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A MISSÃO DE JESUS

Seleções: o mundo cada vez melhor

Há mais de 90 anos Seleções do Reader’s Digest oferece conteúdo dequalidade em variadas áreas do conhecimento, apresentando-o de formaconcisa e objetiva. Isso fez com que nos tornássemos parte da história eeducação das pessoas em mais de 45 países, sempre informando, divertindo eemocionando nossos milhões de leitores.

Continuando a desempenhar esse papel, estamos sempre buscandonovos meios e novos canais de comunicação e acompanhando a evoluçãoglobal a fim de atender às necessidades do homem de hoje. Sempre pensandoem um mundo melhor, para que você também esteja cada vez melhor.

Conheça Seleções e nosso conteúdo nas páginas:

Sumário

Prefácio

1. O nascimento de Jesus

2. A vida nas aldeias

3. Jerusalém, a Cidade Santa

4. Conflitos religiosos

5. A missão do Messias Copyright

Prefácio

“Faz dois mil anos, ó Cristo, que teus pés sangram pelas estradas domundo…”

Este verso do poeta francês contemporâneo Pierre Emmanuel exprime aindiscutível e atormentada presença da figura de Jesus de Nazaré ao longodesses vinte séculos que tomaram seu nome e cronologia. Se quiséssemosresumidamente delinear esta presença, deveríamos recorrer a dois rostos quese sobrepõem.

Por um lado, há o fenômeno histórico que se desenvolve em torno deJesus de Nazaré. Ele começa talvez por volta do ano 6 a.C., sob o reinado deHerodes, o Grande e o império de Augusto, passa por uma execução emJerusalém, por volta de 30-33 d.C., sob o governo do procurador romanoPôncio Pilatos, e aborda uma grandiosa herança recolhida das váriascomunidades de seus seguidores, cada vez mais ativos e numerosos.

Por outro, porém, há o mistério “Jesus Cristo, Filho de Deus”, queanima uma literatura, a do Novo Testamento, que na realidade se tornou porséculos “o grande códice e o grande vocabulário” da arte, da cultura e dopensamento ocidentais.

Na esteira desta fé, milhões de homens e mulheres dedicaram suaexistência e assumiram a palavra daquele pregador ambulante da Galileiacomo a luz para os passos de sua existência. Para todos esses é verdade o queescreveu uma teóloga alemã contemporânea, Dorotea Sölle: “Compare oCristo com outros grandes, Sócrates, Rosa Luxemburgo, Gandhi: ele dominao confronto. Mas será melhor compará-lo com você!”

À definição desse aspecto duplo, porém único, de Jesus Cristo édedicado este livro, dirigido a crentes e não crentes. Trata-se de um itinerárioque recria aqueles dias longínquos, aparentemente iguais aos outros, mas quena realidade mudaram o mundo.

Vasculhando não só os 27 escritos do Novo Testamento – a partir dos

quatro livros chamados “Evangelhos” –, mas também as fontes romano-judaicas da época, e fazendo um balanço da dispersa bibliografia surgida emtorno do cristianismo, os autores desta obra, especialistas no estudo dofenômeno cristão, reproduziram de modo convincente o perfil mais completopossível de Jesus.

Um texto egípcio apócrifo, nascido da devoção popular dos primeirostempos do cristianismo, por volta do ano 200, um tanto ingênuo, masdecidido, afirma: “Alguém diz ‘Sou judeu!’ e ninguém se comove. Se diz‘Sou romano!’, ninguém treme. Se diz ‘Sou grego, bárbaro, escravo, liberto’,ninguém se agita. Mas se diz ‘Sou cristão!’ o mundo inteiro estremece.”

Gianfranco RavasiDocente de Ciências Bíblicas naFaculdade Teológica da Itália Setentrional, MilãoMembro da Pontifícia Comissão Bíblica

O nascimento de Jesus

Diz o Evangelho de Lucas: “Naqueles dias, foi publicado um decretode César Augusto, convocando toda a população do império pararecensear-se [...] cada um na sua própria cidade.” Assim, José eMaria tomaram o caminho de Belém e Jesus nasceu na cidade de

Davi.

Jesus veio à luz num mundo pacificado. Era a paz romana, garantidapelos zelosos legionários de Roma, cuja presença bastava, por si só, paradesencorajar qualquer tentação revolucionária nos mais longínquos cantos doimpério. Na maioria dos casos, a paz gerou prosperidade e até mesmo luxo ebem-estar, que se difundiram também nas províncias mais distantes. Mas nãofoi esse o caso da Palestina, uma pequena região de cerca de 20.000 km2,situada nos limites orientais dos extensos domínios romanos.

A população local, formada por cerca de um milhão de judeus,submetidos a Roma desde que as legiões de Pompeu conquistaram Jerusalémno ano 63 a.C., representava apenas um reduzido número de contribuintesnum dos mais extensos e complexos sistemas tributários da História, capaz decoletar impostos dos povos conquistados em todo o império. As grandesobras públicas realizadas pelo governo de Roma – estradas e aquedutosmajestosos, prédios de mármore e amplas praças – eram financiadas, emparte, pela receita fiscal, que pesava mais sobre as classes menos favorecidas.Roma se comportava em matéria tributária, assim como em tantos outrossetores, como um patrão inflexível e sem piedade. Os governadores dasvárias províncias tinham de convocar periodicamente um censo com oobjetivo de atualizar os cadastros fiscais da metrópole. Foi um edito dessanatureza que obrigou José e Maria a fazer uma viagem de 145 quilômetrospara chegar a Belém.

O Evangelho de Lucas informa-nos que o imperador romano CésarAugusto determinara que toda a população da Palestina retornasse às suas

cidades de origem para se submeter ao recenseamento; além disso, Lucastambém informa que, à época, o governador da Síria era Quirino. Osestudiosos, porém, não encontraram referências históricas mais precisas comrelação ao recenseamento mencionado por Lucas. A documentaçãodisponível revela que houve ao menos um recenseamento durante aadministração do cônsul romano Públio Sulpício Quirino nas províncias daSíria e da Palestina, mas a data remonta ao ano 6 d.C., uma década após amorte do rei Herodes, o Grande. Entretanto Mateus e Lucas situam onascimento de Jesus justamente durante o reinado de Herodes.

Devemos supor, portanto, que Lucas e talvez outros autores do NovoTestamento tenham confundido os acontecimentos ligados à vida de Jesus?Os Evangelhos só foram escritos cerca de 70 anos ou talvez até mesmo umséculo depois do nascimento de Jesus. Os episódios mais amados pelosprimeiros seguidores de Jesus, repetidos infinitas vezes ao longo daquelesanos, devem ter sofrido certamente alterações e retoques.

Será que se trata de uma licença poética? A viagem até Belém representaum dos episódios mais queridos da tradição cristã. Isso se deve, em parte, àcomoção suscitada pela narração da jovem grávida, obrigada a enfrentar ocansaço da longa viagem: cinco dias a pé, da pequena aldeia de Nazaré, naBaixa Galileia, até a cidade de Belém, berço dos antepassados de José, naborda do deserto de Judeia ou Judá.

Pode ser ainda que o recenseamento tenha acontecido de fato, mas, porse tratar de um detalhe insignificante, foi menosprezado pelos historiadoresdo Império Romano, um domínio imenso, composto por 30 províncias edistribuído numa superfície de mais de 5 milhões de km2. Afinal, a Palestinaficava muito distante de Roma, sede do poder político e militar.

Falta de precisão, licença poética ou lacunas nos documentos históricos?Encontraremos frequentemente esse mesmo tipo de ambiguidade ao longo danossa reconstrução da vida de Jesus. Para a maioria dos leitores, essasimprecisões não comprometem a verossimilhança da história: elas são bem

compreensíveis, se considerarmos as circunstâncias em que foram redigidosos textos do Novo Testamento. A transcrição dos acontecimentos históricospreocupada com a exatidão dos detalhes representa uma concepção bemrecente. Naquela época, a precisão cronológica dos fatos narrados era muitomenos importante do que a mensagem espiritual que emanava do testemunhopessoal dos discípulos que ainda se lembravam de Jesus vivo.

Somente Lucas e Mateus narraram a história do nascimento de Jesus,nos dois capítulos iniciais dos seus evangelhos. Embora os dois evangelistasrelatem os mesmos eventos com detalhes que às vezes até parecemcontraditórios, o seu objetivo é evidente: demonstrar que Jesus foi overdadeiro Messias anunciado pelas profecias. Por exemplo, ambos osescritores afirmam que Jesus nasceu em Belém, mas a partir de dois pontosde vista distintos. Segundo Mateus, o nascimento em Belém cumpre umaprofecia do Antigo Testamento que encontramos em Miqueias 5,2, mas elenada fala sobre os motivos que levaram Maria e José até aquela cidade.Lucas, por sua vez, narrando como o recenseamento imperial obrigou José eMaria a se deslocarem para Belém, mostra que Deus se serviu dos máximospoderes terrenos para fazer com que Jesus nascesse justamente naquelacidade, assim como havia sido anunciado pelas Sagradas Escrituras.

Sobre os argumentos centrais, ou seja, os de maior relevância, Mateus eLucas estão de acordo. Ambos confirmam a intervenção dos anúncios e daspromessas divinas e ilustram a origem humilde de Jesus. Lucas comenta, porexemplo, que Maria só se distinguia das outras jovens da sua aldeia pelapureza da sua alma, e Mateus demonstra que foi a fé, e não a posição socialde José, que fez dele o alvo da escolha divina para a sua difícil tarefa. Dessamaneira, os dois escritores, a propósito da escolha dos pais de Jesus,pretendem enfatizar que a mensagem espiritual do Novo Testamento sebaseia mais na verdade interior do que nas aparências exteriores.

Duas anunciaçõesLucas começa o seu relato do nascimento de Jesus pouco mais de um anoantes da viagem para Belém, com a concepção e o nascimento de João, quemais tarde receberia o cognome “Batista”. Zacarias e Isabel [Elisabete], umcasal idoso de devotos que vivia nas montanhas da Judeia, não tinham filhos,embora fossem “justos diante de Deus e seguissem todos os mandamentos eobservâncias do Senhor de maneira irrepreensível”. Lucas se demora nesseponto porque, na tradição hebraica, a esterilidade da mulher era interpretadacomo sinal de reprovação de Deus. Isabel era obrigada a conviver, dia apósdia, com a confirmação manifesta do descontentamento divino, pois jáperdera todas as esperanças de ter um filho.

Zacarias, que era sacerdote, encontrava-se, um dia, no Templo, ocupadocom um rito de oferenda de incenso ao Senhor. De repente, apareceu um anjoao lado do altar para anunciar que Isabel conceberia e daria à luz um filho“repleto do Espírito Santo”. Esse filho, a que chamariam João, era destinadoa receber as dádivas espirituais do profeta Elias. João cresceria e levariamuitos judeus a se reencontrar com Deus, preparando assim o povo para osplanos divinos.

Embora fosse um homem profundamente devoto, a primeira reação deZacarias foi a incredulidade, pois o bom senso lhe dizia que sua esposa tinhauma idade adiantada demais para ter um filho. Somente um milagre adeixaria grávida. E era essa, obviamente, a essência do anúncio. O anjo, querevelou chamar-se Gabriel, disse que, como sinal divino e punição pela suapouca fé, Zacarias ficaria mudo, incapaz de pronunciar uma única palavra atéo nascimento do filho. Quando Isabel descobriu que estava grávida, sentiugrande alegria pela benevolência de Deus.

No sexto mês de gravidez de Isabel, Gabriel vai a Nazaré. Nummomento carregado de emoção, que inspiraria muitíssimos artistas de todosos séculos seguintes, o anjo aparece para Maria. A jovem virgem, que haviasido prometida em casamento a José, fica atônita ao receber a saudação do

anjo: “Alegra-te, ó tu que tens o favor de Deus, o Senhor está contigo.” E taispalavras, que procedem da versão em latim da Bíblia, iniciam a oração Ave-maria; e são repetidas numa infinidade de hinos sagrados.

O anúncio do mensageiro celeste, conhecido como a Anunciação, diziaque Maria conceberia um filho chamado Jesus, que este seria destinado a ser“filho do Altíssimo”, a reinar no trono de Davi e que “o seu reino não teráfim”. A reação de Maria foi bastante prática. Se não tinha marido, comopodia gerar um filho? Gabriel lhe explicou: “O Espírito Santo virá sobre ti e opoder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra.” O anjo, além disso,informou Maria de que a sua parenta Isabel tinha concebido um filho navelhice, concluindo com uma frase que se tornaria proverbial para os cristãos,sobretudo nos momentos de confusão e aflição: “nada é impossível a Deus”.Maria prestou fé imediatamente às palavras do anjo e se submeteu à vontadedivina, declarando-se serva do Senhor.

A missão de JoséMateus nos ensina que José ficou perturbado quando descobriu que sua noivaestava grávida. Mas, como homem “justo” que era, “não queria difamá-la”publicamente: decidiu então repeli-la em segredo. Para tanto, era suficienteque colocasse por escrito as suas intenções de se divorciar de Maria, numlibelo ou documento assinado por duas testemunhas, que podiam até ser ospais de Maria, sem precisar prestar conta de nada, nem às autoridades nem aninguém.

O noivado, em geral, durava um ano, e nesse período a infidelidade porparte de um dos noivos era considerada adultério. Por isso José estava no seudireito de pôr fim ao noivado com o divórcio. Apesar dos seus sentimentosem relação a Maria, tudo indicava que a moça lhe havia sido infiel.

Antes mesmo de pôr em prática suas resoluções, José teve um sonho, noqual um anjo se dirigia a ele como “José, filho de Davi” e lhe explicava que ofilho concebido por Maria era obra do Espírito Santo. O anjo também disseque essa criança se chamaria Jesus.

O nome Jesus vem de Iesous, versão grega do nome hebraico Yeshua,por sua vez contração de Yeho shua (que provavelmente significa “O Senhorsalva”). Em português, Josué. Embora naquele tempo esse nome fossebastante comum, neste caso se revestia de um significado bem especial, poisJesus de fato salvou “o seu povo dos seus pecados”. O nascimento a partir deuma virgem, como explicou o anjo, cumpria uma profecia acerca da vinda doMessias. José então não teve mais dúvida e se casou com Maria. Omatrimônio, contudo, nunca foi consumado.

José descendia do rei Davi, como nos lembram tanto a saudação do anjoquanto a genealogia levantada por Mateus, e, portanto, graças ao matrimôniode Maria, Jesus nasceu na linhagem de Davi.

Davi é, sem dúvida, o mais amado entre todos os heróis do povohebraico. Nascido em Belém cerca de mil anos antes de Jesus, Davi, quandomoço guardava os rebanhos que pastavam nas colinas da região. Poeta e

músico talentoso, é provavelmente o autor de pelo menos uma parte dosSalmos que lhe são atribuídos. Além disso, Davi foi um guerreiro corajoso ehabilidoso. A Bíblia narra que a sua carreira militar se iniciou quando, aindaadolescente, armado somente com uma funda, matou o gigante Goliasdurante o conflito entre a nação hebraica e os filisteus. A partir desse episódioDavi se tornou um comandante destemido, vencedor de inúmeras batalhas.Quando Saul (o primeiro rei de Israel) morreu, Davi foi coroado seu sucessor.Com Davi teve início uma era de independência, expansão e prosperidadepara o reino de Israel. O ato mais importante para as esperanças futuras dopovo hebraico foi a aliança, relatada no Livro II Samuel, que Deusestabeleceu com Davi e seus descendentes. Deus prometeu que a casa e oreino de Davi seriam “estáveis” para sempre. Até mesmo nos séculos que seseguiram, quando já nenhum descendente da linhagem de Davi ocupava otrono, ainda havia muitas pessoas que esperavam a vinda de um herdeirodavídico. Tanto Mateus quanto Lucas asseveram que o nascimento de Jesusna descendência davídica representa o cumprimento final daquelasesperanças e da promessa de Deus.

A visita a IsabelAntes do nascimento de Jesus, Maria fez uma viagem, em decorrência deuma notícia que recebera de Gabriel: a gravidez da sua “parenta” Isabel. Aonarrar o episódio, Lucas não explica qual seria esse grau de parentesco,embora a tradição as considere primas. De qualquer maneira, Maria e Isabelse comportam como amigas muito próximas – Maria se põe a caminho paravisitar Isabel, que, mesmo em idade tão adiantada, havia recebido essaextraordinária bênção divina. Não se sabe ao certo em que cidade da Judeiamoravam Zacarias e Isabel, mas acredita-se que ficava 140 quilômetros ao sulde Nazaré. Seria, portanto, uma viagem de pelo menos cinco dias.

Quando entrou na casa de Zacarias, Maria saudou Isabel. Assim que estaouviu as palavras de Maria, João estremeceu no ventre da mãe, e Isabel,“repleta do Espírito Santo”, disse: “Tu és bendita mais do que todas asmulheres; bendito é também o fruto do teu ventre!” Maria respondeu à primacom um hino de júbilo, o Magnificat, que se inicia com as palavras: “Minhaalma exalta o Senhor.” Dessa forma, Maria não apenas louva ou engrandece amisericórdia, o poder e a generosidade de Deus, mas também celebra amaneira como Deus intervém nos acontecimentos humanos, fazendo cair ossoberbos e os poderosos e exaltando os humildes e os pobres: “doravantetodas as gerações me proclamarão bem-aventurada”.

Maria permaneceu na casa da prima por cerca de três meses. EmboraLucas não mencione os acontecimentos desse período, é lógico supor queMaria tenha auxiliado Isabel nas tarefas do lar. Todos os dias era necessáriobuscar água no poço da aldeia, amassar e assar o pão, coalhar o leite de cabrapara fazer o queijo. Nos dias de feira abastecia-se a casa, e o tecido para asroupas era confeccionado em casa, fiando e tecendo.

O nascimento de João, o BatistaPouco depois da volta de Maria a Nazaré nasceu o filho de Isabel, para aalegria dos parentes e amigos que amavam e respeitavam essa mulher boa edevota. De acordo com a lei hebraica, a criança foi circuncidada no oitavo diaapós o nascimento, e provavelmente depois dessa cerimônia houve tambémuma festa.

Em geral, durante o ritual da circuncisão, também se anunciava o nomeque se queria dar à criança. Não foi pequeno o alvoroço quando Isabeldeclarou que o recém-nascido se chamaria João. A escolha pareceu incomum,pois, contrariamente aos costumes, esse era um nome estranho à família deZacarias. Nesse momento, porém, o velho genitor, ainda mudo, fez um sinalpara que lhe dessem uma tabuinha e nela escreveu, com firmeza: “João é oseu nome.” Todos ficaram em alvoroço, e a confusão ainda aumentouquando, após tanto tempo em silêncio, Zacarias, de repente, abriu a boca ecomeçou a louvar o Senhor. A sua oração, que lembra a longa história daligação divina com o povo hebraico e prediz a missão de João como “profetado Altíssimo”, constitui o hino conhecido como Benedictus.

Com a história de Isabel e Zacarias, Lucas constrói o admirávelarcabouço para os prodígios, mais surpreendentes ainda, que acompanhariamo nascimento de Jesus. Escritor habilidoso, Lucas sabe como convencer oleitor, colocando lado a lado as qualidades humanas de seus personagens e opoder imperscrutável do Senhor.

Na hospedaria não havia lugar para elesLucas inicia o relato do nascimento de Jesus com o recenseamento e aviagem de Nazaré até Belém, mas não fornece nenhum detalhe sobre essedeslocamento. É provável que o casal viajasse de noite e de madrugada,buscando abrigo nas aldeias que encontrava pelo caminho. À época, oferecerhospitalidade aos peregrinos era um dever sagrado.

Belém surge numa vertente baixa, mas bastante íngreme, entre ascolinas áridas e pedregosas logo ao sul de Jerusalém. A pequena cidade écercada por campos de relva e por olivais exuberantes, mas, ao leste, abre-seo amplo deserto que leva até o mar Morto. Desde a época de Davi, havia nosarredores de Belém um caravançará, ou seja, uma hospedaria. Com efeito, acidade era atravessada pela principal rota de caravanas entre Jerusalém e oEgito.

Chegando a Belém, Maria e José não encontraram vaga na estalagem e,por isso, foram procurar abrigo em alguma casa particular. Lucas não explicapor que ninguém os hospedou. De qualquer maneira, José e Maria acabaramencontrando um abrigo de emergência, em Belém ou nos arredores, mas nãoconhecemos o nome da localidade nem a natureza desse refúgio.

Como único indício, Lucas menciona que naquele lugar havia umamanjedoura, mas não esclarece se ela estava num pátio ou numa gruta. Aolongo dos séculos, a tradição estabeleceu que o nascimento teria acontecidonuma gruta que servia de estábulo para o gado. Essa gente humilde não deveter estranhado nem achado repugnante passar a madrugada ao abrigo de umagruta, onde eram frequentemente guardados os animais. Quase todas asmoradias eram construídas de forma a permitir que as pessoas ocupassemlocais um pouco elevados do chão, ou a elas era reservado um segundo andar,enquanto os animais eram confinados nos quintais ou ficavam amarrados noandar térreo.

José e Maria saíram de Nazaré, na Galileia, para chegar a Belém através da Samaria.

Jesus nasceuLucas é o único evangelista a fornecer um relato daquela noite extraordináriaem que Jesus nasceu, dizendo que Maria “deu à luz o seu filho primogênito,envolveu-o em faixas e o deitou em uma manjedoura” (2, 7).

Naquele tempo havia o costume de chamar uma parteira para ajudar aparturiente. A parteira cortava o cordão umbilical do recém-nascido, que emseguida era lavado com água para prevenir infecções e massageado com umapitada de sal. Os Evangelhos nada dizem a respeito. Só podemos imaginarque José, desvelado e amoroso, tenha prestado todo o auxílio possível aMaria. Talvez até tenha forrado a manjedoura com palha fresca. Mas, antesde deitá-lo nesse berço funcional, Maria envolveu o menino com faixas.

As faixas não serviam apenas para envolver o recém-nascido e mantê-loaquecido; eram também uma forma de refrear os movimentos do bebê egarantir, assim, que os braços e as pernas crescessem retos e fortes. Uma vezao dia, as faixas eram desatadas e o menino lavado e massageado com azeitede oliva, ou envolvido com pó de folhas de murta e, depois, de novoenfaixado.

O anúncio aos pastoresEnquanto Jesus dormia na manjedoura, nos arredores de Belém algunspastores passavam a madrugada ao relento com os seus rebanhos de ovelhas.Foram esses pastores os primeiros a tomar conhecimento de que naquelanoite havia ocorrido um evento portentoso.

Os pastores desempenham papel significativo na história de Jesus. Nãoapenas porque nos lembram de que Jesus é descendente de Davi, opastorzinho de Belém, mas também porque simbolizam esse afetuosocuidado com os homens que inspiraria o ministério e as obras de Jesus. Elemesmo, quando adulto, se definiu como “bom pastor”, consciente de quetodos na Palestina compreenderiam a ligação de afeto e de confiançarecíproca que se estabelece entre o pastor e suas ovelhas, como escreveu osalmista: “O Senhor é o meu pastor e nada me faltará!”

Era costume dos pastores da Palestina guiar seus rebanhos, em vez deincitá-los por trás, como se faz no Ocidente. Mesmo nos dias atuais, nascolinas da Judeia, não é raro ouvir pastores que chamam as ovelhas sedirigindo a elas numa estranha linguagem – e os animais se apressam emsegui-los. A relação do pastor com suas ovelhas era tão íntima que oguardador de um pequeno rebanho conhecia seus animais um por um, e estes,por sua vez, reconheciam sua voz.

A data da NatividadeDurante os meses do inverno (geralmente de novembro até a Páscoa), quandoos pastos minguavam e a chuva e o frio se tornavam ameaças graves, asovelhas não mais podiam permanecer ao relento e eram reunidas num abrigo.Mas Lucas menciona os pastores “que viviam nos campos e montavamguarda durante a noite junto a seu rebanho”; consequentemente, é muitoprovável que a data tradicional do Natal esteja errada.

Só se começou a comemorar o Natal em 25 de dezembro a partir doséculo IV. Essa data foi escolhida por razões práticas e simbólicas. Nomundo pagão do Império Romano, esse dia assinalava o início das festasmais importantes do ano, as Saturnais, durante as quais a população sepermitia todo tipo de excesso. Era também uma data significativa do ponto devista astronômico: coincidia, na prática, com o solstício de inverno, quando osol retomava o seu movimento rumo ao zênite, nos meses de verão. Era o diaem que todos podiam conferir a retomada do ciclo das estações e ter a certezade uma nova vida, destinada a desabrochar depois da morte simbólica e realdo inverno. O nascimento de Jesus indicava, portanto, num plano diferente, arenovação da vida interior e deixava pressentir a esperança de umrenascimento espiritual para toda a humanidade.

Segundo Mateus, Jesus nasceu durante o reinado de Herodes, o Grande.Mas como este monarca morreu no ano 4 a.C., a data de nascimento de Jesusdeveria recuar alguns anos. Muitos estudiosos modernos admitem o ano 6 outalvez 7 a.C. No século VI foram feitos os cálculos para instituir a era cristãdo nosso calendário, a fim de lhe atribuir um início que coincidisse com oano de nascimento de Jesus. Em razão da escassez de dados históricosdisponíveis à época, Dinis, “o Pequeno”, o monge a quem foi confiada essatarefa, enganou-se ao fixar o ano de nascimento. E esse erro se perpetua aindahoje no nosso calendário.

O aparecimento dos anjosQualquer que fosse a data verdadeira daquele primeiro Natal, Lucas nos dizque naquela noite um anjo do Senhor apareceu a um grupo de pastores deBelém, inundando-os de uma luz fulgurante. “Não tenhais medo”, disse paratranquilizá-los, e anunciou-lhes que havia acabado de nascer um “Salvador,que é o Cristo Senhor”, a pouca distância dali. O anjo lhes explicou como oachariam, dizendo que se tratava de “um recém-nascido envolto em faixas edeitado numa manjedoura”. E logo apareceu uma multidão de anjos, a cantaraqueles versos que estão tão intimamente ligados à celebração natalina:“Glória a Deus no mais alto dos céus e sobre a terra paz para os seus bem-amados”.

Assim que os anjos desapareceram no céu, os pastores não perderamtempo e se apressaram a voltar a Belém e procurar o Menino Jesus. A visãode Maria e José e da criança na manjedoura confirmou o seu espanto.Convencidos de que o Altíssimo operara um milagre, eles espalharam anotícia – segundo Lucas –, suscitando grande maravilha em todos os que osescutavam. Para Jesus, ainda não havia chegado a hora de se revelar aomundo.

A adoração dos pastores foi mais uma prova para Maria daquilo que elajá sabia, e ela “retinha todos esses acontecimentos, procurando-lhes osentido”. O glorioso acontecimento, contudo, não passou despercebido aosolhos do mundo. Subjugados ao domínio romano, havia na Palestina muitosjudeus desiludidos e descontentes que esperavam a libertação pela mão doMessias prometido. Lucas afirma que o Redentor havia chegado, mas poucossabiam disso ainda; além do mais, as autoridades hebraicas não prestariamatenção àquelas pessoas simples envolvidas.

O cumprimento da LeiOito dias após o nascimento, também Jesus – assim como aconteceu comJoão antes dele – foi circuncidado, de acordo com a lei hebraica. Mas, comonos lembra Lucas, também havia outros rituais associados ao nascimento.Maria, de acordo com as prescrições, tinha de se abster de todas ascelebrações religiosas por quarenta dias, e nos primeiros sete dias eraconsiderada impura. Se desse à luz uma menina, o período de impureza e deabstenção dos ritos religiosos dobraria.

Terminado esse período, a pequena família percorreu os oitoquilômetros rumo ao norte que a separavam de Jerusalém, para cumprir osrituais de purificação e oferecer um sacrifício no Templo. Nesse admirávellocal de culto, Jesus, sendo o primogênito, foi apresentado a Deus de acordocom a Lei que obrigava os judeus a oferecerem o primogênito do sexomasculino para comemorar a intervenção divina que poupara os filhos dosisraelitas na chacina dos primogênitos egípcios, à época do Êxodo. Alémdisso, a Lei exigia que Maria sacrificasse um casal de pombos, aves que Joséprovavelmente adquiriu no pátio do Templo. Se fosse mais rico, José talvezoferecesse uma ovelha; mas, como era apenas um carpinteiro, as pombas,mais os cinco siclos que teve de depositar no Templo como resgate simbólicodo primogênito, já pesaram demais no seu minguado orçamento.

O Templo representava o centro da vida religiosa dos judeus. QuandoJesus foi levado para lá, o sagrado edifício fervilhava com centenas desacerdotes, sacrificadores, músicos, tesoureiros e uma infinidade de pessoasremuneradas, dedicadas às mais variadas funções.

Mais surpreendentes ainda, porém, deviam parecer os encontrosmencionados por Lucas. Um ancião chamado Simeão – que havia sidoavisado pelo Espírito Santo de que não morreria antes de ver com os própriosolhos o Redentor prometido – aproximou-se nessa hora dos pais de Jesus etomou a criança em seus braços. Louvando a Deus, Simeão disse: “Agoradespedes o teu servo, Soberano, em paz, conforme tua palavra.” Ele

compreendera que havia visto “a luz para a revelação aos pagãos e glória deIsrael, teu povo”. Da mesma forma, uma viúva de 84 anos chamada Ana, umaprofetisa que passava todos os dias no Templo jejuando e orando, aproximou-se e louvou ao Senhor, falando sobre o menino a todos os que aguardavam aredenção de Jerusalém.

A essa altura, Lucas deixa de narrar os primeiros anos de vida de Jesus,limitando-se a nos informar que, após ter oferecido o sacrifício no Templo, afamília voltou a Nazaré. Nada mais ficamos sabendo sobre Jesus até elecompletar 12 anos de idade.

A estrela do OrientePelo texto de Mateus, porém, temos a impressão de que Jesus talvez tivessepassado os dois primeiros anos de vida em Belém. Quando relata onascimento do Messias, ele diz: “Eis que magos vindos do Oriente chegarama Jerusalém e perguntaram: ‘Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer?Vimos o seu astro no Oriente e viemos prestar-lhe homenagem.’”

Mateus não descreve em detalhes esse astro que os Magos seguiram,mas menciona apenas esse fenômeno prodigioso: trata-se de um astro queprecede os três sábios e vai pousar sobre a casa onde morava Jesus. Apesardos esforços para se acharem referências históricas a esse evento, não seencontrou explicação razoável. Não parece que algum cometa grande tenhaaparecido à época do nascimento de Jesus: houve, sim, cálculos queatestaram que o cometa Halley se tornou visível por volta do ano 12 a.C.

Outros dois fenômenos bastante raros no céu noturno são as novas e assupernovas, ou seja, o aumento temporário da luminosidade de algumasestrelas após uma explosão. Esses fenômenos costumam deixar um rastro nahistória. Ainda assim, não há referência ao episódio em questão nos anais deRoma, embora a astrologia estivesse muito em voga à época. Uma terceirapossibilidade natural remete à conjunção de dois planetas, evento também degrande relevância para os astrólogos. Calcula-se que no ano 7 a.C. Júpiter eSaturno tenham três vezes descrito órbitas insolitamente próximas. Talconjunção, que também se observa de tempos em tempos na era moderna,cria uma forte luminosidade.

Independentemente da natureza do fenômeno celeste, quando os magosque o detectaram chegaram a Jerusalém e se informaram para localizar o “reidos judeus que acaba de nascer” suas buscas suscitaram grande alvoroço.Perturbaram especialmente Herodes, o Grande, o rei dos judeus – um postoque ele havia garantido graças ao apoio dos poderosos romanos.

No tempo do rei HerodesO nascimento de um novo rei dos judeus representava uma evidente ameaça aHerodes. Mais de uma vez o reino desse tirano se expusera ao perigo de umarepentina e trágica queda por causa das conjurações palacianas e dosatentados tramados contra sua vida. Para conservar o poder, ele era obrigadoa lançar mão de uma refinada diplomacia para com seus superiores, ospoderosos políticos de Roma, e ao mesmo tempo manter uma constantevigilância sobre seus domínios, até mesmo no seio da própria família.

Herodes estava acostumado a esmagar os inimigos potenciais; paraalcançar seus objetivos, não pararia diante de nada. Embora envelhecido edoente, e talvez com a mente afetada pelo sofrimento e pelas enfermidades,Herodes não hesitaria em utilizar quaisquer meios para descobrir o que queriasaber.

Antes de tudo, dirigiu-se aos sumos sacerdotes e aos escribas (os sábios)de Jerusalém para obter informações. Perguntou-lhes onde deveria nasceresse Messias. Ouviu que as profecias afirmavam que o Cristo nasceria emBelém: Deus prometera que naquela aldeia surgiria “o chefe que apascentaráIsrael, meu povo”. Com certeza, Herodes preferiria outra resposta. Elenascera na província da Idumeia, no sul da Judeia, e seus antepassadoshaviam sido obrigados a se converter ao judaísmo. Não podia, assim, nem delonge, argumentar que a profecia legitimava o seu governo.

Secretamente, Herodes convocou os Reis Magos para interrogá-los.Ficou sabendo, assim, que o insólito “astro” havia aparecido pela primeiravez uns dois anos antes. Num ato de hipocrisia, Herodes exortou os Magos ase informar “com exatidão acerca do menino”, de maneira que ele tambémpudesse ir homenagear o novo herdeiro do trono de Israel.

Herodes chamou os Reis Magos, que estavam à procura do recém-nascido “Rei dos Judeus”, e os

inquiriu sobre o paradeiro da criança.

A adoração dos magosContinuando seu caminho, os Magos foram conduzidos pela estrela atéBelém. Mas quem eram eles, e de que distantes países provinham? Ao longodos séculos, surgiram diversas lendas em torno desses personagens, tãomisteriosos e cativantes. De acordo com as diferentes versões, o seu númerovaria de três a doze. Nas tradições sucessivas, são descritos como “Reis”. NaIdade Média, receberam até mesmo nomes: Gaspar, Melquior e Baltazar. Osestudiosos modernos supõem que vinham da Pérsia ou da Babilônia; outroslançaram a hipótese de que fossem originários das regiões desérticas daArábia ou até dos territórios governados antigamente pela rainha de Sabá.

Mateus chama-os simplesmente de “magos”, ou seja, “homens sábios”.Como está descrito em outros textos da época, os Magos eram estudiosos deastrologia e de magia. Consideravam-se discípulos de Zoroastro, ouZaratustra, o ilustre reformador religioso persa cuja doutrina afirmava aexistência de um só Deus. Na época de Jesus, entretanto, os seguidores deZaratustra haviam adotado o dualismo, ou seja, acreditavam na existência dedivindades opostas, o bem e o mal, e haviam incorporado práticasastrológicas aos ritos do culto religioso.

Como sacerdotes herdeiros da religião de Zaratustra, os Magos tinhamde estar atentos a fenômenos celestes insólitos. Os sacerdotes de Zaratustracostumavam observar a abóbada celeste em busca de sinais e mensagens paraa humanidade. Era natural, aos seus olhos, que um acontecimento de enormealcance fosse anunciado por um fenômeno celeste raro e surpreendente.

Mateus, porém, no seu relato, concentra-se na própria visitação. Quemquer que eles fossem, qualquer que fosse o sinal que lhes indicara o caminho,os Magos finalmente acharam Jesus e sua mãe, Maria. Ajoelharam-se eadoraram o menino, oferecendo presentes que, sem dúvida, devem terdeixado perplexa a modesta família de Belém, presentes a que foramfrequentemente atribuídos significados simbólicos: o ouro, como marca desoberania terrena; o incenso, ou olíbano, símbolo de divindade; a mirra

perfumada, que simbolizava a mortalidade do homem.

A matança dos inocentesOs Magos tomaram o caminho de volta evitando satisfazer o traiçoeiropedido de Herodes, mas, assim, acabaram provocando, indireta einconscientemente, o desumano evento da matança dos inocentes. Depois queum sonho os alertara a não voltar a se encontrar com Herodes, os três sábiosregressaram à sua terra sem informá-lo sobre a identidade da criança e sobreo lugar em que vivia. Da mesma forma, num sonho, um anjo ordenou a Joséque fugisse com a mulher e o filho para o Egito, porque Herodes tentariaeliminar o menino, mesmo sem possuir as informações que os Magos haviamdeixado de lhe transmitir.

Naquela mesma noite, a família ameaçada se afastou de Belém sem queninguém percebesse e tomou o caminho para o sul. Mateus interpreta a fugacomo o cumprimento da profecia: “do Egito eu chamei o meu filho”. AquiMateus cita Oseias (11, 1), embora a profecia se referisse, obviamente, aopovo de Israel.

Furioso com a afronta recebida, o rei Herodes ordenou que fossemassassinados todos os meninos de até 2 anos de Belém, ou seja, todos osmeninos nascidos ali depois do “aparecimento” do “astro”. A julgar pelasestimativas da população residente em Belém e da taxa de natalidade duranteo século I d.C., é razoável acreditar que foram mortos cerca de 25 meninos. AHistória não menciona esse massacre em particular. Talvez a razão esteja nofato de que a matança dos inocentes foi apenas uma das numerosascarnificinas atribuídas a Herodes. Embora não seja referida por outros autoresalém de Mateus, tal matança selou a sinistra fama histórica de Herodes,lembrado para sempre como um tirano cruel.

A fuga para o EgitoA fúria de Herodes em Belém fracassou no seu objetivo. A sagrada famíliaescapou-lhe das mãos, protegida pelo alerta celeste. A família de Jesusrecorrera à solução tradicional dos judeus para os tempos difíceis: o Egitohavia sido terra de refúgio durante séculos.

No século I d.C., a população judaica residente no Egito era de cerca deum milhão de pessoas, concentradas em sua maioria na cidade de Alexandria,embora houvesse comunidades menores espalhadas por todo o Egito. Parecelógico supor que os judeus participassem ativamente e com sucesso da vidaeconômica do país, apesar da hostilidade dos gregos em relação a eles e dapesada carga fiscal a que eram submetidos.

Para chegar ao Egito, era necessária uma longa viagem através deestepes desoladas, queimadas pelo sol. José talvez levasse a família de Belémpara o oeste, rumo ao litoral mediterrâneo, para depois seguir pela estradacosteira até a fronteira egípcia. O Novo Testamento, porém, não oferece maisdetalhes sobre o episódio. Podemos supor que, naquela terra tão rica, Joséteria encontrado emprego de carpinteiro ou de trabalhador rural casoprecisasse. É possível imaginar que esse casal simples e humilde, Maria eJosé, tenha sentido saudades do seu país natal, dos parentes distantes e doscostumes de casa.

Após a morte de Herodes, em 4 d.C., José e a família regressaram à suacasa, na Baixa Galileia. Mais uma vez eles tiveram de atravessar as extensasregiões desérticas do Sinai e do Neguev, evitando, porém, passar pela Judeia,que era dominada por Arquelau, o filho de Herodes.

Ilustração de uma aldeia típica, que poderia ser Nazaré, com sua rua de oficinas e artesãos.

A vida nas aldeias

Maria e José saíram do Egito e voltaram a Nazaré, onde, segundo oevangelista Lucas, Jesus “cresceu e se desenvolveu”. Quando garoto,

Jesus observou atentamente a vida do campo, que influenciou asimagens e os exemplos de seus futuros ensinamentos.

No século I d.C. a população da Galileia vivia, geralmente, em pequenasaldeias rurais, onde a agricultura determinava quase todos os aspectos da vidacotidiana: tradições e costumes, festas religiosas e crenças. Assim deve tersido também em Nazaré – onde Jesus passou a infância –, um povoado numvale resguardado a aproximadamente 400 metros de altitude. As colinas emtorno de Nazaré fazem parte da cadeia de montanhas de rocha calcária quedemarcava a fronteira meridional da Baixa Galileia. Do alto da colina a oestese avista o monte Carmelo, à beira do Mediterrâneo; a leste, o vizinho monteTabor; e, distante, ao norte, encontra-se o monte Hermon, eternamentecoberto de neve.

Ao sul de Nazaré abre-se a fértil planície de Israel ou Esdrelon: astranquilas encostas do terreno e sua posição estratégica tornaram-na umcampo de batalha para os invasores e um ponto de comércio e de baldeaçõesdesde os tempos remotos. A trilha das caravanas que deixavam o Egito,contornando pelo litoral, provavelmente foi a mesma que Maria e Joséseguiram com o menino Jesus para retornar à sua região, após a morte deHerodes.

A população da Baixa GalileiaApesar de os habitantes da Galileia nos tempos de Jesus terem sido hebreus,entre eles vivia um pequeno número de pagãos – tanto escravos quantohomens livres. Ali se encontravam sírios vindos do norte; gregos,estabelecidos nessa região em decorrência do furor das conquistas deAlexandre, o Grande; e também romanos, que chegaram por volta do século Id.C.

Os hebreus tinham estatura baixa e, apesar da cor de pele mais clara,estavam sempre bronzeados na maior parte do ano como consequência detoda uma vida passada ao ar livre. Seus rostos marcados eram quase sempreemoldurados por cabelos negros ou castanho-escuros, que tanto homensquanto mulheres mantinham naturalmente longos. Por respeito à tradição,quase todos os homens deixavam a barba crescer.

Os galileus falavam um dialeto aramaico que soava rústico para aquelesque tinham recebido educação grega, e aos olhos dos habitantes de Jerusalémpareciam pessoas grosseiras. Os rigorosos líderes religiosos de Jerusalémnutriam muito pouco otimismo em relação aos hebreus da Galileia, acusando-os de pouco se preocuparem com o cumprimento das leis.

O sábado e as festas religiosasComo parte das obrigações religiosas que atingiam todos os aspectos de suavida cotidiana, os hebreus respeitavam os preceitos de se desobrigarem dotrabalho por um dia inteiro para se dedicar ao Senhor. O sábado começava aopôr do sol da sexta-feira e terminava ao entardecer do dia seguinte. Esseconceito ficou arraigado e ritualizado na cultura hebraica de tal forma que,nos tempos de Jesus, como era proibido desenvolver qualquer atividade aossábados, a sexta-feira à tarde ficava sobrecarregada: os homens terminavamseus trabalhos e as mulheres faziam limpeza na casa com um cuidadoespecial, enchiam as lamparinas, preparavam as refeições antecipadamente elavavam as roupas.

Toda sexta-feira à noite, ao surgirem as primeiras estrelas no céu, umhazzan, isto é, um membro da sinagoga, convocava os moradores da aldeiapara a oração com três toques agudos de corno de carneiro, e os fiéis sereuniam na sinagoga. O jantar de sexta-feira, que se realizava pouco depois,era uma ocasião alegre para a família, fosse pelas saborosas iguarias servidasà mesa, fosse pela aclamação do Kiddush – uma bênção feita sobre o vinho.A família voltava à sinagoga novamente no sábado pela manhã para outrasorações e leituras das Escrituras, e o dia terminava com outro alarme de cornode carneiro.

Enquanto o sábado era celebrado a cada semana, outras festas e datasocorriam anualmente. O primeiro dia do Ano-novo hebraico, Rosh hashanah,incidia no primeiro do mês de Tishri (setembro-outubro). Dez dias depois secelebrava o Yom Kippur, dia da expiação, durante o qual os hebreus searrependiam dos pecados cometidos no ano anterior. No Yom Kippur nãohavia festa, mas jejum total e reflexões. A Hanuca, uma festa de oito dias,começava em 25 de Kislev (novembro-dezembro) para comemorar a novaexaltação do Templo de Jerusalém feita por Judas Macabeu em 164 a.C.,após sua profanação por parte de Antíoco IV Epifânio. A festa de Purim, aocontrário – que ocorria em 14 e 15 do mês de Adar (fevereiro-março) –, era

uma ocasião de alegria e de grandes festejos. Purim comemorava a libertaçãodos hebreus de seus inimigos, como descreve o Livro de Ester, lido nasinagoga durante as cerimônias religiosas. Havia, além disso, algumasfestividades ligadas ao período de plantação e ainda a Semana da Páscoa(Pessach), que assumiu um novo e profundo significado com a existência deJesus.

A comemoração da Páscoa reunia em uma única festividade duasantigas cerimônias. De um lado, relembrava a libertação dos hebreus do jugodo Egito, ocorrida no século VIII a.C.; de outro, a data aprofundava os laçoscom um passado ainda mais remoto – talvez uma festa ligada à transumânciados gregos na primavera (o pastor nômade das regiões montanhosas vive comseu rebanho nas montanhas durante o verão e o outono; e na planície duranteo inverno e a primavera). Iniciado o dia 15 do mês de Nisan (entre março eabril), os hebreus abriam a semana de festa com um seder especial, isto é,uma cerimônia ritual que incluía a narração da história da Páscoa.

Segundo Lucas (2, 41), José e Maria iam todos os anos a Jerusalém paracomemorar a Páscoa. Embora essa época do ano fosse particularmenteimportante para os camponeses, muitos deles iam a Jerusalém, onde seusantepassados, por tradição, tinham estabelecido o início da Páscoa. Masmuitos camponeses e o povo geralmente se satisfaziam em passar essa festaem sua aldeia, em companhia de parentes e amigos.

A oferenda da primeira colheita era inaugurada com a festa de Shavu’ot, 50 dias após a Páscoa.

Jerusalém, a Cidade Santa

A cidadela fortificada do rei Davi, dominada pelo magnífico Templode Herodes, representou a base do judaísmo por cerca de um

milênio. Quando Jesus, aos 12 anos, acompanhou os pais à CidadeSanta para comemorar a Páscoa, o exército romano vigiava a

multidão de peregrinos.

“Três vezes ao ano”, decretou Moisés aos filhos de Israel, “cada filhomacho teu será apresentado perante o Senhor teu Deus.” Assim, por ocasiãodas três maiores festas religiosas do ano – Páscoa, Shavu’ot (Festa dasSemanas) e Sukkot (Festa das Tendas) –, muitos hebreus se dirigiam aoTemplo de Jerusalém. Havia fiéis de toda a Palestina e de todos os cantos domundo, congestionando as quatro estradas principais que conduziam aJerusalém e animando notavelmente a população da capital.

Na verdade, no entanto, uma peregrinação anual ao Templo eraconsiderada mais que suficiente à época de Jesus e, por isso, aqueles quemoravam longe da Cidade Santa participavam regularmente da mesma festatodos os anos. Para o milhão ou mais de hebreus que viviam em paísesestrangeiros, reunir-se no Templo em épocas de festa para assistir aos rituaissolenes e apresentar oferendas conforme a antiquíssima Lei representava nãotanto uma obrigação, mas muito mais a realização de um sonho. O caminhoem direção ao coração da Judeia era para a maioria dos hebreus umaexperiência única, a última etapa de uma longa viagem, por terra ou mar,realizada com grandes riscos e principalmente com grandes despesas.

A peregrinação da PáscoaNo tempo de Jesus, a festa primaveril da Páscoa era a mais popular e maisfrequentada por peregrinos. A Páscoa se iniciava com uma celebração logoapós o pôr do sol, que marcava o início do 15o dia do mês de Nisan, pelocalendário hebraico, segundo o qual a duração de um dia vai de um pôr do sola outro. A comida principal da festa era o cordeiro oferecido ao Templodurante o ritual que fazia parte da Páscoa. Essa oferenda era feita na tarde do14o dia; por isso os peregrinos provavelmente chegavam a Jerusalém um oudois dias antes, de modo a se instalarem e se organizarem em tempo hábil.

Ao longo da estrada proveniente da Galileia, entre os peregrinos daaldeia de Nazaré, estavam também Maria, José e seu filho Jesus. SegundoLucas, o casal realizava a peregrinação pascal anualmente e Jesus passou aacompanhá-los depois de completar 12 anos de idade. Em Lucas não háindicação de que se tratasse da primeira peregrinação do menino, mas é umahipótese bastante provável. Aos 13 anos, teria sido considerado um homem.No ano seguinte a essa importante etapa da vida, algumas famíliasestimulavam os rapazes a cumprir as obrigações religiosas próprias a umadulto, entre as quais a peregrinação à Cidade Santa.

As coisas mudaram muito em Jerusalém num intervalo de poucos anos.Após a morte de Herodes, o Grande, sob o reinado do filho Arquelau – quedetinha o título de rei da Judeia, Samaria e Idumeia –, a região encontrava-searrasada por uma década de guerras civis e religiosas. Arquelau haviaherdado a desumanidade do pai, mas nenhum de seus dotes políticos; tornou-se inimigo de seus súditos por tratá-los de modo grosseiro e desumano eincitar as facções religiosas em vez de neutralizá-las. Em 6 d.C., o imperadoro depôs para nomear um governador civil romano. Novamente o coração dohebraísmo mundial se encontrava sob o domínio direto de uma potênciaestrangeira. Havia tropas romanas em toda parte, com sua presença enérgica eameaçadora.

A Páscoa, que significa “passagem”, comemorava a libertação dos

hebreus da antiga escravidão e assumia o nome da promessa de Deus,descrita no Livro do Êxodo (12, 13): “Não recebereis nenhum golpedestruidor, quando eu golpear a terra do Egito.” Era uma ocasião solene efestiva que, nessa época de ocupação militar romana, assumia um significadovibrante. Durante os sete dias de observância pascal, em Jerusalém pairavauma atmosfera de esperança e da promessa de libertação. Era uma excitaçãopopular muito perigosa, mas, se Roma tentasse negar aos hebreus essa festareligiosa, as tropas teriam de deparar, indubitavelmente, com uma sólidaresistência por parte de toda a população.

Chegando à cidadeQuando Jesus e sua família atravessaram a última cadeia montanhosa queprotege Jerusalém ao norte, o menino viu surgir diante de seus olhos ohorizonte que o historiador Plínio descrevera como “a cidade mais famosanão apenas da Judeia, mas também de todo o Oriente”.

Em Nazaré, durante as tarefas normais da sexta-feira à tarde e dosábado, Jesus, como todos os outros meninos, ouvia falar da história e dasabedoria dos hebreus. Seguindo a tradição dessa educação religiosa,aprendia, além disso, que a cidade era motivo de profundo orgulho para aalma hebraica, rica de significados religiosos, e cerne da angustiante eprecária existência daquela nação. Mas esses conceitos teóricos por certo nãoeram suficientes para prepará-lo para a realidade que veio a conhecer nagrande sede do poder político, do fervor religioso e da cultura hebraicos.

Ao longo da década seguinte, graças às pretensões e aos critérios deHerodes, o Grande, Jerusalém foi transformada em uma joia de deslumbrantearquitetura. Luxuosos palácios, imponentes obras públicas, grandiosos murose fortalezas de proteção e a magnífica esplanada do Templo surgiam ao ladodo antiquíssimo labirinto de praças, ruazinhas estreitas e o emaranhado decasas que faziam parte da herança histórica da cidade. Ao lado dos imensosportões da capital, como um transbordamento da pressão interna dosperegrinos, os comerciantes se espalhavam do lado de fora, erguendobarracas e bancas cheias de mercadorias para atrair os pedestres.

Mas, acima de tudo, destacava-se o Templo: a pérola e o coração deJerusalém e do povo hebraico. Testemunha de aproximadamente um milêniode respeitáveis tradições (como também da inacreditável potência financeirado rei Herodes), o santuário era um espetáculo que inspirava arrepios e medoreverencial. Esplêndido e majestoso, ele erguia-se sobre uma rocha, isoladopor uma imensa esplanada, capaz de acomodar uns vinte dos nossosmodernos campos de futebol. As suas paredes reluziam como a neve sobre asmontanhas, segundo o historiador Flávio Josefo, e ficavam tão brilhantes que,

ao sol, chegavam a ofuscar as pessoas, pela intensidade de seus reflexos.

Uma multidão cosmopolitaO pequeno grupo de peregrinos vindos de Nazaré talvez tenha apenas sedistinguido junto aos portões da cidade. Segundo alguns estudiosos, osnazarenos costumavam instalar seu acampamento no mesmo lugar todos osanos, provavelmente no monte das Oliveiras, ao leste da cidade. Supondo queessa peregrinação para Jerusalém representasse efetivamente o primeiroencontro de Jesus com a Cidade Santa, pode-se presumir que Maria e Josérapidamente tenham levado o menino para visitar o Templo, talvez para fazeruma oferenda pessoal nesse mesmo dia, antes do início dos rituais da Páscoa.

Misturada a uma polifonia de sotaques e línguas estrangeiras, sob avigilância dos soldados romanos, a pequena família, esgotada pela longaviagem, ficou espremida junto a um dos portões da capital, engolida pelamultidão. A chegada à Cidade Santa deve ter deixado uma profundaimpressão na alma daquele rapazinho atento e pensativo. Crescido entre aspessoas humildes e simples da região, encontrava-se agora em meio a umtropel cosmopolita, assediado por todos os lados pelos gritos dos vendedoresambulantes e pego de surpresa por mendigos profissionais.

O sangue do cordeiroO sacrifício mais significativo entre todos os que aconteciam durante aPáscoa era comemorado na tarde anterior ao início da festa pascal, o chamadoseder. Tratava-se da oferenda coletiva de cordeiros pascais que seriamconsumidos simultaneamente pelos milhares de hebreus reunidos emJerusalém. Para tomar parte dessa cerimônia, Jesus e José provavelmentevoltaram uma outra vez ao Templo, após a primeira visita.

A oferenda de cordeiros pascais era diferente de todos os outrossacrifícios coletivos. Era uma oferenda de grupo, em que cada sacrificantematava o animal em um ritual anterior à refeição comum; apenas pequenospedaços de gordura e as vísceras eram colocados de lado e queimados sobre oaltar. O sangue do animal sacrificado, além disso, era derramado aos pés doaltar, e não mais aspergido sobre o batente da porta da casa, conforme aantiga tradição. (Essa prática era um ritual em comemoração à primeiraPáscoa, quando os hebreus marcaram com sangue de cordeiro as traves e asgrades das portas, como forma de resguardar os primogênitos do povo hebreuda ira divina, que havia percorrido toda a região do Egito para exterminar osprimogênitos dos egípcios.)

Os imoladores voltavam em seguida para suas famílias, companheirosde viagem ou para a casa de amigos, com os cordeiros já prontos para seremassados e consumidos, acompanhados de pão ázimo e verduras. A refeiçãoera servida seguindo um cerimonial, durante o qual se contava a história doÊxodo. (Foi um seder pascal tradicional, que Jesus celebrou com seusdiscípulos, que passou para a História como a Última Ceia.)

Entre os mestresTalvez Jesus tenha voltado mais vezes ao monte do Templo com a família,durante a semana da Páscoa, para assistir a outros sacrifícios e fazer algumaoferenda, e sua mente inteligente teria sido atraída pelos debates eargumentações sobre a interpretação dos textos sagrados que aconteciam nospátios internos. Talvez tenha ouvido discussões acaloradas e leiturastranquilas, recebido estímulo da descoberta intelectual e refletido sobrepacatas exposições dos pontos de vista mais comumente aceitos. Sem dúvidaas pessoas se inflamavam em relação ao significado preciso das profecias, emrelação ao tempo, lugar e modo de o Messias – cuja chegada era esperada portodos – se manifestar.

Certamente o profundo anseio pela libertação do domínio romano erapercebido por muitos discípulos, que se reuniam ao redor dos grandesmestres e estudiosos da Lei, atentos, prontos para levantar questões eaprofundar os próprios conhecimentos.

Esses debates decerto não deviam envolver os sacerdotes do Templo,ocupados como estavam com o desenvolvimento dos rituais. Eles eram feitospor estudiosos da Lei, conhecidos pelo nome de escribas. A suadenominação, que em hebraico deriva da palavra “expor”, “escrever”,indicava que possuíam condições de ler e escrever; e eles deviam essa suacapacidade exatamente à posição de privilégio em que se encontravam haviaséculos. A sua atividade original foi desenvolvida, concentrando-se nainterpretação da Lei, mais ou menos parecida à dos modernos advogados.Eles aprendiam, interpretavam e ensinavam a lei hebraica, que envolvia otradicional código civil e criminal.

É portanto correto afirmar que a reunião mundial do judaísmo, realizadapor ocasião das maiores festas com a grande afluência de peregrinos,representava muito mais que um simples cumprimento dos antigos rituais desacrifícios, muito mais até que a reafirmação da fé: constituía-se fatoressencial para conservar e cultivar a poderosa continuidade, que era o âmago

próprio do judaísmo. E, igualmente, também ao povo da cidade esse encontrotrazia benefício. Ali, no pátio do Templo, os hebreus de Jerusalémobservavam o comportamento dos irmãos vindos dos mais longínquoslugares do mundo: viam também devotos e fiéis à sua pátria espiritual, apesarde falarem idiomas diferentes e usarem roupas e gestos de terras distantes.

Os peregrinos, por sua vez, levavam para casa histórias em relação atudo o que presenciavam em Jerusalém; e a simples constatação de que umjudeu podia ser ao mesmo tempo um cidadão abastado da Babilônia e um ricocomerciante grego, ou ainda um proprietário de terras egípcio, contribuía paraampliar os horizontes de todos os que moravam na cidade, nas regiões ealdeias da Palestina.

“As coisas do meu Pai”A partida dos peregrinos de Jerusalém no fim da festa era no mínimo tãocaótica e movimentada quanto sua chegada. Outra vez, as estradas ficavamrepletas de caravanas e comitivas de viajantes: todos partiam no mesmomomento. Podemos fazer uma ideia bastante clara folheando o Evangelho deLucas (no Capítulo II), segundo o qual José e Maria tinham viajado um diainteiro antes de se darem conta de que Jesus não se encontrava em suacomitiva. Os pais, então, voltaram a Jerusalém e o procuraram por cerca detrês dias, quando o encontraram “no Templo, sentado em meio aos mestres,ouvindo-os e interrogando-os”.

Isso deve ter ocorrido no Átrio das Mulheres, onde habitualmenteaconteciam debates intelectuais, pois também Maria estava presente quandoJesus foi encontrado. A quem ele ouviu durante todos esses dias? Queperguntas fez? Que respostas recebeu? E que palavras ele usou? Nadasabemos. Lucas nos diz apenas: “todos os que o ouviam se extasiavam com ainteligência das suas respostas”. Em outras palavras, não apenas os mestresresponderam às suas perguntas – como habitualmente ocorria com tantosjovens discípulos nos espaços do Templo –, mas eles também lhe fizeramperguntas. Suas respostas simples, dadas com opinião e repetidasespontaneamente, apesar de completas e exatas, devem ter soadosurpreendentes para um rapaz no início da idade adulta.

A reação de Maria nessa circunstância nos parece totalmentecompreensível. É fácil imaginar que qualquer mulher teria ignorado adistinção e a importância de tal reunião e, tão logo encontrasse o filhoperdido, lhe chamasse a atenção: “Meu filho, por que agiste assim conosco?Vê, o teu pai e eu, nós te procuramos cheios de angústia.” Jesus não sedesculpou nem procurou evasivas. Ao contrário, respondeu, talvez sem sefazer compreender nem pelos próprios pais, nem pelos intelectuais, nempelos mestres que o ouviam: “Por que me procuráveis? Não sabíeis que eudevo estar junto do meu Pai?”

Assim, com o ânimo exaltado e um pouco confusos, Jesus e seus pais sereencontraram no Templo. Fora um encerramento imprevisto para assolenidades pascais. O rapaz que havia sido levado de Nazaré para ver asmaravilhas de Jerusalém e conhecer a origem de sua fé terminou a semanadiscutindo conceitos religiosos em um nível tão elevado que intrigou esurpreendeu os próprios estudiosos.

Maria, segundo Lucas, não disse nada a ninguém sobre esseacontecimento, mas “guardava todos esses acontecimentos em seu coração”.Pode-se imaginar que o episódio não tenha sido divulgado e que Jesus tenharetomado sua vida habitual de rapaz do campo na antiga Palestina. Jesus,certamente, ainda segundo Lucas, era “obediente” a seus pais. Ainda nãohavia chegado o momento de assumir sua missão, que o afastaria de seus paispara seguir os desígnios do Pai celeste.

João e seus seguidores suscitaram preocupações tanto entre as autoridades religiosas de Jerusalém

quanto entre as autoridades romanas.

Conflitos religiosos

Roma concedia aos povos sob o seu domínio a liberdade de culto,mas não de ação política. Na Palestina, onde política e religião eram

inseparáveis, as antigas dissidências vieram à tona. Algunschegaram a empunhar armas em nome de Deus, outros se refugiaram

no deserto à espera do Messias.

No seu longo e serpenteante percurso para o sul, as águas turvas e comfrequência impetuosas do rio Jordão deslizam por 320 quilômetros paratranspor um trecho de apenas 100 quilômetros do mar da Galileia ao marMorto. A diferença de altitude entre o lago de água doce mais baixo da Terrae o ponto mais baixo da superfície terrestre é de cerca de 182 metros, razãopela qual até nos trechos mais planos o Jordão nunca é um rio tranquilo. Naprimavera, engrossado pelas chuvas invernais e pelas neves que derretem aonorte, o rio com frequência transborda e inunda a vasta planície de aluviãoque flanqueia o seu leito; quando cessa o aluvião sazonal, as suas curvascostumam mudar de posição. Exceto no braço mais meridional, onde a terra éfarta em jazidas salinas, a ponto de não permitir o desenvolvimento de umavegetação densa, a planície se apresenta verdejante, recoberta por umaespessa mata de tamargueiras, salgueiros, choupos, juncos e oleandros, que,entrelaçados com cipós e arbustos espinhosos, formam um emaranhadoluxuriante sob o sol abrasador.

João BatistaFoi provavelmente num lugar como este que, por volta do ano 28 d.C.,despontou um misterioso profeta que se pôs a pregar para imensas multidões.Homens assim não eram raros naquela época. Muitos deles percorriam o paísde um lado a outro, divulgando uma infinidade de doutrinas. Mas JoãoBatista era diferente.

Não tanto por seu aspecto, embora o mesmo devesse ser impressionante:o corpo emaciado, maltratado e enrijecido pela vida no deserto; como únicaindumentária uma faixa de pelo grosseiro de camelo atada à cintura por umacinta de couro; os cabelos revoltos e a barba descuidada. Não tinha o ar deum velho sábio, porque não passava muito dos 30 anos. O que chamava aatenção de seu público e engrossava a cada dia o rol de seus seguidores era amensagem proclamada por João e a convicção passional que o inspirava:“Convertei-vos: o Reinado dos céus aproxima-se!”

Na sua voz ecoava o fervor dos antigos profetas que anunciavam o juízode Deus – homens como Elias, Amós ou Isaías. No deserto, lugar carregadode ressonâncias bíblicas da aliança de Deus com Moisés e o povo hebreu,muitos aceitaram suas exortações à penitência e à conversão. Estava próximoo dia do juízo de Deus, gritava João para as multidões, e o descrevia emtermos facilmente compreensíveis: “O machado já está pronto para cortar araiz das árvores; toda árvore, portanto, que não der bom fruto será cortada elançada ao fogo.” Era uma imagem vívida, que sem dúvida fazia correr umarrepio de terror nos ouvintes, muitos deles camponeses ou trabalhadoresbraçais agrícolas. Convencidos pela força eloquente de seu convite, muitosali presentes entravam nas águas do Jordão com João, que os batizava nacorrenteza do rio.

O banho de purificação era muito praticado no judaísmo, por múltiplosmotivos. Algumas seitas, entre as quais os essênios, praticavam um severoritual cotidiano baseado em purificações. Mas o banho de João era diferente,tanto que começou a ser chamado “aquele que imerge”, “o batista”. O seu

batismo não era uma simples imersão na água, mas uma afirmação única quemarcava aqueles que se penitenciavam como pertencentes ao novo povo deDeus, prontos a acolher a intervenção divina no mundo. Muitos de seusouvintes se perguntavam se não seria ele o próprio o salvador, o Messias.

E assim aprendemos no Evangelho de João que um grupo de sacerdotese de levitas chegou de Jerusalém para fazer perguntas a João Batista. Emcerto sentido, vieram para visitar um dos seus, porque João também gozavados direitos hereditários do sacerdócio: de fato, seu pai, Zacarias, exercerapor longo tempo o cargo de sacerdote no Templo de Jerusalém.

A rigor, nenhum ato de João contradizia os preceitos da Torá, nempareceria ilegal se ele fosse proclamado o Messias. Contudo a experiência eas Escrituras preveniam contra o perigo sempre à espreita dos falsos profetas,exortando os fiéis a não dar crédito a promessas ilusórias. Dizia-se queHerodes Antipas, tetrarca da Galileia e da Pereia, a leste do Jordão, viviaincomodado com a fama de João, temendo que uma influência tão forteexercida sobre o povo pudesse descambar para a revolta aberta.

Posicionados ao longo do rio, os sacerdotes e levitas confrontaram JoãoBatista. O Evangelho de João reproduz fielmente a troca de palavras: “Quemés tu?” Ele fez uma declaração sem restrição; declarou: “Eu não sou oCristo.” E eles lhe perguntaram: “Quem és tu? És Elias?” Ele respondeu: “Eunão sou Elias.” “És tu o profeta?” Ele respondeu: “Não.” Disseram-lhe então:“Quem és tu? [...] para que teremos uma resposta aos que nos enviaram! Quedizes de ti mesmo?” Ele afirmou: “Eu sou a voz daquele que clama nodeserto: ‘Aplanai o caminho do Senhor’, como disse o profeta Isaías.”

Que perguntas surpreendentes! Por que não lhe perguntaram de ondevinha, sobre sua família, suas convicções ou aspirações políticas oureligiosas? Elias tinha vivido muitos séculos antes: por que então lheperguntarem se era Elias? Quem era “o profeta”? Mas nem a João nem a seusinterrogadores ocorreram explicações para essas alusões bíblicas.

As antigas Escrituras falavam daqueles tempos, e todos os presentes

conheciam bem o que aquelas palavras subentendiam. (Quando João replicouque não era o Cristo, certamente os presentes sabiam que se referia ao ungidopor Deus: o Messias, o Cristo. A pergunta sobre Elias era um breve aceno àpromessa de Deus relatada ao fim das profecias de Malaquias: “Eis que vouenviar-vos Elias, o profeta, antes que venha o dia do Senhor, o grande eterrível dia.” Em relação “ao profeta”, aqueles que interrogavam Batista sereferiram à promessa feita por Deus a Moisés: “Eu estou com tua boca e coma sua boca e vos ensinarei o que fazer. Ele falará ao povo em teu lugar, eleserá tua boca e tu serás seu deus.” A resposta final de João foi a paráfrase deoutro trecho das Escrituras, tirado das profecias de Isaías: “No deserto abrium caminho para o Senhor, nivelai na estepe uma estrada para o nossoDeus.”’

Todos os quatro evangelistas nos falam de João Batista, embora apenasMateus e Marcos o descrevam também fisicamente. Todos o definem comouma figura profética, cujo fervoroso apelo fez vibrar o coração das multidões.Segundo Mateus, até os fariseus e saduceus, expoentes das duas maispoderosas facções da Judeia, acorriam para se deixar batizar. “Eu vos batizona água, em vista da conversão”, dizia João, “mas aquele que vem depois demim é mais forte do que eu: eu não sou digno de tirar-lhe as sandálias; elevos batizará no Espírito Santo e no fogo. Traz na mão a pá, vai joeirar suaeira e recolher o trigo no celeiro; mas o refugo, ele o queimará no fogo quenão se extingue.”

À espera do MessiasCerca de duas décadas antes, depois de mais de 30 anos de paz difícil esofrida e de relativa prosperidade sob o reino de Herodes, o Grande, seguiu-se uma década de sublevações populares sob o governo do filho de Herodes,Arquelau, homem brutal e incompetente. No ano 6 d.C., Roma depôsArquelau e proclamou a Judeia (incluindo as regiões de Samaria e Idumeia)província romana. Desde o início, os hebreus não haviam aceitado a ideia dodomínio romano e a situação ficou ainda mais explosiva no ano 26 d.C.,quando Pôncio Pilatos foi nomeado governador da Judeia. Administrador depoucos escrúpulos e de sensibilidade ainda mais escassa, não moveu um dedopara conquistar a simpatia do povo a ele submetido.

Muitos hebreus, ao ler e ouvir as palavras dos antigos profetas, comoIsaías, reconheciam a si mesmos e os próprios tempos atribulados. Isaíastraduzia a visão desesperada do fim de uma era que pisoteou as aspirações dopovo hebraico. O profeta prosseguia declarando que de um momento similarnão devia surgir a angústia, mas sim a esperança, porque uma nova época sedesenhava no horizonte: “Eis, com efeito, o Senhor: é no fogo que ele vem,seus carros iguais a um tufão, trazendo de volta com furor a sua cólera e suasameaças com chamas de fogo.”

De um extremo ao outro do país as pessoas esperavam a chegada de ummessias, na esperança de que um dia, não distante, um herói desconhecidoseria enviado por Deus para transformar suas vidas. Algumas esperavam umgrande comandante militar para livrá-las do jugo romano. Outrasprognosticavam um santo sacerdote capaz de restaurar a fé de Moisés na suapureza original. Outros ainda sonhavam com a intervenção direta de Deus,sem intermediários humanos, para acabar com a corrupção do mundo einstaurar uma nova ordem de paz e justiça universais.

A tolerância religiosa de RomaO domínio romano, embora objeto de profundos ressentimentos na Palestina,concedia uma notável liberdade no setor privado. Os mercadores eram livrespara desenvolver seu comércio e enriquecer, os proprietários de terra paraadministrá-las, os pescadores e os agricultores para tocar seus negócios comomelhor lhes aprouvesse, desde que, obviamente, não causassemaborrecimentos ao governo e pagassem seus tributos. O lado mais admiráveldesse comportamento tolerante era que tanto aos judeus quanto aos seusvizinhos era garantida a mais completa liberdade de fé e culto religioso.

A liberdade nesse campo era norma do império. Era uma boa políticaconceder a todas as religiões o direito de continuar sua prática nos lugares deorigem. No caso de algumas, inclusive o judaísmo, foi até permitido que seexpandissem para outras regiões do Império Romano. Somente quando umaseita desafiava a supremacia política de Roma, ou ameaçava subverter aordem pública, ou defendia ações criminosas, as autoridades intervinham.

Embora saduceus e fariseus estivessem constantemente em rixa, eles nãorepresentavam ameaça para os romanos. Cada facção procurava exercer amáxima influência nas questões cívicas e divulgar as próprias posiçõesreligiosas como as únicas e verdadeiras normas do judaísmo devoto, sem porisso desencadear rebeliões. Ao mesmo tempo, proliferavam outras seitascujos comportamentos iam de um extremo ao outro: alguns se retiravam nasolidão ascética para se dedicar exclusivamente à vida espiritual, outrospreferiam adotar a violência como suporte das próprias convicções.

O Evangelho não descreve em detalhes a cerimônia do batismo, mas limita-se a dizer que João

batizava com água.

O batismo de JesusUm dia – o Evangelho de João diz que foi no dia seguinte àquele no qualchegaram de Jerusalém sacerdotes e levitas para interrogá-lo –, quando estavapregando, João viu um homem que se aproximava, olhou para ele e anunciou:“Eis aquele do qual eu disse”, gritou João, “depois de mim vem um homemque me precedeu, porque antes de mim ele era.” Mateus narra que, quandoJesus pediu para ser batizado, João ficou assombrado e queria impedi-lo. “Eué que preciso ser batizado por ti, dizia, e és tu que vens a mim?”, perguntou,confuso. “Deixa, agora é assim que nos convém cumprir toda a justiça”,responde Jesus.

E assim João celebrou o rito. Quando Jesus saiu da água, como relata oEvangelho de Marcos, ele viu “os céus rasgaram-se e o Espírito como umapomba descer sobre si”. E dos céus veio uma voz: “Tu és o meu filho bem-amado, aprouve-me escolher-te.” Era chegada a hora de Jesus.

Aquele evento constitui, de fato, o início do ministério público de JesusCristo.

Jesus se dirige à multidão aglomerada às margens daquela pequena baía do mar da Galileia.

A missão do Messias

Na palavra e nos trabalhos, Jesus lançava um desafio a muitastradições entre as mais respeitadas daquela terra, atraindo, assim, a

atenção de seus conterrâneos. Alguns viam nele um mestrecarismático, outros o líder que encarnava a oposição ao domínio

romano; aos olhos de um pequeno núcleo de crentes, porém, ele erao Redentor enviado por Deus.

Bem perto das águas frescas do Jordão erguem-se as impenetráveiscadeias de montanhas do deserto. Nessa hostil estepe da Judeia, Jesus seretirou para orações e jejum, passando o mesmo número de dias que Moiséssobre o monte Sinai, onde este recebera de Deus os Dez Mandamentos. Atradição impunha aos hebreus o jejum como penitência, mas Jesus quisprivar-se de alimentos por seis semanas com o objetivo de reforçar o espírito.

A austeridade do deserto revelava a antiga crença de que a voz de Deuspoderia ser ouvida com mais clareza entre as montanhas. No entanto,conforme outra crença antiga, também os espíritos malignos frequentavam asáridas estepes do deserto. De fato, ao fim de quarenta dias, conta o Evangelhode Mateus, Satanás transformou-se em pessoa para tentar o jovem esfomeadoe esgotado pelas privações. Predominavam como fundo para a tentação talvezas encostas da montanha Gebel Qarantal, de cerca de 400 metros de altitude,localizada a noroeste de Jericó. Lá embaixo, o solo é estéril e arruinado porpedras acastanhadas, semelhantes a grandes pães. Mas Jesus resistiu àtentação de transformá-las em pão; ao contrário, replicou ao maligno compalavras que exprimem o Deuteronômio (8, 3): “Nem só de pão vive ohomem, mas que ele vive de tudo o que sai da boca do Senhor.”

Depois, Jesus recobrou-se, transportado para cima da cumeeira dotemplo de Jerusalém. Segundo Flávio Josefo, seria impossível desviar o olhardo topo da torre até o precipício do vale de Cedron sem sentir vertigens. SeJesus pulasse, como aconselhou o demônio, os anjos de Deus correriam para

apanhá-lo e pô-lo em segurança. Mas novamente Jesus resistiu à tentação,citando o Deuteronômio (6, 16), que adverte para que não se ponha Deus àprova. Novamente no deserto, o demônio levou Jesus “para uma montanhamuito alta” – ainda, talvez, o Gebel Qarantal – “e mostra-lhe todos os reinosdo mundo”, convidando-o a assumir o poder sobre eles como imperador.“Tudo isso te darei se, prostrando-te, me adorares”, sugeriu o demônio. MasJesus respondeu: “Retira-te, Satanás!” (Mateus 4, 8-10)

Ao contar esse episódio das tentações – e qualquer outro acontecimentona vida de Jesus –, tornamos a fazer as narrativas que dela nos dão os quatroEvangelhos. Estes, escritos nas últimas décadas do século I, são testemunhosda fé de Jesus como Messias e Filho de Deus. Os textos sagrados sãodiferentes entre si sob muitos aspectos, e por isso desde suas origens a Igrejacristã revelou-se resistente em reconhecer a autoridade de apenas um emdetrimento dos outros. Por exemplo, cada Evangelho traz uma impressãodiferente em relação às tentações do deserto. Os Evangelhos de Mateus eLucas reproduzem a história em detalhes, mas invertendo a ordem dasegunda e terceira tentações. O Evangelho de João não fala delas comminúcias.

Os evangelistas acreditam demonstrar a fidelidade de Jesus aosmandamentos de Deus da forma como aparecem expostos no AntigoTestamento. Confirmam, além disso, o poder de Jesus ao encarar as forças domal presentes no mundo e vencê-las. Eles proclamam ainda que o ministériode Jesus não possuía natureza política nem aspirava à glória pessoal, masbaseava-se na confiança em Deus e na submissão a seus desígnios.

Depois das tentações, Jesus não permaneceu no deserto para esperar amultidão e incentivá-la a purificar a alma para a chegada iminente dojulgamento divino, como fazia João Batista. Ao contrário, ele percorreu asaldeias e cidades para transmitir sua mensagem às pessoas mais humildes.

Os primeiros anos de pregaçãoSegundo Lucas, Jesus estava com cerca de 30 anos quando iniciou seuministério. Além desse particular, nada sabemos sobre os aspectos físicos deJesus. Os judeus consideram pecaminosa qualquer reprodução das formashumanas, por isso nenhum retrato de Jesus foi difundido entre seusconterrâneos. As primeiras tentativas de descrevê-lo remontam ao século IIIa.C., quando os padres da Igreja decidiram que o aspecto de Jesus era o deuma pessoa modesta e afável, repetindo Isaías (53, 2), segundo o qual oServo de Deus “não tinha nem aspecto, nem imponência tais que onotássemos nem aparência tal que o procurássemos”. Mas no século IV, paraos escritores cristãos, influenciados pelo esteticismo greco-romanoidealizado, Jesus possuía aspecto cativante, citando o Salmo 45, 3: “Tu és omais belo dos homens (…)”. Obviamente, não há provas para sustentarnenhuma das duas hipóteses. Sabemos apenas que Jesus era um hebreu daGalileia e é justo imaginar que tenha se parecido com tantos outros homensgalileus de seu tempo: barbudo, de túnica, manto e sandálias.

Não há clareza em relação ao que tenha feito Jesus ao longo de váriassemanas no início de seu ministério, visto que os Evangelhos divergem sobreesse ponto. Segundo o Evangelho de João, no lado leste do Jordão, ondeestava sendo batizado, Jesus chamou seus primeiros discípulos: um homemdo qual não sabemos o nome (talvez João) e o pescador André, vindo daGalileia para ouvir os ensinamentos de João Batista.

(A palavra “discípulo” significa estudante, aprendiz ou seguidor.) Essesdois primeiros discípulos seguiram imediatamente Jesus ao pressentirem suaextraordinária espiritualidade. Quando André apresentou ao mestre seu irmãoSimão, Jesus percebeu no mesmo instante o seu caráter e o chamou Pedro,que significa precisamente “pedra”. Para os hebreus, era um gesto especialatribuir a alguém um novo nome – como no Livro do Gênesis, Deus haviamodificado o nome de Abrão para Abraão e de Jacó para Israel – e indicavaque tal pessoa havia sido escolhida para uma missão divina.

Após o encontro com Pedro, segundo o Evangelho de João, Jesusdecidiu ir para a Galileia e convidou Filipe, de Betsaida, cidade natal deSimão Pedro, e Natanael, de Caná, para segui-lo.Pela versão de Lucas, noentanto, Jesus iniciou seu ministério ensinando nas sinagogas da Galileia.Mas ele não se limitou a pregar nas sinagogas: andou entre as pessoascomuns. Para alguns ele pede maior empenho do que simplesmente ouvirsuas palavras, e talvez tenha sido nesse momento que ele tenha dito a seusdiscípulos pescadores que o seguissem e se transformassem em “pescadoresde homens”.

Da parte dos discípulos não houve hesitação. Tiago e João responderamao chamado prontamente, abandonando o pai Zebedeu no barco com seusempregados. Esses pescadores largaram seu trabalho para seguir Jesus, poisconsideraram, como é fácil imaginar, um discreto padrão: suas consideraçõescomuns caíram diante da convicção de que realmente “o reinado dos céusaproximou-se”.

Em Cafarnaum e redondezasCafarnaum – cidadezinha à margem de uma baía, com 5.000 a 6.000habitantes –, como base do novo ministério, passou a ter prevalência dehebreus. Situada ao longo de uma das principais estradas comerciais entreDamasco e Alexandria – talvez até a fronteira entre os territórios de HerodesFilipe, a leste, e as áreas governadas por Herodes Antipas –, a cidade eracertamente mais cosmopolita que Nazaré. Jesus estabelece sua segundaresidência provavelmente na casa de Pedro.

Jesus, por certo, pregou várias vezes nas sinagogas locais e desse modoconseguiu sua reputação como mestre tão querido. Segundo Marcos (1, 22),as pessoas ficavam admiradas “com o seu ensinamento, pois ensinava comoquem tem autoridade e não como escribas”. Por alguns meses, Jesuscontinuou suas lições na sinagoga de Cafarnaum e arredores. Mas, graças aoutra característica de seu ministério – o poder de curar os doentes e ospossuídos pelo demônio –, a sua fama rapidamente se alastrou pela região. Éprovável que tenha sido sua reputação como curador que atraiu as multidõesdescritas pelos Evangelhos.

Jesus não ia à procura dos doentes, não era necessário. Suadisponibilidade para socorrê-los, numa sociedade que conhecia bem poucosremédios eficazes, era suficiente para espalhar sua fama. As pessoasjuntavam-se em massa para ouvi-lo. Às vezes havia uma multidão tão grandeque ele era obrigado a se afastar num barco na baía. Para Jesus, esse tipo deministério era a prova patente do amor de Deus pelo homem.

Enquanto esteve na cidade de Caná, conta João, um funcionário militarse dirigiu a Jesus tomado pelo desespero: seu filho estava morrendo emCafarnaum. Com confiante autoridade, Jesus lhe disse: “Vai, teu filho vive.”Quando o funcionário chegou em casa no dia seguinte soube que a febre dorapaz havia acabado no momento em que Jesus pronunciava aquelas palavras.

Em outra ocasião, na sinagoga de Cafarnaum, enquanto Jesus ensinava,uma pessoa possuída pelo demônio começou a gritar: “Ah, que há entre nós e

ti, Jesus de Nazaré? Vieste para nos perder.” Reconhecendo nessaconfirmação de sua missão divina o desafio de um ser demoníaco, Jesusordenou: “Cala-te, abandona esse corpo!” (Lucas, 4, 33-36). As convulsõesdo homem terminaram e ele saiu de lá curado. Para os presentes, essa foi aprova do poder de Jesus sobre as forças do mal.

Mais tarde, durante essa mesma jornada milagrosa, Jesus estava para sesentar à mesa na casa de Simão Pedro quando lhe disseram que a sogra dePedro estava ardendo em febre. Segundo Lucas, tão logo Jesus tocou na mãoda mulher, a febre cessou e, retomando os hábitos domésticos, ela se levantoue se pôs a servir a refeição do sábado aos hóspedes.

As curas milagrosas, no entanto, não eram desconhecidas no tempo deJesus. Seja nos círculos judaicos ou nos helenísticos, acreditava-se que oshomens santos ou inspirados pela divindade possuíam poderes para realizarcuras milagrosas. Além disso, muitos judeus eram particularmente sensíveis aessas ações, pois estavam convencidos de que antes da salvação nacionalchegariam os prodígios.

No entanto, a narrativa sobre as curas feitas por Jesus mostra-seextraordinária em muitos pontos. Nenhum outro contemporâneo de Jesuspossuía fama de curar tão grande quantidade de doenças, da cegueira àparalisia e à lepra, restabelecendo até uma orelha cortada por espada. OsEvangelhos mencionam três casos em que Jesus ressuscitou um ser humano.Mas ele não recorria a fórmulas mágicas ou a rituais obscuros, como outroscuradores. Mais que repetir orações e invocar o poder de Deus, Jesusfrequentemente estimulava a fé do doente ou de quem fosse até ele. Alémdisso, não curava por dinheiro.

A escolha dos 12 ApóstolosUm dia após os milagres de Cafarnaum, Jesus procurou o isolamento, indoantes do amanhecer para um lugar retirado. Segundo Marcos, quando SimãoPedro e alguns amigos o encontraram para contar-lhe que as pessoas oprocuravam, Jesus negou-se a voltar atrás. “Vamos alhures às aldeiasvizinhas, para eu pregar também lá”, explicou a eles, “para isso, na verdade, éque eu vim.”

Como sugere esse comentário, para Jesus havia chegado o momento dereunir ao seu redor um pequeno grupo de seguidores. Concentrando-se naGalileia, uma região de aproximadamente 40.000 km2 com cerca de 300 milhabitantes, Jesus escolheu 12 homens entre seus discípulos para torná-losApóstolos e enviá-los a outros lugares como emissários de seu ministério. (Otermo “apóstolo” é grego e significa “enviar”.) O número de apóstoloscorrespondia ao das tribos de Israel, talvez para enfatizar que o ministério deJesus era dirigido antes de tudo à restauração do povo de Israel.

Em suma, os apóstolos pertenciam à mesma classe social de Jesus:pobres, mas não necessitados, visto que todos possuíam uma ocupação ouprofissão. Esses homens se dedicaram a Jesus, como faziam tradicionalmentetodos aqueles que decidiam seguir um mestre. Os alunos de um rabino cedoaprendiam tanto com os atos quanto com as palavras do mestre, e esperava-seque estivessem em condições de absorver seus ensinamentos integralmente“como um reservatório, revestido com argila, que não deixa escapar uma gotade água”.

No entanto, havia pelo menos duas diferenças fundamentais entre seguirJesus e desenvolver o aprendizado ao lado de um mestre tradicional. Antes detudo, os apóstolos haviam sido escolhidos, diferentemente dos discípulos que,segundo a Torá, “escolhiam um mestre”. Além disso, Jesus não baseava seuensinamento na explicação rigorosa da Torá, nem havia alcançado suaposição influente por conhecimentos recebidos de outros mestres. Eleafirmava que sua autoridade era proveniente de sua capacidade de interpretar

os desígnios de Deus. Esta era uma diferença fundamental que parecia, aosolhos de muitos hebreus tradicionalistas, a coisa mais difícil de ser aceita.

A tarefa dos 12 apóstolos, no entanto, não era simplesmente teórica.Esses homens puseram de lado os prazeres mundanos, largaram suasprofissões, as ligações familiares, o casamento e todas as posses materiais.Por fim, aceitaram partilhar perigos, privações e humilhações por suafidelidade a Jesus.

No momento da escolha dos 12 apóstolos, na Palestina vibrava no ar umentusiasmo iminente de alegria e vitória. A multidão entusiasmada aumentavadia a dia, procurando-o aonde ele fosse. Um grupo numeroso de pessoasseguia Jesus, outro os apóstolos e, graças aos costumes de então, boa partedelas eram mulheres. Segundo Lucas (8, 2-3), o esteio financeiro para asviagens de Jesus e dos 12 apóstolos era fornecido por um grupo de mulheres,entre as quais Joana, a esposa do administrador de Herodes Antipas, Susana,e Maria Madalena, da qual Jesus expulsou sete demônios. (Segundo atradição, Maria Madalena seria a pecadora que lavou os pés de Jesus com aspróprias lágrimas e os enxugou com os cabelos, mas não há provas a esserespeito: é quase certo que tenham sido duas mulheres diferentes.) ParaMarcos (15, 40-41), um grupo de mulheres seguia Jesus por toda a Galileia edepois o acompanhou a Jerusalém. Marcos menciona Maria Madalena,Maria, mãe de Tiago e de José, e Salomé. Para um mestre dessa época, eraalgo espantoso ter mulheres como seguidoras; mesmo esse simples fatocontribui para ressaltar a natureza particularíssima do ministério de Jesus.

Os 12 apóstolos

“Naquele dia Jesus foi para a montanha pregar e passou a noite emorações. Quando amanheceu, chamou seus discípulos e deles escolheu 12,aos quais deu o nome de apóstolos” (Lucas 6, 12-13). Apesar de formaremum grupo heterogêneo, os Doze eram unidos em seu amor por Jesus e,exceto Judas Iscariotes, no empenho de difundir a mensagem evangélicapara a humanidade. Ei-los, um por um:Pedro. Simão, o pescador galileu,recebeu de Jesus o nome de Pedro, “a pedra”. Os Evangelhos ressaltam suaespecial posição no interior da comunidade dos Doze e na futura Igreja, asua generosidade e entusiasmo. Foi o primeiro a declarar sua fé em Jesus,mas durante o julgamento do mestre negou por três vezes conhecê-lo. Nanova Igreja, Pedro desenvolveu seu apostolado principalmente entre osjudeus. Segundo a tradição, Pedro foi crucificado de cabeça para baixo naRoma de Nero.André. Irmão de Pedro, também era pescador. Os irmãoseram de Betsaida. Pela tradição, ele teria ido pregar em Sízia, onde foicrucificado em uma cruz em X (a cruz de Santo André).

Tiago, filho de Zebedeu. Pescador também, Tiago abandonou suaprofissão, com o irmão João, para seguir Jesus. Quando alguns habitantesde uma região da Samaria se negaram a hospedar Jesus, Tiago e Joãoperguntaram ao mestre se podiam invocar o fogo dos céus para destruir aagregação. Segundo Marcos (3, 17), Jesus chamou-os de “filhos dotrovão”. Tiago, João e Pedro eram os discípulos mais próximos de Jesus.

João. Irmão de Tiago, João talvez tenha sido o discípulo “que Jesusamava”, como mencionou o seu Evangelho, e aquele ao qual Jesus, dacruz, confiou a mãe. Paulo definiu João, assim como Pedro, como um dos“pilares” da Igreja de Jerusalém. Provavelmente ele foi o autor, ou a fonteprimária, do quarto Evangelho e das Epístolas de João; mas, pelo sensocomum, não é o autor do Livro do Apocalipse. Segundo a tradição, morreubem velho.

Filipe. Como Pedro e André, Filipe era de Betsaida. Na Última Ceiaele disse a Jesus: “Senhor, mostre-nos o Pai”, ao que Jesus respondeu:“Quem me viu terá visto o Pai.” Segundo a tradição, Filipe pregou oEvangelho em várias partes do mundo.

Bartolomeu. O apóstolo com esse nome em Mateus, Marcos e Lucastalvez seja o Natanael do Evangelho de João. Alguns estudiosos têm aconvicção de que Bartolomeu (“o filho de Tolmai”) seria o nome defamília do apóstolo. Segundo João, Felipe disse a Natanael que Jesus eraaquele sobre o qual escreveram Moisés e os profetas. Natanael respondeu:“De Nazaré não pode nunca vir alguma coisa de bom?” Diz a lenda queBartolomeu difundiu o Evangelho na Índia e na Grande Armênia, ondemorreu como mártir, torturado e decapitado.

Mateus. Cobrador de impostos, Mateus abandonou o posto quandoJesus passou diante de sua banca um dia em Cafarnaum e lhe disse:“Segue-me!” Como outros hebreus que cobravam impostos para osromanos, Mateus provavelmente era desprezado por seus conterrâneos. Onome Levi também é atribuído a este apóstolo no Evangelho de Marcos eLucas. Quando participava de um banquete na casa de Mateus, Jesus foicriticado porque frequentava “publicanos e pecadores”; ele respondeu:“Não vim para chamar os corretos, mas sim os pecadores.” Mateus éconsiderado pela tradição como autor do Evangelho que leva seu nome.

Tomé. Chamado “Dídimo” (“o gêmeo”) no Evangelho de João, Tomédeclarou-se pronto para seguir Jesus na Judeia e arriscar-se na vida comele, mas só acreditou que Jesus havia ressuscitado depois de tê-lo visto empessoa. Segundo a tradição, Tomé difundiu o Evangelho na Índia, onde foimartirizado.

Tiago, filho de Alfeu. Este talvez seja o Tiago mais novo citado noEvangelho de Marcos (15, 40), para distingui-lo do irmão de João.Segundo uma tradição muito ambígua, ele é “Tiago, o irmão do Senhor”(Gálatas 1, 19), sucessor de Pedro como líder dos cristãos de Jerusalém,

apedrejado em 62.Simão, o Zelota. Não há nada sobre ele nas Escrituras, além de ter

sido um dos Apóstolos. O adjetivo “zelota” indica que era zeloso emrelação à lei judaica. Talvez fizesse parte de um grupo de hebreus zelotasque enfrentaram o domínio romano. Em Mateus e Marcos ele é chamadode Simão, o Cananeu (“zelota” em aramaico).

Judas, filho de Tiago. Este provavelmente seja o Tadeu dosEvangelhos de Mateus e Marcos, alcunhado apóstolo para que não fosseconfundido com Judas Iscariotes. No Evangelho de João, Judas perguntoua Jesus, durante a Última Ceia, por que ele não havia se manifestado para oresto do mundo como tinha feito com seus discípulos. A tradição o vinculaestreitamente a Simão, o Zelota, e parece que foram ambos pregar naPérsia, onde foram martirizados.

Judas Iscariotes. O sobrenome de Judas, o traidor, significa talvez“originário de Keriot”, indicando que era o único apóstolo nascido fora daGalileia (Keriot fica na Judeia). Judas era o tesoureiro do grupo e, segundoo Evangelho de João, desonesto. Traiu Jesus por dinheiro, denunciando-oaos inimigos com um beijo. Segundo Mateus, quando já era tarde, Judastentou libertar Jesus; depois, em desespero, enforcou-se na propriedadeque adquirira com a quantia recebida pela delação. Segundo os Atos dosApóstolos (1, 18), essa propriedade depois foi chamada de “campo desangue”.

A visita a NazaréA certa altura, durante uma pregação na Galileia (demonstrada pelosEvangelhos em épocas diferentes), Jesus foi a Nazaré, a aldeia onde crescera.Certamente, sua fama havia chegado antes, pois as notícias se espalhavamcomo um relâmpago pela Palestina, e aparentemente as narrativas sobre asobras desse jovem da aldeia haviam provocado admiração e desconfiançaentre todos os que o conheciam. Inclusive, enquanto falava na sinagoga local,conta Marcos (13, 55-56), alguns conterrâneos seus murmuravam entre si:“Não é ele mesmo, o filho do carpinteiro? Sua mãe não se chama Maria eseus irmãos Tiago, José, Simão e Judas? E as suas irmãs não estão entre nós?De onde vêm, pois, todas essas coisas para ele?” O pavor diante dosensinamentos de alguém que acreditavam conhecer bem se transformourapidamente em ódio, entre os moradores da aldeia, e por fim terminou emindignação. Jesus afastou-se, surpreso com essa descrença.

Pela versão de Lucas sobre esse episódio, os moradores da aldeia foramtomados de tal modo pelo desprezo que se revoltaram em massa e tentaramjogá-lo em um precipício nos arredores. (Essa história talvez tenha seinspirado no ritual de Yom Kippur, em que um sacerdote jogava um bodeexpiatório de um penhasco, como pagamento dos pecados cometidos pelopovo durante o ano.)

Jesus nunca mais voltou às estradas poeirentas de sua infância. Nazarése tornaria símbolo, um aviso dirigido a todos os homens, para sempre ligadaao comovido comentário de Jesus: “Um profeta só é desprezado, pois, em suapátria, entre seus parentes e em sua casa.”

A família de JesusE quem ali era de sua casa? Maria é apenas mencionada na história doministério de Jesus. Segundo a tradição, José morreu antes de Jesus iniciá-lo.Os “irmãos” e as “irmãs” de que falaram os nazarenos na sinagoga nãoaparecem mais bem caracterizados na história; imagina-se que fossem primosou parentes mais distantes. Com efeito, não havia em hebraico palavrasespecíficas para diferenciar os irmãos dos outros membros da parentela.

Havia sido criada uma situação conflitante entre Jesus e algum membrode sua família? É provável que alguns familiares tivessem se unido a outrosconterrâneos numa tentativa de deter Jesus, pois, como diz Marcos, eleparecia “fora de si”. Apesar desses brevíssimos fatos sobre a família de Jesus,a narrativa dos Evangelhos se concentra principalmente na figura do Mestre,e não há absolutamente nada, por exemplo, sobre qual foi o papel de Marianesses anos.

O Sermão da MontanhaJesus continuou a ensinar, abandonando sua missão apenas para ir emperegrinação a Jerusalém e visitar Tiro, Sidônia e Cesareia de Filipe – talvezà procura de alívio para o calor da Galileia ou com o propósito de retirar-setemporariamente em consequência da oposição ao seu ministério. Amensagem de Jesus, na verdade, amedrontava as autoridades por causa daestima de que gozava entre as pessoas comuns. Por quê?

Os ensinamentos carregados de profundo significado que constituem oSermão da Montanha revelam tanto a força quanto o caráter problemático damensagem de Jesus. Para alguns estudiosos, eles fizeram parte de umdiscurso voltado ao público geral. Segundo Mateus, eles foram direcionadosprincipalmente aos discípulos. Decerto os trechos contados por Mateus, quasequatro vezes maiores que os de Lucas (pronunciados por Jesus “num lugarplano”), arriscavam produzir um efeito perturbador sobre a multidão reunidanuma área aberta, que o ouvia pela primeira vez.

Qualquer que tenha sido o verdadeiro cenário histórico – para alguns,uma colina mais elevada voltada para o mar da Galileia –, o Sermão daMontanha encerra em si todos os ensinamentos de Jesus. Cada nova geraçãode cristãos trouxe interpretações diferentes, no entanto; a atenção é semprefocada em pelo menos três pontos, que julgam despertar e reforçar aconsciência individual e sugerir um modelo de vida que exige fé edeterminação espiritual.

Em primeiro lugar, as bem-aventuranças, aquelas rápidas bênçãos que semostram tão paradoxais quando as encontramos pela primeira vez em Lucas.“Abençoados vós, pobres, porque vosso é o reino de Deus. Abençoados vósque têm fome, porque serão saciados” (Lucas 6, 20-21). Com igual forçaressaltam as maldições: “Ai de vós que agora rides, porque ficareis agoniadose chorareis” (Lucas 6, 25). Em Mateus, as bem-aventuranças assumem umaconotação mais espiritual se comparadas à versão de Lucas. (“Bem-aventurados os pobres em espírito [...] Bem-aventurados os humildes porque

herdarão a terra” (Mateus 5, 3-5). Entretanto, os Evangelhos conservamintacto o espírito do paradoxo que os inspira: o reino de Deus, nas palavras deJesus, é o oposto do mundo, da maneira como se apresenta a um simplesmortal. As bem-aventuranças iluminam a mente e o espírito de forma que oindivíduo aceite totalmente os desígnios de Deus em sua vida.

Para impedir que surgissem mal-entendidos sobre sua mensagemprovocativa, Jesus acrescenta que está cumprindo as leis de Deus: “Nãopenseis que eu tenha vindo para anular a Lei e os Profetas; não vim paraanular, mas para dar cumprimento.” Sua interpretação é, ao mesmo tempo,profunda e rigorosa; ela coloca os pensamentos humanos sob a mesma severainvestigação que a antiga Lei aplicou para as ações. Sim, a Lei proíbe ocrime, mas Jesus repreende os homens por não evitarem a ira e o ódio quematam o coração. A Lei pune o adultério; Jesus considera igualmentepecaminosos os pensamentos libidinosos.

As palavras de Jesus obrigavam os atentos ouvintes a reelaborar suasreações mais básicas. Essas advertências se assemelham a pequenossobressaltos que dominam os cômodos parâmetros do pensamento e docomportamento: “Ou melhor, se alguém te bate na face direita, oferecetambém a outra.” E “amai vossos inimigos e rezai por vossos opressores”. Oobjetivo final dos discípulos – talvez inatingível na esfera humana, mas paraperseguir sempre com persistência – era serem “perfeitos como é perfeito ovosso Pai celeste”.

O homem não deve vangloriar-se das próprias vitórias espirituais e nemprocurar reconhecimento público por trabalhos bem-feitos. Até a oraçãoexige uma justa dose de humildade, como observamos no modelo fornecidopelo próprio Jesus com o Pai-nosso.

Jesus recomenda a seus ouvintes que não dediquem sua vida àacumulação de bens materiais. “Não podeis servir a Deus e à mammon”,pregava ele; a palavra semítica mammon significa “riquezas”. É melhorcontar com a providência divina, que nos garante aquilo de que necessitamos:

“Olha os pássaros no céu: não esbanjam, nem plantam, nem mantêm celeiros;contudo, vosso Pai celeste os alimenta. Não entendeis vós, talvez, mais doque eles? E quem de vós, mesmo dedicando-se a fazer, pode acrescentarapenas uma hora à sua vida?” (Mateus 6, 26-27). Jesus estimula seus ouvintesa procurar mais a justiça e o reino de Deus, “e todas essas coisas serão dadasa vós em acréscimo”.

O Sermão da Montanha prossegue com alguns princípios que ilustram asboas ações, dos quais o mais famoso é: “Tudo o que quereis que os homensfaçam a vós, fazei-o também a eles: esta, na verdade, é a Lei e os Profetas”(Mateus 7, 12). A salvação, diz Jesus, será concedida apenas a quem tiverfeito a vontade do Pai celeste.

Jesus terminou o sermão com uma parábola. Aqueles que ouvirem suaspalavras serão como o homem sábio que construiu sua casa sobre sólidarocha: ela resistirá à fúria das tragédias. Mas aqueles que ouvirem as suaspalavras e não tomarem providências serão como o homem tolo que construiusua casa sobre areia, que depressa será destruída pela tempestade.

As parábolas de JesusDurante sua pregação, Jesus muitas vezes usou parábolas, como secostumava fazer nas escolas das sinagogas para investigar os significadosmais profundos das Escrituras. As parábolas de Jesus abrangem uma vastagama de metáforas e comparações, que variam de poucas palavras a longashistórias. Para muitos ouvintes, sem dúvida, estas não passavam de narrativasfictícias, mas para os próximos de Jesus elas se transformaram em revelaçõesque os animavam a avaliar sua compreensão em relação a Deus e a sipróprios.

Pode-se entender, talvez, a importância de que se revestiam as parábolasaos olhos de Jesus, revelando como tratava o tema “reino de Deus”. Ele usoucomo recurso uma infinidade de parábolas para que seus seguidorespudessem entender o que seria o “reino de Deus”, e o que havia sido; entreelas há a parábola mencionada por Mateus (13, 44-46): “O reino dos céus éparecido a um tesouro escondido num campo; um homem o encontra e oesconde novamente; depois, cheio de alegria, vende todas as suas posses ecompra aquele campo. O reino dos céus é semelhante a um mercador que vaià procura de pérolas preciosas; encontrada uma de grande valor, ele vendetodas as suas posses e a compra.”

Obviamente, é inútil parar para perguntar se aquele que descobriu otesouro devia ao menos avisar aos proprietários do campo sobre taldescoberta. Jesus, na verdade, não fala nem de campos nem de pérolas; elemenciona até a descoberta de um valor tão grande que o homem se dispõe arenegar seu passado (vende todas as suas posses) e iniciar um novo caminho(adquirido com satisfação).

A morte de João BatistaDurante os primeiros anos de pregação de Jesus, João Batista havia sidopreso por ordem de Herodes Antipas, que via nele uma ameaça, na fortalezade Maqueronte, a leste do mar Morto. A certa altura, a fé do prisioneiroparece enfraquecer, ou talvez ele tenha dado ouvidos a seguidores quepunham em dúvida as ações de Jesus. (Ele não impunha o jejum a seusdiscípulos, por exemplo, como fazia João.) Não sabemos os motivos de João,mas apenas que ele esteve em condições, mesmo da cela de sua prisão, deenviar dois de seus seguidores à procura de Jesus na Galileia e perguntar-lhe:“Tu és aquele que virá ou devemos aguardar um outro?”

A pergunta talvez tenha surgido da natureza fundamentalmente diferenteentre o ministério de Jesus e o de João Batista. Embora Jesus considerasseseu ministério absolutamente ligado ao de João, ele sabia que havia seguidopor um caminho diferente para cumpri-lo. Segundo Lucas (7, 33-35), eledisse: “Chegou, de fato, João, o Batista, que não come pão nem toma vinho, evós dizeis: ele tem um demônio. Chegou o Filho do Homem que come ebebe, e vós dizeis: eis aqui um comilão e um beberrão, amigo dos publicanose dos pecadores. Mas à sabedoria foi restituída justiça por todos os seusfilhos.” Mais que estimular as pessoas a segui-lo pelo deserto à procura dapureza, a exemplo dos monges, Jesus prefere andar pelas cidades e aldeias ese misturar às pessoas que nem de longe poderiam se vangloriar de praticaros princípios divinos; dirige-se ao meio daqueles que eram marginalizados,necessitados e abandonados. A essa altura, apenas um homem de notávelperspicácia poderia imaginar que Jesus fosse de fato “aquele que devia vir”.

Como observamos em Lucas (7, 22-23), Jesus dá uma resposta modestaà pergunta de João Batista: “Ide e contai a João o que vistes e ouvistes: oscegos recuperaram a visão, os aleijados andam, os leprosos foram curados, ossurdos ouvem, os mortos ressuscitaram, aos pobres foi revelada uma boanotícia. E bem-aventurado é qualquer um que não for ofendido por mim.”

João suportou a prisão por dez meses. Depois, segundo Flávio Josefo,

Herodes Antipas mandou assassiná-lo, afirmando que ele era o líder de umasublevação. Também Jesus corria o risco de terminar vítima de uma acusaçãosemelhante: na verdade, graças à sua extraordinária fama, podia ser acusado,como João, de organizar uma rebelião contra a autoridade de Herodes.

Os Evangelhos de Mateus e Marcos, no entanto, contam uma históriamais fascinante sobre o fim de João Batista. A esposa de Herodes Antipas,Herodíades, odiava João porque ele a havia denunciado como adúltera.Durante um banquete, a sua atraente filha Salomé dançou diante de Herodes.Segundo a tradição, a mocinha se apresentou com uma dança exótica típicadas culturas nômades do Oriente Médio, oferecendo um espetáculo deagilidade, graça e sutil erotismo. Fascinado, Herodes jurou que lhe dariaqualquer coisa que pedisse. Persuadida pela mãe, Salomé respondeu: “Dê-me, sobre uma bandeja, a cabeça de João Batista” (Mateus 14, 8). Mesmocom culpa, Herodes manteve a promessa.

Certamente o martírio de João gerou grande alvoroço. E talvezexatamente essa notícia tenha feito Jesus se afastar por um pequeno período;na verdade, procurou abrigo nos domínios de Herodes Filipe.

O milagre da multiplicação dos pãesMateus, Lucas e Marcos, após a morte de João, relatam o milagre damultiplicação dos pães e peixes. O Evangelho de João traz o episódio umpouco antes da Páscoa. Jesus procurou um momento de tranquilidade, longeda multidão de Cafarnaum, navegando para um lugar solitário com algunsdiscípulos. Enquanto a embarcação se aproximava das margens, porém,perceberam que muitas pessoas o aguardavam lá.

O dia começou como tantos outros: Jesus pregava, ensinava e curavadoentes. Talvez essa jornada tenha sido particularmente fascinante paratodos, pois somente no calar da noite alguém se deu conta de que a situaçãohavia se tornado problemática. Milhares de pessoas haviam se amontoado nocampo para ouvir Jesus e tinham fome; os únicos alimentos naquele momentose resumiam a cinco míseros pãezinhos e dois peixes. Essa quantidade nãoera suficiente, mas Jesus disse aos Doze para fazer sentar-se as pessoas. Emseguida, abençoou o alimento, partiu os pães e os distribuiu entre osesfomeados. Havia em torno de 5.000 pessoas com fome e os restos aindaencheram 12 cestas. Essa surpreendente história é interpretada por algunscomo uma parábola em ação, para demonstrar que Deus, tendo criado todasas espécies vivas da Terra, continua a fornecer-lhes sustento. E também comoum símbolo da Eucaristia.

A missão dos discípulosO milagre da multiplicação dos pães e dos peixes sugere, além disso, que osdiscípulos já tinham aprendido as tarefas práticas relativas a seu papel,compreendido a capacidade de administrar a multidão. Bem rápido, naverdade, foram-lhes atribuídos deveres mais delicados. Jesus ordenou-lhesque fossem dois a dois por toda a região estimular todos ao arrependimento edivulgar que o reino de Deus estava próximo. Após receberem o poder decurar doentes e expulsar demônios, esses discípulos iniciavam assim umaespécie de aprendizado.

Jesus se mostrava muito determinado sob um aspecto de seusensinamentos. Os viajantes daqueles tempos tinham o hábito de carregar umamuda de roupas e sandálias, uma bengala, comida e uma certa quantia emdinheiro. Mas, segundo Marcos, Jesus ordenou a seus discípulos quecarregassem apenas uma bengala para peregrinar e as sandálias e a túnica quevestiam. Na narrativa de Mateus, até as sandálias e a bengala foramexcluídas: eles deviam viajar sem outros recursos que não a mensagem paradifundir entre as pessoas. Jesus os estimulou a aceitar a hospitalidade daspessoas caridosas; se, ao contrário, fossem rejeitados, disse-lhes: “ao sairdesda cidade deles, sacudi a poeira de vossos pés como testemunha contra eles”.

Não sabemos como foi recebida essa primeira missão: podemos apenasdeduzir que tenha gerado alvoroço pela grande preocupação demonstradacontra Jesus por Herodes Antipas, que nunca tinha ouvido falar dele, nem ovisto. Parece que Herodes havia sido informado de que esse arrebatador dopovo era João Batista ressuscitado. Embora bem diferente de João em muitosaspectos, tanto Jesus quanto seus discípulos estimulavam Israel aoarrependimento, como fizera João, deixando evidente ao povo a exigência deviver como súdito do reino de Deus, em vez do tetrarcado de Herodes. Esteconhecia a repercussão política que uma mensagem desse tipo ameaçavadesencadear, pois, na prática, todos os movimentos políticos em Israel tinhamraízes na religião. A imagem da Lei justa e poderosa de Deus transmitia

implicitamente a crítica ao governo romano, ao qual os galileus estavamsubmetidos.

Jesus, o MessiasCom o passar do tempo, Jesus começa a dar mais valor à atuação de seusdiscípulos, apesar de também eles, como os seus inimigos, encontraremmuitas dificuldades em aceitar a sua inversão dos valores religiosos comuns.Em um dos episódios mais comoventes do Novo Testamento, Jesus leva seusdiscípulos a um local afastado para um encontro particular longe da Galileia,na região de Cesareia de Filipe. Talvez esse tenha sido um dos primeirosencontros depois da missão dos discípulos; a conversa coloca em discussãoestratégias de relacionamento. Segundo Mateus (16, 13), Jesus perguntou:“As pessoas disseram que eu sou o Filho do Homem?” (Para Marcos, 8, 27,ele pergunta diretamente: “Quem disse às pessoas quem eu sou?”) Levandoem consideração as expectativas do povo e a convicção de alguns discípulos,para os quais ele seria o libertador, misteriosamente ninguém o chamava deMessias. Corria o boato de que o Messias seria João Batista, Elias, Jeremiasou um filho de outro profeta.

Logo a seguir, Jesus se concentrou na opinião dos próprios apóstolos:“Vós dissestes quem seria eu?” Pedro respondeu imediatamente com umacurta, mas expressiva, confissão de fé em Jesus: “Tu és o Cristo, o Filho deDeus vivo” (Mateus, 16, 16). (“Cristo” é um nome grego que significa“ungido”, “bálsamo”, e é sinônimo do hebraico “messias”.) Jesus declaraPedro “bem-aventurado” por ter reconhecido essa verdade, pois somenteDeus poderia tê-la revelado. Em seguida, falando sobre o significado donome “Pedro”, Jesus continua: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra construireiminha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão sobre ela. Darei a ti aschaves do reino dos céus, e tudo o que tenha conquistado na Terra seráconquistado nos céus, e tudo o que tenha escolhido na Terra será escolhidonos céus.” Essas palavras serão fundamentais para a definição do papel dePedro na Igreja. Jesus, por último, determina aos discípulos que mantenhamem segredo sua identidade naquele momento.

O que faltou na confissão de Pedro foi revelado nas palavras seguintes

do Evangelho: “Desde então Jesus começou a dizer abertamente a seusdiscípulos que deveria ir a Jerusalém para sofrer [...] e ser morto e ressuscitarno terceiro dia” (Mateus, 16, 21). Associar a ideia do Messias com ossofrimentos e a morte era algo completamente estranho à mentalidade dosdiscípulos, e Pedro, depois de puxar Jesus para o lado, repreendeu-o por teraventado tal possibilidade. “Fica longe de mim, Satanás!”, responde Jesus,com uma expressão que faz lembrar as tentações do deserto. Então Jesusdisse a seus discípulos: “Se alguém quiser vir atrás de mim, renegue a sipróprio, pegue sua cruz e me siga.”

A transfiguração de JesusCerca de uma semana depois, um pequeno grupo de fiéis fez um gesto quereforçou ainda mais a fé já expressa por Pedro. Jesus leva Pedro, Tiago eJoão “para uma alta montanha”. Enquanto Jesus estava em pé diante deles,concentrado na oração – conta Mateus –, seu aspecto físico sofreu umatransformação: o rosto brilhava como o sol, suas roupas ficaramavermelhadas com a luz. Subitamente – dizem Mateus, Marcos e Lucas – ostrês discípulos viram dois personagens que se dirigiam a Jesus e falavam comele: Moisés, que havia entregado aos hebreus a Lei de Deus, e Elias, oprotótipo de profeta do Antigo Testamento.

Pedro, impaciente e impulsivo como sempre, propõe construir cabanaspara os três; talvez pensasse nos abrigos temporários organizados durante afesta de Sukkot. Enquanto ainda falava – diz Mateus (17, 5) –, “uma nuvemluminosa aproxima-se com sua sombra. E, eis que uma voz diz: ‘Este é meufilho predileto, com o qual me contento. Escutai-o!’” A nuvem se evapora e avisão desaparece. Jesus novamente avisa aos apóstolos que não digam nadasobre esse acontecimento “enquanto o Filho do Homem não tivesseressuscitado da morte”. Os discípulos não faziam ideia do que dizia seumestre.

A viagem para JerusalémPouco tempo depois, Jesus deixou para sempre a Galileia. Aquela regiãohavia sido cenário de seus mais famosos sermões e dos mais extraordináriosmilagres, mas havia chegado o momento de um novo e último enfrentamento.E, assim, “dirige-se firmemente a Jerusalém”, diz Lucas, porque estavaconvencido de que um profeta deveria “morrer” somente naquela cidade. Dagenerosa terra da Galileia ele leva os discípulos à rochosa Judeia, onde ocoração daqueles que o combatiam se revelaria duro como a impiedosa terraem que moravam. Aproveitamos um esboço desse dramático itinerário emMarcos (10, 32): “Enquanto estavam viajando para chegar a Jerusalém, Jesuscaminhava na frente deles e eles estavam admirados; aqueles que vinhamatrás estavam completamente aterrorizados.” No ar pairava um medo quasepalpável, mas o passo decisivo de Jesus os arrastava para o perigo.

Ao longo da estrada, no entanto, Jesus continuou a ensinar à multidãoque se amontoava onde quer que ele aparecesse. A certa altura, foram levadasaté ele também duas crianças, para que as tocasse. Quando os discípulostentaram intervir, Jesus indignou-se e lhes disse: “Deixai que as criançasvenham a mim e não as impeçais, porque para quem for como elas pertence oreino de Deus. Em verdade, vos digo: quem não recebe o reino de Deus comouma criança não entrará nele.” E pegou as crianças no colo e as abençoou.

Antes de Jesus partir, um jovem correu a seu encontro e caiu de joelhosdiante dele, perguntando-lhe o que deveria fazer para conseguir a vida eterna.Segundo Marcos, quando Jesus lhe disse que respeitassem os Mandamentos ojovem respondeu que sempre havia feito isso. “Então, Jesus o encarou edisse: ‘Apenas uma coisa te falta: vai, vende tudo o que possuis e dá aospobres, e então terás teu tesouro no céu; depois, vem e me segue.’” Mas ojovem, ao ouvir aquelas palavras, retirou-se aflito, porque era muito rico.Jesus olhou ao seu redor e disse aos discípulos: “É mais fácil um camelopassar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus.”

Ao ouvirem essas palavras, os discípulos de Jesus ficaram perturbados e

atônitos, e perguntaram a seu mestre se ninguém nunca poderia se salvar.Mas Jesus os tranquilizou, dizendo: “Impossível aos homens, mas não aDeus! Porque tudo é possível a Deus.” Pedro, então, lembrou-lhe que seusdiscípulos haviam renunciado a tudo para segui-lo, e Jesus respondeu: “Nãohá ninguém que tenha deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou mãe, ou pai, oufilhos, ou campos por minha causa e por causa do Evangelho, que não recebajá no presente cem vezes em casas, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos e campo,junto a perseguições, e no futuro a vida eterna. E muitos dos primeiros serãoos últimos, e dos últimos, os primeiros”.

Jesus em JerusalémTalvez, como sugere João, Jesus tenha chegado a Jerusalém um pouco antesda festa de Sukkot, no outono; ou, se quisermos seguir a cronologia dosoutros Evangelhos, na primavera, antes da Páscoa. Em todo caso, ele entrouem pleno conflito com fariseus e saduceus.

Esse foi um período de contrastes, segundo João. As pessoasquestionavam: “Como alguém pode conhecer as Escrituras sem terestudado?” Os seus interlocutores exigiam uma resposta precisa: “Se tu és oCristo, diga-nos abertamente.” E a presença desenvolta de Jesus preocupavaas autoridades, como podemos observar em um comentário mencionado porJoão: “Não é este aquele que pretendem matar? Eis que ele fala livremente enão lhe dizem nada. Porventura os chefes reconheceram nele o Cristo?”Parece que em certa ocasião os guardas do Templo, enviados pelos sumossacerdotes e pelos fariseus para prender Jesus, voltaram de mãos vazias: atéeles foram convencidos por suas palavras.

A adúltera e o cegoMuitas vezes os escribas e os fariseus criaram armadilhas para Jesus a fim deinduzi-lo a erro ou a contradição, ou para constrangê-lo a demonstrar suaignorância sobre a antiga Lei. Não apenas jamais conseguiram isso, dizem osEvangelhos, como Jesus sempre esteve em condições de se dedicar a umdebate em uma aula positiva. E ele nunca esqueceu a dimensão humana,como demonstra a história contada por João (8, 1-11), sobre uma mulheradúltera.

Um dia, quando Jesus ensinava no Templo, alguns escribas e fariseuslevaram até ele uma mulher. Para colocá-lo à prova, disseram: “Ela foisurpreendida em flagrante adultério. Moisés, pela Lei, nos manda apedrejarmulheres como esta. O que tu nos dizes?” Era sabido que Jesus sempre semostrava benevolente para com os pecadores, mas, se aconselhasse deixaraquela mulher ir embora, corria o risco de violar a Lei.

Calado, Jesus virou-se, inclinou-se para o chão e começou a escrever napoeira com o dedo. (Alguns textos dizem que ele escreveu “os pecados decada um de vocês”.) Finalmente, Jesus se levantou, fixou o olhar sobre eles erespondeu: “Quem de vós não é pecador? Atire a primeira a pedra contraela.” Emudecidos, um a um os acusadores e curiosos se afastaramlentamente. Foi uma resposta inteligente; e, além disso, a resposta de umhomem que sabia conciliar os princípios da Lei com a compaixão pelospecadores.

Quando Jesus levantou os olhos, viu a mulher parada diante delesozinha, sem dúvida surpresa com aquela imprevista salvação de uma mortedolorosa.

– Mulher, onde estão eles? – perguntou-lhe Jesus. – Ninguém tecondenou?

– Ninguém, Senhor.– E nem eu te condeno – disse-lhe Jesus. – Vai, e de hoje em diante não

peques mais.

Em ocasiões parecidas, os delatores de Jesus não encontravam motivopara acusá-lo. Mas ocorreram outras situações conflitantes, muitas vezesprovocadas pela recusa de Jesus de fazer jejum aos sábados, comointerpretavam os escribas e os fariseus. Certo sábado, Jesus passou diante deum mendigo cego de nascença. Jesus cuspiu na terra, formou um barro com asaliva, espalhou-o sobre os olhos do mendigo e disse-lhe que se purificassena piscina de Siloé. Seguindo as instruções de Jesus, o cego passou aenxergar e, no auge da felicidade, correu para espalhar a notícia de sua cura.A informação chegou aos fariseus, que mandaram prender o mendigo atônito.Eles não admitiam que uma cura tivesse sido feita violando o mandamento deDeus: Jesus havia curado o cego num sábado. Para o Evangelho de João, ocontraste entre os intransigentes princípios da tradição e o esforço em aliviaros sofrimentos humanos não poderia ser mais nítido. Os fariseus viam nomilagre uma violação da Lei, um ato provocativo, não uma novainterpretação da Lei; eles consideravam Jesus um herege, não um curadornuma missão divina.

Apesar de tudo isso, durante aquele ano tão turbulento, Jesus continuoua ensinar em público, até que, pela última vez, tomou a decisão de isolar-separa fortalecer o espírito. Segundo João, ele atravessou o Jordão e por umcerto período ficou na Pereia, região a leste de Jerusalém.

A ressurreição de LázaroEm seguida, conta João, chegou-lhe a notícia de que o seu amigo Lázaro,irmão de Marta e Maria, estava doente. Jesus permaneceu por lá ainda pordois dias e depois disse a seus discípulos: “Vamos novamente à Judeia!” Osdiscípulos manifestaram temor de que Jesus correria o risco de ser apedrejadose pusesse os pés na Judeia. Mas ele falou aos discípulos de modo claro,dizendo que seu amigo Lázaro estava morto e queria ir vê-lo. Dessa vez nãofoi Pedro que falou primeiro, mas Tomé, muitas vezes lembrado por duvidarda ressurreição; ele apoiou a decisão de Jesus com veemência: “Vamostambém nós morrer com ele!”

Todos partiram para a aldeia de Betânia, um pequeno centro na fronteirasul do deserto da Judeia, nas encostas orientais do Monte das Oliveiras.Quando chegaram à cidadezinha, já estavam reunidos os parentes e os amigospara consolar as irmãs. Marta saiu para receber Jesus; Maria, no entanto,estava tão desolada que a irmã foi obrigada a chamá-la e encorajá-la a ir aoencontro de Jesus. Tão logo o viu, ela também se prostrou a seus pés. Jesus secomoveu e chorou; depois, levou todos até o túmulo de Lázaro.

A entrada do túmulo estava fechada por uma grande pedra. Os presentesficaram ainda mais assustados quando Jesus ordenou: “Retirai a pedra!”Marta, a mulher conhecida por seu espírito prático, argumentou que Lázaro jáestava morto havia quatro dias e podia-se sentir o cheiro do cadáver. O corpo,conforme os costumes tradicionais, havia sido lavado com óleos perfumadose enrolado em tiras de linho branco; os judeus não embalsamavam seusmortos. Apesar disso, Jesus insistiu. Depois de ter dirigido uma oração aDeus, ele gritou: “Lázaro, vem para fora!” Ainda envolvido pelas faixasmortuárias, o homem avançou, deparando com a luz do dia. Estava cumpridaa promessa que Jesus havia feito a Marta: se acreditasse, veria “a glória deDeus”.

Logo a seguir, Jesus e seus discípulos foram para Efraim, aldeia isoladasobre as colinas, a cerca de 20 quilômetros a nordeste de Jerusalém.

Entretanto, a ressurreição de Lázaro havia sido contada aos fariseus edesencadeado uma explosão de raiva no Sinédrio. Com milagres desse tipocorria-se o risco de que o povo se sentisse atraído a seguir Jesus em umarevolta e – o que eles mais temiam – até provocar uma intervenção dosromanos. O sumo sacerdote Caifás expressou esses temores, ao dizer: “[...] émelhor morrer apenas um homem pelo povo, e não toda uma nação”. A essaaltura, com as prerrogativas do poder e a preocupação de preservar a ordempública, surgiram questões de máxima urgência.

Portanto, tomou-se a decisão de livrar-se de Jesus rapidamente. SegundoJoão, os sumos sacerdotes e os fariseus promulgaram uma ordem, segundo aqual aquele que soubesse onde estava Jesus devia informá-lo prontamente, demaneira a levá-lo preso. Parecia óbvio às máximas autoridades do Temploque um líder religioso como Jesus não perderia a ocasião de se manifestar nacidade na época das celebrações pascais.

Enquanto se concebiam os planos para sua captura, Jesus preparava osdiscípulos para os ensinamentos futuros. Segundo Lucas (18, 31-33), ele foibastante explícito: “Nós vamos a Jerusalém, e tudo o que foi escrito pelosprofetas em relação ao Filho do Homem se cumprirá. Será entregue aospagãos, ridicularizado, ultrajado, coberto de cuspe e, depois de açoitado, omatarão e, ao terceiro dia, ele ressurgirá.” O mistério da profecia se tornavaainda maior pela enigmática denominação usada por Jesus: “o Filho doHomem”.

O significado dessa expressão ainda hoje é motivo de debates por partedos crentes. Talvez se referisse ao testemunho de uma visão no Livro deDaniel concernente a uma figura celeste que havia recebido “um podereterno”. Talvez Jesus usasse essa denominação para dissipar as noçõespreconcebidas do povo em relação a um Messias. Muitas vezes ele usou aexpressão “Filho do Homem” ao prever a Paixão que o esperava, como sefosse o modo mais rápido para transmitir a ideia de um Messias condenadoao sofrimento e à morte.

A entrada triunfal em JerusalémSeis dias antes da Páscoa, Jesus voltou a Betânia, onde – acontecendo comodissera o evangelista João – a multidão correu para ver tanto Lázaro quantoele. Segundo Mateus, Jesus mandou dois de seus discípulos buscarem umjumento em Betfage, cidade vizinha. Entre a multidão que se reunia emJerusalém para as celebrações pascais corria o boato de que também Jesusestaria presente.

No dia seguinte, uma multidão festiva se juntou ao longo da estrada quelevava à cidade. Alguns estendiam no chão ramos de palmas; outros os seusmantos. Justamente no meio de tanto entusiasmo e alegria apareceu Jesus nodorso do jumento. A atitude era claramente um desafio a todas as autoridadespolíticas de Jerusalém. Jesus, na verdade, segundo Mateus, cumpria apromessa da chegada do Messias manifestada nos versos de Zacarias (9, 9):“Eis que, para ti chega o teu rei. Ele é íntegro e vitorioso; humilde, monta umjumento.”

Esse acontecimento gerou tão grande alvoroço que deixou inquietosmuitos fariseus, sobretudo quando as estradas que levavam à Cidade Santaretumbaram com delirantes gritos como: “Hosana! Bendito aquele que vemem nome do Senhor! Bendito o reino que vem de nosso pai Davi!” Segundouma velha tradição, do século IX, Jesus entrou em Jerusalém pela PortaDourada, ou Bela, que levava diretamente ao monte do Templo.

A purificação do TemploSegundo o Evangelho de Marcos, Jesus, após sua chegada triunfal aJerusalém, entrou no Templo e olhou ao seu redor. Provavelmente viu osmercadores e ambulantes que enchiam os pátios, ocupados, como decostume, em satisfazer os grupos de peregrinos que já invadiam a cidade parafestejar a Páscoa dali a poucos dias. No entanto, como já fosse tarde, Jesussaiu com seus apóstolos e seguiu para pernoitar em Betânia. Mas aindignação com o tráfico e o comércio que prosperavam nos espaços doTemplo talvez já fervilhasse em sua alma.

Na manhã seguinte, quando saía de Betânia, Jesus avistou de longe umafigueira e, como estava com fome, aproximou-se para ver se nela haviafrutos. Mas não era época de figos e a árvore estava carregada apenas defolhas. Irritado, Jesus maldisse a figueira: “Que ninguém nunca mais possacomer teus frutos.” Depois continuou a viagem para Jerusalém. Quandochegou próximo ao Templo, deu livre curso à ira que sentia desde o diaanterior. Começou a expulsar todos os vendedores e compradores e derrubouas mesas dos cambistas e as bancas dos vendedores de pombas para asoferendas, e não permitiu que carregassem coisas para o Templo. Emseguida, começou a ensiná-los e lhes disse: “Por acaso não está escrito ‘aminha casa será chamada casa de oração por todas as pessoas’? Vós, aocontrário, fizestes dela um antro de ladrões!” Os sumos sacerdotes e osfariseus ficaram assustados com esse incidente, mas temiam que o povo serevoltasse contra eles se tentassem prender Jesus. Por isso, limitaram-se aelaborar secretos complôs contra ele, esperando por uma ocasião maispropícia para agirem.

Jesus recomeçou a ensinar no Templo e durante a noite novamente foi aBetânia. Na manhã seguinte, na estrada para Jerusalém, passou ao lado damesma figueira que havia maldito e Pedro o fez perceber que a árvore haviasecado. O episódio possuía em si o valor de uma ação simbólica. Jesus, comefeito, disse a Pedro que a fé era capaz de remover montanhas. “Tudo aquilo

que pedis na oração”, disse a ele Jesus, “tende fé de haver de consegui-lo eele vos será concedido. Quando começardes a orar, se tiverdes alguma coisacontra alguém, perdoai-o, porque também vosso Pai que está nos céus perdoaa vós e vossos pecados.”

“Dai a César”O entusiasmo popular que acompanhou a entrada de Jesus em Jerusalém, aoque parece, desapareceu rapidamente. Segundo Mateus e Lucas, Jesusretomou a rotina de ir ao Templo para ensinar e debater, enquanto Joãomenciona que ele estava perturbado e falava que havia sido rechaçado pelopovo de Israel. Como outras vezes, os seus inimigos tentavam pegá-lo emerro: não se tratava apenas de humilhar Jesus num debate; embora asquestões colocadas pelos fariseus e os escribas fossem às vezes sinceras, namaior parte dos casos elas eram um convite para brincar com a morte.

Em uma ocasião, foi perguntado a Jesus se era justo que os judeuspagassem impostos a César, déspota pagão e opressor do povo de Israel. SeJesus tivesse dado uma resposta positiva, pareceria que apoiava a tirania, umaposição indubitavelmente contrária aos sentimentos do povo. Mas se eletivesse condenado o imposto, então os romanos o teriam acusado desubversivo. Por isso, Jesus pediu para ver uma moeda daquelas usadas parapagar os impostos: suas palavras foram ainda mais notáveis, exatamente peloaspecto concreto da solução. O dinheiro de prata, moeda feita em Lyon, naGália, não era comum na Palestina: em um lado estava estampado osemblante do imperador Tibério. “De quem é esta imagem e inscrição?”,perguntou Jesus. “De César”, responderam. A conclusão de Jesus, quedesconcertou seus opositores, era correta tanto do ponto de vista políticoquanto religioso. “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.”Novamente frustrados com a resposta sagaz, todos os inimigos formaramuma frente única contra Jesus: fariseus, saduceus e herodianos. O dado,enfim, havia sido lançado.

Traição e presságios de morteMas foi exatamente no círculo íntimo de Jesus que se gerou a mais viltraição. Considerado por alguns como o mais perspicaz dos discípulos, JudasIscariotes, o tesoureiro do grupo dos apóstolos, perde a fé em seu coração,conta João. Teria ele, talvez como muitos entre a multidão festiva que haviarecebido Jesus na cidade alguns dias antes, se desiludido porque Jesus nãohavia tomado o poder? Por uma determinada quantia em dinheiro, dizMateus, Judas, naquela quarta-feira, faz acordo para entregar Jesus nas mãosdos inimigos, indicando a eles o momento propício. Não se diria que aquantia combinada para a traição fosse grande o bastante para justificar umato tão abjeto. As 30 moedas de prata equivaliam ao preço normal para secomprar um escravo; mas, na era romana, essa cifra seria suficiente apenaspara uma túnica nova. Os verdadeiros motivos de Judas foram perdidos naHistória: a sua deserção representava talvez uma espécie de termômetro dohumor popular em Jerusalém. Com a proximidade da Páscoa, parecia óbvioque o entusiasmo popular em relação a Jesus já diminuía, enquanto outrosiam abrindo caminho.

Embora o perigo rondasse, Jesus não parava de avisar seus discípulosque não se deixassem enganar pelas aparências. Sim, ele seria morto eaparentemente aniquilado, mas após sua morte ocorreria uma terríveldestruição. Todos os dias o pequeno grupo subia até a grande esplanada doTemplo e passava as horas do dia entre as imponentes colunas de mármore dosantuário. “Não ficará aqui pedra sobre pedra que não seja destruída”, dizia-lhes Jesus. Que visão mais funesta do futuro! Os discípulos, a essa altura,sentiam-se aniquilados por todos os acontecimentos ocorridos e incapazes deavaliar tudo o que Jesus dizia: o processo iminente, o significado doabandono ao qual ia de encontro, a antevisão da morte e, por último, opresságio de que o Templo de Herodes, o Grande seria posto abaixo. Essasrevelações não eram certamente adequadas para dar esperanças ao povo.Talvez alguns dos presentes tenham sobrevivido até 70 d.C. para assistir

pessoalmente à destruição de Jerusalém, quando um exército de 80 milsoldados, sob o comando do futuro imperador Tito, sitia a cidade durantemuitos meses e, uma vez conquistada, a incendeia.

Com a mente ocupada com a ideia da morte iminente, segundo oEvangelho de Mateus, Jesus aconselhava os discípulos que se preparassempara a morte, visto que ignoravam o dia ou a hora em que o Filho do Homemseria recebido para reunir diante de si todas as pessoas e separar as ovelhasdas cabras. A essa altura, ele havia acolhido para a vida eterna todos aquelesque tinham dado de comer aos famintos, de beber aos sedentos, hospedadodesconhecidos, vestido os desnudos, visitado doentes e prisioneiros, porque“todas as vezes que fizeres essas coisas a uma única pessoa dentre esses meusirmãos menores, tu o terás feito a mim”. E condenou ao fogo eterno os quenegligenciaram essas obras caridosas, porque “todas as vezes que não fizeresessas coisas a um desses meus irmãos menores, não o terás feito a mim”.

Dois dias antes da Páscoa, enquanto Jesus comia na casa de Simão, oLeproso, em Betânia, entrou uma mulher com um vaso de mármore nas mãoscheio de um precioso unguento e o derramou sobre os pés de Jesus. Algunsdos presentes se indignaram, repetindo que aquele unguento podia servendido por mais de 300 denários para dar de esmolas. (Um denário era osalário de um operário por uma jornada de trabalho.) O evangelista João (12,4-6), sobre esse particular, é muito mais específico, dizendo claramente quequem lamentou foi Judas Iscariotes, ao qual não interessavam tanto ospobres, mas sim “porque era ladrão e, como tinha o cofre, pegava aquilo quecolocavam dentro dele”.

No entanto, Jesus limitou-se a repreendê-lo, dizendo: “Ela me fez umaboa ação; aos pobres, na verdade, tereis sempre com vós e podereis ajudá-losquando quiserdes; a mim, ao contrário, não me tereis sempre.” A mulher,Jesus explicou a seus discípulos, havia espalhado aquele óleo sobre seu corpotendo em vista a sepultura.

Na Última Ceia, Jesus lava os pés de seus discípulos surpresos, estimulando-os a ajudar os outros

como ele os havia ajudado.

A Última CeiaNa quinta-feira à tarde, Jesus se reuniu com os 12 apóstolos em um cômodono “andar de cima”, a sala dos hóspedes para qualquer um de quem nãoconheçamos a identidade. Lá, fizeram juntos a refeição passada à Históriacomo “a Última Ceia”. Para Mateus, Marcos e Lucas, tratou-se de um sederpascal tradicional. Segundo João, foi um dia antes da Páscoa, e muitosestudiosos concordam com ele, porque o processo que ocorreu naquela noite,e nas primeiras horas da manhã seguinte, dificilmente se desenvolveria no diada Páscoa. De todo modo, Jesus dá àquela ceia um significado inteiramentenovo: entre o mestre e os discípulos se estabeleceu uma atmosfera decomunhão e de intimidade tão profunda que, após a morte de Jesus, a ceiatransformou-se em símbolo de seu vínculo de fidelidade ao Senhor,continuamente comemorada como “a Ceia do Senhor”.

No início da refeição, segundo João (13, 3-15), Jesus quer dar aosdiscípulos um exemplo, abandonando seu papel de mestre e assumindo o deum escravo. Ele coloca água numa bacia e começa a lavar os pés deles. Osdiscípulos, surpresos, não sabiam como reagir, mas Jesus expôs a eles queseu gesto simbolizava o exemplo de servir ao próximo: “Se, então, eu, oMestre e Senhor, lavei vossos pés, também vós deveis lavar os pés uns aosoutros.”

O momento da ceia, que se transformaria no elemento central da liturgiacristã, é descrito por Mateus, Marcos e Lucas. A certa altura, no decurso darefeição, Jesus tomou o pão não fermentado, rendeu graças a Deus, repartiu-oe o deu a seus discípulos. “Pegai, este é o meu corpo”, disse. Em seguida,pegou um cálice de vinho, rendeu graças, passou-o aos discípulos para quetodos bebessem e disse: “Este é o meu sangue, o sangue da união, derramadopor muitos” (Marcos, 14, 22-24). Ao mostrar o “sangue da união” Jesus sereferia ao episódio do monte Sinai, do Livro do Êxodo (24), quando éconfirmada a aliança de Deus com o povo de Israel após a libertação doEgito.

Para esses discípulos, a celebração pascal dessa histórica libertação nãoteria mais o mesmo significado. A festa em comemoração ao evento passadoestava projetada ao futuro, e o próprio Jesus reorienta esse conceito, dizendoaos apóstolos: “Em verdade vos digo que eu não mais consumirei o fruto daparreira até o dia em que o consumirei de novo no reino de Deus.”

A festa pascal era costumeiramente uma ocasião de alegria, um dosmomentos culminantes no calendário hebraico, que todos esperavam comsatisfação. Para o Talmude ela é “deliciosa como as azeitonas”. Aquela noite,no entanto, ficou marcada por uma profunda meditação. Jesus falou sobre suamorte iminente e, num dado momento, anunciou que alguém naquela salahavia cometido traição. Teria sido o homem que “pôs comigo as mãos noprato”. Quando Judas pegou um pedaço de pão – das próprias mãos de Jesus,conta João –, o mestre não fez qualquer manifestação de desprezo. Mais umavez a mente dos discípulos parecia turva, incapaz de compreender. Jesus, queaceitava o que deveria ocorrer, disse a Judas: “Aquilo que deves fazer, faze-odepressa.” Judas retirou-se imediatamente.

Nos momentos afetuosos de intimidade após a saída de Judas, Jesusfalou do amor que seus discípulos deveriam expressar em relação aos outros.Provavelmente os comensais estavam estendidos em divãs, conforme ohábito romano. Era a bonança antes da tempestade. Saciados, pensativos,concentrados em ouvir o mestre entre as chamas dançantes das lâmpadas aóleo na noite fresca de primavera, os apóstolos fizeram perguntas a Jesus e aele manifestaram uma fé inquebrantável. Jesus afirmou que o devotadoSimão Pedro, embora tivesse se declarado pronto para oferecer sua vida porJesus, haveria de negar conhecê-lo por três vezes antes do canto do galo, namanhã seguinte.

Em um longo sermão citado por João, assim Jesus aconselha seusdiscípulos: “Amai uns aos outros, como eu vos amei. Ninguém tem maioramor que este: dar a vida pelos próprios amigos. Vós sois meus amigos, sefizerdes o que vos peço.” O caminho não haveria de ser fácil para seus

discípulos, mas Jesus lhes promete uma paz profunda e inalterável. “Vóstereis preocupações no mundo”, acrescenta ele, que estava para ser traído,“mas tende fé; eu venci o mundo!”

Em seguida Jesus “dirigiu os olhos ao céu”, conforme palavras de João,e orou pelos apóstolos que enviava ao mundo do mesmo modo que o Pai ohavia enviado. “Destina-os à verdade”, orou. “A tua palavra é a verdade.”Além disso, pediu pelos que haviam acreditado nele mediante osensinamentos dos apóstolos: “Todos são uma coisa só. Como tu, Pai, estásem mim e eu em ti, estão também eles em nós, uma coisa só, para que omundo acredite que eu tenha sido enviado por ti.”

A agonia em GetsêmaniLogo a seguir, os apóstolos acompanharam Jesus até a saída da cidade:atravessaram o vale de Cedron, a nordeste, e chegaram a um sítio no Montedas Oliveiras, conhecido como Getsêmani. Talvez fosse um olival depropriedade de um de seus seguidores. Jesus e seus discípulos haviamdescansado muitas vezes sob essas árvores no passado. Ele lhes disse que oesperassem enquanto se afastava para orar, acompanhado por Pedro, Tiago eJoão. Depois, profundamente abalado e amargurado pelos sofrimentos que oesperavam, disse aos três que parassem para vigiar e se afastou um poucomais, sozinho. Não queria morrer. Caindo de joelhos, orou: “Fala, Pai! Tudoé possível para ti, afasta de mim esse cálice! Mas não o que eu quero, e sim oque queres tu.” Após a oração, virou-se para seus seguidores. Esgotados aolimite de sua força física, emocional e mental pelos acontecimentos dasemana, os discípulos adormeceram profundamente. E Jesus disse a Pedro:“Simão, estás dormindo? Não conseguiste ficar acordado nem uma hora?Vigia e pede para não cair em tentação; o espírito está pronto, mas a carne éfraca.” Depois de ter se isolado ainda por duas vezes e depois retornado parajunto dos apóstolos, encontrando-os novamente adormecidos, Jesus lhesdisse: “Levantai-vos, vamos! Eis que aquele que me traiu está próximo.”

De repente o pequeno sítio se enche de luz e de barulhos. Com tochasem punho e fazendo retinir as espadas, uma multidão de homens armados,entre os quais os guardas do Templo, chega guiada por Judas. Cedendo aohabitual gesto de cumprimentar o mestre, Judas colocou-se à frente parabeijar Jesus. Desse modo, o mestre é exposto a seus perseguidores, querapidamente o prendem. Jesus não opôs nenhum tipo de resistência, masPedro saca uma espada e corta a orelha de um dos escravos do sumosacerdote. Então Jesus disse: “Deixa-o, não faças isso!”, e restabeleceumilagrosamente a orelha do infeliz.

Após interrogatório, Jesus é enviado para Pôncio Pilatos, escoltado por soldados.

Jesus diante de Anás e CaifásO que aconteceu exatamente naquela noite e na manhã seguinte, no entanto, émuito difícil de se reproduzir, porque nos Evangelhos há diferenças nadescrição da ordem dos acontecimentos. Para João, a sequência se iniciaquando Jesus é escoltado até o rico bairro do Monte Sião, na casa de Anás,ex-sumo sacerdote e sogro de Caifás, atual sumo sacerdote. Esse importantepersonagem e habilidoso político “interrogou Jesus sobre seus discípulos esua doutrina” como se ele tivesse algum segredo a revelar. Jesus afirmousempre ter falado abertamente nas sinagogas e no Templo. “Pergunta àquelesque ouviram o que eu disse a eles; eles sabem o que eu disse.” Por essaresposta, um dos guardas deu uma bofetada em Jesus para puni-lo por suainsolência, e o interrogatório não foi adiante. Anás enviou Jesus, amarrado,para a casa de Caifás e, dali, foi levado ao governador civil romano, PôncioPilatos, para ser processado. João não nos diz o que foi dito entre Caifás eJesus. Menciona, em vez disso, que Pedro até negou conhecer Jesus, por pelomenos três vezes, como havia sido previsto, antes do canto do galo. OEvangelho de João não diz se Jesus foi levado diante de um verdadeiro eapropriado tribunal hebraico, limitando-se a dizer que houve um únicointerrogatório da parte de Anás.

Mateus e Marcos sublinham, ao contrário, outro aspecto desseacontecimento. Depois de sua prisão, Jesus foi arrastado até Caifás, o sumosacerdote, que havia convocado outros sacerdotes, anciãos e os escribas parauma assembleia. Nela, no coração da noite, o Sinédrio iniciou o processo.Segundo Marcos, apenas foram apresentados falsos testemunhos e suasdeclarações não coincidiram absolutamente. Para Mateus, dois delesafirmaram que Jesus havia se vangloriado de ser capaz de destruir o Templode Deus e reconstruí-lo em três dias. Apesar desse testemunho, no entanto,por fim o processo se aplicou sobre uma única pergunta, feita a Jesus pelosumo sacerdote: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus bendito?” Segundo Marcos(14, 62), Jesus respondeu: “Eu sou! E vereis o Filho do Homem sentado à

direita do Todo-poderoso, vindo sobre as nuvens do céu.” O termo “Todo-poderoso” significava claramente Deus. Essa declaração foi considerada umablasfêmia, uma clara pretensão do homem à divindade, e Jesus foi condenadoà morte. Enquanto Jesus confessava sua identidade e recebia a condenação,Pedro por três vezes negou conhecê-lo; mas depois se arrependeu e caiu empranto. Naquela manhã o Sinédrio, após uma reflexão, transferiu Jesus paraPilatos.

Lucas nos oferece uma terceira versão desses acontecimentos. Após acaptura, Jesus é levado à casa do sumo sacerdote e é aprisionado no pátio portoda a noite. Pedro também estava presente, ao lado do fogo aceso sobre olajeado, e a prova de sua fidelidade assume nesse dramático momento umtom de particular intensidade. Embora Jesus estivesse próximo a ele, Pedronão consegue encontrar coragem para se declarar seu discípulo. Por duasvezes negou conhecê-lo e, enquanto pronunciava as palavras de sua terceiranegativa, “um galo cantou. Então, o Senhor, virando-se, olhou para Pedro, eeste lembrou-se das palavras a ele ditas pelo Senhor: ‘Antes que o galo cante,hoje me negarás três vezes.’ E, ao sair, chora amargamente”. Quandoalvoreceu, Jesus foi por fim levado ao Sinédrio. Novamente, Lucas sublinhaque a única preocupação da assembleia era averiguar se Jesus havia declaradoser o Cristo e o Filho de Deus. “Mesmo que eu dissesse isso a vós [...] nãoacreditaríeis em mim [...].” Lucas não cita uma expressão formal, mas diz quea assembleia toda acompanhou Jesus até Pilatos.

Mesmo hoje os estudiosos questionam se o Sinédrio possuía autoridadepara condenar à morte um homem por um crime capital. Com certeza elessabiam que na maior parte dos casos cabia ao governador civil romano asentença de morte, e que ele poderia intervir no processo se achasseconveniente.

Pilatos e Herodes AntipaO governador romano, Pôncio Pilatos, era conhecido pelo desprezo quenutria aos judeus e a suas crenças. Sua única preocupação era manter a ordempública e explorar a província. Quando o acusado foi levado diante dele,Pilatos não se preocupou minimamente em saber se Jesus havia pronunciadoou feito declarações sacrílegas contra o Deus dos hebreus. A ele interessavaesclarecer um único ponto: “Tu é o rei dos judeus?” Essa pergunta havia setornado quase uma fórmula para todos os rebeldes que se punham à frente dasinsurreições contra Roma na Palestina, como os condenados que naqueleexato momento aguardavam para ser mortos por sua ordem. Sem reclamarsua inocência, Jesus responde ambiguamente: “Tu o disseste”, sem quedepois lhe fossem imputadas novas acusações.

Os Evangelhos, em um ou outro ponto, descrevem Pilatos comocontrário a condenar Jesus. Talvez ele tenha sinceramente ficadoconstrangido com esse prisioneiro. João menciona o diálogo entre elesquando Jesus afirmou que – apesar de seu reino não pertencer a este mundo –ele na realidade havia nascido para ser um rei, e ser testemunho da verdade.A essa altura, Pilatos perguntou, com o ceticismo e a ironia gerados nasintrigas da política: “O que é a verdade?”

A fama de Pilatos em suas relações com os judeus não era das melhores.Fílon da Alexandria descreve a conduta desse governador, acusando-o deinclinado “à corrupção, à violência, ao roubo, a ultrajes, a agressõesinjustificadas, a numerosas execuções sem processo e a incessantes abusospraticados com enorme crueldade”. De todo modo, os Evangelhos reforçamque Pilatos não encontrou em Jesus nenhuma culpa que merecesse acondenação à morte, mas, apesar disso, mandou-o ao suplício. Fica insinuadono entreato descrito por Lucas que Pilatos deu pouca importância ao caso,entregando Jesus a Herodes Antipas, que havia ido da Galileia para Jerusaléma fim de comemorar a Páscoa.

Herodes, segundo Lucas, ficou contente por Jesus lhe ter sido enviado.

Talvez desejasse ver um milagre, ou simplesmente quisesse acabar, de umavez por todas, com seus temores de que Jesus fosse João Batista ressuscitado.Jesus, que certa vez havia mencionado expressamente o tetrarca, chamando-ode “aquela raposa”, recusou-se a falar.

Enfurecido, Herodes estimulou seus soldados a zombar do prisioneiro emandou que o vestissem com uma “roupa luxuosa”, talvez um manto real. Otetrarca novamente descarregou a decisão sobre os ombros de Pilatos. Apesardisso, segundo Lucas, “Herodes e Pilatos tornaram-se amigos; antes, naverdade, havia rivalidade entre eles”.

Naquele momento, Pilatos decidiu atrapalhar a decisão da aristocraciasacerdotal, que queria se livrar de Jesus, recorrendo a um ardil querapidamente, no entanto, voltou-se contra ele. Pelos Evangelhos, era costumedos romanos homenagear a celebração da Páscoa libertando um criminosocondenado à morte. Naqueles dias, havia sido condenado à morte um rebeldede nome Barrabás, envolvido numa sublevação contra Roma. Pilatos,esperando brincar com a popularidade de Jesus de modo a fazer a multidãoaprovar a execução do rebelde, oferece ao público a escolha entre libertarBarrabás ou Jesus, “o Rei dos Judeus”. Diante da possibilidade de obter alibertação de um rebelde ativo contra os romanos, a multidão rapidamentevibrou: “Liberta Barrabás!” Surpreendido pelo rumo dado aosacontecimentos, Pilatos evidentemente reformulou sua proposta e pressionoupara colocar em liberdade o homem que, do seu ponto de vista, pareciamenos perigoso.

Pelas palavras de Marcos, Pilatos acrescentou: “Que farei então desteque vós chamais de rei dos judeus?” E a multidão novamente gritou:“Crucifica-o!” Mas Pilatos dizia a eles: “Que mal ele fez?” E então elesgritaram mais alto: “Crucifica-o!”

A multidão estava decidida a libertar Barrabás, apesar de essanegociação custar a vida de Jesus. No fim, Pilatos desistiu de seu plano. Aoperceber que embaixo disso se agitava uma rebelião, segundo Mateus, ele

mandou trazer uma bacia com água e lavou as mãos em público: “Não souresponsável por este sangue; cuidai dele vós!” Logo a seguir, Pilatos dáordem para libertar Barrabás e crucifixar Jesus.

Flagelo e crucificaçãoA crucificação, descrita por Cícero como “a mais cruel e horripilante daspunições”, na Palestina era dirigida apenas a criminosos sem direito decidadania romana, a rebeldes contra o Estado, a escravos infratores e amalfeitores condenados pelos crimes mais horrendos. Era uma puniçãoabominável concebida como dissuasiva contra a criminalidade. Talvez criadode uma forma um tanto diferente da dos persas e difundido pelo OrienteMédio por Alexandre, o Grande, esse método de execução foi aprimoradopelos romanos para produzir uma morte lentíssima e extremamente dolorosa.

Primeiramente, o prisioneiro condenado à morte era despido, amarrado auma pilastra e recebia 39 chibatadas, às vezes mais, com um pequeno chicotede couro, o flagrum. Às correias do flagrum eram presas bolinhas de chumboe fragmentos afiados de ossos de ovelha para rasgar a pele. Como de hábito,dois soldados se revezavam para dar as chicotadas. O objetivo era provocaruma considerável perda de sangue, dor agudíssima e colapso circulatório;segundo o historiador Flávio Josefo, alguns judeus eram “despedaçados pelochicote, mesmo antes de serem crucificados”. A tortura enfraquecia ocondenado a ponto de encurtar seu tempo sobre a cruz, talvez um gesto decompaixão involuntário. No caso de Jesus, à tortura foram acrescentados acanseira por uma noite sem dormir, os insultos e as calúnias recebidos, apresença em vários tribunais e os percursos a pé de um lugar a outro, no totalde aproximadamente quatro quilômetros. Depois de o soltarem da pilastra,Jesus foi vestido com um manto vermelho, coroado com uma guirlanda deramos espinhosos, ridicularizado e cuspido pelos soldados.

A essa altura, segundo João, Pilatos reaparece para pronunciar a famosafrase: “Eis o homem!” Talvez desejasse que a multidão visse o resultado desua escolha, ou transferir à própria multidão a responsabilidade por aquelacondenação à morte.

O caminho dolorosoConforme o costume, o prisioneiro deveria carregar o patibulum, ou viga,para sua cruz ao longo das ruas até o lugar da execução, que, em Jerusalém,era uma colina além dos muros da cidade, chamada Gólgota, “o lugar dasCaveiras”. Lá era fixado um enorme tronco de madeira, pronto para servircomo a trave vertical da cruz.

Tropeçando em uma pedra solta, Jesus começa a carregar o patíbulo, quepor vezes media até dois metros de comprimento e podia pesar por volta de60 quilos. Não se sabe que tipo de madeira foi usado para fazer a cruz; dequalquer modo, o fato é que Jesus, já debilitado por causa das torturas e daperda de sangue, não conseguia transportá-la. Os soldados, então, pararamum homem “que vinha do campo” – um judeu da Diáspora chamado Simão,proveniente de Cirene, no norte da África –, e o obrigaram a carregar a viga,seguindo o vulto exausto e ensanguentado de Jesus. Desse modo,percorreram quase meio quilômetro.

Uma grande multidão seguia Jesus, inclusive muitas mulheres quechoravam por ele. A certa altura, Jesus virou-se e lhes disse que chorassempor elas próprias e não por ele, citando o provérbio: “Se tratam assim amadeira verde, o que será da madeira seca?” Jesus comentava amargamenteseus sofrimentos: se ele, que era inocente, havia sido submetido a taistorturas, o que aconteceria com Jerusalém, cidade culpada?

Quando Jesus chega ao Gólgota, de onde tinha uma vista panorâmica dacidade que o havia expulsado, foi despido e jogado ao chão. Seus braçosforam estendidos sobre a trave. A julgar pelos restos de ossos de vítimascrucificadas descobertos em Jerusalém, dois grandes pregos de ferroatravessavam os ossos dos punhos, despedaçando os nervos médios ecausando ao infeliz uma dor lancinante. Quatro soldados àquela alturalevantavam o patibulum e o fixavam ao tronco vertical. Em seguida, os pésde Jesus foram fixados, talvez em um banquinho chamado suppedaneum.

Sobre a cabeça de Jesus foi afixado o titulus, um letreiro que trazia o

nome da vítima e o crime cometido. No caso de Jesus, Pilatos disparou umaúltima flechada irônica contra os judeus que tanto desprezava. Sua inscriçãodizia: “Jesus, o Nazareno, rei dos Judeus.” (Segundo João, a frase estavaescrita em grego, latim e hebraico, mas por “hebraico” João provavelmenteentendesse o idioma comum dos hebreus do lugar, isto é, o aramaico.) Ossacerdotes haviam objetado, afirmando que a inscrição deveria indicar quesomente Jesus tinha dito ser rei, mas não chegaram a dissuadir Pilatos. “Oque escrevi”, respondeu Pilatos, “escrevi.” Sob essa irônica inscrição, Jesusiniciou sua longa agonia, segundo Marcos, por volta das nove da manhã – aterceira hora do dia.

Jesus na cruzAlgumas personalidades da aristocracia fizeram uma rápida aparição no lugardo suplício para zombar de Jesus. Os soldados, que haviam se apoderado desuas roupas, tirando a sorte, ridicularizavam-no, dizendo: “Se tu és o rei dosjudeus, salva-te a ti mesmo.” Para muitos hebreus, todas as esperançasdepositadas em Jesus pareciam ter desaparecido para sempre. As expectativasmessiânicas pareciam agora totalmente ridículas.

Também estavam presentes alguns seguidores de Jesus, chocados, comotambém muitas mulheres que o haviam seguido desde a Galileia. Entre elasse encontrava Maria, a mãe de Jesus, cujas palavras e ações não sãomencionadas nos Evangelhos. Ao ver a mãe parada ao lado da cruz com “odiscípulo que ele amava” – do qual não sabemos o nome, mas a tradição oidentifica como João –, Jesus aconselhou os dois a serem como mãe e filho.

Aos lados da cruz de Jesus haviam sido crucificados dois “ladrões”,talvez rebeldes como Barrabás; eles também padeciam nos últimos espasmosde agonia. Um dos dois malfeitores, preso à sua cruz, insultava Jesus, mas ooutro o repreendeu e, em seguida, virando-se para Jesus, em um ato de fé,pediu-lhe que se lembrasse dele quando entrasse em seu reino. Jesus lheprometeu o paraíso naquele mesmo dia.

Das últimas horas de Jesus possuímos poucos detalhes. Na verdade,segundo o Evangelho de João, a única admissão de sofrimento de Jesus foiaquele grito “tenho sede”. Davam-lhe de beber numa esponja umedecida comvinho ou vinagre. Segundo Marcos, foi oferecido a Jesus “vinho misturadocom mirra”, que teria agido como sedativo, mas ele recusou. A mirrarepresentava, além disso, um dos donativos presenteados pelos Reis Magosao Menino Jesus, símbolo de sua humanidade e dos sofrimentos que haviapadecido.

Morte e sepulturaJesus morreu às três da tarde. “Tudo está terminado”, disse. “E, inclinando acabeça, morreu.” As trevas se estendiam “sobre toda a terra” desde a horasexta, ou meio-dia – dizem os Evangelhos –, e, à nona hora, quando Jesusmorreu, a terra tremeu e o véu do Templo “se rasgou em dois de cima abaixo”. Aos seguidores aflitos reunidos no Gólgota, as grandes promessas devida de seu mestre haviam acabado em vergonha e horror. Ninguém – pelomenos segundo as fontes de que dispomos – havia ainda conhecido overdadeiro significado do dia hoje comemorado pelos cristãos como Sexta-feira Santa, embora muitos, entre os presentes, tivessem reparado que haviaacontecido algo de extraordinário no momento da morte de Jesus. O própriocenturião que estava diante dele disse: “incontestavelmente este era o Filhode Deus!”

José de Arimateia, um discípulo rico que havia seguido Jesussecretamente, consegue de Pilatos autorização para sepultar seu mestre. José,que era membro do Sinédrio e, segundo Lucas (23, 51), “não havia aderido àdecisão e ao comportamento dos outros”, possuía um túmulo novo numrochedo em um sítio não longe do Gólgota. Segundo João, ele é ajudado porNicodemos, um médico fariseu que, tempos atrás, havia ido até Jesus paradebater questões espirituais. Algumas mulheres entre os seus seguidores ealguns parentes que se encontravam ao lado da cruz, sem dúvida, seaproximaram para ajudá-los a enfaixar o cadáver em um sudário de linho eespalhar unguento sobre ele. Depois dessa triste cerimônia, colocaram ocorpo no túmulo e fecharam a entrada com uma grande pedra. Visto que jácomeçava o sábado, os exaustos discípulos de Jesus voltaram à cidade à luzfraca do crepúsculo.

Ressurreição e ascensãoNinguém estava preparado para as desconcertantes revelações quecomeçaram a se espalhar entre os discípulos no decurso de 48 horas, ou atémenos. Naquela manhã de domingo, segundo a narrativa de Marcos, MariaMadalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé foram ao túmulo após o nascer dosol. O sábado havia terminado e as mulheres queriam ungir o corpo de Jesuscom bálsamos. Segundo Marcos, as mulheres, ao chegar à entrada dasepultura, perceberam que a pedra já havia sido retirada. E viram umjovenzinho vestido de branco sentado sobre a tumba. “Não tenhais medo”,disse a elas. “Vós procurais Jesus Nazareno, o crucificado. Ele ressuscitou,não está aqui.”

Jesus apareceu para Maria Madalena, talvez alguns minutos depois.Quando Jesus aproximou-se dela, encontrando-a em lágrimas diante dasepultura, segundo o Evangelho de João, ela pensou que se tratasse de umjardineiro. Mas bastou Jesus chamá-la ternamente pelo nome que a mulher oreconheceu.

Ao longo daquele primeiro dia, e nos seguintes, graças a várias visões eaparições, todo o grupo que havia seguido Jesus passou a crer que ele estavavivo. Em pouco tempo, os discípulos procuraram uma maneira paraconfirmar sua presença, ouvir suas palavras. Segundo João, quando oapóstolo Tomé colocou suas dúvidas em relação à ressurreição, Jesus oconvidou a tocar com as mãos suas feridas pela crucificação. “Porque mevistes, acreditais”, disse-lhes Jesus. “Abençoados aqueles que mesmo nãovendo acreditaram!”

Estes dias serviram para fortalecer a fé dos discípulos e para assegurarque as palavras de Jesus incentivassem um movimento em seu nome. Depois,um dia, ele levou seus seguidores ao Monte das Oliveiras, onde os abençoou,“se separou deles e foi levado aos céus”. Esse fato seria chamado deAscensão de Cristo. A partir desse momento, os discípulos permaneceramsozinhos, com a alma cheia de questionamentos. Por que Jesus os havia

chamado, há tanto tempo, às margens do mar da Galileia? No entanto,permaneceram a alegria e a esperança, das quais seus corações estavamcheios, à espera dos dias que viriam.

Copyright © 2013 by Reader’s Digest AssociationAdaptado de Jesus e sua época, publicado pela Reader’s Digest do BrasilLtda.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de1990, em vigor no Brasil a partir de 2009.

Editora-executivaRaquel Zampil

Seleção de conteúdoLiane Mufarrej

Produção do arquivo ePubObliq Press

ISBN: 978-85-7645-453-3

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