevelamamaiorfacilidadedoshomenstransnestesentido,poisautilizaçãodehormônioscomoatestosteronaapresentaresultadosmaisimediatosqueoestrogênio,propiciandoodesenvolvimentodecaracterísticasfísicasessenciaisparaaadequaçãoàinteligibilidadenormativadegênero.Umdosentrevistadosafirmou:

[...]quemjáteveumaaltadosedetestosteronanocorponãovaiconseguirreverteramaiorpartedasmudanças.Então,amaioriadoshomenstransquesehormonizamhámuitotempo,vocêvênarua,éhomem.Então,vocêconsegueseperdernomeiodamultidão,umacoisaquenãocostumaacontecercomtravestisemulherestrans.Nãosemváriascirurgiasquealgumasfazem,demodificaçãofacial,demudarascordasvocais,sãocoisasquehomenstransgeralmentenãoprecisamfazerparaseperder(PONTES;SILVA,2018,p.406).

Aspesquisassobreasexperiênciasdemulherestransexuaisetravestiscomotrabalhotemreveladoqueamenorpassabilidadequemuitasdelaspossuemtemdificultadosuasinserções,principalmente

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nomercadodetrabalhoformal(MARINHO,2017;HARTMANN,2017;RONDAS;MACHADO,2015).

Éimportantesalientarqueabaixaescolaridade,resultadomuitasvezesdoabandonodaescolanainfânciaounaadolescênciadevidoarecorrentessituaçõesdiscriminatórias,tambémcorroboraparaesteprocesso.Poristoqueagrandemaioriadasmulherestransexuais,éinduzidaagarantirseusustentonaprostituiçãoe/ouemprofissõesligadasaouniversoditocomofeminino,queexigempoucaqualificaçãoeoferecembaixaremuneração,comocabeleireira,faxineira,copeira,etc. (ADELMAN,2003apudHARTMANN,2017).

Otelemarketingéumadasáreasdomercadoquetêmabsorvidocomcertafrequênciamulherestravestisetransexuais.NacidadedeJoãoPessoa,duascall centerssãoasprincipaisparceirasdoProgramaTranscidadania,realizandofrequentementeprocessosseletivoscomcotasparaestapopulação.Nestecaso,ainvisibilidadedasfunções,tornaapresençadastravestisetransexuaisnão“prejudicial”aestasempresas,poiselasseconstituemcomomerasengrenagensdeumatendimentotelefônicoenãoexpõemsuasimagensparaosclientes.Alémdisto,estasempresasprecarizamasrelaçõesdetrabalho,exigindoocumprimentodeumarotinarigidamentecontroladaecronometrada,alémdapressãoconstanteematingirmetaseresultados.

Objetivandoproblematizardemaneiramaisprofícuaasdiferençasentreasexperiênciasdemulheresehomenstransexuaiscomotrabalho,segueumaanálisedetrajetóriadeumhomemtransexual,realizadaapartirdeentrevistafeitaemminhapesquisadecampoinicialnoProgramaTranscidadania.

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3 A CONDIÇÃO DE SER PASSÁVEL: ANALISANDO A TRAJETÓRIA DE UM HOMEM TRANSEXUAL

OinterlocutoréumfuncionáriodoProgramaTranscidadania,homemtrans,de30anosdeidade,pardo,comensinosuperiorincompletonaáreadePsicologiaemoradordeumbairroperiféricodacidadedeJoãoPessoa.Viveumauniãoestávelheterossexualcomumamulhercisgêneroetemrendimentodepoucomaisdeum salário mínimo.

Emrelaçãoàvivêncianainfância,afirmanãotersesentidomuitodiferente,poisaindanãosepercebiaenquantotransexual,eramaisumacriançanomeiodetantasoutras.Comopassardosanoseaentradanaadolescência,viusurgirdeterminadasbarreirasculturais,ouseja,papéispré-concebidosparameninosemeninas,mascomeçouarompê-los.“Ialáefaziamesmo”,conta.Aindanaadolescência,percebeuanecessidadedeestarentrepares,pessoascomqueseidentificasse,massemprecomasensaçãodequedestoavadelase/oudoambienteaqueestavaexposto.Paramanterrelaçõescomestaspessoasdizterinterpretadoumpapel.Eracomplicadoseadequaraostrejeitosfemininos,masnãochegouaprejudicarassuasamizades.

AinterpretaçãodepapeisconformeoqueérequeridopelasdiversassituaçõesdavidasocialnoqueserefereapessoasgayselésbicaséanalisadoporSedgwick(2007),fenômenoquedenominadeepistemologiadoarmário.Oarmáriofuncionacomoumdispositivoderegulaçãodavidadestaspessoas,poisaheteronormatividadevigenteemnossasociedadeexigemqueestabeleçam

“[...]novoslevantamentos,novoscálculos,novosesquemasedemandasdesigiloouexposição.Mesmoumapessoagayassumidalidadiariamente

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cominterlocutoresqueelanãosabesesabemounão”(SEDGWICK,2007,p.22).

OreconhecimentodointerlocutorcomohomemtransexualveioapenasnoensinomédioquandoumaprofessorasolicitouumtrabalhosobreasiglaLGBT.Apartirdestaexperiência,tevecontatoscomrelatosdeoutroshomenstransexuaisquenarravamadificuldadedevivernumasociedadeLGBTfóbica,pontuandoasestratégiasutilizadasparareafirmarumaperformancemasculina.Foiumprocessoquedemorouparacompreendereparaaceitar.

Aoingressarnafaculdade,nãoestavapreparadoparachegar“transicionado”–aformacomosereferiaaoestadopós-transiçãoenquantohomemtrans–,poissabiaquehaveriaresistências.Iniciouosegundoperíododocursojádepoisdestatransição,encarouumarealidadedeolharesestranhosnoscorredores,conversasnorefeitórioenosdemaisambientesdainstituiçãodeensino.Aspessoasparavameolhavamaqueleindivíduoqueparaelasfugiaàheteronormatividadehegemônicadasociedade.Perdeuamizades,principalmentedemeninas,mastambémrecebeuapoioefortaleceuafetos.FoinestecontextoqueconheceuamigosqueoinseriramnomovimentoLGBTdeJoãoPessoa,estabelecendoassimcontatosdecisivosparaconquistaspessoaiseprofissionais.

Umdosmomentosmaisemblemáticosdesuapassagemporinstituiçõesdeensinofoiaquestãodoreconhecimentoounãodonomesocial.Apósinterromperoprimeirocursouniversitário,decidiufazerumcursotécnico.Nestaépoca,apesardainstituiçãojáterconhecimentodonomesocialdenossointerlocutor,asexpectativasemsabercomoseriachamado(nomederegistro,matrículaounovonome)permaneciam:“Erasempreumasituaçãodeansiedade”.Aofinaldocurso,suaturmaaindanãosabiadesuatransexualidade,momentonoqualumprofessorcontouparaosalunos.Apartirdaípassouaouvirpiadaseautilizaçãodoseunomederegistrocomo

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objetivodelheconstranger.Oacontecidoomarcoudeformatãonegativaquenãofoibuscaroseucertificadodeconclusãodecurso.

Atualmente,iniciououtrocursocomonomeretificadoecontoucomoapoiodacoordenadoraquedeantemãojásabiacomoagirnestecaso.Destavezdecidiunãoseassumircomotransexualparaaturma,poisalémdejácontarcomapassabilidadeproporcionadapelatransição,nãoqueriaqueistofossefocodesuaspreocupações.Almejavafocarexclusivamentenosestudos,semoutrasexpectativasdequalquerordem:

Eraaprimeiravezqueeupoderiafocarnocursosempreocupaçãocomnomesporquejáeraretificado.[...]Quandosecolocacomotranssuavidatodaéquestionada.Sevocêtemumrelacionamento,todomundoquerentrarnasuaintimidade.“Ah,mascomovocêsfazemisso?”,“Ah,comoétransar?”Acabatendoquerespondermuitacoisadesnecessária.

Noqueconcerneàsexperiênciascomotrabalho,suatrajetóriainiciouaindanaadolescênciacomojovem-aprendiz,umamodalidadedecontratodetrabalhoquebuscainserirajuventudenomercadodetrabalhodemaneirasemelhanteaumestágio.Ointerlocutorafirmaquealémdenãoterencontradomuitaresistêncianoacessoaomercadodetrabalho,suasoportunidadesseampliaramapósatransição.

Umdeseusrelatosmaismarcantesrefere-seaumasituaçãoemqueacompanhouumacolegaquefoideixarumcurrículoquandoogerentedoestabelecimentooabordouequestionouoporquêdelenãodeixartambém.Depoisdeapresentarocurrículo,participoudeprocessoseletivoefoicontratadocomcarteiraassinada.Mesmoaindanãotendoconcluídoatransiçãonaépocadesteemprego,jáeratratadopelonomesocialpeloscolegasdetrabalho.Seusdocumentosforamtratadoscommuitocuidado

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peladireção,queosmantinhasobacessorestrito.Umaafirmativaresumiumuitobemestasuaexperiência:“Encontreimeuportoseguro”.Apesardisso,tambémrelataalgumasdificuldades,comoousodobanheiromasculinoqueeracompartilhadocomopúblicoconsumidor.Comoaindanãohavia“transicionado”,suavozerafina,oquedemandoutraquejoparasairdesituaçõesindelicadascomoquandoalgunshomensqueriamapalparoseuórgãosexualparaverificarsuacondição.

Tambémtrabalhounainformalidade,vendendocosméticosdeportaemporta.Aremuneraçãonãoerasignificativaeoscilavabastantedeacordocomademanda,massegundoele,naquelemomentoeraaoportunidadequetinha.Eraumarelaçãodetrabalhomarcadapelainstabilidade,umfenômenoanalisadoporautorescomoSennett(2009)queutilizandodiversosexemplosdetrajetóriasdetrabalhadoresemváriasáreasdefendequeasconfiguraçõescontemporâneasdasrelaçõeslaboraisvêmprovocandoumaperdadevaloreséticoscomotrabalho,corroendoocaráterdosindivíduoseimpossibilitandoumaexperiênciadevidaseguraelinear.

Noentanto,aatualvivênciacomotrabalhodomeuinterlocutorémarcadadecertomodopelaestabilidade,apesardenãoserfuncionáriopúblicoconcursado.TrabalhandonoProgramaTranscidadania,possuiumarotinageralmentefixa,realizandoatividadestécnico-administrativas,dedivulgaçãoedecapacitaçãoparaparceirosdoprograma.UmambientecomdiversoscolegasLGBT,queofazemsesentirconfortável,segundoele,comoseestivesseemcasa.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apósaanálisedebibliografiaquetratadastemáticasdegêneroesexualidadeedetrabalhoegênero,comotambémde

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umaentrevistacomumhomemtransexual,pudeforneceralgumaspistasdecomoseconstróiadiscriminaçãosofridaportravestisetransexuaisquesematerializanaexclusãodestapopulaçãodomercadodetrabalhoformal.

Acioneioconceitodepassabilidadeparamostrarquemesmoentreumsegmentodepessoasvulnerabilizadas,ocorremalgumasassimetriasquecolocamalgumaspessoasemvantagememrelaçãoàsoutras.Nestecaso,oshomenstransexuaisporpossuíremmaiorpassabilidade,conseguemtransitarnomeiosocialsemteremsuascondiçõesdepessoastranspercebidasporoutraspessoas,obtémmaiorfacilidadeparaconquistarpostosformaisdetrabalho.Jáasmulherestravestisetransexuaisporseremmenos“passáveis”sãoexcluídasdomercadodetrabalho,processoqueevidencianãosóaLGBTfobia,mastambémamisoginiaaqueestãosubmetidas.

Valesalientarquedebaterestetemaimplicairalémdasquestõesdegêneroedesexualidade,mastambématentarparaadiscussãoracial,poishomenstransexuaisemulherestravestisetransexuaisnegros,porexemplo,vivenciamoutrasformasdeopressãoqueimpactamincisivamentesobreamaneiracomosemanifestaofenômenodapassabilidade.

REFERÊNCIAS

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ENTRE FEMINICÍDIO E LGBTQI+FOBIA: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE CRIMES DE ÓDIO NO FLUXO DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Helma J. S. de Oliveira22

Mariana Melo23

Marcela Zamboni24

1 INTRODUÇÃO

Nesteartigo,buscamosrefletircomooódiopermeiaossignificadosdoscrimesporLGBTQI+fobia25efeminicídio.Paratanto,iremosnosbasearemdiscussõessociojurídicasqueesboçaramadecisãojudicialdeequipararahomofobiaeatransfobiaao

22 DoutoraemSociologiapeloProgramadePós-GraduaçãoemSociologiadaUniversidadeFederaldaParaíba(PPGS-UFPB).LíderdoGrupodeRelaçõesAfetivaseViolência(GRAV).E-mail:[email protected].

23 DoutoraemSociologiapeloProgramadePós-GraduaçãoemSociologiadaUniversidadeFederaldaParaíba(PPGS-UFPB).PesquisadoradoGrupodeRelaçõesAfetivaseViolência(GRAV).E-mail:[email protected].

24 ProfessoradoDepartamentodeCiênciasSociaisedoProgramadePós-graduaçãoemSociologiadaUniversidadeFederaldaParaíba(UFPB).LíderdoGrupodeRelaçõesAfetivaseViolência(GRAV).E-mail:[email protected].

25 OptamosporutilizarotermoLGBTQI+fobiaafimdeincorporaraodebateasgradaçõesda(re)produçãodosdiscursosdeódioassociadosaofeminino,nofluxodosistemadejustiçacriminal.Poroutrolado,asexpressõeshomofobia,lesbofobia,bifobiaetransfobiaservemparasituarasparticularidadesdasopressõessofridaspelossujeitosquenãoseenquadramnamatrizinteligívelde gênero.

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crimederacismo,porrepercussãodojulgamentodaAçãodeInconstitucionalidadeporOmissãon.26/DF,em13dejunhode2019,bemcomoasqueconstruíramotextodaLeinº13.104,de09demarçode2015,queprevêofeminicídiocomoqualificadorado crime de homicídio.

Asexperiênciasdasautorascompesquisassobregênero,violênciaepráticasdejustiçanocampodostribunaisdojúriedainvestigaçãopolicial(ZAMBONI;OLIVEIRA,2015;2016;MELO;ZAMBONI,2017;ZAMBONI;FARIA,2018;NASCIMENTO,OLIVEIRA;NASCIMENTO,2019;OLIVEIRA,2019;OLIVEIRA;ZAMBONI, 2020;MELO,2020) comvistas a investigar aapreensãodosfeminicídiosedoshomicídiosLGBTQI+fóbicosporpartedosagentesdejustiça–juízesdedireito,promotoresdejustiça,defensorespúblicos,jurados,delegadoseinvestigadores–suscitaramo interesseemanalisarosmodosdiversosderepresentaçãodoscrimesdeódiobaseadosnasquestõesdegêneroesexualidade.

Oódioea intolerânciapodemserentendidoscomoemoçõesreavivadasporconcepçõessocioculturaisdeextermíniodepessoasegrupossociaisqueexperienciamasrelaçõessociaisdemododiferentedeumidealmoral.SegundoBarbaraPerry(2001),crimesdeódiosãoviolênciasquetraduzemodesprezo,adiminuiçãoeavontadedeeliminaçãodooutro,partedeumgrupotidocomodominável.

Emboraoutras formasdessasviolênciaspossamserconcretizadasdeacordocomaintersecçãodemarcadoresdegênero,raça,religião–comoasagressõesfísicascorretivascontralésbicaseadestruiçãodeobjetosrepresentativosdaculturanegraeafroreligiosa,porexemplo–,nestaoportunidademanteremosnossaanálisesobreoscrimesdeódioquecarregamaintençãodemortedeoutrapessoa.

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A“chavedeleitura”temrelaçãocomosconceitosdeLGBTQI+fobiaedefeminicídioque,aprincípio,destacamoódio,aaversão,aojerizaaofemininoeàsperformatividadesdegêneroesexualidadediversasdosistemasexualbináriocomoforçamotrizdessescrimes,aopassoque,napráticajurídicaepolicial,revelaminteligibilidadesdiferentessobreasmotivaçõescriminosas,que,porexemplo,possibilitamabrandamentospunitivosparaoatocriminoso.Aindaqueocrimedeódionãosejanecessariamentemotivadopela“paixão”ouporoutraemoçãoexacerbada,éinteressantenotarcomoasreflexõescomrelaçãoàLGBTQI+fobiaeaofeminicídiopodemconstituirasformulaçõesdestascategorias.

AseguirdiscutiremosprimeiramenteaevocaçãodoódioafimdeconstruirosignificadodoscrimesLGBTQI+fóbicosesua“acomodação”ànormajurídica.Emseguida,apresentaremosascircunstânciaslegaisquedefinemocrimedefeminicídio,bemcomoosabrandamentosdoódiohistoricamenteverificadosquandorelaçõesafetivasfazempartedocontextodocrime.

2 LGBTQI+FOBIA: O ÓDIO COMO PRINCIPAL MOTIVAÇÃO

OscrimescommortemotivadospelachamadaLGBTQI+fobia têmocupadovastoespaçonodebateenvolvendoaviolênciacontrapessoasLGBTQI+noBrasil.ParaBorrillo(2010,p.15),demaneiraresumida,ahomofobia26é“aatitudedehostilidadecomoshomossexuais”.ApalavrahomofobiachegaaoBrasilapartirdo

26 Apesardoconceito“homo”tersidoinicialmenteutilizadoparadesignarossujeitosLGBTQI+,háumsentidomaisestritodotermoquedenominaidentidadesmasculinashomossexuais.Emdecorrênciadisso,outrascategoriasidentitáriasforamincorporadas:lesbofobia,bifobia,travestifobia,transfobia.Aqui,tomamosotermohomofobiaemseusentidomaisamplo.

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termohomophobiaporinfluênciaamericana(WEINBERG,1972),destacandoossentidosde“medo”quedeterminadossujeitospudessemterdepessoasnão-heteressoxuaisoucomidentidadesdegêneronãofemininasoumasculinas.Talnoçãosobrea“fobia”parecetersedeslocadoparaexplicaçõesdeviolênciascometidascomoarroubosprovocadospordesprezoeódio.

Noanode2019,oSTFenquadrouahomofobiaeatransfobiacomocrimesderacismo,segundoaLeinº7.716,de5dejaneirode1989(cf.BRASIL,2019).Estaprevisãodeveserseguidaenquantonãosurgirlegislaçãoespecíficatratandodoproblemasocial,tarefaquecabeaoCongressoNacional,aindamarcadopeloconservadorismoepreconceitonotocanteaotema.

Oscrimesde racismoeLGBTQI+fobiaatingemumacoletividadeindeterminadadeindivíduosdemodoaofenderaintegridadedeumaraçaouexpressãodegêneroesexualidadeeocorreporaçãodolosa,ouseja,existeaintençãodecausarsofrimentoapessoaouagruposegregado.Diantedasaçõesviolentas,aintençãodemorte,deextermínio,configuraocrimedehomicídio(tentadoouconsumado)aserjulgadonostribunaisdojúri,equalificadopormotivaçãotorpe.

Nocampopolicial,ondedesenrola-seainvestigaçãodocaso,otemaétratadodediferentesmaneiras,adependerdoestadofederativo.AlgunsdelescontamapenascomcentrosdereferênciadeapoioàcomunidadeLGBTQI+,enquantooutrosefetivamentepossuemdelegaciasespecializadasnoatendimentodecrimesraciaisedeintolerância,comonoRiodeJaneiro,PiauíeParaíba27.Istofaz

27 OestadodaParaíba,comoanalisadoporMelo(2020),criouem2009a DelegaciaEspecializadadeRepressãoaosCrimesHomofóbicosde João Pessoa.Esta,em2017,tornou-seaDelegaciaEspecializadadeRepressãoaosCrimesHomofóbicos,Étnicos-RaciaiseDelitosdeIntolerânciaReligiosadaCapital(DECHRADI),amparandoadenúnciadeoutrostiposdecrimesde

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diferençanotipodeleituraaserrealizadaarespeitodoscrimesinvestigados,bemcomonapercepçãodaimportânciadadopeloEstadonotocanteàefetivaçãodaspolíticasdesegurançaquepossamtraduziroreconhecimentodesujeitosLGBTQI+comocorpos que importam(BUTLER,2011).

AcaracterizaçãoeadefiniçãodehomofobiaouLGBTQI+fobia,bemcomodasmoralidadesenvolvendoaconstituiçãodasimagensdevítimaealgoznaconclusãodoinquéritopolicial,geramefeitosmaisàfrentenaapreensãodotemaporoperadoresjurídicosatuantesnostribunaisdojúri.Nocasoparaibano,porexemplo,aindaantesdojulgamentodoSTFquedefiniuLGBQTI+fobiacomocrimederacismo,foipossívelobservaremumcasoespecífico,oenquadramentodaqualificadorademotivotorpe,baseadonadefiniçãodemotivação homofóbica28presentenaconclusãodoinquéritopolicial(MELO,2020).

TeoricamenteénecessárioconsiderarmosqueLGBTQI+fobiacorrespondaaumconceitoamploequeprocuradarcontadaviolênciaenvolvendoumagamadesujeitosdiversos,emrazãodesuasidentidadesdegêneroeorientaçõessexuais.Nestesentido,éimportanteanalisarprocessosdeviolênciaemmeioaumviésmaisamplodeelementoscomocor/raça,geração,territorialidade,classe,dentreoutros(EFREMFILHO,2017),que,emconjunto,resultamnamorteviolentadeumapessoaconsideradaforadamatrizheteronormativadegênero.

Poroutrolado,notamosquecomumentenosistemadejustiçacriminalasinterpretaçõesacabamdesconsiderandoopesodosmarcadoressociaisdadiferençaparaodesenrolar

ódio.ÉimportantedestacarqueoscrimescommortedepessoasLGBQTI+sãoinvestigadosnesteestadopelaDelegacia de Homicídios.

28 TermoutilizadopelosentrevistadosnoperíododapesquisaparadesignaramotivaçãodeterminantedoscrimesdeódiocontrapessoasLGBTQI+.

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dosjulgamentosenvolvendomortedesujeitostidoscomomaisvulneráveis(CORRÊA,1983;ADORNO,1994;FACCHINETO,2012;ZAMBONI;OLIVEIRA,2016;OLIVEIRA,2019;OLIVEIRA;ZAMBONI,2020).Significadizerqueexistemdeterminadasexpectativassociaisaserem“cumpridas”pelaadequaçãodospapéissexuaisedegênero.SegundoSérgioAdorno(1994),osagentesestataisformulam“teorias”paraexplicarcomoeporquaismotivoscrimeseviolênciasacontecem.OscrimesdehomicídiomotivadospelaLGBTQI+fobiaacabamtambéminseridosnessecontexto.

MendeseSilva(2020)observaramqueentre2002e2016foramoshomossexuaismasculinosesujeitostransgênerososmaisvitimadosdeformaletalnoBrasil.Socialmenteasuposta“inadequação”desujeitostidoscomomasculinosequepassamodesempenharpapéisobservadoscomodofeminino,ultrapassamoslimitesdamatrizdegênerodita“saudável”.Comorespostaaoqueéentão“patológico”,temosaexacerbaçãodaviolência,traduzidacomoódio.Interessa,portanto,observaraconexãoentresexualidadeditadissidenteemotivaçãoLGBTQI+fóbicanoscrimesdehomicídiodepessoasLGBTQI+poresteviés.

Nota-secomoentreLGBTQI+eódiosurgeconstanteproximidade,emespecialnodiscursosocial,mastambémmidiático,científicoejurídico(MELO,2020).Oconceitodehomofobia,violênciahomofóbicaoumotivaçãohomofóbicaparacrimesdehomicídiovincula-sehistoricamenteaossentidosformuladoscomooseguinte:

Esteódioexplícito,cruel,persistenteegeneralizado,vaidoinsultoeameaça,agravesepisódiosdediscriminação,constatadosemtodosossegmentoseesferassociais.Incluemviolênciafísica,golpesetortura,culminandoemviolentíssimosepavorososassassinatos–viaderegracometidoscomrevoltantesrequintesdecrueldade,abrangendo

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elevadonúmerodegolpesetiros,ousodemúltiplosinstrumentosetorturaprévia.Crimesdeódioemqueahomossexualidadedavítimamotivouaagressãoepesoudefinitivamentenomodusoperandidohomicida(MOTT;CERQUEIRA,2003,p.8).

Namedidaemqueascaracterísticasdaviolênciaseachamdiretamenterelacionadasaosentidodeódio,estesurgeenquantocategoriadesentimentoqueexplicaper siaLGBTQI+fobia.Nesteínterimoódioaproxima-sedossentidosdedesprezo,excessoedescontrole.Nãoodesprezopelosujeito,masodesprezopelasexualidadeouidentidadeestigmatizadadetodosqueseencaixemnestespapéis.Nestasreflexõesempreendidassocialmente,quando“nadamais”explicaamortedeumapessoaLGBQTI+,éoódio o componenteesclarecedordocrime.

Amortecomexcessosdeferimentos,decapitaçõesetentativasdeapagarqualquersinaldaexistênciadeumcorpoesuaidentidade(STANLEY,2011)tornaexplícitooódiocontrapessoasLGBTQI+.

OvínculoentreódioeLGBTQI+fobiacomomotivaçãoparaumhomicídiochamaatençãoparaofatodequepessoascompráticassexuaiseidentidadesditasdissidentestêmconvividoháséculoscomoestigma,eapenasnasúltimasdécadastêmtidovozativanodebatepordireitoscivisnomundo.Contudo,essaimbricaçãodificultaumamaiorcompreensãodasdiversasrazõesquecompõemumcrimequeculminanamortedesujeitosqueocupamdiferentesníveisdeclasse,coresegeraçõesetc.(EFREMFILHO,2017).Significadizerqueoódiopodeserumcomponenteimportantenaexplicaçãodocaso,masnãodeveriaseroúnico.

Nestesentido,estesentimentosurgeculminantenaexplicaçãodamortedapessoaLGBTQI+,enãonecessariamentepelanoçãoaproximadade“crimedeódio”,masprincipalmentepor

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darcontornosdeinsanidadeaosujeitoquecometeocrime.EstapercepçãoseaproximadoquepensaBorrilho(2016,p.99):

[...]umtipodepersonalidadehomofóbica,enquantoestruturapsíquicadetipoautoritário[que]funcionacomocategoriascognit ivasextremamentenítidas(estereótipos),permitindo-lheorganizarintelectualmenteomundoemumsistemafechadoeprevisível.

Destaforma,enquantooproblemadoestigmasocialéminimizado,osentimentodeódiocomopessoalmentedesenvolvidoenãocontroladopeloalgoz(HEREK,2004)sedestacatambémnosdiscursosinstitucionais.Temosumimportanteparaleloentreestruturassociaisestigmatizanteseatuaçõesindividuaisviolentas.

Namedidaemqueo tribunaldo júri–a instituiçãoresponsávelporjulgaroscrimesqueatentamintencionalmentecontraavida–écompostoporsujeitosqueapoiam-seoureforçampapéismorais,inclusiveosreferentesagêneroesexualidade(CORRÊA,1983;ZAMBONI;OLIVEIRA,2015),estessentidossobreoódiotambémpodemserreforçadosouamenizados,adependerdasintençõeseinterpretaçõesdodiscursoquecasemcomosestigmassociaissobrepessoasLGBTQI+.

AsanálisessobreaspercepçõesdejuízesleigosatuantesnostribunaisdojúrideJoãoPessoa,Paraíba,sobrehomicídiosoriundosderelaçõesLGBTQI+afetivaseoutrasmortesviolentasintencionaiscontrapessoasLGBTQI+apontamque,diferentementedoscasosenvolvendocasaisheteronormativoscompostosporpessoascisgêneras29,oscrimesentrecasaisdomesmosexoeramdistinguidoscomomais“passionais”–emotivos,maisviolentos,

29 Pessoascissãoaquelascujogêneroatribuídoapartirdoseunascimentocorrespondeaogênerocomoqualseidentifica.

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maisexagerados(cf.MELO;ZAMBONI,2017;MELO,2020).Eram,segundooutrasfalas,motivadosporinteressefinanceiro,oupelointeresseexclusivamentesexualenãoamorosopelavítima.Nistotambémestariampresentessituaçõesdechantagem,extorsãoeassimpordiante.

Oargumentodo“amardemais”,oamorromânticoque“adoece”,nãoparecesurgirnosdiscursosdaquelesquejulgamoscasos.Éjustamenteseusentimentocontrário,oódio,quesevinculaàimagemsobaqualosoperadoresdosistemadejustiçacriminalseapoiamereforçamassuastesesdirecionadasàspessoasLGBQTI+.

Nestediscurso,estaspessoassupostamenteincapazesdeseremamadasoudeamar,morremnasmãosdeseusalgozescomovítimasenganadas,quesearriscamconstantementenatrocadeparceiroseematos“promíscuos”–comosenãohouvesserelaçõesamorosasestabelecidasforadoenquadramentoheteronormativo.Quandonão,éoódiodesmedidooresponsávelporlevarsujeitosLGBTQI+fóbicosanãolidarcomsua“irritação”ebuscareliminarpessoasreconhecidasporaquelescomonão-heterossexuais.Detodaforma,oódiopareceprevalecercomoelementoexplicativoparadefiniçãodoscasosditosmotivadosporLGBTQI+fobia.

3 FEMINICÍDIO: O PERCURSO DO AMOR AO ÓDIO

Asdiscussõessobreossignificadossocioculturaisqueimplicamemviolências letaiscontramulheresbaseadasnadesigualdadedegênerorequeriamumaposturapolíticanosentidodenomearumsignificantequereunisseumconjuntodecontextosecircunstânciasreveladorasdasreproduçõesdepráticasviolentas.Então,surgiuofemicide (RADFORD;RUSSELL,1992),oportunamentetraduzidoerepensandoemseusconceitosparaserapresentadoatravésdainsígniadefemicídiooufeminicídio

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nospaíseslatino-americanos(CARCEDO;SAGOT,2006;SEGATO,2006;LAGARDE,2006).

Quandonosreportamosaofenômenodofeminicídio,asprimeirasreflexõestraçadasporDianaRussellesuasparceriasformularamoentendimentodequeeraprecisoanunciarqueaviolênciacontramulheres,porseremmulheres,repercuteemmorte.Assim,ofemicidefoidescritocomoamortedemulheresporhomensmotivadaporódio,desprezo,prazerousensodepropriedade(RUSSELL,2009).

EmboracontextosfeminicidaseLGBTQI+fóbicossejamdecorrentesdereiteraçõesderegrassocioculturaisqueagregamsexoaogênero–fêmea/mulheremacho/homem–etomamosexocomalgopré-discursivo(BUTLER,2017),parecequeasformasdeumamulherperformarsuafeminilidadesãomaisdrásticaseabjetasquandoapresentamumreposicionamentodegêneroesexualidade,pensandoespecialmentenasmulherestransexuaiselésbicas.Dentreascondiçõesdevulnerabilidadedavidadasmulheres,aquelasqueacolhemperformatividadesdiversasdosistemabinárioalcançamfacilmenteomenosprezo,oódiodegruposdesujeitosintolerantesàsdiversidadesdegêneroesexualidade,repercutindoemfeminicídiostransfóbicoselesbofóbicos.

NoBrasil,oesforçopolíticodenomearosassassinatosdemulheresresultounaelaboraçãoleinº13.104/2015,aqualinseriuofeminicídioentreascircunstânciasqualificadorasdocrimedehomicídio.Destacarofemini-teveointuitodetornarinteligívelquemulheressãomortasporcircunstânciasespecíficas,porreflexodaculturamachistaemisóginaquereiteraocredodavalorizaçãodamasculinidadeemdetrimentodafeminilidade.AvançolegislativosemelhanteaestetambéméesperadonoqueserefereàspráticasLGBTQI+fóbicas.

Nalegislaçãobrasileiraofeminicídioficoudefinidocomoohomicídioexercidocontramulher“porrazõesdacondiçãodesexo

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feminino”.Essasrazõesseriama“violênciadomésticaefamiliar”e“menosprezoediscriminaçãoàcondiçãodemulher”(BRASIL,2015).Aadoçãoda“condiçãodesexofeminino”surgiudeumprocessolegislativoconflituosoemqueasliderançaspolítico-feministasatuantesnadiscussãodeaprovaçãodoprojetodeleinãopuderamsustentarapermanênciadosignificante‘gênero’,soboônusdenãoteraleiaprovada,postoqueapolíticanacionaldeentãosofria(esofre)comumacruzadamoralfrenteaumadita“ideologiadegênero”.

Dentreascaracterísticasligadasàdesignaçãodofeminicídio,estãoaojeriza,amisoginia–istoé,aaversãoaofeminino–eoódio.Eentreosfeminicídios,aqueleschamadosde‘íntimos’sedestacam,porserempraticadosporrepercussãoderelaçõesafetivase/oudoméstico-familiares,alémdemuitasvezesseroatoúltimodeum continuumdeviolênciasritualizadas.Pordécadasessescrimesforamanunciadoscomo“crimesdepaixão”.Umaviolentaemoçãoacometeriahomensquetinhamsuasmasculinidadesabaladassupostamenteporpráticasdeinfidelidadeoupelaprogressivaautonomiadasmulheres.

AconstruçãodoentendimentodequetaiscrimesnãocorrespondemaconflitosprivadosesimaassuntopúblicoedenecessáriarepresáliadoEstadoedasociedade,aospoucosmudouohistóricodeabsolviçãoconcedidaaosautoresdocrime,combasedoargumentoda“legítimadefesadahonra”(cf.CORRÊA,1983;ELUF,2009).Porém,ainsígniadecrimepassionalaindaexisteeosassassinatosdemulheresbaseadosnaopressãodegêneropermaneceramcomsuasreprimendasamenizadasporargumentosjurídicosemdefesadareduçãodepenapor“violentaemoção”(logoemseguidaàinjustaprovocaçãodavítima),deacordocomotextodoCódigoPenalbrasileiro.Noentanto,MariaLuizaElufponderaque

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Apaixãonãobastaparaproduzirocrime.Essesentimentoécomumaossereshumanos,que,emvariáveismedidas,jáosentiramousentirãoemsuasvidas.Nemporissopraticaramaviolênciaousuprimiramaexistênciadeoutrapessoa.Apaixãonãopodeserusadaparaperdoaroassassinato,senãoparaexplicá-lo(ELUF,2009,p.134).

Emoçõesestãopresentesnosrelatosdasmotivaçõesatribuídasaosfeminicídiosíntimos:amor,paixão,ciúme,abandono.Entretanto,aaversãoeoódionãoserevelamclaramentenemnosdiscursosdosautoresdoscrimesnemdosagentesdejustiçaquecolaboramparaojulgamentoedecisãojudicial.IssopodeserverificadonosresultadosdaspesquisasempíricassobreapercepçãodosagentesdoSistemadeJustiçaCriminalatuantesnostribunaisdojúriedelegaciasdeJoãoPessoa(ZAMBONI;OLIVEIRA,2015;2016;MELO;ZAMBONI,2017;ZAMBONI;OLIVEIRA;NASCIMENTO,2019;OLIVEIRA,2019;MELO,2020),antesedepoisdaaplicaçãodaleidofeminicídioedadecisãodoSTFqueequiparouahomofobiaeatransfobiacomocrimesderacismo.Porexemplo,napesquisaocorridaentreosanosde2015e2018,queconstituiuotrabalhointituladoO crime de feminicídio e a percepção dos agentes da justiça: uma análise sociológica a partir dos Tribunais do Júri de João Pessoa, Paraíba(OLIVEIRA,2019),verificou-sequeemapenasumdosjulgamentosobservadosnostribunaisdojúri,oódioeamisoginiaforamressaltadoscomomotivadoresdocrimejulgado30.

Inclusive,umdosargumentoselencadosnoRelatórioFinalda CPMI31(BRASIL,2013)eradequeacategoriafeminicídio deveria serumcontrapontodiscursivoaoideáriodoscrimespassionais.Os

30 Casoanalisadonaseção6.3daobra.

31 ComissãoParlamentarMistadeInquérito(CPMI),criadaparainvestigarasituaçãodaviolênciacontraamulhernoBrasileapurardenúnciasdeomissão

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motivosreaisdocrimedefeminicídioseriamasculturasmachistaemisóginareiteradasquefavorecempráticasdedominaçãomasculinaemfacedasmulheres.

Ofeminicídioéainstânciaúltimadecontroledamulherpelohomem:ocontroledavidaedamorte.Eleseexpressacomoafirmaçãoirrestritadeposse,igualandoamulheraumobjeto,quandocometidoporparceiroouex-parceiro;comosubjugaçãodaintimidadeedasexualidadedamulher,pormeiodaviolênciasexualassociadaaoassassinato;comodestruiçãodaidentidadedamulher,pelamutilaçãooudesfiguraçãodeseucorpo;comoaviltamentodadignidadedamulher,submetendo-aatorturaouatratamentocrueloudegradante(BRASIL,2013,p.898).

Apartirdestatranscriçãofaz-seoportunopensarumpoucosobreo“menosprezoeadiscriminaçãoàcondiçãodemulher”previstonaLei.Talvezessasejaacircunstânciaquemelhorprovoqueaapreensãodoódiopresenteemcasosdefeminicídios.Nodocumentodasdiretrizesparainvestigar,processarejulgarcomperspectivadegêneroasmortesviolentasdemulheresconsta:

Asformasdeviolênciageralmenteenvolvemaimposiçãodeumsofrimentoadicionalparaasvítimas,taiscomoaviolênciasexual,ocárcereprivado,oempregodetortura,ousodemeiocrueloudegradante,amutilaçãooudesfiguraçãodaspartesdocorpoassociadasàfeminilidadeeaofeminino(rosto,seios,ventre,órgãossexuais).(PASINATO,2016,p.16).

porpartedopoderpúblicocomrelaçãoàaplicaçãodeinstrumentosinstituídosemleiparaprotegerasmulheresemsituaçãodeviolência.

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Essesatosdedestruiçãoededepreciaçãodenunciamomenorvalor,ouseja,menosprezoàcondiçãodemulherporsermulher,porseugênero.Omenosprezocarregaosignificadodedesvalorização,depráticamisógina,istoé,firmadanoódio,naojerizaàssubjetividadeserepresentaçõesfemininas,sejamelasmulherescis ou trans.Ademais,asalegaçõesde“infidelidadeconjugalfeminina”einconformidadecomotérminodarelaçãoamorosarecorrentenosargumentosde“violentaemoção”ede“crimedepaixão”sãotambémexpressõesdemenosprezoediscriminaçãoàcondiçãodemulher,poisaautonomiadamulhervitimada,adecisãodefindarorelacionamentoamorosonãofoirespeitada.

A amplitude conceitual presente na circunstância“menosprezoediscriminaçãoàcondiçãodemulher”favoreceadisputadediscursosnosentidodedarvisibilidadeacenáriosopressores,deincluirsujeitasqueestãoforadoenquadramento“legítimo”dosermulheredotervidapassíveldeluto(BUTLER,2015),bemcomodealteraraposiçãodenão-lugar(denão-sujeita,deserabjeto,denãointeligível,denãoreconhecível)investidosobrealgumasperformatividadesdegênero.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora os homicídios LGBTQI+fóbicoseosfeminicídiossejamconsideradoscrimesdeódio,estápostoqueaexpressãodaintolerânciasemoduladeacordocomoquantumdeaversão,deojerizaqueseatribuiàsperformatividadesdegêneroesexualidadenãoenquadradasnoidealheteronormativo.ApopulaçãoLGBTQI+tendeasertratadacomocompostaporsujeitosabjetos(BUTLER,2017),nãopassíveisdeconsistente lutosocialdiantedassuasmortesviolentas,aexemplodoinexpressívelouausentepranteamentonoscasosdemortesporlinchamentocoletivo

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quevitimizamtravestisemulherestransexuaisrepercutidosnosmeiosmidiáticos.

Nãosignificadizerqueoódioouodesprezonãoestãosignificativamentepresentesnestestiposdecrimes,masdequeéprecisoobservaropesoqueestessentimentos,muitasvezestidoscomoindividuais,têmnaelaboraçãodasexplicaçõesarespeitodasmortesdepessoasLGBTQI+emulheres.Estareflexãodeveráserimportanteprincipalmenteparaanálisesquebusquemcompreendersujeitosqueparticipametransitamentrediferentesgrupos,comonocasodelésbicasepessoastransexuais.

Quandoadiscussãoésobreasmotivaçõesdosfeminicídios,nãoobstanteocarátermisóginopresentenessescrimes,osvestígioseasnoçõessobreoscompromissosafetivosefamiliaresacabamporocultarosentimentodeódio,quetambémcaracterizaocrimedeódio,paraenalteceroutrasemoções:ociúme,apaixão,oamorexacerbado.Noentanto,quandosetratadoshomicídiosqueatingemasrelaçõesamorosasentrecasaisLGBTQI+ afetivos, essas relaçõesdeproximidadesãomenosprezadasdiantedealegaçõesdeoutrosinteresses,nãocabendofalaremamorexacerbadoesimemódioeoportunismo.

Senãohárelaçãodeproximidadeentrealgozevítima,aindaassimasconcepçõesdemenosprezoedediscriminaçãoàcondiçãodemulhersãomaissutisemrelaçãoàquelaquemantémsuaperformatividadedegêneroaproximadaaoidealbinário.Portanto,estápostoqueestessentidossobreoódiotambémpodemserreforçadosouamenizados,adependerdasintençõeseinterpretaçõesdodiscursoquecoadunemcomosestigmassociaissobrepessoasLGBTQI+.

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NOTAS INTRODUTÓRIAS SOBRE A IMPORTÂNCIA DA DIMENSÃO RACIAL NOS ESTUDOS DE GÊNERO E SEXUALIDADE

Juciane de Gregori32

1 INTRODUÇÃO

Noâmbitodosestudosdegêneroesexualidade,reflexõesacercadaproduçãodadiferençaedaanálisedadesigualdadesocialvêmganhandocadavezmaisrelevância,especialmenteapartirdoinvestimentoanalíticoquearticulaeenglobaadimensãoracial.Essaideiade“dimensão”étrazidaaquicomoumaspectofundamental,poisrompecomalógicadequeraça,gêneroousexualidadeseriamapenas“recortes”,nãoconcedendoadevidamagnitudedecategoriastransversaisqueperpassamportodaaestruturasocial,política,cultural,econômicaesubjetiva.

Nesselequedepossibilidades,tensionamentoseconflitos,pensarnanecessidadedeexplorar a intersecçãoentreasdiferenciaçõesoumarcadoressociais,taiscomoderaça,gênero,sexualidadeegeração,vemdespertandotamanhointeresse,

32 DoutorandapeloProgramadePós-Graduação emSociologia daUniversidadeFederaldaParaíba(PPGS-UFPB).MestrapeloProgramadePós-GraduaçãoemDireitosHumanosdaUniversidadeFederaldaParaíba(PPGDH-UFPB).MestrapeloProgramadePós-GraduaçãoemSociologiada Universidade Federal da Paraíba (PPGS-UFPB). Graduada em Psicologia pelaUniversidadeRegionalIntegradadoAltoUruguaiedasMissões,campus Erechim.IntegrantedoGrupodeRelaçõesAfetivaseViolência(GRAV-UFPB).E-mail:[email protected].

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demaneira que podemos notar como a “discussão sobreinterseccionalidadetemocupadoumespaçoimportantenapesquisadegênero”(KERNER,2012,p.45).

Hirata(2014),enfatizaainterseccionalidadecomouminstrumentoparacombaterasopressõesmúltiplaseimbricadas.EmconcordânciacomPatríciaHillCollins (2014),pode-secompreendê-latantocomoumprojetodeconhecimento,comotambémumaarmapolítica.Moutinho(2014),explanaqueainterseccionalidade,tratadeumdebatetrazidopelasfeministasnegrasnorte-americanas(MOUTINHO,2014),ampliando-seemmeadosdadécadade1970e1980.

SegundoCrenshaw(2002),interseccionalidadeabarcaumaconceituaçãoquebuscacapturarasconsequênciasestruturaisedinâmicasdainteraçãoentredoisoumaiseixosdasubordinação,referindo-seàformapelaqualaçõesepolíticasespecíficasgeramopressõesqueconstituemaspectosdinâmicosouativosdodesempoderamento.Ouseja,“trataespecificamentedaformapelaqualoracismo,opatriarcalismo,aopressãodeclasseeoutrossistemasdiscriminatórioscriamdesigualdadesbásicas”(CRENSHAW,2002,p.177).Comonãosepodesepararacategoriagênerodasrelaçõespolíticas,econômicas,sociais,culturaiseraciais(SOUZA;RATTS,2008),muitosestudospassamaincorporaraspossíveisintersecçõesentregênero,sexualidade,raça,etniaeoutrasdiversascategoriasediferenciações.Nessequesito,nãonecessariamentesecompreendequegênero,raça,sexualidadeeclasse,sãoequivalentesaposiçõesdesubordinação.Éjustamenteacorrelaçãocomplexaentreessasdimensõesquesãoaprofundadaseapreendidasporessecampodedebate.

ConformeCrenshaw(2002),noquecondizaassociaçãoentreessessistemasmúltiploscomoviésdasubordinação,temsidoalgodescritodeváriosmodos,taiscomo:discriminaçãocomposta,cargasmúltiplas,duplaoutripladiscriminação.Essereconhecimento

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crescentedequeasrelaçõespolíticas(istoé,relaçõesdesiguaisdepoder)estãoimplicadasnasteoriasdoconhecimento,ganhaumacentralidadenecessárianasanálisesdegêneroesexualidademaisrecentes,queconsideramfundamentalexplorar“outras”categoriasdediferenciaçãosocialcomo“marcas”aseremcontempladasnaanálisedecontextosespecíficos(PISCITELLI,1996).

Questõessobreadiferençaestãonocentrodemuitasdiscussõesdentrodosfeminismoscontemporâneos(BRAH,2006).ParaPiscitelli(1996,p.11):

[...]asdiversasperspectivasenvolvidasnesta“nova”tendênciaconvergemparasublinharamultiplicidadedediferenciaçõespossíveis,conferindo,entreelas,umlugardestacadoà“raça”.

Entretanto, no que concerne à investigação socialcientífica,aindaháumcampoadescortinareintersecçõesafazer.Principalmenteconsiderandoqueasrelaçõesraciaisnaacademia,camufladasaolongodahistóriasobafarsaprojetadapelabranquitude,emumaóticarepressoraehegemônicadeigualdade,aindarefletememomissõesacercadodebateracial,inclusiveemmuitasanálisesnomeadascomofeministas.Acaba-seporconstituirumaaanulaçãodeexperiênciaseinvisibilidadeteórica,aqualtambémpodeserchamadadeepistemicídio.

Comessabaseepistemicida,araçavinculadaaogêneropassarepetidamentedespercebida,atravésdeanálisesnãosódistantesdainterseccionalidade,comotambémincapazesdeobservaroentrecruzamentoexistenteentremarcadoresediferenciaçõessociais,quemesmopresentesdemodogritantenocampo,nãosãosequercaptadoscomochavesdeleitura.Ou,poroutrolado,tambémpode-seconstatarestudosnocampodegênero,queseaproximamdainterseccionalidade,masesvaziamadimensãoracial

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enãoatendemasproblemáticasepistemológicas,metodológicasepolíticasqueoquadrointerseccionalquepropõe.

Sob o viés de Crenshaw (2002), para apreender adiscriminaçãocomoumproblemainterseccional,asdimensõesraciaisoudegêneroteriamdesercolocadasemprimeiroplano,comofatoresquecontribuemparaaproduçãodasubordinação.Porém,deacordocomPiscitelli(1996),aquestãonãoseresolvesimplesmenteadicionandoasdiversasformasdeopressãonaconfiguraçãodacondiçãosocialdasrelaçõesdegêneroedesexualidade,massimpercebendoasuainterconexão.Kerner(2012),corroboracomessavisãoeargumentaqueracismoesexismosecruzamdemodosdiferentesdependendodocontexto,portantonãopodemsertratadoscomoproblemasanálogos.

Comonenhumacategoriasocialexistenoisolamento,massimemrelaçãocomoutrascategorias(MCCLINTOCK,2010),éimportantequeaepistemologiafeministasecomprometanãosomentecomogênero,enquantocategoriasocialrelacionadaaumeixodeopressão,demodoacolocá-locomoumavariávelteóricaarticuladaaoutrascategoriassociaiseàsformasdediscriminaçãointerseccionais.Tantoalógicadaincorporaçãodogênero,quantoofoconoenfrentamentoaoracismo,refletemanecessidadedeintegrara“raça”eoutrasdiferenças,aotrabalhocomenfoquedegênero(CRENSHAW,2002).Domesmomodo,“osestudosdegênerotambémtêmsidoadotadosporestudiosos(as)daquestãoracial”(SOUZA;RATTS,2008,p.150).

Imersosemumaculturadoregimecapitalistaquesebaseiaemreferenciaispatriarcais,sexistas,heteronormativoseracistas,édesumaimportânciaquestionarasaçõeserepresentaçõescientíficascalcadasemmitosepreconceitosconstruídospormeiodessesistema.Emumprocessohistóricodecolonizaçãoe

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racismoestrutural33,queperduraatéostemposatuais,demarcam-se vantagensde gruposdominantes sobreosdominados,estabelecendo-sehierarquiaserelaçõescomplexasdepoderdeopressoressobreoprimidos34.ComoafirmaMcClintock(2010),énecessárioexplodiranáliseslimitadaselimitadorasdasaçõesimperialistasdefinaisdoséculoXIXeiníciodoXX,bemcomoseusecosnassociedadescontemporâneas,entendendoqueessalógicamarcaviolênciaslatentesqueseconstituememumaarenasocial,intelectualeatémesmopsicológica,ondeaspectoscomogênero,sexualidade,raçaeclasseestãoimbricadosdemaneirainextricável35.

Nesseviésdedebate,atravésdeumapropostacrítica,reflexivaepolítica,estetextotemcomofocotrazerapontamentosvoltadosparaaimportânciadaarticulaçãodadimensãoracialàsanálisesdegêneroesexualidade.

2 SOBRE A ARTICULAÇÃO DA DIMENSÃO RACIAL AOS ESTUDOS DE GÊNERO E SEXUALIDADE

Interseccionalidade,categoriasarticuladasoumarcadoressociaisdadiferença,ancoradasnasteoriasfeministaseantirracistas,sãoesferasdeinterlocuçãointernacionaisqueganharamespaçoemmeadosdadécadade1990(MOUTINHO,2014),incidindoemumconjuntodeenfrentamentosaconcepçõeshomogeneizantes

33 Paraaprofundaressaanálise,ver:Almeida(2018).

34 Tensionandoesseprocessonoterritóriobrasileiro,vermaisemLiliaM.Schwarcz:“Espetáculodasraças:cientistas,instituiçõesequestãoracialnoBrasil1870-1930”(1993),e“Nempretonembranco,muitopelocontrário:coreraçanasociedadebrasileira”(2012).

35 Paraampliarareflexãoacercadesseparadigma,verFrantzFanon,em“PeleNegraeMáscarasBrancas”(2008).

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epromovendoimportantesdisputasteóricas,episte-mológicas,metodológicas,éticasepolíticas.

Arelaçãoentreascategoriasdedesigualdade,aindatãonaturalizadasnaatualsociedadecapitalista,sãotraduzidasedesmembradasatravésda“interseccionalidade”,configurando-secomoumcampoquenãoéhomogêneo,fixadoouestável.Ouseja,estáemmovimento.Omesmoocorrecomopensamentofeminista,cujaexpressãodeideiasresultadainteraçãoentredesenvolvimentosteóricosepráticaspolíticasqueestãolongedeconstituirumtodounificado(PISCITELLI,2008).

Nasdiferentesperspectivasqueintegramestepercurso,éplausívelaludiramomentoshistóricosquesecaracterizamporumarelevânciaconcedidaadeterminadascategoriasteóricasesociais,comsuasrespectivasproblematizações,terminologiaseconceituações.Relativoespecificamenteachamadaretomadadosestudossobreaquestãoracialnoiníciodadécadade1980,denota-seaconfiguraçãodeumcampodeanálisesobreoentrecruzamento,articulaçãoeintersecçãoentre“marcadoressociaisdadiferença”,nosquaisgênero,sexualidadeeraçaassumemposiçõescentrais(MOUTINHO,2014).

Noviésdosestudosdegênero,Piscitelli(2008)fazumaretomadahistóricanaqualépossívelobservarque,aofindardadécadade1980,textoscríticosquestionavamospressupostosdasprimeirasformulaçõesdoconceitodegênero,bemcomo,acentralidadeconcedidaaeleemtermosdasforçassociaisdeopressão.

Nofimdosanos90,estedebatefoimarcadopelaalusãoàmultiplicidadedediferenciaçõesque,associadasaogênero,permeiamosocial.Ampliam-seascorrentescomdiferentesquestionamentosacercadospressupostosembutidosnasprimeirasformulaçõesdegêneroesobreasperspectivasdepoderquenorteavamdeterminadaslinhasdeanálisesfeministas,bemcomoacentralidadeconcedidaaogêneroenquantoforçasocialqueoprime

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aspessoas(BUTLER,1990).Alémdisso,estabeleceintersecçõesdogênerocommodalidadesdeidentidadesdiscursivamenteconstituídas,queincluemsexualidadeeraça,considerando-ascomoefeitoderegimesdeproduçãoreguladoraqueoperamnaproduçãodoscontornoscorporais(BUTLER,1993).

Éprecisoenfatizar,nesseprocessohistóricodeinsurgências,acentralidademarcadapelapotênciadasvertentesadvindasdofeminismonegro,querepresentamumgrandepilardetransformaçãoemovimentodasestruturas.AngelaDavis(2016),AudreLorde(2019),BellHooks(2018,2019)ePatríciaHillCollins(2014),destacam-secomoexpoentesdopensamentonessaperspectivaetambémnoBrasil,aexemplodeLéliaGonzalés(1984),SueliCarneiro(2011),JuremaWerneck(2010).Nadécadade2000,asarticulaçõesentrediversascategoriaseinterseccionalidadesestavamamplamentedifundidas,formuladasnoplanoteóricoatravésdeleiturascríticasdoconceitodegêneroecoincidindocomintensasreivindicações,internasaomovimentofeminista,relativasàquestãodadiferença,englobandonãosódiscussõessobregênero,mastambémraça,etnia,classe,sexualidades,afetividades,religiões,geração(PISCITELLI,2008).Nocontextobrasileiro,umadasexpressõesqueinfluenciouampliaçõesfoiSaffiotique,emgeral,trabalhavacomnoçõesdegêneroeclasse,masqueposteriormentedesenvolvesuateoriacoma“metáforadonó”entregênero,raçaeclasse(SAFFIOTI,2015).

Noqueconcerneàdimensãoracial,Guimarães(2005),afirmaque“raça”,refere-seaumconceitodatadoemmeadosdoséculoXIX.Segundoele,ahistoricidadedetalconceitotambémacompanhadiscussõesacercadeetnicidade,cromatização,colorismo,ideologia,racialização,racismoeanti-racismo.Brah(2006),nessequesito,enfatizaanoçãodeexperiênciaeexplanaque,deacordocomcadacontexto,otermo“negro”,podeterdiferentessignificadospolíticoseculturaisenãopodeserconstruídoemtermosessencialistas.

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NoBrasil,oracismochegaasertratadoatéosdiasrecentescomoum“tabu”,hajavistaquepormuitoseinsistenoforjadoimagináriodequebrasileirosvivemnuma“democraciaracial”(GUIMARÃES,2005,p.39).Paraocitadoautor,asanálisesnocampodasrelaçõesraciaisquecomportamaquestãodoracismobrasileirodevemobservartrêsprocessoshistóricos:oprocessodeformaçãodanaçãobrasileiraeseudesdobramentoatual;ointercruzamentodiscursivoeideológicodaideiade“raça”comoutrosconceitosdehierarquia,taiscomoclasseegênero;astransformaçõesdaordemsocioeconômicaeseusefeitosregionais.

Demodogeral,noqueserefereàrelaçãoentregênero,sexualidadeeraça,assimcomonasanálisesreferentesasituaçõesemqueadiscriminaçãodegêneroéampliadaoucombinadacomadiscriminaçãoracial,éconcebívelafirmarqueemboraseconstituamseparadamente,essescamposatravessamumpercursodeencontro,ondeseinterceptammúltiplasformasdeinterpretação.ConformePiscitelli(2008,p.266),“apropostadetrabalhocomessascategoriaséoferecerferramentasanalíticasparaapreenderaarticulaçãodemúltiplasdiferençasedesigualdades”.

Crenshaw(2002),consideraqueassimcomotodasasmulheresestãosujeitasaopesodadiscriminaçãodegênero,tambéméverdadequeoutrosfatoresrelacionadosàsuasidentidadessociais,taiscomoraça,cor,etniaeorientaçãosexual,são“diferençasquefazemdiferença”naformacomováriosgruposdemulheresvivenciamadiscriminação.Acercadessaformulaçãoelaboradapelaautorasupracitada,Piscitelli(2008),argumentademodocríticoquereiteradamenteelaapresentaumanoçãodediferençacomoalgoequivalenteadesigualdade.

Poroutrolado,Hirata(2014),somanestedebateaoexplicarasdivergênciaseasconvergênciasentreasconceituaçõesdeinterseccionalidadee/oudeconsubstancialidade.Apesquisadorarefletequeaprincipaldiscussãoemtornodessaperspectivaéo

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enfoquedadoàsdimensõesderaçaeclassenoprimeirotermo,enquantoooutroconsisteemtendênciasdeclasseesexo.Emambasascorrenteshaveriaanecessidadederompercomashierarquiasopressivasqueacometemasrelaçõessociais.Noentanto,nosentidodainterseccionalidade,abarca-searaçacomumaportecompostoparaalémdeuminteresseepistemológicoeteórico,poishátambémuminteressejurídicoepolítico(HIRATA,2014).

Akotirene(2018),explicaquea interseccionalidadeéuminstrumentometodológicoqueseencontraemdisputanasencruzilhadasacadêmicas,tratando-seespecialmentedeumalenteanalíticaeferramentateóricaafrocentrada,cujofundamentoepistemológicopossuialicercesnatradiçãodofeminismonegro,expandindo-setambémparaasdisputasjurídicaseinstitucionais,promovendointervençõesdeordempolítica.Nessaseara,raça,gênero,sexualidadeeclasse,sãoproblemáticascruciais.

SobaperspectivadeBrah(2006),aanálisedasinterconexõesentreracismo,classe,gênero,sexualidadeequaisqueroutrosmarcadoressociais,develevaremcontajustamenteaposiçãoocupadaentreasdiferenças.Aautoraressaltaaimportânciaderealizarumamacroanálise,queabordeasinterrelaçõesdasvariadasformasdediferenciação,semnecessariamentederivartodaselasdeumasóinstância,evitandoassimoperigodo“reducionismo”.Nessesentido,elaaindachamaaatençãoparaarelevânciade“analisaraproblemáticadasubjetividadeeidentidadeparacompreenderadinâmicadepoderdadiferenciaçãosocial”(BRAH,2006,p.332).

ParaKerner,osparalelosentresexismoeracismosãonítidos:“cadaumdelesincorporafalsassuposiçõessobaformademito”(2012,p.46).Aautorareiteraqueoprópriotermosexismofoicriadoporanalogiaaotermoracismo,seguindocomcríticasaideiadesetrabalharcomoracismoapartirdogênero(aracializaçãodogênero)eosexismocomoracializado(asexualizaçãodaraça).Emumexercícioreflexivosobreessas

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diferentescombinações,Kerner (2012),aindaapontaqueracismoesexismopodemseranalisadosatravésdesemelhanças,dediferenças,deacoplamentosentreambos,oupormeiodecruzamentos,entrelaçamentosouintersecções.Ouseja,sãocategoriasautônomas,masqueestãoarticuladas.

Emboranãohajaumacordoabsolutoentreasperspectivasquecontextualizamraçaegênero,épossívelasseverar,que:

[...]autorasfeministasconvergemaoprestaratençãoà‘racialização’,pensadacomoefeitodeummodocruelecomplexodeoperaçãodasdesigualdades,atravésdoqualseexcluemgruposcorporalmentemarcados(PISCITELLI,1996,p.12).

Além disso, como esses fatores que se relacionamdiferencialmente“mantêmrelaçõesdepoderdistintascomoEstadoealei”(MOUTINHO,2014,p.226),agarantiadequetodasaspessoassejamfavorecidaspelaampliaçãodaproteçãodosdireitoshumanosembasadosnogênero,exigequeselanceolharaosvariadosmodospelosquaisogênerointersecta-secomumagamadeoutrasexperiências,bemcomo,aformapelaqualessasintersecçõescontribuemaumentandoavulnerabilidadededeterminadosgrupos.

EmconcordânciacomMoutinho(2014,p.226),pode-seendossarque“aexperiênciadaopressãosexistainterceptadiferentespontosdedominação”,ficandoevidenteanecessidadeeaimportânciadeampliarparâmetrosconceituais,evitandoaexclusãodedeterminantes.Certamente“concepçõesquetrabalhemcommaisdimensões,parecemsercapazesdenoslevarmaislonge”(KERNER,2012,p.46).Dessamaneira,assimcomopareceimportantequeateoriafeministaincluaoracismoemseusestudosereivindicações,omesmoequivaleparaas

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análisesantirracistas,paraqueconsideremadimensãodegêneroesexualidade.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesardeserpossívelestabelecerumencontroentreracismoesexismo,aindafaltamuitoparaobterumquadrocompletodacorrelaçãoentreambos,pois“sãofenômenoscomplexosenãoestáticosquediferemdeacordocomocontexto”(KERNER,2012,p.49).Assimcomoomachismo,cadaracismopossuiumahistóriaespecífica:

[...]surgiunocontextodeumconjuntoespecíficodecircunstânciaseconômicas,políticaseculturais,foiproduzidoereproduzidoatravésdemecanismosespecíficoseassumiudiferentesformasemdiferentessituações(BRAH,2006,p.344).

Emboraodebatefeministaafirmearelevânciadeobservarcomoasdiversasformasdediferenciaçãosocial interagemcomogêneroeseimbricammutuamente(PISTELLI,1996),seuobjetivoprincipaltemsidomodificarasrelaçõessociaisenvoltasespecificamentenogênero.Perspectivasfeministasocidentais,comoumtodo,derampoucaatençãoaprocessostaiscomooderacializaçãodogênero,dasexualidadeedaclasse(BRAH,2006),sendoimperativoressaltarqueháumabasedasdesigualdadesquetambémcomportaaquestãodeclasse,nãopodendoseranuladaousuprimida.

“Contemporaneamente,ainterseccionalidadeobedeceadinâmicasdiversasemultifacetadas”(MOUTINHO,2014,p.227).Dessemodo,noplanodosestudosdegêneroesexualidade,tambémdasciênciassociaisehumanascomoumtodo,pode-seafirmar

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suaimportância,comdestaqueaoseuenfoqueracialquebuscaquestionarmitoserepensarpráticaserepresentaçõessociaisestereotipadas,racistas,discriminatóriasepreconceituosas.Háumanecessidadeemergente,numaperspectivadecolonial,deconfrontaracultura“brancocêntricaeandrocêntrica”quedominaaformadeproduçãodeconhecimentonoBrasil,bemcomoabranquitude,aindapersistenteeativanosmovimentosfeministas.

Umoutroaspectoimportanteaseconsideraréque“ascoisassãorelacionadastantoporsuasdiferençascomoporsuassemelhanças”(HALL,1980,p.328)equeadiferençanãonecessariamentedeveserapreendidacomoummarcadordehierarquiaouopressão.Portanto,emconcordânciacomBrah:

Éumaquestãocontextualmentecontingentesaberseadiferençaresultaemdesigualdade,exploraçãoeopressãoouemigualitarismo,diversidadeeformasdemocráticasdeagênciapolítica(BRAH,2006,p.374).

Assimcomonastramasresgatadasem“CouroImperial”,porMcClintock(2003,2010),certamentesãomuitasasvivênciasderesistênciaeenfrentamentoqueeclodememdiferentescontextoscomorespostaaprocessosdedominação,violênciaeexclusão.

Outraquestãoaseobservarpensandonaintersecçãoentregênero,sexualidadeeraçacomoprocessodeconstituiçãodedireitosdapopulaçãoLGBTnoBrasil,percebe-sequeháumadinâmicadeconstruçãoondenãosóaviolência,mastambémo“sofrimento”atuacomoimportantefatorparagarantiadedireitosenaconstruçãodeinstrumentosdeproteção(MOUTINHO,2014).Assim,asestratégiasfeministasqueenvolvemenfrentamentodeposiçõessubordinadasrelacionadasagênero,raçaesexualidade,enquantocategorias“transversais”,evocamtambémdisputascom

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tensõesdivisionistas,cenárioestebastantedistintodonorte-americano,ondetaislutas,mesmocomaautocrítica,tendemaconvergirentresi.

Nessaperspectiva,comocontribuiaautorasupracitada,aconstruçãodesujeitoseanomeaçãodeformasdesobreposiçãodeexclusõessãopartedeumcenáriodefazerpolíticaseconstruirdireitos,naqualseconsolidouumasériedereivindicaçõesdosmovimentossociais.Estasresultaramemconfrontosnaspremissaslegislativasinaugurandonãosóprogramasepolíticassociais,mastambémincitaramumnovocamposemântico,cujaênfasesecentranaconstruçãoelegitimaçãodereparaçãoereconhecimento.

AluzdeCrenshaw(2002),aimportânciadeconsolidarumaperspectivaquedissemineaanálisedadiscriminaçãointerseccionalresidenãosomentenovalordedescriçõesmaisprecisassobreasexperiências,mastambémnofatodequeintervençõesbaseadasempercepçõesparciaiseporvezesdistorcidassão,muitoprovavelmente,ineficientesetalvezatécontraproducentes.Nessalógica,ocomponenteracialéumatemáticacentral.Sendoassim,ainterseccionalidadeeofeminismonegro,sãoesferasemcomumnocampodaanálisedegênero.Nãoháinterseccionalidadesemfeminismonegroevice-versa.

Pesquisasereflexõessobreaconstruçãosocialdascategoriasderaça,gêneroesexualidade,bemcomosuaassociaçãoenquantopossíveiseixosdediscriminaçõesmúltiplas,ganhamespaçonaabordageminterseccional,assumindoumviésondehábasesdesubordinaçãoqueserelacionamconstitutivamente.Contudo,aimportânciadaconstruçãodessasanálises,nocampoacadêmicoecientíficodominante,queétãolimitadoporsuasbasesexcludentes,“precisasercontinuamenteafirmada,poisnãoestádadacomolegítima”(MOUTINHO,2014,p.237).

Ademais,aindacombaseemMoutinho(2014),éprecisoatentarparaofatodequeadimensãodasrelaçõesraciaisretém

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umaporteteóricodandoênfaseàdesigualdadesocial,aossistemasdeclassificaçãoporcor/raçaeclasseepareceaderircommenorfrequênciaaodebatedegêneroesexualidadeoudeseusentrecruzamentos.Tantoéassimque,nagrandemaioria,taisanálisesoperamimplicitamentecomouniversalnegroemumacombinaçãocomogêneromasculino.Detodomodo,certamenteéprecisoqueaoabordaropreconceitoracialpossaseravaliadoseécabíveladicionaremsuastemáticasoutrasformasdedesigualdadeedediáspora,taiscomogêneroesexualidade.

Igualmente,compreende-sequeéprecisofomentaracríticadasposiçõesdepoderdissimétricasanalisandooslimitesdaepistemologiafeminista,querecorrentementeatuaemumaperspectivaparcialesupostamenteuniversal,incorporandoavisãodemundodasociedade(HIRATA,2014),reproduzindoexclusõesehomogeneizandosuasanálisesemumaperspectivadabranquitude,eurocentradaeelitista.ParaHirata(2014),éprecisopotencializarumquadrointerdisciplinar,cujoenfoqueestejananãohierarquizaçãodasformasdeopressão,masquetodaselaspossamserdealgummodo abarcadas.

NoBrasil,ocampodainterseccionalidade,dosmarcadoressociaisdadiferençaedasinvestigaçõesacercadaraça,gêneroesexualidadevemsefortalecendoedestacam-sereferênciasautoraiscontemporâneasqueestãodialogandocomimportantesteóricasanívelglobal,masquetambémdesenvolvempesquisasemateriaiscomoscontornosespecíficosparaarealidadedadimensãoracialnoBrasil.Nessalógica,deveserreverenciadoescritoraseintelectuais,alémdasjácitadasaolongodessetexto,comoLéliaGonzalés(1984),SueliCarneiro(2011),CarlaAkotirene(2018),JuremaWerneck(2010),tambémevidencia-seCarolinaMariadeJesus(1960),ConceiçãoEvaristo(2016),MariaAparecidaSilvaBento(2002),MeggRayaradeOliveira(2017),JulianaBorges(2019),JaquelineGomesdeJesus(2015),CristianeSobral(2014),TatianaNascimento

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(2014),VilmaPiedade(2017)etantasmaisqueconstroemessessaberesemergentes.

Indubitavelmente,paraalémdoâmbitoacadêmico,outrasinstituições,órgãosdedireitoshumanos,movimentossociaisedemaisespaçospúblicosdevemseenvolvernessareflexão,afimdesomaresforçosparainvestigaçãoereconhecimentodasimplicaçõesdegênero,sexualidade,raça,classeedemaisfatoresque“contribuemparaumacombinaçãodeabusosdosdireitoshumanos”(CRENSHAW,2002,p.174).

Atravésdeumacríticaaperspectivasqueoperamemumúnicofoco,“deve-sefazerumesforçonosentidodeobtermaiorprecisãodostiposparticularesdediscriminação,ligadosadiferentesformasdeidentidadessociais”(GUIMARÃES,2005,p.28).Épossívelconcluirqueasdimensõesdeclasse,raça,gêneroesexualidadetêmlimitaçõesquandoanalisadascomo“variáveisindependentes”,poisaopressãodecadaumaestáinscritadentrodaoutra,éconstituídapelaoutraeépartedela(BRAH,2006).

Podeseconsiderarqueopreconceitoeadiscriminaçãoracialedegênerosãofrutosdeum“atrasocultural”,ondeocorreramtransformaçõesnaordem“econômica”,“legal”e“moral”,mas“atitudes”,“comportamentos”e“valores”dosistemaescravocratapermaneceminalterados(MOUTINHO,2014,p.217).Diantedessaconjuntura,éimportantecompreenderasdiferençasnaslutaseresistências,maspareceimperativonãosócompartimentalizaropressões,comotambémformularestratégiasparaenfrentartodaselasnabasedoentendimentodecomoelasseinterconectamearticulam(BRAH,2006).

Ainterseccionalidadeapresenta-secomoexemplodeumdoscaminhosparatrabalharnassoluçõesdosproblemasqueaolongodestetextoforamdesdobrados,principalmentenoqueconsisteaosdilemasderaça,gêneroesexualidade.Todavia,cabefrisarqueaescolhapelainterseccionalidade,implicaem

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assumirumconjuntodepreceitosbasilares,paranãoincorreremesvaziamentosanalíticos.

As reflexões aqui apresentadas, indicam aspectosintrodutóriosfrenteapanoramasconceituais,indicandoumquadroreferencialemabertoquepodeserdirecionadoapartirdediferentesformatos,tendocomoconsensoqueadimensãoracial,articuladaaosestudosdegêneroesexualidade,estáancoradaapreceitosinvestigativosimprescindíveiserelevantesenquantoproblemáticasacadêmicas,mastambémfundamentaiseindispensáveisparabuscadetransformaçõessociaisequânimes.

REFERÊNCIAS

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ARTICULAÇÕES NAS RELAÇÕES DE PODER: PERFORMATIVIDADES DE GÊNERO E SEXUALIDADE NA PRÁTICA DA REVISTA ÍNTIMA

Eloisa Slongo36

1 INTRODUÇÃO

Opresenteartigoanalisaascategoriasdegêneroedesexualidadequesãoacionadasnaregulaçãodapráticadarevistaíntimanointeriordosistemacarcerário.Nessesentido,procura-secompreenderdequemaneirataiscategoriasatravessamocenárioprisionaleproduzemaexperiênciadequemovivencia,utilizandocomofocodestadiscussãoasrelaçõesafetivasefamiliaresnocontextodeprivaçãodeliberdade.

Comointuitodequalificarodebatesobrearevistaíntimaquandoamulheréavisitantedosestabelecimentosprisionais,nossoobjetoserestringiráàsdinâmicasvivenciadasporelasnasprisõesmasculinas.Asmulherespresasrecebemumvolumeinferiordevisitasíntimasefamiliaresqueoshomenspresos.Nessesentido,aParaíbasedestacacomoumdosEstados“emqueamédiadevisitasrealizadasnosestabelecimentosmasculinosémaisde5vezesmaiorqueamédianosestabelecimentosfemininos”(INFOPENMULHERES,2018,p.27).

36 MestrandapeloProgramadePós-graduaçãoemCiênciasJurídicasdaUniversidadeFederaldaParaíba(PPGCJ-UFPB).IntegrantedoGrupodePesquisaPolíticaCriminal,SistemaPrisionaleDireitosHumanos(UFPB).E-mail:[email protected].

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Talinformaçãodizmuitosobreoprocessoderompimentodevínculosecontatocomoqueestáforadosmurosdocárcere.Avisitação,conformeprevêalegislaçãodeExecuçãoPenal37,alémdeserumdireitodapessoapresaétambémumadaspolíticaspúblicasquedeveriaserfomentadapeloEstado,afimdecoibiroabandonosocialetambémpromoveraressocialização.

Observandoessascircunstânciaséqueadiscussãosobreaspolíticascriminaisdesegurançadaspenitenciáriasentraemdebate.Partindodolugar-comumdasprisõesbrasileiras,sabe-sequeaviolênciasequenciada(GODOI,2015),osmaus-tratos,aindignidadecomquesãotratadasaspessoasqueconvivemcom/noâmbitoprisionaleatortura(dentroouforadointeriordascelas)sãocaracterísticosdessesistemadeagrupamentoeadministraçãodeagregadospopulacionaisformados,majoritariamente,dejovenspretos,pobresedebaixoníveldeescolaridade(BRASIL,2017).

Asrelaçõesafetivasconstruídasemantidasdentroeforadaprisãoconstituem-seenquantoredesdeapoioefazemcomquesetornepossívelenxergaraporosidadedosmurosdasprisões.Édesedestacarqueasrelaçõesdecuidado,afetoesuportedavidanocárceresãocosturadasapartirdedinâmicasdegêneroedesexualidade,umavezquesãoasmulheres,emsuamaioria,quesustentameparticipamativamentedesseprocessodevínculoextraprisional(TANNUSSet.al,2016).

Vemdasmulheresosacrifícioparaapreparaçãodosjumbos38,daorganização,gerenciamentoeadministraçãodacasa,

37 Art.41,daLeideExecuçãoPenal.

38 Oschamadosjumbossãooconjuntodemantimentosalimentícioseprodutosdehigienepessoal, levadosàprisãopelosvisitantesparacomplementarouparasustentarseusentesreclusos.Paramaisinformações,conferir:Nemdentro,nemfora:alogísticadavisitaçãoempenitenciáriasdooestepaulista(GODOI,2013).

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dofinanceiro,dotempoparavisitação,dotransporte,bemcomodoautocuidadoetambémdoscomportamentosrecomendáveisoucondenáveisentreasmulheresquecompartilhamasesperasnasfilasdasprisões(LAGO,2017).Alémdessassituações,tambémrecaisobreelas:filhas,esposas,avósecompanheiras,especialmente,osimpactosproporcionadospelarevistacorporalouíntima.

A revistacorporal acontece,atualmente, atravésdemecanismosbastantehumilhantes,podendo-se, inclusive,denominá-lacomorevistavexatória.Emgeral,nomomentodasinspeções,exige-sequeo/avisitantefiquedespido/a,emumlocalquenãoéapropriado,diantedeumagentepenitenciáriodomesmosexoetambémdeoutrosfamiliaresevisitantesquepassarãopelarevistacorporal,sendonecessárioqueeles/asagachem-semaisdeumavezsobreumespelho,queabramaboca,colocandoalínguaparacimaesacudamoscabelos,podendoatémesmosersolicitadoqueseguremouabramsuasgenitálias(GODOI,2015).

AviolaçãodeDireitosHumanosvivenciadasporestasmulheres,duranteoprocessodesubmissãoàspolíticasdefiscalizaçãoempreendidaspelosórgãoseagentesestatais,perpassamoscanaisdaprisionizaçãosecundarizada39.

Aprisionizaçãosecundarizadaseriaaarticulaçãodosefeitosdaprisãoparaalémdoseuterritóriofísicoeespaçointerno.Éamaneirapelaquala/ofamiliardepresoéexpostoàculturadaprisão(GODOI,2017),àsdeterminaçõesinternaseaocotidianoprisional,inclusive,comodito,aorganização,gerenciamentoeadministraçãofinanceiradoqueaenvolve.

39 Trata-sedosprocessosderepressãoepuniçãosuportadospelosfamiliaresdepresosqueacabamvivenciandoocotidianoeasubculturaprisionaljuntocomseuenteencarcerado.TalcategoriaéestudadadeformamaisprofundaporMeganComfort,cf.:Doingtimetogether:Loveandfamilyintheshadowoftheprision(COMFORT,2008).

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Assim,pergunta-se:Comosãoacionadasascategoriasdegêneroesexualidadenaspráticasestataisqueregulamomodus operandidarevistaíntima?

Diantedessaquestão,serãousadasasteoriasdegênero,enquantomarcoteórico,debruçando-sesobreosestudosdeButler,Godoi,EfremFilho,LowenkroneVianna,entrelaçando-osaosestudosdeviolênciaeprisões.Apesardesecompreenderanecessidadedodiálogocomacriminologiacrítica,taldiscussãonãoseaprofundaránestecampo.

Taiscontribuiçõesserãofundamentaisparaaproblematizaçãodasarticulaçõesdegêneroedesexualidadenoscamposdepoder,bemcomoparaodebatesobreaspolíticasdecontrolequeseconstituemcomoelementosprodutivosereprodutivosdoEstado.

2 A DIMENSÃO PRODUTIVA DAS CONVENÇÕES E POLÍTICAS DE GÊNERO E SEXUALIDADE

Asconvençõesdegênero,quedefinemfeminilidadesemasculinidades,sãoprodutosdocontextosocialehistóricoquepermeiamacompreensãodaprisãoemsuasmúltiplasfacetaseasrelaçõesquenelaseconstituemeseretroalimentam.Porisso,épossíveldizerque“oscorposdasmulheressãoatravessados–eatravessam–opodereapolítica,sendoporelesreguladosecontrolados”(SLONGO,2017,p.14).

Asrelaçõesdepoder,quecompõemeperpassamasinstituiçõesdoPoderJudiciárioeosespaçosdosistemaprisional,tambématuamatravésdeumadinâmicaprodutiva.Destamaneira,instituemlógicasdecondutagenerificadasesexualizadas,sejaemrelaçãocomocuidadocomafamília,ostiposdevestimentas,aocondicionamentoafetivo-sexual,aoslocaisdetrabalhoeasdemaisatividadesdesenvolvidasnapráticasocial.

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Butler,emseulivroProblemas de gênero: feminismo e subversão da identidade(2019),aoapresentarosproblemasmetodológicosparapensarapráticapolíticaacercada(in)constânciadacategoria“mulheres”edaprópriaconstituiçãodosujeito,questionaquaisasrelaçõesdepoderqueconstroemosujeitoeo“Outro”40,alémdeabordaraconformaçãodestesaumamatrizheterossexualdosexo,dogêneroedodesejo.Paraisso,constroiseuraciocínioacercadaformaçãodasidentidadesedasubjetividade,asquaissãoefeitosdediscursosepráticasdeinstituiçõesdepoder,taiscomoosistemajurídico,ocampodaculturaealinguagem.

Aofalarsobreostatusdamulherenquantosujeitodofeminismo,aautoratececríticasàteoriafeministaclássica41,queatribuiuumaidentidadeunaàcategoriamulheres,essencializandoasexperiênciaseossentidosdegênero.Talcategoria,enquantoconfiguraçãodesujeitostraçaosinteresseseosobjetivosdofeminismo.

Apontandoosproblemasgeradospelanoçãounade“mulheres”,afilósofaquestionaossentidoseoslimitessemânticosdo“sermulher”,demonstrandoque,naverdade,mulheresdistintasfazempartedetalgrupo,asquaisestãosujeitasaformasdeopressõesquesãovivenciadaseoperamdemaneirasdiferentessobreseuscorposevidas.

40 AopautarumdebateentreBeauvoireIragaray,tratandodaausênciadeunidadedosujeito“mulher”,Butleraponta,criticandoaperspectivasartriana,quealémdeasmulheresseremfalsamenterepresentadas,estasignificaçãotambémquestionaaestruturadarepresentação,umavezqueéapartirdestaqueéformadaanoçãohegemônicadosatributosessenciaisouacessóriosquefariampartedoconceitouniversaldepessoa(BUTLER,2019,p.29).

41 Butlerapontacomorepresentantedofeminismoclássico,asteoriasdeSimonedeBeauvoireLuceIrigaray,asquais,emdiferentesformasdeabordagem,tinhamointuitodeproduzirteorizaçõescoerentesparacategorizaçãodosujeitomulher.

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Noentanto,todaessadiversidadedeexperiênciasécircunscritaàlógicarepresentacional,queatuaparadarlegitimidadeevisibilidadeàsmulherescomosujeitospolíticos,masquepodedistorceroqueéverdadeirosobreelas.Nessesentido,aformaçãojurídicadalinguagemedapolíticasetraduzemdiscursoseefeitosdeumapolíticarepresentacionalhegemônica.

Poressarazão,Butler(2019)afirmaqueacríticafeministatambémdevecompreendercomoacategoriadas“mulheres”–osujeitodofeminismo–éproduzidaereprimidapelasmesmasestruturasdepoderpormeiodasquaissebuscaaemancipação.UtilizandoFoucault,elatrazainda,queossistemasjurídicosdepoderproduzemossujeitosquepassamaserrepresentadosequedelesregulamavidapolíticaatravésdocontrole,daregulamentaçãoedaproibição,tambémformandoosprópriossujeitos.

Ogêneronãoexisteemsi,nãoéestávelepodeseconstituirdemaneiracoerenteouconsistentenosdiversoscontextoshistóricos.Alémdisso,ossignificadosesentidosdegênerosãoproduzidosapartirdeumaíntimaarticulaçãocomoutrascategoriascomoaraça,aclasse,aetnia,ageração,entrevariadosfatoresquepodemestarpresentesnaexperiênciadesubjugaçãoeagenciamentodasmulheres(BUTLER,2019).Ogênero,portanto,estáimersoemrelaçõesdepoderprodutivasedestrutivas,nãonecessariamenteopressoras.

Aotratardaarticulaçãodecategoriassociais,EfremFilhoseutilizadeescritosdeMcClintock,PerlonghereLinsFrança,paraelaboraroconceitode“reciprocidadesconstitutivas”:

[...]paracompreenderosmodospelosquaisrelaçõessociaisdepoder,comodeclasse,território,gênero,sexualidade,geração,racializaçãoetc.,fazem-seumasatravésdasoutrasnasexperiênciasdossujeitosenosconflitossociais.Comisso,permito-me,comofezIsadoraLinsFrança(2012),tratar

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gêneroesexualidadetambémcomolinguagensqueoportunizamacompreensãodeoutrosconflitos(EFREMFILHO,2017,p.9).

Énessesentidoqueoautordemonstracomoessascategoriassociaisentãointerligadasumasàsoutras,nãoemumaposiçãohierárquicaoumesmoenquantoumsomatório,masqueseproduzemmutuamenteeperpassamasexperiênciasdevidasdaspessoasapartirdasarticulaçõesdecamposdepoder.Nessacompreensão,raça,classe,sexualidade,gênero,gerações,etniaseoutrosconjuntosderelaçõesagemnapráticapolíticadavidasocialnãoisoladamente,masapartirdeoperaçõesdereconhecimentoforjadaseenquadradasnasrelaçõesdepoder,discursoseconflitossociais.

Oscorpossãomoldadospelocontextosocialeculturalemqueaspessoasestãoinseridas,demodoquetalestruturaseriaaprópriasubstânciadavida,conformeexplicaLeBreton(2012).Porestarazão,oscorposseconstituemenquantovetoresdecomunicaçãocomomundo,deexpressãodesentimentos,aparênciaevínculocomadoreosofrimento.

Trazendoessascontribuiçõesaocontextodosistemacarcerário,percebe-seasuaconstituiçãoenquantocampodepoderimersonalógicaarticuladoradasrelaçõesdegêneroedesexualidade.Porsuavez,aplicando-seasteoriasdegêneromencionadasàpráticadarevistacorporal,notamosqueasaçõesdefiscalizaçãoseconstituemenquantoprocessosdedesumanização,formaçãodaidentidadeecondicionamentodasubjetividade,sejapelasubserviência,controleoudisciplina.

Destaforma,asmulheres,familiaresdepresos,submetem-seaviolaçãodesuaintegridadefísica,psíquicaeaumtratamentodegradantediantedaexposiçãodeseuscorposàrevistacorporal,quepossui,inegavelmente,umcunhovexatório.Comonosensina

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NatháliaLagoeMárcioZamboni,tratandodaspolíticassexuaiseafetivasdaprisão,énítidooquanto:

[...]asrelaçõesdecuidado,afetoeinterdependênciaeosfluxosdepessoas,bensesignosesentimentos(...)estãoprofundamentemarcadosporpadrõesdegêneroesexualidade(LAGO;ZAMBONI,2017,p.6).

Podemosperceber,portanto,comoaspráticasestataissãogenerificadas,aomesmotempoemqueasperformatividadesdegêneroganhammaterialidadeviaEstado,constituindoadinâmicadavidadefamiliaresdospresos.Assimtambémpodemsercompreendidasasrepresentaçõeseasafetaçõesdasperformancesdegêneroqueestãoemconstanteatualização(EFREMFILHO,2017)edisputa(VIANNA;LOWENKRON,2017),umavezquesãoprodutoshistóricoseassimsemovimentamesãoconstruídos.

Atravésdaspráticasdecontrolenaentradadasprisões,podemosobservaramaneira rigorosa,articuladae ríspidacomoaconteceàfiscalizaçãoàsvisitantes,porsuavez,maioriafeminina.Comojádescrito,ataissujeitosrecaiumprocessodeestigmatização,emrazãodovínculocomofamiliarpresoaservisitadoeapossibilidadedetrazeralgoilícitoconsigo,oquefazcomqueelasnaturalizemaviolênciaqueéperpetradanasfilasenarevistaíntima.

Pormedoe/ourespeitoàautoridade,deretaliaçõeseainda,porseremconsideradospossíveismeiosparaaentradadeobjetosproibidosnaprisão,asmulherestêmseuscomportamentosecorposmoldadossegundoconvençõesqueregulamos“territóriosdeperigo”.

Anoçãode“territóriosdeperigo”étrabalhadaporEfremFilho(2017,p.18)aoexporquealgunslocaisestãomarcadospelailicitude.Porpossuíremumaintimidademaiorcomasdinâmicasdocotidianomarginal,sejapelacartografiadocomérciovarejista

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dedrogasilícitas,armas,bensdeorigensnãocomprovadas,assimcomoaausênciadequaisquervínculosempregatíciosoutrabalhosregulares,estesterritóriospossuemapresençaconstantedoEstado,materializadapelasesferaspoliciaisoudocrime.

AtraduçãodossentidosformaisdoEstado,daviolênciaperpetradaporagentesestataisedoreconhecimentodeumsuspeito,diantedeumaseleçãodefatoseeventosqueproduzemilusoriamenteuma“verdade”,considerandoasrelaçõesdepoderesubmissãoàsdeterminaçõesdaadministraçãopenitenciáriaéoquecompõeas“finasmalhasdoterror”(EFREMFILHO,2017,p.18),queatravessamaprisão.Adominaçãodecorposeocondicionamentodasubjetividadedosfamiliaresdepresosoudaspessoasquesesujeitamàrevistacorporalseconstroemcomotais,portanto.

Nãoobstanteestareminseridosemrelaçõesdepoderdesiguais,essessujeitoselaboramformasdeagênciaaodenunciarainadmissibilidadedasviolênciasàsquaisestãosubmetidos:osprocessosdevigilância,asarbitrariedadeseexcessosdosagentesestatais.Taldenúnciaconsisteemumexercíciode“reivindicaçãodaviolência”queserveparaconsolidaralegitimidadedasvítimas.Asdores,ossuplícioseossacrifíciosprecisamservalidadospublicamenteparaquesurjamosefeitosnaquelasvidaseaimportânciaqueaelasdevemseratribuídas.Destaca-se,especialmente,asituaçãodasmulheresquepassampelarevistaíntimaeescolhemadentrarocárcere,reivindicandosuadignidadenosmomentosderevista,aosenegaremouquestionaremos/asagentespenitenciários/assobreaspráticaseosassédiosporelasvivenciadosnomomentodainspeçãocorporal,circunstânciasquepodempromoveradesestabilizaçãodestaautoridadeedepráticasenraizadasnosistemacarcerário.

ComoumainscriçãodossentidosdeEstadonoscorpos,arevistaíntimapodeservircomobarreiraparaapromoçãodoselosentrefamiliaresdepresosetambémdaautoconsciência

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desi,pois,sistematicamente,questionaaliberdadedequemadentraaprisãoe,sobretudo,podeforjarumsentimentodeculpaeresponsabilizaçãodopresoemrelaçãoàsviolênciasqueseusentessofremporláestarem42.Sendoimpossível,então,desassociarasintervençõesestataisdasconvençõesdegênero,jáquenãohácomoracionalizarossentidosdeEstadodeixandodeladoasrelaçõesdegêneroesexualidade.

3 A ARTICULAÇÃO DAS CATEGORIAS DE GÊNERO E SEXUALIDADE NA PRÁTICA DA REVISTA ÍNTIMA

Asmasculinidadesagressivas,egoístasedominadorasdoEstado,emrazãodahistóricaocupaçãoporhomensdaspolíticaspautadasemrelaçõesdedesigualdadeentrehomensemulherespautadasatravésdosinteressesmasculinossãoanalisadasporLowenkroneVianna(2017).

Ambasasautoras,criticandoacorrentedofeminismoradical,apartirdosestudosdeYoung,nosfazemrefletiracercadospapeisdoEstado.Asreflexõeselaboradasporestaautora,tratamdacompreensãodoEstadocomoexpressãodaquiloqueémasculinoedoprópriopatriarcado,ouseja,dacombinaçãoentreadominaçãomasculinaeopoderestatal,aopontuarqueasrelaçõesdedesigualdadeestariaminseridasemumaagendadepolíticasincorporadasainstitucionalizaçãodopodermasculinonasociedadecapitalista,quereiteravaasubordinaçãofeminina.

Nessesentido,LowenkroneVianna,tambémapontamosestudosdeYoung(2003),soboutraperspectivadadimensão

42 Muitasdasrebeliõesocorridasnospresídiosestaduaistiveramcomoumadesuasmotivações,amaneirapelaqualocorremasrevistasíntimas,aexemplodarebeliãoocorridanaPenitenciáriaTupiPaulista,emSãoPaulo(cf.SILVA,2017).

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masculina,depolíticadeproteçãoestatal.Elasponderamque,emborahajaumaconvençãoquecaracterizao“Estado”apartirdeperformatividadesdominadoraseopressoras,confrontamtaldimensãocomaquelaqueadmiteo“Estado”enquantoagenteprotetor,diantedeumaimagemde“masculinidadeaparentementebenigna,associadaaideiasdecavalheirismo”(VIANNA;LOWENKRON,2017,p.13),porémaindaemumaposiçãodedependência.

Nessesentido,soboargumentoqueaspráticasdesegurançasefazemnecessáriasnosestabelecimentospenais,avisãodeum“Estadoqueprotege”afrontaaimagemagressivadoEstado,umavezqueestavaideencontroàsgarantiasconstitucionaisquesãocaracterizadas,enquantopolíticasdeproteçãodoEstado,interessadoempreservaraintegridadefísicados/asvisitantesdospresídios,porexemplo.

ParacompreenderossentidoselógicasqueperfazemoEstado,aindaquesinteticamente,éindispensávelvisualizarasconotaçõesatribuídasàpráticadarevistacorporalpelosistemapenitenciáriodapráticadarevistacorporalpelosistemapenitenciário.Enfatiza-se,nestaseção,aaludidanecessidadedesegurançadaestruturapenitenciária,ascontradiçõeserelaçõesdepoderqueestãoalémdacapacidadedematerializaçãodiscursivadaanálisedestetipodevistoria,vistoqueasnarrativassobreasviolênciasocorridasnestesespaçosnãosãocapazesdereconstituir,porcompleto,oque“defato”aconteceu.Trata-sedoscuidadosmetodológicosapontadosporMarizaCorrêasobreairrecuperabilidadedos“atos”edecomoasnarrativasrepresentamsomenteumaleiturasobrepartesdamesmahistória(CORRÊA,1983,p.26).

ComotrazButler(2019),énecessáriocompreenderosdeslocamentosdaspráticasreguladorasdogêneroeabuscapelauniformizaçãodasidentidadesporpartedoscamposdepoder.Tais

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camposproduzemosujeitoenquantoforjamasimesmospormeiodasestruturascompulsóriasqueregulamasrelaçõessociais,estandocaracterizadoosistemapenitenciáriocomoumdessesambientes.

Aodesejaradentrarainstituiçãopenal,o/avisitanteésubordinadoàsregrasinternasdessesistema.Nointuitodereprimirviolaçõesataiscódigosregulamentares,oEstadoimpõe,“paraagarantiadasegurançaprisional”,algunsmeiospelosquaisfiltraráaentradadeobjetosilícitos,taiscomosubstânciasilegais,armas,celulareseoutrosbensquesirvamcomoformasdebarganhaoudeleitedequalquerprivilégionointeriordaunidadeprisional.Ocorre,noentanto,queasegurançainternadessesistemaestáintrinsecamentevinculadaàmaneirapelaqualérealizadooprocedimentodeverificaçãodoqueos/asvisitantestrazemconsigo.

OEstadoimpõeeargumentaquearevistacorporalseconstituicomoomeiomaiseficazparaafiscalizaçãodaentradadevisitantesnaspenitenciárias.Háqueseponderarqueemboraasjustificativassejamparaa“segurançainstitucional/pública”,atendendoaocaráterpreventivodoEstado,asconsequênciasdessarevista(vexatória)sãomanifestadas,principalmente,atravésdasperformatividadesdegêneroesexualidadedesempenhadaspelasmulheresvisitantes.

SegundoapesquisadaRedeJustiça,emumboletiminformativocomatemáticadasrevistascorporais,acoibiçãodaentradadeobjetosnãopermitidosnãoéatingidapelainstituiçãoprisional.OsdadosacercadarevistaíntimafornecidospelaSecretariadeAdministraçãoPenitenciáriadoEstadodeSãoPauloapontamqueporvoltade3,5milhõesderevistasforamrealizadasnoanode2012eapenasem0,02%doscasosforamapreendidasdrogasoucelularescomvisitantes.FoiobservadoquenaqueleEstado,cercademeiomilhãodefamiliaresentremulheres,homensecriançassesubmeteramàsrevistasíntimasdecarátervexatório(INFORMATIVOREDEJUSTIÇACRIMINAL,2014).Nota-se,

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portanto,quetalmétodopossuifinalidadesimplícitasaoidealdecontroledesegurançaprisional.

Ainspeçãodoscorposedasgenitáliasérealizadaporumagentepenitenciáriodomesmogênero,deacordocomdeterminaçãodaadministraçãopenitenciária.Destaforma,nãoháquesefalarem“escolha”àsubmissãoàrevistacorporalpelasmulheresquefrequentamospresídios.Ainvasãoaoforoíntimo,asubmissãoànudezdiantedocompartilhamentodeambientescompessoasdesconhecidas,inclusivefrenteaosagentesestataise,porvezes,otoquedestapessoaàspartesíntimas,temsidocaracterizadoporsetoresligadosaosDireitosHumanos,emmomentosdedisputaretórico-jurídica,enquantoassédiosexual(TANNUSet.al,2016)ouatéestuproinstitucional(OSOMARZO,2017;IBCCRIM,2015).

Salienta-setambémquediantedasdenúnciasdasvisitantesedosesforçoscoletivosdeassociaçõesdemãesemulheresdepresos(PADOVANI,2019;SILVESTRE,2013);pelapressãoadvindaderebeliões;peloreconhecimentoporpartedasautoridades,sejaoConselhoNacionaldeJustiça,MinistérioPúblicoFederaleoutrascomissões,verifica-seatentativadeimplantarmeiosmaissofisticados,tecnológicosemenosinvasivosaosistemapenal(CAMPELLO,2016),especialmentenoprocessoderevistapessoaldaspessoasquevisitamentesqueridospresos(FUJITA,2017).

Noentanto,vê-sequeestanãoéumadeterminaçãonacional,cabendoaosgovernosestaduaissuaimplantação,bemcomoacaptaçãoderecursosfinanceirosparaadquiri-los.

Asnormaspenaisdocampoestatalpartemparaocontroledoscorposedasubjetividadedasmulheresinduzindo-asaosrituaisdaprisão(PIRES,2016),sejapelocomprometimentodotempo,dosdiasdevisita,dosmomentosqueestaspassarãoaoladodoseufamiliarpreso,bemcomodoprocessodenormatizaçãoquelheséestendido.Entretanto,essaviolênciamajoritariamenteexercidacontraasmulheresporvezesésignificadapelosorganismos

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estataiscomomeroconstrangimentoou,poroutrolado,como“malnecessário”(DUARTEet.al,2017,p.124).

Estaé,porsuavez,umaviolêncialegalizadaereafirmada,acadavisitaeacadamomentodevistoria.Aindaquealgunsfamiliaresjápercebamaexecuçãodarevistacomoumaetapanecessária,considerandoafamiliaridadecomocotidianoprisional,édesesalientarocaráterintimidadordestavistoria,mas,sobretudoseuaspectoprodutorereguladordassubjetividades,namedidaemqueconseguetornaríntimaelegítimaàsmulheresaviolênciainstitucionalizada.Assim,arevistaíntimaratificaasposiçõesdehierarquiaqueestãopostasnosistemaprisional,induzindonasmulheres,padrõesdeperformatividadeeconteúdosinternos,subjetivos,queconstituemapráticaprisional,alémdepromoversentimentosdesubmissãoaosregulamentosadministrativosdaprisão.

Ressaltamosqueaobjetificaçãodoscorposdasfamiliaresecompanheirasdospresospodeseconstituirtambémenquantoprocessodeetiquetamentosocialdos/asfamiliaresdepresos(BARATTA,2002).

Oetiquetamentosocialéumateoriadacriminologiacríticaclássicaquetrataacercadocombateaoscrimes,apartirdacríticaaosconceitosdecrimeecriminoso,diantedacriminalizaçãoerotulaçãodesujeitosquepossuíamcomportamentosnãocondizentescomaculturahegemônica,aosseusvaloreseaosdosistemapenal.

Aplicandotalteoriaàanálisedarevistaíntima,nota-secomoasperformancesdosagentesestataisqueatuamnosistemapenalestãoconsubstanciadasemnormasdecontençãosocialdossujeitosvulnerabilizadose/ouabjetos43,atravésdacriminalizaçãopela

43 Corposabjetossão,segundoButler(2019),aquelesquenãoagem/existemconformeosdiscursoshegemôniosdaestruturabinária,aquelesquesãoimpossíveis,paraanormadiscursivavigente,deseremcompreendidoseporestarazãopermanecemàmargemouainda,excluídos.

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suspeiçãodascoisasquepodemtrazernoscorposdequemadentraasprisõesedadescaracterizaçãodestasmulheres,especialmentemãesecompanheiras,enquantopessoaslivresepossuidorasdedignidadeedireitos.ComoexplicaCampos:

[...]Depreende-sedaocorrênciaestudada,queasmotivaçõesenvolvidasnapráticadeabusosnasrevistas íntimasforamopreconceito,aestigmatização,etiquetamentodosentesdeumpresoeoabusodeautoridade,nãosevislumbrando,nesteepisódio,nenhumprocedimentopróprioeadequadodeumorganismopolicialoudeagentespenitenciáriosquetemcomoatribuiçãoprecípuaaprevençãoerepressãoaocrime(CAMPOSapudBRAGA,A.;DUTRA,Y.;TORRES,T.A,2016,p.7).

Valesalientarquearevistavexatóriatambémocorreantesdasvisitasíntimas,demaneiramaisrigorosa.Esteprocessoquetambémservedefiltroparaoprotagonismodosmomentosdeprazer(sexual)dosapenados.Nestemomento,essasmulheresseencontram,apesardesujeitasaocontroleprisional,emumlocaldepoder,sejapelasimbologiaoufetichizaçãodascelasedaerotizaçãodaprisão,sejapelaidealizaçãodoamorromântico,comoressaltaGuimarães:

[...]Asmulheresestabelecemumjogofetichizadoemesmoerotizadocomainstituiçãoprisão.Erotizado,namedidaemqueainstituiçãopermiteumlugardepoderparaamulhersobreohomempreso,(...),poisaprisãogarantequeohomemestá‘preso/seguro’ládentro,oupelaativaçãododesejosexualdoparceiro(GUIMARÃES,2006,p.51).

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Apesardaestigmatização, “asmulheresdospresos”(PADOVANI,2019;SILVESTRE,2013)sãoquempodemreivindicaraviolênciadespendidanaprisão.Oprocessoderesistênciaàsviolaçõeseàssituaçõesconstrangedorasqueasmarginalizamepromovemamortificaçãodelas,podemserclassificadosenquantoaçõescaracterizadorasda“maternagemdaaçãopolítica”(EFREMFILHO,2017,p.41).Taismulheresestãoligadasaoapenado,localizadasnos“territóriosdeperigo”e,vinculadasaoroldesuspeitosdoEstado,submetem-seàcoerçãodarevistacorporalcomomeiodereivindicaçãodoafetoedosobjetivosdaressocialização44,denunciandotaispráticasabusivas.

ComonosensinaEfremFilho(2017),aconvençãodegêneroesexualidadeatribuídaàmaternidadeestáarraigadaaummomentoextremodeviolência.Éaimagemdamulher-mãe,sacra45,quevaioperarnosentidodadisputada(i)legitimidadedaviolênciaperpetradaaosfilhos,doscamposdepoderquepermeiamtalpráticae,também,daideiadecuidado,enquantoperformatividadede gênero.

Édelastambémaincumbênciadaverificaçãodoandamentodosprocessospenais.Taismulheres,atravésdodesempenhodocuidado,estãoconectadasàexecuçãodapenaedoprocessopenal,calcandosualiberdadeaoexercíciodacidadaniaeasestratégiasdesobrevivênciadiantedodescréditodajustiça(GUIMARÃES,2006).Apartirdestesfluxosprisionaiseprocessuais,seestabelecem

44 Demaneiracrítica,éimportantesalientaroquantoessacategoriaéutilizadapeloEstadoesistemapenalnointuitodelegitimaraexistênciadasprisõesenquantoumlocalreeducador,promotordecidadaniae“bonscostumes”ideiatalquenãocondizcomarealidadebrasileira.

45 DeacordocomEfremFilho(2017),aimagemdamãeestáligadaàsimbologiacristãdeMaria,mãedeJesus,comoaquelaquesesubmeteadoreaosofrimentoporamoraoseufilho.

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tambémrelaçõesextraprisionaiscomoutrasmulheres,formandoumvínculo de sororidade46pelapartilhadasfrustrações,aidealizaçãodaliberdadedosentesqueridos,dosmedosedasangústiasdaprisão.

Oprocessodeatravessamentodosportõesdasprisõesimplicanaobservaçãodosmúltiplos“vasoscomunicantes”(GODOI,2015,p.132).Estesviabilizamocontatoentreo“dentroeforadaprisão”,revelandosuaprecariedade,mastambémapreservaçãodoeloentreaprisãoeoqueestáforadela.Éapartirdessacompreensãodacomunicaçãoedosdiscursosnoscamposdepoder,quepodemserpercebidasasarticulaçõesdascategoriasreciprocamenteconstitutivascomoclasse,raça,gêneroesexualidadecomossentidosepráticasdevigilânciadoEstado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

OsistemaprisionaléumdoscamposdearticulaçãodepoderdoEstado.Necessariamente,éaprisãoumainstituiçãopolíticaeprodutoradecontrole,regulação,subserviênciaeenquadramentosocial,especialmenteatravésdapropagaçãodemúltiplasviolênciasemseuinteriorouforadele.

Apartirdosistemapenitenciário,observa-seocaráterpunitivodaspráticasestatais,queproduzemnãoapenasoassujeitamentodaspessoasqueestãosobsuatutela,comotambémpromovemviolaçõesàintegridadefísicaesubjetivadaspessoasquetransitam,temporariamente,pelosambientesprisionais.Emsentidocontroverso,porém,asinstânciasestataisseapresentamdemaneiradúbia,poistambémsãooslocaisdereivindicaçãodedireitosedegarantiadestes.

46 Sororidadeéumconceitodateoriafeministaquetrataacercadaaliançaentremulheres,comoumaespéciedeirmandaderessaltadaparaofortalecimentocoletivonalutacontraomachismoesuasexpressões.

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Apartirdasubmissãoàrevistaíntima,porexemplo,équeoscorposqueatravessamosmurosprisionais,especialmentemulheres,familiaresdepresos,tambémsesubmetemaosmétodosdesegurançadaquelainstituição,estandoelasaoseudispor.Aviolênciaqueporelasépropagadanãosóasfazvítimasdeumabusoouestuproinstitucional–adependerdamaneiraqueocorra–,comotambémproduzemnelas,suaformadeagenciamento,resistênciaereproduçãodeconvençõesdegêneroesexualidade,ressaltandoasperformatividadeshegemônicasouprovocandotambémfraturasnestesistema.

Istopodeaconteceratravésda“maternagemdaaçãopolítica”,comojádestacado,aqualpossibilitaousodavisitaçãoparadenunciarviolaçõesquevenhamaocorrerdentrodaquelesistema.Deigualmaneira,tambémocorrecomoagenciamento,quandomães,esposas,companheirasefilhas,unemforçasepromovemumapoiomútuo,sejanaorganizaçãodosjumbos,dasvisitas,dafilaoudasdorescompartilhadas,resistindoaosofrimentoeencorajando-asentresisobreanecessidadedasvisitasedarealidadedocárcere.

Aprivaçãodaliberdadeeocompartilhamentodapenapelas“mulheresdospresos”(PADOVANI,2019;SILVESTRE,2013)caracterizam-secomoeixosqueinterligamoprocessodecriminalizaçãoàestigmatizaçãovivenciadapelasvisitantes.Esteestreitamento,porsuavez,denunciaumdesequilíbriosocial,namedidaemqueossujeitosquevivemessesconflitossociaiscompartilhamdasubmissãoàsrelaçõesdepoderdesiguais,apartirdaarticulaçãodecategoriascomoaraçaeaclasse.Poroutrolado,osprocessosdecriminalizaçãoeavivênciadaspráticasprisionaisevidenciamamaterializaçãodeperformatividadesdegêneroedesexualidadepormeiodasinstânciasestatais.

Éimpossívelnãopensaraspráticaserepresentaçõesestataiseasperformatividadesdegênerocomoprodutorase retroalimentadorasdasrelaçõessociais.Osistemapenal

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apresenta-secomoineficazparaaproteçãodasmulheres,hajavistaainvasãodasubjetividadeeoassédiosexualprovocadopelarevistaíntima.Dessemodo,asinstânciasestataisatuamapartirdaperformatividadedeumamasculinidadeagressiva,nalógicademonstradaanteriormenteporLowenkroneVianna(2017).

Emcontrapartida,asmulheresutilizamdomesmosistemaparacontestarsuaexistência,acriminalizaçãoqueévivenciadaporelasnoprocessoderevista,tratando-lhescomosuspeitas,assimcomoasviolênciassofridasporseusfamiliares.Nessesentido,tambémsãoacionadosmecanismosdefetichizaçãoatravésdavisualizaçãodopodererotizadoedasubmissãodosapenadosàsmulheres,nasvisitasíntimas,assimcomosãoacionadosdispositivosdereivindicaçãodaviolênciasofridapelas“mulheresdospresos”(PADOVANI,2019;SILVESTRE,2013)nossacrifíciosporelasengendradosfrenteàprisão.

Amulher,apartirdasuarelaçãocomosistemaprisionale,porconsequência,comasesferasestatais,torna-senãosóvítima,masagentededisputanestecampodepoder.Éapartirdaarticulaçãodossimbolismosdasviolências institucionaisplurifacetadasdasprisõesquese(re)produzemasdesigualdades,asviolênciasperpetradaspelasrelaçõesestruturaiscomasprisões,fazendo-seperceberasarticulaçõesdaquelescomocampodamoralsexualheterossexuale,consequentemente,generificada.

Talestudodebateuasconvençõesdesexualidadeedegênero,bemcomoseuentrelaçamentocomoexercíciodepráticasestataiseofuncionamentodosistemadecontroleprisional,utilizando-sedarevistaíntima(corporal)comopanodefundo.Ficaexplícito,porfim,omodocomo,deumlado,asperformanceseossentidosdegêneroe,dooutro,asdinâmicasdeEstadoeaspráticasdosistemadecontroleprisional,constituem-sereciprocamente,especialmenteemcontextosdeprivaçãodeliberdade.

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DIREITOS REPRODUTIVOS DAS MULHERES BRASILEIRAS: ENTRE A MATERNIDADE E A MORTE

Monique Ximenes Lopes de Medeiros47

1 INTRODUÇÃO

OsdireitossexuaisereprodutivossãoconsideradospartedoarcabouçodosDireitosHumanos.Apesardisso,aindahánalegislaçãobrasileiraalgumasrestriçõesaoplenoexercíciodessesdireitosporpartedasmulheres.Esteestudoobjetivaexporaslimitaçõesimpostasaessesdireitoseanalisaasprincipaisconsequênciasdasproibiçõesnormativas,apartirdaperspectivadasteoriasdegênero.

Éconhecimentocorrentequeasmulherespassaramacontrolardeformamaisseguraeefetivaaquantidadedefilhoscomadescobertadosmétodoscontraceptivos.Aopassoqueasmulheres,desdemuitotempo,utilizavamervaseprocedimentosrudimentaresparacontrolarsuareprodução,écertoquesomentenoséculoXXcomadescobertadapílulahormonalcontraceptivaeoaperfeiçoamentodeoutrosmétodosqueaumentouograudeeficáciasobreapossibilidadedenãoprocriar.Apartirdaíareproduçãodeixoudesertemaligadounicamenteànatureza/

47 ProfessoradoInstitutoFederaldaParaíba(IFPB),CampusCabedelo Centro.DoutorandapeloProgramadePós-GraduaçãoemCiênciasJurídicasdaUniversidadeFederaldaParaíba(PPGCJ-UFPB).MestraemCiênciasJurídicaspelaUniversidadeFederaldaParaíba.E-mail:[email protected].

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biologia.Eamulher,comociborgue48(HARAWAY,2009,p.36),passouateracessoanovastecnologias–pílulaanticoncepcional,dispositivointrauterino(DIU),cirurgiadeesterilização,camisinha,dentreoutros–queforamindispensáveisparaocontroledoseuprópriocorpo,emboranãosejamtotalmenteseguros.Amudançadasituaçãoreprodutivadasmulheresocorreunocampomédico,àmedidaqueasfronteirasdeseuscorpossetornampermeáveisàintervençãodasnovastecnologias(HARAWAY,2009,p.74).Nocampodosdireitosreprodutivos,Itaboraí(2017,p.261)apontaqueénecessárioanálisecuidadosaacercadascríticasàmedicalizaçãodocorpofeminino,tendoemvistaqueapráticanãofoiapenaspodersobreamulher,mastambémgeroupoderparaamulher,queatravésdocontrolesobreseuprópriocorpo,tevecondiçõesepossibilidadesdeescolhadeoutrosprojetospessoais.

EmtermosnormativososdireitossexuaisereprodutivosforamtratadospelaprimeiraveznaConferênciasobrepopulaçãoedesenvolvimentorealizadaemCaironoanode1994.Noanoseguinte,aIVConferênciaMundialsobreaMulher,emseus§§95e96,tratariadasaúdesexualereprodutivafemininaefixariaque“osdireitoshumanosdasmulheresincluemosseusdireitosatercontrolesobreasquestõesrelativasàsuasexualidade,[...]eadecidirlivrementearespeitodessasquestões,livresdecoerção,discriminaçãoeviolência”.

O tema tambémé abordadonaConvenção sobre aEliminaçãodeTodasasFormasdeDiscriminaçãocontraaMulher,de1979,ratificadapeloBrasilem1983;naConstituiçãoFederal,queemseuart.226,§7ºtratadoplanejamentofamiliarcomolivre

48 Otermo“ciborgue”aquiutilizadorefere-seàterminologiaadotadaporDonnaJ.Harawayquecompreendeoorganismohumanoatualcomoumhíbridodemáquinaeorganismo.Nocasodasmulheresereprodução,haveriarejeiçãodafiguradamulhercomo“mãe-natureza”oucomo“feminismodadeusa”.

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decisãodocasal;naLeidePlanejamentoFamiliar;enaLeiMariadaPenha,queemseuartigo7º,IIIclassificoucomoviolênciasexualqualquercondutaqueimpeçaamulherdeusarqualquermétodocontraceptivoouquelimiteouanuleoexercíciodeseusdireitossexuaisereprodutivos.

Aquiabordaremosdoispontosmaisemblemáticosdalegislaçãopátria:asrestriçõesimpostasàesterilizaçãovoluntária,prescritasnaLeinº9.263,de12dejaneirode1996,eaproibiçãodoaborto.Suapráticaétipificadapeloart.124doCódigoPenal,compenadeumatrêsanos,tendo,apenas,comoexceçõesasseguintessituações:quandonãoháoutromeiodesalvaravidadagestante,seagravidezresultadeestuproouemcasodosfetosanencéfalos49.

2 OS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DAS MULHERES NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO A PARTIR DA CRÍTICA FEMINISTA

ALeinº9.263,de12dejaneirode1996,aoregularoplanejamentofamiliar,somentepermiteaesterilizaçãovoluntáriaparapessoascommaisde25anosdeidadeou,pelomenos,comdoisfilhosvivos,sendo,ainda,necessárioobservaroprazomínimode60diasentreamanifestaçãodavontadeeoatocirúrgico.Areferidanorma,emseuart.10,§5º,tambémdispõeque“navigênciadasociedadeconjugal,aesterilizaçãodependedoconsentimentoexpressodeambososcônjuges”.A priorialeituradodispositivolegal

49 ValeressaltarqueesseterceirocasopassouaserpermitidoatravésdadecisãodoSupremoTribunalFederal,emitidanaADPFnº54,julgadaem12/04/2012.E,segundoaCorteSuprema,nãosetratadecasodeaborto,masdeinterrupçãodagravidez,tendoemvistaqueofetonãotemviabilidadedevidaextrauterina.

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podedarfalsaimpressãodeigualdade,poisexigeautorizaçãotantodohomemquantodamulherparaqueseusparceirossesubmetamaesterilizaçãocirúrgica.Contudo,amaiorexigênciarecaisobreocorpofeminino,nãosóporestaremumasociedadeheteronormativa,mastambémporqueéumdosmétodoscontraceptivosmaisutilizadosnoBrasilenomundo,sendoquenonossopaíssóperdeparaapílulahormonal(UNITEDNATIONS,2019,p.22;ITABORAÍ,2017,p.255).

Nessecontexto,aLeidePlanejamentoFamiliartrazrestriçãoespecíficaparaocasodaspessoascasadas,punindocommultaereclusãodedoisaoitoanos50aquelapessoaquepraticaremdesacordocomoestabelecidonoart.10damesmalei.

Poroutrolado,seapráticadoabortotambéméproibida,percebe-sequeosistemajurídicodisciplinaoexercíciodosdireitosreprodutivosdamulheranteseapósaconcepção,oquefechaocercosobrealiberdadedeescolhernãoprocriar.Aopassoquenãopodelivrementedecidirsobreaprevençãodagravidez,tambémnãotemautonomiaparainterromperagravideznãodesejada.RestariacompletaaregulamentaçãodocorpofemininopeloDireitobrasileiro,aomenosnoqueconcerneaosdireitosreprodutivos.

Aanálisecríticadalegislaçãobrasileirasobredireitossexuaisereprodutivospodeserfeitadediferentesformas,dependendodaperspectivafeministaqueforadotada.

Beauvoir(2019a,p.88-89)apontacomnitidezparaafunçãoreprodutoraqueamulherexercenasociedadeedemonstracomoessaatividadepodeserfacilmentemascaradacomoprocessodeexercíciodaliberdade.Quandoaleiequiparaosdireitosreprodutivosdehomensemulheres,comofezaLeidePlanejamentoFamiliar,elaestápartindodeumaigualdadeinexistentee,portanto,atingindodeformadiferentehomensemulheres,postoque,umavezque

50 Crimetipificadonoart.15daLeinº9.263/96.

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sóasmulherespodemengravidar,suasituação–eseugrauderisco–nãopodenuncaserequalizadaaopapeldoshomensnareprodução(CORRÊA;PETCHESKY,1996,p.165).

ÉimprescindívelentenderopapelqueoEstadoexerceaofecharasalternativasesimultaneamentesimularprocessodeescolha/liberdade.Comonãoépossívelobrigaramulheraparir:tudooquesepodefazeréencerrá-ladentrodesituaçãoemqueamaternidadeéaúnicasaída;aleiouoscostumesimpõem-lheocasamento,proíbemasmedidasanticoncepcionais,oabortoeodivórcio(BEAUVOIR,2019a,p.89).Écertoqueoordenamentojurídicobrasileiroavançouemmuitosaspectosrelativosaosdireitosdasmulheres,masaanálisedeBeauvoiraindaéatual,postoquepermanecemasrestriçõesdeescolhadométodocontraceptivoquemelhorlheconvêmeacriminalizaçãodoaborto.

De outra forma, Wendy Brown (apud VIANNA;LOWENKRON,2017)demonstraqueacrescenteaproximaçãoentreasmulhereseoEstadoacabaproduzindosujeitoscadavezmaisestatizados,regulados,disciplinados,trocandoadependênciaemrelaçãoahomensindividuaisporprocessosinstitucionalizadosdedominaçãomasculina.Essaanáliseadequa-seperfeitamenteàLeidePlanejamentoFamiliar,quandoanormaimpõeàmulhercasadaasubmissãoaoseumarido,quedevedecidir,emúltimaanálise,seelapodeounãoparardeterfilhos.

Tantaslutasforamtravadas,inclusivepelasfeministasbrasileiras,paralibertaramulherdojulgodoesposo,masaindahoje,aomenosnessecaso,seaceitouadominaçãomasculinaimpostaereguladapelopróprioEstado.

Asubordinaçãofemininaaoseuesposo,nessa lógicapatriarcal,nãopareceserviolência,postoqueessehomemécolocadocomocorajoso,responsável,virtuosoeacimadetudo,protetor.Amulher,portanto,deverialheexternargratidãoportodoo“cuidadoezelo”.Assim,aigualdadeentreosgênerosé

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substituídapelasuperioridadedohomemprotetorecolocaosprotegidos,paradigmaticamentecriançasemulheres,naposiçãodesubordinação,dependênciaeobediência(VIANNA;LOWENKRON,2017).Seasmulheressolteiras,divorciadasouviúvaspodemescolher,livremente,quandorealizaracirurgiadeesterilização,omesmonãopodeserditoparaasheterossexuaiscasadas.Quandoumhomementraemsuavidaatravésdainstituiçãofamiliar,aLeiestabelecequecabeaoesposooucompanheirodecidirsobreocorpodesuamulheresobresuareprodução51,comevidentelimitaçãodaautonomiaindividual.

Ainstituiçãodocasamentojáfoianalisadacomotráficodemulheres,nacriaçãoderedesderelaçõessociaisemsistemadeparentescoque,porfim,estabeleciaqueasmulheresnãopossuemplenosdireitossobresimesmas(RUBIN,2017,p.29).FoiteorizadaporPateman(1993,p.184)comocontratosexual,noqualomaridodetinhaverdadeirapropriedadedocorpodaesposa,oqueincluíaserviçosdomésticosgratuitos,direitosconjugaiseprocriação.E,maisrecentemente,Butler(2010,p.135-136),tecendocríticaaideiadecorpomaternodeKristeva,avançaaocompreenderatrocade mulheres52comopráticaqueimpõeaocorpodasmulheresaobrigaçãocompulsóriadereproduzir.

Nessestermos,entendemosqueasrestriçõeslegaisimpostaspelaLeidePlanejamentoFamiliarapontamparaumduplopapeldocasamentoheterossexual:ratificaadominaçãomasculinasobreoscorposdasmulhereseimpõeareprodução.

51 Historicamenteamulhercasadasofreuinúmerasrestriçõesdedireitospelalegislaçãobrasileira.FatoquesófoiatenuadopelaLeinº4.121/62,conhecidacomoEstatutodaMulherCasada.

52 TermousadoporLevi-Stausaosereferiraocasamentoeformaçãodelaçosdeparentesco.

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3 A MATERNIDADE A PARTIR DOS ESTUDOS DE FOUCAULT E BUTLER

OsestudosdeFoucaulteButlersãofundamentaisparacompreenderoatualestadocientíficodasteoriasdegênero.Acercadareproduçãoedamaternidade/paternidadeesuasregulaçõesestatais,nãopoderiaserdiferente.Antesdetudoéprecisoentenderque,comopós-estruturalistas,taisautorespartemdealgunsconceitosemcomum,aexemplodosignificadodocorpo.Maisprecisamente,Butlerpartedafilosofiafoucaultianaparatrilharsuasprópriasanálises.

ParaFoucaultocorposópodeserpensadoapartirdasrelaçõesdepoderqueoconstituem.Nosestudosfeministastradicionaispensava-seemsexooucorpocomoelementobiológicoenogênerocomoaconstruçãoculturaldevaloresdecadaumdossexos,nessesentidoBeauvoir(2019b,p.11)formulouacélebrefrase“Nãosenascemulher,torna-semulher”.JáFoucault(2015,p.169)questionaessaideiaaoapontarque:

Nãosedeveimaginarumainstânciaautônomadosexoqueproduza,secundariamente,osefeitosmúltiplosdasexualidadeaolongodetodaasuasuperfíciedecontatocomopoder.Osexoé,aocontrário,oelementomaisespeculativo,maisidealeigualmentemaisinterior,numdispositivodesexualidadequeopoderorganizaemsuascaptaçõesdoscorpos,desuamaterialidade,desuasforças,suasenergias,suassensaçõeseseusprazeres.

FoucaulteButlerpromoverammudançadeparadigmanosestudosdegêneroaoressignificaroconceitodecorpoe,consequentemente,desexoegênero.Butlerexplicaquesexoédesdesempregênero,assimcomonaturezaédesdesemprehistória,

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biologiaédesdesemprediscursoe,enfim,poder(EFREMFILHO,2017).Paraafilósofa,ogêneroéperformativoe,comoestratégiadesobrevivênciaemsistemascompulsórios,temconsequênciaspunitivas,tendoemvistaque,defato,habitualmentepunimososquenãodesempenhamcorretamenteoseugênero(BUTLER,2010,p.199).

Écertoqueessaspenalidadessãovistasmaisnitidamentenaquelesqueexercemseugêneronasformas“desviantes”,comoocorrecomlésbicas,homossexuais,bissexuais,transexuais,travestiseintersexuais.Contudo,assançõestambémsãoimpostasparaaquelasmulheresquesedesviamdasfunçõesimpostascomo“femininas”.

Nessestermos,asociedadecontemporâneaaindaassociaamulheràmãe.Frequentementeocorpodamulheréelaboradoemtermosdefragilidade,dedicação,cuidadoe,necessariamente,damaternidade.Todasaquelasquenãodesejamsermãesouqueabortam,sãoencaradascomofraudeàprópria“essênciafeminina”,portanto,merecempunição,tantojurídicaquantosocial.

Portanto,amaternidadeseriapartedaperformatividadeimpostaàsmulheres.Ocorpodamulhersóteriasignificadoquandofuncionasseparaaprocriação.EmcríticaàteoriadeJuliaKristeva,queabordaocorpomaternocomoelementoanterioràprópriacultura,comoalgopré-discursivo,Butler(2010,p.138),ressaltaqueparaFoucaultessaseriaumatáticadeautoampliaçãoeocultaçãodasrelaçõesdepoderespecíficasnasquaisotropodocorpomaternoéproduzido.

Emoutrostermos,aideiadocorpodamulhernecessariamentecomocorpomaternoseriaproduzidapelasrelaçõesdepoder,seriaefeitoouconsequênciadeumsistemadesexualidadeemqueexigedo“corpofeminino”queeleassumaamaternidadecomoessênciadoseueueleideseudesejo;seriaainstituiçãodamaternidadecomosendocompulsóriaparaasmulheres(BUTLER,2010,p.138).Foucault(2015,p.166)apontaquenoprocessodehisterização

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damulherosexofoidefinidocomoalgoque“constitui,porsisó,ocorpodamulher,ordenando-ointeiramenteparaasfunçõesdereproduçãoeperturbando-ocontinuamentepelosefeitosdessasmesmasfunções”.Asrelaçõesdepodertransformamoexercíciodafunçãoreprodutoracomoalgointrínsecoaocorpobiológicodamulhereestecorposóteriasentidoatravésdamaternidade.

Alei,comoreflexodetodasasrelaçõesdepoderqueconstroemosignificadodocorpoedosexo,regulaasociedadefixandooqueéilícitoouanormal,e,porviaindireta,defineoqueélícito,normal,permitidoecorreto.Especificamente,quandoaLeidePlanejamentoFamiliarproíbeaesterilizaçãodequemnãotemaomenosdoisfilhosou25anoseexigeoconsentimentoconjugal,casoapessoasejacasada,elatambémproduzoqueélícito,qualseja:teraomenosdoisfilhos,bemcomosubmeteroseucorpoàvontadedocônjuge,parao“bemgeraldafamíliaedasociedade”.Emoutrostermos,ocorretoedesejávelseriaaprocriaçãodentrodessaestruturafamiliareheteronormativa,comoiráesclarecerJudithButler.

Paraalémdeumamerainterpretaçãofoucaultianasobreamaternidade,emdiversostrechosdoparadigmáticoProblemas de Gênero,Butler(2010,p.164)chegaàconclusãodequeasrelaçõesdepoderqueconstituemosexo/gênerotêmcomofinalidadeaheterossexualidadeobrigatóriaereprodutora.Comoperformance,osatosegestos,osdesejosarticuladosepostosematocriamailusãodeumnúcleointernoeorganizadordogênero,ilusãomantidadiscursivamentecomopropósitoderegularasexualidadenostermosdaestruturaobrigatóriadaheterossexualidadereprodutora(BUTLER,2010,p.195).

Destarte,aLeinº9.263/96,diferentementedoquefoiditonaseção1desseartigo,nãoregulaapenasamaternidadeeocorpodamulher,masimpõeaheterossexualidadereprodutora,atingindo

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homens e mulheres53.Pensandodeformainversa,aLeiperdequalquersentidoreguladornafamíliahomoafetiva,porexemplo,jáquecasoseusintegrantesdesejassemdescendentesteriamquebuscaroauxíliodareproduçãoassistidaouoptarpelaadoção.Essanormasóatingeseucaráterreguladornaeparaafamíliadematrizheterossexual,cujareproduçãoévistacomofinalidadeintrínseca.

Omesmoraciocínioseaplicaparaaautonomia/liberdade,conceitofundamentalparaateorialiberalebasilarparatodaadoutrinajurídicadeseparaçãoentreosespaçospúblicoeprivado.Pensaremmulherépensaremsubmissão,naquelaquesesubmete,queémaleávelequesempreestádispostaaseadequaraooutro.Aautonomia,durantemuitotempo,foiabertamentenegadaàsmulheres,tantopelateorialiberalcomopeloDireitodediversospaíses,queinevitavelmentefuncionavamcomoreflexodesta.

Nessestermos,ocontratodecasamentosemprefoiencaradocomoparadoxo.Sendoasmulheresconsideradasincapazespelaleidediversospaíseselastinhamquesercapazesdeaceitarocontratodecasamentoedesesubmeteraohomempelomatrimônio.Ocontratodeesposaseriaocontratodahegemoniaparaacoerção(MCCLINTOCK,2003,p.81).SehojenãoémaispermitidopeloDireitoOcidentalestabelecerdiferençasentrehomensemulheresnoseiodasrelaçõesfamiliares,aindaaceitamosquesemantenhamdiferençaslegaisentrepessoascasadasenãocasadas,sejaatravésdosdeveresconjugais,fixadosnoCódigoCivilbrasileiro,sejaatravésdanecessidadedeautorizaçãodocônjugeparaexerceralgunsdireitos,comonocasodosdireitosreprodutivosnaLeidePlanejamentoFamiliar.

53 Evidentemente,aquinãosequerdizerqueanormajurídicaatingedeformaigualhomensemulheres,tendoemvistaasdiferentesconsequênciasqueamaternidadegeranocorpodamulherenasuavidapessoal,oquefazotrabalhoreprodutivoirmuitoalémdameraprocriação.

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4 O ABORTO E A NECROPOLÍTICA BRASILEIRA: QUAIS AS MULHERES QUE NÃO SÃO PASSÍVEIS DE LUTO?

SobreasrestriçõesaosdireitosreprodutivosimpostaspeloDireitobrasileiroéimportantesedistanciardatendênciafeministadeverasmulherescomovítimasnãoambíguas,tendênciaessaqueigualaatuaçãoecontexto,corpoesituação,anulandoassimapossiblidadederecusaestratégica(MCCLINTOCK,2003,p.20).Écertoqueasmulherestentam,dediversasformas,controlarsuareprodução,oquefezcomqueonúmerodefilhosreduzissedrasticamentenomundotodo,inclusivenoBrasil,comintensificaçãonoúltimoquarteldoséculoXX(ITABORAÍ,2017,p.241).

Talcontroleseexerceporváriosmétodoscontraceptivoslegalmentepermitidose,também,àmargemdalei,sejaatravésdarealizaçãodacirurgiadeesterilizaçãosemoconsentimentodomarido54ouatravésdoabortoilícito55.Aquestãoasertratadaaquisãoasconsequênciasquemuitasmulheresenfrentampelaatuaçãodeviasalternativasàlei,especificamentenocasodoabortoclandestino.

ConformeamplapesquisafeitaporItaboraí(2017,p.240)hágrandesdiferençasdeacessosaosdireitosreprodutivosadependerdaclassesocialaqualamulherpertence.AquelasquedependemdoSistemaÚnicodeSaúdetêmsuasdemandasinsatisfeitasparaaesterilizaçãoeofertainadequadadokitbásicoedocomplementar56

54 Emregra,paraaquelasmulheresdeclassemédiaoualtae,portanto,quepodempagarpelacirurgiafeitaàreveliadasregraslegais.

55 Infelizmentenessassituaçõesdeilicitudeasmulheressofremconsequênciasgraves,comoseexporáadiante.

56 OKitBásicoécompostopelapílulacombinada,pílulasódeprogesterona(minipílula)epreservativomasculino,jáokitcomplementarécompostopelodispositivointra-uterinoepeloinjetáveltrimestral(OSISetal.,2006,p.2482)

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deoutroscontraceptivosmodernos(OSISetal, 2006,p.2485-2486).Associadoaissorestoudemonstradoqueasmulherespobresqueriamregularsuaprópriafecundidadeebuscavammeiosparatal(ITABORAÍ,2017,p.244),aocontráriodoestabelecidopelosenso comum.

Então,aprimeirabarreiraqueasmulheresdebaixarendaenfrentamaotentargozardesualiberdadereprodutivaéafinanceira,quemuitasvezesimpossibilitaacompradocontraceptivoquenecessitame,poroutrolado,abaixaofertaeatendimentoinsuficientedoSistemaÚnicodeSaúdereforçaadificuldaderealqueelasenfrentampararealizaracontracepção(mesmoconsiderandoosmeiosdisponíveis,quenãocumpremcomresultadodetotaleficácia).

Sobreastecnologiasderegulaçãodavida57,MichelFoucault(2015,p.146)identificounabiopolíticaaformacomoosoberano,apartirdoséculoXIX,aexerce,atravésdodireitoqueéformuladocomo“devidaemorte”,ouseja,é,defato,odireitodecausaramorteoudedeixarviver.Porém,essedireitoteriasidosubstituídopelopoderdecausaravidaoudevolveràmorte,quecaracterizaopodercujafunçãonãoémaismatar,masinvestirsobreavida,atravésdaadministraçãodoscorposepelagestãocalculistadavida.Nessesentidoinstaura-seaeradobiopoder(FOUCAULT,2015, p.149-151).SegundoMbembe(2018,p.19),FoucaultdeixouclaroqueodireitosoberanodematareosmecanismosdebiopoderestãoinscritosnaformaemquefuncionamtodososEstadosmodernos.

ALeidePlanejamentoFamiliarenquadra-secomperfeiçãoàanálisefoucaultianadeorganizaçãodepodersobreavida.Aoregularedocilizaroscorpos,comotécnicadisciplinar,anormafixaosrequisitosnecessáriosànãoreproduçãoe,consequentemente,atravésdarelaçãodecorpo-espécie,aplicacertocontrolede

57 Sendoasexualidadeeareproduçãohumanaumadasdiversasformasdebiopoder.

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natalidadeaofixarmínimodedoisfilhosporfamíliaeaoelevaraidadeparacirurgiadeesterilizaçãoacimadacapacidadecívelde18anos.Foucault(2015,p.157-158)explicaaimportânciaassumidapelosexocomofocodedisputapolítica,

[...]eleseencontranaarticulaçãoentreosdoiseixosaolongodosquaissedesenvolveutodaatecnologiapolíticadavida.Deumlado,fazpartedasdisciplinas do corpo:adestramento,intensificaçãoedistribuiçãodasforçaseeconomiadeenergias.Dooutro,osexopertenceàregulação das populações,portodososefeitosglobaisqueinduz.[...]vemo-la[asexualidade]tornar-setemadeoperaçõespolíticas,deintervençõeseconômicas(pormeiodeincitaçõesoufreiosàprocriação),decampanhasideológicasdemoralizaçãoouderesponsabilização(grifosnossos).

Aanáliseexpostanasseções1e2desseartigodemonstraqueasrestriçõesà liberdadereprodutivavisamestimularamaternidade,ouatémesmo,impor,namedidaemqueaindahárestriçõeslegaisàplenafruiçãodosseuscorposedosseusdireitossexuaisereprodutivos.Sãooscorposdasmulheresquesãoreguladosquandooabortoécriminalizadoequandoocorpofemininodocilizadoserveàmaternidadecompulsória.Alémdisso,aleiatuaemconjuntocomoutrosaparelhos(médicosejudiciário)pararegularataxadenatalidadefixandoopatamardereposiçãopopulacional,centrando-senocorpo-espécie,eporoutrolado,emoutraformadeexercíciodabiopolítica,nadisciplinadocorpohumano,especificamenteatravésdaregulaçãoemedicalizaçãodocorpofeminino.

Todosessesaparatosservemparaconstituirosexocomodesejável(FOUCAULT,2015,p.170),masnãoqualquertipodesexo.Osexodesejáveléaquelequeécorreto,limpo,queatende

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aospadrõesheteronormativosequevisaàreprodução(BUTLER,2010,p.164).

APesquisaNacionaldeSaúde(PNS),realizadaem2013,demonstraque61,1%dasbrasileirasentre18e49anosfizeramusodacontracepçãoequeasbrancaseasmulherescommaiorníveldeinstruçãoaindaapresentamospercentuaismaiselevadosdeutilizaçãodemétodoscontraceptivos(IBGE,2015,p.36).Essapesquisaapontapercentualemtornode10%dediferençaacercadousodecontraceptivosdasmulheresbrancassecomparadacomaspretasepardas,contudoadisparidadecresceparamaisde20%quandoanalisamosasmulheresseminstruçãoeníveldeescolaridadefundamentalincompletocomaquelasquepossuemensinosuperiorcompleto.

Poroutrolado,aPesquisaNacionaldeAborto,realizadaem2016(DINIZ,MEDEIROS,MADEIRO,2017,p.655),demonstraque,apesardoabortosercomumatodosostiposdemulhereserepresentaremtornode3,9milhõesdecasosentreasmulheresalfabetizadasde18a34anos,em2014,écertoqueeleaindatemdiferenciaçõesquandoseanalisaraça,classeeescolaridade.Essamesmapesquisaapontaqueasmulherespretas,pardaseindígenasrepresentam,respectivamente,15%,14%e24%dototal,frentea9%demulheresbrancas;sendooabortomaispresenteentreasmulherescombaixarendafamiliar(1saláriomínimo–16%)doqueentreasderendamaisalta(5saláriosmínimos–8%);emaisfrequenteentreaquelasdebaixaescolaridade(atéa4ªsérie)eentreaquelasquevivemnasregiõesNorte,Centro-OesteeNordeste,doqueasresidentesnasregiõesSuleSudeste(DINIZ,MEDEIROS,MADEIRO,2017,p.658).Osdoisestudossupracitadosapontamíndicessemelhantessobrecontracepçãoeaborto.

Dadosdemonstramque,apesardodeclíniodastaxasdeabortoinseguro,metadedasmulheresquepraticaramabortonecessitaramdeinternaçãoparafinalizaroprocedimento(DINIZ,

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MEDEIROS,MADEIRO,2017,p.659),oqueevidenciaosaltosriscosinerentesasuasituaçãodeclandestinidade.Outrossim,comoapesquisanãofoicapazdeidentificaraquantidadedemulheresquemorreramemdecorrênciadoabortoinseguroetaisdadossãobeminconstantesnoBrasil58,essesnúmerosnãosãocapazesdemensuraraquantidadedemulheresquemorrememdecorrênciadapráticadoabortoilegal.

Entretanto,parececertoqueoabortopenaliza,comsequelasoucomamorte,especialmenteasmulheresdasclassesbaixasqueutilizamosmétodosmaisinseguros.Issoporqueosriscosàsaúdeeàvidasãoproporcionaisaqualidadedoatendimentoeaosmétodosutilizados(ITABORAÍ,2017,p.262-263).

Percebemosqueasmulheresquemaissofremcomasconsequênciasdoabortoinsegurosãoidentificadasporcor,classe,escolaridadeeregião.Asmulheresquetêmboascondiçõesfinanceiras,emregra,possuemmelhoraparatodesaúdenarealizaçãodoabortoclandestino,elassãoasvidasqueosoberano“deixaviver”59.Jáaquelasquemorremouquesofremcomplicaçõesnoprocedimentosão,emsuamaioria,pretas/pardas/indígenas,pobres,debaixaescolaridadeeprovenientesdoNorte/NordesteeCentro-Oeste.OEstadobrasileironessescasos,exerceobiopoderenãoestáapenasregulandoavida,mastambémonecropoder,causandoamorte,mesmoqueindiretamente,deváriasmulheres.

Apartirdessaconclusãoparcialtecemosumaoutra:aspolíticasdebiopoderanalisadasporFoucault(2015,p.158),hojepodemserassociadasaoconceitodenecropolítica,desenvolvidoporMbembe(2018,p.10),numamescladenominadaporBento

58 Sejaemdecorrênciadaprópriailicitudedoatooupelofatodequeafamílianãopermitequeomotivorealdofalecimentoconstenacertidãodeóbito.

59 AexpressãoentreaspasédeMichelFoucault,emseulivroHistóriadasexualidade:avontadedesaber.

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(2018)denecrobiopoder.Seriaumrearranjosofisticadonãosódedareregularavida,masdefazermorrer,comtécnicasplanejadasesistemáticas,mesmoquesutis(BENTO,2018).

Alguns podem questionar o emprego da teoria denecropolítica(MBEMBE,2018)oudenecrobiopoder(BENTO,2018)paraexplicarasmortesdasmulheresquemorrememdecorrênciadoabortoclandestino,postoquenãoéseriaoEstadoquematadiretamente.Contudo,oEstadopromovepolíticasdemortequandonãodeixaoutraalternativaaessasmulheresouquandoosprofissionaisdesaúdenãoasatendemcomadiligêncianecessáriaaodesconfiaremqueoabortofoiprovocado.

Essaformadeexercíciodobiopodernãoafetaigualmentetodasasmulheresbrasileiras,algumasvidassãomatáveis,outrasnão.Emoutrostermos,Mbembe(2018,p.41)argumentaqueasoberaniaéacapacidadededefinirquemédescartávelequemnão é.

Vimosqueaspolíticaslegaisproibitivasaoregularemosdireitosreprodutivosnãoafetamatodasaspessoas,masmulheresespecíficas,ecausamamortedevidasnãopassíveisdeluto,asvidasprecárias,marcadasnãosóporgêneroesexualidade,mastambémporraça,etnia,classe,regionalidadeeescolaridade.

Aprecariedadeimplicaumavidaquepodeserlesada,podeserceifada,mastambémimplicaviveremcondiçõesespecíficas,sãomodossocialmentefacilitadosdemorrercomooutrosmodossocialmentecondicionadosdesobreviverecrescer(BUTLER,2018,p.32).Peloperfildasmulheresquemaissofremasconsequênciasdoabortoinseguro,evidenciamosaprecariedadedamorte,mastambémdassuasformasdevidaoudesobrevivência.Semdireitossociaisefetivados(trabalho,moradia,lazeretc.),semacessoasaúdepúblicaintegraledistantedetantosoutrosdireitosformalmentegarantidosporleis,adignidadedapessoahumananãoalcançaessas

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mulheres,aprecariedadeestápresentenassuasvidasetambémnassuasmortes.

Aotratardasvidasprecáriasedaspossibilidadesdeserounãopassíveldeluto,Butler(2018,p.29)explicaqueasvidasperdidassãorepresentadaspornúmeros,sãohistóriasqueserepetemtodososdiasequestiona:“Comoacomoçãoéproduzidaporessaestruturadoenquadramento?”.

Paraasbrasileirasqueabortamemorremouficamcomsequelasfísicasnãohácomoção,nãohá,nemsequer,números.Elasnãosãopassíveisdeluto,sãomulheresquenãoatenderamaimposiçãodopapelmaternale,portanto,nãosãoenquadradasnemreconhecidassocialmente.

Mesmosehouvessenúmerosdesuasmortes,elasnãoseriamemolduradascomomulheresquepagamcomaprópriavidaanegaçãodosseusdireitosreprodutivos,mas,enquadradascomocriminosas,quenegaramodireitoàvidade“seusfilhos”e,portanto,nãosãodignasdeluto.

Aquinosrestaquestionar:qualavidaquerealmenteimportaparaoEstadobrasileiro?Quaisasmulheresquenãoimportame,portanto,quepodemmorrer?Porqueavidadofetoétãoprotegidaeapósonascimentosuavidaéentregueaprecariedade?ComoapontaButler(2018,p.41),énecessáriorepensar“odireitoàvida”ondenãohánenhumaproteçãodefinitivacontraadestruiçãoeondeoslaçossociaisnecessáriosnosimpelemagarantircondiçõesdevidasvivíveis,eafazê-loembasesigualitárias.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Asleisbrasileirasfechamcírculorestritivoàsmulheres.Semautonomianecessáriaparausufruirdosseusdireitossexuaisereprodutivosefazerasescolhasdevidas,restam,paraelas,poucas

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opções.Comovimos,evidentemente,asmulheresdeclassemédiaealtatêmmaiorespossibilidadesdeatuarilicitamente,masaquelasqueseencontramàmargemdalei60,emregraasnegras/pardas/indígenas,pobresedebaixaescolaridade,sórestaamaternidadeimposta,amorteouarepressãopenal.EssasegregaçãoexpõemescladebiopoderenecropolíticanousodasoberaniapeloEstadobrasileiro.

Aquichegamosaalgumasconclusões:a)alegislaçãobrasileiraaindaatuarestringindoosdireitosreprodutivosdasmulherescasadas;b)anormajurídica,objetivandomanteraprocriaçãoeamatrizheterossexual,impõeamaternidadeepaternidadecompulsórianoâmbitodocasamento;c)oarcabouçojurídicobrasileiroelege,dentreasmulheres,aquelasdevidasprecáriasquepodemmorreremdecorrênciadoabortomalrealizadoesemassistênciamédica;d)essasmulheresdefinidasporraça,classe,regionalidadeeescolaridadesãoprecáriasemvidaeemmorte,sãoasvidasnãopassíveisdeluto.

Ainternalizaçãodamaternidadecompulsóriaporpartedasmulheresacarretadiversasconsequênciasnassuasvidas.Élongooprocessodeincorporaçãodalei61quefindaquandoelaexpressaosignificadodesuasalmas,suaconsciência,aleideseudesejo.Nessesentido,aalmaéaprisãodocorpo(BUTLER,2010,p.193),etodasasmulheres,emmaioroumenorgrau,sãoaprisionadasquandoamaternidadeéimpostaequandoatémesmoanormajurídicalegitimaessalógicaeinterferenaplenafruiçãodeseuscorpos.Aslutaspelolivreusodeseuscorpos,pelaautonomiadas

60 Tendoemvistaquediversosdireitoshumanossólhessãoconcedidosformalmente,masefetivamenteestãoàmargemdoDireitopornãousufruíremdoarcabouçolegal.

61 Nãosóaleinosentidodenormajurídica,mastambémasnormasculturais.

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mulheresepelamaternidade,apenasquandoessaforrealmenteescolhida,continuamsendobandeirasfeministasatuais.

REFERÊNCIAS

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“MENINOS DO BLACK BLOC”: ENTRE A REPRODUÇÃO DE PAPÉIS DE GÊNERO E SUA ABOLIÇÃO NA PRÁTICA ANARQUISTA DE PROTESTO RADICAL

Florian Grote62

1 INTRODUÇÃO

Aondadeprotestosemváriascidadesbrasileirasqueocorreuem2013,incialmenteemproldeumalutacontraoaumentodastarifasdotransportepúblico,queémuitoanterioraomêsdejunho,nãosedestacouapenaspeloseutamanhoesucesso:foramasmaioresmanifestaçõesnopaísdesdeo“ForaCollor”em1992ereverteramoaumentodastarifasemmuitascidades,masoelementoquemaisdistinguiuaschamadas“JornadasdeJunho”,talvez,foiapresençamaciçadeBlack Blocs.EmconjuntocomosprincípiosorganizacionaisanárquicosdoMovimentoPasseLivre(MPL),comoaautogestão,aausênciadelíderesouarejeiçãodasinstituiçõespolíticastradicionais,comosindicatosoupartidos,foiousodessatáticaanarquistaquelevou,nessecontexto,auma

62 DoutorandopeloProgramadePós-GraduaçãoemSociologiadaUniversidadeFederaldaParaíba(PPGS-UFPB).MestrepeloProgramadePós-GraduaçãoemCiênciaPolíticaeRelaçõesInternacionaisdaUniversidadeFederaldaParaíba(PPGCPRI-UFPB).GraduadoemCiênciaPolíticaeHistória(inconclusa)pelaUniversidadedeVechta(Alemanha).BacharelemCiênciasSociaispelaUniversidadeFederaldaParaíba(UFPB).IntegrantedoGrupodeEstudosePesquisasAnarquistas(GEPAn-UFPB).Pesquisanaáreadepráticasanarquistaseviolênciapolítica.E-mail:[email protected].

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retomadaexpressivadodebateacercadafilosofiapolíticaanarquistaedousodaviolênciapolítica.

ApesardenãosetratardaprimeirapresençadosBlack BlocsemmanifestaçõesnoBrasil63,foramasJornadasdeJunhoquedespertaramointeressemidiáticopelaprática,caracterizadaprincipalmenteemreferênciaaosseusatosdeviolênciasimbólica:erguerbarricadas,quebrarvitrineseincendiarcarrosoubancosforamelementosquechocaramosrepresentantesdamídia,acostumadosanoticiaremdiariamenteinúmerasvítimasfataisdaviolênciapolíticaepolicialdoBrasil.Manchetesdosprincipaisjornaisdaépoca,como“entendaosprincipaistemasabordadosnasmanifestações”(ENTENDA...,2013),“Contraoquevocêprotesta?”(CONTRA...,2013)ou“Esquerdaoudireita?”(ESQUERDA...,2013)testemunhamaincompreensãoquaseabsolutadamídiaacercadessapráticaparticularedoanarquismoemgeral.Aoladododebateenglobantedaviolênciapolítica,sobrapoucoespaçoparaaanálisedeoutrosaspectoscentraisdosBlack Blocsequestõesimportantes,comoasuarelaçãocomospapéistradicionaisdegênero,continuampoucoanalisadas.Essesaspectosdesaparecemsob o véu de uma assumida masculinidade generalizada dos seus participantes,ouseja,dos“meninosdoBlackBloc”(PARDELLAS,2014).Opresenteartigovisaabordaralgumasdessasquestões.

Paraisso,conceituaprimeiramenteoBlack Bloc,paraanalisar,emseguida,ondeseposicionaemumespectrohipotéticoentregender reproduction[reproduçãodospapéisdegênero]egender abolition[aboliçãodospapéisdegênero].

63 Porexemplo,ojornalOGlobo,(SEATTLE...,2013)jánoticiavaemsetembrode2000adepredaçãodasededaBovespaporparticipantesmascaradosdoBlackBloc.

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2 PROVENIÊNCIAS TEÓRICAS E HISTÓRICAS DOS BLACK BLOCS

O Black Blocéumatáticaanarquistadeprotesto,queemergenofinaldosanos1970deumatradiçãoanti-autoritáriaocidentalamplanomovimentoDie Autonomen[OsAutônomos]naAlemanha.ComoafirmaDavidVanDeusen(2010,p.10):

Lá,aseriedadedomovimentoanti-nuclear,bemcomoasexigênciasdocontínuomovimentoanarquista/antifascista,exigiramqueosprotestosemmassafossemlevadosaumnívelmaiselevadodemilitânciaeunanimidade.Assim,coletivosradicais–muitasvezesdedentrodacenaanarco-punketipicamentecompostospormembrosdaclassetrabalhadora–começaramaincitarseusmembrosemilitantessociaisasereuniremnasmanifestaçõesvestindoroupaspretasuniformes(commáscaras),eamarcharememumúnicocontingente(entremuitosoutros).Comsuasidentidadesefetivamenteescondidasnauniformidadetemporária,conseguiramempurrarasaçõesdoprotestoemdireçõesmaismilitantes,enquantoseprotegiamdeseremidentificadosparasofreremaopressãodiretadoEstado,cobrançaslegaisposterioresoudeambas.64

EmborapossamostraçarasraízeshistóricasdosBlack Blocs “paraquandoeondequerquepessoas,quecompreendiamumaclasseoprimida,selevantaramcontraseusopressores”(ibidem, p.10),assuasproveniências65históricasmaisdiretasestãonas

64 Todasascitaçõesdeobrasemlínguaestrangeiraforamtraduzidasdiretamentepeloautor.

65 Foucault(1979)destacaasdiferençasimportantesnalínguaalemãentreousodapalavra“origem”comoUrsprungeHerkunft.Retomandoanoçãode

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práticasanarquistasdaPropaganda pelo Fato(JENSEN,2014;LINSE,1982)enaAção Direta (BERNECKER,1982;GIOVANNITTI,2009),quedesempenham,háséculos,umpapelfundamentalderesistênciacontraarepressãoeaviolênciaestatal.

FrancisDupuis-Déri(2010,p.49)argumenta,queessasbasesfortesseviamfortificadas,ainda,peloschamados“NovosMovimentosSociais”,comoofeminismoouomovimentoanti-globalização,quesecaracterizampelanegaçãodepolíticasrepresentativasepelaorganizaçãohorizontal,igualitáriaebaseadanoconsenso.SereferindoaoBlack Bloc,RichardDay(2005,p.18)afirma,noentanto,quejáhaviachegado“ahoradeesqueceros‘novos’movimentossociaisdosanos1960-1980”emprolde“algoaindamaisnovo,queofereceasmelhoreschancesquetemosdenosdefendercontra,eultimamentetornarredundante,associedadesneoliberaisdecontrole”:os“NovíssimosMovimentosSociais”,comooschama,nãosemironia,jáquenãoosconsideramovimentos.

Diferentedosmovimentossociaistradicionais,oativismoanarquista,aexemplodoBlack Bloc,superaadicotomiareforma/revolução,rejeitandoopoderestataltantocomomeio,quantofim,lutando,antes,paraalcançarum“repensareumareorganizaçãodasociedadeaolongodelinhasquedesafiamaprópriabasefundamentaldacivilizaçãoocidentalcontemporânea”(DEUSEN,2010,p.15).Umaformadealcançaresse repensarestánasubstituiçãodalógicadacontra-hegemoniaporumalógicada

Nietzsche,nota-seque,enquantoUrsprungseriatraduzidoliteralmentecomo“saltooriginal”,indicandoafonte,ahoraeolocalexatodosurgimentodealgo,Herkunftdenominaa“vindaparacá”,ouseja,indicatambémasuadireçãoeoseupercurso.Enquantoambasaspalavrassãotraduzidascomo“origem”,éexpressamentecontraousodeorigemcomoUrsprungqueFoucault(1979,p.16)protesta,quandoafirmaque“agenealogia[...]seopõeàpesquisada‘origem’”.Paraindicaresseusoespecíficodotermo,optou-seporutilizarotermoproveniênciaemvezdeorigemnestetrabalho.

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não-hegemonia.Apesardaprimeirasercapaz,pontualmente,de“deslocaroequilíbriohistóricodevolta,tantoquantopossível,afavordosoprimidos”,RichardDay(2005,p.7)criticaasuainabilidadedesedesprenderdapróprialógica–epercebidanecessidade–deumahegemonia.Práticasnão-hegemônicas,porsuavez,renunciamàautoridadeestatalebuscammudançassócio-políticasradicaisforadela,substituindoa“hegemoniadahegemonia”dosmovimentossociaistradicionaisporuma“afinidadepelaafinidade”.

Apenascomessamudançanomodus operandipode-seesperarumaquebradocicloviciosode“revolução,reação,traição,fundaçãodeumEstadomaisforteeaindamaisopressivo”,queHakimBey(1985,p.94)tãoaptamentedescreveucomo“mudançasdeestaçãonoinferno[seasons in hell]”e“botinadaspermanentesnacaradahumanidade”.DavidGraeberargumentaqueatrocadalógicadahegemoniaporumalógicadaafinidadeestariaem:

Perfeitoacordocomainspiraçãoanarquistageraldomovimento,queémenossobreatomadadopoderestataldoquesobreexpor,deslegitimaredesmantelarmecanismosdegovernoenquantoganhacadavezmaioresespaçosdeautonomia(GRAEBER,2002,p.68).

BarbaraEpstein(2001)confirmaqueessesprincípiosanarquistasfortalecemaspráticasdeativismoradicaiscomooBlack Bloc,e“tornampossívelquegruposquediscordamemalgunsaspectoscolaboramemrelaçãoaobjetivoscomuns”(EPSTEIN,2001,paginaçãoirregular).Dessaforma,“amaneiracomoselutaétãodecisivaquantopelo queseluta”(AUGUSTO;ROSA;RESENDE,2015,p.7,grifosmeus).

Assim,umadascaracterísticasprincipaisquedestacaosBlack Blocséasuaorganizaçãoespontâneaemgrupos de afinidade duranteosprotestos:grupospequenosdeamilitantes,ligadospor

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umaconfiançamútuaeumconsensoacercadoslimitesdasaçõesquepretendemrealizarduranteosprotestos,queformamuma“multidãoheterogênea”DUPUIS-DÉRI,2010,p.51),quecompõeoprópriobloc.

Otermo“amilitante”éusadoaquiparasignificartantoaimportânciadaamizade(amiéotermofrancêsparaamigo)quantoanegação(indicadopeloprefixoa-)dafiguratradicionaldomilitantecujasaçõeseidentidadeeramlargamentedeterminadosporpatriotismoorganizacional(DUPUIS-DÉRI,2010, p.60,grifonooriginal).

Háentreessesdiversosgruposdeafinidadeumadivisãovoluntáriadetarefas,quepodemvariardrasticamenteemgrausdeviolênciaelegalidade.Enquantoalgunsgruposassumemposiçõesmaisofensivas,armando-secomtacos,estilingues,pedrasouCocktails Molotov,outrosassumemaproteçãodoprotestocomescudos,correnteshumanasefaixasenormes,quesãocarregadasaolongodosladosenafrentedoBlack Bloc.Outrosafazeresincluem,porexemplo,afacilitaçãodacomunicaçãodeváriasformas,aexploraçãopréviadasrotasdeprotestoparaidentificarosmelhorespontosparaaçõesespecíficasouaformaçãodegruposde streetmedics[médicosderua],paraadministrarosprimeirossocorrosàsvítimasdarepressãopolicial.

Apesardeseentendercomo“umatendênciaanti-autoritária,querepudiatodas as formas de autoridade, hierarquia ou poder”(ibidem,p.49,grifosmeus),que,consequentemente,abrangeorepúdioàshierarquiasdegênero,énotávelcomoessadivisãovoluntáriaocorre,tendencialmente,deacordocompapéistradicionaisdegêneropreestabelecidos.Porexemplo,osgruposdeafinidadequeseencarregamdosprimeirossocorros,umpapeldocuidado tradicionalmenteimpostoàsmulheres,costumeiramenteapresenta

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númerosmaioresdeindivíduosidentificadoscomo“femininos”doqueamédiadobloc,enquantoospapéismaisofensivostendemamostrarumaprevalência“masculina”.

Nasessãoaseguir,pretende-sebuscar,naliteraturafeministacontemporânea,pistasquepossamcontribuirparaexplicaressadistribuiçãoclássicadospapéisdegêneronointeriordeumapráticaanarquistaquenegaosseusprincípios,bemcomoaproximar-sedeencontrarumarespostaàperguntadeRichardDay(2005,p.188,grifonooriginal),sobre“comonós,comopessoasdeumrelativoprivilégio,podemostrabalharparaadestruiçãodesseprivilégio,sempediraajudadoEstado”,pelomenosnointeriordaspráticasradicaisdeprotesto,quenãoapenasalmejam,comotambémprefiguram a sociedadevindoura,deacordocomapremissaanarquistadequeos meios determinamosfins.

3 A REPRODUÇÃO DE PAPÉIS DE GÊNERO NO BLACK BLOC

SimonedeBeauvoir(1967;1970)écapazdeexplicar,porexemplo,comoépossívelquepapéistradicionaisdegênerosereproduzamnointeriordepráticasanti-autoritáriaseanti-hierárquicas.Hesitante,inicialmente,de“escreverumlivrosobreamulher”(1970,p.7),aautoralançaumaimportantepergunta:seráque“amulher”,realmenteexistee,casoexista,oquesignificaria“sermulher”?Comoaautoraafirma,anecessidadedessaindagaçãorevelariamuitosobreopapeldamulhernasociedade:

Opróprioenunciadodoproblemasugere-meumaprimeiraresposta.Ésignificativoqueeucoloqueesseproblema.Umhomemnãoteriaaideiadeescreverumlivrosobreasituaçãosingularqueocupamosmachosnahumanidade(BEAUVOIR,1970,p.9).

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Assim,ateóricapercebeacaracterísticaessencialdaexistênciadamulhernasociedadenasuanecessidadededefinir-sesempreemrelaçãoaooutronatural,ao“tipohumanoabsolutoqueéomasculino”(ibidem,p.10),ouseja,deconceberamulhercomo“ooutroabsoluto”(ibidem,p.181).

Beauvoir(1970,p.17-18)afirma,queessasituaçãonãoapenasatribuiuumcerto“lugar”àmulher,entendidacomo“frívola,pueril,irresponsável”e,sobretudo,“submetidaaohomem”,mastambémsolidificouasuainferioridade factual,comoprodutodohomem:

Sim,asmulheres,emseuconjunto,sãohojeinferiores aoshomens,istoé,suasituaçãooferece-lhespossibilidadesmenores:oproblemaconsisteemsaberseesseestadodecoisasdeveperpetuar-se(ibidem,p.18,grifomeu).

Opapeldemulher-mãe,comastarefasdocuidadoearesponsabilidadedastarefasdomésticas,fazpartedesselugar,forçosamenteassumidopelasmulheres,queamulherprecisaaceitar,segundoBeauvoir,paraserreconhecida:“ésomenteaceitandoopapelsubordinadoquelheédesignadoqueseráglorificada”(ibidem,p.214).

Ohomemdesejanãosomentealguémcujocoraçãobataporele,masaindacujamãolheenxugueafronte,quefaçareinarapaz,aordem,atranquilidade,umasilenciosaautoridadesobresipróprioesobreascoisasqueencontradiariamenteaovoltarparaolar;elequeralguémqueespalhesobretodasascoisasesseinexprimívelperfumedemulherqueéovalorvivificantedavidaedacasa(ibidem,p.221).

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Beauvoir(1970,p.225)realça,assim,aimportânciado“papelmisericordiosoeterno”atribuídoàmulher,queéreproduzidonadistribuiçãovoluntáriadastarefasentreosgruposdeafinidadedentrodosBlack Blocs,fazendopartedaquiloqueaautorachamademitodo“eternofeminino”(ibidem,p.299).Comisso,ecunhandoafrasefamosa“ninguémnascemulher:torna-semulher”(BEAUVOIR,1967,p.8),aautoradestacaoaspectosocialmenteconstruídodessespapéisassumidoscomo“naturais”.Noentanto,afirmarqueamulher“foifeita”(ibidem,p.493)oquehojeépelasuasocialização,tambémsignificaqueessaposiçãonãoéadeumafatalidade.

Sedesdeaprimeirainfânciaameninafosseeducadacomasmesmasexigências,asmesmashonras,asmesmasseveridadeseasmesmaslicençasqueseusirmãos,participandodosmesmosestudos,dosmesmosjogos,prometidaaummesmofuturo,cercadademulheresedehomensqueselheafigurassemiguaissemequívoco,osentidodo“complexodecastração”edo“complexodeÉdipo”seriaprofundamentemodificado(ibidem,p.494-495).

Comisso,admiteapossibilidadedemudançadessespapéis,que“poderãosersuperadosdesdequeosapreendamdentrodeperspectivasnovas”(ibidem,p.496).

AleituradeSimonedeBeauvoirpermitepelomenosduasinferênciassobreareproduçãodospapéistradicionaisdegênerono Black Bloc.Emprimeirolugar,ajudaacompreendercomoessespapéissereproduzemnointeriordeumapráticaquenegaosseusprincípios,como,porexemploahierarquiadegênerosouadefiniçãoda mulher como outro absoluto.Comoessespapéisdependemdeumasocializaçãoduradoura–ouseja,torna-semulheraolongodavida–épossívelcompreenderasuapresençaemmanifestantesquenãoforamsocializadosemsociedadesquecorrespondemaos

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ideaispelosquaislutam.ComoafirmaBeauvoir(1967;1970),amudançadessasituaçãonãopoderáserfácileesperarqueofatodeterconsciênciadasuaexistênciaedosproblemasporelacausadososabolirá,mesmoqueduranteperíodoscurtosdemanifestação,pode-semostrarilusório.Emsegundolugar,aautoramostra,aomesmotempo,amutabilidadedessespapéiseabreespaçoparaargumentarcomopráticasanarquistasradicais,comoosBlack Blocs poderiamcontribuirparaaboli-los,oqueserádiscutidodeformamaisaprofundadanapróximaseção.

4 ABOLIÇÃO DE GÊNERO [GENDER-ABOLITION] NOS BLACK BLOCS

ParaperceberopapelquepráticasanarquistascomoosBlack Blocspodemassumirnasuperaçãodareproduçãodospapéisdegênero,énecessário,primeiro,acabarcomoequívocoda“teoriadosmeninosadolescentes”,defendeAKThompson(2010,p.107).Oautoralerta,queaideiadequesetratanosparticipantesdosBlocsde“umbandodemeninosadolescentesraivosos”(ACME,2000apudTHOMPSON,2010,p.107)éfalsaeconclui:

Emborapossaempiricamenteserocasodemulheresteremfeitomenosmotinsemaçõesanti-cúpuladoqueoshomens,nãosepodedizerqueissosejaoresultadodealgumarranjonatural–oumesmopoliticamenteconveniente.Asmulheresforammanifestantesnopassado.Elasreconheceramaimportânciadostumultosnabuscadeobjetivospolíticoseatédoserpolítico.E,emboraosdetratorescontemporâneosdoBlack BloctenhamfeitoopossívelparadesacreditarasaçõesdoBloccomoexcitaçãomasculina,ogênerohistóricodomotimtemsidomasculinoefeminino(THOMPSON,2010,p.115).

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Apesardisso,ascríticasdasupostamasculinidade dos Black Blocsressoaramfortementecomosseusparticipantes,queconstantementebuscamprevenir-sedereplicarospioreselementosdosistemaquevisamcombaternassuaspráticas.Inicialmente,essesdebatesgiravamemtornodaquestãodarepresentatividadeedamaiorinclusãodasmulheresnosprotestos:

Mas,apesardasdiscussõesquaseintermináveissobreoproblemadaexclusão,osativistasnãochegaramaumacordosobrequalseriaasoluçãoparaasempreilusivainclusão.Poderiaainclusãoseralcançadapelaaberturadeespaçosepráticasexistentesouexigiriamudançasnasprópriaspráticas?Poderiaaparticipaçãodasmulheressersolicitadaouseriaissocoercitivoetokenístico?Apesardaambiguidadedessenovoterrenopolítico,paramuitosativistas,umacoisaeracerta:osBlack Blocseapolíticadeinclusãosemisturavamcomobombasdegasolinaelagoascalmantes[calming ponds](THOMPSON,2010,p.108).

Noentanto,Thompsondemonstratrêsproblemascomessalógicadainclusão:primeiro,ébaseadonacrençadequemulheresnãoparticipamnessetipodeprotesto,oquefatoshistóricosnãoconfirmam.Tomoaquialutadassufragistascomoevidênciasuficiente.Segundo,reivindicarainclusão“dasmulheres”reforçasuamaterializaçãocomocategoriaconceitualabstrata(cf.Beauvoir,1967;1970)eseutilizadeumalógicarepresentacionalqueestáemdesacordocomasmudançaspolíticasgenuínasalmejadaspelosanarquistas.Porfim,areivindicaçãopor“inclusão”temobstruídoasoportunidadesdaaboliçãodegênero[gender abolition]queestãopresentesnessaspráticas.

Podemoscitar,comoexemplosdessaaboliçãoosrelatosdeduasparticipantes.Aprimeira,KrystallineKraus,entendeaspráticas

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do Black Bloc,especialmenteoBlocking Up[vestir-secomoBlack Bloc],comoequalizadoras,quetornamasdiferençasdegêneroinvisíveis:

Blocking up éumótimoequalizador.Comtodomundoparecendoigual–ocabelodetodomundoescondido,nossosrostosobscurecidospormáscaras,eusounadamenosenadamaisqueumaentidadesemovendonotodo(REBICK,2002apudTHOMPSON,2010,p.116).

Emlinhasparecidas,MaryBlack,endereçadiretamenteoequívocodaequaçãotumulto=masculino:

Euachoqueoestereótipoéverídicoquesomosprincipalmentejovensebrancos,maseunãoconcordoquesomosprincipalmentehomens.Quandoestouvestidodacabeçaaospéscomroupaspretaslargasemeurostoestáencoberto,amaioriadaspessoaspensaqueeutambémsouhomem.OcomportamentodosmanifestantesdoBlack Bloc não estáassociadoàsmulheres;portanto,osrepórteresgeralmenteassumemquesomostodoshomens(BLACK,2001apudTHOMPSON,2010,p.116,grifomeu).

Assim,afirmaThompson(2010,p.118),adescriçãodosprotestosemtermosmasculinosnãoserveaopropósitodaverdade,masàsuainteligibilidade conceitual,em“momentosondeascertezasrepresentacionaiscomeçamadesmoronar”.

Em Problemas de Gênero,JudithButler(2003)mostracomoousodeumapráticacodificadacomo“masculina”pormulheresnãomudaapenasapráticacomoasprópriasmulheres.

Claroqueessatarefacríticasupõequeoperarnointeriordamatrizdepodernãoéomesmoque

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reproduziracriticamenteasrelaçõesdedominação.Elaofereceapossibilidadedeumarepetiçãodaleiquenãorepresentasuaconsolidação,masseudeslocamento(BUTLER,2003,p.55-56).

Dessemodo,opróprioatodasmulheresdeseengajarempráticasatribuidamente“masculinas”,como,porexemplo,protestosviolentos,seriacapaznãoapenasdealteraracaracterísticadessaspráticas,comotambémasprópriasmulhereseapercepçãodosseuspapéis.NaspalavrasdeThompson(2010,p.122),elas“começamasemudarnoprocessodemudaromundo”.Assim,asmulheresqueparticipamdosBlack Blocscontribuemparaadesestabilizaçãodascategoriasedospapéisdegêneroeprefiguramummundonoqualamatrizrepresentacionaldogêneroperdeasuaimportância;criam,assim:

Problemasdegêneronãopormeiodeestratégiasquerepresentemumalémutópico,masdamobilização,daconfusãosubversivaedaproliferaçãoprecisamentedaquelascategoriasconstitutivasquebuscammanterogêneroemseulugar,aposarcomoilusõesfundadorasdaidentidade(BUTLER,2003,p.60).

Em vez de incluirasmulheres,acontribuiçãodosBlack Blocs aos“problemasdegênero”podeservistanaaboliçãodascategoriasepapéisdegênero.

Contornandoaesferarepresentacional,atacandoabaseepistêmicadaidentidadepolíticaereformulandoapolíticacomoumapráticadeproduçãoenãodesignificação,asmulheresdoBlack Blocantecipamummomentoalémdamatrizdereconhecimento-regulaçãoda sociedadedecontro le atua l(THOMPSON,2010,p.125).

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Considerar o blocking upcomograndeequalizadorpodeseranalisadoaindaemtermosdofeminismociborguedeDonnaHaraway(2009).Definidocomo“organismocibernético,umhíbridodemáquinaeorganismo,umacriaturaderealidadesocialetambémumacriaturadeficção”(HARAWAY,2009,p.36),ociborgueé“umacriaturadeummundopós-gênero”(ibidem,p.38),queseencaixanapráticaBlack Bloc.Aqui,asvestimentaspretasuniformes,asmáscaras,capacetes,etc.transformamosparticipantesemhíbridosentremáquina,organismoepolítica.Adescriçãodosciborguescomoseresque“desconfiamdequalquerholismo,masanseiamporconexão”fazcomque“parecemterumainclinaçãonaturalporumapolíticadefrenteunida,massemopartidodevanguarda”(ibidem,p.40),oquetambémajudaaancorá-losnocampopolíticodoanarquismo.Aautoraafirma,alémdisso,anegaçãodasmatrizesidentitáriascomodescritosanteriormentepelofeminismociborgue.Harawayconclui,então,que:

Aimagemdociborguepodesugerirumaformadesaídadolabirintodosdualismospormeiodosquaistemosexplicadonossoscorposenossosinstrumentosparanósmesmas(HARAWAY,2009,p.99),

Issonamedidaquenão“setratadosonhonãodeumalinguagemcomum,masdeumapoderosaeheréticaheteroglossia”(ibidem,p.99).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

ObservarareproduçãodepapéisdegêneronadivisãovoluntáriadastarefasnosgruposdeafinidadedosBlack Blocs parece, àprimeira vista, contraditório.Comoéqueessespapéissereproduzemjustamenteondeseusprincípiossãotão

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veementementenegados?Considerarareproduçãosocialdessespapéisdeformamaisaprofundadarevela,noentanto,algumasformaspossíveisdeexplicação.Comoessespapéisdependemdeumasocializaçãoduradoura,quesedá,mesmonosparticipantesdosBlack Blocs,emumasociedadequenãoatendaàssuasexpectativasepremissassócio-políticas,seriasurpreendenteverosparticipantesselivraremdelestãoprontamente,apenasporteremconsciênciadasuaexistênciaedosmalesquecausam.

Aomesmotempo,hánosBlack Blocsmuitoselementosquecombatemahierarquiadegêneroeapráticaemsivisaprefigurarumasociedade,naqualascategoriasehierarquiasdegênerofossemabolidas.Dessemodo,seasmanifestaçõesdosBlack Blocspodemserentendidas,como“grandesequalizadores”oumomentosdeaboliçãodegênero[gender abolition],restaperguntar,comThompson(2010,p.116)“comopodemosestenderseusefeitosaregiõesdavidaondealógicadarepresentaçãopermanecedominante?”,ouseja,como“podemosentrarnoespaçoabertopeloprotestoenuncasairdele?”.Estassão,certamente,perguntasqueconvidamumareflexãomaisaprofundada,queaquinãofoipossíveldevidoaoescopodotrabalho.Noentanto,espera-sequeoartigosejacapazdeesboçarumcaminhodeinvestigaçãoparainstigaralgumasperguntasimportantesacercadarelaçãodosBlack Blocsemespecialedoanarquismoemgeral,comasquestõesdegênero.

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Sexualidade e gênero: controle e subversão

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Capa| Sumário | 184

Sexualidade e gênero: controle e subversão

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Capa| Sumário | 185

Sexualidade e gênero: controle e subversão

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SOBRE AS AUTORAS/ORGANIZADORAS

Marcela Zamboni

ProfessoraassociadaIIepesquisadoradocursodeCiênciasSociais(CCS)edoProgramadePós-GraduaçãoemSociologia(PPGS)daUniversidadeFederaldaParaíba(UFPB).PossuigraduaçãoemCiênciasSociais(2000),mestrado(2003)edoutorado(2009)emSociologiapelaUniversidadeFederaldePernambuco.RealizouestágioPós-DoutoralnaUniversityofManchester/Schooloflaw,comapoiodaCAPES(2013-2014)enaUniversidaddeSevilla/DepartamentodeSociologia(dejaneiroaabrilde2017).Em2015,fundouoGRAV(GrupodeRelaçõesAfetivaseViolência).Entre2017e2019,coordenouaPós-GraduaçãoemSociologia(PPGS/UFPB).Éautoradoslivros“Quemacreditounoamor,nosorriso,naflor”:aconfiançanasrelaçõesamorosas(2010)eHomicídioafetivo-conjugalsobalentedosoperadoresjurídicos(2016),sendoesseúltimoemco-autoriacomHelmaJ.S.deOliveira.Assuasprincipaisáreasdeinteressesão:Sociologiadocrimeedodesvio;gêneroesexualidadeeTeoria Sociológica.

Helma J. S. de Oliveira

GraduadaemDireito(2006)eemCiênciasSociais(2013),mestreCiênciasJurídicas(2009)–áreadeconcentração“DireitosHumanos”–edoutoraemSociologia(2019),pelaUniversidadeFederaldaParaíba.ÉpesquisadoraintegrantedoGrupodeRelaçõesAfetivaseViolência(GRAV,UFPB/CNPq).Atualmenteprestatrabalhotemporáriocomoanalistacensitária,naáreadeconhecimentodeCiênciasSociais,juntoàFundaçãoInstitutoBrasileirodeGeografiaeEstatística(IBGE).LecionouemcursosdeaperfeiçoamentodeprofissionaisdosistemapenitenciárioofertadospelaSecretariadeEstadodaCidadaniaeAdministraçãoPenitenciária(SECCAP),atravésdaEscoladeServiçoPúblicodoEstadodaParaíba(ESPEP),entreosanosde2007e2009.Antesdesededicar

Sobre as autoras/organizadoras

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àpesquisadedoutoramento,lecionouasdisciplinasdeTeoriaGeraldoDireitoeDireitodoTrabalhoInoCursodeDireitodaFaculdadedeIntegraçãodoSertão(FIS)durantecincoanos.EntresuasatividadesacadêmicasjuntoessaIES,organizoueparticipoudeeventosacadêmicosinternos,bemcomoatuounasavaliaçõeseorientaçõesdetrabalhosdeconclusãodecursoemsubáreasdiversas,comdebatesqueentrelaçavamostemasviolência,gênero,teoriasefinalidadesdaspenas,execuçãopenal,escravidãomoderna,entreoutros,ensinandosobrepráticadeestudoepesquisaemDireitoeoutrasáreasdasciênciashumanas.Simultaneamenteàsatividadesprofessorais,desde2011participadepesquisascientíficassobreviolência,gêneroepráticasjurídicascomenfoquenaanálisedehomicídiosafetivo-conjugais(feminicídios)emtribunaisdojúrideJoãoPessoaeoutrascapitais,financiadaspelaComissãodeAperfeiçoamentodePessoaldoNívelSuperior(CAPES),peloConselhoNacionaldeDesenvolvimentoCientíficoeTecnológico(CNPq)eSecretariaNacionaldePolíticasparaMulheres(SNPM),oqueresultounapropostadepesquisadedoutorado“OCrimedefeminicídioeapercepçãodosagentesdajustiça:umaanálisesociológicaapartirdosTribunaisdoJúrideJoãoPessoa,Paraíba”.Asexperiênciasmencionadasfacilitamaatuaçãodestaprofissionalemcursosdegraduaçãoepós-graduação,tendocapacidadepararefletireministraraulasemdiversassubáreasdoDireitoedasCiênciasSociais,bemcomoparaformulareatuarematividadesdepesquisacientífica.

Mariana Melo

DoutoraemSociologiapelaUniversidadeFederaldaParaíba(2020).MestreemSociologiapelaUniversidadeFederaldaParaíba(2016).BolsistadeDoutoradoSanduíchepelaCAPESnaGeorgeWashingtonUniversity,EstadosUnidos.Atuanasáreasdeviolência,gêneroesexualidade.PesquisadoradoGRAV–GrupodeRelaçõesAfetivaseViolência.

Sobre as autoras/organizadoras

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Juciane de Gregori

PossuigraduaçãoempsicologiapelaUniversidadeRegionalIntegradadoAltoUruguaiedasMissões–CampusErechim(2011);especializaçãoemFormaçãoDidáticoPedagógicaparaMagistérioSuperiorpelaUniversidadeComunitáriadaRegiãodeChapecó(2013);mestradoemDireitosHumanos,CidadaniaePolíticasPúblicaspelaUniversidadeFederaldaParaíba–UFPB(2016);mestradoemSociologiaebolsistaCNPqpelaUniversidadeFederaldaParaíba–UFPB(2019);doutoradoemSociologiaebolsistaCAPESpelaUniversidadeFederaldaParaíba(emandamentodesde2019).Principaisáreasdeinteresse:Gênero,Sexualidade,ViolênciaeDireitosHumanos.

Emylli Tavares do Nascimento

MestrandaemCiênciasJurídicaspeloProgramadePós-GraduaçãoemCiênciasJurídicasdaUniversidadeFederaldaParaíba,naáreadeDireitosHumanosenalinhadeDireitoInternacionaldosDireitosHumanos,EstadoDemocráticodeDireitoeCidadania,GêneroeMinorias.PósgraduandaemDireitoPúblicopelaPontifíciaUniversidadeCatólicadeMinasGerais–PUCMINAS(especialização).GraduadaemDireito,em2018,peloCentrodeCiênciasJurídicasdaUniversidadeFederaldaParaíba.ColaboradoradoGrupodeRelaçõesAfetivaseViolência(GRAV),vinculadoàUniversidadeFederaldaParaíba,grupodepesquisasobregênero,sexualidadeeviolência.ColunistadoJornalBrasildeFatonaParaíba:umavisãopopulardoBrasiledoMundo.AdvogadacomatuaçãonaáreadeDireitosHumanos.Possuiexperiêncianaáreajurídicacomênfaseemgêneroeviolência,sociologiajurídica,estudoscriminológicos,educaçãoeassessoriajurídicapopularedireitoshumanos.

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SOBRE OS AUTORES

Ana Carolina Gondim de Albuquerque Oliveira

DoutorandanoProgramadePós-graduaçãoemCiênciasJurídicasdaUniversidadeFederaldaParaíba.DoutoradoemDireitosHumanoseDesenvolvimento (Linha3).PossuigraduaçãoemDireitopelaUniversidadeEstadualdaParaíba–UEPB(1998);EspecializaçãoemDireitoProcessualCivilpelaUniversidadeCândidoMendes–UCAM/RJ(2005)eMestradoemCiênciasJurídicas,áreadeconcentraçãoemDIREITOSHUMANOSpelaUniversidadeFederaldaParaíba(2012).AtualmenteéprofessoradaFaculdadedeEnsinoSuperiordaParaíba(FESP),ondeatualcomo:DocentenaGraduaçãodeDireitoenoscursosdepós-graduação;CoordenadoradePesquisaeExtensão;PesquisanaáreadeTEORIAeHISTÓRIADODIREITO;DIREITOSHUMANOSEVIOLÊNCIADEGÊNERO.PesquisadoradosGruposdePesquisa:NÚCLEO PARA PESQUISA DOS OBSERVADORES DO DIREITO (NUPOD/UEPB)eTEORIADOSDIREITOSHUMANOS,DIREITOESOCIEDADE:GENEALOGIAEPROSPECTIVASDOPENSAMENTOJURÍDICO(UFPB),amboscadastradosecertificadosnoDiretóriodosGruposdePesquisanoBrasil/CNPQ.

Eloisa Slongo

MestrandapeloProgramadepós-graduaçãodoCentrodeCiênciasJurídicas (PPGCJ) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Bacharela emCiênciasJurídicaseSociaispelamesmainstituição(2017).EspecialistaemPenaleProcessoPenalpelaUniversidadeCândidoMendes–RJ(2019).DuranteagraduaçãoatuouemprojetosdepesquisaeextensãoenvolvendotemáticasvoltadasaosDireitosHumanos,GêneroeViolência,SociologiaJurídicaeAssessoriaJurídicaPopular.Comoestagiária,tevesuaatuaçãoconcentradanasáreasdeDireitoPenal,ProcessualPenaleDireitoCivil.Éadvogadalicenciada(XXexamedaOAB)e,atualmente,

Sobre os autores

Capa| Sumário | 190

estátrabalhandonaáreapenalnocargodeAssessoradeGabinetedoJuízode1ªGraudoTribunaldeJustiçadaParaíbaecomoestagiáriadocente,nadisciplinadeSociologiaJurídica,noDepartamentodeCiênciasJurídicas da Universidade Federal da Paraíba.

Felipe Franklin Anacleto da Costa

MestrandoemSociologia(PPGS/UFPB).GraduandoemServiçoSocial(UFPB).GraduadoemComunicaçãoSocialcomhabilitaçãoemRelaçõesPúblicas(UFPB).TeminteressenasáreasdeServiçoSocialeSociologia,maisespecificamentenosseguintestemas:gênero,sexualidade,trabalhoepolíticaspúblicas.

Florian Grote

DoutorandoemSociologiapeloProgramadePós-GraduaçãoemSociologia(PPGS)pelaUniversidadeFederaldaParaíba(UFPB).PossuigraduaçãoemCiênciaPolíticaeHistória(inconclusa)pelaUniversidadedeVechta(Alemanha),graduaçãoemCiênciasSociais(Bacharelado)pelaUniversidadeFederaldaParaíba(UFPB),mestradoemCiênciaPolíticaeRelaçõesInternacionaispeloProgramadePósGraduaçãoemCiênciaPolíticaeRelaçõesInternacionaisdaUniversidadeFederaldaParaíba(UFPB)eéintegrantedoGrupodeEstudosePesquisasAnarquistas(GEPAn).

Maria Joaquina da Silva Cavalcanti

MestrandanoProgramadePós-GraduaçãoemCiênciasJurídicas(UFPB),nalinhadeFundamentosTeórico-filosóficosdosDireitosHumanos;AdvogadagraduadaemDireitopelaFaculdadedeDireitodoRecife–UniversidadeFederaldePernambuco(UFPE);atuanaáreadeDireitoPenal;AtuaçãoemAssistênciaJurídicaPopular;PesquisadoranaáreadeDireitoàCidade,GêneroePolíticasPúblicas.

Sobre os autores

Capa| Sumário | 191

Monique Ximenes Lopes de Medeiros

PossuigraduaçãoemDireitopelaUniversidadeFederaldaParaíba(2007)emestradoemDiraitosHumanospelaUniversidadeFederaldaParaíba(2013).AtualmenteéprofessoraefetivadoInstitutoFederaldeEducação,CiênciaeTecnologiadaParaíba–IFPB.TemexperiêncianaáreadeDireito,comênfaseemDireitosHumanos,atuandoprincipalmentenosseguintestemas:direitoshumanos,feminismo,tráficodemulheres,tráficodepessoaseteoriascríticas.

EstelivrofoidiagramadopelaEditoraUFPBem2020,utilizandoafonteLato.

As temáticas abordadas nesta obra estão relacionadas às pesquisas sobre gênero e sexualidade desenvolvidas pelos(as) alunos(as) vinculados(as) não só ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS), mas também à Pós-Graduação em Ciências Jurídicas (PPGCJ) da mesma instituição, evidenciando a preocupação dos(as) autores(as) com as práticas sociais e jurídicas, a fim não só de explicar os fenômenos sociais relacionados a referida temática, mas também de instigar mudanças sociais e legais que garantam maior equidade de gênero, a partir de uma lente sociológica.