sexualidade e gÊnero - editora ufpb
TRANSCRIPT
Marcela ZamboniHelma J. S. de Oliveira
Mariana MeloJuciane de Gregori
Emylli TavaresOrganizadoras
SEXUALIDADE E GÊNEROCONTROLE E SUBVERSÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
Reitor VALDINEY VELOSO GOUVEIA Vice-Reitora LIANA FILGUEIRA ALBUQUERQUE Pró-Reitor PRPG GUILHERME ATAÍDE DIAS
EDITORA UFPB
Diretor NATANAEL ANTÔNIO DOS SANTOS Coordenadora de editoração SÂMELLA ARRUDA ARAÚJO Chefe de produção JOSÉ AUGUSTO DOS SANTOS FILHO
Conselho editorial Adailson Pereira de Souza (Ciências Agrárias) ElianaVasconcelosdaSilvaEsvael(Linguística,LetraseArtes) FabianaSenadaSilva(Interdisciplinar) GiseleRochaCôrtes(CiênciasSociaisAplicadas) IldaAntonietaSalataToscano(CiênciasExatasedaTerra) Luana Rodrigues de Almeida (Ciências da Saúde) MariadeLourdesBarretoGomes(Engenharias) MariaPatríciaLopesGoldfarb(CiênciasHumanas) Maria Regina Vasconcelos Barbosa (Ciências Biológicas)
Conselhocientífico MariaAuroraCuevas-Cerveró(UniversidadComplutenseMadrid/ES) JoséMigueldeAbreu(UC/PT) JoanManuelRodriguezDiaz(UniversidadeTécnicadeManabí/EC) JoséManuelPeixotoCaldas(USP/SP) LetíciaPalazziPerez(Unesp/Marília/SP) AneteRoese(PUCMinas/MG) RosângelaRodriguesBorges(UNIFAL/MG) SilvanaAparecidaBorsettiGregorioVidotti(Unesp/Marília/SP) LeilahSantiagoBufrem(UFPR/PR) MartaMariaLeoneLima(UNEB/BA) LiaMachadoFiuzaFialho(UECE/CE) ValdonilsonBarbosadosSantos(UFCG/PB)
Editora filiada à:
Marcela ZamboniHelma J. S. de Oliveira
Mariana MeloJuciane de Gregori
Emylli Tavaresorganizadoras
SEXUALIDADE E GÊNERO controle e subversão
EditoraUFPBJoão Pessoa
2020
Direitosautorais2020–EditoraUFPB EfetuadooDepósitoLegalnaBibliotecaNacional,conformea Leinº10.994,de14dedezembrode2004. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS À EDITORA UFPB Éproibidaareproduçãototalouparcial,dequalquerformaou porqualquermeio. Aviolaçãodosdireitosautorais(Leinº9.610/1998) écrimeestabelecidonoartigo184doCódigoPenal. Oconteúdodestapublicaçãoédeinteiraresponsabilidadedoautor.
Projeto gráfico EditoraUFPB
Editoração eletrônica e Design da capa Mônica Câmara
Foto da capa Jim/Pexels
Catalogação na fonte: Biblioteca Central da Universidade Federal da Paraíba
S518 Sexualidadeegênero:controleesubversão/Marcela Zamboni...[etal.],organizadores.-JoãoPessoa:EditoraUFPB,2020.
191p.:il.
Recursodigital(3MB)Formato:PDFRequisitodoSistema:AdobeAcrobatReader
ISBN:978-65-5942-046-9
1.Gêneroesexualidade.2.Políticas identitárias. 3.Lutassociais.4.Feminicídio.5.Transfeminicídio.I.Zamboni,Marcela.II.Oliveira,HelmaJ.S.de.III.Melo,Mariana.IV.Gregori,Jucianede.V.Tavares,Emylli.VI.Título.
UFPB/BC CDU347.156:323.1
Livro aprovado para publicação através do Edital Nº 01/2020/Editora Universitária/UFPB - Programa de Publicação de E-books.
EDITORA UFPB CidadeUniversitária,CampusI,PrédiodaeditoraUniversitária,s/n JoãoPessoa–PB CEP58.051-970 http://www.editora.ufpb.br E-mail:[email protected] Fone:(83)3216.7147
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .............................................................................. 07
O ESGOTAMENTO DAS POLÍTICAS IDENTITÁRIAS NAS LUTAS SOCIAIS: UMA LEITURA A PARTIR DE JUDITH BUTLER ........................................................................ 12
Maria Joaquina da Silva Cavalcanti
FEMINICÍDIOS: GENERIFICAÇÃO DA POLÍTICA E POLITIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA................................................ 27
Emylli Tavares do Nascimento
TRANSFEMINICÍDIO: ENTRE ABJEÇÃO E PRECARIEDADE ............................................................................ 49
Ana Carolina Gondim de Albuquerque Oliveira
OS EFEITOS DA PASSABILIDADE: AS DIFERENTES EXPERIÊNCIAS DE MULHERES TRAVESTIS E TRANSEXUAIS E HOMENS TRANSEXUAIS NO TRABALHO ................................................................................ 70
Felipe Franklin Anacleto da Costa
ENTRE FEMINICÍDIO E LGBTQI+FOBIA: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE CRIMES DE ÓDIO NO FLUXO DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL ................................................................. 84
Helma J. S. de OliveiraMariana MeloMarcela Zamboni
NOTAS INTRODUTÓRIAS SOBRE A IMPORTÂNCIA DA DIMENSÃO RACIAL NOS ESTUDOS DE GÊNERO E SEXUALIDADE .............................................................................104
Juciane de Gregori
ARTICULAÇÕES NAS RELAÇÕES DE PODER: PERFORMATIVIDADES DE GÊNERO E SEXUALIDADE NA PRÁTICA DA REVISTA ÍNTIMA .........................................124
Eloisa Slongo
DIREITOS REPRODUTIVOS DAS MULHERES BRASILEIRAS: ENTRE A MATERNIDADE E A MORTE ......... 147
Monique Ximenes Lopes de Medeiros
“MENINOS DO BLACK BLOC”: ENTRE A REPRODUÇÃO DE PAPÉIS DE GÊNERO E SUA ABOLIÇÃO NA PRÁTICA ANARQUISTA DE PROTESTO RADICAL ...............................168
Florian Grote
SOBRE AS AUTORAS/ORGANIZADORAS ................................186
SOBRE OS AUTORES .......................................................................189
Capa| Sumário | 7
APRESENTAÇÃO
Estetrabalhoresultadeumaconstruçãocoletivadedebatesgestadosnadisciplina“Gêneroesexualidade”,ministradaporumadasorganizadorasdaobra,aprofessoraMarcelaZamboni,noProgramadePós-GraduaçãoemSociologiadaUniversidadeFederaldaParaíba(PPGS/UFPB)edacolaboraçãodepartedasintegrantesdoGrupodeRelaçõesAfetivaseViolência(GRAV).Astemáticasabordadasestãorelacionadasàspesquisassobregêneroesexualidadedesenvolvidaspelos(as)alunos(as)vinculados(as)nãosóaoProgramadePós-GraduaçãoemSociologia(PPGS),mastambémàPós-GraduaçãoemCiênciasJurídicas(PPGCJ)damesmainstituição,evidenciandoapreocupaçãodos(as)autores(as)comaspráticassociaisejurídicas,afimnãosódeexplicarosfenômenossociaisrelacionadosareferidatemática,mastambémdeinstigarmudançassociaiselegaisquegarantammaiorequidadedegênero,apartirdeumalentesociológica.
Inicialmente,Maria JoaquinaCavalcantidelimitaumimportantedebateacercadaspolíticasidentitáriascontemporâneasem O Esgotamento Das Políticas Identitárias Nas Lutas Sociais: Uma leitura a partir de Judith Butler. Partindodeumaperspectivabutlerianaarespeitodoscorposnãopassíveisdeluto,dasvidasprecáriasedaconstruçãosocialdaidentidade,discorresobreoalcanceeimportânciadaspolíticasidentitáriasnaexpressãodasidentidadesquevêmdemonstrando-seobjetosmaiscomplexoseintersec-cionados.Elaapontaanecessidadedeosprojetospolíticosdaesquerdacoordenaremdiferentesmarcadoressociaisdadiferença,natentativademelhorararepresentaçãodosmaisdiversossujeitos,articulandodebatesparaalémdasdiferençasdeclasse.Acompanhaemsuareflexão,assim,aproblemáticadaspretensasunidadesemtornodegruposcategorizáveis,comoapontadoporButler
Capa| Sumário | 8
Sexualidade e gênero: controle e subversão
aotratardacategoria“mulher”eseulugarnacríticafeminista.Aautoradestacaaindacomoaperspectivaidentitáriaatuasobreaformulaçãodepolíticasdereconhecimentoeseusefeitosnaapreensãodesujeitos.
Nosegundoartigo,intituladoFeminicídios: generi-ficação da política e politização da violência,aautoraEmylliTavaresdoNascimentoapresentaacategoriagênerocomouminstrumento/discursoestratégicodosmovimentosfeministasnointuitodequeoEstadoeasociedadeentendamagravidadedasmortesviolentasdemulheres,aopassoqueproblematizaacompreensãodosfeminicídioscomoumaformadeviolênciaexplicávelexclusivamentepor“razõesdegênero”.Destemodo,aautoracolocaempautaascategoriassociaisderaça/etnia,classe,sexualidade,territorialidade,etc.entrelaçadasaogênero,comorecursosdeanálisedoexercíciodenecropolítica,segundoacompreensãodeAchilleMbembe,comvistaaperceber(oucomprovar)quaismulherestêmsuasvidasvalorizadase,portanto,têmsuasvidaspassíveisdeluto(BUTLER,2017)–oude“pranteamentocoletivodaperda”(EFREMFILHO,2016)–,ou,emsentidooposto,quaismulheressão“escolhidas”peloEstadoparateremsuasvidasnegligenciadas,parao“deixarmorrer”.
OartigoTransfeminicídio: entre abjeção e precariedade, de Ana CarolinaGondimdeAlbuquerqueOliveira,apontaoassassinatodemulherestransexuaisetravestiscomoexpressãodamáximaprecariedadequeconstituiasvidasdaspessoasquevivemàsmargensdamatrizdeinteligibilidadeculturalhegemônica.Utilizando-sedorepertóriodeJudithButler(2017),aautoraobservaqueosatosdeviolênciabrutalqueculminamnasmortesdessasmulheresnãogeramcomoçãosocial,pois,desdeoprincípio,essescorpossãotidoscomoabjetoseestãodesprovidosdascondiçõesnecessáriasparaamanutençãoeproteçãodasvidasconsideradasviáveisedignasdeenlutamento.Porfim,fazendousodedadoscoletadosemrelatóriosedossiêsnacionaiseinternacionais,aautora
Capa| Sumário | 9
Sexualidade e gênero: controle e subversão
demonstraqueaviolênciadotransfeminicídiodeveseranalisadaenquantoumfenômenointerseccional,queenvolverelaçõesdegênero,sexualidade,classeeraça,asquaisatuamnaconformaçãodequempodeserreconhecidacomopessoahumanadetentorade“direitos”e“dignidade”peranteesferasjurídicasesociais.
Emseguida,noartigoOs Efeitos da Passabilidade: as diferentes experiências de mulheres travestis e transexuais e homens transexuais no trabalho,oautorFelipeFranklinAnacletodaCostaabordaocontrasteentreasexperiênciasdaspessoastransfrenteaomercadolaboral.Tomandocomochavedeleituraoconceitodepassabilidade,seutrabalhoénorteadoporumarevisãobibliográficaacercadastemáticasdegêneroesexualidade,tendocomobasesuapesquisadesenvolvidasobreosimpactosdo“ProgramaTranscidadania”naempregabilidadedetravestisetransexuais.Alémdisso,tambémapresentaumaentrevistarealizadacomumhomemtrans,indicandoosdesafios,consequênciaseproblemáticasenvoltosaidentidadedegêneroecondiçõesdetrabalho.
NoartigoEntre feminicídio e LGBTQI+fobia: breves considerações sobre crimes de ódio no fluxo do Sistema de Justiça Criminal,HelmaJ.S.deOliveira,MarianaMeloeMarcelaZamboniobservamossentidosmobilizadosdentrodoSistemadeJustiçaCriminalarespeitodacategoriaódioconfrontandodefiniçõesepráticasjurídicasbaseadasnaLeinº13.104/2015,queinstituiuofeminicídiocomoqualificadoradocrimedehomicídio,ededecisãodoSupremoTribunalFederal(STF)que,em2019,compreendeuahomofobiaeatransfobiacomocrimesderacismo,conformeostermosdaLeinº7.716/1989.PartindodeavaliaçõesadvindasdepesquisasempíricasrealizadaspelasautorasnoâmbitodostribunaisdojúriededelegaciasemJoãoPessoa,oartigopromoveumdebatesobreassignificaçõesatribuídasàcategoriaódiodiantedasnormasedaspráticasjurídicasreferentesaosfeminicídioseaoshomicídiosmotivadosporLGBTQI+fobia.Destemodo,asautorassugerem
Capa| Sumário | 10
Sexualidade e gênero: controle e subversão
que,emboraestejamanalisandocrimesdeódio,aemoçãoviolentachegaaseranunciadacomomotivadapeloódiooupaixãodiantededeterminadasperformatividadesdegêneroesexualidadeconfiguradasnasatitudesafirmativasdasvítimasouemsuposiçõesdecomportamentosdistantesdospapéisheteronormativos.
JucianedeGregorinosapresentaumnecessáriodebatesobrea importânciadadimensãoracialnosestudossobregêneroesexualidade.EmNotas Introdutórias Sobre a Importância da Dimensão Racial nos Estudos de Gênero e Sexualidade,aautorachamaatençãoparareflexõesemtornodainterseccionalidade,dosmarcadoressociaisdadiferençaedosfeminismoscontemporâneoscomoelementosindispensáveistantonaacademiaquantonosprojetosdetransformaçõessociais.AautoraconcordaassimcomMcClintock(2010)sobreaimpossibilidadedepensarcategoriassociaisdemaneiraisolada;raça/cor,capital,gênerosãoessenciaisparaaconstruçãodeexperiênciasaseremanalisadasemseusprocessosdeformação,afastando-sedasformasdecentralidadecomunsemdiversosestudos.ComodestacaGregori:“Nãoháinterseccionalidadesemfeminismonegroevice-versa”.
OartigoArticulações nas Relações de Poder: performatividades de gênero e sexualidade na prática da revista íntima,deEloisaSlongo,apresentacomoesforçoteóricoprincipalademonstraçãodasrelaçõesdepoderqueperpassamaspráticasestataisdoambienteprisional.Aautoraquestionaadinâmicada“revistaíntima”quetemcomopropósitolegalainterceptaçãodeobjetose/ouinstrumentosparaointeriordaspenitenciárias,conquantosirvaefetivamenteparaoexercícioestataldevigilânciaecontrolesobreoscorposdos/asvisitantes,especialmentedasmulheresfamiliaresdepresos.Noentanto,aautoraapontaqueessaeoutrasregrasdecondutaaomesmotempoemqueregulamtambémproduzemperformatividadesdegêneroedesexualidade,queganhaminteligibilidadenocontextodasprisões.Nesteartigo,Slongoinveste
Capa| Sumário | 11
Sexualidade e gênero: controle e subversão
tantonaanálisedosprocessosdedegradaçãoeassujeitamentodasmulheresfamiliaresquantonasformasdeagênciaelaboradasporelasparaenfrentarocotidianoprisional.
Nooitavoartigo,intituladoDireitos Reprodutivos das Mulheres Brasileiras: entre a maternidade e a morte,aautoraMoniqueXimenesLopesdeMedeirosdiscuteoscontornoslegaisdeliberdadesexualereprodutivadasmulheresapartirdaanálisecríticadaLeidePlanejamentoFamiliaredoCódigoPenalBrasileiro,noquedizrespeitoàrestriçãodecirurgiasdeesterilizaçãoeàcriminalizaçãodoaborto,respectivamente.Paratanto,aautoraobservaamaternidadeeaheterossexualidadereprodutoradeacordocomperspectivasfeministaseadota,especialmente,asreflexõesdeJudithButler,AchilleMbembeeMichelFoucaultparacompreenderasconsequênciasdabiopolítica/necropolíticaexercidapeloEstadobrasileirosobavidadasmulheres,considerandoasinterseccionalidadesdegênero,raça,etnia,classe,condiçãoeconômica,escolaridadeeregionalidade.
Porfim,FlorianGroteapresentaoartigointitulado“Meninos do Black Bloc”: entre a reprodução de papéis de gênero e sua abolição na prática anarquista de protesto radical.ApartirdeumaanáliseemtornodasJornadasdeJunhode2013noBrasil,oautorrelacionaasquestõesdegênerocomospapéissociais,hierarquiaseviolênciasqueatravessamaspráticasanarquistasdosBlack Bloc. Para tanto,Groteconceituaeretomaaspectosteóricosehistóricos,associandoessetemaamídiaetrazendocomobase,autorasfeministascontemporâneas.Noconfrontoentreareproduçãoeaaboliçãodospapéisdegênero,evidenciam-secaminhospossíveisdetransformaçãodasociedade,associadascomcontribuiçõesdaspráticasanarquistas.
As organizadoras
Capa| Sumário | 12
O ESGOTAMENTO DAS POLÍTICAS IDENTITÁRIAS NAS LUTAS SOCIAIS: UMA LEITURA A PARTIR DE JUDITH BUTLER
Maria Joaquina da Silva Cavalcanti1
1 INTRODUÇÃO
Dentrodaslutastravadaspelaesquerdadesdeoúltimoséculo,aschamadaspolíticasidentitárias–conceitoquesurgiunasegundametadedoséculoXXevemsedesenvolvendodesdeentão–passaramaocuparumespaçocentral,sendoatualmenteograndepontodepartidadeondeasdiversaslutassociaisdaesquerdaemanam2.
Tendoemvistaofocodirecionadoàconstituiçãodossujeitoseàsidentidadesqueestesadotamoudeixamdeadotarbemcomoaformacomoessasidentidadesserelacionamentresi,aesquerdacontemporâneatematualmenteseperdidodentrodessascategoriasidentitárias.
Dessaforma,JudithButler(2017;2018),nasobrasabordadasnestetrabalho,buscaentendercomoaformaçãodessasidentidadessedáe,paraalémdisso,comoelasseencaixamdentrodeumalutaprogressista.Emseusensaiossobreoquechamade“vidaprecária”,Butlercriticaessaperspectivadaesquerdaatualdetercomofoco
1 MestrandapeloProgramadePós-GraduaçãoemCiênciasJurídicasdaUniversidadeFederaldaParaíba(PPGCJ-UFPB).E-mail:[email protected].
2 Sobreestetema,ver:Asaporiasdolugardefala:comoapolíticaidentitáriaafetouaesquerda(MORAIS,2018).
Capa| Sumário | 13
Sexualidade e gênero: controle e subversão
centralascategoriasidentitáriasemdetrimentodeumapercepçãoqueenfoquenaprecariedadedavida.
Portanto,nestetrabalhopretende-sediscorrersobreoqueseriamessaspolíticasidentitárias,easformaspelasquaiselasserelacionamentresi.Toma-secomoreferênciaopensamentodeHelenaHirata(2014),RobertoEfremFilho(2017),e,finalmente,oentendimentodeJudithButler,emsuasobrasProblemasdeGênero(2017)eQuadrosdeGuerra(2018),acercadessasidentidadesequalolocalqueelasdevemocuparnaspolíticasdaesquerdacontemporânea.
2 AS POLÍTICAS IDENTITÁRIAS E SEU ESGOTAMENTO
Aexpressãopolítica identitáriavemdeumdiscursopolíticodoColetivoCombaheeRiver(CCR),coletivodemulheresnegraselésbicas,de1977.Nestediscurso,oCCRdesenvolveuaideiadeumapolíticaradicalqueteriacomocentrosuasprópriasidentidadeseexperiências,poisacreditavamqueaforçadesuapolíticaviriadaíenãodaopressãoqueeraexercidasobreelas.Noentanto,conformeasprópriasprodutorasdestediscursopontuaram,issonãosignificaumaperspectivanaqualapolíticadeveriaserreduzidaapenasaestasidentidades(HAIDER,2019,p.32).
Assim,ofoconasdiversasformasdeidentidadecomeçaasedesenvolver,buscandoumasuperaçãodeumaideiaqueanteriormentesedisseminavadentrodaesquerda,adequeaorigemdetodasasopressõeséasociedadedeclasseseque,portanto,aerradicaçãodosistemadeproduçãocapitalistalevariaaerradicartambémasopressõesdegênero,sexoeraça.ConformeoCCRargumentavaemsuacarta,“oprojetodesocialismorevolucionáriohaviasidominadopeloracismoesexismonaesquerda”(ibidem,p.
Capa| Sumário | 14
Sexualidade e gênero: controle e subversão
31),sendo,então,incorretoafirmarqueumapolíticadeesquerdabaseadaprimariamentenalutacontraocapitalismoseriasuficienteparaerradicartaisopressões.
Nestesentido,otermointerseccionalidade surgetambémnamesmaépoca,sendousadoparaespecificar“ainterdependênciadasrelaçõesderaça,sexoeclasse”pelajuristaafro-americanaKimberléW.Creshaw(HIRATA,2014,p.62).InicialmenteforjadodentrodomovimentoconhecidocomoBlackFeminismdosanos1970–movimentodoqualoCCRfezparte,equeseopunhaao“feminismobranco,declassemédiaeheteronormativo”(ibidem),otermoeseussignificadoscomeçaramasedesenvolverrealmenteapenasnadécadade1990.
Ainterseccionalidadeéumaformadecompreenderoentrelaçamentodasdiversasidentidades,levandoemcontasuasmúltiplasfacetas,e,alémdisso,entendeainteraçãodossistemasdeopressõesnaproduçãoereproduçãodasdesigualdadesdentrodasociedade(BILGE,2009,apudHIRATA,2014,p.63).ÉumtermoquesedesenvolveapartirdasreflexõesdeCrenshawprimordialmenteacercadosentrelaçamentosentresexoeraça(HIRATA,2014,p.64).
Poroutrolado,naóticadaconsubstancialidade,ofocoprimordialselocalizanospontosdeencontroentreasopressõesdesexoeclasse,propostanofinaldadécadade1970naFrançaporDanièleKergoat.Estavisãofazumacríticaàinterseccionalidadeesuapercepção“geométrica”daintersecçãoentreasopressões,argumentandoqueasposiçõessociaissãodinâmicas,estãoemconstantemudançaenuncasãofixas(KERGOAT,2010,apudHIRATA,2014,p.65-66).
Indomaisafundonestacrítica,Hirata(2014)demonstraaperspectivadeKergoatedaconsubstan-cialidadeemmaisalgunspontos,comooperigodacisãoefragmentaçãodaspráticassociaistendoemvistaaenormequantidadedepontosdeentrada,como
Capa| Sumário | 15
Sexualidade e gênero: controle e subversão
religião,raça,nação,entreoutros.Essafragmentação,ainda,levaaoriscodecontribuiràprópriaproduçãodessasmesmasviolências.
AcríticacentraldeKergoatàinterseccionalidade,portanto,residenofatodequeaperspectivainterseccional“nãopartedasrelaçõessociaisfundamentais(sexo,classe,raça)emtodasuacomplexidadeedinâmica”e,alémdisso,“aanáliseinterseccionalcolocaemjogo,emgeral,maisopargênero-raça,deixandoadimensãoclassesocialemumplanomenosvisível”(HIRATA,2014,p.65-66).
JánoentendimentodeJudithButler(2017),aquestãodaidentidadevinculadaaodebatefeministasurgenosanos1990comoumanovaformadecompreenderdeondedeve-separtirapróprialutafeminista.Paraaautora,aformaçãodacategoria“mulheres”comosujeitodofeminismoocorrediscursivamenteeétambémefeitodeuma“políticarepresentacional”,constituídapelomesmosistemapolíticoquedeverialevaràsuaemancipação.
Assim,Butlerargumentaqueomovimentofeministadevereconheceressaformação,afirmandoque:
acríticafeministatambémdevecompreendercomoacategoriadas‘mulheres’,osujeitodofeminismo,éproduzidaereprimidapelasmesmasestruturasdepoderporintermédiodasquaissebuscaaemancipação(BUTLER,2017,p.20).
Paraalémdesseproblema,aautoraaindaapontaparaaquestãodequeaconcentraçãodeidentidadesnumtermoúnico“mulheres”possaacabarsugerindoqueexistaalgumtipodeidentidadecomum,desconsiderandoosdiversoseheterogêneossujeitosqueexistemparaalémdessapretensaunidadedeumsujeitodofeminismo.
Capa| Sumário | 16
Sexualidade e gênero: controle e subversão
Dentrodessaperspectiva,éimportantenotarqueogênerohistoricamentenãoseconstituiudeformacongruenteecoesabemcomoétambématravessadopordiversasquestõesderaça,classe,sexoeregionalidades,que,porsuavez,tambémsãoconstituídasdiscur-sivamente.Assim,nãoépossívelsepararogênerodessesentrelaçamentosemqueeleéproduzidoetambémmantido(BUTLER,2017).
NaesteiradesteentendimentodeButler,umaoutraterminologiaparacompreenderessesentrela-çamentosentreasdiversas formasdeopressão foi forjadapeloprofessorRobertoEfremFilho(2017),quedenominaessasinterligaçõesdereciprocidades constitutivas.Paraoprofessor,quedesenvolveuestetermoemsuatesededoutorado,essasreciprocidadespodemserdefinidascomo“relaçõesdeclasse,gênero,sexualidadeeter-ritoriaisreciprocamenteconstituídas”(EFREMFILHO,2017,p.36-37)queproduzemumasàsoutrasetambémsãoproduzidaseaomesmotempoprodutorasdeviolências.
Opróprioautorpontuaqueesteconceitoéherdeirodasconcepçõesabordadasanteriormentedeinterseccionalidadeeconsubstancialidade,argumentandoque,dessasduasabordagens,asreciprocidadesconstitutivaseentrelaçamentosdentrodasrelaçõessociaiséoquesepodeapreenderdemelhor.Assim,coadunandocomopensamentotambémdeButler,compreendeoprofessorquetaisrelaçõesnãopodemsersomadasumasàsoutrasoualternadasnemmesmosubstituídas,poissãoconstituídaseseconstituememconjuntoumascomasoutras.
Portanto, tendo em vista essas diversas formas decompreendereperceberasidentidadeseseusentrecru-zamentos,bemcomoosprocessosdeopressãoqueperpassamaconstruçãodessasmesmasidentidades,podemosretornaraoquestionamentotrazidoporButlerdequeanoçãoestáticadegêneronãopodemaisserapremissadalutafeminista.Assim,Butler(2017)afirmaque:
Capa| Sumário | 17
Sexualidade e gênero: controle e subversão
aidentidadedosujeitofeministanãodeveserofundamentodapolíticafeminista,poisaformaçãodosujeitoocorrenointeriordeumcampodepodersistematicamenteencobertopelaafirmaçãodessefundamento(BUTLER,2017,p.25).
Adentrando,então,aesferadoreconhecimentodosujeito,Butler(2018)chamaatençãoparaaquestãodoenquadramentodentrodoqualosujeitoéconstituído,entendendoqueasmoldurasqueconstituemaformacomoapreendemos(ounãoapreendemos)asvidasdeoutroscomopassíveisdeluto,perdidasoulesadasestãopoliticamentesaturadasesãooperaçõesdepoderemsimesmas(BUTLER,2018,p.14).Assim,apercepçãodacondiçãoprecáriadavidahumanasedádentrodeoperaçõesdeapreensão,inteligibilidade,reconhecimentoeenquadramento.
Paraquesejapossível,então,umaampliaçãodereivindicaçõespolíticasesociaissobreproteçãoesobrevivência,énecessáriorepensaressaprecariedadeetodososprocessosdecorrentesdela,entendendo-acomoopontodepartidadalutasocialparapolíticasprogressistasnaesquerda,afimdesuperarascategoriasidentitáriascomocentrodessaluta(ibidem,p.16).
Paraisso,éimportantecompreendercomosedáoprocessodoreconhecimentodosujeito,partindodaideiadequeacapacidadedeapreenderounãoumavidaéalgoquedependedofatodessavidaserounãoproduzidaemconformidadecomasnormasqueaestabelecemcomopartedavida(ibidem).Nestesentido,Butlerapontaparaanecessidadededefiniroqueé,emsi,apreendere,porconseguinte,reconhecerumavida.
Osenquadramentosqueestabelecemessasvidascomopossíveisounãodeseremapreendidas,naperspectivadeButler,“nãosóorganizamaexperiênciavisualcomotambémgeramontologiasespecíficasdosujeito”(ibidem,p.17).Assim,énecessário
Capa| Sumário | 18
Sexualidade e gênero: controle e subversão
diferenciaroprocessodereconhecimentoeoprocessodeapreensãodeumavida,entendendocomoosdoissãoconstituídosedequeformaatuamnesseenquadramento.
Enquantooreconhecimentoéotermomaisconhecidoedisseminado,aapreensãosediferenciadestenamedidaemquetemumamenorprecisãoconceitual,podendosignificarumreconhecimentosem,noentanto,oplenoconhecimento.Nestesentido,aprópriaapreensãosedábaseadanasnormasdoreconhecimento,masnãoélimitadaporelas.Assim,épossívelapreenderalgoquenãoéreconhecido,oquefazcomqueaapreensãopossasetornarumabaseparaaprópriacríticadoreconhecimento(ibidem,p.18).
ParaButler,portanto,oimportantenessacompre-ensãoébuscarentendercomoasnormasdoreconhe-cimentoagemparatornaralgunssujeitos“reconhecíveis”eoutrosnão,argumentandoque:
Oproblemanãoéapenassabercomoincluirmaispessoasnasnormasexistentes,massimconsiderarcomoasnormasexistentesatribuemreconhecimentodeformadife-renciada(BUTLER,2018,p.20).
Aautoraaindasedebruçasobreoutradistinçãoentredoistermosqueestãopresentesnesseprocessodoreconhecimento,quaissejamaapreensão,anteriormenteapontadacomoumaformadeconhecerquenãochegaaserreconhecimento,eainteligibilidade,que,paraela,deveserentendidacomo“oesquema(ouesquemas)históricogeralqueestabeleceosdomíniosdocognoscível”(ibidem,p.21).Portanto,
Nemtodososatosdeconhecersãoatosdereconhecimento,emboranãosepossaafirmarocontrário:umavidatemqueserinteligívelcomoumavida,temdeseconformaracertasconcepções
Capa| Sumário | 19
Sexualidade e gênero: controle e subversão
doqueéavida,afimdesetornarreconhecível.Assim,damesmaformaqueasnormasdacondiçãodeserreconhecidopreparamocaminhoparaoreconhecimento,osesquemasdeinteligibilidadecondicionameproduzemessasnormas(BUTLER,2018,p.21).
Essesesquemasdeinteligibilidadeeasformasdeapreensãodavidaatuamdetalformaaproduziremnarrativasdevidaenarrativasdemorte,ondeasdiscussõesacercadoqueéounãovida(ouacercadeapartirdequalpontoavidacomeçaequandoelatermina)sãolocalizadas,ensejandonaconclusãodequenãohávidaoumortesemumenquadramentodeterminado.
Daídepreende-sequeépossívelconceberumavidacomo“viva”,deacordocomosesquemasdeinteligibilidade,sem,contudo,reconhecê-lacomoumavida.Portanto,Butlerafirmaque:
Umafiguravivaforadasnormasdavidanãosomentesetornaoproblemacomoqualanormatividadetemdelidar,maspareceseraquiloqueanormatividadeestáfadadaareproduzir:estávivo,masnãoéumavida(BUTLER,2018,p.22).
Napercepçãodacondiçãoprecáriaedaprecariedadedeumavida,énecessárionãosóapreenderestavidacomovida,mastambémperceberaprecariedadecomoumacaracterísticaapreendidatambémnestesujeitoqueestávivo.Nessesentido,reconheceraprecariedadedosujeito,paraButler,deveriaseropontodepartidadaslutasemproldaspolíticassociaisvoltadasparaessesprópriossujeitos“precários”ou“abjetos”(ibidem,p.30),localizadosàmargemdasociedade.
Noentanto,aautoraafirmaqueaprecariedadenãopodeseradequadamentereconhecidaemsi,sendopossívelapenas
Capa| Sumário | 20
Sexualidade e gênero: controle e subversão
serapreendida,entendidaepressupostapelasnormasdoreconhecimentoquetambémapodemrejeitar.Naconcepçãobutleriana,narealidadeaprecariedadedeveriaserreconhecidacomocondiçãocompartilhadaportodaahumanidade,tendoemvistaquetodavida(humanaenãohumana)éprecária.
Quandoafirma-sequeumavidapodeserlesadaouatémesmodestruída,afirma-setambémqueessavidaéprecária,eaprecariedadeacarretaviversocialmente,deformaqueavidadeumcertosujeitoestásempre,deumaformaoudeoutra,nasmãosdeumoutrosujeito.Nestesentido,pode-seconceberque,primariamente,todavidapodeserperdida(ibidem,p.31-32).
ParaButler,aprecariedadeeacondiçãoprecáriasãoconceitosqueseentrelaçam.Conformeaautora:
Acondiçãoprecáriadesignaacondiçãopoliticamenteinduzidaaqualcertaspopulaçõessofremcomredessociaiseeconômicasdeapoiodeficienteseficamexpostasdeformadiferenciadaàsviolações,violênciaseàmorte(2018,p.46).
Assim,pode-secompreenderquetodavidaésimprecária,comoafirmadoanteriormente,porémascondiçõesdeprecariedadevariamconformeoscontextossociais.
Nestesentido,Butler(2018)aindaargumentaquepopulaçõesquesãoexpostasàviolênciaarbitráriadoEstadotêmsuacondiçãodeprecariedademaximizada,apontandoqueessasmesmaspopulações,namaiorpartedoscasos,nãotêmaquemrecorreranãoseraopróprioEstadoparacoibiraviolênciaqueeleprópriopraticacontraelas.Assim,“elasrecorremaoEstadoembuscadeproteção,masoEstadoéprecisamenteaquilodoqueelasprecisamserprotegidas”(ibidem,p.47).
Capa| Sumário | 21
Sexualidade e gênero: controle e subversão
Poressarazão,Butlercompreendequeocaminhoparaareorientaçãodaesquerdaparasuperaras“antinomiasliberais”queatualmenteaconsomemévoltar-separaasformasilegítimasdeviolênciaper-petradaspeloEstado, pontuandoqueosenquadramentosatravésdosquaisaesquerdaépensadacontempo-raneamenteprecisamserredirecionadostendoemvistaessasformasdeviolênciaestatal(ibidem,p.49).
Tendoemvistaesseentendimento,Butlerargumentaemdireçãoaumamudançadeparadigmadentrodalutadaesquerda,indicandoqueoreco-nhecimentodaprecariedadecompartilhadapelahuma-nidadeapontapara“compromissosnormativosdeigualdadeeconvidaaumauniversalizaçãomaissólidadosdireitos”(ibidem,p.50)quesereferemàsnecessidadesbásicashumanas.
Todavia justamente por conta dessa precariedadecompartilhada,nosentidoanteriormenteabordadodequeumavida(queéprecária)sempreseencontrainevitavelmentenasmãosdeoutrossujeitos(quetambémtêmvidasprecárias),équeasrelaçõesdedominaçãoaparecem,poisessessujeitospercebem-secomoameaçadosunspelosoutros.Nestesentido:
Acondiçãocompartilhadadeprecariedadeconduznãoaoreconhecimentorecíproco,massimaumaexploraçãoespecíficadepopulações-alvo,devidasquenãosãoexatamentevidas,quesãoconsideradas‘destrutíveis’e‘nãopassíveisdeluto’(BUTLER,2018,p.53).
Portanto,comoessaspopulaçõesjásãoenquadradascomo“perdíveis”,nãoconstituemobjetodelutopelasociedadequandosãoefetivamenteperdidas.
Dentrodesseentendimentodevidasprecáriasedeprecariedadecompartilhada,apercepçãoprincipaldeButleréadoesgotamentodaspolíticasidentitáriascomopontodepartida
Capa| Sumário | 22
Sexualidade e gênero: controle e subversão
daslutastravadaspelaesquerda.Aautoracompreendequeofocodapolíticadaesquerdadeveresidir,primariamente,nacríticaàviolênciaestatal,tantonaguerraquantonasviolênciasdiáriaspraticadaspeloEstado,inclusiveaprópriaprivaçãoderecursosbásicosparaminimizaressaprecariedade.Alémdisso,pontuatambémqueessefoco.
[...]Deveriarecairmenosnaspolíticasidentitárias,ounostiposdeinteressesecrençasformuladoscombaseempretensõesidentitárias,emaisnaprecariedadeeemsuasdistribuiçõesdiferenciais,naexpectativadequepossamseformarnovascoligaçõescapazesdesuperarostiposdeimpassesliberaismencionadosanteriormente(BUTLER,2018,p.55).
Assim,paraButler,aprecariedadeéumaquestãoqueperpassatodasascategoriasidentitárias,devendoserabaseparaumapolíticadirecionadanaoposiçãoàviolênciaestataleàsformascomooEstadoproduz,exploraedesignaessascondiçõesprecárias(ibidem).Portanto,énecessáriotomaraquestãodaprecariedadecomopontodepartidaparacriaressasaliançaspolíticasdentrodaesquerda.
Dessa forma,pode-seperceberque,naperspectivabutleriana,ossujeitosquecompõemasmargensdasociedadedevemse apegarmenos às categorias identitárias (oquenãosignificadescartarouignoraressasidentidadesesuaspotencialidadesparaaluta)esevoltarparaessaprecariedadequeperpassatodosessessujeitosqueselocalizamnessamesmamargem,afetando-osdeformasdiferentesdeacordocomascondiçõesprecáriasdentrodasquaiscadaumseinsere,masreverberandoemtodoselesinevitavelmente.
Capa| Sumário | 23
Sexualidade e gênero: controle e subversão
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diantedoquefoiabordadoacima,épossíveldepreenderqueaspolíticasidentitáriassurgiramcomoumarejeiçãoàconcepçãoengessadadaesquerdasocialistaqueacreditavanocapitalismocomoorigemdetodasasopressõessociais.Talperspectivasedemonstraequivocadatendoemvistaacontinuidadedasopressõesdentroderegimespolíticossocialistas.
Porém,emborasurjacomessapretensão,aperspectivaidentitáriacaminhoudetalformaqueatingiuumesvaziamentopolíticodeseusignificadoeconsequenteapropriaçãodocapitaldasidentidades,fazendocomqueaesquerdaseperdessedentrodessesimpassesliberais.
Procurou-seaquientendercomoas identidadessãoconstituídasepercebidasemseusentrelaçamentosequalaformadesuperaresseesgotamentodessaspolíticasidentitáriasdentrodaesquerda.Paraisso,percebe-seaquiqueacompreensãodeButler(2018)danecessidadedamudançadeparadigma,dentrodalutadaesquerda,paraaprecariedadedavidahumanacomopontodepartidadalutaprogressistaécrucialparaconstruirumalutapolíticaqueexcedaoslimitesdoidentitarismo(sem,todavia,ignoraridentidadesesuaimportânciapolítica).
Umexemplodessamudançadeperspectivadentrodalutaprogressistaéofocoqueomovimentofeministalatino-americanovemdando,dentrodalutapelalegalizaçãodoaborto,àsmortesdemulheresporabortosilegaisrealizadosirregularmente.Ocentrodaquestãodeixadeseraautonomiadamulherparaescolherounãolevaremfrenteumagestação(emborasejaumpontotambémimportante,masnãoofoco)paraseradefesadavidadasmulheres,notadamenteasmulherespobresemajoritariamentenegras,vistoquemulherescujacondiçãofinanceiranãoésuficientementeabastada buscam clínicas clandestinas sem segurança ou
Capa| Sumário | 24
Sexualidade e gênero: controle e subversão
automedicaçãodemedicamentosabortivoseacabammorrendoemdecorrênciadeabortosmalexecutados.
Assim,nesseexemploépossívelperceberodeslocamentodoenfoquenaquestãomaispróximaàpolíticaidentitária-aautonomiadocorpodamulhereseupoderdedecisãosobresimesma-paraaquestãodaprecariedadedavidadessasmulheres,quesãoossujeitosabjetosquesofremaviolênciaestatalnamedidaemquesãopreteridaspeloEstadonesseprocesso,bemcomosãoasvidasquenãosãoenlutadasporteremsuasvidasnãoreconhecidascomovidaspassíveisdeluto.
Outroexemplo,ligeiramentediferente,masdentrodoqualtambémpodesertraçadaessalinhaderaciocíniodesenvolvidaporButler,éalutapelalegalizaçãodasdrogasnoBrasil.
Recentemente têm-se falado cadavezmenosnumalegalizaçãodasdrogasquetenhacomopontodepartidaalutapelaautonomiadocorpodousuáriodedrogas,quepodeedevedecidirqualsubstânciaconsumirparasuarecreação,ecadavezmaisnumalegalizaçãoquepartadofatodequejovensnegrosdeperiferiasãoosalvosdapolíticadedrogasatualnoBrasil.Assim,percebe-secomoapolíticadedrogasnoBrasiléumexemplodisso,tendoemvistaoEstadosairdeseupapeldeprotetordapopulaçãoeassumirumpapelativonumprocessodeextermíniodajuventudenegranopaís3.
Dessaforma,aspessoas,organizaçõesecoletivosquepautamalutapelalegalizaçãodasdrogastêmseorganizadotendocomopontodepartidaofracassodalegislaçãosobredrogasvigentenopaís,aqualfortaleceeperpetuaaviolênciaestatalparacomos
3 Sobreestetema,ver:Guerraàsdrogaseamanutençãodahierarquiaracial(FERRUGEM,2019);GenocídiodajuventudenegranoBrasil:asnovasformasdeguerra,raçaecolonialidadedopoder.(FLORES,2016);Mãosnacabeça!Dejoelhos!Genocídionegro,biopoder,necropolíticaeoEstadobrasileiro(FLORES,2018).
Capa| Sumário | 25
Sexualidade e gênero: controle e subversão
sujeitosqueocupamasmargensdasociedade.Parte-se,então,damargemedossujeitosabjetosatingidosporessapolítica,enãododiscursovagodeautonomiadoscorposparadecidirsobreusarounãodrogasdeformarecreativa.
É,portanto,aíquesepercebeaurgênciadessamudançadeperspectivadentrodalutapolíticadeesquerda,poisasquestõesidentitáriasporsisónãoconseguemabarcaraenormecomplexidadedeprocessospelosquaissãoformadasasopressõessociais,chegando,assim,aumesgotamentopolíticodoalcanceestratégicodessaspolíticasidentitárias.
REFERÊNCIAS
BUTLER,Judith.Problemas de gênero:feminismoesubversãodaidentidade.15.ed.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,2017.BUTLER,Judith.Quadros de guerra:quandoavidaépassíveldeluto?5.ed.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,2018.EFREMFILHO,Roberto.MATA-MATA:reciprocidadesconstitutivasentreclasse,gênero,sexualidadeeterritório.2017.248f.Tese(DoutoradoemCiênciasSociais)–UniversidadeEstadualdeCampinas,InstitutodeFilosofiaeCiênciasHumanas,Campinas,SP.Disponívelem:http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/322704.Acessoem:12dez.2019.FERRUGEM,Daniela.Guerra às drogas e a manutenção da hierarquia racial.BeloHorizonte:EditoraLetramento,2019.FLORES,Tarsila.GenocídiodajuventudenegranoBrasil:asnovasformasdeguerra,raçaecolonialidadedopoder.In:MACEDO,Aldenora;LAPA,RaphaelSantos;LIRA,LuanaMenezes;FLORES,Tarsila(Orgs.).Direitos Humanos–DiversasAbordagens.RiodeJaneiro:CâmaraBrasileiradeJovensEscritores,2016.
Capa| Sumário | 26
Sexualidade e gênero: controle e subversão
FLORES,Tarsila.Mãosnacabeça!Dejoelhos!Genocídionegro,biopoder,necropolíticaeoEstadobrasileiro.In:DASILVA,AltinaAbadia;KUNZ,SidelmarAlvesdaSilva(Orgs).Direitos humanos e educação.Culturatrix:Uberlândia,2018(Ebook).HAIDER,Asad.Armadilha da identidade:raçaeclassenosdiasdehoje.SãoPaulo:Veneta,2019.HIRATA,Helena.Gênero,classeeraça:interseccionalidadeeconsubstancialidadedasrelaçõessociais.Tempo social:revistadesociologiadaUSP,SãoPaulo,v.26,n.1,p.61-73,jun.2014.MORAIS,LaysB.Vieira.As aporias do lugar de fala: como a políticaidentitáriaafetouaesquerda.2018.226f.Dissertação(MestradoemCiênciaPolítica)–UniversidadeFederaldeGoiás,Goiânia,2018.
Capa| Sumário | 27
FEMINICÍDIOS: GENERIFICAÇÃO DA POLÍTICA E POLITIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA
Emylli Tavares do Nascimento4
1 INTRODUÇÃO
Opresenteartigotemcomoobjetivoprincipalproblematizaranoçãodequeofenômenodosfeminicídios5podesercompreendidocomoumtipodeviolênciaquedecorreexclusivamentedasrelaçõesde gênero.
Inicialmente,pretendemosevidenciarcomoafundamentaçãodos feminicídios como“assassinatosdemulheresporseremmulheres”oupor“condiçãodegênerofeminino”–expressõesrecorrentesnaslegislaçõesepolíticasestatais–éconsubstanciadapeloparadigmadopatriarcado,enquantosistemaqueproduzumaopressãouniversal.Talfundamentação,emboratenharesultadoemganhospolíticosparaas“lutas”feministas,costumadesconsideraruma
4 MestrandapeloProgramadePósGraduaçãoemCiênciasJurídicasdaUniversidadeFederaldaParaíba(PPGCJ-UFPB).EspecialistaemDireitoPúblicopelaPUC-Minas.GraduadaemCiênciasJurídicaspelaUniversidadeFederaldaParaíba(UFPB).IntegrantedoGrupodeRelaçõesAfetivaseViolência(GRAV-UFPB).E-mail:[email protected].
5 Algumasconvençõesgráficasmarcamotexto,demodoqueestãoemitálico:ascategorias“sobsuspeita”comofeminicídios,exatamenteporqueconsistememchavesdeinteligibilidade;aspalavrasgrafadasemlínguaestrangeiraeasobrasdeautoras/esquesãocitadas.Porsuavez,estãoentreaspas:asexpressõesêmicas,como“ódioàsmulheres”eascategoriasteóricasutilizadasquesãodeorigemdeoutras/osautoras/es.
Capa| Sumário | 28
Sexualidade e gênero: controle e subversão
articulaçãomaisaprofundadadogênerocomoutrascategoriassociaisnaproduçãodasviolências.Parapromoveressaabordagem,realizaremosumarevisãobibliográficaqueperpassaosestudosdeWâniaPasinato,GayleRubin,RobertoEfremFilhoeJudithButler,dentreoutras/osautoras/es.
Emseguida,prosseguiremosnossapesquisaapartirdascontribuiçõesdeAdrianaViannaeLauraLowenkron,JoanW.Scott,MelissaW.Wright,AchilleMbembeetc.,parapensarafeituramútuadogêneroedossentidosepráticasdeEstadonosentremeiosdeuma“necropolítica”queproduzviolênciasdiversas.Nessesentido,apolíticadamorteéassinaladanoscorposdossujeitos,elesmesmossaturadosporrelaçõesreciprocamenteconstituídasporgênero,classe,raça,sexualidadeeterritório.
Aofinaldoartigo,esperamoselucidarquenoçõescomo“discriminaçãodegênero”ou“ódioàsmulheres”(dentretantasoutras)servemparagarantirainteligibilidadedosfeminicídios, sobretudo,diantedeesferasestatais.Todavia,asrelaçõessociaisqueoportunizamasviolênciassãomuitomaiscomplexaseguardamíntimarelaçãocomoutrascategoriassociaisecomasdinâmicaspolítico-econômicasdecadaterritório.
2 PRIMEIROS DEBATES E O PARADIGMA DO PATRIARCADO NAS POLÍTICAS DE GÊNERO
Otermofemicide foiinseridonaliteraturamundialpelasociólogaefeministaDianaRussell,paradesignarosassassinatosdemulheresqueocorrememrazãodeasvítimasseremmulheres.Posteriormente,naobraFemicide: the politics of woman killing (1992),oconceitofoirefinadopelaautoracomacolaboraçãodeJaneCaputiepassouareferenciaropontomáximodeum“continuum de terrorantifeminino”,considerandoqueasexperiênciasdevidadas
Capa| Sumário | 29
Sexualidade e gênero: controle e subversão
mulheressãopermeadasporviolênciaseviolaçõesoportunizadasporumsistemapatriarcaldedominação.
Osabusosverbaisoufísicos,estupros,prostituição,mutilaçãogenital,proibiçãoaoaborto,heterossexualidadecompulsóriaouquaisquer“outrasformasdeterrorismo”queresultememmorte,nostermosdasautoras,devemsercompreendidascomofemicide, poisseenquadramnumaeconomiasimbólicapatriarcal,definidapeloódioediscriminaçãoaogênerofeminino(RUSSELLeCAPUTI,1992,p.15).
Noentanto,foramnospaísesdaAméricaLatinaqueofemicide ou femicídioganhounotoriedade,principalmente,apartirdocontextodedesaparecimentos,estuproseassassinatosdemulheresemCiudadJuárez,noMéxico.OterritórioemquestãofazfronteiracomosEstadosUnidosdaAméricae,segundoosrelatosdeWâniaPasinato(2011),passoupormudançaseconômicasepolíticasemrazãodoassentamentodeindústriasdetransformaçãodebensnadécadade1970,asquaisalteraramosarranjosdegênerodaregiãoaodarpreferênciaàmãodeobrabaratafeminina.Asmortestiveraminícionosanosde1990,quandoaquelazonageográficajáhaviaseconsolidadocomopalcoparaatividadesrelacionadasaomercadodedrogasilícitas,contrabando,tráficodearmasedepessoas.
O modus operandi específicodosassassinatosdasmulheres,sobretudodeoperáriaspobresemigrantes,assinalavarituaisdeterrorcomelevadoníveldetorturaedesprezoaoscorposfemininos.Comopassardosanos,eaausênciaderespostasouapresentaçãodeculpadosplausíveisporpartedogoverno,várias/osacadêmicas/oseorganizaçõesdasociedadecivilpassaramaelaboraratesedequeosassassinatosdemulheresocorriamnosentremeiosdasdisputasporpoderdegruposlocais,comoenvolvimentodiretoouindiretodeagentesdeEstado.
Capa| Sumário | 30
Sexualidade e gênero: controle e subversão
Paragarantirinteligibilidadeàquelecenáriodecrueldade,aantropólogafeministaedeputadafederalmexicana,MarcelaLagarde, cunhouo termo feminicídio, paraassinalar “[...]oconjuntodedelitosdelesahumanidadequecontémoscrimeseosdesaparecimentosdemulheres”(LAGARDEapudPASINATO,2011,p.232).Suaintençãoeradestacarocontextodeimpunidadepelaomissãoenegligênciaestatalempreveniroscrimes,comotambémeminvestigar,processarecondenarosculpados.Paraela,ofeminicídiotorna-secrimedeEstadoquandoestenaturalizaaviolênciadegêneroefalhaemsuamissãodecriarcondiçõesegarantiasparaqueasmulheresvivamemsegurança.
Talperspectivaganhoucorporeidadenaslegislaçõesnacionaisdepaíseslatino-americanosecaribenhosqueincorporaramafigurado feminicídio,adespeitodeasmortesviolentaseintencionaisdemulherespossuíremmotivaçõesdistintaseserempraticadasporagentesdiferentes,adependerdascircunstânciashistóricasepolítico-econômicasdecadalocalidade.Porexemplo,alegislaçãobrasileira sobre feminicídio (Leinº13.104/2015)servecomoqualificadoradocrimedehomicídioquandoesteérealizado“contraamulherporrazõesdacondiçãodesexofeminino”,envolvendoviolênciadomésticaefamiliare/oumenosprezooudiscriminaçãoàcondiçãodemulher(art.121,VI,§2º-A,doCódigoPenalde1940).
Evidentemente,alegislaçãoacimafoiadaptadaparadarcontadeumcenáriodeconjugalidade,queconstituia“violênciadomésticaefamiliar”eparececircunscreveramaterializaçãodamaiorpartedosassassinatosdemulheresbrasileiras.Comefeito,àépocadapromulgaçãodalei,oMapa da Violênciade2015apontavaqueem33,2%dasmortesviolentasdemulheresosresponsáveispeloscrimesforamosparceirosouex-parceirosdasvítimas.Alémdisso,oAtlas da Violênciade2019indicaque39,2%doshomicídiosfemininosocorremnaresidênciadavítima,demonstrandoumaaltaprobabilidadedecorresponderemaosfeminicídios íntimos.
Capa| Sumário | 31
Sexualidade e gênero: controle e subversão
Amaiorpartedas/osativistasdeDireitosHumanos,feministas e teóricas/os progressistas de gênero optou,estrategicamente,porconsolidarumanoçãoampladequeosfeminicídiossãoassassinatosdecorrentesdadiscriminaçãodegênero,comaconivênciadeagentesdeEstadoquenegligenciamaspolíticasdeprevençãoeenfrentamentoàviolênciacontraamulher.Sendoassim,adelimitaçãoteórico-jurídicadosfeminicídios foipromovidanosentidodediferenciá-losdos“crimescomuns”.
ConformenosrelataWâniaPasinato,continuamsendotrêsaspreocupaçõescentrais:1)osfeminicídios precisamsedistanciardosdiscursosrelacionadosaos“crimespassionais”,poisessecaminhoargumentativoafastaaintencionalidadedoagenteepossibilitapenasmaisbrandas;2)osfeminicídios sediferenciamdasmortesresultantesdacriminalidadeurbana,nasquaisasvítimasestãoimplicadasnaatuaçãodegangues,quadrilhas,facçõesemáfias(cenáriosemqueosprocessoscostumamserarquivados)equetêmcrescidoempaísescomoElSalvador,HonduraseGuatemala;e3)osfeminicídios nãosãoherançadostemposemquepaísescomoNicarágua,GuatemalaeElSalvadorexperienciaramconflitosinternosarmados(PASINATO,2011,p.235).
Preocupaçõescomoasdescritasacimasãoacompanhadasdanecessidadedereafirmarpolíticaeanaliticamentequeasmortesdemulheressãoresultantesdeumaopressãodegêneroquetemapotencialidadedeatingiratodas,indistintamente.Essetipodeexplicaçãounívocaétributáriadoparadigmadopatriarcadouniversalereiteraosdiscursossobrea(inescapável)dominaçãomasculinasobreoscorposdasmulheres.
RecordandoosdebatesefetuadosporGayleRubin(1993)naobra O Tráfico de Mulheres: notas sobre a “Economia Política” do Sexo, vemosqueaformulaçãoteóricadopatriarcadoacabadesignandoemumúnicotermotantoacapacidadehumanaparaconstruirumsistemasocietáriocombasenas“diferençassexuais”,quantoàs
Capa| Sumário | 32
Sexualidade e gênero: controle e subversão
formasempíricasde“opressãosexual”emqueessassociedadessãoorganizadas.Alémdisso,Rubinapontaqueousodo“patriarcado”paracaracterizarasrelaçõesdequalquersociedade,demodoinvariável,fazcomqueotermopercasuaforçaanalítica.Segundoela,o“patriarcado”éumaformadedominaçãomasculinaespecífica,quedeveterseuusorestritoparatratarsobreascomunidadessimilaresasdoVelhoTestamento,deondeotermoseoriginou(RUBIN,1993,p.6).
Ouso do patriarcado em condições a-históricas einflexíveissinalizaqueenquantohouverrelaçõesdegênerohaveráopressãodegênero,bemcomoqueadominaçãomasculinaéinevitável,nãoambíguaeinvariávelporquedecorrentedeumsistemaestruturaldeopressão.Assim,“opatriarcado”torna-seimprecisoeinadequadoparademonstrarqueemboraacategoriadegêneropossuaautonomamenteregraspróprias,elaatuanasrelaçõessociaisdeformaintimamenterelacionadaàsoutrascategoriassociaiscomoraça,classe,sexualidadeetc.;alémdeestarestreitamenteligadaàinstauração,manutençãoeatualizaçãodesistemaspolítico-econômicos.
Estendendoessacríticaàsmortesviolentasdemulheresque,emteoria,seriamocasionadasexclusivamentepeladiscriminaçãofundamentadanogênero,percebemosaoperaçãodeapagamentodediversascircunstânciasqueconformamasubjetividadedossujeitossociais,circunscrevemsuasexperiênciasdevidae,nofim,possibilitamsuasmortes.Considerarapenasogênerocomoaspectofundamentalparaaviabilizaçãodaviolênciacontraasmulheresimplicariaafirmarqueexisteumaessênciatranscendentequereuniriasignificadoparaaexperiênciado“sermulher”,pormeiodeumaopressãouniversalqueatingiriaatodasdamesmaformaecomamesmapotencialidade.
Ocorrequeofenômenodofeminicídio nuncapoderáserapreendidoemtodasuacomplexidadesecontinuarsendoanalisado
Capa| Sumário | 33
Sexualidade e gênero: controle e subversão
demaneiradesentranhadaaosconflitossociaisquepossibilitamessetipodeviolênciaequecaracterizamossujeitos–vítimaseagressores–neleenvolvidos6.Éprecisoconsiderarogêneroemmeioàarticulaçãodeoutrascategoriassociaiscomosexualidade,raça,classe,territórioetc.,paraexplicardemodosatisfatórioascircunstânciasquelevamàsmortesdemulheres.Issoporque,comonosexplicaAnneMcClintock,emsuaobraCouro Imperial, as categoriassociaisnãoexistemdemodoisolado,pelocontrário:“[...]cadaumaexistenumarelaçãosocialcomoutrascategorias,aindaquedemodosdesiguaisecontraditórios”(2010,p.27).
SeguindoaspistasdeMcClintock,RobertoEfremFilho(2017)desenvolveuoconceitode“reciprocidadesconstitutivas”,paratratardomodocomoessascategoriassociaissãoconstituídasinternaeumbilicalmente,umaatravésdasoutras,aolongodasrelaçõesdepoderqueproduzemepermeiamasexperiênciasconcretasdasvidasdossujeitos.Essetipodeanáliselhepermiteumamelhorcompreensãosobreacomplexidadedastramassociaisqueoportunizamosatosdeviolênciaemsi,comotambémsobreasdisputasdepoderqueocorrememtornodalegitimidadedasvítimas.Taisdisputasganhammaterialidadepormeiodamobilizaçãodenarrativasemveículosmidiáticos,relatóriosoficiaiseprocessosjudiciais,quebuscamapresentara“verdade”sobreasmortesesobreasvidasdossujeitosenvolvidosnoatodaviolência.Segundooautor,gênero,raça,sexualidade,classe(etantasoutrascategoriasemsuasrelaçõesrecíprocas)perfazemessasdisputasdenarrativasemtornodareivindicaçãodaviolênciaedalegitimaçãodavítimae,adependerdasrelaçõesdepoder,tornam(im)possível
6 EsteargumentofoiprimeiramentedesenvolvidonoTrabalhodeConclusãodeCursodaautora,intitulado:“GêneroeSexualidadenaConstruçãoNarrativadoFeminicídioÍntimo:percepçõesdosjuízesleigosdosTribunaisdoJúrideJoãoPessoa(2015–2017)”(2018).
Capa| Sumário | 34
Sexualidade e gênero: controle e subversão
oreconhecimentodaquelacomouma“vidapassíveldeluto”,novocabuláriodeJudithButler(2017).
OrepertórioteóricodeButlernosauxiliaaperceberqueoqueapreendemoscomoumcorpoquedeveserpreservado,comoumavidaquedeveserprotegidacontraaviolência,nãoéumaobviedade.Narealidade,afilósofanosindicaqueumavidasópodeserreconhecidacomotal–noaspectomaisprofundodotermo–quandoé,desdesempre,dignadeenlutamento.Emsuaspalavras,“[...]apossibilidadedeserenlutadaéumpressupostoparatodavidaqueimporta”(BUTLER,2017,p.33).Nãoobstante,asoperaçõesepistemológicasparaoreconhecimentodeumavidaqueimportaestãoemolduradasporrelaçõesdepoder,forjadaspelosconflitossociaisepornormasdegênero,sexualidade,raça,classeetc.
Nestaperspectiva,explicarosfeminicídios, exclusivamente,emrazãoda“condiçãodemulher”oudas“relaçõesdegênero”interessamaiscomoumaatuaçãoestratégicademovimentosfeministaseorganizaçõesdemulheres,quandodareivindicaçãopolíticasobrea inadmissibilidadedessasmortes.Comesseintuito,atospúblicos,denúnciasnasmídiasediversosdiscursossãomanejadosparagarantiracompressãodoquecaracterizaosfeminicídios. Ainteligibilidadedessetipodeviolênciaéforjadaapartirdoresgatenarrativodeumcontinuumdeagressõesanterioresàmorte;doacionamentode“imagensdebrutalização”doscorposdasmulherescomoresultadodo“machismo”;dosocorrodiscursivoaoincontávelnúmerodebalasoufacadasemseios,vaginasenasfacesdasvítimas,quesópoderiamserexplicadaspelo“menosprezo”epela“repulsa”aogênerofeminino.
ChegoaessapercepçãopelotextoCorpos Brutalizados: conflitos e materializações nas mortes de LGBT,noqualRobertoEfremFilho(2016)fazessemesmomovimentoanalíticoparapensaraatuaçãoda“homofobia”comouma“chavedeinteligibilidade”paraacaracterizaçãodaviolêncianoscorposLGBTcomo“crimesde
Capa| Sumário | 35
Sexualidade e gênero: controle e subversão
ódio”.Oautoralegaqueoódioeahomofobia,porsisós,nãosãosuficientesparaexplicarasmortes,nemparaexplicarasnumerosaspedradas,facadaseoutrasbrutalidadesàsquaisossujeitosLGBTsãosubmetidosnomomentoextremodaviolêncialetal.Contudo,achave da homofobiatraçaocaminhodainteligibilidadeaovincularasviolênciasàsquestõesdasexualidade(EFREMFILHO,2016,p.329).
Analogamente, o feminicídio serve como chave de inteligibilidadeempregadanosdiscursosfeministasparaanunciarqueasmortesdemulheressãoocasionadaspelo“ódioemenosprezoaogênerofeminino”,pela“dominaçãomasculina”quepermiteaoshomensenxergá-lascomo“propriedade”edemandar-lhesuma“submissãofeminina”,quequandoédesobedecidaculminaemviolêncialetal.
Essetipodenarrativaéprópriodasreivindicaçõespor“direitos”edas“lutasporjustiça”,mobilizadasfrenteàsesferasestatais.Essesespaçosoperamsegundoumalinguagemjurídicaquedesempenhaafunçãonormativaderepresentação,ouseja,produzemeregulamossujeitosnosentremeiosdasdisputaserelaçõesdepoder–medianteleis,normas,práticaseinstituições–e“após”alegamapenasrepresentaroqueproduziram,comanoçãode“sujeitodedireito”perantealei(FOUCAULTapudBUTLER,2014,p.53-54).Porissomesmo,asrelaçõesdepoderdegênero,sexualidade,classe,racializaçãoetc.(queconstituemossujeitosealimentamosconflitossociais)precisamserdesfocadas,demodoaseenquadrarememlógicasbináriassimplificadorasqueservemànoçãoderepresentaçãocaracterísticadalinguagemjurídica.
Trazendoessasprovocaçõesparaaanálisedoqueéreivindicado como feminicídio, éinteressanteperceberqueanoçãodeque“asmulheresmorremporquesãomulheres”,ouporquesofremcomuma“opressãodegênero”estruturadaporum“sistemapatriarcal”,atuaparaasimplificaçãodascircunstâncias,motivosecontextosdiversosquelevamàsmortes,vistoqueafinalidade
Capa| Sumário | 36
Sexualidade e gênero: controle e subversão
dapráticapolíticaéencaminharsoluçõeslegislativasemedidasgovernamentaisparatratarsobreaviolênciacontraasmulheres.Essasimplificaçãoénecessáriaparaqueasmortesseenquadrememesquemasdeinteligibilidade,emqueavítimadesempenhaseupapeldepassividade,oréuéovioladordopactosocialeoprocessojudicialsegueseupercursológicorumoàpunibilidade.Obedecem-seaosnexosdecausalidadeprópriosàlinguagemjurídicaeconvalidam-sesentidosdeEstado,noentanto,poucoseavançanosestudosteóricossobreofenômenodaviolênciadosfeminicídios.
3 ARTICULANDO CATEGORIAS: GÊNERO, VIOLÊNCIA E NECROPOLÍTICA
Buscandocomplexificaraanálisedosfeminicídios,tomamoscomoprimeiropassoinvestigativoacompreensãodas“dinâmicasmutuamenteprodutivas”degêneroedeEstado.EssemovimentometodológicoéfeitoporAdrianaViannaeLauraLowenkronnoestudosobreO duplo fazer do gênero e do Estado: interconexões, materialidades e linguagens(2017).
Trata-sedeapreendercomoaproduçãodenormaseasperformatividadesdegênerosãofundamentaisparaosprocessossociaisquematerializamopróprioEstadoeviabilizamasregulaçõessociais,e,reciprocamente,comooqueentendemosporgênerotorna-seinteligívelmedianteaspráticasesentidosdeEstado.Logo,gêneroeEstadonãoestãoposicionadosdemodoexternoumaooutro–comoumadimensãoouumaesfera–,elessãoconstituídosdemodointrínsecoeestãoindissociavelmentecosturados.FazeresseexercícioanalíticoédeslocaralinguagemrepresentacionaledarlugaraoaspectomutuamenteprodutivodegêneroedeEstadonointeriordasrelaçõessociais.
Capa| Sumário | 37
Sexualidade e gênero: controle e subversão
EntendimentomuitosemelhantefoiapresentadoporJoanW.Scott,jáem1988,noensaioO gênero: uma categoria útil para a análise histórica, noqualaautoracriticaanoçãodequea“históriadasmulheres”devesercontadaapartadadahistóriapolíticaeeconômica.ScottrecordaquequandoosestudosdegênerocomeçaramaapontarnaacademianoséculoXX,muitoshistoriadoresatéconcordavamemfazeruma“análisedegênero”,desdequeissosignificassetratarsobreasexperiênciasligadasaosexo,àfamília,aocasamentoetc.Emcontrapartida,ahistoriadoraafirmaqueasrelaçõesdepoderqueproduzemoqueseentendepor“história”sãodesdesempregenerificadas,demaneiraqueéimpossívelpensarelementoscomoaguerra,adiplomaciaeaaltapolítica(processosdeEstado)semconsiderarsuaconstituiçãoporsímbolosesentidosdegênero.Paraela,asformasdeparentesco,omercadodetrabalho,aeducaçãoeoregimegovernamental,namedidaemqueconstroemasdinâmicasdaorganizaçãoeconômicaepolíticatambématuamnaconstituiçãodogênero(SCOTT,2008,p.53-54).
EssetipodeanáliseoperadaporViannaeLowenkron,etambémporScott,coadunacomacompreensãodequeacategoriadogênero–demodoisolado–nãoésuficienteparaexplicarascircunstânciasemotivaçõesdosfeminicídios. Comefeito,essasmortesganhamespecificidadesapartirdascondiçõeshistóricasepolítico-econômicasdecadaterritórioeestãoimbricadascomafeituraderepresentaçõesepolíticasdeEstado(emutuamente,degênero).
Seguindoessepontodevista,MelissaW.Wrighttratasobreasrelaçõesentregênero,violênciaepolíticanosfeminicídios e nos assassinatosligadosaomercadodedrogasilícitasocorridosemCiudadJuárez–México.EmNecropolitics, Narcopolitics, and Femicide: Gendered Violence on the Mexico – U. S. Border(2011),Wrighttemcomoobjetivoinvestigarosdiscursosmobilizadosporempresários,
Capa| Sumário | 38
Sexualidade e gênero: controle e subversão
agentesestatais,ativistasdeDireitosHumanoseONGsfeministasemtornodaescaladadeviolêncianoterritóriomexicano,analisandoasdisputasdepoderacercadossignificadosatribuídosàsmortes.
Aautoranotacomoaselitescorporativistasegovernamentaispropagamnoçõesdequeasmulherespassíveisdeseremvitimadaspelosfeminicídios sãoaquelas“mulherespúblicas”,queocupamoespaçopúblico,emumtipodediscursonoqualacaracterizaçãodasvítimasdeslizadafigurade“trabalhadoras”nasindústriaspara“prostitutas”derua.Noutrostermos,osagentesdeesferasestataiseempresariaistransferemaculpabilizaçãodosfeminicídios paraasprópriasvítimas,pornãodesempenharemasperformatividadesdesignadasaogênerofemininoderecatodomésticoesexual.Quantoàsmortesmasculinasenquadradasnosesquemasde“guerradonarcotráfico”ou“violênciadasdrogas”,aquelesmesmossujeitosrecorremàpolíticadegêneroparaargumentarqueos“criminosos”estãomatandoentresi,emrazãodasdisputasporterritórioeporconsumidores.Osagentesestataiseempresariaisgarantemquenãosetratamdepessoasdescontroladas,portandoarmasparamatardeformaaleatória,pelocontrário,osassassinatosguardamumaracionalidadeinerenteaos“homensdenegócios”.Novamente,napolíticadegênerodesenvolvidaporrepresentantesdeEstado,aculpabilidaderecaisobreasvítimas.
AanálisedeWrightganharelevâncianamedidaemqueospontosdeconexãoentrepolítica,economianeoliberal,gêneroeafeituradaviolênciasãoressaltados.Afinal,osprincipaisalvosdaviolênciaassociadaao“narcotráfico”sãooshomenstrabalhadorespobresdacidadeeosdosfeminicídios sãoasmulherestrabalhadoraspobresemigrantes,cujostrabalhosprodutivosasseguraramaposiçãodeCiudadJuáreznocenáriodaindustrializaçãoglobalepossibilitaram,nadécadade1990,oAcordodeLivreComérciodaAméricadoNorte(NAFTA)eocrescimentoeconômicodaregião
Capa| Sumário | 39
Sexualidade e gênero: controle e subversão
comoprocessamentodemercadorias(lícitasounão)eexportaçõesaolongodafronteira.
MelissaWrightobserva,sobretudo,queasnarrativasdeEstadoedosgruposeconômicossãoindicadorasdeuma“necropolítica”,aodefinirquempodeviverequemdevemorrer.FazendousodaferramentateóricacunhadapelohistoriadorefilósofocamaronêsAchilleMbembe,elasalientaqueosdiscursossobreasmortessãogenerificados,oscorpossãoterritorialmentesexualizadosedefinidospoliticamentecomodescartáveis,umavezqueasviolênciasdesempenhamafunçãode“limpeza”socialdaquelessujeitosconsideradosindesejáveis.
NoensaiointituladoNecropolítica,AchilleMbembeevidenciacomoafeituradapolíticanamodernidadeéconstituídaporexperiênciasdedestruiçãohumana,emque“inimigosficcionais”sãosuscitadosparalegitimarviolênciasejustificarregimesdeemergênciacontraum“terror”estabelecido.Nessecontexto,apolíticaatuaparaconcretizarotrabalhodamorte,considerandovidashumanascomodescartáveisesupérfluas,easoberaniapassaasercaracterizadaporumelementofundamental,qualseja:“[...]acapacidadededitarquempodeviverequemdevemorrer”(MBEMBE,2018,p.5).
Aproximando-sedasformulaçõesdeMichelFoucaultsobre“biopoder”,Mbembeassinalaqueparadefinirquemdeveviverequemdevemorreréprecisopromoverumacesuraentregruposhumanos,demaneiraataxarasvidasqueimportameasquenão.Talcesuraéindispensávelparaadistribuiçãodamorteeseenquadracomoracismo,nostermosdeFoucault,enquantotecnologiaquepermiteoexercíciodo“biopoder”.
Oautorcamaronêsreforçaqueasdiscriminaçõesbaseadasnaraçacontinuamsendoumelementocrucialparaoexercíciodasoberanianaatualidade(aexemplodeseusestudossobreaocupaçãocolonialtardo-modernanoApartheid daÁfricadoSul).
Capa| Sumário | 40
Sexualidade e gênero: controle e subversão
Todavia,diferentementedeFoucault,eleafirmaqueapolíticacontemporâneaestámaisconcentradanaproduçãodamorte,medianteformasdemassacreeaniquilamento,doquecomaregulaçãocalculadadavida.Mbembeapontaqueosconceitosde“biopoder”e“biopolítica”deMichelFoucaultsãoinsuficientesparalidarcomosconflitosdenossaépoca,porissoadicionaasnoçõesde“necropoder”e“necropolítica”.Paraele,aindaqueopoderdependadeumcontroledecorpospormeiodadisciplina,davigilânciaedopoliciamento,comoformadegestaredocilizarossujeitos,asnovastecnologiasdedestruiçãoestãomaispreocupadaseminscreveroscorposnuma“ordemdeeconomiamáxima”representadapelomassacreoupeloextermínio(MBEMBE,2018,p.59).
AselucidaçõesdeMbembesobrea“necropolítica”estãointimamenterelacionadasàsmovimentaçõesdocapitalglobaleàfalênciadaspolíticasneoliberais.Apartirdisso,podemosinferirqueasatualizaçõesdomododeproduçãocapitalistanacontemporaneidadedemandamqueoexercíciodopodersoberanoconcedaprimaziaàmorte,emdetrimentodavida,comoformadegestãodepopulaçõeseterritórios.Taladministraçãodamorteédesenvolvidamediantemecanismosracistasedesumanizadores.
Essasconsideraçõesratificamoentendimentodequeafeituradaviolêncianãopodeserdissociadadasdinâmicaspolítico-econômicasqueconformamterritóriosespecíficos,aomesmotempoemquedenunciamoencadeamentoconstitutivodasrelaçõesdegênero,sexualidade,classe,raçaetc.namaterializaçãodosconflitossociais.
A aplicação dessas noções ao cenário brasileiro éextremamenteoportunaparaproblematizarmosaexistênciadeumadesigualdaderacialnadistribuiçãodaviolêncialetaledosprocessosdecriminalização.Comefeito,asmulheresnegras(pretasepardas)sãoasprincipaisvítimasdehomicídiosnoBrasil, com elevados índicesdevitimizaçãonegraquandocomparadosàsmortesde
Capa| Sumário | 41
Sexualidade e gênero: controle e subversão
mulheres brancas7,comotambémfiguramcomoalvopreferencialdeuma“necropolítica”voltadaparaoencarceramentoemmassa,pormeiodeumacriminalizaçãodasatividadesrelacionadasaomercadodedrogasilícitas.
Nessesentido,oAtlas da Violência 2019 apontaqueaproporçãodemulheresnegrasentreasvítimasdeviolêncialetalcorrespondea66%detodasasmulheresassassinadasnoBrasilnoanode2017,sendoosEstadosdoRioGrandedoNorte(11,4/100milhab.),Ceará(9,9/100milhab.)eRoraima(9,5/100milhab.),emordemdecrescente,aquelescommaioresíndicesdemortesdemulheresnegras(2019,p.38-46)8.Nãoporacaso,oestadopotiguareoestadocearenseestãonarotadeescoamentodemercadorias,armasdefogoedrogasilícitas,queadentramnoterritóriobrasileiropeloAcreeseguemdestinorumoaoNordesteparadistribuiçãolocaleparaexportaçãointernacional9,ematividadesoperadaspelasmaisconhecidas“facçõescriminosas”dopaís(eseusaliadosregionais):oPrimeiroComandodaCapital(PCC)eoComandoVermelho(CV)(AtlasdaViolência,2019,p.7-11).
Tambémnãocoincidentemente,noperíodode2007a2017,cresceramastaxasdehomicídiosdemulherescometidoscomarmasdefogo,tantoaquelesrealizadosnoexterior(17,5%)quanto
7 NoBrasil,astaxasdevitimizaçãodemulheresnegrascresceramem60,5%eastaxasdemulheresnão-negrasaumentaram1,7%,duranteodecêniode2007-2017(CERQUEIRA,2019,p.38).
8 Emumrankinggeralquecontabilizaasmortesdemulheresnegrasenão-negrasnoBrasil,temososseguintesestados:1º)Roraima;2º)RioGrandedoNorte;3ºAcre;4ºCearáe5ºGoiás(CERQUEIRA,2019,p.38).
9 EstarotaseinicianoPeruevaiparaoAcre,paraentãochegaraoNordeste.Arotanordestinafoicriadaemmeadosdosanos2000,quandoaproduçãodecocaínanaColômbiahaviaenfraquecidoeprejudicadoarotasul/sudeste,quetemcomoportadeentradaosEstadosdoMatoGrossodoSul(viaBolívia)edoParaná(viaParaguai)(MANSOeDIAS,2017,p.20).
Capa| Sumário | 42
Sexualidade e gênero: controle e subversão
nointerior(29,8%)dasresidênciasdasvítimas(AtlasdaViolência,2019,p.41).Noquadrogeraldehomicídiosdopaís,novamentesãoosestadosdoAcre(+538,4%),RioGrandedoNorte(+286,9%)eCeará(+254,7%)quelideramorankingdeaumentonastaxasdeviolênciaarmada(AtlasdaViolência,2019,p.83-84).
Por sua vez, o Levantamento Nacional de Informações Penitenciáriasrevelaqueataxadeaprisionamentofemininoaumentou525%noBrasil,noperíododedezesseisanos,demodoqueopaísocupaa5ªposiçãoemumrankingcomasmaiorespopulaçõesdemulheresencarceradasnomundo.Ademais,62%dapopulaçãoprisionalfemininabrasileiraécompostapormulheresnegrase62%dasmulheresqueestãoprivadasdeliberdaderespondemporcrimesligadosaomercadodedrogasilícitas,namodalidadede“associaçãoaotráfico”(INFOPENMULHERES,2017,p.17-53).
Os dados quemostram umamaior vitimização demulheresnegraspormortesviolentaseporpolíticasestataisdeencarceramentoemmassasomam-seàsinformaçõesdorelatórioVisível e Invisível: a vitimização das mulheres no Brasil(2019),asquaiselucidamqueasmulheresnegrasestãomaissuscetíveisasofreremviolênciastantonoâmbitodoméstico(nasuaresidênciae/ounadeparentes)quantonaviapública(naruae/ouemespaçosdetrabalhoelazer),quandocomparadasàstaxasdevitimizaçãodemulheresnão-negras(brancas,amarelaseindígenas).Quandoreunidos,essesnúmerospodemsignificarqueasmortesdemulheresnegrasocorrememcontextosdefeminicídios íntimoscomotambémporoutrasformasdefeminicídios eviolênciasletais.
Essasinformaçõesdemonstramacomplexidadeemtornodasmortesviolentaseintencionaisdemulheres,quepodemserdecorrentesdeviolênciadoméstica,familiareconjugal–quandosãopraticadasporfamiliarese(ex)parceirosíntimos,geralmentenaresidênciadasvítimas–comotambémpodemestarrelacionadasàsdinâmicasmaisabrangentesdacriminalidadeurbana–quando
Capa| Sumário | 43
asmortesestãoligadas(diretaouindiretamente)aosconflitosarmadosentregruposesujeitosquedisputamterritórioseintegramomercadodedrogasilícitas.Detodomodo,somentequandodesentranhamososconflitossociaiséquepercebemosqueasdinâmicasrelativasàsmortesviolentasdemulheressãomúltiplasequeoutrascategoriasalémdogênero,comoraçaeterritório,atuamnamaterializaçãodessaviolência.
Emborasejapatenteaexistênciadeumaacumulaçãosocialdaviolênciasobreasmulheresnegras,frisamosqueacategoriadaraçadeveatuarnofornecimentodepistasparaacompreensãodoporquêessasmulheressãoosalvospreferenciaisdaviolênciafeminicídaoudosprocessosestataisdeencarceramento,demodoalgumaraçadevefigurarcomoacausaouomotivoporsisóparaaconcretizaçãodessasformasdedestruiçãodevida.
RelembrandoaselucidaçõesdeAchilleMbembe,temosqueosprocessosderacializaçãoatuamprioritariamenteparaadistribuiçãodepráticas“necropolíticas”,sejamelasconcretizadasporórgãosestataisouporindivíduosegruposprivados(comomilíciasegruposdeextermínio).Dessaforma,gêneroeraçasãotecidosintimamenteaosprocessosesentidosdeEstado,queconformamcorposeterritóriosprecáriosepossibilitamqueasvidas(easmortes)decertoshomensemulheressejamconstituídascontingencialmentepelaviolência,especialmenteemzonasecircunstânciasdeexclusãosocial.
Asarticulaçõesentre“necropolítica”enquantotrabalhodamorteeasrelaçõesraciaissãofundamentaisparapensarmosquaissãoasvidasdignaseindignasdeluto,cujapossibilidadedaperdafazcomqueelassejampreservadasoudescartadassocialmente,desdeoprincípio.Nessaperspectiva,JulianaBorges(2018),analisandoacategoriada“necropolítica”,afirmaqueháumalógicasistêmicadedescartabilidadedasvidasnegras,queencontraexpressãotantonamortequantonocárcereeépossibilitadapor
Capa| Sumário | 44
Sexualidade e gênero: controle e subversão
processosdedesumanizaçãodessessujeitosperanteasociedade.Naoperacionalidadedessalógica,asrelaçõesneoliberaisservemaoextermíniodapopulaçãoracializadaeempobrecidaedosgrupossociaisquenãoapresentamutilidadeaosistemacapitalista,demodoquedeslizamosdeumapolíticadeexclusãoparaumapolíticadeextermíniodecorposconsiderados“descartáveis”(BORGES,2018,p.266-267).
Todosessesdados,provenientesdepesquisaserelatóriosdistintos,nãosãosimplescoincidências,massimindicadoresdecaminhosinvestigativosaserempercorridos.Elesdenunciamquehámuitoaserextraídodasrelaçõesreciprocamenteconstitutivasentregênero,raça,classe,sexualidadeeterritório.Essascategoriasforjamossujeitos,compõemasrelaçõessociaisqueoportunizamaviolênciaeintegramasdinâmicasda“necropolítica”,pormeiodeum“duplofazer”degêneroedeEstado.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Asnarrativasteóricasepolíticasesboçadasnesteartigodemonstraramque,desdesempre,asrepresentaçõesdegêneroeaspráticasdeEstadosãoproduzidasmutuamente.Evidênciadissoéaatuaçãodeativistasedemovimentosfeministasque,aoreivindicarasmortesdemulherescomoumtipodeviolênciaespecíficaresultantedadiscriminaçãodegênerooudaopressãopatriarcal,demandaperanteoEstadooreconhecimentodofeminicídio comoumainadmissibilidadehistórica.
ÉessetipodediscursosobreasmortesqueseconformaaosnexosdecausalidadedeEstado,demaneiraqueofeminicídio age comochavedeinteligibilidadeparagarantiadacaracterizaçãodasvítimasnosprocessosjudiciaiseparaqueasinvestigaçõessobreasviolênciasseencaminhemparaapuniçãoestataldosculpados.
Capa| Sumário | 45
Sexualidade e gênero: controle e subversão
Todavia,acompreensãodofenômenodasmortesviolentasdemulheres,paraalémdalógicarepresentacional,dependedaabordagemdogêneroapartirdasrelaçõessociaisquelhedãomaterialidade–pormeiodasquaisépossívelapreenderaarticulaçãoreciprocamenteconstitutivadaraça/etnia,sexualidade,dasrelaçõesdeclasseedoscontextosterritoriaisqueatuamnaconstituiçãodossujeitos–,paraexplicarporquemúltiplasformasdeviolênciaatingemmulheresdediferentestipos.
Assim,apesquisaetnográficadeMelissaW.Wrightadquirerelevânciaparaasdiscussõestraçadasnopresenteartigo,poispartederelaçõesconcretasparaentenderosfeminicídios e as violências deCiudadJuárezqueatingeas/ostrabalhadoras/espobres,alémdeobservarasdinâmicaspolítico-econômicasdaqueleterritórioeomodocomorepresentaçõesdeEstadoforamproduzidaspormeiodareivindicaçãodossignificados(degênero)dasmortes.
Demodosemelhante,osíndicesdevitimizaçãoextraídosdoAtlasdaViolênciaedeoutrosrelatóriosoficiaisesboçamasimbricaçõesdediversascategoriassociaisnasmortesdemulheresbrasileiras,comdestaqueparaaraça.Osdadostambémpermitiramentreverasdinâmicassociaisrelacionadasàconcentraçãoterritorialdaviolência,tomandocomoexemploatrilhadeixadapelomercadodedrogasilícitaseafacilitaçãoaoacessodearmasdefogonessescenárioseterritórios.
Porseuturno,acategoriada“necropolítica”éresgatadaporJulianaBorgesparapensarapolíticadamorteapartirdadistribuiçãodaviolênciaconformepráticaserepresentaçõesracistasque,emúltimaanálise,perfazemsentidosdeEstado.Esseexercícioanalíticonosfornecepistasparaacompreensãodosmotivosquelevamasmulheresnegrasaseremasprincipaisvítimasdemortesviolentaseintencionaise,potencialmente,defeminicídiosnocontextobrasileiro.
Longedeapontarrespostasconcretas,esperamosqueasprovocaçõestraçadasincitemoutraspesquisadorassobre
Capa| Sumário | 46
Sexualidade e gênero: controle e subversão
feminicídiosaseguirorumoquejáforaapontadoporWâniaPasinatodesde2011,quandofalavasobreanecessidadedeexpandirosconhecimentosrelativosàviolênciaeàcriminalidadeurbana,àsrelaçõesdegêneroeàspolíticasdesegurançapública,demaneiraanãoreproduziralógicailusóriaegenerificadaqueseparaespaçopúblicoeprivado.
REFERÊNCIAS
BORGES,Juliana.Racismo,vidasprecáriaseosistemadejustiçacriminalcomomáquinanecropolítica.In:FEFFERMANN,Marisaetal.(Org.). Interfaces do Genocídio no Brasil:raça,gêneroeclasse.SãoPaulo:InstitutodeSaúde,2018.BRASIL.Leinº13.104,de9demarçode2015.Prevêofeminicídiocomocircunstânciaqualificadoradocrimedehomicídio.Disponívelem:https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13104.htm.Acessoem: 10 dez. 2019.BUENO,Samira;LIMA,RenatoSérgiode.(Coord.).Visível e Invisível:avitimizaçãodemulheresnoBrasil.2.ed.SãoPaulo:FórumBrasileirodeSegurançaPública(FBSP)eDatafolhaInstitutodePesquisas,2019.BUTLER,Judith.Problemas de Gênero: feminismoesubversãodaidentidade.TraduçãodeRenatoAguiar.7.ed.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,2014.BUTLER,Judith.Quadros de Guerra: quandoavidaépassíveldeluto?TraduçãodeSérgioTadeudeNiemeyerLamarãoeArnaldoMarquesdaCunha.3.ed.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,2017.
Capa| Sumário | 47
Sexualidade e gênero: controle e subversão
CERQUEIRA,Danieletal.Atlas da Violência 2019. Rio de Janeiro:InstitutodePesquisaEconômicaAplicada(IPEA)eFórumBrasileirodeSegurançaPública(FBSP),2019.EFREMFILHO,Roberto.Corposbrutalizados:conflitosematerializaçõesnasmortesdeLGBT.Cadernos Pagu,Campinas,n.46,p.311-340,2016.EFREMFILHO,Roberto.Areivindicaçãodaviolência:gênero,sexualidadeeaconstituiçãodavítima.Cadernos Pagu, Campinas,n.50,2017.MANSO,BrunoPaes;DIAS,CamilaNunes.PCC,sistemaprisionalegestãodonovomundodocrimenoBrasil.Revista Brasileira de Segurança Pública,SãoPaulo,v.11,n.2,p.10-29,ago/set.2017.MBEMBE,Achille.Necropolítica:biopoder,soberania,estadodeexceção,políticadamorte.TraduçãodeRenataSantini.SãoPaulo:N-1edições,2018.McCLINTOCK,Anne. Couro imperial: raça,gêneroesexualidadenoembatecolonial.TraduçãodePlínioDentzien.Campinas:EditoradaUnicamp,2010.NASCIMENTO,EmylliTavaresdo.Gênero e Sexualidade na Construção Narrativa do Feminicídio Íntimo:percepçõesdosjuízesleigosdosTribunaisdoJúrideJoãoPessoa.2018.91f.Monografia(BacharelemDireito)–CentrodeCiênciasJurídicas,UniversidadeFederaldaParaíba,JoãoPessoa,2018.PASINATO,Wânia.“Femicídios”easmortesdemulheresnoBrasil. Cadernos Pagu,n.37,p.219-246,jul/dez.2011.RUBIN,Gayle.O tráfico de mulheres: Notassobrea“EconomiaPolítica”dosexo.TraduçãodeChristineRufinoDabat;EdileusaOliveiradaRochaeSoniaCorrêa.Recife:SOSCorpo,1993.RUSSELL,DianaE.H.;CAPUTI,Jane.Femicide:sexistterrorismagainstwomen.In:RUSSELL,DianaE.H.,RADFORD,Jill(orgs).
Capa| Sumário | 48
Sexualidade e gênero: controle e subversão
Femicide:thepoliticsofwomenkilling.NewYork:TwaynePublisher,1992.SANTOS,Thandaraetal.Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN MULHERES. 2. ed.Brasília:MinistériodaJustiçaeSegurançaPública.DepartamentoPenitenciárioNacional,2017.SCOTT,JoanWallach.Género e historia.México:FCE–UniversidadAutónomadelaCiudaddeMéxico,2008.VIANNA,Adriana;LOWENKRON,Laura.OduplofazerdogêneroedoEstado:interconexões,materialidadeselinguagens.Cadernos Pagu,Campinas,v.51,p.101-175,2017.WAISELFISZ,JulioJacobo.Mapa da Violência 2015:HomicídiodemulheresnoBrasil.Brasília/DistritoFederal:OPAS/OMS;ONUMulheres;SPM;Flacso,2015.WRIGHT,MelissaW.Necropolitics,Narcopolitics,andFemicide:GenderedViolenceontheMexico–U.S.Border.Journal of Women in Culture and Society.Chicago,v.36,n.3, p.707-731,2011.
Capa| Sumário | 49
TRANSFEMINICÍDIO: ENTRE ABJEÇÃO E PRECARIEDADE
Ana Carolina Gondim de Albuquerque Oliveira10
1 INTRODUÇÃO
Imemorialmente,asociedadeépautadapornormasque,àprimeiravista,têmafinalidadedegarantiromínimoequilíbriodas,e,nasrelaçõessociais.Entretanto,algumasregrasultrapassamasbarreirasdaindividualidadehumanaevislumbramdisciplinaraesferaextremamenteprivada,ouseja,aidentidadedegêneroeasexualidadedosindivíduos.
Amatrizculturalhegemônicaquecompreendeasrelaçõessociaisébaseadanaseguinteregra:existemdoissexosquesãoestruturasbiológicas,portanto,seencontramforadosdomíniosculturais,sãoimanentesàcondiçãodeserhumano.Cadasexocorrespondeadadocomportamento,absolutamentecaracterísticodecadaume,porsuavez,amanifestaçãodasexualidadehumanaestávinculadaaestadualidadeúnica,demodolinear,comúnicapossibilidade,aheterossexualidade.Destemodo,osqueultrapassamasfronteirasbináriassãorelegadosaumnão-lugar,nãoencontramespaçonasociedade.Muitasvezeseliminadosatravésdaviolênciamaisvil,cruenta,naspalavrasdeBento(2014),queensejam,segundoEfremFilho(2016),imagensdebrutalidade.
10 DoutorandapeloProgramadePós-GraduaçãoemCiênciasJurídicasdaUniversidadeFederaldaParaíba(PPGCJ-UFPB).MestraemCiênciasJurídicas(PPGCJ-UFPB).IntegrantedoGrupodePesquisaTeoriasdosDireitosHumanos,DireitoeSociedade:genealogiaeprospectivasdopensamentojurídico(UFPB).Pesquisadoranaáreadeviolênciadegênero.E-mail:[email protected].
Capa| Sumário | 50
Sexualidade e gênero: controle e subversão
Nestaperspectiva,aspessoastransexuaisvivemempermanentevulnerabilidadeporquantodesobedecemamatrizculturaldeinteligibilidade(BUTLER,2008)queregulaasociedade.Porsuavez,asmulherestransexuaiseastravestisseencontramemsituaçãodehipervulnerabilidadeemrazãoderomperemdemodomaisvisívelobinarismoheterossexual.Aoassimprocederem,sedeparamcomviolênciaeletalidade.Porconseguinte,restaoquestionamento:otransfeminicídio,consideradocomoaviolêncialetaleintencionalcontraasmulherestrans11 eastravestis,éaexpressãodaaniquilaçãodevidasnãopassíveisdeluto?
Estepaperapresentabreverevisãodeliteraturasobreotransfeminicídiocomoexpressãodaprecariedadedevidasconsideradasnãopassíveisdeluto.Paraacontextualizaçãoeanálisedoproblema,oaporteteórico,prioritariamente,partiudopensamentobutleriano,atravésdeduasdesuasobras–“ProblemasdeGênero”e“QuadrosdeGuerra:quandoavidaépassíveldeluto?”–,natentativadecompreenderaproblemáticadanormatizaçãodocorpoedasperformatividadesdegênero,apreendidaseinternalizadasnoprocessodesocialização.
11 ConsoanteestudorealizadoporBarbosa(2013,p.355),aexpressão”trans”podedesignarou“[...]englobardiversascategoriasdeidentificação”.Aindaexistemuitadiscussãosobreaspossibilidadesdesignificaçãodotermoque,emlinhasgerais,poderáserutilizadoparaaludirastransgeneridades,noqueestãoinclusasaspessoastravestis,transexuais,transgêneros,dentreoutros.Destaforma,seconstituicomopalavrapolissêmica,emrazãodos“[...]múltiplosagenciamentosqueperpassameconstituemossujeitos”(BARBOSA,2013,p.356).Todavia,arealizaçãodacirurgiaderedesignaçãosexualaindaéconsiderada,“[...]usualmente”(ibidem, p.362)comooreferencialparadiferenciartransexuaisdetravestis.Contudo,essasassertivasnãosãoconclusivas,tampouco,taxativasemrazãodotermo“trans”açambarcarsubjetividadesqueultrapassamquaisquerenquadramentos,conformeacompreensãobutleriana.Apartirdoexposto,esteestudoutilizaotermo‘trans’paradenominarasmulherestransexuaisetravestis.
Capa| Sumário | 51
Sexualidade e gênero: controle e subversão
Apesquisafoirealizadanoperíododeagostoadezembrode2019duranteocursodeGêneroeSexualidade,componenteconstitutivodamatrizcurriculardoProgramadePós-GraduaçãoemSociologiadaUniversidadeFederaldaParaíba(PPGS/UFPB).Noquedizrespeitoaosaspectoséticosdapesquisa,oestudogaranteascitaçõesdasautoriasedasfontesbibliográficasutilizadasparaelaboraçãodestemanuscrito.Apósolevantamentobibliográficoeafasedaleituraexploratória,seguidadaleituraseletiva,empreendeu-seleituraanalítica,comointuitodeordenaresistematizarasinformaçõesobtidasnasfontesdepesquisaparaaapreensãodoconhecimentosobretransfeminicídioesuarelaçãocomascategoriasprecariedade,abjeçãoepassividade.Porfim,efetuou-seasínteseintegradoradomaterialinvestigadoqueseráapresentadaemduasseçõesqueseseguem.
Comissoemmente,oobjetivodesteestudofoidemonstrarqueotransfeminicídioéoresultadodaprecariedadedevidasemrazãodestasromperemcomobinarismoheteronormativoenãoserem,portanto,passíveisdeluto.
2 TRANSFEMINICÍDIO: ASSASSINATO DA “TRAVESTI”12 PRETA E POBRE
Atransgressãoàlógicabinária,heterossexualefalocêntrica,viaderegra,vemacompanhadadeprocessosdemarginalização,
12 Aexpressão“travesti”éutilizada,àprimeiravista,comoumaformadepreciativaparaadesignaçãodepessoatransgênero,dentreestas,mulherestransexuaisetravestis.Contudo,naatualidade,éutilizadocomoestratégiapolíticadomovimentoLGBT+àmedidaquepromovearessignificaçãodetermo,antespejorativo,comométododeenfrentamentoàviolênciaeaosprocessosdeexclusãoemarginalização.Referidotermofazpartedocampoempíricodeestudodapesquisadora/autora,consubstanciando-secomoumacategoriaêmica,ouseja,éumainterpretação/designaçãooriundadoprópriomovimentoLGBT+.
Capa| Sumário | 52
Sexualidade e gênero: controle e subversão
violênciaeexclusãocontraasmulhereseaspessoascujogêneroédissidenteaomodelohegemônico(RUBIN,2017;BUTLER,2008;BENTO,2018).Emmuitassituaçõesestaviolênciaéletal.Àvistadisto,entreasdissidentes,aspessoastransexuaissãorelegadasàcondiçãodepermanentesubalternidadeeexclusãoe,dentreestas,asmulherestransexuaiseastravestisaindaseencontramemmaiorvulnerabilidade,poisestãoimersasemsituaçãodeviolênciacontínuaediscriminaçãodúplice:primeiroporviolaremasregrasbináriase,emseguida,porassumiremacondiçãofeminina.
Aviolêncialetaleintencionalcontrapessoastransexuais,especialmenteasmulherestranseastravestissãorecorrentesnoBrasil.Essasmortes,emsuamaioria,nãoocorremporcausasnaturais,sãocriminosas.Segundorelatóriosproduzidospelaorganizaçãonão-governamentalinternacionalTransgenderEurope(TGEU)epublicadosemedições,atravésdoprojetoTransMurderMonitoring13(TMM),entrejaneirode2008edezembrode2015,cercade2.016pessoastransexuaisoudegênero-diversoforammortasem68países,edestemontante,emnúmerosabsolutos,noBrasilforam845homicídios.Esteresultadocolocaopaísemprimeirolugarnorankingcomoomaisviolentoparaaludidapopulação,seguidopeloMéxicocom247assassinatos.Asformasmaiscomunsdessasmortessão:poralvejamento(733pessoas);seguidoporesfaqueamento(406pessoas);porespancamento(213pessoas);estrangulamento(79pessoas);porapedrejamento(52pessoas);decapitação(36pessoas);cortenagarganta(27pessoas);asfixia(30pessoas);tortura(26pessoas);queimadura(23pessoas);
13 Oprojetomonitora,atravésdenotícias,casosdeviolênciaapessoastransexuaisemtodomundo,estabelecendoparceriasemtodososcontinentes,submetendoestesdadosàanálise.Asinformaçõessãoobtidasatravésdeinstituiçõeseorganizaçõesinternacionaisdeproteçãoaosdireitoshumanos,porgruposeassociaçõesnão-governamentaiseporqualquerpessoaqueconheçaouestáinseridaemsituaçãodeviolênciafundadaemtransfobia.
Capa| Sumário | 53
Sexualidade e gênero: controle e subversão
poratropelamento(23pessoas);outrascausas(27pessoas)enãoreportado(341pessoas).
OBrasilocupouoprimeirolugarnostrêsprimeirosrelatórios,ondeseobservam171mortes,entre2016e2017,e136mortes,entre2015e2016.Observa-se,portanto,quesãomortesperpetradaspormeiosquedenotamacrueldade,corroborandoasimagensdebrutalidadecatalogadasporEfremFilho(2016)aorelatarque:
SobreocorpodeJoséRenatodosSantos,osperitoscontaram26facadas.SobreodeSandroAlmeidaLúcio,30.JurandirLeitefoiestrangulado.Seucadávertraziamarcasdelutacorporal.LaísMartinssofreuviolênciasexualantesdeserassassinada.Seurostofoicompletamentedesfiguradoporpedrada[...]CarlosdeLimarecebeudiversostiros.AcabeçadeJeováAlbinofoiesmagadacomumapedra[...](EFREMFILHO,2016,p.313).
Emregra,mesmoadespeitodaformacruel,pelaqualaviolênciaextremaéperpetradacontraaspessoasquerompemasnormasbinárias,tornarestaviolência/brutalidadevisível,continuaEfremFilho(2016,p.314),seriaummododeoupretensãode“[...]implicarcertoreconhecimentopúblicoparaasvulnerabilidadesdas‘vidasprecárias’”,evocandoButler.Paratanto,osmeiosempregadosnapráticadosatosviolentoseletaisreafirmamqueasrelaçõesdegêneroedesexualidadesãoindispensáveisparacompreenderamotivaçãodetaiscrimes.Omodus operandidasmortespermitemsuacompreensãocomo‘crimesdeódio’,postoque,naspalavrasdeEfremFilho(p.314),“Asbrutalidadesexemplificamascrueldades”.Ademais,“Abrutalizaçãodosexooudasexualidadesedesenvolvenumcenárioemqueasexualidade,crimeeviolênciaseconstituemreciprocamente”(EFREMFILHO,2016,p.329).
Capa| Sumário | 54
Sexualidade e gênero: controle e subversão
OsrelatóriosdoprojetoTransMurderMonitoringtambémapontamqueosassassinatosocorrem,sobretudo,emespaçospúblicos,comoseconstataráaseguir:narua(531mortes);naprópriacasa(283mortes);árearural/floresta(89mortes);estrada/rodovia(56mortes);emveículoautomotor(36mortes);empraia/rio(35mortes);parque/praçapública/mercadopúblico(36mortes);hotel/motel(38mortes);bar/restaurante/boate(23mortes);canteirodeobras/prédioabandonado(26mortes);emsalãodebeleza(16mortes);residênciadecliente(18mortes);prisão/delegacia(11mortes);ferrovia/metrô(9mortes);outroslocais(78mortes);nãoreportado(731mortes).Seforlevadoemconsideraçãoosnúmerosapontados,àexceçãodositens‘outroslocais’e‘nãoreportado’,seobservaráquedosomatóriodositens‘rua,árearural,estrada/rodovia,praia/rio,praçapública,prisãoeferrovia’(consideradoslocaispúblicos)apresentarátotalde767pessoasassassinadas,percentualmente63,54%.
OdossiêanualdaAssociaçãoNacionaldeTravestiseTransexuaisdoBrasil(ANTRA)de2018corroboracomosdadoscatalogadospeloprojetoTransMurderMonitoring.Nopaísocorreram163assassinatosdepessoastrans,sendo158travestisemulherestransexuais,4homenstranse1pessoanão-binária.Ressalte-sequesobreestesnúmerospesamassubnotificaçõeseainvisibilidadedestasmortesviolentas.Omesmodossiêestimaquehouveaumentodecercade30%desubnotificaçõesdoscasos(37%dasmídiasnãorespeitamaidentidadedegênerodasvítimasouainda,34casosquenãoconstaramestemarcador).Ademais,aviolênciadegênerosereforçaquando97,5%(aumentode3%emrelaçãoa2017)dosassassinatosforamcontrapessoastransdogênerofeminino(158casos)(BENEVIDES,NOGUEIRA,2018).
OdossiêelaboradopelaANTRA(2018)reiteraoargumentodeHirata(2014)sobreaexistênciadeumainterdependêncianoquetangeasrelaçõesdepoderentreraça,gêneroeclassesocial.Ouseja,
Capa| Sumário | 55
Sexualidade e gênero: controle e subversão
háumliamequevinculaaviolênciasofridapelossujeitos,nocaso,asmulherestransetravestis,àclasseeàraçaaqualestaspertencem,umavezque82%doscasosdehomicídiosidentificadospelaANTRA(2018)vitimammulherestransetravestisnegrasepardas.
Destemodo,aviolênciaseconsolidaatravésdemuitasformasdeopressãosimultâneas,queestãoontologicamentevinculadas.Ouseja,sãocategoriasindissociáveis.Entretanto,aindissociabilidade,porsisó,passaaserconsideradacategoriaanalítica,denominadade‘interseccionalidade’.Hirata(2014)esclarecequeotermointerseccionalidade,apesardeserrelativamentenovo,começouaserprojetadocomoBlack Feminism,aindanosanos1970,eseaplicaasrelaçõesentregêneroeraça.Outrossim,aclassesocialsecoadunaaogêneroearaçacomocategoriasanalíticasqueproduzeminterfasesatuandonasrelaçõessociaisenasrelaçõesdepoder.
Acorrelaçãoentregêneroeclassesocialfoinominada‘consubstancialidade’,debatidaamplamenteporDanièleKergoat,desdeadécadade1970,consolidando-secomacriaçãodoGrupodeEstudossobreaDivisãoSocialeSexualdoTrabalhonaacademiafrancesa,aindanadécadade1980(HIRATA,2014).Todavia,osignificadodeconsubstancialidadealcançarátambémacategoriaraça,promovendoenlaçamentoentreclasse,sexoeraça.Estafusãoentreadefiniçãodeinterseccionalidadeeconsubstancialidadesejustificaemrazãoda“[...]nãohierarquizaçãodasformasdeopressão”(HIRATA,2014,p.63).Ademais,Hiratarelataascríticasfeitasàteoriadainterseccionalidade,emrazãodestaalocara“dimensãoclassesocialemumplanomenosvisível”(2014,p.66),aotempoemqueafiançaqueexistemoutrasopiniõesapontandoque,paraalémdaraça,daclasseedosexo,háoutrasvariáveiscomoaidade,areligião,bemcomoanacionalidade.
AsponderaçõesdeHiratasobreamultiplicidadedevariáveissociais,queintegramaperspectivadainterseccionalidade,sãocorroboradaspelapesquisapublicadapelaTransgenderEurope
Capa| Sumário | 56
Sexualidade e gênero: controle e subversão
(TGEU)noiníciode2018,organizadaporFedorkoeBerredo(2017),aqualdispõesobreocicloviciosodaviolênciavoltadaparaasquestõesqueenvolvemaexploraçãodotrabalhosexualnoscontextosdemigração,evidenciandoanacionalidadeearaçacomoelementosque,somadosàclasseeaogênero,produzemaviolênciaextrema,chegandoaosseguintesresultados:43%daspessoastransassassinadasnaEuropasãoprofissionaisdosexoimigrantes.EstenúmeroaumentanaItália,onde78%daspessoastransassassinadassãoprofissionaisdosexoimigrantes.
Irrefutavelmente, essas pessoas estão expostas: àdiscriminaçãoracial,poisamaioriaémigrantedepaísesperiféricos,e:àdiscriminaçãosocial,poissãopessoasquefogemdapobrezaemseuspaísesdeorigem,demodoqueamigração,porsisó“[...]éumreflexodeopçõesdesubsistêncialimitadasederecursoseconômicoslimitados”(FEDORKO,BERREDO,2017,p.07).Assim,deacordocomapesquisadesaúde,intitulada‘OverdiagnosedbutUnderserved’,tambémelaboradapelaTGEU,em2017,erealizadaem5países(Geórgia,Polônia,Sérvia,EspanhaeSuécia),cercade70%daspessoasqueseocuparamnotrabalhosexualnosdozemesesanterioresàpesquisadecidiramfazê-loprincipalmenteparasubsistência;eaxenofobia,emrazãodesuacondiçãodeimigrante.FedorkoeBerredo(2017)registramquemulherestrans,profissionaisdosexo,assassinadasnosEUAsão,percentualmente:72%afrodescendentes;9%latinas;2%americanas(nativas)e17%deetniasdesconhecidas.
Aspessoastransprofissionaisdosexoenfrentamestigmaediscriminaçãointerseccionaisdevidoaoseu statusenquantopessoatranseprofissionaldosexo,comoutrosfatoresdeinfluência,incluindo-seoracismo,misoginia,capacitismo,elitismoexenofobia.Muitasdestaspessoassãoimpactadaspeladiscriminaçãoemcontextosdemoradia,pelo
Capa| Sumário | 57
Sexualidade e gênero: controle e subversão
excessivopoliciamentoefaltadeacessoàjustiça,serviçosdesaúdeebenefíciossociais,umavezqueotrabalhosexualnãoéreconhecidocomotrabalhoemseusrespectivospaíses(FEDORKO,BERREDO,2017,p.09).
Outrofatorassociadoàinterseccionalidade/consubs- tancialidadeéafaixaetária.OdossiêdaANTRAaduzqueamaioriadasvítimas(60,5%)demortesviolentasletaiseintencionais,noBrasil,em2018,foramjovensmulherestransetravestis,comidadeentre17e29anos.Estima-seque,emmédia,aos13anosdeidadeasadolescentestravestisetransexuaissãobanidasdesuascasaspelospais.Destas,cercade0,02%conseguemacessarauniversidade,porém,72%nãoconcluemoensinomédioe56%nãoconcluemoensinofundamental.Porconseguinte,estabaixaescolaridadeirátambémmitigaraspossibilidadesdeinserçãonomercadoformaldetrabalho,forçando-asaprocurarasubsistêncianaprostituiçãoeemsubempregos.Nestaperspectiva,oDossiê2018daANTRAasseveraquecercade90%dapopulaçãodetravestisemulherestrans,noBrasil,utilizamaprostituiçãocomoúnicafontederendaepossibilidadedesubsistência,devidoabaixaescolaridadeprovocadapeloprocessodeexclusãoescolar.AANTRA(2018)contabilizouque65%dosassassinatosforamdirecionadosàsmulherestransetravestisquesãoprostitutase,destemontante,60%delesaconteceunasruas(BENEVIDES,NOGUEIRA,2018).Dessemodo,aexclusãofamiliaracarretaumagamadeconsequênciasmaléficas:
Arejeiçãofamiliaréumfatorsignificativoquecontribuiparaaexperiênciadaspessoastranscomafaltademoradiaenabuscadeestratégiasderemuneraçãoimediatasparasobreviver(FEDORKO,BERREDO,2017,p.08).
Capa| Sumário | 58
Sexualidade e gênero: controle e subversão
Emrazãodestedesprezodas famílias, adolescentestransexuaisnãousufruemdodireitoàeducação,saúde,moradia,dentreoutros,gerandoconsequências,detodasasordens,portodaasuavida.
Istoposto,odossiê2018daANTRArevalidaestudoanteriorcompiladopelaComissãoInteramericanadeDireitosHumanos(CIDH/OEA),publicadoem2015eorelatóriodoprojetoTransMurderMonitoringdaTGEU(2008-201514).Emambos,seconstatouqueaviolência,opreconceitoeadiscriminaçãopredominantesnasociedadeenasfamíliasreduzemaspossibilidadesdeasmulherestransobteremeducação,serviçosdesaúde,abrigosexclusivoseacessoaomercadoformaldetrabalho,e,comoconsequênciadestesfatoresdar-seoenvolvimentoemocupaçõesqueaspõememmaiorperigo,potencializandoaprobabilidadedeviolênciaecriminalização.Aviolêncialetalcontraasmulherestransexuaiseastravestiséumfatosocialincontroverso.Nestaacepção,Bento(2014)reiteraque:
[...]ofemininorepresentaaquiloqueédesvalorizadosocialmente,quandoestefemininoéencarnadoemcorposquenasceramcompênis ,háumtransbordamentodaconsciênciacoletivaqueéestruturadanacrençadequeaidentidadedegêneroéumaexpressãododesejodoscromossomasedoshormônios.(BENTO,2014,p.01).
Aconjunturadehostilidadeeviolênciaemdesfavordamulhertransexualedatravestiéconsequênciadosconflitossociais
14 Das2.016pessoastransexuaisassassinadasentrejaneirode2008edezembrode2015,483eramprofissionaisdosexo.Imperiosoobservarquedentreos2.016casosdehomicídios,em1.280casosnãoháregistrodaprofissãodavítima(TGEU/TMM,2016).
Capa| Sumário | 59
Sexualidade e gênero: controle e subversão
relacionadosàrupturacomasnormasdegêneroedasbarreirasbinárias,istoporqueosdiscursossobreosexoguardamlugardedestaquenasociedade.Istoposto,mesmoadespeitodealgunsavançoslegislativosparaqueaviolênciacontraasmulheressejasuperada(emespecialaLeinº13.104/201515),astransexuaiseastravestis,pornãoseremconsideradaslegalmentecomotal,nãosãotuteladasepermanecemdesprotegidas,oquedenotaaausênciadepolíticacriminalvoltadaparaestaparceladasociedadecomoconsequência,consoanteCampos(2013),dosistemapenaledaprópriacriminologiaestar,historicamente,centradaemabordagemandrocêntrica.
Dessemodo,adominaçãomasculinaestápresentetambémnasestruturasdocontrolepunitivo,obinarismoheterossexistatambémasconstitui,porquantoaLeidoFeminicídioteveseualcancereduzido,umavezqueolegisladorutilizounaconfecçãodotextoacategoria‘sexo’emdetrimentodacategoria‘gênero’,restringindoasuaaplicaçãoapenasaoshomicídioscometidoscontraasmulherescisgênero,assimconsideradasapenaspelaóticabiológica.Portanto,mesmoqueadiscussãodegênerotenhasetransformadoemcategoriadeanálisecientífica(SCOTT,2008),demodoinquestionável,aciênciafoi/éinstrumentalizadapelomasculino,sendohistoricamenteandrocêntrica.
Nestaacepção,Foucault(2009)asseveraqueumdospoderescapazesdeproduzirossujeitosedizeranormalidadeéoDireitoque,naconcepçãodeOlsen(2000),aindaéandrocêntrico.Condicionaossujeitosque,porseuturno,estãoadstritos,“formados,definidosereproduzidos”àsexigênciasdesuasnormas,ouseja,“Opoderjurídico‘produz’inevitavelmenteoquealegameramenterepresentar”(BUTLER,2008,p.18-19).Comoconsequência,acriminologiatambémsetornouumdiscursomasculinizado,umavezqueaprodução
15 Alcunhada de Lei do Feminicídio.
Capa| Sumário | 60
Sexualidade e gênero: controle e subversão
intelectualrefletetodasascontradiçõessociaiseasrelaçõesdeopressãoqueassustentam(MENDES,2014;CAMPOS,2013).
3 MULHERES TRANS E TRAVESTIS: CORPOS ABJETOS EM VIDAS PRECÁRIAS
Duranteséculosenxergarasociedade,asrelaçõessociaiseoscomportamentosatravésdelentesculturaisfoialgoinconcebívelemfunçãodasteoriasessencialistassedebruçaremsobreahumanidadeproduzindometanarrativasduranteoprocessodesocializaçãoquesãointernalizadaspelaspessoasereproduzidas,noqueBourdieu(2010) designou habitus.
Nestedebate,asexualidadehumananãoficaàmargem.Todavia,aformacomoseconcebeasexualidade,assimcomoasnormaspelasquaisestaésubmetidasãoculturais.Ossignificadosdocorpoedasexualidadedependemdosprocessoshistóricoseculturais,sãocontingentes,noquecorroboraMerleau-Ponty(2006)aoafirmarqueohomeméumaideiahistóricaenãoumaespécienatural.Destemodo,umadasdiscussõesafloradasnaatualidadeéodebatedasciênciassociaissobreafronteiraentrenaturezaecultura.Afinal,oquepertenceaomundodanaturezaeaomundodacultura?Dequemodosedáainterfaceentreambos?Equaisseriamasconsequênciasoriundasdessarelação?
DiantedestesquestionamentosecomrespaldoemFoucault(2009)eButler(2008),ocorpo,osexoeasexualidadesãoespéciesdetecnologiasbiopolíticascomplexas,noquecorroboraBozonaoasseverarquea“construçãosocialtemumpapelcentralnaelaboraçãodasexualidadehumana[...]oshomensnãosabemmaissecomportarsexualmenteporinstinto”,indelevelmente,asexualidadeé“construçãosocial[...]apreendidaatravésdacultura”(2004,p.13).Osexonãoé,porsisó,umaestruturaunicamentebiológica,mas
Capa| Sumário | 61
Sexualidade e gênero: controle e subversão
ferramentadecontroleedominação,e,igualmenteaogênero,umartefatocultural,pois,“arigor,talvezo‘sexo’sempretenhasidoogênero,detalformaqueadistinçãoentresexoegênerosereveleabsolutamentenenhuma”(BUTLER,2008,p.25).Portanto,oquesecompreendepornaturezahumanaseriaconsequênciaouefeitodeummecanismosocialque,entreoutrasprovidências,traduzcomonatural,porexemplo,aheterossexualidade,obinarismo,asuperioridademasculinaque,porfim,sãodiscursosproduzidosereproduzidossocialmente.Porconseguinte,aideiaqueosexoéumacategoriapré-discursivaémeramenteretórica,“efeitodoaparatodeconstruçãoculturalquedesignamosporgênero”(BUTLER,2008,p.25-26),pois“inexistecorpoemestadonatural,sempreestácompreendidonatramasocialdesentidos”(LEBRETON,2007),melhordizendo,inexistecorponeutro,semsignificadosculturais.
Ocorpoclassificadocomomasculinooufemininofoiconstruídoàmedidadasnecessidadessociaisepolíticas,noqualforamimputadossentidosepráticasaolongodahistoriografiahumana.Ocorpoésocialmenteconstruído,naafirmaçãodeLeBreton(2007);portanto,nãoéacausa,masoefeitodaculturaemdeterminadaépoca,condicionadoporsabereseinteressesdeordemmédica,políticaejurídica,porexemplo(FOUCAULT,2009).Portanto,nãoexistecorpoimuneàinterpretaçãoeenquadramento(BUTLER,2015),aossignificadosculturais.E,porsuavez,finalizaButlerqueosexonãopodeserconsiderado“umafacticidadeanatômicapré-discursiva”,porque“ocorpo,éemsimesmo,umaconstrução,assimcomooéamiríadede‘corpos’queconstituiodomíniodossujeitoscommarcasdegênero”(BUTLER,2008,p.27).
Nestaperspectiva,ascríticasàconcepçãodoscorposedasexualidadecomodadosnaturaissãocontundentes,umavezqueestessãorealidadesconstruídaspelacultura,pelasideologias,pelalinguagemepeloscódigosdecomportamentoque,conjugados,determinamhierarquiasdeidentidadesedesujeitos:incluídosou
Capa| Sumário | 62
Sexualidade e gênero: controle e subversão
excluídos;dignosouabjetos.Assim,aindaconformeasimpressõesdeButler,ocorponãopodeserumarealidadeneutraporestáexpostoa“forçasarticuladassocialmenteepoliticamenteeasexigênciasdasociabilidade”(2015,p.16),nasquaisestãoinclusasalinguagem,otrabalho,odesejo.E,aobediênciaounãoaessasexigências,éoqueproporcionaviabilidadeaoscorpos.
Porconseguinte,oscorposconsideradosnormais,e,portanto,aceitáveis,sãoosquerespeitamoscódigosimpostoseashierarquias,enquantoosdissidentesficariamàmargemdosistema(BUTLER,2008;FOUCAULT,2009)edaprópriacondiçãodeserhumano.Porquanto,mesmoadespeitodaconcepçãomodernasobreauniversalidadeeimanênciadadignidadedapessoahumana,asnormassociaisproduzem-nadesigualmentee,noquelheconcerne,ahumanidadeéprivilégioparaalguns,apenas.Àmargemestãooscorposabjetosquerefletemvidasprecárias,hipervulneráveis,desconsideradasemfunçãodasnormasdegênero,consoanteasseveraButler:
Secertasvidasnãosãoqualificadascomovidasouse,desdeocomeço,nãosãoconcebíveiscomovidasdeacordocomcertosenquadramentosepistemológicos,entãoessasvidasnuncaserãovividasnemperdidasnosentidoplenodessaspalavras(BUTLER,2015,p.13).
Istoposto,depreende-seque,aonãoseamoldaremaobinarismoheteronormativo,osindivíduosnãoterãosuacondiçãodepessoareconhecidae,porconsequência,oseulugarnasociedade.Seriaaprecariedadepotencializada16decorposnãodesejáveise,portanto,nãotutelados.Éumcorpoque,mesmoexpostoauma“[...]modelagemeaumaformasocial”nãoseamoldaaestaforma
16 Butler(2015,p.14)afirmaqueavida,porsisó,temcondiçãoprecária.
Capa| Sumário | 63
Sexualidade e gênero: controle e subversão
pré-determinada,estes“‘sujeitos’nãosãoexatamentereconhecíveiscomosujeitosehá‘vidas’quedificilmente–ou,melhordizendo,nunca–sãoreconhecidascomovidas”(BUTLER,2015,p.16).Estasvidase,porsuavez,oser,apessoadestavidaéconstruídaeganhasignificadose,esomentese,secoadunaraoqueopoderimpõe,demodoque“[...]nãopodemosfazerreferênciaaesse‘ser’foradasrelaçõesdepoder”(BUTLER,2015,p.14),pois,“estávivo,masnãoéumavida”(ibidem,p.22).
Bento(2017)aduzqueossujeitosabjetosatépoucotemponãoeramobjetodeinteressedasociologia,mas,mesmoadespeitodestafaltadeinteresse,torna-seconceitofundamentalparaacompreensãoediscussãodolugar(ounãolugar)reservadonasociedadeaoscorposquenãosãointeligíveis,aexemploaspessoastransexuais.Porsuavez,Butler(2008)utilizouaideiadeabjeçãonadiscussãodeinteligibilidadehumanaapartirdaconcepçãodeKristeva.Abjetoéoquecausarepulsa,osdejetoscorporais,numaperspectivaindividual,eosdejetossociais,numaperspectivacoletiva.Assimsendo,abjetoéoqueasociedadeexecra,repulsa,ooutroabjetoéo“nãoeu”,éooutroexcremento,“queviramerda”(BUTLER,2008,p.191).Paratanto,abjeção,aindaconsoanteBentoé:
[...]umconjuntodepráticasreativas,hegemo- nicamentelegitimadas,queretiradosujeitoqualquerníveldeinteligibilidadehumana.Osatributosconsideradosqualificadoresparaoscorposentraremnorolde‘sereshumanos’nãoencontrammoradaquandoseestádiantedeumapessoanaqualoaparatoconceitualdequesedispõeparasignificaçãodeexistênciahumananãoalcança.Alinguagementraempane,emcolapso.E,nessafaltade‘texto’,onojoeaviolênciaseinstauram(BENTO,2017,p.50).
Capa| Sumário | 64
ÉpeloprismadaabjeçãoqueButler(2008)introduzodebatesobreavulnerabilidadedaspessoastransgênero(transexuais,travestis)edasintersexuaisemrazãodaheteronormatividade.Corposecondutasdevemseamoldaràsprescriçõesnormativasdeterminadasparaomasculinoeparaofeminino.Devemserinteligíveis,ouseja,manterrelaçõesdecoerênciaecontinuidadeentresexo,gênero,práticaedesejosexual.Lésbicas,gays,bissexuais,transexuais,travestis,intersexuaisequeers(LGBTTIQ),ou seja, todas as pessoas que rompema coma regra daheterossexualidadeecomobinarismoultrapassamafronteiradanormalidadecausandoestranhamentoàsociedade,sãorelegadosàmarginalizaçãoeaviolência,postoqueaheterossexualidadeénormadominante,estabeleceprivilégios,promovedesigualdadeselegitimaviolências.
Aspessoasquesetornamfronteiriças,alterandoseuscorpos,exteriorizandoassimsuadissidência,sãoconsideradasabjetas.Aeliminaçãodestaspessoasensejaaausênciadolutosocialporquesãovidasquenãosãoreconhecidascomoválidas,legítimas,inteligíveiseque,portanto,nãodevemserconservadas,istoé,“semcondiçãodeserenlutada,nãohávida,háalgoqueestávivo,masqueédiferentedeumavida[...]equenãoseráenlutadaquandoperdida”(BUTLER,2015,p.32-33).Dizrespeitoaolutosocial.Oluto,comosentimentodeperdadequeméimportante,paracomasvidasquedeveriamserpreservadas.Asociedadeseenlutapeloshumanos,paratanto,olutoseriaumfatordeterminantedaprópriaideiadedignidadehumana.Dignoéquemensejaosentimentodeperdae,portanto,deluto,deentristecimento,criandograusdedignidadeedehumanidade,certamente.Ouseja,hápessoasquetêmmaisvalorsocialdoqueoutras.
Aconjunturadehostilidadeeviolênciaemdesfavordaspessoastranséconsequência,consoanteButler(2015),darecusaaoenquadramentosocial,ouseja,mencionadosindivíduosconstroem,
Capa| Sumário | 65
Sexualidade e gênero: controle e subversão
vivenciamexperiênciaidentitáriaquetemcomocaracterísticaoconflitocomasnormasdegênero,rompendoasbarreirasbinárias,e,porconseguinte,ainteligibilidade.Istoporqueosexoguardalugardedestaque;dáacesso,aomesmotempo,àvidadocorpoeàvidadaespécie,conformeafirmaFoucault(2009).E,emdecorrênciadestaimportância,asexualidadepassaaserpreocupaçãofundamentalcomoobjetivonãoapenasderegularoscorposindividualmente,masderegularaspopulações,ouseja,ocorposocial.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Inegavelmente,naatualidade,oentendimentoqueaspessoassãodetentorasdedireitoshumanosestáconsolidada.Todavia,nãoobstantetalconcepção,aindasãonotóriospreconceitosediscriminaçõesvivenciadosporpessoasquenãoseenquadramnopadrãoconsideradonormalpelasociedade,emrazãodenãosecoadunaremàsregrassociais.
Nestaperspectiva,umdosrequisitosparaqueosindivíduosgozemdedignidadeemrazãodoreconhecimentodesuacondiçãodepessoahumanae,consequentemente,desujeitodedireitos,ésuacompatibilidadecomomodelobinárioheterossexista.Estaéaregra.Aludidacondiçãodizrespeito,sobretudo,aspessoastransexuais,quepossuem,demodogeral,identidadedegênerodiversadosexoatribuídoquandodeseunascimento.Porsuavez,referidaconvicçãoéconsideradatransgressãosocialeaosesentiratingida,asociedadereúneesforçosnointuitodedesconsiderar,deslegitimar,punir,eeliminarosquesepropõemacolocaremriscoasupostanormalidadesexuale,conseguintemente,obinarismo,quedemarcaosconfinsdomasculinoedofeminino.Significandoqueoscorposnãodevemserremodelados;ascondutasnãopodemserressignificadaseosdesejosdevemencontraros
Capa| Sumário | 66
Sexualidade e gênero: controle e subversão
opostos,ouseja,homensdesejammulheres,queporsuavez,desejamhomens,apenas.
Desconsiderarooutroemrazãodestenãoseguirasregrasbináriaseheterossexuaisensejaapotencializaçãodaprecariedadedestasvidasedestescorpos,muitasvezesmaterializadapelaviolêncialetal.Todavia,estasmortesnãoserãosentidassocialmente,nãohaveráo‘luto’social,principalmentediantedarealidadedasmulherestransexuaisedastravestis.Estascausamrepulsa,nojosocialporteremexistênciaininteligível.Aludidasmulheressãoexemplosdecorposconsideradosabjetos.
Istoposto,sedepreendequeodireitoàvidaérelativoecondicionado.Inexistem,portanto,direitosinerentesàcondiçãodeserhumano,poisaprópriacondiçãohumananãoéimanenteàpessoa,corroborandoateoriabutlerianaquerefutaaideiadeumcorpoanterioraqualquersignificação,(des)essencializandoosujeito,ensejandoapossibilidadedeasidentidadesseremvariáveisporqueaprópriaconcepçãodoqueéohumanoécontingente.Porconseguinte,otransfeminicídioéaexteriorizaçãodestaabjeçãoedadestituiçãodolutodestaspessoas.
REFERÊNCIAS
BARBOSA,BrunoCesar.“Doidaseputas”:usosdascategoriastravestietransexual.Sexualidad, Salud y Sociedad,RiodeJaneiro,n.14,p.352-379,ago.2013.Disponívelem:https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/SexualidadSaludySociedad/article/viewFile/6860/4941.Acessoem:12abr.2020.BENTO,Berenice.Necrobiopoder:quempodehabitaroEstado-nação?Cadernos Pagu,SãoPaulo,v.53,2018.Disponívelem:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0104-83332018000200405&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.Acessoem:10 nov. 2019.
Capa| Sumário | 67
Sexualidade e gênero: controle e subversão
BENTO,Berenice.Brasil:Opaísdotransfeminicídio.Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos/CLAM,RiodeJaneiro,p.1-2,2014.Disponívelem:www.clam.org.br/uploads/arquivo/Transfeminicidio_Berenice_Bento.pdf.Acesso:10out.2019.BENTO,[email protected]ênero,sexualidadeedireitoshumanos.Salvador:EdUFBA,2017.BOURDIEU,Pierre.A dominação masculina.TraduçãodeMariaHelenaKühner.7.ed.RiodeJaneiro:BertrandBrasil,2010.BOZON,Michel.Sociologia da sexualidade.TraduçãodeMariadeLourdesMenezes.RiodeJaneiro:FGV,2004.BENEVIDES,BrunaG.;NOGUEIRA,SayonaraN.Bonfim.Dossiê Assassinatos e violência contra travestis e transexuais no Brasil em 2018.Disponívelem:https://antrabrasil.files.wordpress.com/2019/01/dossie-dos-assassinatos-e-violencia-contra-pessoas-trans-em-2018.pdf.Acessoem:10out.2019.BUTLER,Judith.Problemas de gênero:feminismoesubversãodaidentidade.TraduçãodeRenatoAguiar.2.ed.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,2008.BUTLER,Judith.Quadros de Guerra:quandoavidaépassíveldeluto?TraduçãodeSérgioTadeudeNiemeyerLamarãoeArnaldoMarquesdaCunha.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,2015.CAMPOS,CarmemHeimde.Teoria Crítica Feminista e Crítica à(s) Criminologia(s):estudoparaumaperspectivafeministaemcriminologianoBrasil.2013.309f.Tese(DoutoradoemCiênciasCriminais)–PontifíciaUniversidadeCatólicadoRioGrandedoSul,PortoAlegre,2013.Disponívelem:https://tede2.pucrs.br/tede2/bitstream/tede/4940/1/453439.pdf.Acessoem: 19set.2019.EFREMFILHO,Roberto.Corposbrutalizados;conflitosematerializaçõesnasmortesdeLGBT.Cadernos Pagu,SãoPaulo,
Capa| Sumário | 68
Sexualidade e gênero: controle e subversão
n.46,p.311-340,2016.Disponívelem:http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-83332016000100311&script=sci_abstract&tlng=pt.Acessoem:10set.2019.FEDORKO,Boglarka;BERREDO,Lukas(Orgd.).O círculo vicioso da violência:pessoastransegênero-diversas,migraçãoetrabalhosexual.SériedepublicaçõesTransrespeitoversusTransfobianoMundo,v.19.TraduçãodeSaraWagnerPimentaGonçalvesJr.Rev.TraduçãodeVivianeVergueiroSimakawa.Malmö,Suécia:TransgenderEurope(TGEU),2017.Disponívelem:https://transrespect.org/wp-content/uploads/2018/01/TvT-PS-Vol19-2017.pdf.Acessoem:10nov.2019.FOUCAULT,Michel.História da sexualidade I:avontadedesaber.TraduçãodeMariaTherezadaC.AlbuquerqueeA.J.GuilhondeAlbuqueruque.19.ed.RiodeJaneiro:Graal,2009.HIRATA,Helena.Gênero,classeeraça.Interseccionalidadeeconsubstancialidadedasrelaçõessociais.Tempo Social,SãoPaulo,v.26,n.1,p.61-73,jun.2014.Disponívelem:http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-20702014000100005&script=sci_abstract&tlng=pt.Acessoem:20out.2019.LEBRETON,David.A Sociologia do Corpo.TraduçãodeSoniaM.S.Fuhrmann.2.ed.Petropólis:Vozes,2007.MENDES,SoraiadaRosa.Criminologia feminista:novosparadigmas.SãoPaulo:Saraiva,2014.MERLEAU-PONTY,Maurice.Fenomenologia da Percepção. TraduçãodeCarlosAlbertoR.Moura.3.ed.SãoPaulo:MartinsFontes,2006.OLSEN,F.Elsexodelderecho.In:RUIA,AliciaE.C.(Org.).Identidad feminina y discurso jurídico.ColeccionIdentidad,MujeryDerecho.BuenosAires:Biblos,2000,p.25-43.
Capa| Sumário | 69
Sexualidade e gênero: controle e subversão
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). ComissãoInteramericanadeDireitosHumanos(CIDH).Violência contra Pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo nas Américas.Washington,EUA:CIDH,2015.Disponívelem:http://www.oas.org/pt/cidh/docs/pdf/violenciapessoaslgbti.pdf. Acesso em:20nov.2019.RUBIN,Gayle.Políticas do sexo.TraduçãodeJamillePinheiroDias.SãoPaulo:UBU,2017.SCOTT,JoanWallach.Gênero e História. TraduçãodeConsolViláI.Boadas.México:FCE,UniversidadAutónomadelaCiudaddeMéxico,2008.TRANSGENDEREUROPE(TGEU).TransMurderMonitoring(TMM). 2,016 reported deaths of trans and gender diverse persons murdered between January 2008 and December 2015. Malmö,Suécia:TransgenderEurope(TGEU),2016.Disponívelem:https://transrespect.org/wp-content/uploads/2016/03/TvT_TMM_TDoV2016_Tables_EN.pdf.Acessoem:10set.2019.TRANSGENDER EUROPE (TGEU). Overdiagnosed but Underserved.Malmö,Suécia:TransgenderEurope(TGEU),2017.Disponívelem:https://tgeu.org/healthcare.Acessoem:03mar.2020.
Capa| Sumário | 70
OS EFEITOS DA PASSABILIDADE: AS DIFERENTES EXPERIÊNCIAS DE MULHERES TRAVESTIS E TRANSEXUAIS E HOMENS TRANSEXUAIS NO TRABALHO
Felipe Franklin Anacleto da Costa17
1 INTRODUÇÃO
Assimcomoemdiversasinstituiçõessociais,sobretudoempaísesdaperiferiacapitalista,omercadodetrabalhoéumambientequeproduzereproduzgrandesdesigualdadesestruturais.Asdiferençasentreastrajetóriasdehomensemulheres(mesmoquandoemconsonânciacomacisgeneridade18emsuasexperiênciaslaboraisevidenciaaurgênciadaproblemáticadadesigualdadedegênero.Menoressaláriosparaosmesmoscargos,nãocumprimentoefetivodedireitoscomoalicençamaternidadeemaioresobstáculosparaalcançarcargosdegestãoeliderançasãoapenasalgunsdosproblemasenfrentadospelasmulheresnotrabalho.
Jánocasodaspessoastravestisetransexuais,enfrentam-seoutros tiposdebarreiras, queexpandemas condiçõesdesafiadoras.Emummundoquebaseiasuasrelaçõessociaisna
17 MestrandopeloProgramadePós-GraduaçãoemSociologia(PPGS-UFPB).GraduadoemComunicaçãoSocialcomhabilitaçãoemRelaçõesPúblicaspelaUniversidadeFederaldaParaíba(UFPB).IntegraoLaboratóriodeEstudosePesquisasemPolíticasPúblicaseTrabalho(LAEPT-UFPB)eoGrupodeEstudosemEtnografiasUrbanas(GUETU-UFPB).E-mail:[email protected].
18 Acisgeneridadepodesercompreendidacomoumtermoquedizrespeitoapessoascujasidentidadesdegêneroestãoemconsonânciacomassuasanatomiasesexosbiológicos.
Capa| Sumário | 71
Sexualidade e gênero: controle e subversão
heteronormatividade,pessoasquenãoseenquadramnospadrõesesperadosdegêneroesexualidadesofremsançõesqueocorremapartirdediversostiposdeviolência,dasfísicasàssimbólicas.Osproblemasmuitasvezescomeçamjánainfânciaemmeioàfamíliaevãoatéavidaadulta,quandoháanecessidadedelutarpelasubsistênciaatravésdotrabalho,cujomercadoformal,émaisumainstânciadeexclusão,emboraemalgunscasosaindahajagozodedeterminadasvantagensemrelaçãoaoutros.
Esteartigovisadiscutirdiferençasentreasexperiênciasvivenciadaspormulherestravestisetransexuaisehomenstransexuaisnomercadodetrabalho.Nestesentido,oconceitodepassabilidade adquirecaráterfundamental,poistratadascondiçõesqueestaspessoasapresentamounãoparaquesuasidentidadesdegêneropassemdespercebidasnoslugaresquefrequentam.
Medianterevisãodeliteraturasobreobrasquetratamdastemáticasgêneroesexualidadeetrabalhoegênero,alémdeumaentrevistarealizadaemvisitasiniciaisaocampodeumapesquisademestradoemandamentointituladaOs impactos do Programa Transcidadania (PMJP/PB) na empregabilidade de travestis e transexuais,defendoqueatrajetóriadehomenstransexuaiséfacilitadaportermaior passabilidadeemrelaçãoàsmulherestravestisetransexuais.
2 QUANDO O GÊNERO INTERDITA O TRABALHO: A REALIDADE DE MULHERES TRAVESTIS E TRANSEXUAIS “NÃO PASSÁVEIS”
Sea inserçãonomercadodetrabalhoformalparaasmulherescisgênerasocorreemmeioaprocessosquepromovemdesigualdadesdeoportunidadesemrelaçãoaoshomenscisgêneros,asexperiênciasdemulherestravestisetransexuaisemrelaçãoaotrabalhorevelamnamaioriadasvezestrajetóriasrepletasde
Capa| Sumário | 72
Sexualidade e gênero: controle e subversão
obstáculosquesematerializamnadiscriminaçãoenaexclusãodestaspessoasdoespaçoformaldetrabalho.
A empresa capitalista é uma das instituições cujainteligibilidadenãoabarcaindivíduosquenãoseenquadramnospadrõeshegemônicosderaça,gêneroecondiçãofísica19. Embora hajamatualmentediversasiniciativasvoltadasparaaintegraçãodepessoasnegras,LGBTsepessoascomdeficiênciasaosquadrosfuncionaisdasempresase/ounodesenvolvimentodeprodutosdirecionadosaestespúblicos,denominadaspelaliteraturadocampodaAdministraçãode“gestãodadiversidade”(FLEURY,2000),compreendoquesãoaçõesinsuficientesdiantedeumaproblemáticadeexclusãomacroestrutural.
Aforteocorrênciadahomofobiainstitucional20atestaestefato.DeacordocomdefiniçãodaextintaSecretariadeDireitosHumanosdaPresidênciadaRepública,essarealidadetratade“formaspelasquaisinstituiçõesdiscriminampessoasemfunçãodesuaorientaçãosexualouidentidadedegêneropresumida”(BRASIL,2011).EmpesquisaquerealizeinoCentrodeReferênciadeEnfrentamentoaLGBTfobianoEstadodaParaíba–EspaçoLGBT,verifiqueimaisde30casosdehomofobiainstitucionalocorridosnacidadedeJoãoPessoaentre2011e2013(COSTA,2014).
Analisaraquestãodaidentidadedegênerosuscitavariadaspolêmicas,aindamaisemcontextosdecerceamentodaliberdadeacadêmicaparadiscutirdeterminadostemasconsideradoscomo
19 Nestecasoapontomaisespecificamenteparaaquestãodadeficiênciafísica,emboratenhaconhecimentoderelatosdepessoasqueforamrejeitadasporempregadoresporestaremacimadopeso.
20 Opteiporadotarnestetextoaexpressão“homofobiainstitucional”porserotermoqueutilizadopeloreferidoórgãoquefaziapartedaadministraçãofederal.CompreendoqueLGBTfobiainstitucionaltalvezsejaumadenominaçãomaisinteressanteporabarcartambémaspessoasbissexuais,travestisetransexuais.
Capa| Sumário | 73
Sexualidade e gênero: controle e subversão
passíveisde“doutrinaçãoideológica”.Estetermoeclodenobojodeumaconjunturasociopolíticamarcadapelanovaascensãodoconservadorismo,concretizadapelaeleiçãoem2018deumgovernodeextremadireitanoBrasil.Todavia,édeextremanecessidadepersistirnadiscussãoenaproposiçãodeestratégiasdeenfrentamentoaosproblemascausadospeladiscriminaçãoquemantêmoBrasilanoapósanonaliderançadorankingdeassassinatosdepessoastransexuais.
SegundoosrelatóriosdaorganizaçãonãogovernamentalTransgenderEurope,167transexuaisforamassassinadosnoBrasilentre1deoutubrode2017e30desetembrode2018(QUEIROGA,2018),númerosqueposicionamopaíscomooquemaismataestapopulaçãoemtodoomundo.NãoéatoaqueaexpectativadevidadeumapessoatransexualnoBrasilédeapenas35anos(BORTONI,2017).
UmadasautorasquecontribuiconsideravelmenteparaodebateacadêmicoacercadadesconstruçãodeumaidentidadefixadegêneroéJudithButler.SuaobraProblemas de gênero: feminismo e subversão da identidade,lançadaem1990nosEstadosUnidos,tevenãoapenasrepercussõesteóricas,mastambémpolíticas,poissepropôsaquestionarosujeitoparaoqualalutafeministaestavadirigida.Obinômiosexo/gêneroqueconsideraosexocomoalgonaturaleogênerocomocaractereculturalmenteconstruídopodesercompreendidocomoabasequealicerçouateoriafeminista,constituindo-secomopontodepartidaparaacríticadaautora(BUTLER,2019).
Embasando-se emFoucault21 e sua genealogia, queinvestigavaasmaneirascomoaconstruçãodesabereseaação
21 Foucault(2014)afirmaqueasexualidadeéumdispositivohistóricoquefoialvodeconstantedisciplinamentoecontrole,sobretudopelaspolíticasdeEstado.Taispolíticassãoobservadasmedianteoconceitodebiopoder,que,
Capa| Sumário | 74
Sexualidade e gênero: controle e subversão
deinstituiçõesconformavampoderesquenãoerambaseadosnadominaçãoenarepressão,masabsorvidospelosindivíduos,Butler(2019)investigacomoaheterossexualidadecompulsóriaeofalocentrismoproduzempoderesediscursosquedefinemasformashegemônicase,portanto,legítimasdevivenciarogêneroeasexualidade.
Demaneiraprovocativa,aautoraquestionaapróprianoçãodesujeito,quenãopodemaisserconsideradocomoumaentidadeestávelepermanente,comonaincessanteafirmaçãodofeminismonadefesadosdireitosda“categoriamulher”.Nolugardadefiniçãodeumsujeitoespecífico,queincideemenquadramentosqueexcluemoutrossujeitos,porquenãopensarnumaconstruçãovariáveldaidentidade?Destafeita,aautoraproblematizaaconstruçãodasidentidadesperformadasdegênerodetravestis,transexuaiseintersexuais,queparaeladeveriamserincluídospelalutafeminista(BUTLER,2019).
Asinscriçõescorporaisdasmulherestravestisetransexuaissãopartefundamentalnaconstruçãodesuasidentidadesdegênero.Trata-sedecorposreinventados,naexpressãocunhadaporBento(2008)paraproporcionaratributosfísicosqueseaproximemdaperformatividadefemininaapresentadapelosseusgestos,indumentáriaseformasdepercebereinterpretararealidadesocial.
Énestadireçãoqueépensadooconceitodepassabilidade,queconformePonteseSilva (2018,p.403): “[..] expõeodesenvolvimentodecontornosetraçoscorporaisque,nolimite,garantemapossibilidadedeumapessoaserreconhecidacomocisgênera”.EmdiálogocomPaulBeatrizPreciado,reflete-sesobreapossibilidadedaagêncianaconstruçãodogêneroedasexualidade,ouseja,asformaspelasquaisosindivíduospodemseutilizarde
emresumo,podeserentendidocomoestratégiasempreendidascomênfasedosgovernosparadisciplinaremoscorposdosindivíduos.
Capa| Sumário | 75
Sexualidade e gênero: controle e subversão
tecnologiasdediversostipos,aexemplodautilizaçãodefármacosedarealizaçãodecirurgias,quepodemserdefinidaspeloconceitode“tecnogênero”(PRECIADO,2018;PONTES;SILVA,2018).
Aotrazeremrelatosdeumconjuntodeinterlocutoresformadopormulheresehomenstrans,essaspesquisasevidenciamumasériederelaçõesqueseformammedianteautilizaçãodestastecnologias,gerandohierarquiasentrequemtemocorpomaispassávelounão,assimcomooreforçoàcisnormatividadecomonormahegemônicadegênero/sexualidade,vistoqueabuscapelapassabilidadeserelacionacomoobjetivode“passarporcis”.Tambémrevelamamaiorfacilidadedoshomenstransnestesentido,poisautilizaçãodehormônioscomoatestosteronaapresentaresultadosmaisimediatosqueoestrogênio,propiciandoodesenvolvimentodecaracterísticasfísicasessenciaisparaaadequaçãoàinteligibilidadenormativadegênero.Umdosentrevistadosafirmou:
[...]quemjáteveumaaltadosedetestosteronanocorponãovaiconseguirreverteramaiorpartedasmudanças.Então,amaioriadoshomenstransquesehormonizamhámuitotempo,vocêvênarua,éhomem.Então,vocêconsegueseperdernomeiodamultidão,umacoisaquenãocostumaacontecercomtravestisemulherestrans.Nãosemváriascirurgiasquealgumasfazem,demodificaçãofacial,demudarascordasvocais,sãocoisasquehomenstransgeralmentenãoprecisamfazerparaseperder(PONTES;SILVA,2018,p.406).
Aspesquisassobreasexperiênciasdemulherestransexuaisetravestiscomotrabalhotemreveladoqueamenorpassabilidadequemuitasdelaspossuemtemdificultadosuasinserções,principalmente
Capa| Sumário | 76
Sexualidade e gênero: controle e subversão
nomercadodetrabalhoformal(MARINHO,2017;HARTMANN,2017;RONDAS;MACHADO,2015).
Éimportantesalientarqueabaixaescolaridade,resultadomuitasvezesdoabandonodaescolanainfânciaounaadolescênciadevidoarecorrentessituaçõesdiscriminatórias,tambémcorroboraparaesteprocesso.Poristoqueagrandemaioriadasmulherestransexuais,éinduzidaagarantirseusustentonaprostituiçãoe/ouemprofissõesligadasaouniversoditocomofeminino,queexigempoucaqualificaçãoeoferecembaixaremuneração,comocabeleireira,faxineira,copeira,etc. (ADELMAN,2003apudHARTMANN,2017).
Otelemarketingéumadasáreasdomercadoquetêmabsorvidocomcertafrequênciamulherestravestisetransexuais.NacidadedeJoãoPessoa,duascall centerssãoasprincipaisparceirasdoProgramaTranscidadania,realizandofrequentementeprocessosseletivoscomcotasparaestapopulação.Nestecaso,ainvisibilidadedasfunções,tornaapresençadastravestisetransexuaisnão“prejudicial”aestasempresas,poiselasseconstituemcomomerasengrenagensdeumatendimentotelefônicoenãoexpõemsuasimagensparaosclientes.Alémdisto,estasempresasprecarizamasrelaçõesdetrabalho,exigindoocumprimentodeumarotinarigidamentecontroladaecronometrada,alémdapressãoconstanteematingirmetaseresultados.
Objetivandoproblematizardemaneiramaisprofícuaasdiferençasentreasexperiênciasdemulheresehomenstransexuaiscomotrabalho,segueumaanálisedetrajetóriadeumhomemtransexual,realizadaapartirdeentrevistafeitaemminhapesquisadecampoinicialnoProgramaTranscidadania.
Capa| Sumário | 77
Sexualidade e gênero: controle e subversão
3 A CONDIÇÃO DE SER PASSÁVEL: ANALISANDO A TRAJETÓRIA DE UM HOMEM TRANSEXUAL
OinterlocutoréumfuncionáriodoProgramaTranscidadania,homemtrans,de30anosdeidade,pardo,comensinosuperiorincompletonaáreadePsicologiaemoradordeumbairroperiféricodacidadedeJoãoPessoa.Viveumauniãoestávelheterossexualcomumamulhercisgêneroetemrendimentodepoucomaisdeum salário mínimo.
Emrelaçãoàvivêncianainfância,afirmanãotersesentidomuitodiferente,poisaindanãosepercebiaenquantotransexual,eramaisumacriançanomeiodetantasoutras.Comopassardosanoseaentradanaadolescência,viusurgirdeterminadasbarreirasculturais,ouseja,papéispré-concebidosparameninosemeninas,mascomeçouarompê-los.“Ialáefaziamesmo”,conta.Aindanaadolescência,percebeuanecessidadedeestarentrepares,pessoascomqueseidentificasse,massemprecomasensaçãodequedestoavadelase/oudoambienteaqueestavaexposto.Paramanterrelaçõescomestaspessoasdizterinterpretadoumpapel.Eracomplicadoseadequaraostrejeitosfemininos,masnãochegouaprejudicarassuasamizades.
AinterpretaçãodepapeisconformeoqueérequeridopelasdiversassituaçõesdavidasocialnoqueserefereapessoasgayselésbicaséanalisadoporSedgwick(2007),fenômenoquedenominadeepistemologiadoarmário.Oarmáriofuncionacomoumdispositivoderegulaçãodavidadestaspessoas,poisaheteronormatividadevigenteemnossasociedadeexigemqueestabeleçam
“[...]novoslevantamentos,novoscálculos,novosesquemasedemandasdesigiloouexposição.Mesmoumapessoagayassumidalidadiariamente
Capa| Sumário | 78
Sexualidade e gênero: controle e subversão
cominterlocutoresqueelanãosabesesabemounão”(SEDGWICK,2007,p.22).
OreconhecimentodointerlocutorcomohomemtransexualveioapenasnoensinomédioquandoumaprofessorasolicitouumtrabalhosobreasiglaLGBT.Apartirdestaexperiência,tevecontatoscomrelatosdeoutroshomenstransexuaisquenarravamadificuldadedevivernumasociedadeLGBTfóbica,pontuandoasestratégiasutilizadasparareafirmarumaperformancemasculina.Foiumprocessoquedemorouparacompreendereparaaceitar.
Aoingressarnafaculdade,nãoestavapreparadoparachegar“transicionado”–aformacomosereferiaaoestadopós-transiçãoenquantohomemtrans–,poissabiaquehaveriaresistências.Iniciouosegundoperíododocursojádepoisdestatransição,encarouumarealidadedeolharesestranhosnoscorredores,conversasnorefeitórioenosdemaisambientesdainstituiçãodeensino.Aspessoasparavameolhavamaqueleindivíduoqueparaelasfugiaàheteronormatividadehegemônicadasociedade.Perdeuamizades,principalmentedemeninas,mastambémrecebeuapoioefortaleceuafetos.FoinestecontextoqueconheceuamigosqueoinseriramnomovimentoLGBTdeJoãoPessoa,estabelecendoassimcontatosdecisivosparaconquistaspessoaiseprofissionais.
Umdosmomentosmaisemblemáticosdesuapassagemporinstituiçõesdeensinofoiaquestãodoreconhecimentoounãodonomesocial.Apósinterromperoprimeirocursouniversitário,decidiufazerumcursotécnico.Nestaépoca,apesardainstituiçãojáterconhecimentodonomesocialdenossointerlocutor,asexpectativasemsabercomoseriachamado(nomederegistro,matrículaounovonome)permaneciam:“Erasempreumasituaçãodeansiedade”.Aofinaldocurso,suaturmaaindanãosabiadesuatransexualidade,momentonoqualumprofessorcontouparaosalunos.Apartirdaípassouaouvirpiadaseautilizaçãodoseunomederegistrocomo
Capa| Sumário | 79
Sexualidade e gênero: controle e subversão
objetivodelheconstranger.Oacontecidoomarcoudeformatãonegativaquenãofoibuscaroseucertificadodeconclusãodecurso.
Atualmente,iniciououtrocursocomonomeretificadoecontoucomoapoiodacoordenadoraquedeantemãojásabiacomoagirnestecaso.Destavezdecidiunãoseassumircomotransexualparaaturma,poisalémdejácontarcomapassabilidadeproporcionadapelatransição,nãoqueriaqueistofossefocodesuaspreocupações.Almejavafocarexclusivamentenosestudos,semoutrasexpectativasdequalquerordem:
Eraaprimeiravezqueeupoderiafocarnocursosempreocupaçãocomnomesporquejáeraretificado.[...]Quandosecolocacomotranssuavidatodaéquestionada.Sevocêtemumrelacionamento,todomundoquerentrarnasuaintimidade.“Ah,mascomovocêsfazemisso?”,“Ah,comoétransar?”Acabatendoquerespondermuitacoisadesnecessária.
Noqueconcerneàsexperiênciascomotrabalho,suatrajetóriainiciouaindanaadolescênciacomojovem-aprendiz,umamodalidadedecontratodetrabalhoquebuscainserirajuventudenomercadodetrabalhodemaneirasemelhanteaumestágio.Ointerlocutorafirmaquealémdenãoterencontradomuitaresistêncianoacessoaomercadodetrabalho,suasoportunidadesseampliaramapósatransição.
Umdeseusrelatosmaismarcantesrefere-seaumasituaçãoemqueacompanhouumacolegaquefoideixarumcurrículoquandoogerentedoestabelecimentooabordouequestionouoporquêdelenãodeixartambém.Depoisdeapresentarocurrículo,participoudeprocessoseletivoefoicontratadocomcarteiraassinada.Mesmoaindanãotendoconcluídoatransiçãonaépocadesteemprego,jáeratratadopelonomesocialpeloscolegasdetrabalho.Seusdocumentosforamtratadoscommuitocuidado
Capa| Sumário | 80
Sexualidade e gênero: controle e subversão
peladireção,queosmantinhasobacessorestrito.Umaafirmativaresumiumuitobemestasuaexperiência:“Encontreimeuportoseguro”.Apesardisso,tambémrelataalgumasdificuldades,comoousodobanheiromasculinoqueeracompartilhadocomopúblicoconsumidor.Comoaindanãohavia“transicionado”,suavozerafina,oquedemandoutraquejoparasairdesituaçõesindelicadascomoquandoalgunshomensqueriamapalparoseuórgãosexualparaverificarsuacondição.
Tambémtrabalhounainformalidade,vendendocosméticosdeportaemporta.Aremuneraçãonãoerasignificativaeoscilavabastantedeacordocomademanda,massegundoele,naquelemomentoeraaoportunidadequetinha.Eraumarelaçãodetrabalhomarcadapelainstabilidade,umfenômenoanalisadoporautorescomoSennett(2009)queutilizandodiversosexemplosdetrajetóriasdetrabalhadoresemváriasáreasdefendequeasconfiguraçõescontemporâneasdasrelaçõeslaboraisvêmprovocandoumaperdadevaloreséticoscomotrabalho,corroendoocaráterdosindivíduoseimpossibilitandoumaexperiênciadevidaseguraelinear.
Noentanto,aatualvivênciacomotrabalhodomeuinterlocutorémarcadadecertomodopelaestabilidade,apesardenãoserfuncionáriopúblicoconcursado.TrabalhandonoProgramaTranscidadania,possuiumarotinageralmentefixa,realizandoatividadestécnico-administrativas,dedivulgaçãoedecapacitaçãoparaparceirosdoprograma.UmambientecomdiversoscolegasLGBT,queofazemsesentirconfortável,segundoele,comoseestivesseemcasa.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apósaanálisedebibliografiaquetratadastemáticasdegêneroesexualidadeedetrabalhoegênero,comotambémde
Capa| Sumário | 81
Sexualidade e gênero: controle e subversão
umaentrevistacomumhomemtransexual,pudeforneceralgumaspistasdecomoseconstróiadiscriminaçãosofridaportravestisetransexuaisquesematerializanaexclusãodestapopulaçãodomercadodetrabalhoformal.
Acioneioconceitodepassabilidadeparamostrarquemesmoentreumsegmentodepessoasvulnerabilizadas,ocorremalgumasassimetriasquecolocamalgumaspessoasemvantagememrelaçãoàsoutras.Nestecaso,oshomenstransexuaisporpossuíremmaiorpassabilidade,conseguemtransitarnomeiosocialsemteremsuascondiçõesdepessoastranspercebidasporoutraspessoas,obtémmaiorfacilidadeparaconquistarpostosformaisdetrabalho.Jáasmulherestravestisetransexuaisporseremmenos“passáveis”sãoexcluídasdomercadodetrabalho,processoqueevidencianãosóaLGBTfobia,mastambémamisoginiaaqueestãosubmetidas.
Valesalientarquedebaterestetemaimplicairalémdasquestõesdegêneroedesexualidade,mastambématentarparaadiscussãoracial,poishomenstransexuaisemulherestravestisetransexuaisnegros,porexemplo,vivenciamoutrasformasdeopressãoqueimpactamincisivamentesobreamaneiracomosemanifestaofenômenodapassabilidade.
REFERÊNCIAS
BENTO,Berenice.A reinvenção do corpo:sexualidadeegêneronaexperiênciatransexual.RiodeJaneiro:Garamond,2006.BORTONI,Larissa.Expectativadevidadetransexuaiséde35anos,metadedamédianacional.PorLarissaBortoni.Agência Senado,Brasília,20jun2017.Disponívelem:https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/especial-cidadania/expectativa-de-vida-de-transexuais-e-de-35-anos-metade-da-media-nacional. Acessoem:15out.2019.
Capa| Sumário | 82
Sexualidade e gênero: controle e subversão
BRASIL. Relatório sobre violência homofóbica no Brasil: ano de2011.Brasília,DF:SecretariadeDireitosHumanosdaPresidênciadaRepública,2012.Disponívelem:http://www.sdh.gov.br/assuntos/lgbt/pdf/relatorio-violencia-homofobica-2011-1. Acessoem:03mar.2014.BUTLER,Judith.Problemas de gênero:feminismoesubversãodaidentidade.TraduçãodeRenatoAguiarRiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,2019.COSTA,FelipeFranklinAnacletoda.Opapeldoprofissionalderelações públicas na gestão do relacionamento com o público LGBT nas organizações.2014.80f.Monografia(GraduaçãoemRelaçõesPúblicas)–CentrodeComunicação,TurismoeArtes,UniversidadeFederaldaParaíba,JoãoPessoa,2014.FLEURY,MariaTerezaLeme.Gerenciandoadiversidadecultural:experiênciasdeempresasbrasileiras.RAE – Revista de Administração de Empresas,SãoPaulo,v.40,n.3,p.18-25,2000.FOUCAULT,Michel.A história da sexualidade:avontadedesaber.TraduçãodeMariaTherezadaCostaAlbuquerqueRiodeJaneiro:PazeTerra,2014.HARTMANN,JenniferMorel.Transições e resistências: empregabilidadedemulherestransetravestisemFlorianópolis.2017.151f.Dissertação(MestradoemSociologiaPolítica)–CentrodeFilosofiaeCiênciasHumanas,UniversidadeFederaldeSantaCatarina,Florianópolis,2017.MARINHO,Silvana.Juventude(s)trans:subjetividadesecorporalidadespossíveisnomundodotrabalho?O social em questão,RiodeJaneiro,ano20,n.38,p.111-132, mai./ago.2017.PONTES,JúliaClarade;SILVA,CristianeGonçalves.Cisnormatividadeepassabilidade:deslocamentosediferenças
Capa| Sumário | 83
Sexualidade e gênero: controle e subversão
nasnarrativasdepessoastrans.Periódicus,Salvador,v.1,n.8, p.396-417,2018.PRECIADO,PaulBeatriz.Texto junkie:sexo,drogasebiopolíticanaerafarmacopornográfica.SãoPaulo:N-1Edições,2018.QUEIROGA,Louise.Brasilseguenoprimeirolugardorankingdeassassinatosdetransexuais:AONGTransgenderEuropedivulgoudadosnestasemana,emrazãodaproximidadedoDiaInternacionaldaMemóriaTrans,nopróximodia20.O Globo. SãoPaulo.16out.2018.Disponívelem:https://oglobo.globo.com/sociedade/brasil-segue-no-primeiro-lugar-do-ranking-de-assassinatos-de-transexuais-23234780.Acessoem:15out.2019.RONDAS,LincolndeOliveira;MACHADO,LucíliaReginadeSouza.Inserçãoprofissionaldetravestisnomundodotrabalho:dasestratégiaspessoaisàspolíticasdeinclusão.Pesquisas e práticas psicossociais,SãoJoãodelRei,v.10,n.1,p.192-205,jan./jun.2015.SEDGWICK,EveKosofsky.Aepistemologiadoarmário.Cadernos Pagu,Campinas,n.28,p.19-54,2007.SENNETT,Richard. A corrosão do caráter: consequênciaspessoaisdotrabalhononovocapitalismo.RiodeJaneiro:Record,2009.
Capa| Sumário | 84
ENTRE FEMINICÍDIO E LGBTQI+FOBIA: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE CRIMES DE ÓDIO NO FLUXO DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Helma J. S. de Oliveira22
Mariana Melo23
Marcela Zamboni24
1 INTRODUÇÃO
Nesteartigo,buscamosrefletircomooódiopermeiaossignificadosdoscrimesporLGBTQI+fobia25efeminicídio.Paratanto,iremosnosbasearemdiscussõessociojurídicasqueesboçaramadecisãojudicialdeequipararahomofobiaeatransfobiaao
22 DoutoraemSociologiapeloProgramadePós-GraduaçãoemSociologiadaUniversidadeFederaldaParaíba(PPGS-UFPB).LíderdoGrupodeRelaçõesAfetivaseViolência(GRAV).E-mail:[email protected].
23 DoutoraemSociologiapeloProgramadePós-GraduaçãoemSociologiadaUniversidadeFederaldaParaíba(PPGS-UFPB).PesquisadoradoGrupodeRelaçõesAfetivaseViolência(GRAV).E-mail:[email protected].
24 ProfessoradoDepartamentodeCiênciasSociaisedoProgramadePós-graduaçãoemSociologiadaUniversidadeFederaldaParaíba(UFPB).LíderdoGrupodeRelaçõesAfetivaseViolência(GRAV).E-mail:[email protected].
25 OptamosporutilizarotermoLGBTQI+fobiaafimdeincorporaraodebateasgradaçõesda(re)produçãodosdiscursosdeódioassociadosaofeminino,nofluxodosistemadejustiçacriminal.Poroutrolado,asexpressõeshomofobia,lesbofobia,bifobiaetransfobiaservemparasituarasparticularidadesdasopressõessofridaspelossujeitosquenãoseenquadramnamatrizinteligívelde gênero.
Capa| Sumário | 85
Sexualidade e gênero: controle e subversão
crimederacismo,porrepercussãodojulgamentodaAçãodeInconstitucionalidadeporOmissãon.26/DF,em13dejunhode2019,bemcomoasqueconstruíramotextodaLeinº13.104,de09demarçode2015,queprevêofeminicídiocomoqualificadorado crime de homicídio.
Asexperiênciasdasautorascompesquisassobregênero,violênciaepráticasdejustiçanocampodostribunaisdojúriedainvestigaçãopolicial(ZAMBONI;OLIVEIRA,2015;2016;MELO;ZAMBONI,2017;ZAMBONI;FARIA,2018;NASCIMENTO,OLIVEIRA;NASCIMENTO,2019;OLIVEIRA,2019;OLIVEIRA;ZAMBONI, 2020;MELO,2020) comvistas a investigar aapreensãodosfeminicídiosedoshomicídiosLGBTQI+fóbicosporpartedosagentesdejustiça–juízesdedireito,promotoresdejustiça,defensorespúblicos,jurados,delegadoseinvestigadores–suscitaramo interesseemanalisarosmodosdiversosderepresentaçãodoscrimesdeódiobaseadosnasquestõesdegêneroesexualidade.
Oódioea intolerânciapodemserentendidoscomoemoçõesreavivadasporconcepçõessocioculturaisdeextermíniodepessoasegrupossociaisqueexperienciamasrelaçõessociaisdemododiferentedeumidealmoral.SegundoBarbaraPerry(2001),crimesdeódiosãoviolênciasquetraduzemodesprezo,adiminuiçãoeavontadedeeliminaçãodooutro,partedeumgrupotidocomodominável.
Emboraoutras formasdessasviolênciaspossamserconcretizadasdeacordocomaintersecçãodemarcadoresdegênero,raça,religião–comoasagressõesfísicascorretivascontralésbicaseadestruiçãodeobjetosrepresentativosdaculturanegraeafroreligiosa,porexemplo–,nestaoportunidademanteremosnossaanálisesobreoscrimesdeódioquecarregamaintençãodemortedeoutrapessoa.
Capa| Sumário | 86
Sexualidade e gênero: controle e subversão
A“chavedeleitura”temrelaçãocomosconceitosdeLGBTQI+fobiaedefeminicídioque,aprincípio,destacamoódio,aaversão,aojerizaaofemininoeàsperformatividadesdegêneroesexualidadediversasdosistemasexualbináriocomoforçamotrizdessescrimes,aopassoque,napráticajurídicaepolicial,revelaminteligibilidadesdiferentessobreasmotivaçõescriminosas,que,porexemplo,possibilitamabrandamentospunitivosparaoatocriminoso.Aindaqueocrimedeódionãosejanecessariamentemotivadopela“paixão”ouporoutraemoçãoexacerbada,éinteressantenotarcomoasreflexõescomrelaçãoàLGBTQI+fobiaeaofeminicídiopodemconstituirasformulaçõesdestascategorias.
AseguirdiscutiremosprimeiramenteaevocaçãodoódioafimdeconstruirosignificadodoscrimesLGBTQI+fóbicosesua“acomodação”ànormajurídica.Emseguida,apresentaremosascircunstânciaslegaisquedefinemocrimedefeminicídio,bemcomoosabrandamentosdoódiohistoricamenteverificadosquandorelaçõesafetivasfazempartedocontextodocrime.
2 LGBTQI+FOBIA: O ÓDIO COMO PRINCIPAL MOTIVAÇÃO
OscrimescommortemotivadospelachamadaLGBTQI+fobia têmocupadovastoespaçonodebateenvolvendoaviolênciacontrapessoasLGBTQI+noBrasil.ParaBorrillo(2010,p.15),demaneiraresumida,ahomofobia26é“aatitudedehostilidadecomoshomossexuais”.ApalavrahomofobiachegaaoBrasilapartirdo
26 Apesardoconceito“homo”tersidoinicialmenteutilizadoparadesignarossujeitosLGBTQI+,háumsentidomaisestritodotermoquedenominaidentidadesmasculinashomossexuais.Emdecorrênciadisso,outrascategoriasidentitáriasforamincorporadas:lesbofobia,bifobia,travestifobia,transfobia.Aqui,tomamosotermohomofobiaemseusentidomaisamplo.
Capa| Sumário | 87
Sexualidade e gênero: controle e subversão
termohomophobiaporinfluênciaamericana(WEINBERG,1972),destacandoossentidosde“medo”quedeterminadossujeitospudessemterdepessoasnão-heteressoxuaisoucomidentidadesdegêneronãofemininasoumasculinas.Talnoçãosobrea“fobia”parecetersedeslocadoparaexplicaçõesdeviolênciascometidascomoarroubosprovocadospordesprezoeódio.
Noanode2019,oSTFenquadrouahomofobiaeatransfobiacomocrimesderacismo,segundoaLeinº7.716,de5dejaneirode1989(cf.BRASIL,2019).Estaprevisãodeveserseguidaenquantonãosurgirlegislaçãoespecíficatratandodoproblemasocial,tarefaquecabeaoCongressoNacional,aindamarcadopeloconservadorismoepreconceitonotocanteaotema.
Oscrimesde racismoeLGBTQI+fobiaatingemumacoletividadeindeterminadadeindivíduosdemodoaofenderaintegridadedeumaraçaouexpressãodegêneroesexualidadeeocorreporaçãodolosa,ouseja,existeaintençãodecausarsofrimentoapessoaouagruposegregado.Diantedasaçõesviolentas,aintençãodemorte,deextermínio,configuraocrimedehomicídio(tentadoouconsumado)aserjulgadonostribunaisdojúri,equalificadopormotivaçãotorpe.
Nocampopolicial,ondedesenrola-seainvestigaçãodocaso,otemaétratadodediferentesmaneiras,adependerdoestadofederativo.AlgunsdelescontamapenascomcentrosdereferênciadeapoioàcomunidadeLGBTQI+,enquantooutrosefetivamentepossuemdelegaciasespecializadasnoatendimentodecrimesraciaisedeintolerância,comonoRiodeJaneiro,PiauíeParaíba27.Istofaz
27 OestadodaParaíba,comoanalisadoporMelo(2020),criouem2009a DelegaciaEspecializadadeRepressãoaosCrimesHomofóbicosde João Pessoa.Esta,em2017,tornou-seaDelegaciaEspecializadadeRepressãoaosCrimesHomofóbicos,Étnicos-RaciaiseDelitosdeIntolerânciaReligiosadaCapital(DECHRADI),amparandoadenúnciadeoutrostiposdecrimesde
Capa| Sumário | 88
Sexualidade e gênero: controle e subversão
diferençanotipodeleituraaserrealizadaarespeitodoscrimesinvestigados,bemcomonapercepçãodaimportânciadadopeloEstadonotocanteàefetivaçãodaspolíticasdesegurançaquepossamtraduziroreconhecimentodesujeitosLGBTQI+comocorpos que importam(BUTLER,2011).
AcaracterizaçãoeadefiniçãodehomofobiaouLGBTQI+fobia,bemcomodasmoralidadesenvolvendoaconstituiçãodasimagensdevítimaealgoznaconclusãodoinquéritopolicial,geramefeitosmaisàfrentenaapreensãodotemaporoperadoresjurídicosatuantesnostribunaisdojúri.Nocasoparaibano,porexemplo,aindaantesdojulgamentodoSTFquedefiniuLGBQTI+fobiacomocrimederacismo,foipossívelobservaremumcasoespecífico,oenquadramentodaqualificadorademotivotorpe,baseadonadefiniçãodemotivação homofóbica28presentenaconclusãodoinquéritopolicial(MELO,2020).
TeoricamenteénecessárioconsiderarmosqueLGBTQI+fobiacorrespondaaumconceitoamploequeprocuradarcontadaviolênciaenvolvendoumagamadesujeitosdiversos,emrazãodesuasidentidadesdegêneroeorientaçõessexuais.Nestesentido,éimportanteanalisarprocessosdeviolênciaemmeioaumviésmaisamplodeelementoscomocor/raça,geração,territorialidade,classe,dentreoutros(EFREMFILHO,2017),que,emconjunto,resultamnamorteviolentadeumapessoaconsideradaforadamatrizheteronormativadegênero.
Poroutrolado,notamosquecomumentenosistemadejustiçacriminalasinterpretaçõesacabamdesconsiderandoopesodosmarcadoressociaisdadiferençaparaodesenrolar
ódio.ÉimportantedestacarqueoscrimescommortedepessoasLGBQTI+sãoinvestigadosnesteestadopelaDelegacia de Homicídios.
28 TermoutilizadopelosentrevistadosnoperíododapesquisaparadesignaramotivaçãodeterminantedoscrimesdeódiocontrapessoasLGBTQI+.
Capa| Sumário | 89
Sexualidade e gênero: controle e subversão
dosjulgamentosenvolvendomortedesujeitostidoscomomaisvulneráveis(CORRÊA,1983;ADORNO,1994;FACCHINETO,2012;ZAMBONI;OLIVEIRA,2016;OLIVEIRA,2019;OLIVEIRA;ZAMBONI,2020).Significadizerqueexistemdeterminadasexpectativassociaisaserem“cumpridas”pelaadequaçãodospapéissexuaisedegênero.SegundoSérgioAdorno(1994),osagentesestataisformulam“teorias”paraexplicarcomoeporquaismotivoscrimeseviolênciasacontecem.OscrimesdehomicídiomotivadospelaLGBTQI+fobiaacabamtambéminseridosnessecontexto.
MendeseSilva(2020)observaramqueentre2002e2016foramoshomossexuaismasculinosesujeitostransgênerososmaisvitimadosdeformaletalnoBrasil.Socialmenteasuposta“inadequação”desujeitostidoscomomasculinosequepassamodesempenharpapéisobservadoscomodofeminino,ultrapassamoslimitesdamatrizdegênerodita“saudável”.Comorespostaaoqueéentão“patológico”,temosaexacerbaçãodaviolência,traduzidacomoódio.Interessa,portanto,observaraconexãoentresexualidadeditadissidenteemotivaçãoLGBTQI+fóbicanoscrimesdehomicídiodepessoasLGBTQI+poresteviés.
Nota-secomoentreLGBTQI+eódiosurgeconstanteproximidade,emespecialnodiscursosocial,mastambémmidiático,científicoejurídico(MELO,2020).Oconceitodehomofobia,violênciahomofóbicaoumotivaçãohomofóbicaparacrimesdehomicídiovincula-sehistoricamenteaossentidosformuladoscomooseguinte:
Esteódioexplícito,cruel,persistenteegeneralizado,vaidoinsultoeameaça,agravesepisódiosdediscriminação,constatadosemtodosossegmentoseesferassociais.Incluemviolênciafísica,golpesetortura,culminandoemviolentíssimosepavorososassassinatos–viaderegracometidoscomrevoltantesrequintesdecrueldade,abrangendo
Capa| Sumário | 90
Sexualidade e gênero: controle e subversão
elevadonúmerodegolpesetiros,ousodemúltiplosinstrumentosetorturaprévia.Crimesdeódioemqueahomossexualidadedavítimamotivouaagressãoepesoudefinitivamentenomodusoperandidohomicida(MOTT;CERQUEIRA,2003,p.8).
Namedidaemqueascaracterísticasdaviolênciaseachamdiretamenterelacionadasaosentidodeódio,estesurgeenquantocategoriadesentimentoqueexplicaper siaLGBTQI+fobia.Nesteínterimoódioaproxima-sedossentidosdedesprezo,excessoedescontrole.Nãoodesprezopelosujeito,masodesprezopelasexualidadeouidentidadeestigmatizadadetodosqueseencaixemnestespapéis.Nestasreflexõesempreendidassocialmente,quando“nadamais”explicaamortedeumapessoaLGBQTI+,éoódio o componenteesclarecedordocrime.
Amortecomexcessosdeferimentos,decapitaçõesetentativasdeapagarqualquersinaldaexistênciadeumcorpoesuaidentidade(STANLEY,2011)tornaexplícitooódiocontrapessoasLGBTQI+.
OvínculoentreódioeLGBTQI+fobiacomomotivaçãoparaumhomicídiochamaatençãoparaofatodequepessoascompráticassexuaiseidentidadesditasdissidentestêmconvividoháséculoscomoestigma,eapenasnasúltimasdécadastêmtidovozativanodebatepordireitoscivisnomundo.Contudo,essaimbricaçãodificultaumamaiorcompreensãodasdiversasrazõesquecompõemumcrimequeculminanamortedesujeitosqueocupamdiferentesníveisdeclasse,coresegeraçõesetc.(EFREMFILHO,2017).Significadizerqueoódiopodeserumcomponenteimportantenaexplicaçãodocaso,masnãodeveriaseroúnico.
Nestesentido,estesentimentosurgeculminantenaexplicaçãodamortedapessoaLGBTQI+,enãonecessariamentepelanoçãoaproximadade“crimedeódio”,masprincipalmentepor
Capa| Sumário | 91
Sexualidade e gênero: controle e subversão
darcontornosdeinsanidadeaosujeitoquecometeocrime.EstapercepçãoseaproximadoquepensaBorrilho(2016,p.99):
[...]umtipodepersonalidadehomofóbica,enquantoestruturapsíquicadetipoautoritário[que]funcionacomocategoriascognit ivasextremamentenítidas(estereótipos),permitindo-lheorganizarintelectualmenteomundoemumsistemafechadoeprevisível.
Destaforma,enquantooproblemadoestigmasocialéminimizado,osentimentodeódiocomopessoalmentedesenvolvidoenãocontroladopeloalgoz(HEREK,2004)sedestacatambémnosdiscursosinstitucionais.Temosumimportanteparaleloentreestruturassociaisestigmatizanteseatuaçõesindividuaisviolentas.
Namedidaemqueo tribunaldo júri–a instituiçãoresponsávelporjulgaroscrimesqueatentamintencionalmentecontraavida–écompostoporsujeitosqueapoiam-seoureforçampapéismorais,inclusiveosreferentesagêneroesexualidade(CORRÊA,1983;ZAMBONI;OLIVEIRA,2015),estessentidossobreoódiotambémpodemserreforçadosouamenizados,adependerdasintençõeseinterpretaçõesdodiscursoquecasemcomosestigmassociaissobrepessoasLGBTQI+.
AsanálisessobreaspercepçõesdejuízesleigosatuantesnostribunaisdojúrideJoãoPessoa,Paraíba,sobrehomicídiosoriundosderelaçõesLGBTQI+afetivaseoutrasmortesviolentasintencionaiscontrapessoasLGBTQI+apontamque,diferentementedoscasosenvolvendocasaisheteronormativoscompostosporpessoascisgêneras29,oscrimesentrecasaisdomesmosexoeramdistinguidoscomomais“passionais”–emotivos,maisviolentos,
29 Pessoascissãoaquelascujogêneroatribuídoapartirdoseunascimentocorrespondeaogênerocomoqualseidentifica.
Capa| Sumário | 92
Sexualidade e gênero: controle e subversão
maisexagerados(cf.MELO;ZAMBONI,2017;MELO,2020).Eram,segundooutrasfalas,motivadosporinteressefinanceiro,oupelointeresseexclusivamentesexualenãoamorosopelavítima.Nistotambémestariampresentessituaçõesdechantagem,extorsãoeassimpordiante.
Oargumentodo“amardemais”,oamorromânticoque“adoece”,nãoparecesurgirnosdiscursosdaquelesquejulgamoscasos.Éjustamenteseusentimentocontrário,oódio,quesevinculaàimagemsobaqualosoperadoresdosistemadejustiçacriminalseapoiamereforçamassuastesesdirecionadasàspessoasLGBQTI+.
Nestediscurso,estaspessoassupostamenteincapazesdeseremamadasoudeamar,morremnasmãosdeseusalgozescomovítimasenganadas,quesearriscamconstantementenatrocadeparceiroseematos“promíscuos”–comosenãohouvesserelaçõesamorosasestabelecidasforadoenquadramentoheteronormativo.Quandonão,éoódiodesmedidooresponsávelporlevarsujeitosLGBTQI+fóbicosanãolidarcomsua“irritação”ebuscareliminarpessoasreconhecidasporaquelescomonão-heterossexuais.Detodaforma,oódiopareceprevalecercomoelementoexplicativoparadefiniçãodoscasosditosmotivadosporLGBTQI+fobia.
3 FEMINICÍDIO: O PERCURSO DO AMOR AO ÓDIO
Asdiscussõessobreossignificadossocioculturaisqueimplicamemviolências letaiscontramulheresbaseadasnadesigualdadedegênerorequeriamumaposturapolíticanosentidodenomearumsignificantequereunisseumconjuntodecontextosecircunstânciasreveladorasdasreproduçõesdepráticasviolentas.Então,surgiuofemicide (RADFORD;RUSSELL,1992),oportunamentetraduzidoerepensandoemseusconceitosparaserapresentadoatravésdainsígniadefemicídiooufeminicídio
Capa| Sumário | 93
Sexualidade e gênero: controle e subversão
nospaíseslatino-americanos(CARCEDO;SAGOT,2006;SEGATO,2006;LAGARDE,2006).
Quandonosreportamosaofenômenodofeminicídio,asprimeirasreflexõestraçadasporDianaRussellesuasparceriasformularamoentendimentodequeeraprecisoanunciarqueaviolênciacontramulheres,porseremmulheres,repercuteemmorte.Assim,ofemicidefoidescritocomoamortedemulheresporhomensmotivadaporódio,desprezo,prazerousensodepropriedade(RUSSELL,2009).
EmboracontextosfeminicidaseLGBTQI+fóbicossejamdecorrentesdereiteraçõesderegrassocioculturaisqueagregamsexoaogênero–fêmea/mulheremacho/homem–etomamosexocomalgopré-discursivo(BUTLER,2017),parecequeasformasdeumamulherperformarsuafeminilidadesãomaisdrásticaseabjetasquandoapresentamumreposicionamentodegêneroesexualidade,pensandoespecialmentenasmulherestransexuaiselésbicas.Dentreascondiçõesdevulnerabilidadedavidadasmulheres,aquelasqueacolhemperformatividadesdiversasdosistemabinárioalcançamfacilmenteomenosprezo,oódiodegruposdesujeitosintolerantesàsdiversidadesdegêneroesexualidade,repercutindoemfeminicídiostransfóbicoselesbofóbicos.
NoBrasil,oesforçopolíticodenomearosassassinatosdemulheresresultounaelaboraçãoleinº13.104/2015,aqualinseriuofeminicídioentreascircunstânciasqualificadorasdocrimedehomicídio.Destacarofemini-teveointuitodetornarinteligívelquemulheressãomortasporcircunstânciasespecíficas,porreflexodaculturamachistaemisóginaquereiteraocredodavalorizaçãodamasculinidadeemdetrimentodafeminilidade.AvançolegislativosemelhanteaestetambéméesperadonoqueserefereàspráticasLGBTQI+fóbicas.
Nalegislaçãobrasileiraofeminicídioficoudefinidocomoohomicídioexercidocontramulher“porrazõesdacondiçãodesexo
Capa| Sumário | 94
Sexualidade e gênero: controle e subversão
feminino”.Essasrazõesseriama“violênciadomésticaefamiliar”e“menosprezoediscriminaçãoàcondiçãodemulher”(BRASIL,2015).Aadoçãoda“condiçãodesexofeminino”surgiudeumprocessolegislativoconflituosoemqueasliderançaspolítico-feministasatuantesnadiscussãodeaprovaçãodoprojetodeleinãopuderamsustentarapermanênciadosignificante‘gênero’,soboônusdenãoteraleiaprovada,postoqueapolíticanacionaldeentãosofria(esofre)comumacruzadamoralfrenteaumadita“ideologiadegênero”.
Dentreascaracterísticasligadasàdesignaçãodofeminicídio,estãoaojeriza,amisoginia–istoé,aaversãoaofeminino–eoódio.Eentreosfeminicídios,aqueleschamadosde‘íntimos’sedestacam,porserempraticadosporrepercussãoderelaçõesafetivase/oudoméstico-familiares,alémdemuitasvezesseroatoúltimodeum continuumdeviolênciasritualizadas.Pordécadasessescrimesforamanunciadoscomo“crimesdepaixão”.Umaviolentaemoçãoacometeriahomensquetinhamsuasmasculinidadesabaladassupostamenteporpráticasdeinfidelidadeoupelaprogressivaautonomiadasmulheres.
AconstruçãodoentendimentodequetaiscrimesnãocorrespondemaconflitosprivadosesimaassuntopúblicoedenecessáriarepresáliadoEstadoedasociedade,aospoucosmudouohistóricodeabsolviçãoconcedidaaosautoresdocrime,combasedoargumentoda“legítimadefesadahonra”(cf.CORRÊA,1983;ELUF,2009).Porém,ainsígniadecrimepassionalaindaexisteeosassassinatosdemulheresbaseadosnaopressãodegêneropermaneceramcomsuasreprimendasamenizadasporargumentosjurídicosemdefesadareduçãodepenapor“violentaemoção”(logoemseguidaàinjustaprovocaçãodavítima),deacordocomotextodoCódigoPenalbrasileiro.Noentanto,MariaLuizaElufponderaque
Capa| Sumário | 95
Sexualidade e gênero: controle e subversão
Apaixãonãobastaparaproduzirocrime.Essesentimentoécomumaossereshumanos,que,emvariáveismedidas,jáosentiramousentirãoemsuasvidas.Nemporissopraticaramaviolênciaousuprimiramaexistênciadeoutrapessoa.Apaixãonãopodeserusadaparaperdoaroassassinato,senãoparaexplicá-lo(ELUF,2009,p.134).
Emoçõesestãopresentesnosrelatosdasmotivaçõesatribuídasaosfeminicídiosíntimos:amor,paixão,ciúme,abandono.Entretanto,aaversãoeoódionãoserevelamclaramentenemnosdiscursosdosautoresdoscrimesnemdosagentesdejustiçaquecolaboramparaojulgamentoedecisãojudicial.IssopodeserverificadonosresultadosdaspesquisasempíricassobreapercepçãodosagentesdoSistemadeJustiçaCriminalatuantesnostribunaisdojúriedelegaciasdeJoãoPessoa(ZAMBONI;OLIVEIRA,2015;2016;MELO;ZAMBONI,2017;ZAMBONI;OLIVEIRA;NASCIMENTO,2019;OLIVEIRA,2019;MELO,2020),antesedepoisdaaplicaçãodaleidofeminicídioedadecisãodoSTFqueequiparouahomofobiaeatransfobiacomocrimesderacismo.Porexemplo,napesquisaocorridaentreosanosde2015e2018,queconstituiuotrabalhointituladoO crime de feminicídio e a percepção dos agentes da justiça: uma análise sociológica a partir dos Tribunais do Júri de João Pessoa, Paraíba(OLIVEIRA,2019),verificou-sequeemapenasumdosjulgamentosobservadosnostribunaisdojúri,oódioeamisoginiaforamressaltadoscomomotivadoresdocrimejulgado30.
Inclusive,umdosargumentoselencadosnoRelatórioFinalda CPMI31(BRASIL,2013)eradequeacategoriafeminicídio deveria serumcontrapontodiscursivoaoideáriodoscrimespassionais.Os
30 Casoanalisadonaseção6.3daobra.
31 ComissãoParlamentarMistadeInquérito(CPMI),criadaparainvestigarasituaçãodaviolênciacontraamulhernoBrasileapurardenúnciasdeomissão
Capa| Sumário | 96
Sexualidade e gênero: controle e subversão
motivosreaisdocrimedefeminicídioseriamasculturasmachistaemisóginareiteradasquefavorecempráticasdedominaçãomasculinaemfacedasmulheres.
Ofeminicídioéainstânciaúltimadecontroledamulherpelohomem:ocontroledavidaedamorte.Eleseexpressacomoafirmaçãoirrestritadeposse,igualandoamulheraumobjeto,quandocometidoporparceiroouex-parceiro;comosubjugaçãodaintimidadeedasexualidadedamulher,pormeiodaviolênciasexualassociadaaoassassinato;comodestruiçãodaidentidadedamulher,pelamutilaçãooudesfiguraçãodeseucorpo;comoaviltamentodadignidadedamulher,submetendo-aatorturaouatratamentocrueloudegradante(BRASIL,2013,p.898).
Apartirdestatranscriçãofaz-seoportunopensarumpoucosobreo“menosprezoeadiscriminaçãoàcondiçãodemulher”previstonaLei.Talvezessasejaacircunstânciaquemelhorprovoqueaapreensãodoódiopresenteemcasosdefeminicídios.Nodocumentodasdiretrizesparainvestigar,processarejulgarcomperspectivadegêneroasmortesviolentasdemulheresconsta:
Asformasdeviolênciageralmenteenvolvemaimposiçãodeumsofrimentoadicionalparaasvítimas,taiscomoaviolênciasexual,ocárcereprivado,oempregodetortura,ousodemeiocrueloudegradante,amutilaçãooudesfiguraçãodaspartesdocorpoassociadasàfeminilidadeeaofeminino(rosto,seios,ventre,órgãossexuais).(PASINATO,2016,p.16).
porpartedopoderpúblicocomrelaçãoàaplicaçãodeinstrumentosinstituídosemleiparaprotegerasmulheresemsituaçãodeviolência.
Capa| Sumário | 97
Sexualidade e gênero: controle e subversão
Essesatosdedestruiçãoededepreciaçãodenunciamomenorvalor,ouseja,menosprezoàcondiçãodemulherporsermulher,porseugênero.Omenosprezocarregaosignificadodedesvalorização,depráticamisógina,istoé,firmadanoódio,naojerizaàssubjetividadeserepresentaçõesfemininas,sejamelasmulherescis ou trans.Ademais,asalegaçõesde“infidelidadeconjugalfeminina”einconformidadecomotérminodarelaçãoamorosarecorrentenosargumentosde“violentaemoção”ede“crimedepaixão”sãotambémexpressõesdemenosprezoediscriminaçãoàcondiçãodemulher,poisaautonomiadamulhervitimada,adecisãodefindarorelacionamentoamorosonãofoirespeitada.
A amplitude conceitual presente na circunstância“menosprezoediscriminaçãoàcondiçãodemulher”favoreceadisputadediscursosnosentidodedarvisibilidadeacenáriosopressores,deincluirsujeitasqueestãoforadoenquadramento“legítimo”dosermulheredotervidapassíveldeluto(BUTLER,2015),bemcomodealteraraposiçãodenão-lugar(denão-sujeita,deserabjeto,denãointeligível,denãoreconhecível)investidosobrealgumasperformatividadesdegênero.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora os homicídios LGBTQI+fóbicoseosfeminicídiossejamconsideradoscrimesdeódio,estápostoqueaexpressãodaintolerânciasemoduladeacordocomoquantumdeaversão,deojerizaqueseatribuiàsperformatividadesdegêneroesexualidadenãoenquadradasnoidealheteronormativo.ApopulaçãoLGBTQI+tendeasertratadacomocompostaporsujeitosabjetos(BUTLER,2017),nãopassíveisdeconsistente lutosocialdiantedassuasmortesviolentas,aexemplodoinexpressívelouausentepranteamentonoscasosdemortesporlinchamentocoletivo
Capa| Sumário | 98
Sexualidade e gênero: controle e subversão
quevitimizamtravestisemulherestransexuaisrepercutidosnosmeiosmidiáticos.
Nãosignificadizerqueoódioouodesprezonãoestãosignificativamentepresentesnestestiposdecrimes,masdequeéprecisoobservaropesoqueestessentimentos,muitasvezestidoscomoindividuais,têmnaelaboraçãodasexplicaçõesarespeitodasmortesdepessoasLGBTQI+emulheres.Estareflexãodeveráserimportanteprincipalmenteparaanálisesquebusquemcompreendersujeitosqueparticipametransitamentrediferentesgrupos,comonocasodelésbicasepessoastransexuais.
Quandoadiscussãoésobreasmotivaçõesdosfeminicídios,nãoobstanteocarátermisóginopresentenessescrimes,osvestígioseasnoçõessobreoscompromissosafetivosefamiliaresacabamporocultarosentimentodeódio,quetambémcaracterizaocrimedeódio,paraenalteceroutrasemoções:ociúme,apaixão,oamorexacerbado.Noentanto,quandosetratadoshomicídiosqueatingemasrelaçõesamorosasentrecasaisLGBTQI+ afetivos, essas relaçõesdeproximidadesãomenosprezadasdiantedealegaçõesdeoutrosinteresses,nãocabendofalaremamorexacerbadoesimemódioeoportunismo.
Senãohárelaçãodeproximidadeentrealgozevítima,aindaassimasconcepçõesdemenosprezoedediscriminaçãoàcondiçãodemulhersãomaissutisemrelaçãoàquelaquemantémsuaperformatividadedegêneroaproximadaaoidealbinário.Portanto,estápostoqueestessentidossobreoódiotambémpodemserreforçadosouamenizados,adependerdasintençõeseinterpretaçõesdodiscursoquecoadunemcomosestigmassociaissobrepessoasLGBTQI+.
Capa| Sumário | 99
Sexualidade e gênero: controle e subversão
REFERÊNCIAS
ADORNO,Sérgio.Crime,justiçapenaledesigualdadejurídica-Asmortesquesecontamnotribunaldojúri.Revista Usp,[s.l.],n.21,p.132-151,30maio1994.Disponívelem:http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/26942/28720.Acessoem: 16deout.2019.BORRILLO,Daniel.Homofobia:históriaecríticadeumpreconceito.BeloHorizonte:Autêntica,2010BRASIL.CongressoNacional.ComissãoParlamentarMistadeInquérito(CPMI).Relatóriofinal.ComafinalidadedeinvestigarasituaçãodaviolênciacontraamulhernoBrasileapurardenúnciasdeomissãoporpartedopoderpúblicocomrelaçãoàaplicaçãodeinstrumentosinstituídosemleiparaprotegerasmulheresemsituaçãodeviolência.Brasília:SenadoFederal,2013.Disponívelem:https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/relatorio-final-da-comissao-parlamentar-mista-de-inquerito-sobre-a-violencia-contra-as-mulheres.Acessoem:08jul.2020.BRASIL.Leinº13.104,de9demarçode2015.Prevêofeminicídiocomocircunstânciaqualificadoradocrimedehomicídio.Disponívelem:https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13104.htm.Acessoem:05jul2020.BRASIL.SupremoTribunalFederal.AcordãodaAçãoDiretadeInconstitucionalidadeporOmissãon.26/DF,2019.Enquadraahomofobiaeatransfobia,qualquerquesejaaformadesuamanifestação,nosdiversostipospenaisdefinidosnaLeinº7.716/89,atéquesobrevenhalegislaçãoautônoma.Relator:Min.CelsodeMello,13dejunho2019.Disponívelem:http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADO26ementaassinada.pdf.Acessoem:05jul2020.
Capa| Sumário | 100
Sexualidade e gênero: controle e subversão
BUTLER,Judith.Problemas de gênero:feminismoesubversãodaidentidade.TraduçãodeRenatoAguiar.13ªed.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,2017.BUTLER,Judith.Quadros de Guerra:quandoavidaépassíveldeluto?TraduçãodeSérgioTadeudeNiemeyerLamarãoeArnaldoMarquesdaCunha.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasiliense,2015.BUTLER.Judith.Bodies that matter:ontheDiscursiveLimitsof“Sex”.NewYork:Routledge,2011.CARCEDO,Ana.SAGOT,Montserrat.Cuandolaviolenciacontralasmujeresmata:femicídioemCostaRica,1990-1999.In:CORRÊA,Mariza;SOUZA,ÉricaRenatade.Vida em família:umaperspectivacomparativasobre“crimesdehonra”/FamilyLife:acomparativeperspectiveon“crimesofhonour”.Campinas–SP:Pagu–NúcleodeEstudosdeGênero/UniversidadeEstadualdeCampinas,2006,p.405-438/439-470.CORRÊA,Mariza.Morte em família: representaçõesjurídicasdepapéissexuais.RiodeJaneiro:Graal,1983.EFREMFILHO,Roberto.MATA-MATA:reciprocidadesconstitutivasentreclasse,gênero,sexualidadeeterritório.2017.248f.Tese(DoutoradoemCiênciasSociais)–ProgramadePósGraduaçãoemCiênciasSociais,UniversidadeEstadualdeCampinas,Campinas,2017.ELUF,LuizaNagib.A paixão no banco dos réus – Casos passionais célebres:dePontesVisgueiroaLindembergAlves. 4ªed.SãoPaulo:Saraiva,2009.FACHINETTO,RocheleFellini.Quando eles as matam e quando elas os matam: umaanálisedosjulgamentosdehomicídiopeloTribunaldoJúri.2012.421f.Tese(DoutoradoemSociologia)–ProgramadePós-GraduaçãoemSociologia,UniversidadeFederaldoRioGrandedoSul,PortoAlegre,2012.
Capa| Sumário | 101
Sexualidade e gênero: controle e subversão
HEREK,GregoryM.Beyond.“Homophobia”:ThinkingAboutSexualPrejudiceandStigmaintheTwenty-FirstCentury.SexualityResearch&SocialPolicy:Journal of NSRC,v.2,n.1, p.6-24,abr.2004.LAGARDE,Marcela.Delfemicidioalfeminicídio.Desde el Jardín de Freud,Bogotá,n.6,p.216-225,2006.MELO,Mariana.Corpo, Violência e Estado:PercepçõesdeoperadoresdosistemadejustiçacriminalacercadohomicídiodepessoasLGBTQI+.209f.Tese(DoutoradoemSociologia)–ProgramadePós-GraduaçãoemSociologia,UniversidadeFederaldaParaíba,2020.MELO,Mariana;ZAMBONI,Marcela.EstereótiposeinvisibilidadesnoTribunal:Homicídiohomoafetivosobaóticadosjuízesleigos.Brasília. In:18ºCONGRESSOBRASILEIRODESOCIOLOGIA,Anais...Brasília:SociedadeBrasileiradeSociologia,2017.Disponívelem:http://www.adaltech.com.br/anais/sociologia2017/lista_area_GT37.htm.Acessoem:15fev.2019.MENDES,WallaceGóes;SILVA,CosmeMarceloFurtadoPassosda.HomicídiosdaPopulaçãodeLésbicas,Gays,Bissexuais,Travestis,TransexuaisouTransgêneros(LGBT)noBrasil:umaAnáliseEspacial.Ciênc. saúde coletiva,RiodeJaneiro,v.25,n.5,p.1709-1722,maio2020.Disponívelem:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232020000501709&lng=pt&nrm=iso.Acessoem:09jul2020.MOTT,Luiz;CERQUEIRA,Marcelo.Matei Porque Odeio Gay. Salvador:GrupoGaydaBahia,2003.OLIVEIRA,HelmaJ.S.deOliveira;ZAMBONI,MarcelaZamboni.Entreosociológicoeojurídico:narrativassobrefeminicídioemTribunaisdojúri.In:JOHAS,Bárbara;AMARAL,Marcela;MARINHO,Rossana(Orgs.).Violências e resistências:estudosdegênero,raçaesexualidade.Teresina:EDUFPI,2020.
Capa| Sumário | 102
Sexualidade e gênero: controle e subversão
OLIVEIRA,HelmaJanielleSouzade.O crime de feminicídio e a percepção dos agentes da justiça:umaanálisesociológicaapartirdosTribunaisdoJúrideJoãoPessoa,Paraíba.2019.319f.Tese(DoutoradoemSociologia)–ProgramadePós-graduaçãoemSociologia,UniversidadeFederaldaParaíba,JoãoPessoa,2019.PASINATO,Wânia(coord.).Diretrizes Nacionais Feminicídio:diretrizesparainvestigar,processarejulgarcomperspectivadegêneroasmortesviolentasdemulheres.Brasília:ONUmulheres;SecretariaEspecialdePolíticasparaasMulheres;SecretariaNacionaldeSegurançaPública,2016.Disponívelem:http://www.spm.gov.br/central-de-conteudos/publicacoes/2016/livro-diretrizes-nacionais-femenicidios-versao-web.pdf.Acessoem: 08jul2020.PERRY,Barbara.In the Name of Hate: UnderstandingHateCrimes.NovaYork:Routledge,2001.RADFORDJill;RUSSELL,Diana(Orgs). Femicide:thepoliticsofwomenkilling.NewYork:TwaynePublisher,1992.RUSSELL,DianaE.H.Femicide:Politicizingthekillingoffemales.In:WIDYONO,Monique(Org).Strengthening Understanding of Femicide: UsingResearchtoGalvanizeActionandAccountability (Conferência).WashingtonDC,abr.14-16,2008.Seattle:PATH,2009,p.27-31.SEGATO,RitaLaura.“Queésumfeminicídio:notasparaumdebateemergente”.Série Antropológica,Brasília,série401, 11p.,2006.STANLEY,Eric.NearLife,QueerDeath.Social Text,v.29,n.2, p.1-19.DukeUniversityPress,2011.WEINBERG,GeorgeH.Society and the Healthy Homosexual. Basingstoke:Macmillan,1972.
Capa| Sumário | 103
Sexualidade e gênero: controle e subversão
ZAMBONI,Marcela;FARIA,JairoRochade.Contágiosocialemtribunaisdojúri.Revista Brasileira de Sociologia,v.6,n.3, p.195-218,2018.ZAMBONI,Marcela;OLIVEIRA,HelmaJ.S.de.Homicídios afetivo-conjugais sob a lente dos operadores jurídicos. João Pessoa:EditoradaUFPB,2016.ZAMBONI,Marcela;OLIVEIRA,HelmaJ.S.de.NASCIMENTO,EmylliTavaresdo.Intersecçõesdegênero,sexualidadeeclasseemtribunaisdojúri:valoresmoraisemdisputa.Revista Brasileira de Sociologia,SãoPaulo,v.7,n.15,p.190-214, jan-abr.2019.ZAMBONI,Marcela;OLIVEIRA,Helma.Dosquefazemajustiça:apercepçãodosoperadoresjurídicosemcasosdehomicídioafetivo-conjugal.RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, JoãoPessoa,v.14,n.42,p.43-55,dez.2015.
Capa| Sumário | 104
NOTAS INTRODUTÓRIAS SOBRE A IMPORTÂNCIA DA DIMENSÃO RACIAL NOS ESTUDOS DE GÊNERO E SEXUALIDADE
Juciane de Gregori32
1 INTRODUÇÃO
Noâmbitodosestudosdegêneroesexualidade,reflexõesacercadaproduçãodadiferençaedaanálisedadesigualdadesocialvêmganhandocadavezmaisrelevância,especialmenteapartirdoinvestimentoanalíticoquearticulaeenglobaadimensãoracial.Essaideiade“dimensão”étrazidaaquicomoumaspectofundamental,poisrompecomalógicadequeraça,gêneroousexualidadeseriamapenas“recortes”,nãoconcedendoadevidamagnitudedecategoriastransversaisqueperpassamportodaaestruturasocial,política,cultural,econômicaesubjetiva.
Nesselequedepossibilidades,tensionamentoseconflitos,pensarnanecessidadedeexplorar a intersecçãoentreasdiferenciaçõesoumarcadoressociais,taiscomoderaça,gênero,sexualidadeegeração,vemdespertandotamanhointeresse,
32 DoutorandapeloProgramadePós-Graduação emSociologia daUniversidadeFederaldaParaíba(PPGS-UFPB).MestrapeloProgramadePós-GraduaçãoemDireitosHumanosdaUniversidadeFederaldaParaíba(PPGDH-UFPB).MestrapeloProgramadePós-GraduaçãoemSociologiada Universidade Federal da Paraíba (PPGS-UFPB). Graduada em Psicologia pelaUniversidadeRegionalIntegradadoAltoUruguaiedasMissões,campus Erechim.IntegrantedoGrupodeRelaçõesAfetivaseViolência(GRAV-UFPB).E-mail:[email protected].
Capa| Sumário | 105
Sexualidade e gênero: controle e subversão
demaneira que podemos notar como a “discussão sobreinterseccionalidadetemocupadoumespaçoimportantenapesquisadegênero”(KERNER,2012,p.45).
Hirata(2014),enfatizaainterseccionalidadecomouminstrumentoparacombaterasopressõesmúltiplaseimbricadas.EmconcordânciacomPatríciaHillCollins (2014),pode-secompreendê-latantocomoumprojetodeconhecimento,comotambémumaarmapolítica.Moutinho(2014),explanaqueainterseccionalidade,tratadeumdebatetrazidopelasfeministasnegrasnorte-americanas(MOUTINHO,2014),ampliando-seemmeadosdadécadade1970e1980.
SegundoCrenshaw(2002),interseccionalidadeabarcaumaconceituaçãoquebuscacapturarasconsequênciasestruturaisedinâmicasdainteraçãoentredoisoumaiseixosdasubordinação,referindo-seàformapelaqualaçõesepolíticasespecíficasgeramopressõesqueconstituemaspectosdinâmicosouativosdodesempoderamento.Ouseja,“trataespecificamentedaformapelaqualoracismo,opatriarcalismo,aopressãodeclasseeoutrossistemasdiscriminatórioscriamdesigualdadesbásicas”(CRENSHAW,2002,p.177).Comonãosepodesepararacategoriagênerodasrelaçõespolíticas,econômicas,sociais,culturaiseraciais(SOUZA;RATTS,2008),muitosestudospassamaincorporaraspossíveisintersecçõesentregênero,sexualidade,raça,etniaeoutrasdiversascategoriasediferenciações.Nessequesito,nãonecessariamentesecompreendequegênero,raça,sexualidadeeclasse,sãoequivalentesaposiçõesdesubordinação.Éjustamenteacorrelaçãocomplexaentreessasdimensõesquesãoaprofundadaseapreendidasporessecampodedebate.
ConformeCrenshaw(2002),noquecondizaassociaçãoentreessessistemasmúltiploscomoviésdasubordinação,temsidoalgodescritodeváriosmodos,taiscomo:discriminaçãocomposta,cargasmúltiplas,duplaoutripladiscriminação.Essereconhecimento
Capa| Sumário | 106
Sexualidade e gênero: controle e subversão
crescentedequeasrelaçõespolíticas(istoé,relaçõesdesiguaisdepoder)estãoimplicadasnasteoriasdoconhecimento,ganhaumacentralidadenecessárianasanálisesdegêneroesexualidademaisrecentes,queconsideramfundamentalexplorar“outras”categoriasdediferenciaçãosocialcomo“marcas”aseremcontempladasnaanálisedecontextosespecíficos(PISCITELLI,1996).
Questõessobreadiferençaestãonocentrodemuitasdiscussõesdentrodosfeminismoscontemporâneos(BRAH,2006).ParaPiscitelli(1996,p.11):
[...]asdiversasperspectivasenvolvidasnesta“nova”tendênciaconvergemparasublinharamultiplicidadedediferenciaçõespossíveis,conferindo,entreelas,umlugardestacadoà“raça”.
Entretanto, no que concerne à investigação socialcientífica,aindaháumcampoadescortinareintersecçõesafazer.Principalmenteconsiderandoqueasrelaçõesraciaisnaacademia,camufladasaolongodahistóriasobafarsaprojetadapelabranquitude,emumaóticarepressoraehegemônicadeigualdade,aindarefletememomissõesacercadodebateracial,inclusiveemmuitasanálisesnomeadascomofeministas.Acaba-seporconstituirumaaanulaçãodeexperiênciaseinvisibilidadeteórica,aqualtambémpodeserchamadadeepistemicídio.
Comessabaseepistemicida,araçavinculadaaogêneropassarepetidamentedespercebida,atravésdeanálisesnãosódistantesdainterseccionalidade,comotambémincapazesdeobservaroentrecruzamentoexistenteentremarcadoresediferenciaçõessociais,quemesmopresentesdemodogritantenocampo,nãosãosequercaptadoscomochavesdeleitura.Ou,poroutrolado,tambémpode-seconstatarestudosnocampodegênero,queseaproximamdainterseccionalidade,masesvaziamadimensãoracial
Capa| Sumário | 107
Sexualidade e gênero: controle e subversão
enãoatendemasproblemáticasepistemológicas,metodológicasepolíticasqueoquadrointerseccionalquepropõe.
Sob o viés de Crenshaw (2002), para apreender adiscriminaçãocomoumproblemainterseccional,asdimensõesraciaisoudegêneroteriamdesercolocadasemprimeiroplano,comofatoresquecontribuemparaaproduçãodasubordinação.Porém,deacordocomPiscitelli(1996),aquestãonãoseresolvesimplesmenteadicionandoasdiversasformasdeopressãonaconfiguraçãodacondiçãosocialdasrelaçõesdegêneroedesexualidade,massimpercebendoasuainterconexão.Kerner(2012),corroboracomessavisãoeargumentaqueracismoesexismosecruzamdemodosdiferentesdependendodocontexto,portantonãopodemsertratadoscomoproblemasanálogos.
Comonenhumacategoriasocialexistenoisolamento,massimemrelaçãocomoutrascategorias(MCCLINTOCK,2010),éimportantequeaepistemologiafeministasecomprometanãosomentecomogênero,enquantocategoriasocialrelacionadaaumeixodeopressão,demodoacolocá-locomoumavariávelteóricaarticuladaaoutrascategoriassociaiseàsformasdediscriminaçãointerseccionais.Tantoalógicadaincorporaçãodogênero,quantoofoconoenfrentamentoaoracismo,refletemanecessidadedeintegrara“raça”eoutrasdiferenças,aotrabalhocomenfoquedegênero(CRENSHAW,2002).Domesmomodo,“osestudosdegênerotambémtêmsidoadotadosporestudiosos(as)daquestãoracial”(SOUZA;RATTS,2008,p.150).
Imersosemumaculturadoregimecapitalistaquesebaseiaemreferenciaispatriarcais,sexistas,heteronormativoseracistas,édesumaimportânciaquestionarasaçõeserepresentaçõescientíficascalcadasemmitosepreconceitosconstruídospormeiodessesistema.Emumprocessohistóricodecolonizaçãoe
Capa| Sumário | 108
Sexualidade e gênero: controle e subversão
racismoestrutural33,queperduraatéostemposatuais,demarcam-se vantagensde gruposdominantes sobreosdominados,estabelecendo-sehierarquiaserelaçõescomplexasdepoderdeopressoressobreoprimidos34.ComoafirmaMcClintock(2010),énecessárioexplodiranáliseslimitadaselimitadorasdasaçõesimperialistasdefinaisdoséculoXIXeiníciodoXX,bemcomoseusecosnassociedadescontemporâneas,entendendoqueessalógicamarcaviolênciaslatentesqueseconstituememumaarenasocial,intelectualeatémesmopsicológica,ondeaspectoscomogênero,sexualidade,raçaeclasseestãoimbricadosdemaneirainextricável35.
Nesseviésdedebate,atravésdeumapropostacrítica,reflexivaepolítica,estetextotemcomofocotrazerapontamentosvoltadosparaaimportânciadaarticulaçãodadimensãoracialàsanálisesdegêneroesexualidade.
2 SOBRE A ARTICULAÇÃO DA DIMENSÃO RACIAL AOS ESTUDOS DE GÊNERO E SEXUALIDADE
Interseccionalidade,categoriasarticuladasoumarcadoressociaisdadiferença,ancoradasnasteoriasfeministaseantirracistas,sãoesferasdeinterlocuçãointernacionaisqueganharamespaçoemmeadosdadécadade1990(MOUTINHO,2014),incidindoemumconjuntodeenfrentamentosaconcepçõeshomogeneizantes
33 Paraaprofundaressaanálise,ver:Almeida(2018).
34 Tensionandoesseprocessonoterritóriobrasileiro,vermaisemLiliaM.Schwarcz:“Espetáculodasraças:cientistas,instituiçõesequestãoracialnoBrasil1870-1930”(1993),e“Nempretonembranco,muitopelocontrário:coreraçanasociedadebrasileira”(2012).
35 Paraampliarareflexãoacercadesseparadigma,verFrantzFanon,em“PeleNegraeMáscarasBrancas”(2008).
Capa| Sumário | 109
Sexualidade e gênero: controle e subversão
epromovendoimportantesdisputasteóricas,episte-mológicas,metodológicas,éticasepolíticas.
Arelaçãoentreascategoriasdedesigualdade,aindatãonaturalizadasnaatualsociedadecapitalista,sãotraduzidasedesmembradasatravésda“interseccionalidade”,configurando-secomoumcampoquenãoéhomogêneo,fixadoouestável.Ouseja,estáemmovimento.Omesmoocorrecomopensamentofeminista,cujaexpressãodeideiasresultadainteraçãoentredesenvolvimentosteóricosepráticaspolíticasqueestãolongedeconstituirumtodounificado(PISCITELLI,2008).
Nasdiferentesperspectivasqueintegramestepercurso,éplausívelaludiramomentoshistóricosquesecaracterizamporumarelevânciaconcedidaadeterminadascategoriasteóricasesociais,comsuasrespectivasproblematizações,terminologiaseconceituações.Relativoespecificamenteachamadaretomadadosestudossobreaquestãoracialnoiníciodadécadade1980,denota-seaconfiguraçãodeumcampodeanálisesobreoentrecruzamento,articulaçãoeintersecçãoentre“marcadoressociaisdadiferença”,nosquaisgênero,sexualidadeeraçaassumemposiçõescentrais(MOUTINHO,2014).
Noviésdosestudosdegênero,Piscitelli(2008)fazumaretomadahistóricanaqualépossívelobservarque,aofindardadécadade1980,textoscríticosquestionavamospressupostosdasprimeirasformulaçõesdoconceitodegênero,bemcomo,acentralidadeconcedidaaeleemtermosdasforçassociaisdeopressão.
Nofimdosanos90,estedebatefoimarcadopelaalusãoàmultiplicidadedediferenciaçõesque,associadasaogênero,permeiamosocial.Ampliam-seascorrentescomdiferentesquestionamentosacercadospressupostosembutidosnasprimeirasformulaçõesdegêneroesobreasperspectivasdepoderquenorteavamdeterminadaslinhasdeanálisesfeministas,bemcomoacentralidadeconcedidaaogêneroenquantoforçasocialqueoprime
Capa| Sumário | 110
Sexualidade e gênero: controle e subversão
aspessoas(BUTLER,1990).Alémdisso,estabeleceintersecçõesdogênerocommodalidadesdeidentidadesdiscursivamenteconstituídas,queincluemsexualidadeeraça,considerando-ascomoefeitoderegimesdeproduçãoreguladoraqueoperamnaproduçãodoscontornoscorporais(BUTLER,1993).
Éprecisoenfatizar,nesseprocessohistóricodeinsurgências,acentralidademarcadapelapotênciadasvertentesadvindasdofeminismonegro,querepresentamumgrandepilardetransformaçãoemovimentodasestruturas.AngelaDavis(2016),AudreLorde(2019),BellHooks(2018,2019)ePatríciaHillCollins(2014),destacam-secomoexpoentesdopensamentonessaperspectivaetambémnoBrasil,aexemplodeLéliaGonzalés(1984),SueliCarneiro(2011),JuremaWerneck(2010).Nadécadade2000,asarticulaçõesentrediversascategoriaseinterseccionalidadesestavamamplamentedifundidas,formuladasnoplanoteóricoatravésdeleiturascríticasdoconceitodegêneroecoincidindocomintensasreivindicações,internasaomovimentofeminista,relativasàquestãodadiferença,englobandonãosódiscussõessobregênero,mastambémraça,etnia,classe,sexualidades,afetividades,religiões,geração(PISCITELLI,2008).Nocontextobrasileiro,umadasexpressõesqueinfluenciouampliaçõesfoiSaffiotique,emgeral,trabalhavacomnoçõesdegêneroeclasse,masqueposteriormentedesenvolvesuateoriacoma“metáforadonó”entregênero,raçaeclasse(SAFFIOTI,2015).
Noqueconcerneàdimensãoracial,Guimarães(2005),afirmaque“raça”,refere-seaumconceitodatadoemmeadosdoséculoXIX.Segundoele,ahistoricidadedetalconceitotambémacompanhadiscussõesacercadeetnicidade,cromatização,colorismo,ideologia,racialização,racismoeanti-racismo.Brah(2006),nessequesito,enfatizaanoçãodeexperiênciaeexplanaque,deacordocomcadacontexto,otermo“negro”,podeterdiferentessignificadospolíticoseculturaisenãopodeserconstruídoemtermosessencialistas.
Capa| Sumário | 111
Sexualidade e gênero: controle e subversão
NoBrasil,oracismochegaasertratadoatéosdiasrecentescomoum“tabu”,hajavistaquepormuitoseinsistenoforjadoimagináriodequebrasileirosvivemnuma“democraciaracial”(GUIMARÃES,2005,p.39).Paraocitadoautor,asanálisesnocampodasrelaçõesraciaisquecomportamaquestãodoracismobrasileirodevemobservartrêsprocessoshistóricos:oprocessodeformaçãodanaçãobrasileiraeseudesdobramentoatual;ointercruzamentodiscursivoeideológicodaideiade“raça”comoutrosconceitosdehierarquia,taiscomoclasseegênero;astransformaçõesdaordemsocioeconômicaeseusefeitosregionais.
Demodogeral,noqueserefereàrelaçãoentregênero,sexualidadeeraça,assimcomonasanálisesreferentesasituaçõesemqueadiscriminaçãodegêneroéampliadaoucombinadacomadiscriminaçãoracial,éconcebívelafirmarqueemboraseconstituamseparadamente,essescamposatravessamumpercursodeencontro,ondeseinterceptammúltiplasformasdeinterpretação.ConformePiscitelli(2008,p.266),“apropostadetrabalhocomessascategoriaséoferecerferramentasanalíticasparaapreenderaarticulaçãodemúltiplasdiferençasedesigualdades”.
Crenshaw(2002),consideraqueassimcomotodasasmulheresestãosujeitasaopesodadiscriminaçãodegênero,tambéméverdadequeoutrosfatoresrelacionadosàsuasidentidadessociais,taiscomoraça,cor,etniaeorientaçãosexual,são“diferençasquefazemdiferença”naformacomováriosgruposdemulheresvivenciamadiscriminação.Acercadessaformulaçãoelaboradapelaautorasupracitada,Piscitelli(2008),argumentademodocríticoquereiteradamenteelaapresentaumanoçãodediferençacomoalgoequivalenteadesigualdade.
Poroutrolado,Hirata(2014),somanestedebateaoexplicarasdivergênciaseasconvergênciasentreasconceituaçõesdeinterseccionalidadee/oudeconsubstancialidade.Apesquisadorarefletequeaprincipaldiscussãoemtornodessaperspectivaéo
Capa| Sumário | 112
Sexualidade e gênero: controle e subversão
enfoquedadoàsdimensõesderaçaeclassenoprimeirotermo,enquantoooutroconsisteemtendênciasdeclasseesexo.Emambasascorrenteshaveriaanecessidadederompercomashierarquiasopressivasqueacometemasrelaçõessociais.Noentanto,nosentidodainterseccionalidade,abarca-searaçacomumaportecompostoparaalémdeuminteresseepistemológicoeteórico,poishátambémuminteressejurídicoepolítico(HIRATA,2014).
Akotirene(2018),explicaquea interseccionalidadeéuminstrumentometodológicoqueseencontraemdisputanasencruzilhadasacadêmicas,tratando-seespecialmentedeumalenteanalíticaeferramentateóricaafrocentrada,cujofundamentoepistemológicopossuialicercesnatradiçãodofeminismonegro,expandindo-setambémparaasdisputasjurídicaseinstitucionais,promovendointervençõesdeordempolítica.Nessaseara,raça,gênero,sexualidadeeclasse,sãoproblemáticascruciais.
SobaperspectivadeBrah(2006),aanálisedasinterconexõesentreracismo,classe,gênero,sexualidadeequaisqueroutrosmarcadoressociais,develevaremcontajustamenteaposiçãoocupadaentreasdiferenças.Aautoraressaltaaimportânciaderealizarumamacroanálise,queabordeasinterrelaçõesdasvariadasformasdediferenciação,semnecessariamentederivartodaselasdeumasóinstância,evitandoassimoperigodo“reducionismo”.Nessesentido,elaaindachamaaatençãoparaarelevânciade“analisaraproblemáticadasubjetividadeeidentidadeparacompreenderadinâmicadepoderdadiferenciaçãosocial”(BRAH,2006,p.332).
ParaKerner,osparalelosentresexismoeracismosãonítidos:“cadaumdelesincorporafalsassuposiçõessobaformademito”(2012,p.46).Aautorareiteraqueoprópriotermosexismofoicriadoporanalogiaaotermoracismo,seguindocomcríticasaideiadesetrabalharcomoracismoapartirdogênero(aracializaçãodogênero)eosexismocomoracializado(asexualizaçãodaraça).Emumexercícioreflexivosobreessas
Capa| Sumário | 113
Sexualidade e gênero: controle e subversão
diferentescombinações,Kerner (2012),aindaapontaqueracismoesexismopodemseranalisadosatravésdesemelhanças,dediferenças,deacoplamentosentreambos,oupormeiodecruzamentos,entrelaçamentosouintersecções.Ouseja,sãocategoriasautônomas,masqueestãoarticuladas.
Emboranãohajaumacordoabsolutoentreasperspectivasquecontextualizamraçaegênero,épossívelasseverar,que:
[...]autorasfeministasconvergemaoprestaratençãoà‘racialização’,pensadacomoefeitodeummodocruelecomplexodeoperaçãodasdesigualdades,atravésdoqualseexcluemgruposcorporalmentemarcados(PISCITELLI,1996,p.12).
Além disso, como esses fatores que se relacionamdiferencialmente“mantêmrelaçõesdepoderdistintascomoEstadoealei”(MOUTINHO,2014,p.226),agarantiadequetodasaspessoassejamfavorecidaspelaampliaçãodaproteçãodosdireitoshumanosembasadosnogênero,exigequeselanceolharaosvariadosmodospelosquaisogênerointersecta-secomumagamadeoutrasexperiências,bemcomo,aformapelaqualessasintersecçõescontribuemaumentandoavulnerabilidadededeterminadosgrupos.
EmconcordânciacomMoutinho(2014,p.226),pode-seendossarque“aexperiênciadaopressãosexistainterceptadiferentespontosdedominação”,ficandoevidenteanecessidadeeaimportânciadeampliarparâmetrosconceituais,evitandoaexclusãodedeterminantes.Certamente“concepçõesquetrabalhemcommaisdimensões,parecemsercapazesdenoslevarmaislonge”(KERNER,2012,p.46).Dessamaneira,assimcomopareceimportantequeateoriafeministaincluaoracismoemseusestudosereivindicações,omesmoequivaleparaas
Capa| Sumário | 114
Sexualidade e gênero: controle e subversão
análisesantirracistas,paraqueconsideremadimensãodegêneroesexualidade.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesardeserpossívelestabelecerumencontroentreracismoesexismo,aindafaltamuitoparaobterumquadrocompletodacorrelaçãoentreambos,pois“sãofenômenoscomplexosenãoestáticosquediferemdeacordocomocontexto”(KERNER,2012,p.49).Assimcomoomachismo,cadaracismopossuiumahistóriaespecífica:
[...]surgiunocontextodeumconjuntoespecíficodecircunstânciaseconômicas,políticaseculturais,foiproduzidoereproduzidoatravésdemecanismosespecíficoseassumiudiferentesformasemdiferentessituações(BRAH,2006,p.344).
Emboraodebatefeministaafirmearelevânciadeobservarcomoasdiversasformasdediferenciaçãosocial interagemcomogêneroeseimbricammutuamente(PISTELLI,1996),seuobjetivoprincipaltemsidomodificarasrelaçõessociaisenvoltasespecificamentenogênero.Perspectivasfeministasocidentais,comoumtodo,derampoucaatençãoaprocessostaiscomooderacializaçãodogênero,dasexualidadeedaclasse(BRAH,2006),sendoimperativoressaltarqueháumabasedasdesigualdadesquetambémcomportaaquestãodeclasse,nãopodendoseranuladaousuprimida.
“Contemporaneamente,ainterseccionalidadeobedeceadinâmicasdiversasemultifacetadas”(MOUTINHO,2014,p.227).Dessemodo,noplanodosestudosdegêneroesexualidade,tambémdasciênciassociaisehumanascomoumtodo,pode-seafirmar
Capa| Sumário | 115
Sexualidade e gênero: controle e subversão
suaimportância,comdestaqueaoseuenfoqueracialquebuscaquestionarmitoserepensarpráticaserepresentaçõessociaisestereotipadas,racistas,discriminatóriasepreconceituosas.Háumanecessidadeemergente,numaperspectivadecolonial,deconfrontaracultura“brancocêntricaeandrocêntrica”quedominaaformadeproduçãodeconhecimentonoBrasil,bemcomoabranquitude,aindapersistenteeativanosmovimentosfeministas.
Umoutroaspectoimportanteaseconsideraréque“ascoisassãorelacionadastantoporsuasdiferençascomoporsuassemelhanças”(HALL,1980,p.328)equeadiferençanãonecessariamentedeveserapreendidacomoummarcadordehierarquiaouopressão.Portanto,emconcordânciacomBrah:
Éumaquestãocontextualmentecontingentesaberseadiferençaresultaemdesigualdade,exploraçãoeopressãoouemigualitarismo,diversidadeeformasdemocráticasdeagênciapolítica(BRAH,2006,p.374).
Assimcomonastramasresgatadasem“CouroImperial”,porMcClintock(2003,2010),certamentesãomuitasasvivênciasderesistênciaeenfrentamentoqueeclodememdiferentescontextoscomorespostaaprocessosdedominação,violênciaeexclusão.
Outraquestãoaseobservarpensandonaintersecçãoentregênero,sexualidadeeraçacomoprocessodeconstituiçãodedireitosdapopulaçãoLGBTnoBrasil,percebe-sequeháumadinâmicadeconstruçãoondenãosóaviolência,mastambémo“sofrimento”atuacomoimportantefatorparagarantiadedireitosenaconstruçãodeinstrumentosdeproteção(MOUTINHO,2014).Assim,asestratégiasfeministasqueenvolvemenfrentamentodeposiçõessubordinadasrelacionadasagênero,raçaesexualidade,enquantocategorias“transversais”,evocamtambémdisputascom
Capa| Sumário | 116
Sexualidade e gênero: controle e subversão
tensõesdivisionistas,cenárioestebastantedistintodonorte-americano,ondetaislutas,mesmocomaautocrítica,tendemaconvergirentresi.
Nessaperspectiva,comocontribuiaautorasupracitada,aconstruçãodesujeitoseanomeaçãodeformasdesobreposiçãodeexclusõessãopartedeumcenáriodefazerpolíticaseconstruirdireitos,naqualseconsolidouumasériedereivindicaçõesdosmovimentossociais.Estasresultaramemconfrontosnaspremissaslegislativasinaugurandonãosóprogramasepolíticassociais,mastambémincitaramumnovocamposemântico,cujaênfasesecentranaconstruçãoelegitimaçãodereparaçãoereconhecimento.
AluzdeCrenshaw(2002),aimportânciadeconsolidarumaperspectivaquedissemineaanálisedadiscriminaçãointerseccionalresidenãosomentenovalordedescriçõesmaisprecisassobreasexperiências,mastambémnofatodequeintervençõesbaseadasempercepçõesparciaiseporvezesdistorcidassão,muitoprovavelmente,ineficientesetalvezatécontraproducentes.Nessalógica,ocomponenteracialéumatemáticacentral.Sendoassim,ainterseccionalidadeeofeminismonegro,sãoesferasemcomumnocampodaanálisedegênero.Nãoháinterseccionalidadesemfeminismonegroevice-versa.
Pesquisasereflexõessobreaconstruçãosocialdascategoriasderaça,gêneroesexualidade,bemcomosuaassociaçãoenquantopossíveiseixosdediscriminaçõesmúltiplas,ganhamespaçonaabordageminterseccional,assumindoumviésondehábasesdesubordinaçãoqueserelacionamconstitutivamente.Contudo,aimportânciadaconstruçãodessasanálises,nocampoacadêmicoecientíficodominante,queétãolimitadoporsuasbasesexcludentes,“precisasercontinuamenteafirmada,poisnãoestádadacomolegítima”(MOUTINHO,2014,p.237).
Ademais,aindacombaseemMoutinho(2014),éprecisoatentarparaofatodequeadimensãodasrelaçõesraciaisretém
Capa| Sumário | 117
Sexualidade e gênero: controle e subversão
umaporteteóricodandoênfaseàdesigualdadesocial,aossistemasdeclassificaçãoporcor/raçaeclasseepareceaderircommenorfrequênciaaodebatedegêneroesexualidadeoudeseusentrecruzamentos.Tantoéassimque,nagrandemaioria,taisanálisesoperamimplicitamentecomouniversalnegroemumacombinaçãocomogêneromasculino.Detodomodo,certamenteéprecisoqueaoabordaropreconceitoracialpossaseravaliadoseécabíveladicionaremsuastemáticasoutrasformasdedesigualdadeedediáspora,taiscomogêneroesexualidade.
Igualmente,compreende-sequeéprecisofomentaracríticadasposiçõesdepoderdissimétricasanalisandooslimitesdaepistemologiafeminista,querecorrentementeatuaemumaperspectivaparcialesupostamenteuniversal,incorporandoavisãodemundodasociedade(HIRATA,2014),reproduzindoexclusõesehomogeneizandosuasanálisesemumaperspectivadabranquitude,eurocentradaeelitista.ParaHirata(2014),éprecisopotencializarumquadrointerdisciplinar,cujoenfoqueestejananãohierarquizaçãodasformasdeopressão,masquetodaselaspossamserdealgummodo abarcadas.
NoBrasil,ocampodainterseccionalidade,dosmarcadoressociaisdadiferençaedasinvestigaçõesacercadaraça,gêneroesexualidadevemsefortalecendoedestacam-sereferênciasautoraiscontemporâneasqueestãodialogandocomimportantesteóricasanívelglobal,masquetambémdesenvolvempesquisasemateriaiscomoscontornosespecíficosparaarealidadedadimensãoracialnoBrasil.Nessalógica,deveserreverenciadoescritoraseintelectuais,alémdasjácitadasaolongodessetexto,comoLéliaGonzalés(1984),SueliCarneiro(2011),CarlaAkotirene(2018),JuremaWerneck(2010),tambémevidencia-seCarolinaMariadeJesus(1960),ConceiçãoEvaristo(2016),MariaAparecidaSilvaBento(2002),MeggRayaradeOliveira(2017),JulianaBorges(2019),JaquelineGomesdeJesus(2015),CristianeSobral(2014),TatianaNascimento
Capa| Sumário | 118
Sexualidade e gênero: controle e subversão
(2014),VilmaPiedade(2017)etantasmaisqueconstroemessessaberesemergentes.
Indubitavelmente,paraalémdoâmbitoacadêmico,outrasinstituições,órgãosdedireitoshumanos,movimentossociaisedemaisespaçospúblicosdevemseenvolvernessareflexão,afimdesomaresforçosparainvestigaçãoereconhecimentodasimplicaçõesdegênero,sexualidade,raça,classeedemaisfatoresque“contribuemparaumacombinaçãodeabusosdosdireitoshumanos”(CRENSHAW,2002,p.174).
Atravésdeumacríticaaperspectivasqueoperamemumúnicofoco,“deve-sefazerumesforçonosentidodeobtermaiorprecisãodostiposparticularesdediscriminação,ligadosadiferentesformasdeidentidadessociais”(GUIMARÃES,2005,p.28).Épossívelconcluirqueasdimensõesdeclasse,raça,gêneroesexualidadetêmlimitaçõesquandoanalisadascomo“variáveisindependentes”,poisaopressãodecadaumaestáinscritadentrodaoutra,éconstituídapelaoutraeépartedela(BRAH,2006).
Podeseconsiderarqueopreconceitoeadiscriminaçãoracialedegênerosãofrutosdeum“atrasocultural”,ondeocorreramtransformaçõesnaordem“econômica”,“legal”e“moral”,mas“atitudes”,“comportamentos”e“valores”dosistemaescravocratapermaneceminalterados(MOUTINHO,2014,p.217).Diantedessaconjuntura,éimportantecompreenderasdiferençasnaslutaseresistências,maspareceimperativonãosócompartimentalizaropressões,comotambémformularestratégiasparaenfrentartodaselasnabasedoentendimentodecomoelasseinterconectamearticulam(BRAH,2006).
Ainterseccionalidadeapresenta-secomoexemplodeumdoscaminhosparatrabalharnassoluçõesdosproblemasqueaolongodestetextoforamdesdobrados,principalmentenoqueconsisteaosdilemasderaça,gêneroesexualidade.Todavia,cabefrisarqueaescolhapelainterseccionalidade,implicaem
Capa| Sumário | 119
Sexualidade e gênero: controle e subversão
assumirumconjuntodepreceitosbasilares,paranãoincorreremesvaziamentosanalíticos.
As reflexões aqui apresentadas, indicam aspectosintrodutóriosfrenteapanoramasconceituais,indicandoumquadroreferencialemabertoquepodeserdirecionadoapartirdediferentesformatos,tendocomoconsensoqueadimensãoracial,articuladaaosestudosdegêneroesexualidade,estáancoradaapreceitosinvestigativosimprescindíveiserelevantesenquantoproblemáticasacadêmicas,mastambémfundamentaiseindispensáveisparabuscadetransformaçõessociaisequânimes.
REFERÊNCIAS
AKOTIRENE,Carla.O que é interseccionalidade?BeloHorizonte:Letramento,2018.ALMEIDA,Silvio.O que é racismo estrutural?BeloHorizonte:Letramento,2018.BENTO,MariaAparecidaSilva. Pactos narcísicos no racismo: branquitudeepodernasorganizaçõesempresariaisenopoderpúblico.2002.169p.Tese(DoutoradoemPsicologia)–InstitutodePsicologia,UniversidadedeSãoPaulo,SãoPaulo,2002.BORGES,Juliana.O que é encarceramento em massa?SãoPaulo:EditoraPólen,2019.BRAH,Avtar.Diferença,diversidade,diferenciação.Cadernos Pagu,Campinas-SP,p.329-376,jan/jun.2006.Disponívelem:http://www.scielo.br/pdf/cpa/n26/30396.pdf.Acessoem: 20 nov. 2019.BUTLER,Judith.Gender Trouble.NewYork:Roudedge,1990.BUTLER,Judith.Bodies that Matter.NewYork:Roudedge,1993.
Capa| Sumário | 120
Sexualidade e gênero: controle e subversão
CARNEIRO,Sueli.Enegrecerofeminismo:asituaçãodamulhernegranaAméricaLatinaapartirdeumaperspectivadegênero.In:AshokaEmpreendimentosSociais&TakanoCidadania(Orgs.).Racismos contemporâneos. RiodeJaneiro:TakanoEditora,2011.CRENSHAW,Kimberlé.Documentoparaoencontrodeespecialistasemaspectosdadiscriminaçãoracialrelativosaogênero. Revista Estudos Feministas,n.1,p.171-188,2002.Disponívelem:http://www.scielo.br/pdf/ref/v10n1/11636.pdf. Acessoem:19nov.2019.COLLINS,PatríciaHill.Intersectionality: aknowledgeprojectforadecolonizingworld?ComunicaçãoaocolóquiointernacionalIntersectionnalitéetColonialité:DébatsContemporains,UniversitéParisDiderot,2014.DAVIS,Ângela.Mulheres, raça e classe.TraduçãodeHeciReginaCandiani.SãoPaulo:Boitempo,2016.EVARISTO,Conceição.Insubmissas lágrimas de mulheres. Rio de Janeiro:EditoraMalê,2016.FANON,Frantz.Pele negra, máscaras brancas.TraduçãodeRenatodaSilveira.Salvador:EDUFBA,2008.GONZÁLES,Lélia.Racismoesexismonaculturabrasileira.Revista Ciências Sociais Hoje,Anpocs,n.2,RiodeJaneiro,1984.GUIMARÃES,AntonioSérgio.Racismo e anti-racismo no Brasil. SãoPaulo:Editora34,2005.HALL,Stuart.Race,articulationandsocietiesstructuredindominance.In:JONES,MarionPatrick.Sociological Theories:RaceandColonialism.Paris:UNESCO,1980.HIRATA,Helena.Gênero,classeeraça:interseccionalidadeeconsubstancialidadedasrelaçõessociais.Tempo social:revistadesociologiadaUSP,SãoPaulo,v.26,n.1,p.61-73,jun.2014.Disponívelem:http://www.revistas.usp.br/ts/article/view/84979.Acessoem:18nov.2019.
Capa| Sumário | 121
Sexualidade e gênero: controle e subversão
HOOKS,Bell.E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo.TraduçãodeLibanioBhuvi.SãoPaulo:RosadosTempos,2018.HOOKS,Bell.O feminismo é para todo mundo:políticasarrebatadoras.TraduçãodeAnaLuizaLibânio.SãoPaulo:RosadosTempos,2019.JESUS,MariaCarolina.Quarto de despejo:diáriodeumafavelada.RiodeJaneiro:EditoraFranciscoAlves:1960.JESUS,JaquelineGomesde.Transfeminismo:teoriasepráticas.2.ed.RiodeJaneiro:Metanóia,2015.KERNER,Ina.TudoéInterseccional?Sobrearelaçãoentreracismoesexismo.Novos estudos CEBRAP,n.93,p.45-58,SãoPaulo,2012.Disponívelem:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002012000200005. Acessoem:19nov.2019.LORDE,Audre. Irmã outsider: ensaioseconferências.TraduçãodeStephanieBorges.BeloHorizonte:AutênticaEditora,2019.MCCLINTOCK,Anne.CouroImperial:raça,travestismosecultodadomesticidade.Cadernos Pagu,n.20,p.7-85,2003.Disponívelem:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332003000100002.Acessoem: 18nov.2019.McCLINTOCK,Anne.Couro Imperial:raça,sexualidadeegêneronoembatecolonial.Campinas:EditoraUnicamp,2010.Disponívelem:http://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/viewFile/1217/848.Acessoem:18nov.2019.MOUTINHO,Laura.Diferençasedesigualdadesnegociadas:raça,sexualidadeegêneroemproduçõesacadêmicasrecentes.Cadernos Pagu,Campinas,n.42,jun.2014.Disponívelem:http://www.scielo.br/pdf/cpa/n42/0104-8333-cpa-42-00201.pdf.Acessoem:18nov.2019.
Capa| Sumário | 122
Sexualidade e gênero: controle e subversão
NASCIMENTO,TatianadosSantos.Letramento e tradução no espelho de Oxum: teorialésbicanegraemauto/re/conhecimentos.2014.185p.Tese(DoutoradoemEstudosdaTradução)–CentrodeComunicaçãoeExpressão,UniversidadeFederaldeSantaCatarina,Florianópolis,2014.OLIVEIRA,MeggRayaraGomesde.O diabo em forma de gente:(R)Existênciasdegaysafeminados,viadosebichaspretasnaeducação.2017,190f.Tese(DoutoradoemEducação)–CentrodeCiênciasHumanaseEducação,UniversidadeFederaldoParaná,Curitiba,2017.PIEDADE,Vilma.Dororidade.SãoPaulo:EditoraNós,2017.PISCITELLI,Adriana.“SexoTropical”:Comentáriossobregêneroe“raça”emalgunstextosdamídiabrasileira.Revista Estudos Feministas v.6/7,p.9-35,Florianópolis,1996.Disponívelem:http://periodicos.bc.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1859.Acessoem:18nov.2019.PISCITELLI,Adriana.Interseccionalidades,categoriasdearticulaçãoeexperiênciasdemigrantesbrasileiras.Sociedade e Cultura,v.11,n.2,p.263-274,2008.Disponívelem:http://www.revistas.ufg.br/index.php/fchf/article/view/5247. Acesso em:19nov.2019.SAFFIOTI,Heleieth.Gênero, patriarcado e violência. 2. ed. São Paulo:ExpressãoPopular,2015.SOUZA,LorenaFrancisco;RATTS,Alecsandro.Raçaegênerosobumaperspectivageográfica:espaçoerepresentação.Boletim GoianodeGeografia,v.28,n.1,p.143-156,jan./jun.,2008.Disponívelem:http://www.revistas.ufg.br/index.php/bgg/article/view/4907.Acessoem:19nov.2019.SCHWARCZ,LiliaMoritz. O espetáculo das raças:cientistas,instituiçõesequestãoracialnoBrasil1870-1930.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1993.
Capa| Sumário | 123
Sexualidade e gênero: controle e subversão
SCHWARCZ,LiliaMoritz.Nem Preto nem branco, muito pelo contrário: coreraçanasociedadebrasileira.SãoPaulo:ClaroEnigma,2012.SOBRAL,Cristiane. Só por hoje vou deixar meu cabelo em paz. Brasília:EditoraTeixeira,2014.WERNECK,Jurema.Nossospassosvêmdelonge!Movimentosdemulheresnegraseestratégiaspolíticascontraosexismoeoracismo. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN),v.1,n.1,p.07-17,jun.2010.
Capa| Sumário | 124
ARTICULAÇÕES NAS RELAÇÕES DE PODER: PERFORMATIVIDADES DE GÊNERO E SEXUALIDADE NA PRÁTICA DA REVISTA ÍNTIMA
Eloisa Slongo36
1 INTRODUÇÃO
Opresenteartigoanalisaascategoriasdegêneroedesexualidadequesãoacionadasnaregulaçãodapráticadarevistaíntimanointeriordosistemacarcerário.Nessesentido,procura-secompreenderdequemaneirataiscategoriasatravessamocenárioprisionaleproduzemaexperiênciadequemovivencia,utilizandocomofocodestadiscussãoasrelaçõesafetivasefamiliaresnocontextodeprivaçãodeliberdade.
Comointuitodequalificarodebatesobrearevistaíntimaquandoamulheréavisitantedosestabelecimentosprisionais,nossoobjetoserestringiráàsdinâmicasvivenciadasporelasnasprisõesmasculinas.Asmulherespresasrecebemumvolumeinferiordevisitasíntimasefamiliaresqueoshomenspresos.Nessesentido,aParaíbasedestacacomoumdosEstados“emqueamédiadevisitasrealizadasnosestabelecimentosmasculinosémaisde5vezesmaiorqueamédianosestabelecimentosfemininos”(INFOPENMULHERES,2018,p.27).
36 MestrandapeloProgramadePós-graduaçãoemCiênciasJurídicasdaUniversidadeFederaldaParaíba(PPGCJ-UFPB).IntegrantedoGrupodePesquisaPolíticaCriminal,SistemaPrisionaleDireitosHumanos(UFPB).E-mail:[email protected].
Capa| Sumário | 125
Sexualidade e gênero: controle e subversão
Talinformaçãodizmuitosobreoprocessoderompimentodevínculosecontatocomoqueestáforadosmurosdocárcere.Avisitação,conformeprevêalegislaçãodeExecuçãoPenal37,alémdeserumdireitodapessoapresaétambémumadaspolíticaspúblicasquedeveriaserfomentadapeloEstado,afimdecoibiroabandonosocialetambémpromoveraressocialização.
Observandoessascircunstânciaséqueadiscussãosobreaspolíticascriminaisdesegurançadaspenitenciáriasentraemdebate.Partindodolugar-comumdasprisõesbrasileiras,sabe-sequeaviolênciasequenciada(GODOI,2015),osmaus-tratos,aindignidadecomquesãotratadasaspessoasqueconvivemcom/noâmbitoprisionaleatortura(dentroouforadointeriordascelas)sãocaracterísticosdessesistemadeagrupamentoeadministraçãodeagregadospopulacionaisformados,majoritariamente,dejovenspretos,pobresedebaixoníveldeescolaridade(BRASIL,2017).
Asrelaçõesafetivasconstruídasemantidasdentroeforadaprisãoconstituem-seenquantoredesdeapoioefazemcomquesetornepossívelenxergaraporosidadedosmurosdasprisões.Édesedestacarqueasrelaçõesdecuidado,afetoesuportedavidanocárceresãocosturadasapartirdedinâmicasdegêneroedesexualidade,umavezquesãoasmulheres,emsuamaioria,quesustentameparticipamativamentedesseprocessodevínculoextraprisional(TANNUSSet.al,2016).
Vemdasmulheresosacrifícioparaapreparaçãodosjumbos38,daorganização,gerenciamentoeadministraçãodacasa,
37 Art.41,daLeideExecuçãoPenal.
38 Oschamadosjumbossãooconjuntodemantimentosalimentícioseprodutosdehigienepessoal, levadosàprisãopelosvisitantesparacomplementarouparasustentarseusentesreclusos.Paramaisinformações,conferir:Nemdentro,nemfora:alogísticadavisitaçãoempenitenciáriasdooestepaulista(GODOI,2013).
Capa| Sumário | 126
Sexualidade e gênero: controle e subversão
dofinanceiro,dotempoparavisitação,dotransporte,bemcomodoautocuidadoetambémdoscomportamentosrecomendáveisoucondenáveisentreasmulheresquecompartilhamasesperasnasfilasdasprisões(LAGO,2017).Alémdessassituações,tambémrecaisobreelas:filhas,esposas,avósecompanheiras,especialmente,osimpactosproporcionadospelarevistacorporalouíntima.
A revistacorporal acontece,atualmente, atravésdemecanismosbastantehumilhantes,podendo-se, inclusive,denominá-lacomorevistavexatória.Emgeral,nomomentodasinspeções,exige-sequeo/avisitantefiquedespido/a,emumlocalquenãoéapropriado,diantedeumagentepenitenciáriodomesmosexoetambémdeoutrosfamiliaresevisitantesquepassarãopelarevistacorporal,sendonecessárioqueeles/asagachem-semaisdeumavezsobreumespelho,queabramaboca,colocandoalínguaparacimaesacudamoscabelos,podendoatémesmosersolicitadoqueseguremouabramsuasgenitálias(GODOI,2015).
AviolaçãodeDireitosHumanosvivenciadasporestasmulheres,duranteoprocessodesubmissãoàspolíticasdefiscalizaçãoempreendidaspelosórgãoseagentesestatais,perpassamoscanaisdaprisionizaçãosecundarizada39.
Aprisionizaçãosecundarizadaseriaaarticulaçãodosefeitosdaprisãoparaalémdoseuterritóriofísicoeespaçointerno.Éamaneirapelaquala/ofamiliardepresoéexpostoàculturadaprisão(GODOI,2017),àsdeterminaçõesinternaseaocotidianoprisional,inclusive,comodito,aorganização,gerenciamentoeadministraçãofinanceiradoqueaenvolve.
39 Trata-sedosprocessosderepressãoepuniçãosuportadospelosfamiliaresdepresosqueacabamvivenciandoocotidianoeasubculturaprisionaljuntocomseuenteencarcerado.TalcategoriaéestudadadeformamaisprofundaporMeganComfort,cf.:Doingtimetogether:Loveandfamilyintheshadowoftheprision(COMFORT,2008).
Capa| Sumário | 127
Sexualidade e gênero: controle e subversão
Assim,pergunta-se:Comosãoacionadasascategoriasdegêneroesexualidadenaspráticasestataisqueregulamomodus operandidarevistaíntima?
Diantedessaquestão,serãousadasasteoriasdegênero,enquantomarcoteórico,debruçando-sesobreosestudosdeButler,Godoi,EfremFilho,LowenkroneVianna,entrelaçando-osaosestudosdeviolênciaeprisões.Apesardesecompreenderanecessidadedodiálogocomacriminologiacrítica,taldiscussãonãoseaprofundaránestecampo.
Taiscontribuiçõesserãofundamentaisparaaproblematizaçãodasarticulaçõesdegêneroedesexualidadenoscamposdepoder,bemcomoparaodebatesobreaspolíticasdecontrolequeseconstituemcomoelementosprodutivosereprodutivosdoEstado.
2 A DIMENSÃO PRODUTIVA DAS CONVENÇÕES E POLÍTICAS DE GÊNERO E SEXUALIDADE
Asconvençõesdegênero,quedefinemfeminilidadesemasculinidades,sãoprodutosdocontextosocialehistóricoquepermeiamacompreensãodaprisãoemsuasmúltiplasfacetaseasrelaçõesquenelaseconstituemeseretroalimentam.Porisso,épossíveldizerque“oscorposdasmulheressãoatravessados–eatravessam–opodereapolítica,sendoporelesreguladosecontrolados”(SLONGO,2017,p.14).
Asrelaçõesdepoder,quecompõemeperpassamasinstituiçõesdoPoderJudiciárioeosespaçosdosistemaprisional,tambématuamatravésdeumadinâmicaprodutiva.Destamaneira,instituemlógicasdecondutagenerificadasesexualizadas,sejaemrelaçãocomocuidadocomafamília,ostiposdevestimentas,aocondicionamentoafetivo-sexual,aoslocaisdetrabalhoeasdemaisatividadesdesenvolvidasnapráticasocial.
Capa| Sumário | 128
Sexualidade e gênero: controle e subversão
Butler,emseulivroProblemas de gênero: feminismo e subversão da identidade(2019),aoapresentarosproblemasmetodológicosparapensarapráticapolíticaacercada(in)constânciadacategoria“mulheres”edaprópriaconstituiçãodosujeito,questionaquaisasrelaçõesdepoderqueconstroemosujeitoeo“Outro”40,alémdeabordaraconformaçãodestesaumamatrizheterossexualdosexo,dogêneroedodesejo.Paraisso,constroiseuraciocínioacercadaformaçãodasidentidadesedasubjetividade,asquaissãoefeitosdediscursosepráticasdeinstituiçõesdepoder,taiscomoosistemajurídico,ocampodaculturaealinguagem.
Aofalarsobreostatusdamulherenquantosujeitodofeminismo,aautoratececríticasàteoriafeministaclássica41,queatribuiuumaidentidadeunaàcategoriamulheres,essencializandoasexperiênciaseossentidosdegênero.Talcategoria,enquantoconfiguraçãodesujeitostraçaosinteresseseosobjetivosdofeminismo.
Apontandoosproblemasgeradospelanoçãounade“mulheres”,afilósofaquestionaossentidoseoslimitessemânticosdo“sermulher”,demonstrandoque,naverdade,mulheresdistintasfazempartedetalgrupo,asquaisestãosujeitasaformasdeopressõesquesãovivenciadaseoperamdemaneirasdiferentessobreseuscorposevidas.
40 AopautarumdebateentreBeauvoireIragaray,tratandodaausênciadeunidadedosujeito“mulher”,Butleraponta,criticandoaperspectivasartriana,quealémdeasmulheresseremfalsamenterepresentadas,estasignificaçãotambémquestionaaestruturadarepresentação,umavezqueéapartirdestaqueéformadaanoçãohegemônicadosatributosessenciaisouacessóriosquefariampartedoconceitouniversaldepessoa(BUTLER,2019,p.29).
41 Butlerapontacomorepresentantedofeminismoclássico,asteoriasdeSimonedeBeauvoireLuceIrigaray,asquais,emdiferentesformasdeabordagem,tinhamointuitodeproduzirteorizaçõescoerentesparacategorizaçãodosujeitomulher.
Capa| Sumário | 129
Sexualidade e gênero: controle e subversão
Noentanto,todaessadiversidadedeexperiênciasécircunscritaàlógicarepresentacional,queatuaparadarlegitimidadeevisibilidadeàsmulherescomosujeitospolíticos,masquepodedistorceroqueéverdadeirosobreelas.Nessesentido,aformaçãojurídicadalinguagemedapolíticasetraduzemdiscursoseefeitosdeumapolíticarepresentacionalhegemônica.
Poressarazão,Butler(2019)afirmaqueacríticafeministatambémdevecompreendercomoacategoriadas“mulheres”–osujeitodofeminismo–éproduzidaereprimidapelasmesmasestruturasdepoderpormeiodasquaissebuscaaemancipação.UtilizandoFoucault,elatrazainda,queossistemasjurídicosdepoderproduzemossujeitosquepassamaserrepresentadosequedelesregulamavidapolíticaatravésdocontrole,daregulamentaçãoedaproibição,tambémformandoosprópriossujeitos.
Ogêneronãoexisteemsi,nãoéestávelepodeseconstituirdemaneiracoerenteouconsistentenosdiversoscontextoshistóricos.Alémdisso,ossignificadosesentidosdegênerosãoproduzidosapartirdeumaíntimaarticulaçãocomoutrascategoriascomoaraça,aclasse,aetnia,ageração,entrevariadosfatoresquepodemestarpresentesnaexperiênciadesubjugaçãoeagenciamentodasmulheres(BUTLER,2019).Ogênero,portanto,estáimersoemrelaçõesdepoderprodutivasedestrutivas,nãonecessariamenteopressoras.
Aotratardaarticulaçãodecategoriassociais,EfremFilhoseutilizadeescritosdeMcClintock,PerlonghereLinsFrança,paraelaboraroconceitode“reciprocidadesconstitutivas”:
[...]paracompreenderosmodospelosquaisrelaçõessociaisdepoder,comodeclasse,território,gênero,sexualidade,geração,racializaçãoetc.,fazem-seumasatravésdasoutrasnasexperiênciasdossujeitosenosconflitossociais.Comisso,permito-me,comofezIsadoraLinsFrança(2012),tratar
Capa| Sumário | 130
Sexualidade e gênero: controle e subversão
gêneroesexualidadetambémcomolinguagensqueoportunizamacompreensãodeoutrosconflitos(EFREMFILHO,2017,p.9).
Énessesentidoqueoautordemonstracomoessascategoriassociaisentãointerligadasumasàsoutras,nãoemumaposiçãohierárquicaoumesmoenquantoumsomatório,masqueseproduzemmutuamenteeperpassamasexperiênciasdevidasdaspessoasapartirdasarticulaçõesdecamposdepoder.Nessacompreensão,raça,classe,sexualidade,gênero,gerações,etniaseoutrosconjuntosderelaçõesagemnapráticapolíticadavidasocialnãoisoladamente,masapartirdeoperaçõesdereconhecimentoforjadaseenquadradasnasrelaçõesdepoder,discursoseconflitossociais.
Oscorpossãomoldadospelocontextosocialeculturalemqueaspessoasestãoinseridas,demodoquetalestruturaseriaaprópriasubstânciadavida,conformeexplicaLeBreton(2012).Porestarazão,oscorposseconstituemenquantovetoresdecomunicaçãocomomundo,deexpressãodesentimentos,aparênciaevínculocomadoreosofrimento.
Trazendoessascontribuiçõesaocontextodosistemacarcerário,percebe-seasuaconstituiçãoenquantocampodepoderimersonalógicaarticuladoradasrelaçõesdegêneroedesexualidade.Porsuavez,aplicando-seasteoriasdegêneromencionadasàpráticadarevistacorporal,notamosqueasaçõesdefiscalizaçãoseconstituemenquantoprocessosdedesumanização,formaçãodaidentidadeecondicionamentodasubjetividade,sejapelasubserviência,controleoudisciplina.
Destaforma,asmulheres,familiaresdepresos,submetem-seaviolaçãodesuaintegridadefísica,psíquicaeaumtratamentodegradantediantedaexposiçãodeseuscorposàrevistacorporal,quepossui,inegavelmente,umcunhovexatório.Comonosensina
Capa| Sumário | 131
Sexualidade e gênero: controle e subversão
NatháliaLagoeMárcioZamboni,tratandodaspolíticassexuaiseafetivasdaprisão,énítidooquanto:
[...]asrelaçõesdecuidado,afetoeinterdependênciaeosfluxosdepessoas,bensesignosesentimentos(...)estãoprofundamentemarcadosporpadrõesdegêneroesexualidade(LAGO;ZAMBONI,2017,p.6).
Podemosperceber,portanto,comoaspráticasestataissãogenerificadas,aomesmotempoemqueasperformatividadesdegêneroganhammaterialidadeviaEstado,constituindoadinâmicadavidadefamiliaresdospresos.Assimtambémpodemsercompreendidasasrepresentaçõeseasafetaçõesdasperformancesdegêneroqueestãoemconstanteatualização(EFREMFILHO,2017)edisputa(VIANNA;LOWENKRON,2017),umavezquesãoprodutoshistóricoseassimsemovimentamesãoconstruídos.
Atravésdaspráticasdecontrolenaentradadasprisões,podemosobservaramaneira rigorosa,articuladae ríspidacomoaconteceàfiscalizaçãoàsvisitantes,porsuavez,maioriafeminina.Comojádescrito,ataissujeitosrecaiumprocessodeestigmatização,emrazãodovínculocomofamiliarpresoaservisitadoeapossibilidadedetrazeralgoilícitoconsigo,oquefazcomqueelasnaturalizemaviolênciaqueéperpetradanasfilasenarevistaíntima.
Pormedoe/ourespeitoàautoridade,deretaliaçõeseainda,porseremconsideradospossíveismeiosparaaentradadeobjetosproibidosnaprisão,asmulherestêmseuscomportamentosecorposmoldadossegundoconvençõesqueregulamos“territóriosdeperigo”.
Anoçãode“territóriosdeperigo”étrabalhadaporEfremFilho(2017,p.18)aoexporquealgunslocaisestãomarcadospelailicitude.Porpossuíremumaintimidademaiorcomasdinâmicasdocotidianomarginal,sejapelacartografiadocomérciovarejista
Capa| Sumário | 132
Sexualidade e gênero: controle e subversão
dedrogasilícitas,armas,bensdeorigensnãocomprovadas,assimcomoaausênciadequaisquervínculosempregatíciosoutrabalhosregulares,estesterritóriospossuemapresençaconstantedoEstado,materializadapelasesferaspoliciaisoudocrime.
AtraduçãodossentidosformaisdoEstado,daviolênciaperpetradaporagentesestataisedoreconhecimentodeumsuspeito,diantedeumaseleçãodefatoseeventosqueproduzemilusoriamenteuma“verdade”,considerandoasrelaçõesdepoderesubmissãoàsdeterminaçõesdaadministraçãopenitenciáriaéoquecompõeas“finasmalhasdoterror”(EFREMFILHO,2017,p.18),queatravessamaprisão.Adominaçãodecorposeocondicionamentodasubjetividadedosfamiliaresdepresosoudaspessoasquesesujeitamàrevistacorporalseconstroemcomotais,portanto.
Nãoobstanteestareminseridosemrelaçõesdepoderdesiguais,essessujeitoselaboramformasdeagênciaaodenunciarainadmissibilidadedasviolênciasàsquaisestãosubmetidos:osprocessosdevigilância,asarbitrariedadeseexcessosdosagentesestatais.Taldenúnciaconsisteemumexercíciode“reivindicaçãodaviolência”queserveparaconsolidaralegitimidadedasvítimas.Asdores,ossuplícioseossacrifíciosprecisamservalidadospublicamenteparaquesurjamosefeitosnaquelasvidaseaimportânciaqueaelasdevemseratribuídas.Destaca-se,especialmente,asituaçãodasmulheresquepassampelarevistaíntimaeescolhemadentrarocárcere,reivindicandosuadignidadenosmomentosderevista,aosenegaremouquestionaremos/asagentespenitenciários/assobreaspráticaseosassédiosporelasvivenciadosnomomentodainspeçãocorporal,circunstânciasquepodempromoveradesestabilizaçãodestaautoridadeedepráticasenraizadasnosistemacarcerário.
ComoumainscriçãodossentidosdeEstadonoscorpos,arevistaíntimapodeservircomobarreiraparaapromoçãodoselosentrefamiliaresdepresosetambémdaautoconsciência
Capa| Sumário | 133
Sexualidade e gênero: controle e subversão
desi,pois,sistematicamente,questionaaliberdadedequemadentraaprisãoe,sobretudo,podeforjarumsentimentodeculpaeresponsabilizaçãodopresoemrelaçãoàsviolênciasqueseusentessofremporláestarem42.Sendoimpossível,então,desassociarasintervençõesestataisdasconvençõesdegênero,jáquenãohácomoracionalizarossentidosdeEstadodeixandodeladoasrelaçõesdegêneroesexualidade.
3 A ARTICULAÇÃO DAS CATEGORIAS DE GÊNERO E SEXUALIDADE NA PRÁTICA DA REVISTA ÍNTIMA
Asmasculinidadesagressivas,egoístasedominadorasdoEstado,emrazãodahistóricaocupaçãoporhomensdaspolíticaspautadasemrelaçõesdedesigualdadeentrehomensemulherespautadasatravésdosinteressesmasculinossãoanalisadasporLowenkroneVianna(2017).
Ambasasautoras,criticandoacorrentedofeminismoradical,apartirdosestudosdeYoung,nosfazemrefletiracercadospapeisdoEstado.Asreflexõeselaboradasporestaautora,tratamdacompreensãodoEstadocomoexpressãodaquiloqueémasculinoedoprópriopatriarcado,ouseja,dacombinaçãoentreadominaçãomasculinaeopoderestatal,aopontuarqueasrelaçõesdedesigualdadeestariaminseridasemumaagendadepolíticasincorporadasainstitucionalizaçãodopodermasculinonasociedadecapitalista,quereiteravaasubordinaçãofeminina.
Nessesentido,LowenkroneVianna,tambémapontamosestudosdeYoung(2003),soboutraperspectivadadimensão
42 Muitasdasrebeliõesocorridasnospresídiosestaduaistiveramcomoumadesuasmotivações,amaneirapelaqualocorremasrevistasíntimas,aexemplodarebeliãoocorridanaPenitenciáriaTupiPaulista,emSãoPaulo(cf.SILVA,2017).
Capa| Sumário | 134
Sexualidade e gênero: controle e subversão
masculina,depolíticadeproteçãoestatal.Elasponderamque,emborahajaumaconvençãoquecaracterizao“Estado”apartirdeperformatividadesdominadoraseopressoras,confrontamtaldimensãocomaquelaqueadmiteo“Estado”enquantoagenteprotetor,diantedeumaimagemde“masculinidadeaparentementebenigna,associadaaideiasdecavalheirismo”(VIANNA;LOWENKRON,2017,p.13),porémaindaemumaposiçãodedependência.
Nessesentido,soboargumentoqueaspráticasdesegurançasefazemnecessáriasnosestabelecimentospenais,avisãodeum“Estadoqueprotege”afrontaaimagemagressivadoEstado,umavezqueestavaideencontroàsgarantiasconstitucionaisquesãocaracterizadas,enquantopolíticasdeproteçãodoEstado,interessadoempreservaraintegridadefísicados/asvisitantesdospresídios,porexemplo.
ParacompreenderossentidoselógicasqueperfazemoEstado,aindaquesinteticamente,éindispensávelvisualizarasconotaçõesatribuídasàpráticadarevistacorporalpelosistemapenitenciáriodapráticadarevistacorporalpelosistemapenitenciário.Enfatiza-se,nestaseção,aaludidanecessidadedesegurançadaestruturapenitenciária,ascontradiçõeserelaçõesdepoderqueestãoalémdacapacidadedematerializaçãodiscursivadaanálisedestetipodevistoria,vistoqueasnarrativassobreasviolênciasocorridasnestesespaçosnãosãocapazesdereconstituir,porcompleto,oque“defato”aconteceu.Trata-sedoscuidadosmetodológicosapontadosporMarizaCorrêasobreairrecuperabilidadedos“atos”edecomoasnarrativasrepresentamsomenteumaleiturasobrepartesdamesmahistória(CORRÊA,1983,p.26).
ComotrazButler(2019),énecessáriocompreenderosdeslocamentosdaspráticasreguladorasdogêneroeabuscapelauniformizaçãodasidentidadesporpartedoscamposdepoder.Tais
Capa| Sumário | 135
Sexualidade e gênero: controle e subversão
camposproduzemosujeitoenquantoforjamasimesmospormeiodasestruturascompulsóriasqueregulamasrelaçõessociais,estandocaracterizadoosistemapenitenciáriocomoumdessesambientes.
Aodesejaradentrarainstituiçãopenal,o/avisitanteésubordinadoàsregrasinternasdessesistema.Nointuitodereprimirviolaçõesataiscódigosregulamentares,oEstadoimpõe,“paraagarantiadasegurançaprisional”,algunsmeiospelosquaisfiltraráaentradadeobjetosilícitos,taiscomosubstânciasilegais,armas,celulareseoutrosbensquesirvamcomoformasdebarganhaoudeleitedequalquerprivilégionointeriordaunidadeprisional.Ocorre,noentanto,queasegurançainternadessesistemaestáintrinsecamentevinculadaàmaneirapelaqualérealizadooprocedimentodeverificaçãodoqueos/asvisitantestrazemconsigo.
OEstadoimpõeeargumentaquearevistacorporalseconstituicomoomeiomaiseficazparaafiscalizaçãodaentradadevisitantesnaspenitenciárias.Háqueseponderarqueemboraasjustificativassejamparaa“segurançainstitucional/pública”,atendendoaocaráterpreventivodoEstado,asconsequênciasdessarevista(vexatória)sãomanifestadas,principalmente,atravésdasperformatividadesdegêneroesexualidadedesempenhadaspelasmulheresvisitantes.
SegundoapesquisadaRedeJustiça,emumboletiminformativocomatemáticadasrevistascorporais,acoibiçãodaentradadeobjetosnãopermitidosnãoéatingidapelainstituiçãoprisional.OsdadosacercadarevistaíntimafornecidospelaSecretariadeAdministraçãoPenitenciáriadoEstadodeSãoPauloapontamqueporvoltade3,5milhõesderevistasforamrealizadasnoanode2012eapenasem0,02%doscasosforamapreendidasdrogasoucelularescomvisitantes.FoiobservadoquenaqueleEstado,cercademeiomilhãodefamiliaresentremulheres,homensecriançassesubmeteramàsrevistasíntimasdecarátervexatório(INFORMATIVOREDEJUSTIÇACRIMINAL,2014).Nota-se,
Capa| Sumário | 136
Sexualidade e gênero: controle e subversão
portanto,quetalmétodopossuifinalidadesimplícitasaoidealdecontroledesegurançaprisional.
Ainspeçãodoscorposedasgenitáliasérealizadaporumagentepenitenciáriodomesmogênero,deacordocomdeterminaçãodaadministraçãopenitenciária.Destaforma,nãoháquesefalarem“escolha”àsubmissãoàrevistacorporalpelasmulheresquefrequentamospresídios.Ainvasãoaoforoíntimo,asubmissãoànudezdiantedocompartilhamentodeambientescompessoasdesconhecidas,inclusivefrenteaosagentesestataise,porvezes,otoquedestapessoaàspartesíntimas,temsidocaracterizadoporsetoresligadosaosDireitosHumanos,emmomentosdedisputaretórico-jurídica,enquantoassédiosexual(TANNUSet.al,2016)ouatéestuproinstitucional(OSOMARZO,2017;IBCCRIM,2015).
Salienta-setambémquediantedasdenúnciasdasvisitantesedosesforçoscoletivosdeassociaçõesdemãesemulheresdepresos(PADOVANI,2019;SILVESTRE,2013);pelapressãoadvindaderebeliões;peloreconhecimentoporpartedasautoridades,sejaoConselhoNacionaldeJustiça,MinistérioPúblicoFederaleoutrascomissões,verifica-seatentativadeimplantarmeiosmaissofisticados,tecnológicosemenosinvasivosaosistemapenal(CAMPELLO,2016),especialmentenoprocessoderevistapessoaldaspessoasquevisitamentesqueridospresos(FUJITA,2017).
Noentanto,vê-sequeestanãoéumadeterminaçãonacional,cabendoaosgovernosestaduaissuaimplantação,bemcomoacaptaçãoderecursosfinanceirosparaadquiri-los.
Asnormaspenaisdocampoestatalpartemparaocontroledoscorposedasubjetividadedasmulheresinduzindo-asaosrituaisdaprisão(PIRES,2016),sejapelocomprometimentodotempo,dosdiasdevisita,dosmomentosqueestaspassarãoaoladodoseufamiliarpreso,bemcomodoprocessodenormatizaçãoquelheséestendido.Entretanto,essaviolênciamajoritariamenteexercidacontraasmulheresporvezesésignificadapelosorganismos
Capa| Sumário | 137
Sexualidade e gênero: controle e subversão
estataiscomomeroconstrangimentoou,poroutrolado,como“malnecessário”(DUARTEet.al,2017,p.124).
Estaé,porsuavez,umaviolêncialegalizadaereafirmada,acadavisitaeacadamomentodevistoria.Aindaquealgunsfamiliaresjápercebamaexecuçãodarevistacomoumaetapanecessária,considerandoafamiliaridadecomocotidianoprisional,édesesalientarocaráterintimidadordestavistoria,mas,sobretudoseuaspectoprodutorereguladordassubjetividades,namedidaemqueconseguetornaríntimaelegítimaàsmulheresaviolênciainstitucionalizada.Assim,arevistaíntimaratificaasposiçõesdehierarquiaqueestãopostasnosistemaprisional,induzindonasmulheres,padrõesdeperformatividadeeconteúdosinternos,subjetivos,queconstituemapráticaprisional,alémdepromoversentimentosdesubmissãoaosregulamentosadministrativosdaprisão.
Ressaltamosqueaobjetificaçãodoscorposdasfamiliaresecompanheirasdospresospodeseconstituirtambémenquantoprocessodeetiquetamentosocialdos/asfamiliaresdepresos(BARATTA,2002).
Oetiquetamentosocialéumateoriadacriminologiacríticaclássicaquetrataacercadocombateaoscrimes,apartirdacríticaaosconceitosdecrimeecriminoso,diantedacriminalizaçãoerotulaçãodesujeitosquepossuíamcomportamentosnãocondizentescomaculturahegemônica,aosseusvaloreseaosdosistemapenal.
Aplicandotalteoriaàanálisedarevistaíntima,nota-secomoasperformancesdosagentesestataisqueatuamnosistemapenalestãoconsubstanciadasemnormasdecontençãosocialdossujeitosvulnerabilizadose/ouabjetos43,atravésdacriminalizaçãopela
43 Corposabjetossão,segundoButler(2019),aquelesquenãoagem/existemconformeosdiscursoshegemôniosdaestruturabinária,aquelesquesãoimpossíveis,paraanormadiscursivavigente,deseremcompreendidoseporestarazãopermanecemàmargemouainda,excluídos.
Capa| Sumário | 138
Sexualidade e gênero: controle e subversão
suspeiçãodascoisasquepodemtrazernoscorposdequemadentraasprisõesedadescaracterizaçãodestasmulheres,especialmentemãesecompanheiras,enquantopessoaslivresepossuidorasdedignidadeedireitos.ComoexplicaCampos:
[...]Depreende-sedaocorrênciaestudada,queasmotivaçõesenvolvidasnapráticadeabusosnasrevistas íntimasforamopreconceito,aestigmatização,etiquetamentodosentesdeumpresoeoabusodeautoridade,nãosevislumbrando,nesteepisódio,nenhumprocedimentopróprioeadequadodeumorganismopolicialoudeagentespenitenciáriosquetemcomoatribuiçãoprecípuaaprevençãoerepressãoaocrime(CAMPOSapudBRAGA,A.;DUTRA,Y.;TORRES,T.A,2016,p.7).
Valesalientarquearevistavexatóriatambémocorreantesdasvisitasíntimas,demaneiramaisrigorosa.Esteprocessoquetambémservedefiltroparaoprotagonismodosmomentosdeprazer(sexual)dosapenados.Nestemomento,essasmulheresseencontram,apesardesujeitasaocontroleprisional,emumlocaldepoder,sejapelasimbologiaoufetichizaçãodascelasedaerotizaçãodaprisão,sejapelaidealizaçãodoamorromântico,comoressaltaGuimarães:
[...]Asmulheresestabelecemumjogofetichizadoemesmoerotizadocomainstituiçãoprisão.Erotizado,namedidaemqueainstituiçãopermiteumlugardepoderparaamulhersobreohomempreso,(...),poisaprisãogarantequeohomemestá‘preso/seguro’ládentro,oupelaativaçãododesejosexualdoparceiro(GUIMARÃES,2006,p.51).
Capa| Sumário | 139
Sexualidade e gênero: controle e subversão
Apesardaestigmatização, “asmulheresdospresos”(PADOVANI,2019;SILVESTRE,2013)sãoquempodemreivindicaraviolênciadespendidanaprisão.Oprocessoderesistênciaàsviolaçõeseàssituaçõesconstrangedorasqueasmarginalizamepromovemamortificaçãodelas,podemserclassificadosenquantoaçõescaracterizadorasda“maternagemdaaçãopolítica”(EFREMFILHO,2017,p.41).Taismulheresestãoligadasaoapenado,localizadasnos“territóriosdeperigo”e,vinculadasaoroldesuspeitosdoEstado,submetem-seàcoerçãodarevistacorporalcomomeiodereivindicaçãodoafetoedosobjetivosdaressocialização44,denunciandotaispráticasabusivas.
ComonosensinaEfremFilho(2017),aconvençãodegêneroesexualidadeatribuídaàmaternidadeestáarraigadaaummomentoextremodeviolência.Éaimagemdamulher-mãe,sacra45,quevaioperarnosentidodadisputada(i)legitimidadedaviolênciaperpetradaaosfilhos,doscamposdepoderquepermeiamtalpráticae,também,daideiadecuidado,enquantoperformatividadede gênero.
Édelastambémaincumbênciadaverificaçãodoandamentodosprocessospenais.Taismulheres,atravésdodesempenhodocuidado,estãoconectadasàexecuçãodapenaedoprocessopenal,calcandosualiberdadeaoexercíciodacidadaniaeasestratégiasdesobrevivênciadiantedodescréditodajustiça(GUIMARÃES,2006).Apartirdestesfluxosprisionaiseprocessuais,seestabelecem
44 Demaneiracrítica,éimportantesalientaroquantoessacategoriaéutilizadapeloEstadoesistemapenalnointuitodelegitimaraexistênciadasprisõesenquantoumlocalreeducador,promotordecidadaniae“bonscostumes”ideiatalquenãocondizcomarealidadebrasileira.
45 DeacordocomEfremFilho(2017),aimagemdamãeestáligadaàsimbologiacristãdeMaria,mãedeJesus,comoaquelaquesesubmeteadoreaosofrimentoporamoraoseufilho.
Capa| Sumário | 140
Sexualidade e gênero: controle e subversão
tambémrelaçõesextraprisionaiscomoutrasmulheres,formandoumvínculo de sororidade46pelapartilhadasfrustrações,aidealizaçãodaliberdadedosentesqueridos,dosmedosedasangústiasdaprisão.
Oprocessodeatravessamentodosportõesdasprisõesimplicanaobservaçãodosmúltiplos“vasoscomunicantes”(GODOI,2015,p.132).Estesviabilizamocontatoentreo“dentroeforadaprisão”,revelandosuaprecariedade,mastambémapreservaçãodoeloentreaprisãoeoqueestáforadela.Éapartirdessacompreensãodacomunicaçãoedosdiscursosnoscamposdepoder,quepodemserpercebidasasarticulaçõesdascategoriasreciprocamenteconstitutivascomoclasse,raça,gêneroesexualidadecomossentidosepráticasdevigilânciadoEstado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
OsistemaprisionaléumdoscamposdearticulaçãodepoderdoEstado.Necessariamente,éaprisãoumainstituiçãopolíticaeprodutoradecontrole,regulação,subserviênciaeenquadramentosocial,especialmenteatravésdapropagaçãodemúltiplasviolênciasemseuinteriorouforadele.
Apartirdosistemapenitenciário,observa-seocaráterpunitivodaspráticasestatais,queproduzemnãoapenasoassujeitamentodaspessoasqueestãosobsuatutela,comotambémpromovemviolaçõesàintegridadefísicaesubjetivadaspessoasquetransitam,temporariamente,pelosambientesprisionais.Emsentidocontroverso,porém,asinstânciasestataisseapresentamdemaneiradúbia,poistambémsãooslocaisdereivindicaçãodedireitosedegarantiadestes.
46 Sororidadeéumconceitodateoriafeministaquetrataacercadaaliançaentremulheres,comoumaespéciedeirmandaderessaltadaparaofortalecimentocoletivonalutacontraomachismoesuasexpressões.
Capa| Sumário | 141
Sexualidade e gênero: controle e subversão
Apartirdasubmissãoàrevistaíntima,porexemplo,équeoscorposqueatravessamosmurosprisionais,especialmentemulheres,familiaresdepresos,tambémsesubmetemaosmétodosdesegurançadaquelainstituição,estandoelasaoseudispor.Aviolênciaqueporelasépropagadanãosóasfazvítimasdeumabusoouestuproinstitucional–adependerdamaneiraqueocorra–,comotambémproduzemnelas,suaformadeagenciamento,resistênciaereproduçãodeconvençõesdegêneroesexualidade,ressaltandoasperformatividadeshegemônicasouprovocandotambémfraturasnestesistema.
Istopodeaconteceratravésda“maternagemdaaçãopolítica”,comojádestacado,aqualpossibilitaousodavisitaçãoparadenunciarviolaçõesquevenhamaocorrerdentrodaquelesistema.Deigualmaneira,tambémocorrecomoagenciamento,quandomães,esposas,companheirasefilhas,unemforçasepromovemumapoiomútuo,sejanaorganizaçãodosjumbos,dasvisitas,dafilaoudasdorescompartilhadas,resistindoaosofrimentoeencorajando-asentresisobreanecessidadedasvisitasedarealidadedocárcere.
Aprivaçãodaliberdadeeocompartilhamentodapenapelas“mulheresdospresos”(PADOVANI,2019;SILVESTRE,2013)caracterizam-secomoeixosqueinterligamoprocessodecriminalizaçãoàestigmatizaçãovivenciadapelasvisitantes.Esteestreitamento,porsuavez,denunciaumdesequilíbriosocial,namedidaemqueossujeitosquevivemessesconflitossociaiscompartilhamdasubmissãoàsrelaçõesdepoderdesiguais,apartirdaarticulaçãodecategoriascomoaraçaeaclasse.Poroutrolado,osprocessosdecriminalizaçãoeavivênciadaspráticasprisionaisevidenciamamaterializaçãodeperformatividadesdegêneroedesexualidadepormeiodasinstânciasestatais.
Éimpossívelnãopensaraspráticaserepresentaçõesestataiseasperformatividadesdegênerocomoprodutorase retroalimentadorasdasrelaçõessociais.Osistemapenal
Capa| Sumário | 142
Sexualidade e gênero: controle e subversão
apresenta-secomoineficazparaaproteçãodasmulheres,hajavistaainvasãodasubjetividadeeoassédiosexualprovocadopelarevistaíntima.Dessemodo,asinstânciasestataisatuamapartirdaperformatividadedeumamasculinidadeagressiva,nalógicademonstradaanteriormenteporLowenkroneVianna(2017).
Emcontrapartida,asmulheresutilizamdomesmosistemaparacontestarsuaexistência,acriminalizaçãoqueévivenciadaporelasnoprocessoderevista,tratando-lhescomosuspeitas,assimcomoasviolênciassofridasporseusfamiliares.Nessesentido,tambémsãoacionadosmecanismosdefetichizaçãoatravésdavisualizaçãodopodererotizadoedasubmissãodosapenadosàsmulheres,nasvisitasíntimas,assimcomosãoacionadosdispositivosdereivindicaçãodaviolênciasofridapelas“mulheresdospresos”(PADOVANI,2019;SILVESTRE,2013)nossacrifíciosporelasengendradosfrenteàprisão.
Amulher,apartirdasuarelaçãocomosistemaprisionale,porconsequência,comasesferasestatais,torna-senãosóvítima,masagentededisputanestecampodepoder.Éapartirdaarticulaçãodossimbolismosdasviolências institucionaisplurifacetadasdasprisõesquese(re)produzemasdesigualdades,asviolênciasperpetradaspelasrelaçõesestruturaiscomasprisões,fazendo-seperceberasarticulaçõesdaquelescomocampodamoralsexualheterossexuale,consequentemente,generificada.
Talestudodebateuasconvençõesdesexualidadeedegênero,bemcomoseuentrelaçamentocomoexercíciodepráticasestataiseofuncionamentodosistemadecontroleprisional,utilizando-sedarevistaíntima(corporal)comopanodefundo.Ficaexplícito,porfim,omodocomo,deumlado,asperformanceseossentidosdegêneroe,dooutro,asdinâmicasdeEstadoeaspráticasdosistemadecontroleprisional,constituem-sereciprocamente,especialmenteemcontextosdeprivaçãodeliberdade.
Capa| Sumário | 143
Sexualidade e gênero: controle e subversão
REFERÊNCIAS
BARATTA,Alessandro.Criminologia crítica e crítica do direito penal:introduçãoàsociologiadodireitopenal.TraduçãodeJuarezCirinodosSantos.6.ed.RiodeJaneiro:Revan:InstitutoCariocadeCriminologia,2011.BRAGA,AécioDelfino;DUTRA,YuriFrederico;TORRES,ThalesdeCastro.A revista íntima realizada em familiares de presos e sua violação aos princípios constitucionais, 2016.Disponívelem:https://www.webartigos.com/artigos/revista-intima-realizada-em-familiares-de-presos-e-sua-violacao-aos-principios-constitucionais/139637/.Acessoem:15dez.2019.BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984.InstituiaLeideExecuçãoPenal.Disponívelem:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm.Acessoem:15demar.de2020.BUTLER,Judith.Problemas de gênero:feminismoesubversãodaidentidade.TraduçãodeRenatoAguiar/ReviãoTécnicadeJoelBirman.17.ed.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,2019.BUTLER,Judith.Quadros de guerra:quandoavidaépassíveldeluto?TraduçãodeSérgioLamarãoeArnaldoMarquesdaCunha.RevisãodeTraduçãodeMarinaVargas.RevisãoTécnicadeCarlaRodrigues.5ªed.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,2018.CAMPELLO,RicardoUrquizas.TecnologiaePunição:OMonitoramentoEletrônicodePresosnoBrasil.In:IVSIMPÓSIOINTERNACIONAL LAVITS. ¿NUEVOS PARADIGMAS DE LA VIGILANCIA?MIRADASDESDEAAMERICALATINA,3,2016,BuenosAires,Anais...BuenosAires:Lavits,2016,p.1-11.Disponívelem:http://lavits.org/wp-content/uploads/2017/08/P3_Campello.pdf.Acessoem:20demar.2020.COMFORT,Megan.Doing time together:Loveandfamilyintheshadowoftheprision.Chicago:TheUniversityofChicagoPress,2008.
Capa| Sumário | 144
Sexualidade e gênero: controle e subversão
CORRÊA,Mariza.Morte em família:representaçõesjurídicasdepapeissexuais.RiodeJaneiro:EdiçõesGraal,1983.DUARTE,DéboraGarcia;KAZMIERCZAK,LuizFernando.OPrincípiodaIntranscendênciadaPenasobaluzdeumDireitoPenalConstitucional.Revista Aporia Jurídica.CursodeDireitodaFaculdadeCESCAGE,8.ed.v.1,n.1,p.123-136,2017.EFREMFILHO,Roberto.Areivindicaçãodaviolência:gênero,sexualidadeeaconstituiçãodavítima.Dossiêconservadorismo,direitos,moralidadeseviolência,Cadernos Pagu,Campinas, n.50,p.1-54,2017.FUJITA,Gabriela.“Sereclamar,nósnãoentramos”,dizmãedepresosobrerevistaíntima.Notícias UOL,SãoPaulo,29janeiro2017.Cotidiano.Disponívelem:https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/01/29/se-reclamar-nos-nao-entramos-diz-diz-mae-de-preso-sobre-revista-intima.htm. Acessoem:21demar.2020.GODOI,Rafael.Fluxosemcadeia:asprisõesemSãoPaulonaviradadostempos.246f.2015.Tese(DoutoradoemSociologia)–ProgramadePós-GraduaçãoemSociologiadaFaculdadedeFilosofia,LetraseCiênciasHumanasdaUniversidadeFederaldeSãoPaulo,SãoPaulo,2015.GODOI,Rafael.Nemdentro,nemfora:alogísticadavisitaçãoempenitenciáriasdooestepaulista.Docplayer,Set2013.Disponívelem:http://docplayer.com.br/9903347-Nem-dentro-nem-fora-a-logistica-da-visitacao-em-penitenciarias-do-oeste-paulista-1-rafael-godoi-introducao.html.Acessoem:10dez.2019.GODOI,Rafael.Vasoscomunicantes,fluxospenitenciários:entredentroeforadasprisõesdeSãoPaulo.Vivência: Revista de Antropologia,SãoPaulo,n.46,p.131-142,2015.GUIMARAES,CristianFabianoetal.Homensapenadosemulherespresas:estudosobremulheresdepresos.Revista
Capa| Sumário | 145
Sexualidade e gênero: controle e subversão
Psicologia e sociedade,PortoAlegre,v.18,n.3, p.48-54,2006.INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS (IBCCRIM). Revistavexatória:oestuproinstitucionalizado.Boletim 267,fev.2015.Disponívelem:https://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5279-Revista-vexatria-o-estupro-institucionalizado. Acessoem:10dedez.2019.INFORMATIVO REDE JUSTIÇA CRIMINAL. Boletim temático: Revista Vexatória.Brasília/SãoPaulo,6.ed.,a.4,p.1-10,2014.LAGO,NatáliaBouçasdo.Mulherdepresonuncaestásozinha:gêneroeviolêncianasvisitasàprisão.Aracê: DireitosHumanosemRevista.SãoPaulo,v.4,n.5,p.35-53,fev.2017.LEBRETON,David.A sociologia do corpo.TraduçãodeSôniaM.S.Fuhrman.6.ed.RiodeJaneiro:EditoraVozes,2012.MOURA,MarcosVinícius(Org.).Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN. Atualização:dejulhode2017.Brasília:MinistériodaJustiçaeSegurançaPública,DepartamentoPenitenciárioNacional,2019.Disponívelem:http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinteticos/infopen-jun-2017-rev-12072019-0721.pdf.Acessoem:10 dez. 2019.OSOMARZO,Fernanda.Aqueminteressaarevistavexatória?Justificando,25jan.2017.Disponívelem:http://www.justificando.com/2017/01/25/quem-interessa-revista-vexatoria/. Acessoem:10dedez.2019.Padovani,NatáliaCorazza.Nacaminhada:“localizaçõessociais”eocampodasprisões.Cadernos Pagu,Campinas,v.55, p.1-31,2019.PIRES,GleicieleFerreira.Revistaíntimanosistemaprisionalbrasileiro.62f.2016.Monografia(BachareladoemDireito)–
Capa| Sumário | 146
Sexualidade e gênero: controle e subversão
FaculdadedeDireito,UniversidadeFederaldeJuizdeFora,JuizdeFora,2016.SANTOS,Thandara(Org.).Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias.2.ed.Brasília:MinistériodaJustiçaeSegurançaPública,DepartamentoPenitenciárioNacional,2017.Disponívelem:http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen-mulheres/infopenmulheres_arte_07-03-18.pdf. Acessoem:03mar.2020.SILVA,MarcosSérgio.Justiçaproibiuemoutubrorevistaíntimaempresídioondehouve2mortesemSP.Notícias UOL,SãoPaulo,13jan.2017.Cotidiano.Disponívelem:https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/01/13/justica-proibiu-em-outubro-revista-intima-em-presidio-onde-houve-2-mortes-em-sp.htm?cmpid=copiaecola.Acessoem:10abr.2020.SILVESTRE,Giane.Dias de visita:umasociologiadapuniçãoedasprisões.SãoPaulo,Ed.Alameda:2013SLONGO,Eloisa.“Lamadre,lamuerte”:análisesobreumcasodeabortoclandestino.66f.2017.Monografia(Bacharelado em Direito)–FaculdadedeDireito,UniversidadeFederaldaParaíba,SantaRita–PB,2017.TANNUSS,RebeckaWanderley;SILVAJÚNIOR,NelsonGomesdeSant’Ana;D’ANDREA,IsadoraGrego.Famíliasdocárcere:sistemaprisionaleviolaçõesaosdireitoshumanos.In:IXSEMINÁRIOINTERNACIONALDEDIREITOSHUMANOS,GT4,Violência,SegurançaPúblicaeDemocracianaAméricaLatina.JoãoPessoa,2016.Anais...JoãoPessoa:UFPB,2016Disponívelem:http://www.ufpb.br/evento/index.php/ixsidh/ixsidh/paper/view/4411.Acessoem:10dez.2019.VIANNA,Adriana;LOWENKRON,Laura.OduplofazerdogêneroedoEstado:interconexões,materialidadeselinguagens.Cadernos Pagu,Campinas,n.51,p.101-175,2017.
Capa| Sumário | 147
DIREITOS REPRODUTIVOS DAS MULHERES BRASILEIRAS: ENTRE A MATERNIDADE E A MORTE
Monique Ximenes Lopes de Medeiros47
1 INTRODUÇÃO
OsdireitossexuaisereprodutivossãoconsideradospartedoarcabouçodosDireitosHumanos.Apesardisso,aindahánalegislaçãobrasileiraalgumasrestriçõesaoplenoexercíciodessesdireitosporpartedasmulheres.Esteestudoobjetivaexporaslimitaçõesimpostasaessesdireitoseanalisaasprincipaisconsequênciasdasproibiçõesnormativas,apartirdaperspectivadasteoriasdegênero.
Éconhecimentocorrentequeasmulherespassaramacontrolardeformamaisseguraeefetivaaquantidadedefilhoscomadescobertadosmétodoscontraceptivos.Aopassoqueasmulheres,desdemuitotempo,utilizavamervaseprocedimentosrudimentaresparacontrolarsuareprodução,écertoquesomentenoséculoXXcomadescobertadapílulahormonalcontraceptivaeoaperfeiçoamentodeoutrosmétodosqueaumentouograudeeficáciasobreapossibilidadedenãoprocriar.Apartirdaíareproduçãodeixoudesertemaligadounicamenteànatureza/
47 ProfessoradoInstitutoFederaldaParaíba(IFPB),CampusCabedelo Centro.DoutorandapeloProgramadePós-GraduaçãoemCiênciasJurídicasdaUniversidadeFederaldaParaíba(PPGCJ-UFPB).MestraemCiênciasJurídicaspelaUniversidadeFederaldaParaíba.E-mail:[email protected].
Capa| Sumário | 148
Sexualidade e gênero: controle e subversão
biologia.Eamulher,comociborgue48(HARAWAY,2009,p.36),passouateracessoanovastecnologias–pílulaanticoncepcional,dispositivointrauterino(DIU),cirurgiadeesterilização,camisinha,dentreoutros–queforamindispensáveisparaocontroledoseuprópriocorpo,emboranãosejamtotalmenteseguros.Amudançadasituaçãoreprodutivadasmulheresocorreunocampomédico,àmedidaqueasfronteirasdeseuscorpossetornampermeáveisàintervençãodasnovastecnologias(HARAWAY,2009,p.74).Nocampodosdireitosreprodutivos,Itaboraí(2017,p.261)apontaqueénecessárioanálisecuidadosaacercadascríticasàmedicalizaçãodocorpofeminino,tendoemvistaqueapráticanãofoiapenaspodersobreamulher,mastambémgeroupoderparaamulher,queatravésdocontrolesobreseuprópriocorpo,tevecondiçõesepossibilidadesdeescolhadeoutrosprojetospessoais.
EmtermosnormativososdireitossexuaisereprodutivosforamtratadospelaprimeiraveznaConferênciasobrepopulaçãoedesenvolvimentorealizadaemCaironoanode1994.Noanoseguinte,aIVConferênciaMundialsobreaMulher,emseus§§95e96,tratariadasaúdesexualereprodutivafemininaefixariaque“osdireitoshumanosdasmulheresincluemosseusdireitosatercontrolesobreasquestõesrelativasàsuasexualidade,[...]eadecidirlivrementearespeitodessasquestões,livresdecoerção,discriminaçãoeviolência”.
O tema tambémé abordadonaConvenção sobre aEliminaçãodeTodasasFormasdeDiscriminaçãocontraaMulher,de1979,ratificadapeloBrasilem1983;naConstituiçãoFederal,queemseuart.226,§7ºtratadoplanejamentofamiliarcomolivre
48 Otermo“ciborgue”aquiutilizadorefere-seàterminologiaadotadaporDonnaJ.Harawayquecompreendeoorganismohumanoatualcomoumhíbridodemáquinaeorganismo.Nocasodasmulheresereprodução,haveriarejeiçãodafiguradamulhercomo“mãe-natureza”oucomo“feminismodadeusa”.
Capa| Sumário | 149
Sexualidade e gênero: controle e subversão
decisãodocasal;naLeidePlanejamentoFamiliar;enaLeiMariadaPenha,queemseuartigo7º,IIIclassificoucomoviolênciasexualqualquercondutaqueimpeçaamulherdeusarqualquermétodocontraceptivoouquelimiteouanuleoexercíciodeseusdireitossexuaisereprodutivos.
Aquiabordaremosdoispontosmaisemblemáticosdalegislaçãopátria:asrestriçõesimpostasàesterilizaçãovoluntária,prescritasnaLeinº9.263,de12dejaneirode1996,eaproibiçãodoaborto.Suapráticaétipificadapeloart.124doCódigoPenal,compenadeumatrêsanos,tendo,apenas,comoexceçõesasseguintessituações:quandonãoháoutromeiodesalvaravidadagestante,seagravidezresultadeestuproouemcasodosfetosanencéfalos49.
2 OS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DAS MULHERES NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO A PARTIR DA CRÍTICA FEMINISTA
ALeinº9.263,de12dejaneirode1996,aoregularoplanejamentofamiliar,somentepermiteaesterilizaçãovoluntáriaparapessoascommaisde25anosdeidadeou,pelomenos,comdoisfilhosvivos,sendo,ainda,necessárioobservaroprazomínimode60diasentreamanifestaçãodavontadeeoatocirúrgico.Areferidanorma,emseuart.10,§5º,tambémdispõeque“navigênciadasociedadeconjugal,aesterilizaçãodependedoconsentimentoexpressodeambososcônjuges”.A priorialeituradodispositivolegal
49 ValeressaltarqueesseterceirocasopassouaserpermitidoatravésdadecisãodoSupremoTribunalFederal,emitidanaADPFnº54,julgadaem12/04/2012.E,segundoaCorteSuprema,nãosetratadecasodeaborto,masdeinterrupçãodagravidez,tendoemvistaqueofetonãotemviabilidadedevidaextrauterina.
Capa| Sumário | 150
Sexualidade e gênero: controle e subversão
podedarfalsaimpressãodeigualdade,poisexigeautorizaçãotantodohomemquantodamulherparaqueseusparceirossesubmetamaesterilizaçãocirúrgica.Contudo,amaiorexigênciarecaisobreocorpofeminino,nãosóporestaremumasociedadeheteronormativa,mastambémporqueéumdosmétodoscontraceptivosmaisutilizadosnoBrasilenomundo,sendoquenonossopaíssóperdeparaapílulahormonal(UNITEDNATIONS,2019,p.22;ITABORAÍ,2017,p.255).
Nessecontexto,aLeidePlanejamentoFamiliartrazrestriçãoespecíficaparaocasodaspessoascasadas,punindocommultaereclusãodedoisaoitoanos50aquelapessoaquepraticaremdesacordocomoestabelecidonoart.10damesmalei.
Poroutrolado,seapráticadoabortotambéméproibida,percebe-sequeosistemajurídicodisciplinaoexercíciodosdireitosreprodutivosdamulheranteseapósaconcepção,oquefechaocercosobrealiberdadedeescolhernãoprocriar.Aopassoquenãopodelivrementedecidirsobreaprevençãodagravidez,tambémnãotemautonomiaparainterromperagravideznãodesejada.RestariacompletaaregulamentaçãodocorpofemininopeloDireitobrasileiro,aomenosnoqueconcerneaosdireitosreprodutivos.
Aanálisecríticadalegislaçãobrasileirasobredireitossexuaisereprodutivospodeserfeitadediferentesformas,dependendodaperspectivafeministaqueforadotada.
Beauvoir(2019a,p.88-89)apontacomnitidezparaafunçãoreprodutoraqueamulherexercenasociedadeedemonstracomoessaatividadepodeserfacilmentemascaradacomoprocessodeexercíciodaliberdade.Quandoaleiequiparaosdireitosreprodutivosdehomensemulheres,comofezaLeidePlanejamentoFamiliar,elaestápartindodeumaigualdadeinexistentee,portanto,atingindodeformadiferentehomensemulheres,postoque,umavezque
50 Crimetipificadonoart.15daLeinº9.263/96.
Capa| Sumário | 151
Sexualidade e gênero: controle e subversão
sóasmulherespodemengravidar,suasituação–eseugrauderisco–nãopodenuncaserequalizadaaopapeldoshomensnareprodução(CORRÊA;PETCHESKY,1996,p.165).
ÉimprescindívelentenderopapelqueoEstadoexerceaofecharasalternativasesimultaneamentesimularprocessodeescolha/liberdade.Comonãoépossívelobrigaramulheraparir:tudooquesepodefazeréencerrá-ladentrodesituaçãoemqueamaternidadeéaúnicasaída;aleiouoscostumesimpõem-lheocasamento,proíbemasmedidasanticoncepcionais,oabortoeodivórcio(BEAUVOIR,2019a,p.89).Écertoqueoordenamentojurídicobrasileiroavançouemmuitosaspectosrelativosaosdireitosdasmulheres,masaanálisedeBeauvoiraindaéatual,postoquepermanecemasrestriçõesdeescolhadométodocontraceptivoquemelhorlheconvêmeacriminalizaçãodoaborto.
De outra forma, Wendy Brown (apud VIANNA;LOWENKRON,2017)demonstraqueacrescenteaproximaçãoentreasmulhereseoEstadoacabaproduzindosujeitoscadavezmaisestatizados,regulados,disciplinados,trocandoadependênciaemrelaçãoahomensindividuaisporprocessosinstitucionalizadosdedominaçãomasculina.Essaanáliseadequa-seperfeitamenteàLeidePlanejamentoFamiliar,quandoanormaimpõeàmulhercasadaasubmissãoaoseumarido,quedevedecidir,emúltimaanálise,seelapodeounãoparardeterfilhos.
Tantaslutasforamtravadas,inclusivepelasfeministasbrasileiras,paralibertaramulherdojulgodoesposo,masaindahoje,aomenosnessecaso,seaceitouadominaçãomasculinaimpostaereguladapelopróprioEstado.
Asubordinaçãofemininaaoseuesposo,nessa lógicapatriarcal,nãopareceserviolência,postoqueessehomemécolocadocomocorajoso,responsável,virtuosoeacimadetudo,protetor.Amulher,portanto,deverialheexternargratidãoportodoo“cuidadoezelo”.Assim,aigualdadeentreosgênerosé
Capa| Sumário | 152
Sexualidade e gênero: controle e subversão
substituídapelasuperioridadedohomemprotetorecolocaosprotegidos,paradigmaticamentecriançasemulheres,naposiçãodesubordinação,dependênciaeobediência(VIANNA;LOWENKRON,2017).Seasmulheressolteiras,divorciadasouviúvaspodemescolher,livremente,quandorealizaracirurgiadeesterilização,omesmonãopodeserditoparaasheterossexuaiscasadas.Quandoumhomementraemsuavidaatravésdainstituiçãofamiliar,aLeiestabelecequecabeaoesposooucompanheirodecidirsobreocorpodesuamulheresobresuareprodução51,comevidentelimitaçãodaautonomiaindividual.
Ainstituiçãodocasamentojáfoianalisadacomotráficodemulheres,nacriaçãoderedesderelaçõessociaisemsistemadeparentescoque,porfim,estabeleciaqueasmulheresnãopossuemplenosdireitossobresimesmas(RUBIN,2017,p.29).FoiteorizadaporPateman(1993,p.184)comocontratosexual,noqualomaridodetinhaverdadeirapropriedadedocorpodaesposa,oqueincluíaserviçosdomésticosgratuitos,direitosconjugaiseprocriação.E,maisrecentemente,Butler(2010,p.135-136),tecendocríticaaideiadecorpomaternodeKristeva,avançaaocompreenderatrocade mulheres52comopráticaqueimpõeaocorpodasmulheresaobrigaçãocompulsóriadereproduzir.
Nessestermos,entendemosqueasrestriçõeslegaisimpostaspelaLeidePlanejamentoFamiliarapontamparaumduplopapeldocasamentoheterossexual:ratificaadominaçãomasculinasobreoscorposdasmulhereseimpõeareprodução.
51 Historicamenteamulhercasadasofreuinúmerasrestriçõesdedireitospelalegislaçãobrasileira.FatoquesófoiatenuadopelaLeinº4.121/62,conhecidacomoEstatutodaMulherCasada.
52 TermousadoporLevi-Stausaosereferiraocasamentoeformaçãodelaçosdeparentesco.
Capa| Sumário | 153
Sexualidade e gênero: controle e subversão
3 A MATERNIDADE A PARTIR DOS ESTUDOS DE FOUCAULT E BUTLER
OsestudosdeFoucaulteButlersãofundamentaisparacompreenderoatualestadocientíficodasteoriasdegênero.Acercadareproduçãoedamaternidade/paternidadeesuasregulaçõesestatais,nãopoderiaserdiferente.Antesdetudoéprecisoentenderque,comopós-estruturalistas,taisautorespartemdealgunsconceitosemcomum,aexemplodosignificadodocorpo.Maisprecisamente,Butlerpartedafilosofiafoucaultianaparatrilharsuasprópriasanálises.
ParaFoucaultocorposópodeserpensadoapartirdasrelaçõesdepoderqueoconstituem.Nosestudosfeministastradicionaispensava-seemsexooucorpocomoelementobiológicoenogênerocomoaconstruçãoculturaldevaloresdecadaumdossexos,nessesentidoBeauvoir(2019b,p.11)formulouacélebrefrase“Nãosenascemulher,torna-semulher”.JáFoucault(2015,p.169)questionaessaideiaaoapontarque:
Nãosedeveimaginarumainstânciaautônomadosexoqueproduza,secundariamente,osefeitosmúltiplosdasexualidadeaolongodetodaasuasuperfíciedecontatocomopoder.Osexoé,aocontrário,oelementomaisespeculativo,maisidealeigualmentemaisinterior,numdispositivodesexualidadequeopoderorganizaemsuascaptaçõesdoscorpos,desuamaterialidade,desuasforças,suasenergias,suassensaçõeseseusprazeres.
FoucaulteButlerpromoverammudançadeparadigmanosestudosdegêneroaoressignificaroconceitodecorpoe,consequentemente,desexoegênero.Butlerexplicaquesexoédesdesempregênero,assimcomonaturezaédesdesemprehistória,
Capa| Sumário | 154
Sexualidade e gênero: controle e subversão
biologiaédesdesemprediscursoe,enfim,poder(EFREMFILHO,2017).Paraafilósofa,ogêneroéperformativoe,comoestratégiadesobrevivênciaemsistemascompulsórios,temconsequênciaspunitivas,tendoemvistaque,defato,habitualmentepunimososquenãodesempenhamcorretamenteoseugênero(BUTLER,2010,p.199).
Écertoqueessaspenalidadessãovistasmaisnitidamentenaquelesqueexercemseugêneronasformas“desviantes”,comoocorrecomlésbicas,homossexuais,bissexuais,transexuais,travestiseintersexuais.Contudo,assançõestambémsãoimpostasparaaquelasmulheresquesedesviamdasfunçõesimpostascomo“femininas”.
Nessestermos,asociedadecontemporâneaaindaassociaamulheràmãe.Frequentementeocorpodamulheréelaboradoemtermosdefragilidade,dedicação,cuidadoe,necessariamente,damaternidade.Todasaquelasquenãodesejamsermãesouqueabortam,sãoencaradascomofraudeàprópria“essênciafeminina”,portanto,merecempunição,tantojurídicaquantosocial.
Portanto,amaternidadeseriapartedaperformatividadeimpostaàsmulheres.Ocorpodamulhersóteriasignificadoquandofuncionasseparaaprocriação.EmcríticaàteoriadeJuliaKristeva,queabordaocorpomaternocomoelementoanterioràprópriacultura,comoalgopré-discursivo,Butler(2010,p.138),ressaltaqueparaFoucaultessaseriaumatáticadeautoampliaçãoeocultaçãodasrelaçõesdepoderespecíficasnasquaisotropodocorpomaternoéproduzido.
Emoutrostermos,aideiadocorpodamulhernecessariamentecomocorpomaternoseriaproduzidapelasrelaçõesdepoder,seriaefeitoouconsequênciadeumsistemadesexualidadeemqueexigedo“corpofeminino”queeleassumaamaternidadecomoessênciadoseueueleideseudesejo;seriaainstituiçãodamaternidadecomosendocompulsóriaparaasmulheres(BUTLER,2010,p.138).Foucault(2015,p.166)apontaquenoprocessodehisterização
Capa| Sumário | 155
Sexualidade e gênero: controle e subversão
damulherosexofoidefinidocomoalgoque“constitui,porsisó,ocorpodamulher,ordenando-ointeiramenteparaasfunçõesdereproduçãoeperturbando-ocontinuamentepelosefeitosdessasmesmasfunções”.Asrelaçõesdepodertransformamoexercíciodafunçãoreprodutoracomoalgointrínsecoaocorpobiológicodamulhereestecorposóteriasentidoatravésdamaternidade.
Alei,comoreflexodetodasasrelaçõesdepoderqueconstroemosignificadodocorpoedosexo,regulaasociedadefixandooqueéilícitoouanormal,e,porviaindireta,defineoqueélícito,normal,permitidoecorreto.Especificamente,quandoaLeidePlanejamentoFamiliarproíbeaesterilizaçãodequemnãotemaomenosdoisfilhosou25anoseexigeoconsentimentoconjugal,casoapessoasejacasada,elatambémproduzoqueélícito,qualseja:teraomenosdoisfilhos,bemcomosubmeteroseucorpoàvontadedocônjuge,parao“bemgeraldafamíliaedasociedade”.Emoutrostermos,ocorretoedesejávelseriaaprocriaçãodentrodessaestruturafamiliareheteronormativa,comoiráesclarecerJudithButler.
Paraalémdeumamerainterpretaçãofoucaultianasobreamaternidade,emdiversostrechosdoparadigmáticoProblemas de Gênero,Butler(2010,p.164)chegaàconclusãodequeasrelaçõesdepoderqueconstituemosexo/gênerotêmcomofinalidadeaheterossexualidadeobrigatóriaereprodutora.Comoperformance,osatosegestos,osdesejosarticuladosepostosematocriamailusãodeumnúcleointernoeorganizadordogênero,ilusãomantidadiscursivamentecomopropósitoderegularasexualidadenostermosdaestruturaobrigatóriadaheterossexualidadereprodutora(BUTLER,2010,p.195).
Destarte,aLeinº9.263/96,diferentementedoquefoiditonaseção1desseartigo,nãoregulaapenasamaternidadeeocorpodamulher,masimpõeaheterossexualidadereprodutora,atingindo
Capa| Sumário | 156
Sexualidade e gênero: controle e subversão
homens e mulheres53.Pensandodeformainversa,aLeiperdequalquersentidoreguladornafamíliahomoafetiva,porexemplo,jáquecasoseusintegrantesdesejassemdescendentesteriamquebuscaroauxíliodareproduçãoassistidaouoptarpelaadoção.Essanormasóatingeseucaráterreguladornaeparaafamíliadematrizheterossexual,cujareproduçãoévistacomofinalidadeintrínseca.
Omesmoraciocínioseaplicaparaaautonomia/liberdade,conceitofundamentalparaateorialiberalebasilarparatodaadoutrinajurídicadeseparaçãoentreosespaçospúblicoeprivado.Pensaremmulherépensaremsubmissão,naquelaquesesubmete,queémaleávelequesempreestádispostaaseadequaraooutro.Aautonomia,durantemuitotempo,foiabertamentenegadaàsmulheres,tantopelateorialiberalcomopeloDireitodediversospaíses,queinevitavelmentefuncionavamcomoreflexodesta.
Nessestermos,ocontratodecasamentosemprefoiencaradocomoparadoxo.Sendoasmulheresconsideradasincapazespelaleidediversospaíseselastinhamquesercapazesdeaceitarocontratodecasamentoedesesubmeteraohomempelomatrimônio.Ocontratodeesposaseriaocontratodahegemoniaparaacoerção(MCCLINTOCK,2003,p.81).SehojenãoémaispermitidopeloDireitoOcidentalestabelecerdiferençasentrehomensemulheresnoseiodasrelaçõesfamiliares,aindaaceitamosquesemantenhamdiferençaslegaisentrepessoascasadasenãocasadas,sejaatravésdosdeveresconjugais,fixadosnoCódigoCivilbrasileiro,sejaatravésdanecessidadedeautorizaçãodocônjugeparaexerceralgunsdireitos,comonocasodosdireitosreprodutivosnaLeidePlanejamentoFamiliar.
53 Evidentemente,aquinãosequerdizerqueanormajurídicaatingedeformaigualhomensemulheres,tendoemvistaasdiferentesconsequênciasqueamaternidadegeranocorpodamulherenasuavidapessoal,oquefazotrabalhoreprodutivoirmuitoalémdameraprocriação.
Capa| Sumário | 157
Sexualidade e gênero: controle e subversão
4 O ABORTO E A NECROPOLÍTICA BRASILEIRA: QUAIS AS MULHERES QUE NÃO SÃO PASSÍVEIS DE LUTO?
SobreasrestriçõesaosdireitosreprodutivosimpostaspeloDireitobrasileiroéimportantesedistanciardatendênciafeministadeverasmulherescomovítimasnãoambíguas,tendênciaessaqueigualaatuaçãoecontexto,corpoesituação,anulandoassimapossiblidadederecusaestratégica(MCCLINTOCK,2003,p.20).Écertoqueasmulherestentam,dediversasformas,controlarsuareprodução,oquefezcomqueonúmerodefilhosreduzissedrasticamentenomundotodo,inclusivenoBrasil,comintensificaçãonoúltimoquarteldoséculoXX(ITABORAÍ,2017,p.241).
Talcontroleseexerceporváriosmétodoscontraceptivoslegalmentepermitidose,também,àmargemdalei,sejaatravésdarealizaçãodacirurgiadeesterilizaçãosemoconsentimentodomarido54ouatravésdoabortoilícito55.Aquestãoasertratadaaquisãoasconsequênciasquemuitasmulheresenfrentampelaatuaçãodeviasalternativasàlei,especificamentenocasodoabortoclandestino.
ConformeamplapesquisafeitaporItaboraí(2017,p.240)hágrandesdiferençasdeacessosaosdireitosreprodutivosadependerdaclassesocialaqualamulherpertence.AquelasquedependemdoSistemaÚnicodeSaúdetêmsuasdemandasinsatisfeitasparaaesterilizaçãoeofertainadequadadokitbásicoedocomplementar56
54 Emregra,paraaquelasmulheresdeclassemédiaoualtae,portanto,quepodempagarpelacirurgiafeitaàreveliadasregraslegais.
55 Infelizmentenessassituaçõesdeilicitudeasmulheressofremconsequênciasgraves,comoseexporáadiante.
56 OKitBásicoécompostopelapílulacombinada,pílulasódeprogesterona(minipílula)epreservativomasculino,jáokitcomplementarécompostopelodispositivointra-uterinoepeloinjetáveltrimestral(OSISetal.,2006,p.2482)
Capa| Sumário | 158
Sexualidade e gênero: controle e subversão
deoutroscontraceptivosmodernos(OSISetal, 2006,p.2485-2486).Associadoaissorestoudemonstradoqueasmulherespobresqueriamregularsuaprópriafecundidadeebuscavammeiosparatal(ITABORAÍ,2017,p.244),aocontráriodoestabelecidopelosenso comum.
Então,aprimeirabarreiraqueasmulheresdebaixarendaenfrentamaotentargozardesualiberdadereprodutivaéafinanceira,quemuitasvezesimpossibilitaacompradocontraceptivoquenecessitame,poroutrolado,abaixaofertaeatendimentoinsuficientedoSistemaÚnicodeSaúdereforçaadificuldaderealqueelasenfrentampararealizaracontracepção(mesmoconsiderandoosmeiosdisponíveis,quenãocumpremcomresultadodetotaleficácia).
Sobreastecnologiasderegulaçãodavida57,MichelFoucault(2015,p.146)identificounabiopolíticaaformacomoosoberano,apartirdoséculoXIX,aexerce,atravésdodireitoqueéformuladocomo“devidaemorte”,ouseja,é,defato,odireitodecausaramorteoudedeixarviver.Porém,essedireitoteriasidosubstituídopelopoderdecausaravidaoudevolveràmorte,quecaracterizaopodercujafunçãonãoémaismatar,masinvestirsobreavida,atravésdaadministraçãodoscorposepelagestãocalculistadavida.Nessesentidoinstaura-seaeradobiopoder(FOUCAULT,2015, p.149-151).SegundoMbembe(2018,p.19),FoucaultdeixouclaroqueodireitosoberanodematareosmecanismosdebiopoderestãoinscritosnaformaemquefuncionamtodososEstadosmodernos.
ALeidePlanejamentoFamiliarenquadra-secomperfeiçãoàanálisefoucaultianadeorganizaçãodepodersobreavida.Aoregularedocilizaroscorpos,comotécnicadisciplinar,anormafixaosrequisitosnecessáriosànãoreproduçãoe,consequentemente,atravésdarelaçãodecorpo-espécie,aplicacertocontrolede
57 Sendoasexualidadeeareproduçãohumanaumadasdiversasformasdebiopoder.
Capa| Sumário | 159
Sexualidade e gênero: controle e subversão
natalidadeaofixarmínimodedoisfilhosporfamíliaeaoelevaraidadeparacirurgiadeesterilizaçãoacimadacapacidadecívelde18anos.Foucault(2015,p.157-158)explicaaimportânciaassumidapelosexocomofocodedisputapolítica,
[...]eleseencontranaarticulaçãoentreosdoiseixosaolongodosquaissedesenvolveutodaatecnologiapolíticadavida.Deumlado,fazpartedasdisciplinas do corpo:adestramento,intensificaçãoedistribuiçãodasforçaseeconomiadeenergias.Dooutro,osexopertenceàregulação das populações,portodososefeitosglobaisqueinduz.[...]vemo-la[asexualidade]tornar-setemadeoperaçõespolíticas,deintervençõeseconômicas(pormeiodeincitaçõesoufreiosàprocriação),decampanhasideológicasdemoralizaçãoouderesponsabilização(grifosnossos).
Aanáliseexpostanasseções1e2desseartigodemonstraqueasrestriçõesà liberdadereprodutivavisamestimularamaternidade,ouatémesmo,impor,namedidaemqueaindahárestriçõeslegaisàplenafruiçãodosseuscorposedosseusdireitossexuaisereprodutivos.Sãooscorposdasmulheresquesãoreguladosquandooabortoécriminalizadoequandoocorpofemininodocilizadoserveàmaternidadecompulsória.Alémdisso,aleiatuaemconjuntocomoutrosaparelhos(médicosejudiciário)pararegularataxadenatalidadefixandoopatamardereposiçãopopulacional,centrando-senocorpo-espécie,eporoutrolado,emoutraformadeexercíciodabiopolítica,nadisciplinadocorpohumano,especificamenteatravésdaregulaçãoemedicalizaçãodocorpofeminino.
Todosessesaparatosservemparaconstituirosexocomodesejável(FOUCAULT,2015,p.170),masnãoqualquertipodesexo.Osexodesejáveléaquelequeécorreto,limpo,queatende
Capa| Sumário | 160
Sexualidade e gênero: controle e subversão
aospadrõesheteronormativosequevisaàreprodução(BUTLER,2010,p.164).
APesquisaNacionaldeSaúde(PNS),realizadaem2013,demonstraque61,1%dasbrasileirasentre18e49anosfizeramusodacontracepçãoequeasbrancaseasmulherescommaiorníveldeinstruçãoaindaapresentamospercentuaismaiselevadosdeutilizaçãodemétodoscontraceptivos(IBGE,2015,p.36).Essapesquisaapontapercentualemtornode10%dediferençaacercadousodecontraceptivosdasmulheresbrancassecomparadacomaspretasepardas,contudoadisparidadecresceparamaisde20%quandoanalisamosasmulheresseminstruçãoeníveldeescolaridadefundamentalincompletocomaquelasquepossuemensinosuperiorcompleto.
Poroutrolado,aPesquisaNacionaldeAborto,realizadaem2016(DINIZ,MEDEIROS,MADEIRO,2017,p.655),demonstraque,apesardoabortosercomumatodosostiposdemulhereserepresentaremtornode3,9milhõesdecasosentreasmulheresalfabetizadasde18a34anos,em2014,écertoqueeleaindatemdiferenciaçõesquandoseanalisaraça,classeeescolaridade.Essamesmapesquisaapontaqueasmulherespretas,pardaseindígenasrepresentam,respectivamente,15%,14%e24%dototal,frentea9%demulheresbrancas;sendooabortomaispresenteentreasmulherescombaixarendafamiliar(1saláriomínimo–16%)doqueentreasderendamaisalta(5saláriosmínimos–8%);emaisfrequenteentreaquelasdebaixaescolaridade(atéa4ªsérie)eentreaquelasquevivemnasregiõesNorte,Centro-OesteeNordeste,doqueasresidentesnasregiõesSuleSudeste(DINIZ,MEDEIROS,MADEIRO,2017,p.658).Osdoisestudossupracitadosapontamíndicessemelhantessobrecontracepçãoeaborto.
Dadosdemonstramque,apesardodeclíniodastaxasdeabortoinseguro,metadedasmulheresquepraticaramabortonecessitaramdeinternaçãoparafinalizaroprocedimento(DINIZ,
Capa| Sumário | 161
Sexualidade e gênero: controle e subversão
MEDEIROS,MADEIRO,2017,p.659),oqueevidenciaosaltosriscosinerentesasuasituaçãodeclandestinidade.Outrossim,comoapesquisanãofoicapazdeidentificaraquantidadedemulheresquemorreramemdecorrênciadoabortoinseguroetaisdadossãobeminconstantesnoBrasil58,essesnúmerosnãosãocapazesdemensuraraquantidadedemulheresquemorrememdecorrênciadapráticadoabortoilegal.
Entretanto,parececertoqueoabortopenaliza,comsequelasoucomamorte,especialmenteasmulheresdasclassesbaixasqueutilizamosmétodosmaisinseguros.Issoporqueosriscosàsaúdeeàvidasãoproporcionaisaqualidadedoatendimentoeaosmétodosutilizados(ITABORAÍ,2017,p.262-263).
Percebemosqueasmulheresquemaissofremcomasconsequênciasdoabortoinsegurosãoidentificadasporcor,classe,escolaridadeeregião.Asmulheresquetêmboascondiçõesfinanceiras,emregra,possuemmelhoraparatodesaúdenarealizaçãodoabortoclandestino,elassãoasvidasqueosoberano“deixaviver”59.Jáaquelasquemorremouquesofremcomplicaçõesnoprocedimentosão,emsuamaioria,pretas/pardas/indígenas,pobres,debaixaescolaridadeeprovenientesdoNorte/NordesteeCentro-Oeste.OEstadobrasileironessescasos,exerceobiopoderenãoestáapenasregulandoavida,mastambémonecropoder,causandoamorte,mesmoqueindiretamente,deváriasmulheres.
Apartirdessaconclusãoparcialtecemosumaoutra:aspolíticasdebiopoderanalisadasporFoucault(2015,p.158),hojepodemserassociadasaoconceitodenecropolítica,desenvolvidoporMbembe(2018,p.10),numamescladenominadaporBento
58 Sejaemdecorrênciadaprópriailicitudedoatooupelofatodequeafamílianãopermitequeomotivorealdofalecimentoconstenacertidãodeóbito.
59 AexpressãoentreaspasédeMichelFoucault,emseulivroHistóriadasexualidade:avontadedesaber.
Capa| Sumário | 162
Sexualidade e gênero: controle e subversão
(2018)denecrobiopoder.Seriaumrearranjosofisticadonãosódedareregularavida,masdefazermorrer,comtécnicasplanejadasesistemáticas,mesmoquesutis(BENTO,2018).
Alguns podem questionar o emprego da teoria denecropolítica(MBEMBE,2018)oudenecrobiopoder(BENTO,2018)paraexplicarasmortesdasmulheresquemorrememdecorrênciadoabortoclandestino,postoquenãoéseriaoEstadoquematadiretamente.Contudo,oEstadopromovepolíticasdemortequandonãodeixaoutraalternativaaessasmulheresouquandoosprofissionaisdesaúdenãoasatendemcomadiligêncianecessáriaaodesconfiaremqueoabortofoiprovocado.
Essaformadeexercíciodobiopodernãoafetaigualmentetodasasmulheresbrasileiras,algumasvidassãomatáveis,outrasnão.Emoutrostermos,Mbembe(2018,p.41)argumentaqueasoberaniaéacapacidadededefinirquemédescartávelequemnão é.
Vimosqueaspolíticaslegaisproibitivasaoregularemosdireitosreprodutivosnãoafetamatodasaspessoas,masmulheresespecíficas,ecausamamortedevidasnãopassíveisdeluto,asvidasprecárias,marcadasnãosóporgêneroesexualidade,mastambémporraça,etnia,classe,regionalidadeeescolaridade.
Aprecariedadeimplicaumavidaquepodeserlesada,podeserceifada,mastambémimplicaviveremcondiçõesespecíficas,sãomodossocialmentefacilitadosdemorrercomooutrosmodossocialmentecondicionadosdesobreviverecrescer(BUTLER,2018,p.32).Peloperfildasmulheresquemaissofremasconsequênciasdoabortoinseguro,evidenciamosaprecariedadedamorte,mastambémdassuasformasdevidaoudesobrevivência.Semdireitossociaisefetivados(trabalho,moradia,lazeretc.),semacessoasaúdepúblicaintegraledistantedetantosoutrosdireitosformalmentegarantidosporleis,adignidadedapessoahumananãoalcançaessas
Capa| Sumário | 163
Sexualidade e gênero: controle e subversão
mulheres,aprecariedadeestápresentenassuasvidasetambémnassuasmortes.
Aotratardasvidasprecáriasedaspossibilidadesdeserounãopassíveldeluto,Butler(2018,p.29)explicaqueasvidasperdidassãorepresentadaspornúmeros,sãohistóriasqueserepetemtodososdiasequestiona:“Comoacomoçãoéproduzidaporessaestruturadoenquadramento?”.
Paraasbrasileirasqueabortamemorremouficamcomsequelasfísicasnãohácomoção,nãohá,nemsequer,números.Elasnãosãopassíveisdeluto,sãomulheresquenãoatenderamaimposiçãodopapelmaternale,portanto,nãosãoenquadradasnemreconhecidassocialmente.
Mesmosehouvessenúmerosdesuasmortes,elasnãoseriamemolduradascomomulheresquepagamcomaprópriavidaanegaçãodosseusdireitosreprodutivos,mas,enquadradascomocriminosas,quenegaramodireitoàvidade“seusfilhos”e,portanto,nãosãodignasdeluto.
Aquinosrestaquestionar:qualavidaquerealmenteimportaparaoEstadobrasileiro?Quaisasmulheresquenãoimportame,portanto,quepodemmorrer?Porqueavidadofetoétãoprotegidaeapósonascimentosuavidaéentregueaprecariedade?ComoapontaButler(2018,p.41),énecessáriorepensar“odireitoàvida”ondenãohánenhumaproteçãodefinitivacontraadestruiçãoeondeoslaçossociaisnecessáriosnosimpelemagarantircondiçõesdevidasvivíveis,eafazê-loembasesigualitárias.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Asleisbrasileirasfechamcírculorestritivoàsmulheres.Semautonomianecessáriaparausufruirdosseusdireitossexuaisereprodutivosefazerasescolhasdevidas,restam,paraelas,poucas
Capa| Sumário | 164
Sexualidade e gênero: controle e subversão
opções.Comovimos,evidentemente,asmulheresdeclassemédiaealtatêmmaiorespossibilidadesdeatuarilicitamente,masaquelasqueseencontramàmargemdalei60,emregraasnegras/pardas/indígenas,pobresedebaixaescolaridade,sórestaamaternidadeimposta,amorteouarepressãopenal.EssasegregaçãoexpõemescladebiopoderenecropolíticanousodasoberaniapeloEstadobrasileiro.
Aquichegamosaalgumasconclusões:a)alegislaçãobrasileiraaindaatuarestringindoosdireitosreprodutivosdasmulherescasadas;b)anormajurídica,objetivandomanteraprocriaçãoeamatrizheterossexual,impõeamaternidadeepaternidadecompulsórianoâmbitodocasamento;c)oarcabouçojurídicobrasileiroelege,dentreasmulheres,aquelasdevidasprecáriasquepodemmorreremdecorrênciadoabortomalrealizadoesemassistênciamédica;d)essasmulheresdefinidasporraça,classe,regionalidadeeescolaridadesãoprecáriasemvidaeemmorte,sãoasvidasnãopassíveisdeluto.
Ainternalizaçãodamaternidadecompulsóriaporpartedasmulheresacarretadiversasconsequênciasnassuasvidas.Élongooprocessodeincorporaçãodalei61quefindaquandoelaexpressaosignificadodesuasalmas,suaconsciência,aleideseudesejo.Nessesentido,aalmaéaprisãodocorpo(BUTLER,2010,p.193),etodasasmulheres,emmaioroumenorgrau,sãoaprisionadasquandoamaternidadeéimpostaequandoatémesmoanormajurídicalegitimaessalógicaeinterferenaplenafruiçãodeseuscorpos.Aslutaspelolivreusodeseuscorpos,pelaautonomiadas
60 Tendoemvistaquediversosdireitoshumanossólhessãoconcedidosformalmente,masefetivamenteestãoàmargemdoDireitopornãousufruíremdoarcabouçolegal.
61 Nãosóaleinosentidodenormajurídica,mastambémasnormasculturais.
Capa| Sumário | 165
Sexualidade e gênero: controle e subversão
mulheresepelamaternidade,apenasquandoessaforrealmenteescolhida,continuamsendobandeirasfeministasatuais.
REFERÊNCIAS
BEAUVOIR,Simone.O Segundo sexo:fatosemitos.TraduçãodeSergioMilliet.5.ed.RiodeJaneiro:NovaFronteira,2019a.BEAUVOIR,Simone.O Segundo sexo:aexperiênciavivida.TraduçãodeSergioMilliet.5.ed.RiodeJaneiro:NovaFronteira,2019b.BENTO,Berenice.Necrobiopoder:QuempodehabitaroEstado-nação?Cadernos Pagu[online],2018,n.53.Epub11dejunhode2018.Disponívelem:http://www.scielo.br/pdf/cpa/n53/1809-4449-cpa-18094449201800530005.pdf. Acesso em:05março2020.BUTLER,Judith.Problemas de gênero:feminismoesubversãodaidentidade.TraduçãodeRenatoAguiar.3.ed.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,2010.BUTLER,Judith.Quadros de guerra:quandoavidaépassíveldeluto?TraduçãodeSérgioLamarãoeArnaldoMarquesdaCunha.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,2018.CORRÊA,Sonia.;PETCHESKY,Rosalind.DireitoSexuaisereprodutivos:umaperspectivafeminista.Revista de Saúde Coletiva,RiodeJaneiro,6,p.147-177,1996.Disponívelem:http://www.scielo.br/pdf/physis/v6n1-2/08.pdf.Acessoem: 05março2020.DINIZ,Débora;MEDEIROS,Marcelo;MADEIRO,Alberto.PesquisaNacionaldeAborto2016.Ciência saúde coletiva [online].2017,v.22,n.2,p.653-660.Disponívelem:http://www.scielo.br/pdf/csc/v22n2/1413-8123-csc-22-02-0653.pdf. Acessoem:05março2020.
Capa| Sumário | 166
Sexualidade e gênero: controle e subversão
EFREMFILHO,Roberto.Areivindicaçãodaviolência:gênero,sexualidadeeaconstituiçãodavítima.Cadernos Pagu[online].2017.Disponívelem:http://www.scielo.br/pdf/cpa/n50/1809-4449-cpa-18094449201700500007.pdf. Acessoem:05março2020.FOUCAULT,Michel.História da Sexualidade 1:Avontadedesaber.2.ed.SãoPaulo:PazeTerra,2015.HARAWAY,DonnaJ.Manifestociborgue:ciência,tecnologiaefeminismo-socialistanofinaldoséculoXX.In:HARAWAY,D.;KUNZRU,H.;TADEU,T.(Org.).Antropologia do ciborgue:asvertigensdopós-humano.TraduçãodeTomazTadeu.2.ed.BeloHorizonte:Autêntica,2009.IBGE,CoordenaçãodeTrabalhoeRendimento.Pesquisa Nacional de Saúde: 2013: ciclosdevida:Brasilegrandesregiões.RiodeJaneiro:IBGE,2015.Disponívelem:https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv94522.pdf.Acessoem:05março2020.ITABORAÍ,NathalieR.Mudanças nas famílias brasileiras (1976-2012): umaperspectivadeclasseegênero.RiodeJaneiro:Garamond,2017.MBEMBE,Achille.Necropolítica:biopoder,soberania,estadodeexceção,políticadamorte.TraduçãodeRenataSantini.SãoPaulo:N-1edições,2018.MCCLINTOCK,Anne.Couroimperial:raça,travestismoeocultodadomesticidade.Cadernos Pagu.n.20,2003,p.7-85.Disponívelem:http://www.scielo.br/pdf/cpa/n20/n20a02.pdf. Acessoem:05março2020.OSIS,MariaJoséDuarteetal.AtençãoaoplanejamentofamiliarnoBrasilhoje:reflexõessobreosresultadosdeumapesquisa.Cadernos de Saúde Pública.RiodeJaneiro,p.2481-2490,nov.
Capa| Sumário | 167
Sexualidade e gênero: controle e subversão
2006.Disponívelem:http://www.scielo.br/pdf/csp/v22n11/23.pdf.Acessoem:15abril2020.PATEMAN,Carole.O contrato sexual. TraduçãodeMartaAvancini.SãoPaulo:PazeTerra,1993.RUBIN,Gayle.Políticas do Sexo.TraduçãodeJamilleP.Dias.SãoPaulo:UbuEditora,2017.UNITEDNATIONS.DepartmentofEconomicandSocialAffairs.Contraceptive use bymetod 2019.Disponívelem:https://www.un.org/en/development/desa/population/publications/pdf/family/ContraceptiveUseByMethodDataBooklet2019.pdf. Acessoem:15fevereiro.2020.VIANNA,Adriana;LOWENKRON,Laura.OduplofazerdogêneroedoEstado:interconexões,materialidadeselinguagens.Cadernos Pagu,n.51,2017.Disponívelem:http://www.scielo.br/pdf/cpa/n51/1809-4449-cpa-18094449201700510001.pdf. Acessoem:05março2020.
Capa| Sumário | 168
“MENINOS DO BLACK BLOC”: ENTRE A REPRODUÇÃO DE PAPÉIS DE GÊNERO E SUA ABOLIÇÃO NA PRÁTICA ANARQUISTA DE PROTESTO RADICAL
Florian Grote62
1 INTRODUÇÃO
Aondadeprotestosemváriascidadesbrasileirasqueocorreuem2013,incialmenteemproldeumalutacontraoaumentodastarifasdotransportepúblico,queémuitoanterioraomêsdejunho,nãosedestacouapenaspeloseutamanhoesucesso:foramasmaioresmanifestaçõesnopaísdesdeo“ForaCollor”em1992ereverteramoaumentodastarifasemmuitascidades,masoelementoquemaisdistinguiuaschamadas“JornadasdeJunho”,talvez,foiapresençamaciçadeBlack Blocs.EmconjuntocomosprincípiosorganizacionaisanárquicosdoMovimentoPasseLivre(MPL),comoaautogestão,aausênciadelíderesouarejeiçãodasinstituiçõespolíticastradicionais,comosindicatosoupartidos,foiousodessatáticaanarquistaquelevou,nessecontexto,auma
62 DoutorandopeloProgramadePós-GraduaçãoemSociologiadaUniversidadeFederaldaParaíba(PPGS-UFPB).MestrepeloProgramadePós-GraduaçãoemCiênciaPolíticaeRelaçõesInternacionaisdaUniversidadeFederaldaParaíba(PPGCPRI-UFPB).GraduadoemCiênciaPolíticaeHistória(inconclusa)pelaUniversidadedeVechta(Alemanha).BacharelemCiênciasSociaispelaUniversidadeFederaldaParaíba(UFPB).IntegrantedoGrupodeEstudosePesquisasAnarquistas(GEPAn-UFPB).Pesquisanaáreadepráticasanarquistaseviolênciapolítica.E-mail:[email protected].
Capa| Sumário | 169
Sexualidade e gênero: controle e subversão
retomadaexpressivadodebateacercadafilosofiapolíticaanarquistaedousodaviolênciapolítica.
ApesardenãosetratardaprimeirapresençadosBlack BlocsemmanifestaçõesnoBrasil63,foramasJornadasdeJunhoquedespertaramointeressemidiáticopelaprática,caracterizadaprincipalmenteemreferênciaaosseusatosdeviolênciasimbólica:erguerbarricadas,quebrarvitrineseincendiarcarrosoubancosforamelementosquechocaramosrepresentantesdamídia,acostumadosanoticiaremdiariamenteinúmerasvítimasfataisdaviolênciapolíticaepolicialdoBrasil.Manchetesdosprincipaisjornaisdaépoca,como“entendaosprincipaistemasabordadosnasmanifestações”(ENTENDA...,2013),“Contraoquevocêprotesta?”(CONTRA...,2013)ou“Esquerdaoudireita?”(ESQUERDA...,2013)testemunhamaincompreensãoquaseabsolutadamídiaacercadessapráticaparticularedoanarquismoemgeral.Aoladododebateenglobantedaviolênciapolítica,sobrapoucoespaçoparaaanálisedeoutrosaspectoscentraisdosBlack Blocsequestõesimportantes,comoasuarelaçãocomospapéistradicionaisdegênero,continuampoucoanalisadas.Essesaspectosdesaparecemsob o véu de uma assumida masculinidade generalizada dos seus participantes,ouseja,dos“meninosdoBlackBloc”(PARDELLAS,2014).Opresenteartigovisaabordaralgumasdessasquestões.
Paraisso,conceituaprimeiramenteoBlack Bloc,paraanalisar,emseguida,ondeseposicionaemumespectrohipotéticoentregender reproduction[reproduçãodospapéisdegênero]egender abolition[aboliçãodospapéisdegênero].
63 Porexemplo,ojornalOGlobo,(SEATTLE...,2013)jánoticiavaemsetembrode2000adepredaçãodasededaBovespaporparticipantesmascaradosdoBlackBloc.
Capa| Sumário | 170
Sexualidade e gênero: controle e subversão
2 PROVENIÊNCIAS TEÓRICAS E HISTÓRICAS DOS BLACK BLOCS
O Black Blocéumatáticaanarquistadeprotesto,queemergenofinaldosanos1970deumatradiçãoanti-autoritáriaocidentalamplanomovimentoDie Autonomen[OsAutônomos]naAlemanha.ComoafirmaDavidVanDeusen(2010,p.10):
Lá,aseriedadedomovimentoanti-nuclear,bemcomoasexigênciasdocontínuomovimentoanarquista/antifascista,exigiramqueosprotestosemmassafossemlevadosaumnívelmaiselevadodemilitânciaeunanimidade.Assim,coletivosradicais–muitasvezesdedentrodacenaanarco-punketipicamentecompostospormembrosdaclassetrabalhadora–começaramaincitarseusmembrosemilitantessociaisasereuniremnasmanifestaçõesvestindoroupaspretasuniformes(commáscaras),eamarcharememumúnicocontingente(entremuitosoutros).Comsuasidentidadesefetivamenteescondidasnauniformidadetemporária,conseguiramempurrarasaçõesdoprotestoemdireçõesmaismilitantes,enquantoseprotegiamdeseremidentificadosparasofreremaopressãodiretadoEstado,cobrançaslegaisposterioresoudeambas.64
EmborapossamostraçarasraízeshistóricasdosBlack Blocs “paraquandoeondequerquepessoas,quecompreendiamumaclasseoprimida,selevantaramcontraseusopressores”(ibidem, p.10),assuasproveniências65históricasmaisdiretasestãonas
64 Todasascitaçõesdeobrasemlínguaestrangeiraforamtraduzidasdiretamentepeloautor.
65 Foucault(1979)destacaasdiferençasimportantesnalínguaalemãentreousodapalavra“origem”comoUrsprungeHerkunft.Retomandoanoçãode
Capa| Sumário | 171
Sexualidade e gênero: controle e subversão
práticasanarquistasdaPropaganda pelo Fato(JENSEN,2014;LINSE,1982)enaAção Direta (BERNECKER,1982;GIOVANNITTI,2009),quedesempenham,háséculos,umpapelfundamentalderesistênciacontraarepressãoeaviolênciaestatal.
FrancisDupuis-Déri(2010,p.49)argumenta,queessasbasesfortesseviamfortificadas,ainda,peloschamados“NovosMovimentosSociais”,comoofeminismoouomovimentoanti-globalização,quesecaracterizampelanegaçãodepolíticasrepresentativasepelaorganizaçãohorizontal,igualitáriaebaseadanoconsenso.SereferindoaoBlack Bloc,RichardDay(2005,p.18)afirma,noentanto,quejáhaviachegado“ahoradeesqueceros‘novos’movimentossociaisdosanos1960-1980”emprolde“algoaindamaisnovo,queofereceasmelhoreschancesquetemosdenosdefendercontra,eultimamentetornarredundante,associedadesneoliberaisdecontrole”:os“NovíssimosMovimentosSociais”,comooschama,nãosemironia,jáquenãoosconsideramovimentos.
Diferentedosmovimentossociaistradicionais,oativismoanarquista,aexemplodoBlack Bloc,superaadicotomiareforma/revolução,rejeitandoopoderestataltantocomomeio,quantofim,lutando,antes,paraalcançarum“repensareumareorganizaçãodasociedadeaolongodelinhasquedesafiamaprópriabasefundamentaldacivilizaçãoocidentalcontemporânea”(DEUSEN,2010,p.15).Umaformadealcançaresse repensarestánasubstituiçãodalógicadacontra-hegemoniaporumalógicada
Nietzsche,nota-seque,enquantoUrsprungseriatraduzidoliteralmentecomo“saltooriginal”,indicandoafonte,ahoraeolocalexatodosurgimentodealgo,Herkunftdenominaa“vindaparacá”,ouseja,indicatambémasuadireçãoeoseupercurso.Enquantoambasaspalavrassãotraduzidascomo“origem”,éexpressamentecontraousodeorigemcomoUrsprungqueFoucault(1979,p.16)protesta,quandoafirmaque“agenealogia[...]seopõeàpesquisada‘origem’”.Paraindicaresseusoespecíficodotermo,optou-seporutilizarotermoproveniênciaemvezdeorigemnestetrabalho.
Capa| Sumário | 172
Sexualidade e gênero: controle e subversão
não-hegemonia.Apesardaprimeirasercapaz,pontualmente,de“deslocaroequilíbriohistóricodevolta,tantoquantopossível,afavordosoprimidos”,RichardDay(2005,p.7)criticaasuainabilidadedesedesprenderdapróprialógica–epercebidanecessidade–deumahegemonia.Práticasnão-hegemônicas,porsuavez,renunciamàautoridadeestatalebuscammudançassócio-políticasradicaisforadela,substituindoa“hegemoniadahegemonia”dosmovimentossociaistradicionaisporuma“afinidadepelaafinidade”.
Apenascomessamudançanomodus operandipode-seesperarumaquebradocicloviciosode“revolução,reação,traição,fundaçãodeumEstadomaisforteeaindamaisopressivo”,queHakimBey(1985,p.94)tãoaptamentedescreveucomo“mudançasdeestaçãonoinferno[seasons in hell]”e“botinadaspermanentesnacaradahumanidade”.DavidGraeberargumentaqueatrocadalógicadahegemoniaporumalógicadaafinidadeestariaem:
Perfeitoacordocomainspiraçãoanarquistageraldomovimento,queémenossobreatomadadopoderestataldoquesobreexpor,deslegitimaredesmantelarmecanismosdegovernoenquantoganhacadavezmaioresespaçosdeautonomia(GRAEBER,2002,p.68).
BarbaraEpstein(2001)confirmaqueessesprincípiosanarquistasfortalecemaspráticasdeativismoradicaiscomooBlack Bloc,e“tornampossívelquegruposquediscordamemalgunsaspectoscolaboramemrelaçãoaobjetivoscomuns”(EPSTEIN,2001,paginaçãoirregular).Dessaforma,“amaneiracomoselutaétãodecisivaquantopelo queseluta”(AUGUSTO;ROSA;RESENDE,2015,p.7,grifosmeus).
Assim,umadascaracterísticasprincipaisquedestacaosBlack Blocséasuaorganizaçãoespontâneaemgrupos de afinidade duranteosprotestos:grupospequenosdeamilitantes,ligadospor
Capa| Sumário | 173
Sexualidade e gênero: controle e subversão
umaconfiançamútuaeumconsensoacercadoslimitesdasaçõesquepretendemrealizarduranteosprotestos,queformamuma“multidãoheterogênea”DUPUIS-DÉRI,2010,p.51),quecompõeoprópriobloc.
Otermo“amilitante”éusadoaquiparasignificartantoaimportânciadaamizade(amiéotermofrancêsparaamigo)quantoanegação(indicadopeloprefixoa-)dafiguratradicionaldomilitantecujasaçõeseidentidadeeramlargamentedeterminadosporpatriotismoorganizacional(DUPUIS-DÉRI,2010, p.60,grifonooriginal).
Háentreessesdiversosgruposdeafinidadeumadivisãovoluntáriadetarefas,quepodemvariardrasticamenteemgrausdeviolênciaelegalidade.Enquantoalgunsgruposassumemposiçõesmaisofensivas,armando-secomtacos,estilingues,pedrasouCocktails Molotov,outrosassumemaproteçãodoprotestocomescudos,correnteshumanasefaixasenormes,quesãocarregadasaolongodosladosenafrentedoBlack Bloc.Outrosafazeresincluem,porexemplo,afacilitaçãodacomunicaçãodeváriasformas,aexploraçãopréviadasrotasdeprotestoparaidentificarosmelhorespontosparaaçõesespecíficasouaformaçãodegruposde streetmedics[médicosderua],paraadministrarosprimeirossocorrosàsvítimasdarepressãopolicial.
Apesardeseentendercomo“umatendênciaanti-autoritária,querepudiatodas as formas de autoridade, hierarquia ou poder”(ibidem,p.49,grifosmeus),que,consequentemente,abrangeorepúdioàshierarquiasdegênero,énotávelcomoessadivisãovoluntáriaocorre,tendencialmente,deacordocompapéistradicionaisdegêneropreestabelecidos.Porexemplo,osgruposdeafinidadequeseencarregamdosprimeirossocorros,umpapeldocuidado tradicionalmenteimpostoàsmulheres,costumeiramenteapresenta
Capa| Sumário | 174
Sexualidade e gênero: controle e subversão
númerosmaioresdeindivíduosidentificadoscomo“femininos”doqueamédiadobloc,enquantoospapéismaisofensivostendemamostrarumaprevalência“masculina”.
Nasessãoaseguir,pretende-sebuscar,naliteraturafeministacontemporânea,pistasquepossamcontribuirparaexplicaressadistribuiçãoclássicadospapéisdegêneronointeriordeumapráticaanarquistaquenegaosseusprincípios,bemcomoaproximar-sedeencontrarumarespostaàperguntadeRichardDay(2005,p.188,grifonooriginal),sobre“comonós,comopessoasdeumrelativoprivilégio,podemostrabalharparaadestruiçãodesseprivilégio,sempediraajudadoEstado”,pelomenosnointeriordaspráticasradicaisdeprotesto,quenãoapenasalmejam,comotambémprefiguram a sociedadevindoura,deacordocomapremissaanarquistadequeos meios determinamosfins.
3 A REPRODUÇÃO DE PAPÉIS DE GÊNERO NO BLACK BLOC
SimonedeBeauvoir(1967;1970)écapazdeexplicar,porexemplo,comoépossívelquepapéistradicionaisdegênerosereproduzamnointeriordepráticasanti-autoritáriaseanti-hierárquicas.Hesitante,inicialmente,de“escreverumlivrosobreamulher”(1970,p.7),aautoralançaumaimportantepergunta:seráque“amulher”,realmenteexistee,casoexista,oquesignificaria“sermulher”?Comoaautoraafirma,anecessidadedessaindagaçãorevelariamuitosobreopapeldamulhernasociedade:
Opróprioenunciadodoproblemasugere-meumaprimeiraresposta.Ésignificativoqueeucoloqueesseproblema.Umhomemnãoteriaaideiadeescreverumlivrosobreasituaçãosingularqueocupamosmachosnahumanidade(BEAUVOIR,1970,p.9).
Capa| Sumário | 175
Sexualidade e gênero: controle e subversão
Assim,ateóricapercebeacaracterísticaessencialdaexistênciadamulhernasociedadenasuanecessidadededefinir-sesempreemrelaçãoaooutronatural,ao“tipohumanoabsolutoqueéomasculino”(ibidem,p.10),ouseja,deconceberamulhercomo“ooutroabsoluto”(ibidem,p.181).
Beauvoir(1970,p.17-18)afirma,queessasituaçãonãoapenasatribuiuumcerto“lugar”àmulher,entendidacomo“frívola,pueril,irresponsável”e,sobretudo,“submetidaaohomem”,mastambémsolidificouasuainferioridade factual,comoprodutodohomem:
Sim,asmulheres,emseuconjunto,sãohojeinferiores aoshomens,istoé,suasituaçãooferece-lhespossibilidadesmenores:oproblemaconsisteemsaberseesseestadodecoisasdeveperpetuar-se(ibidem,p.18,grifomeu).
Opapeldemulher-mãe,comastarefasdocuidadoearesponsabilidadedastarefasdomésticas,fazpartedesselugar,forçosamenteassumidopelasmulheres,queamulherprecisaaceitar,segundoBeauvoir,paraserreconhecida:“ésomenteaceitandoopapelsubordinadoquelheédesignadoqueseráglorificada”(ibidem,p.214).
Ohomemdesejanãosomentealguémcujocoraçãobataporele,masaindacujamãolheenxugueafronte,quefaçareinarapaz,aordem,atranquilidade,umasilenciosaautoridadesobresipróprioesobreascoisasqueencontradiariamenteaovoltarparaolar;elequeralguémqueespalhesobretodasascoisasesseinexprimívelperfumedemulherqueéovalorvivificantedavidaedacasa(ibidem,p.221).
Capa| Sumário | 176
Sexualidade e gênero: controle e subversão
Beauvoir(1970,p.225)realça,assim,aimportânciado“papelmisericordiosoeterno”atribuídoàmulher,queéreproduzidonadistribuiçãovoluntáriadastarefasentreosgruposdeafinidadedentrodosBlack Blocs,fazendopartedaquiloqueaautorachamademitodo“eternofeminino”(ibidem,p.299).Comisso,ecunhandoafrasefamosa“ninguémnascemulher:torna-semulher”(BEAUVOIR,1967,p.8),aautoradestacaoaspectosocialmenteconstruídodessespapéisassumidoscomo“naturais”.Noentanto,afirmarqueamulher“foifeita”(ibidem,p.493)oquehojeépelasuasocialização,tambémsignificaqueessaposiçãonãoéadeumafatalidade.
Sedesdeaprimeirainfânciaameninafosseeducadacomasmesmasexigências,asmesmashonras,asmesmasseveridadeseasmesmaslicençasqueseusirmãos,participandodosmesmosestudos,dosmesmosjogos,prometidaaummesmofuturo,cercadademulheresedehomensqueselheafigurassemiguaissemequívoco,osentidodo“complexodecastração”edo“complexodeÉdipo”seriaprofundamentemodificado(ibidem,p.494-495).
Comisso,admiteapossibilidadedemudançadessespapéis,que“poderãosersuperadosdesdequeosapreendamdentrodeperspectivasnovas”(ibidem,p.496).
AleituradeSimonedeBeauvoirpermitepelomenosduasinferênciassobreareproduçãodospapéistradicionaisdegênerono Black Bloc.Emprimeirolugar,ajudaacompreendercomoessespapéissereproduzemnointeriordeumapráticaquenegaosseusprincípios,como,porexemploahierarquiadegênerosouadefiniçãoda mulher como outro absoluto.Comoessespapéisdependemdeumasocializaçãoduradoura–ouseja,torna-semulheraolongodavida–épossívelcompreenderasuapresençaemmanifestantesquenãoforamsocializadosemsociedadesquecorrespondemaos
Capa| Sumário | 177
Sexualidade e gênero: controle e subversão
ideaispelosquaislutam.ComoafirmaBeauvoir(1967;1970),amudançadessasituaçãonãopoderáserfácileesperarqueofatodeterconsciênciadasuaexistênciaedosproblemasporelacausadososabolirá,mesmoqueduranteperíodoscurtosdemanifestação,pode-semostrarilusório.Emsegundolugar,aautoramostra,aomesmotempo,amutabilidadedessespapéiseabreespaçoparaargumentarcomopráticasanarquistasradicais,comoosBlack Blocs poderiamcontribuirparaaboli-los,oqueserádiscutidodeformamaisaprofundadanapróximaseção.
4 ABOLIÇÃO DE GÊNERO [GENDER-ABOLITION] NOS BLACK BLOCS
ParaperceberopapelquepráticasanarquistascomoosBlack Blocspodemassumirnasuperaçãodareproduçãodospapéisdegênero,énecessário,primeiro,acabarcomoequívocoda“teoriadosmeninosadolescentes”,defendeAKThompson(2010,p.107).Oautoralerta,queaideiadequesetratanosparticipantesdosBlocsde“umbandodemeninosadolescentesraivosos”(ACME,2000apudTHOMPSON,2010,p.107)éfalsaeconclui:
Emborapossaempiricamenteserocasodemulheresteremfeitomenosmotinsemaçõesanti-cúpuladoqueoshomens,nãosepodedizerqueissosejaoresultadodealgumarranjonatural–oumesmopoliticamenteconveniente.Asmulheresforammanifestantesnopassado.Elasreconheceramaimportânciadostumultosnabuscadeobjetivospolíticoseatédoserpolítico.E,emboraosdetratorescontemporâneosdoBlack BloctenhamfeitoopossívelparadesacreditarasaçõesdoBloccomoexcitaçãomasculina,ogênerohistóricodomotimtemsidomasculinoefeminino(THOMPSON,2010,p.115).
Capa| Sumário | 178
Sexualidade e gênero: controle e subversão
Apesardisso,ascríticasdasupostamasculinidade dos Black Blocsressoaramfortementecomosseusparticipantes,queconstantementebuscamprevenir-sedereplicarospioreselementosdosistemaquevisamcombaternassuaspráticas.Inicialmente,essesdebatesgiravamemtornodaquestãodarepresentatividadeedamaiorinclusãodasmulheresnosprotestos:
Mas,apesardasdiscussõesquaseintermináveissobreoproblemadaexclusão,osativistasnãochegaramaumacordosobrequalseriaasoluçãoparaasempreilusivainclusão.Poderiaainclusãoseralcançadapelaaberturadeespaçosepráticasexistentesouexigiriamudançasnasprópriaspráticas?Poderiaaparticipaçãodasmulheressersolicitadaouseriaissocoercitivoetokenístico?Apesardaambiguidadedessenovoterrenopolítico,paramuitosativistas,umacoisaeracerta:osBlack Blocseapolíticadeinclusãosemisturavamcomobombasdegasolinaelagoascalmantes[calming ponds](THOMPSON,2010,p.108).
Noentanto,Thompsondemonstratrêsproblemascomessalógicadainclusão:primeiro,ébaseadonacrençadequemulheresnãoparticipamnessetipodeprotesto,oquefatoshistóricosnãoconfirmam.Tomoaquialutadassufragistascomoevidênciasuficiente.Segundo,reivindicarainclusão“dasmulheres”reforçasuamaterializaçãocomocategoriaconceitualabstrata(cf.Beauvoir,1967;1970)eseutilizadeumalógicarepresentacionalqueestáemdesacordocomasmudançaspolíticasgenuínasalmejadaspelosanarquistas.Porfim,areivindicaçãopor“inclusão”temobstruídoasoportunidadesdaaboliçãodegênero[gender abolition]queestãopresentesnessaspráticas.
Podemoscitar,comoexemplosdessaaboliçãoosrelatosdeduasparticipantes.Aprimeira,KrystallineKraus,entendeaspráticas
Capa| Sumário | 179
Sexualidade e gênero: controle e subversão
do Black Bloc,especialmenteoBlocking Up[vestir-secomoBlack Bloc],comoequalizadoras,quetornamasdiferençasdegêneroinvisíveis:
Blocking up éumótimoequalizador.Comtodomundoparecendoigual–ocabelodetodomundoescondido,nossosrostosobscurecidospormáscaras,eusounadamenosenadamaisqueumaentidadesemovendonotodo(REBICK,2002apudTHOMPSON,2010,p.116).
Emlinhasparecidas,MaryBlack,endereçadiretamenteoequívocodaequaçãotumulto=masculino:
Euachoqueoestereótipoéverídicoquesomosprincipalmentejovensebrancos,maseunãoconcordoquesomosprincipalmentehomens.Quandoestouvestidodacabeçaaospéscomroupaspretaslargasemeurostoestáencoberto,amaioriadaspessoaspensaqueeutambémsouhomem.OcomportamentodosmanifestantesdoBlack Bloc não estáassociadoàsmulheres;portanto,osrepórteresgeralmenteassumemquesomostodoshomens(BLACK,2001apudTHOMPSON,2010,p.116,grifomeu).
Assim,afirmaThompson(2010,p.118),adescriçãodosprotestosemtermosmasculinosnãoserveaopropósitodaverdade,masàsuainteligibilidade conceitual,em“momentosondeascertezasrepresentacionaiscomeçamadesmoronar”.
Em Problemas de Gênero,JudithButler(2003)mostracomoousodeumapráticacodificadacomo“masculina”pormulheresnãomudaapenasapráticacomoasprópriasmulheres.
Claroqueessatarefacríticasupõequeoperarnointeriordamatrizdepodernãoéomesmoque
Capa| Sumário | 180
Sexualidade e gênero: controle e subversão
reproduziracriticamenteasrelaçõesdedominação.Elaofereceapossibilidadedeumarepetiçãodaleiquenãorepresentasuaconsolidação,masseudeslocamento(BUTLER,2003,p.55-56).
Dessemodo,opróprioatodasmulheresdeseengajarempráticasatribuidamente“masculinas”,como,porexemplo,protestosviolentos,seriacapaznãoapenasdealteraracaracterísticadessaspráticas,comotambémasprópriasmulhereseapercepçãodosseuspapéis.NaspalavrasdeThompson(2010,p.122),elas“começamasemudarnoprocessodemudaromundo”.Assim,asmulheresqueparticipamdosBlack Blocscontribuemparaadesestabilizaçãodascategoriasedospapéisdegêneroeprefiguramummundonoqualamatrizrepresentacionaldogêneroperdeasuaimportância;criam,assim:
Problemasdegêneronãopormeiodeestratégiasquerepresentemumalémutópico,masdamobilização,daconfusãosubversivaedaproliferaçãoprecisamentedaquelascategoriasconstitutivasquebuscammanterogêneroemseulugar,aposarcomoilusõesfundadorasdaidentidade(BUTLER,2003,p.60).
Em vez de incluirasmulheres,acontribuiçãodosBlack Blocs aos“problemasdegênero”podeservistanaaboliçãodascategoriasepapéisdegênero.
Contornandoaesferarepresentacional,atacandoabaseepistêmicadaidentidadepolíticaereformulandoapolíticacomoumapráticadeproduçãoenãodesignificação,asmulheresdoBlack Blocantecipamummomentoalémdamatrizdereconhecimento-regulaçãoda sociedadedecontro le atua l(THOMPSON,2010,p.125).
Capa| Sumário | 181
Sexualidade e gênero: controle e subversão
Considerar o blocking upcomograndeequalizadorpodeseranalisadoaindaemtermosdofeminismociborguedeDonnaHaraway(2009).Definidocomo“organismocibernético,umhíbridodemáquinaeorganismo,umacriaturaderealidadesocialetambémumacriaturadeficção”(HARAWAY,2009,p.36),ociborgueé“umacriaturadeummundopós-gênero”(ibidem,p.38),queseencaixanapráticaBlack Bloc.Aqui,asvestimentaspretasuniformes,asmáscaras,capacetes,etc.transformamosparticipantesemhíbridosentremáquina,organismoepolítica.Adescriçãodosciborguescomoseresque“desconfiamdequalquerholismo,masanseiamporconexão”fazcomque“parecemterumainclinaçãonaturalporumapolíticadefrenteunida,massemopartidodevanguarda”(ibidem,p.40),oquetambémajudaaancorá-losnocampopolíticodoanarquismo.Aautoraafirma,alémdisso,anegaçãodasmatrizesidentitáriascomodescritosanteriormentepelofeminismociborgue.Harawayconclui,então,que:
Aimagemdociborguepodesugerirumaformadesaídadolabirintodosdualismospormeiodosquaistemosexplicadonossoscorposenossosinstrumentosparanósmesmas(HARAWAY,2009,p.99),
Issonamedidaquenão“setratadosonhonãodeumalinguagemcomum,masdeumapoderosaeheréticaheteroglossia”(ibidem,p.99).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
ObservarareproduçãodepapéisdegêneronadivisãovoluntáriadastarefasnosgruposdeafinidadedosBlack Blocs parece, àprimeira vista, contraditório.Comoéqueessespapéissereproduzemjustamenteondeseusprincípiossãotão
Capa| Sumário | 182
Sexualidade e gênero: controle e subversão
veementementenegados?Considerarareproduçãosocialdessespapéisdeformamaisaprofundadarevela,noentanto,algumasformaspossíveisdeexplicação.Comoessespapéisdependemdeumasocializaçãoduradoura,quesedá,mesmonosparticipantesdosBlack Blocs,emumasociedadequenãoatendaàssuasexpectativasepremissassócio-políticas,seriasurpreendenteverosparticipantesselivraremdelestãoprontamente,apenasporteremconsciênciadasuaexistênciaedosmalesquecausam.
Aomesmotempo,hánosBlack Blocsmuitoselementosquecombatemahierarquiadegêneroeapráticaemsivisaprefigurarumasociedade,naqualascategoriasehierarquiasdegênerofossemabolidas.Dessemodo,seasmanifestaçõesdosBlack Blocspodemserentendidas,como“grandesequalizadores”oumomentosdeaboliçãodegênero[gender abolition],restaperguntar,comThompson(2010,p.116)“comopodemosestenderseusefeitosaregiõesdavidaondealógicadarepresentaçãopermanecedominante?”,ouseja,como“podemosentrarnoespaçoabertopeloprotestoenuncasairdele?”.Estassão,certamente,perguntasqueconvidamumareflexãomaisaprofundada,queaquinãofoipossíveldevidoaoescopodotrabalho.Noentanto,espera-sequeoartigosejacapazdeesboçarumcaminhodeinvestigaçãoparainstigaralgumasperguntasimportantesacercadarelaçãodosBlack Blocsemespecialedoanarquismoemgeral,comasquestõesdegênero.
REFERÊNCIAS
AUGUSTO,Acácio;ROSA,PabloOrnelas;RESENDE,PauloEdgar.Resistênciaanarquistaemnovíssimosmovimentossociais. In:XVIICONGRESSOBRASILEIRODESOCIOLOGIA,2015,PortoAlegre,RS.Anais...(on-line),2015.Disponívelem:http://automacaodeeventos.com.br/sociologia/sis/inscricao/resumos/0001/R2187-1.PDF.Acessoem:16ago.2018.
Capa| Sumário | 183
Sexualidade e gênero: controle e subversão
Beauvoir,Simonede.O segundo sexo: fatosemitos.TraduçãodeSérgioMilliet,4.ed.RiodeJaneiro:NovaFronteira,1970.Beauvoir,Simonede.O segundo sexo: aexperiênciavivida.2. ed. RiodeJaneiro:NovaFronteira,1967.BERNECKER,Walther.TheStrategiesof“DirectAction”andViolenceinSpanishAnarchism.In:HIRSCHFELD,Gerhard;MOMMSEN,Wolfgang(Org.).Social Protest, Violence and Terror in Nineteenth- and Twentieth-century Europe.Londres:TheMacmillanPress,1982,p.88-111.BEY,Hakim.T.A.Z.: TheTemporaryAutonomousZone,OntologicalAnarchy,PoeticTerrorism.Boulder:TheAnarchistLibrary,1985.Butler,Judith.Problemas de gênero:feminismoesubversãodaidentidade.TraduçãodeRenatoAguiar..ed.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,2003.CONTRAoquevocêprotesta?Folha de São Paulo,SãoPaulo,p.C6-C7,20junho2013.DAY,RichardJ.F. Gramsci is Dead: AnarchistCurrentsintheNewestSocialMovements.London:PlutoPress,2005.DEUSEN,DavidVan.TheEmergenceofTheBlackBlocandTheMovementTowardsAnarchism:GetBusyLiving,OrGetBusyDying. In:DEUSEN,DavidVan;MASSOT,Xaviar(Org.).The Black Block Papers.Kansas:BreakingGlassPress,2010.DUPUIS-DÉRI,Francis.TheBlackBlocsTenYearsafterSeattle:Anarchism,DirectAction,andDeliberativePractices.Journal for the Study of Radicalism, n.4,2010,p.45-82.Disponívelem:https://muse.jhu.edu/login?auth=0&type=summary&url=/journals/journal_for_the_study_of_radicalism/v004/4.2.dupuis-deri.html.Acessoem:10dez.2019.ENTENDAosprincipaistemasabordadosnasmanifestações.O Estado de São Paulo,SãoPaulo,p.A20,2jun.2013.
Capa| Sumário | 184
Sexualidade e gênero: controle e subversão
EPSTEIN,Barbara.AnarchismandtheAnti-GlobalizationMovement.Monthly Review,v.53,n.4,2001,paginaçãoirregular.Disponívelem:https://monthlyreview.org/2001/09/01/anarchism-and-the-anti-globalization-movement/.Acessoem:17ago.2018.ESQUERDAoudireita?Folha de São Paulo,SãoPaulo,p.A2,22jun.2013.FOUCAULT,Michel.Nietzsche,agenealogiaeahistória.In: FOUCAULT,Michel.Microfísica do Poder.TraduçãodeRobertoMachado.RiodeJaneiro:EdiçõesGraal,1979,p.15-37.Giovannitti,Arturo.Introdução.In:POUGET,Émile.Sabotage. TraduçãodeArturoM.Giovannitti.Chicago:CharlesH.Kerr&Co,2009.GRAEBER,David.Thenewanarchists.New left review.London,n.13,p.61-73,2002.HARAWAY,Donna;KUNZRU,Hari;TADEU,Tomaz.Antropologia do ciborgue:asvertigensdopós-humano.BeloHorizonte:Autêntica,2009.JENSEN,RichardBach.The Battle against Anarchist Terrorism: anInternationalHistory,1878–1934.Cambridge:CambridgeUniversityPress,2014.LINSE,Ulrich.‘PropagandabyDeed’and‘DirectAction’:TwoConceptsofAnarchistViolence.In:HIRSCHFELD,Gerhard;MOMMSEN,Wolfgang(Org.).Social Protest, Violence and Terror in Nineteenth- and Twentieth-century Europe. Londres:TheMacmillanPress,1982,p.201-229.PARDELLAS,Sérgio.Oriscodoradicalismo.Revista Isto É,SãoPaulo,14fev.2014.Disponívelem:https://istoe.com.br/348121_O+RISCO+DO+RADICALISMO/.Acessoem: 14 dez. 2019.
Capa| Sumário | 185
Sexualidade e gênero: controle e subversão
SEATTLE,1999:BlackBlocspromovemdestruiçãoemprotestoscontraaOMC.O Globo,09out.2013.Disponívelem:http://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/seattle-1999-black-blocs-promovem-destruicao-em-protestos-contra-omc-10310652. Acessoem:08dez.2019.THOMPSON,A.K.Black Bloc, White Riot:Anti-GlobalizationandtheGenealogyofDissent.Edinburgh,Oakland,Baltimore:AKPress,2010.
Capa| Sumário | 186
SOBRE AS AUTORAS/ORGANIZADORAS
Marcela Zamboni
ProfessoraassociadaIIepesquisadoradocursodeCiênciasSociais(CCS)edoProgramadePós-GraduaçãoemSociologia(PPGS)daUniversidadeFederaldaParaíba(UFPB).PossuigraduaçãoemCiênciasSociais(2000),mestrado(2003)edoutorado(2009)emSociologiapelaUniversidadeFederaldePernambuco.RealizouestágioPós-DoutoralnaUniversityofManchester/Schooloflaw,comapoiodaCAPES(2013-2014)enaUniversidaddeSevilla/DepartamentodeSociologia(dejaneiroaabrilde2017).Em2015,fundouoGRAV(GrupodeRelaçõesAfetivaseViolência).Entre2017e2019,coordenouaPós-GraduaçãoemSociologia(PPGS/UFPB).Éautoradoslivros“Quemacreditounoamor,nosorriso,naflor”:aconfiançanasrelaçõesamorosas(2010)eHomicídioafetivo-conjugalsobalentedosoperadoresjurídicos(2016),sendoesseúltimoemco-autoriacomHelmaJ.S.deOliveira.Assuasprincipaisáreasdeinteressesão:Sociologiadocrimeedodesvio;gêneroesexualidadeeTeoria Sociológica.
Helma J. S. de Oliveira
GraduadaemDireito(2006)eemCiênciasSociais(2013),mestreCiênciasJurídicas(2009)–áreadeconcentração“DireitosHumanos”–edoutoraemSociologia(2019),pelaUniversidadeFederaldaParaíba.ÉpesquisadoraintegrantedoGrupodeRelaçõesAfetivaseViolência(GRAV,UFPB/CNPq).Atualmenteprestatrabalhotemporáriocomoanalistacensitária,naáreadeconhecimentodeCiênciasSociais,juntoàFundaçãoInstitutoBrasileirodeGeografiaeEstatística(IBGE).LecionouemcursosdeaperfeiçoamentodeprofissionaisdosistemapenitenciárioofertadospelaSecretariadeEstadodaCidadaniaeAdministraçãoPenitenciária(SECCAP),atravésdaEscoladeServiçoPúblicodoEstadodaParaíba(ESPEP),entreosanosde2007e2009.Antesdesededicar
Sobre as autoras/organizadoras
Capa| Sumário | 187
àpesquisadedoutoramento,lecionouasdisciplinasdeTeoriaGeraldoDireitoeDireitodoTrabalhoInoCursodeDireitodaFaculdadedeIntegraçãodoSertão(FIS)durantecincoanos.EntresuasatividadesacadêmicasjuntoessaIES,organizoueparticipoudeeventosacadêmicosinternos,bemcomoatuounasavaliaçõeseorientaçõesdetrabalhosdeconclusãodecursoemsubáreasdiversas,comdebatesqueentrelaçavamostemasviolência,gênero,teoriasefinalidadesdaspenas,execuçãopenal,escravidãomoderna,entreoutros,ensinandosobrepráticadeestudoepesquisaemDireitoeoutrasáreasdasciênciashumanas.Simultaneamenteàsatividadesprofessorais,desde2011participadepesquisascientíficassobreviolência,gêneroepráticasjurídicascomenfoquenaanálisedehomicídiosafetivo-conjugais(feminicídios)emtribunaisdojúrideJoãoPessoaeoutrascapitais,financiadaspelaComissãodeAperfeiçoamentodePessoaldoNívelSuperior(CAPES),peloConselhoNacionaldeDesenvolvimentoCientíficoeTecnológico(CNPq)eSecretariaNacionaldePolíticasparaMulheres(SNPM),oqueresultounapropostadepesquisadedoutorado“OCrimedefeminicídioeapercepçãodosagentesdajustiça:umaanálisesociológicaapartirdosTribunaisdoJúrideJoãoPessoa,Paraíba”.Asexperiênciasmencionadasfacilitamaatuaçãodestaprofissionalemcursosdegraduaçãoepós-graduação,tendocapacidadepararefletireministraraulasemdiversassubáreasdoDireitoedasCiênciasSociais,bemcomoparaformulareatuarematividadesdepesquisacientífica.
Mariana Melo
DoutoraemSociologiapelaUniversidadeFederaldaParaíba(2020).MestreemSociologiapelaUniversidadeFederaldaParaíba(2016).BolsistadeDoutoradoSanduíchepelaCAPESnaGeorgeWashingtonUniversity,EstadosUnidos.Atuanasáreasdeviolência,gêneroesexualidade.PesquisadoradoGRAV–GrupodeRelaçõesAfetivaseViolência.
Sobre as autoras/organizadoras
Capa| Sumário | 188
Juciane de Gregori
PossuigraduaçãoempsicologiapelaUniversidadeRegionalIntegradadoAltoUruguaiedasMissões–CampusErechim(2011);especializaçãoemFormaçãoDidáticoPedagógicaparaMagistérioSuperiorpelaUniversidadeComunitáriadaRegiãodeChapecó(2013);mestradoemDireitosHumanos,CidadaniaePolíticasPúblicaspelaUniversidadeFederaldaParaíba–UFPB(2016);mestradoemSociologiaebolsistaCNPqpelaUniversidadeFederaldaParaíba–UFPB(2019);doutoradoemSociologiaebolsistaCAPESpelaUniversidadeFederaldaParaíba(emandamentodesde2019).Principaisáreasdeinteresse:Gênero,Sexualidade,ViolênciaeDireitosHumanos.
Emylli Tavares do Nascimento
MestrandaemCiênciasJurídicaspeloProgramadePós-GraduaçãoemCiênciasJurídicasdaUniversidadeFederaldaParaíba,naáreadeDireitosHumanosenalinhadeDireitoInternacionaldosDireitosHumanos,EstadoDemocráticodeDireitoeCidadania,GêneroeMinorias.PósgraduandaemDireitoPúblicopelaPontifíciaUniversidadeCatólicadeMinasGerais–PUCMINAS(especialização).GraduadaemDireito,em2018,peloCentrodeCiênciasJurídicasdaUniversidadeFederaldaParaíba.ColaboradoradoGrupodeRelaçõesAfetivaseViolência(GRAV),vinculadoàUniversidadeFederaldaParaíba,grupodepesquisasobregênero,sexualidadeeviolência.ColunistadoJornalBrasildeFatonaParaíba:umavisãopopulardoBrasiledoMundo.AdvogadacomatuaçãonaáreadeDireitosHumanos.Possuiexperiêncianaáreajurídicacomênfaseemgêneroeviolência,sociologiajurídica,estudoscriminológicos,educaçãoeassessoriajurídicapopularedireitoshumanos.
Capa| Sumário | 189
SOBRE OS AUTORES
Ana Carolina Gondim de Albuquerque Oliveira
DoutorandanoProgramadePós-graduaçãoemCiênciasJurídicasdaUniversidadeFederaldaParaíba.DoutoradoemDireitosHumanoseDesenvolvimento (Linha3).PossuigraduaçãoemDireitopelaUniversidadeEstadualdaParaíba–UEPB(1998);EspecializaçãoemDireitoProcessualCivilpelaUniversidadeCândidoMendes–UCAM/RJ(2005)eMestradoemCiênciasJurídicas,áreadeconcentraçãoemDIREITOSHUMANOSpelaUniversidadeFederaldaParaíba(2012).AtualmenteéprofessoradaFaculdadedeEnsinoSuperiordaParaíba(FESP),ondeatualcomo:DocentenaGraduaçãodeDireitoenoscursosdepós-graduação;CoordenadoradePesquisaeExtensão;PesquisanaáreadeTEORIAeHISTÓRIADODIREITO;DIREITOSHUMANOSEVIOLÊNCIADEGÊNERO.PesquisadoradosGruposdePesquisa:NÚCLEO PARA PESQUISA DOS OBSERVADORES DO DIREITO (NUPOD/UEPB)eTEORIADOSDIREITOSHUMANOS,DIREITOESOCIEDADE:GENEALOGIAEPROSPECTIVASDOPENSAMENTOJURÍDICO(UFPB),amboscadastradosecertificadosnoDiretóriodosGruposdePesquisanoBrasil/CNPQ.
Eloisa Slongo
MestrandapeloProgramadepós-graduaçãodoCentrodeCiênciasJurídicas (PPGCJ) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Bacharela emCiênciasJurídicaseSociaispelamesmainstituição(2017).EspecialistaemPenaleProcessoPenalpelaUniversidadeCândidoMendes–RJ(2019).DuranteagraduaçãoatuouemprojetosdepesquisaeextensãoenvolvendotemáticasvoltadasaosDireitosHumanos,GêneroeViolência,SociologiaJurídicaeAssessoriaJurídicaPopular.Comoestagiária,tevesuaatuaçãoconcentradanasáreasdeDireitoPenal,ProcessualPenaleDireitoCivil.Éadvogadalicenciada(XXexamedaOAB)e,atualmente,
Sobre os autores
Capa| Sumário | 190
estátrabalhandonaáreapenalnocargodeAssessoradeGabinetedoJuízode1ªGraudoTribunaldeJustiçadaParaíbaecomoestagiáriadocente,nadisciplinadeSociologiaJurídica,noDepartamentodeCiênciasJurídicas da Universidade Federal da Paraíba.
Felipe Franklin Anacleto da Costa
MestrandoemSociologia(PPGS/UFPB).GraduandoemServiçoSocial(UFPB).GraduadoemComunicaçãoSocialcomhabilitaçãoemRelaçõesPúblicas(UFPB).TeminteressenasáreasdeServiçoSocialeSociologia,maisespecificamentenosseguintestemas:gênero,sexualidade,trabalhoepolíticaspúblicas.
Florian Grote
DoutorandoemSociologiapeloProgramadePós-GraduaçãoemSociologia(PPGS)pelaUniversidadeFederaldaParaíba(UFPB).PossuigraduaçãoemCiênciaPolíticaeHistória(inconclusa)pelaUniversidadedeVechta(Alemanha),graduaçãoemCiênciasSociais(Bacharelado)pelaUniversidadeFederaldaParaíba(UFPB),mestradoemCiênciaPolíticaeRelaçõesInternacionaispeloProgramadePósGraduaçãoemCiênciaPolíticaeRelaçõesInternacionaisdaUniversidadeFederaldaParaíba(UFPB)eéintegrantedoGrupodeEstudosePesquisasAnarquistas(GEPAn).
Maria Joaquina da Silva Cavalcanti
MestrandanoProgramadePós-GraduaçãoemCiênciasJurídicas(UFPB),nalinhadeFundamentosTeórico-filosóficosdosDireitosHumanos;AdvogadagraduadaemDireitopelaFaculdadedeDireitodoRecife–UniversidadeFederaldePernambuco(UFPE);atuanaáreadeDireitoPenal;AtuaçãoemAssistênciaJurídicaPopular;PesquisadoranaáreadeDireitoàCidade,GêneroePolíticasPúblicas.
Sobre os autores
Capa| Sumário | 191
Monique Ximenes Lopes de Medeiros
PossuigraduaçãoemDireitopelaUniversidadeFederaldaParaíba(2007)emestradoemDiraitosHumanospelaUniversidadeFederaldaParaíba(2013).AtualmenteéprofessoraefetivadoInstitutoFederaldeEducação,CiênciaeTecnologiadaParaíba–IFPB.TemexperiêncianaáreadeDireito,comênfaseemDireitosHumanos,atuandoprincipalmentenosseguintestemas:direitoshumanos,feminismo,tráficodemulheres,tráficodepessoaseteoriascríticas.
As temáticas abordadas nesta obra estão relacionadas às pesquisas sobre gênero e sexualidade desenvolvidas pelos(as) alunos(as) vinculados(as) não só ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS), mas também à Pós-Graduação em Ciências Jurídicas (PPGCJ) da mesma instituição, evidenciando a preocupação dos(as) autores(as) com as práticas sociais e jurídicas, a fim não só de explicar os fenômenos sociais relacionados a referida temática, mas também de instigar mudanças sociais e legais que garantam maior equidade de gênero, a partir de uma lente sociológica.