confissões de uma terapeuta - visionvox

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Para Felipe, com todo o meu amor

Eu não podia mais segurar. O segredo estava me matando! Atravessei a horda de pessoasbem vestidas da festa à procura de seu rosto. Ele precisava saber o que eu sentia.

Será que era o certo a fazer?Eu não fazia ideia.Minhas mãos tremiam enquanto eu olhava de um lado para o outro à procura daquele rosto

que fazia meu coração saltitar igualzinho a um fã ensandecido em show de pop. A única coisaque eu sabia é que não eu podia perdê-lo sem antes tentar.

E então eu o vi, escondido entre uma pessoa e outra que tapava a minha visão. Apertei opasso e ajeitei o vestido colado no corpo – Deus! Aquele vestido estava muito apertado –, arespiração entrecortada traindo meu raciocínio lógico.

Que se dane a lógica!Foi quando ultrapassei a última pessoa entre nós que meus olhos viram o que me pareceu

um soco no estômago.Não que eu já tivesse tomado um soco no estômago para saber como é.Mas eu definitivamente preferia ter levado um.

– Ela chegou? – pergunto.– Ainda não, Melissa.– Cadê ela? – penso alto.– Como é que eu vou saber?! – responde a magnífica assistente do consultório, Lorraine,

uma garota de 18 anos com descendência japonesa, ligeiramente viciada em café e que parecenão ir muito com a minha cara.

Talvez eu devesse voltar para a terapia. Sabe como é, para acalmar os nervos. Isso se nãofor normal querer esbofetear a própria paciente na cara, quando você mesma é uma psicóloga.

Algumas pessoas dizem que tenho tendência a ser um pouco compulsiva em relação àorganização, mas elas erram na questão da intensidade. Eu sou extremamente compulsiva.

Alana está atrasada de novo. Ela deveria estar aqui há 28 minutos e até agora nada. Nocomeço eu ficava toda preocupada, no estilo “ai meu Deus, será que alguma coisa terrívelaconteceu com ela? Blá blá blá”. Mas no dia em que ela apareceu dizendo que algo terrível haviaacontecido sim, que seu salto havia quebrado e ela teve que parar para comprar um novo, euparei de cogitar chamar a polícia por causa de um possível sumiço dela.

O problema é que não acho justo atrasar minha agenda inteira por causa de uma paciente só.Tá legal, tá legal, certo. Eu só tenho duas pacientes e elas nem ao menos se consultam

comigo no mesmo dia. Mas isso não dá a ela o direito se atrasar o quanto quiser. Ou será que dá?Porque, querendo ou não, ela paga as minhas contas.

Faz quatro meses que toda segunda-feira de manhã é a mesma coisa, e eu sempre mepergunto:

Cadê a porcaria da Alana?Um único raio de sol adentra minha sala rosa-claro através da janela sem cortinas,

aquecendo um pouquinho a mesa de madeira.Aponto o lápis mais uma vez. Já fiz isso tantas vezes pra passar o tempo que daqui a pouco

vou ficar sem lápis nenhum pra escrever. Assopro a ponta perfeitamente afiada e o coloco nolugar novamente.

Contribuiria bastante com a minha paciência se Alana não fosse um tantinho desagradável.No início eu a achava uma fofa. Que garota bacana. Mas quanto mais tempo eu passo com ela,mais eu me surpreendo com o quanto ela pode ser maldosa. E, por mais que eu tente mudar isso,a língua dela é mais afiada que a ponta do meu lápis.

O telefone da minha sala toca e eu pego o aparelho do gancho.– Ela chegou – diz Lorraine.– Aleluia! – respondo, os ombros caindo de alívio.Alinho minha agenda com o porta-lápis e a base do telefone, analisando se a distância entre

eles está simétrica. Talvez um pouco mais para a direita... Isso, assim está melhor. Ou será queficou torto? Preciso de uma régua...

Neurótica? Eu sei.– Manda essa criatura entrar de uma vez – digo, o telefone entre a bochecha e o ombro,

enquanto continuo analisando a droga da agenda.– Humm... você está no viva-voz.– Você colocou no viva-voz? – falo baixinho. – De novo?Quem mandou ela fazer isso? Eu já falei pra ela parar, mas ela diz achar chique.Por que eu fui chamar Alana de “criatura”? Será que ela escutou? Ah, é claro que escutou!

Ela não é surda! Apesar de que está sempre tão concentrada nela mesma que pode nem ternotado.

– Bom, eu sabia disso, hahaha... – tento disfarçar a enorme gafe. – Alana, querida, podeentrar!

– Agora já tirei do viva-voz, ela não escutou essa última parte – droga, Lorraine! – Querque eu coloque no viva-voz de novo?

– Só peça para que ela entre, sim? – bato o telefone no gancho. Às vezes eu acho queLorraine faz essas coisas de propósito.

Um vento gelado me estapeia na nuca e vou até a janela para fechar o vidro. Se eu meesticar o suficiente consigo ver os carros passando depressa pela Avenida Paulista. Ontem faziaum calor de andar de calcinha pela casa. E de um dia pro outro, literalmente de um dia pro outro,a frente fria citada há duas semanas no Jornal da Noite do canal 6 finalmente chegou a SãoPaulo.

Muito pontual. Igualzinha a Alana.Sento-me na cadeira branca do meu consultório e apoio os dois braços sobre a mesa

juntando as duas mãos, pose que na minha cabeça representa profissionalismo.Quando a porta se abre e apresenta Alana, com seu cabelo loiro claro, curto e liso, sem

nenhum fio fora do lugar, e o rostinho fino de princesa da Idade Média, minha pose mais seassemelha com algo vindo de uma ogra (também da Idade Média). Eu nunca conseguiria manterum penteado chanel desses nem se minha escova progressiva funcionasse perfeitamente bem.Meu rosto é redondo demais para essas coisas.

Tenho cabelos pretos e meu rosto é bem branquinho, com a presença de enormes bochechasrosadas (leia-se bochechuda). Posso dizer que me considero uma garota bonita, com meus olhoscor de mel e meus suéteres em tons pastéis.

Mas a minha paciente? Ela é deslumbrante!Está usando uma blusa de linho branca por baixo de um terninho vinho – a cor da estação,

segundo todas as revistas de moda –, uma calça preta justa com detalhes em dourado – não mesurpreenderia se fosse mesmo ouro – e botas pretas de salto alto. Ela é alta e magra, mas daqueletipo de magra que ainda teve a sorte de ter... bem, sejamos diretas, a sorte de ter bunda.

Pelo que ela me conta, se esforça bastante indo à academia pelo menos quatro vezes porsemana. Aposto que se eu tivesse um pouco mais de força de vontade e dinheiro, minhas coxasseriam bem menos moles e eu não estaria três quilos acima do peso. Nem para a academia euvou, apenas caminho algumas vezes por semana.

Tá legal, algumas vezes por mês.Tá, tá... por ano. Que seja!Mas, como eu ia dizendo, não é minha culpa. Meus genes vieram com pouca força de

vontade e muita preguiça. O mesmo serve para dietas e descascar frutas.– Jesus! Quanta gente feia! – Alana abre um sorriso irônico, bate a porta com um

empurrãozinho da própria bunda e senta-se na cadeira de couro branca a minha frente.O cheiro de seu perfume doce mistura-se com o ar da minha pequena sala. Por que nenhum

perfume fica tão forte assim na minha pele?Obviamente é essa a diferença entre colônia e perfume importado.– Por isso me atrasei! – ela move as mãos enquanto fala.– Por causa de... humm... pessoas feias?Ela apoia o cotovelo na mesa, chegando mais perto de mim.– Quer saber por que me atrasei?– Er... quero?Ela levanta o dedo indicador.– Pois vou te contar porque me atrasei.E aí vem a desculpa de hoje, senhoras e senhores:– Tive que chegar até aqui de metrô – Ela revira os olhos, dizendo a última palavra de

forma pejorativa. – E tem muita gente esquisita por lá. Fala a verdade?– Você veio de metrô? – digo, ignorando a última parte.– Incrível, não? – ela coloca a mão na testa e bufa.Depende da linha pela qual você veio.Aposto que ela veio pela Linha Amarela, a linha mais “rica” da cidade. Ou a menos pobre.As linhas Amarela, Azul e Verde do metrô são o paraíso, se você as comparar com a

superlotada Linha Vermelha às seis da tarde. Dá arrepios só de pensar.– E por que veio de metrô? O que houve com o seu mega-ultra-blaster-luxuoso carro? – é

claro que eu omito a parte do “mega-ultra-blaster-luxuoso”. Mas o que mais eu poderia pensar deuma BMW? – Está no conserto?

– Ah, não. Não houve nada com o meu carro. A revista está me obrigando a escrever umamatéria sobre adolescentes no metrô de São Paulo e então uma coisa me ocorreu: eu nunca nemsequer tinha botado os pés no metrô. Nunquinha!

Ajeito a postura na cadeira, reprimindo um bocejo.

– Mesmo?– É claro que não! – retruca ela, sua língua afiada entrando em ação. – Metrôs são muito

nojentos. Milhares de pessoas sentam-se na mesma cadeira todos os dias. Já parou para pensarnisso? E você consegue imaginar quanta gente já passou a mão nas partes íntimas antes de sesegurar nas paredes durante a viagem?

Por que ela pensa que as pessoas se seguram nas paredes? Ela não deve ter prestado muitaatenção em sua pesquisa de campo.

Ela balança a cabeça negativamente para mim.– Não sei por que você ainda utiliza esse serviço, Mel. Sinceramente.Ah, minha nossa, por que não pensei nisso antes? Ela abriu minha mente agora. Bum! Que

gênio da vida moderna Alana é! Acho que de agora em diante eu também vou parar de andar demetrô por aí e me locomover apenas de BMW.

Será que ela não entende que pessoas de classe média e baixa precisam andar de transportepúblico? Já que essa é a única alternativa disponível, varremos o pior para o fundo da nossamente e focamos nas coisas positivas.

“O metrô é limpinho. O metrô é incrível. Que rapidez! Bem melhor que andar de BMW.”– Bem, eu não gosto de pegar trânsito para chegar em casa, por isso ando de metrô – digo,

mas nem eu mesma acreditei nessa. Tiro rapidamente o foco de mim. –Mas você estavadizendo...

– Sim, estou fazendo uma matéria sobre adolescentes que utilizam transporte público nanossa cidade – ela me interrompe. – E o meu editor...

Que no caso é o pai dela...– Quer que eu escreva menos sobre celebridades. Ele disse que eu precisava... bem, como se

diz? – ela abana as mãos com desdém. – “Saber como é fazer parte da sociedade trabalhadora?”“Parte do povão”, foi o que ela quis dizer.Apoio os braços na mesa e entrelaço os dedos.– E como foi essa experiência para você?Acredito que, como sua psicóloga, tenho o dever moral de tentar mudar alguns de seus

pensamentos mesquinhos, e fazer isso sem utilizar a força dos meus punhos pode se mostrar umatarefa muito difícil.

– Algo que eu não quero repetir. Vi muitos modelos fora de moda, roupas esquisitíssimas.Uma mulher combinou calça listrada com blusa estampada de bolinhas e uma bota ridícula decouro barato. Quer dizer, por favor, né? Tenha um pouco de bom senso. E ela era bem gorda.

Minha expressão permanece imóvel enquanto ela profere ofensas a uma mulher que nemmesmo conheço, a fim de não mancomunar com essa atitude hostil. Mas ela debocha de tantagente que meu choque é cada vez menor.

– Não acha que algumas pessoas não têm condições para comprar roupas elegantes?Ela dá de ombros.– Seja como for, fico contente de não ter que passar mais tempo com elas para descobrir.Alana continua falando, falando e falando sobre as “mulheres gorduchas”, suas roupas

“ridículas” e seus penteados “horrendos”, enquanto gesticula loucamente – as mãos se movendo

freneticamente enquanto fala, sua marca registrada –, esquecendo-se de mencionar o objeto deestudo em questão: os adolescentes.

Inclino-me para trás na cadeira, assustada, quando a mão agitada dela esbarra no meu porta-lápis meticulosamente organizado – pobres canetas perfeitamente arrumadas! – e ele despencasobre a mesa, jogando os lápis e canetas pra tudo quanto é lado, saindo do seu lugar tãoestrategicamente pensado.

Tento disfarçar meu incômodo, afinal, qual é a culpa dela nisso? Ela nem ao menos sabeque isso é um problema para mim. E nem pode saber! Isso não é algo que eu saio por aí contandopara todo mundo.

Mas, poxa vida, um dos lápis até rebateu na mesa e veio parar no meu rosto, pelo amor deDeus!

– Ai, querida! Me desculpe... – diz ela, as mãos pairando sobre a mesa, fazendo menção deorganizá-la, mas na verdade esperando que eu mesma conserte as coisas.

– Er... não faz mal.Mas faz sim. Rapidamente coloco o porta-lápis de volta no lugar, me afasto e confiro se

tudo está em seu devido lugar.Está tudo arruinado! Minha mesa é uma cena apocalíptica do mundo dos lápis. Meu olho

começa a pinicar e devo estar quase chorando, porque Alana se inclina para a frente e olha bemno fundo dos meus olhos.

– O que foi? – pergunto.– Eu acho que a ponta de um lápis entrou no seu olho.– O quê? – uma pontinha de dor me ataca quando toco de leve o olho direito. Oh, meu

Deus! – Com licença.Fico de pé com um sorriso forçado, abro a porta da sala e saio correndo pelo corredor

tentando não chorar e escondendo o pânico que sinto até chegar ao banheiro.Tranco a porta atrás de mim e tenho quase certeza de que ouço um “ai, credo” vindo na

forma da voz irritante daquela maluca rica furadora de olhos!

Ao olhar no espelho, descubro que ela estava certa. Ai, credo!Há uma ponta bem pequenininha do grafite movimentando-se dentro do meu olho, pra lá e

pra cá. Cada vez que eu pisco, dói um pouco. Há uma área particularmente dolorida e concluoque deve ter sido ali que a ponta do lápis bateu e quebrou.

Não acredito que Alana furou o meu olho!Preciso tirar o grafite dali. Ai, meu Deus! Como eu tiro?Não é que eu tenha medo de ir ao médico nem nada parecido, porém nunca tive a ponta de

um lápis enfiada no meu olho. O que acha que vai acontecer quando eu chegar lá? No mínimo,eu vou ter que tomar uma anestesia no globo ocular com uma agulha gigante, que vai entrar pelaminha retina, chegar no meu cérebro e...

Ah, pronto, tirei.Com um leve toque, o grafite saiu do lugar e pousou em minha mão. Ufa!– Mel, querida... – A voz de Alana soa abafada do outro lado da porta. – Você está bem?Que bem o quê?! Você furou o meu olho, tenho vontade de gritar. Mesmo que meu olho

pareça perfeitamente bem, após eu ter recuperado a ponta milimétrica do grafite que joguei napia. Bom, ninguém mandou eu apontar tanto a droga do lápis.

Para o meu horror, porém, ainda tenho vontade de chorar. Demorei muito tempo paraorganizar o porta-lápis. Respiro fundo e engulo o choro. Mesmo porque ninguém mandou eu terTOC!

A que nível da minha compulsão eu cheguei? Será que fiquei tão nervosa com a mesadesarrumada a ponto de não perceber que o lápis com a ponta mais afiada do mundo tinhadecidido pousar no meu olho? Porque, se for isso, preciso conversar urgentemente com umapsicóloga.

Limpo o olho com papel higiênico – é a primeira vez que desconfio do quão higiênico ele é.Abro a porta e encontro Alana mexendo em seu celular, mais interessada na timeline do seuFacebook.

Ela olha para cima, com menos remorso do que eu gostaria de ver.– Ai, você tem que me perdoar – ela encosta a mão magricela e “manicurizada” na minha.

– Tudo bem, não foi sua culpa – ajeito o meu suéter na cintura e forço um sorriso. – Eu vouao médico mais tarde. Tenho certeza de que não foi nada.

Ela parece tranquila demais para o meu gosto e volta para a minha sala, esperando que eu asiga. Que folgada!

– Então... – ela fala mais ansiosa do que o normal, aparentemente torcendo para que eudeixe o episódio do olho para lá. Mesmo sendo difícil de imaginar como ela mesma podeesquecer se estará olhando diretamente para ele pela próxima meia hora.

– E então? O que me conta? – faço a minha pergunta padrão de início de consulta.– Eu estou noiva! – ela desembucha.– Você o quê?Ela pirou de vez?Eu estaria piscando sucessivamente se conseguisse, mas essa façanha reserva-se aos que

não estão com o olho dolorido.– Mas você está namorando só há três meses – digo com calma, porém completamente

consciente de que minha paciente com padrão de impulsividade está prestes a se jogar de cabeçaem mais um relacionamento.

Ela sorri, radiante, revelando dentes muito brancos. Com certeza é clareamento.– Eu sei! Não é o máximo? Eu deveria ganhar um prêmio por fisgar um cara em tão pouco

tempo.É verdade. Foi um belo feito. Ou será que o problema é o cara? Desvio-me do meu instinto

de oferecer meus serviços a ele, preocupada com sua saúde mental, e prossigo em minha buscapela explicação.

– Não acha que é um pouco cedo? – pergunto, com cautela.– Cedo? Eu já tenho 23 anos, pelo amor de Deus! A última coisa que quero é ficar para titia.

Sem ofensa, Mel – suas sobrancelhas perfeitamente desenhadas juntam-se com pena, e elafocaliza seus olhos pretos no meu dedo anelar sem aliança nenhuma. – De jeito nenhum sereiuma velha dona de 27 gatos.

Ora! E por que é que eu deveria me ofender? Não estar noiva automaticamente mecategoriza como uma pessoa solitária? E por que é que não deixam as donas de gatos em paz,droga?!

– Não me ofendi, humm... só tenho 24 anos – tento manter a calma (psicólogos devemmanter a calma, certo?) e mudo de assunto dizendo a única coisa que julgo adequada nomomento. – Então, meus parabéns pelo casamento!

Estico a mão e toco levemente a dela, o mais distante que consigo, tirando meu olho de seualcance. Vai saber o que a furadora de olhos pode fazer! Sinto seu perfume doce ainda mais forteentrando pelas minhas narinas. E no meu olho, que arde levemente.

Apesar de ser muito cedo para um noivado, a coisa mais sensata no momento é lhe dar osparabéns. Ela não escutaria uma palavra do que eu tenho a dizer no calor do momento. É recentedemais.

Porém, terei que investigar se esse é o melhor momento para que ela tome uma decisãocomo essa, e fazer algo a respeito. Afinal, sou uma psicóloga especializada em relacionamentos.

Foi por isso que ela me contratou. E isso me coloca na posição moral de alertá-la.– E quando foi que isso aconteceu? – estou um tantinho curiosa para saber como esse cara

decidiu passar o resto de sua vida com uma mulher como Alana.– Sábado passado. E eu fiquei tipo assim, muito surpresa com o pedido. Não consegui falar

nada! O restaurante inteiro esperava pela resposta. Aí uma velha intrometida atrás de mim falou“Vamos, meu bem, se você não quiser, eu aceito”. Então eu disse “Cale a boca!” para ela eaceitei o pedido. Recebi uma salva de palmas do restaurante inteiro!

Ela bate palminhas.Gosto da história. Aliás, é exatamente assim que imagino ser pedida em casamento. Menos

a parte de ofender uma senhora de idade e mandá-la calar a boca, é claro.– Ele me deu esse anel – ela estica a mão a cinco centímetros do meu rosto e eu nem sei

dizer se é um diamante, de quantos quilates ou quanto custou, pois nunca vi algo parecido. – Seilá, eu o achei pequeno demais, você não achou?

– Se tem uma coisa que esse anel não é, Alana... é pequeno – digo, sem conseguir tirar osolhos do diamante, ou seja lá que pedra brilhante for essa.

– É, pode ser – ela desdenha com as mãos e prossegue a todo vapor. – Os preparativos docasamento já foram iniciados. Não vou ficar me estressando com pagamento, reservas e todasessas coisas chatas. Disso meu noivo que cuide. E deixei minha assistente pessoal cuidando doresto: lista de casamento, confecção dos convites etc. Para que eu possa decidir somente do quegosto e do que não gosto.

– Aham.– Cá entre nós... – ela se inclina, em tom conspiratório. – Estou bem mais preocupada com o

vestido de noiva.Às vezes me esqueço do quanto Alana é rica. Ela vem de uma família tão rica, mas tão rica

que jamais precisará se preocupar com a aposentadoria. Ou com a aposentadoria dos filhos. Ouqual dos Berlocs da Vivara vai comprar em seguida para completar sua pulseira Life. Pois ela jácomprou todos.

Ela pode comprar a Vivara, pelo que eu entendo.Nunca entendi exatamente por que ela se consulta comigo, dentre tantas outras terapeutas.

Tudo bem que eu sou especializada em relacionamentos e não se encontra uma dessas em cadaesquina. Mas mesmo assim. Alana é tão rica que pode contratar uma terapeuta particular paradormir em sua mansão, em vez de se deslocar até este lado da cidade exclusivamente para mever.

– Eu não contrataria uma terapeuta particular. Preciso fazer algumas coisas... Humm... comose diz? Fazer coisas como o resto das pessoas, sabe? – respondeu ela quando lhe perguntei sobreisso uma vez. Desde então, eu sempre a escuto usar esses termos que significam “parte dopovão” de forma implícita.

Nós nos conhecemos numa loja caríssima de um shopping da Zona Sul, onde quase nuncaentro, pois minha conta bancária não permite. (Até posso comprar uma peça de lá se eu venderum rim e tirar uma boa grana com esse procedimento.)

Ela chegou perto da arara que eu estava bisbilhotando bem no momento em que eu seguravaa etiqueta que marcava R$860,00 reais em um vestidinho preto básico.

– Uau! Olha esse preço! – eu sussurrei a ela.– Deve estar errado, não é possível – Alana disse, o rosto impassível.– Eu sei! Também fiquei chocada! – disse eu, de repente mais à vontade na loja, agora que

tinha alguém com quem compartilhar meu espanto. Até ela começar a sorrir, levantar o nariz,puxar o cabide com o vestido e entregá-lo à vendedora de ar esnobe para que ela colocasse noprovador com suas outras peças, e eu entender que na verdade ela tinha achado o preçoabsurdamente ridículo de barato.

Alana me pareceu simpática (posso ter me enganado um pouco aqui). Quando eu lhe conteique era terapeuta, logo pediu meu cartão de visitas e falou que eu tinha acabado de ganhar maisuma paciente. O que ela não sabia é que ela era apenas a segunda.

Quando percebeu que eu sairia da loja sem comprar nada, Alana estendeu um cardigã rosa-claro para a vendedora e disse:

– Embrulhe para presente, Silvia. Para minha mais nova terapeuta.É a peça mais cara do meu guarda-roupa até hoje. Reescrevendo: a peça é mais cara do que

meu guarda-roupa.– Como está se sentindo em relação a tudo isso? – pergunto a ela, tentando voltar ao que

realmente interessa.Ela começou a se consultar comigo porque não conseguia fixar-se em um relacionamento

sério. Desde então, torci para que ela encontrasse um cara legal. E, para minha surpresa, elaencontrou.

Desconfio que eu seja o cupido, porque em menos de um mês ela conheceu um novopartido e embarcou de cabeça em mais uma jornada impulsiva no amor. Mas casar-se com eledepois de tão pouco tempo de namoro? Eu me importo muito com os meus pacientes e estoupreocupada com ela. Isso só deveria ser permitido em filmes.

Ao longo da terapia, trabalhamos para que ela se torne uma mulher mais pé no chão, porémtemo que sua personalidade impulsiva atrapalhe sua recuperação.

Alana entrelaça as mãos, apoia os cotovelos na mesa e o queixo nos dedos.– Não posso dizer que não fiquei surpresa. E entendo sua preocupação, juro. Mas acho que

Rafael é o homem da minha vida. Tipo, ele me entende como ninguém. Todo mundo me achafútil ou mesquinha. Ou as duas coisas. Mas não ele...

Minha paciente parece feliz e eu começo a pensar em minha vida. É bem patético estarsentada na frente de uma garota tão deslumbrante quanto ela, que tem um cara atrás do outrotentando conquistá-la, e ainda por cima está noiva de um deles. Enquanto do outro lado da mesaestá uma terapeuta de relacionamentos, que provavelmente também precisa se consultar comuma.

Talvez um casamento repentino seja melhor do que casamento nenhum.Se eu fosse comparar a vida dela com a minha, estaria perdida. Tenho 24 anos e a essa

altura eu imaginava estar pelo menos namorando. E segundo os meus planos, namorando comele.

Tem mais alguma coisa me incomodando, só não sei ao certo o que é.Talvez seja difícil ouvir o nome do noivo dela, xará do cara que eu amo.Ou talvez seja apenas o meu olho dolorido.

Eu estaria nesse momento seguindo em direção ao metrô Trianon-Masp, provavelmenteultrapassando alguns dos estudantes que acabaram de sair do cursinho, na pressa de chegar aohospital que o meu convênio cobre, na Zona Leste de São Paulo.

Mas graças à bondade de Alana (ou à culpa pelo incidente do porta-lápis/medo de serprocessada), sigo calmamente de táxi (pago por ela) em direção ao hospital Santa Heloísa, que omeu convênio definitivamente não cobre e nunca cobrirá, para ter meu olho medicamenteverificado (também pago por ela).

Não que eu fosse fazer falta alguma no consultório, já que nesse início de carreira minhasúnicas pacientes são Alana e uma menininha muito fofa chamada Camille. Espero que Camillenão tente me cegar na quarta-feira também.

Por causa do trânsito, a Avenida Paulista passa devagar pela janela do táxi, contrastandocom o estilo de vida veloz da cidade. Prédios altos tocam o céu, estudantes de mochilas nascostas andam conversando uns com os outros e homens de terno e gravata passam por eles,apressados. Duas barraquinhas de pulseiras e colares artesanais estão montadas na calçadamovimentada perto de onde duas mulheres da minha idade conversam animadamente comalianças reluzentes no dedo.

Imagino que seja isso o que o amor correspondido faz na vida de alguém.Encosto a cabeça no banco do carro, deixando a luz do sol esquentar minhas pálpebras.Mesmo sendo melhor evitar pensamentos que me façam chorar – meu olho já sofreu o

suficiente por um dia – não consigo deixar de pensar no meu Rafael e nos planos que tenho paranós dois.

Não que ele saiba desses planos. É complicado contar ao seu melhor amigo que você gostadele, né?

O táxi com cheiro de pinho, vindo do aromatizador em forma de árvore de Natal penduradono retrovisor, para na frente do imponente hospital designado a mim. Como Alana já havia dadouma nota de cinquenta ao motorista, e o taxímetro marca apenas R$25,00, recebo um sorriso deorelha a orelha dele ao sair do carro, feliz com a gorjeta.

– Pode me ligar a hora que quiser, dona, que venho na hora buscar você ou sua amiguinhaloira, viu? – grita o taxista e me entrega seu cartão de visitas. Agradeço a ele, imaginando sua

desilusão quando descobrir que eu não daria gorjeta a ele nem que faltassem apenas dez centavosde troco.

Olhando (com um olho só) pelo lado positivo, pelo menos consegui o telefone de um carahoje, se eu considerar serviços de táxi. Não que isso vá acrescentar alguma coisa na minha vidaromântica inexistente.

Apoio-me no balcão de mármore para atendimento do hospital, digo meu nome e o quehouve. A recepcionista, com um batom clarinho na boca e o cabelo preso para trás, logo me dizque uma consulta já havia sido marcada para mim e que um médico me atenderá em instantes.Ela faz a minha ficha e mal coloco a bunda na cadeira para aguardar quando meu nome échamado.

Hmmm. Então é assim que é ser rica.

Ando pela rua, aliviada. O vento gelado bate no meu olho mas não me incomodo mais,depois de o médico dizer que não houve nenhum dano ao meu globo ocular, somente umapequena irritação causada pelo contato com o grafite do lápis, que pode deixar meu olhoavermelhado pelos próximos dois dias.

E ele até me deu uma amostra grátis do remédio, assim não precisarei efetivamente comprá-lo. É por isso que os ricos são ricos! Vira e mexe eles ganham alguma coisa.

O Hospital Santa Heloísa fica localizado umas ruas abaixo da Avenida Paulista. ComoAlana não pensou também no meu trajeto de volta, estendo o braço e pego o primeiro ônibus quesobe a rua inteira até o trabalho.

Abro a porta de vidro do pequeno consultório que divido com o psiquiatra e psicólogo JúlioParreira, um velhinho de 67 anos com uma barriga enorme e cabelos brancos.

É claro que já desconfiei que ele fosse o Papai Noel. Ele pareceu ligeiramente incomodadoquando lhe disse isso certa vez. Suspeito, eu diria.

Dou de cara com uma recepção vazia. Lorraine não está. Imagino que ainda esteja noalmoço, mesmo que esse já tenha acabado há treze minutos.

Então vejo: ah, quanta bagunça! O quadro abstrato cheio de formas e cores primárias naparede atrás da estação de trabalho de Lorraine combina com a confusão que é a mesa dela. Ummontão de papéis e pastas completamente desalinhadas. Três pastas coloridas chamam mais aminha atenção, empilhadas uma em cima da outra, a primeira na horizontal, a segunda na verticale a terceira na horizontal novamente. Porque alguém faria uma coisa dessas? Não é muito maisfácil simplesmente empilhar a droga das pastas na mesma direção?

Por que Lorraine nunca organiza sua mesa de maneira adequada?E por que eu tenho que me importar tanto com isso? Por quê, Senhor? Por quê?Argh!Olho para os lados e vejo que ninguém se aproxima. Lorraine não está em nenhum lugar

para ser vista. Removo a pasta de cima e coloco a segunda na posição certa, deixando-asalinhadas. Mas quando estou para colocar a terceira no lugar, percebo Lorraine parada bem ao

meu lado, com um coque no alto de seus cabelos pretos e um copo de café na mão, me olhandocom uma expressão entediada.

–Ah! – solto um gritinho. – Você me assustou!– Desculpe – ela diz, com uma mão no bolso da calça jeans, olhando para os meus dedos em

cima das pastas de sua mesa.Melissa, tire as mãos daí agora! Sua maluca obsessiva compulsiva.Mortificada, largo as pastas no lugar e assumo uma postura autoritária, para disfarçar o

TOC.– Er... seria bom arrumar sua mesa de vez em quando – digo sem sorrir, morta de vergonha.

– Os pacientes podem ter uma impressão errada do lugar.– Só fui pegar um café – diz ela sem nem me olhar nos olhos, sentando-se em sua cadeira

confortável de couro, que de repente tenho vontade de trocar por uma banqueta de plástico.Três copinhos usados de café espalham-se pela mesa dela. Ambas sabemos que ela não tem

uma célula de organização em seu corpinho magrelo.Meus dedos coçam. Mas a porta da sala de Júlio se abre, distraindo-me de meus

pensamentos, e ele acompanha uma paciente até a saída.Giro os calcanhares para observá-lo, apoiando o cotovelo no balcão da recepção.Tento tirar da cabeça o nervoso que mais uma vez passei por causa do meu transtorno.

Afinal, quantas vezes já não passei por situações como essa? O problema é que o TOC é algoque vai e volta em minha vida, e eu tinha certeza de que dessa vez ele não ia mais voltar.

Porém, de pouquinho em pouquinho, estou começando a ter impulsos cada vez mais fortes.E se eu me conheço bem, temo daqui a pouco estar fazendo quatro faxinas por dia na cozinha láde casa (baseado em fatos reais).

Pense em outra coisa. Chacoalho a cabeça para afastar os pensamentos inconvenientes.– Olha, essa mulher tem sérios problemas – ele diz assim que fecha a porta atrás de si.– Júlio! – arregalo os olhos. – Fale baixo! Ela ainda podia estar do outro da porta quando

você disse aquilo.Ele levanta as mãos para o alto.– Ora, estou mentindo?– Ué, eu não faço ideia! – digo, contendo o riso. – Ela não é minha paciente.– Bom, então vou lhe contar – ele se senta com um estrondo na poltrona marrom do lobby.

– Ela se consulta comigo porque o marido...– Lalalala! Isso é confidencial, eu não posso ouvir – tapo as orelhas com os dedos.– Você deveria estar tapando o olho, isso sim! – ele aponta para o meu olho avermelhado. –

Credo! O que aconteceu? Tá tentando virar pirata?Ele começa a dar risadinhas de mim com seu senso de humor nada refinado, dizendo que

vai me comprar um tapa-olho. O bom velhinho não teria uma conduta dessas.Eu me afundo dramaticamente na poltrona ao lado dele.– É uma longa história. Bom... na verdade, não é. Minha paciente furou meu olho com um

lápis. Fim! De qualquer jeito, já fui ao médico.

– Ora, que diagnóstico deu a ela para ter feito uma coisa dessas com você? Duplapersonalidade?

– Foi só um acidente – não consigo segurar a risada. – Mas chega de falar da minha vidasofrida. O que há de novo com você?

Ele se encosta e entrelaça as mãos na barriga protuberante.– Ah, nada demais, nada demais. O mesmo de sempre – ele me olha de canto de olho. –

Aliás, tem uma coisa.Júlio se levanta e vai correndo até sua sala, a maior do consultório. Ouço um barulho de

gaveta ao fundo, passos rápidos de um rechonchudo, uma bufada, e então ele está de volta nolobby com o celular na mão.

– O que você acha? – ele estende seu smartphone para mim e revela uma foto sua numjaleco branco de médico e uma expressão formal no rosto. – Eu me inscrevi em um site denamoros online.

– Tá brincando? – pego o celular das mãos dele.– Por insistência dos meus filhos. Segundo eles, eu deveria ter feito isso há um tempão.

Decidi dar uma chance.– Júlio, isso é incrível! Bom pra você – analiso a foto do meu amigo divorciado. – Essa é

sua foto de perfil?– É sim, filha. Ouvi falar que mulheres adoram médicos – ele levanta sugestivamente as

sobrancelhas.– Se eu fosse você, colocaria uma roupa mais informal, como uma camisa pólo. E tiraria

outra foto. E dessa vez sorrindo – acrescento.Suas sobrancelhas se juntam e ele coça o queixo.– Sem jaleco, sorriso no rosto – repito.– Sem jaleco? – ele parece desapontado, suas bochechas caídas de descrença. – Ora, mas

então como é que elas saberão que sou médico?– Elas não saberão – levanto o dedo indicador. – Pense bem, doutor. Você não quer arranjar

uma namorada interesseira.– Isso nunca! Já me basta minha ex-mulher.– E, além disso, o jaleco pode dar a impressão errada sobre você. Alguma mulher muito

bacana pode te achar um workaholic que não vai ter tempo pra namorar.– Você pode ter razão. Mas ainda não estou muito certo quanto a isso. – Ele pega o celular

de volta, bloqueia a tela e passa a mão nos cabelos brancos escassos.– Sobre o jaleco? Olha, vai por mim, você não vai querer uma maria-jaleco e coisa e tal...– Não, não – ele me interrompe, achando graça. – Quero dizer, sobre a coisa toda.– Ah. Namoro online? E por que não?– Não me parece uma maneira muito natural de conhecer pessoas.Apoio a mão no ombro dele.– O senhor deve fazer o que se sentir confortável. Mas a internet é uma ótima ferramenta na

busca por relacionamentos. É uma forma como qualquer outra. E há vantagens, como filtrar osinteresses em comum.

Ele calmamente sorri para mim, mostrando seus dentes amarelados.– Você é realmente boa nisso, não é, filha?Cruzo as pernas e o couro sintético da poltrona range.– Err... não sei se isso é verdade.– Ora, mas é claro que é. Você entende sobre relacionamentos e quer ajudar as pessoas – ele

me incentiva, sabendo o quanto eu queria ter mais pacientes. – Mais dia, menos dia, vai estarajudando muita gente.

– Obrigada, doutor. Assim espero.Ele se levanta da poltrona.– Não, obrigado você. Agora sim arranjo uma namorada. Vou te comprar uma lembrancinha

por isso.– Imagine, isso não é necessári...– Que tal um tapa-olho?

Na sexta-feira à noite nos encontramos no Villa’s. É um lugarzinho charmoso no bairro dosJardins, com a decoração composta de luzes verdes fosforescentes iluminando lindos vasos depalmeiras, cadeiras de ferro combinando com as mesas de vidro, ocupadas por seus clientesricos.

Então, o que é que eu estou fazendo aqui?É o que eu penso toda vez que piso no Villa’s. O burburinho animado vindo dos diversos

happy hours consegue me deixar mais empolgada – apesar de o frio na minha barriga não ser porcausa disso.

Não sei por que frequentamos tanto esse lugar se o preço da água é mais caro do que aroupa que estou usando.

Bem, talvez eu saiba o porquê. E ali está o meu porquê. Sentado em um dos banquinhosaltos acoplados ao balcão do bar está o meu melhor amigo, Rafa. O meu Rafa.

Diferentemente do noivo da minha paciente Alana, esse Rafa não é louco e nemdesesperado como aquele parece ser. Ah, não. Eu diria que ele é a definição de bom partido.

Nós nos conhecemos no colégio e permanecemos amigos desde então. Isso porque somosmuito parecidos. Somos organizados, racionais e pensamos antes de agir. Não somos impulsivos.Ele é inteligente, responsável e gentil.

Nós dois fazemos sentido juntos.E por sermos tão perfeitos um para o outro é que eu não tenho pressa. Sei que vamos ficar

juntos no final das contas, mesmo não tendo havido nenhuma interação romântica entre nós até opresente momento.

Mas isso não quer dizer nada, não é?É claro que já saí com alguns caras, uns mais inapropriados que os outros, mas nunca

namorei. Nunca senti vontade de ter um compromisso com nenhum deles como tenho com oRafa. Ele simplesmente faz sentido. E um dia ele vai enxergar em mim tudo o que enxergo nele.

Ele tem que enxergar, certo?Então, se eu frequento tanto esse bar, é porque o Rafa adora esse lugar. E se o preço é

absurdo, se os funcionários são rudes ou se é longe da minha casa, eu não me importo. Porque sóde passar a minha noite de sexta-feira ao lado dele já é o suficiente.

Mesmo que não estejamos sempre sozinhos.– A propósito, você está linda – diz Pati, minha amiga supersincera, toda trabalhada no

brilho. Ela faz faculdade de Moda e acredita estar lançando uma tendência incrível. Felizmentepara ela, eu sou tão sincera quanto.

– Obrigada, Globo de Luz dos Anos 80 – digo, referindo-me à sua blusa de paetês prateadosque ela combinou com uma calça furta-cor, meio roxa, meio azul, meio sei lá o quê.

– Ha ha. Muito engraçado – ela diz na minha orelha. – Você também não está lá essascoisas.

– Você acabou de dizer que eu estou linda – rebato, minha voz tentando sobreviver noburburinho.

– Bem... pois eu menti.Um garçom vestindo camisa social e gravata preta passa por nós carregando uma tábua

fumegante de filé mignon com uma mão só. Minha boca se enche de saliva, e meus olhos quasede lágrimas. Essa porção custa o valor das minhas roupas!

Aumento o passo na direção de Rafa, a fim de pegar a banqueta ao seu lado. Pati diz que eusou covarde. E, sim, eu sei que eu poderia dizer a ele o que acho de nós dois, mas eu quero queas coisas se desenrolem naturalmente. Só que também tem o seguinte: eu não quero ficar paratitia. Então talvez ela tenha alguma razão.

Conheço Patrícia desde que tínhamos nove anos, quando ambas morávamos no Flor-de-Lis,o condomínio dos meus pais. Posso dizer com toda certeza que ela é minha melhor amiga, apesarde não ter muita certeza sobre os modelitos dela.

– Hey! – digo sorrindo para o Rafa e sentando-me ao seu lado.Ele me dá um beijo na bochecha. Droga, por que é que ele não erra e acerta minha boca?– Você está elegante – ele diz.Meu coração bate mais forte.– Essa coisa velha? – puxo um pedaço do pano da bata azul-bebê que comprei semana

passada.– Antes de mais nada, posso saber o motivo do sumiço? – Pati se dirige ao Rafa.E eu preparo meus ouvidos para a resposta.Pelos menos ele está aqui.Fazia duas semanas que ele não saía conosco, sempre com uma desculpa diferente, mas

todas relacionadas ao trabalho. Eu já estava achando aquilo muito estranho. Porque praticamentenunca ficamos sem nos ver por tanto tempo assim, e ultimamente ele tem furado muito com agente.

– Você sabe, Pati – ele levanta uma sobrancelha. – Minha vida de modelo não me permitemuito tempo de lazer.

Ele não é modelo coisa nenhuma. É um administrador recém-formado, que trabalha comoanalista da área de cobrança de dívidas no Banco Nacionalista. Só que ele e Pati sempre brincamque são bonitos demais para não terem sido convidados para desfilar em Milão.

E realmente, preciso concordar.

Não, não estou falando de Pati, não. Sim, ela também é bonita, na verdade. Pati tem lindoscabelos ruivos e ondulados, um sorriso bem branquinho e sardas fofas ao redor das bochechas. Etem um nariz pontudo, bem grande e avantajado para frente, que você acha que não funcionaria,mas que nela funciona muito bem, e lhe dá um certo toque imponente. Mas não é dela queestamos falando.

Estamos falando do Rafa... ah! Como alguém pode nascer assim tão fofo? Quero dizer, semser o Príncipe Harry ou sem fazer cirurgia plástica? Pati diz que eu exagero nesse ponto, que eleé apenas “aceitável”.

Isso se dá porque ela só olha para a beleza superficial dele. Eu olho para o conjunto todo daobra: o rosto simétrico, o maxilar quadrado, o modo como ele anda, a postura ereta quando estásentado, a voz grossa e o modo imperativo de falar. Seu cabelo sempre penteado para trás, de umloiro escuro bem lisinho – só que ele não precisa fazer escova progressiva igual a mim (querdizer, pelo menos eu acho que não. Vai saber? Muita gente nem desconfia que meu cabelo não éliso de verdade, esses trouxas. Viva o progresso!).

Nem acredito que sou melhor amiga de alguém como ele. Deve ser por isso que tambémnão consigo ser sua namorada. Seria pedir demais do universo.

Mas gostaria gentilmente de deixar claro para o universo que eu prefiro mesmo que eleseja meu namorado em vez de melhor amigo. N-a-m-o-r-a-d-o. Só para deixar registrado, casohaja dúvidas.

– Não importa o que você diga, cara – diz Pati, pendurando sua bolsa verde-limão nacadeira. – Sou mais estilosa que você.

– Pati, olha só para mim – ele aponta para seu terno preto bem passado. Ele deve ter vindodireto do trabalho, depois de fazer algumas horas extras. Talvez seja por isso que tem estado tãoausente. – Mais dia, menos dia, alguém vai me descobrir.

– Não se me descobrirem primeiro – ela se inclina no balcão e cerra o punho no ar.– Como nenhum de vocês é modelo de verdade... – digo. – Não há necessidade de passar

fome, então será que podemos comer?Gostaria de poder dizer que minha pressão cai quando não ingiro açúcar rapidamente, mas

isso seria mentira. Eu simplesmente adoro comer.Uma porção de frango frito e minha velha caipirinha de kiwi com vodca são meu pedido

padrão. Essa é a melhor tática. As coisas aqui são caras demais pra arriscar pedir algo que eupossa não gostar. Só checo o cardápio pra conferir se eles não aumentaram o preço.

– Vou querer o de sempre – coloco o cardápio de volta na bancada, olhando em volta dobar.

– Então, uma porção de frango frito e uma caipirinha? – pergunta Rafa, e eu confirmo coma cabeça.

– Falando em frango, cadê o galinha do Leo? – interrompo e solto uma risadinha. Ah, essafoi boa, vai? – Ele disse que viria pra cá depois do trabalho.

– Olhe melhor – Rafa aponta com a cabeça para o lado.Olho para onde aquela linda cabeça indica e ali, um pouco distante do balcão, Leonardo

mostra seu sorriso cheio de dentes brancos enquanto conversa com uma garota muito bonita.

Morena, de cabelos lisos e longos. Fico abismada com sua roupa (quase tão abismada quantofiquei com a roupa de astronauta da Pati). A garota usa uma calça muito colada e um tomara quecaia que parece mesmo que vai cair a qualquer momento. Ele percebe que o estamos encarando ediz “pede frango frito” com mímica labial sem que a garota veja.

Argh!– Cancela o frango frito – reviro os olhos.– Coitado, Mel – Rafa diz. – Além do mais, se cancelarmos o pedido, você também não vai

comer.– Tá legal – digo. – Mas vou comer tudo antes de ele chegar.– Tarde demais. Aí está ele.Leo caminha em nossa direção, desviando dos grupos de pessoas que bebem suas cervejas

de pé. Seus olhos verdes estão compenetrados no celular, provavelmente salvando o telefone dagarota.

Eu não diria que Leo é famoso por despedaçar corações. Isso se prova impossível, tendo emvista que ele nem ao menos sabe o que é um coração – porque não tem um. Ele consegue arranjardefeito em cada garota que conhece, não fica satisfeito com uma sequer.

Sinto pena pela mãe dele. A pobre coitada ainda tem esperanças de ter um neto um dia. E euacho que, com a quantidade de garotas com quem ele dorme, esse neto pode bater na porta dela aqualquer momento, pedindo pela pensão.

– Olá, amigos. Olá, Melissa – Leo senta-se ao meu lado e passa os braços ao redor dosmeus ombros.

Ele é um dos amigos mais próximos que tenho, quase como um irmão. Se eu pudesse mudaralguma coisa nele, seria seu jeito mulherengo. Apesar disso, é um bom amigo. Mas come muitorápido e monopoliza o frango frito.

– E aí, quem é a da vez? – pergunto, apontando a cabeça na direção da menina.– Só uma garota que ficou me olhando por muito tempo, nada demais.– Se ela ao menos soubesse como isso vai acabar... – Pati diz, dando risada, os braços

cruzados em cima da bancada.– Ah, qual é! Eu não sou tão ruim assim.– Deixem o cara em paz – diz Rafa. – Dessa vez ele não teve culpa. A garota praticamente

pulou no colo dele.Um arrepio percorre meu corpo só de pensar que a garota poderia facilmente ter escolhido

dar em cima do Rafa, e meu estômago se embrulha. Melhor mesmo que ela tenha feito isso como Leo.

– Fazer o quê?! Quando alguém se joga pra você desse jeito tão óbvio... – Leo diz, tentandoalcançar a cerveja no balde – Você agarra.

– Uma hora ou outra você vai querer se comprometer – Rafa diz e passa uma cerveja a ele.– Você vai ter que crescer, Leo. Foi isso o que ele quis dizer – Pati diz.– Não foi não, cara – esclarece Rafa, dando risada e depositando cerveja mecanicamente em

um copo de vidro.– Vai ter que se comprometer – Pati diz.

– E aí vai ter que parar de fazer essas coisas de criança. Como jogar videogames, porexemplo – digo.

– Ou brincar no balanço do parquinho – inventa Pati.– Ou usar fralda – continuo.– Não vai mais poder chupar chupeta – diz Pati.– Certo, vou jogar a minha fora – diz Leo, entrando na brincadeira, e bebe um gole da

cerveja direto do gargalo.– Ou usar rodinhas na bicicleta – eu continuo.– Ou andar dentro do carrinho do supermercado – até Rafa participa.– E não vou mais poder namorar todas as menininhas da escola, já saquei –diz Leo,

levantando as mãos para o alto, em rendição.E então ninguém se aguenta. De repente, estamos todos rindo.– Você entendeu o recado – digo a ele.– Tá legal, agora me deixem ver o cardápio – Leo muda de assunto, esticando o braço para

alcançar o cardápio com capa de couro preta e o nome do bar em alto-relevo. – Vocês, garotas,querem um pedaço de mim, isso sim.

– Vai sonhando – diz Pati.– Coitado – eu digo.Ele sempre precisa do cardápio porque tem uma política de pedir algo diferente toda vez

que vem aqui, para provar de tudo.Bem a cara dele, se é que você me entende.– Mas e aí, Rafa? O que me conta de novo? – pergunto, redirecionando o foco para o que

realmente me interessa.– Sem novidades, psicóloga Melissa – ele se ajeita na cadeira. – Muito trabalho lá no banco,

só isso.Ele coça a cabeça e olha para os lados. Minha mente de psicóloga analisaria isso como um

desconforto, possivelmente uma mentira, mas não quero ser paranoica e analisar todo mundo aomeu redor.

Algumas mesas de formato redondo ficam vagas no bar lotado, quando um grupo imenso deengravatados com ar cansado pede a conta e vai embora para suas camas. A luz baixa doambiente deve ter lhes dado sono. Descemos dos banquinhos altos e desconfortáveis do balcão enos acomodamos na nova mesa disponível, mas as cadeiras não são muito mais confortáveistambém. Eu detesto esse lugar.

Fazemos nossos pedidos, mas Pati ainda não parou de falar desde que nos levantamos dobalcão, reclamando do seu emprego como concierge no hotel luxuoso onde trabalha, e no quantodeseja trabalhar com moda.

Meu consultório preenche meu coração de felicidade. Vou animada para o trabalho, voltosatisfeita para casa. Só que ter apenas duas pacientes não ajuda muito nas despesas. Montar meupróprio negócio está sendo mais difícil do que imaginei.

Abandonei um salário fixo, plano de saúde e o meu precioso vale-alimentação. Ao mesmotempo, abandonei também horários inflexíveis e estou realizando meu sonho. Só queria que esse

sonho me pagasse mais.Leo me dá um chutezinho por debaixo da mesa e me traz de volta à realidade.– Ei, tô falando com você! O que aconteceu com o seu olho, Frankenstein?Eu o chuto de volta, ciente de que o meu chute foi mais forte. Ele diz um “ai” sem som e

sorri para mim. Sorrio de volta. O cheiro do perfume dele chega aqui do outro lado da mesa, oaroma amadeirado de sempre do Leo desde a faculdade.

– Um lápis entrou no meu olho.– Hum... ferimento de nerd. Sim, me parece correto – ele diz com um sorrisinho nos lábios.Pati dá uma gargalhada alta, impedindo-me de dar a resposta que Leo merecia.–Ei, Pati... você parece feliz – Rafa diz.– Anda saindo com alguém, não é? – é a vez de Leo insinuar.Pati ajeita-se na cadeira e morde o lábio.– Bem, para falar a verdade... estou sim saindo com um cara.– É mesmo? – digo. – Você não me contou isso!– Er... é porque é algo supernovo, amiga.Ela mexe nas unhas e desvia os olhos de mim.– Sei.– E ele é lindo, lindo, lindo, lindo! – ela diz. Essa última parte saiu tão alta que me preocupo

com a integridade física dos copos, que podem estourar com a frequência de sua voz aguda.– Deixe-me adivinhar – diz Leo. – Ele é cabeludo e de barba até o peito.– Provavelmente tem um alargador em cada orelha – continuo.– E curte bandas estilo underground – prossegue Leo, claramente se divertindo.– Não, não. Ele é de uma banda estilo underground – digo, me divertindo também.– Ha ha. Não tem graça, gente – ela diz.Ficamos em silêncio.– Mas sim, ele tem uma banda – ela admite e explodimos os quatro em gargalhadas.Estou para apostar que ele também tem o cabelo preso em um rabinho no alto da cabeça.

Digamos que a Pati tenha um tipo.– Como eu ia dizendo... ele é lindo. Lin-do! Ele está se desenvolvendo como pessoa, sabe?

E ele me disse a coisa mais engraçada outro dia, vocês não vão acreditar...Nossos pedidos chegam. Leo e eu começamos a atacar o frango frito como se não houvesse

amanhã – tomo cuidado para que o Rafa não perceba meus rudes modos alimentares – enquantoPati continua falando sobre o tal do cara lindo, lindo, lin-do!

– Tá bom, Pati. A gente já entendeu o quanto ele é bonito, graças a Deus. Obrigado, Senhor!Bendito seja! Então a gente já pode falar de outra coisa agora – responde Leo, entre mastigadas.

Eu morro de rir.– Não é só porque você tem fobia a relacionamentos que todo mundo precisa ter, ô garoto –

rebate Pati e eu concordo.– Se você quiser tratar essa fobia, posso te atender por um precinho camarada – ofereço.

Qualquer coisa por um paciente a mais.

– Não é fobia – Leo diz. – Eu só não sou um cara que sonha com essa coisa toda derelacionamento sério, casamento e tal. Esse é o seu sonho, Mel, e não o meu.

Ele aponta um dedo para mim e faço uma careta para ele.Ele precisava falar disso na frente do Rafa?– E digam o que quiserem... – Leo continua. – Mas faz tempo que não encontro uma garota

que seja tudo isso.– Então quer dizer que ninguém é bom o bastante pra você? – arqueio as sobrancelhas. Ele

se acha a esse ponto?Leo morde um pedaço do frango.– Mais ou menos isso.– Você não é perfeito, sabia? – Pati questiona.– Ah, não? – ele coloca a mão no peito, fingindo dor no coração. Rafa só dá risada.– É só te olhar para ver o defeito número um: não sabe comer como um adulto – debocha

Pati, olhando do Leo para o frango.Uma quantidade alarmante de pedacinhos de comida se alojou na minha calça jeans. Limpo

discretamente antes de ser acusada também.– Melissa também não sabe comer, e ninguém parece ter um problema com isso – Leo

aponta tranquilamente para a minha blusa, onde uma enorme mancha de ketchup decidiu seinstalar.

Droga! Droga, droga, droga. Pode jogar bebida na minha cara e uma pomba pode até cagarna minha cabeça, contanto que não estrague as minhas roupas. Principalmente as novas. Ketchupsai, certo?

– Ketchup sai, certo? – pergunto a Pati, mas ela faz que não sabe.Como ela pode não saber? Ela não faz Moda, pelo amor de Deus?Devo estar parecendo uma idiota. Será que eu não consigo nem comer sem parecer uma

babaca na frente do Rafa? O que ele deve estar pensando de mim?Eu sei o que o Leo está pensando de mim. Porque ele faz questão de me dizer.– Pelo amor de Deus, Melissa! Recomponha-se! Você é uma mulher adulta – ele me passa

um guardanapo, rindo de boca aberta, enquanto eu penso em formas de humilhá-lo.Mas acho que não preciso. Ele já faz isso sozinho.– Eu conheço um antimanchas muito bom – diz Rafa. Ele não é mesmo um cara gentil? –

Você pode comprar em qualquer supermercado. Fique tranquila, mancha de ketchup sai.Pati sorri discretamente para mim e Leo olha para o frango com cara de tédio. Uma onda de

alívio me invade, agora que sei que não perdi uma blusa que me custou R$99,00.No entanto, por mais engraçado que pareça, a bata nem me importa mais. Também não

importa que a caipirinha tenha custado R$28,00, que o bar fique longe de casa ou que eu estejausando uma blusa fedendo a ketchup.

Só o que importa é que estou certa. Ele pensa como eu penso. Porque ele é perfeito pramim.

Em pleno domingo, eu tenho uma palestra marcada para as 11h na Livraria Cornoalle, nocentro da cidade.

Eu me formei em Psicologia em uma das faculdades particulares mais prestigiadas doEstado, e tenho os conhecimentos necessários desta área. O problema é que sou uma lástimacomo empreendedora. E, para manter um consultório, é preciso um pouco dos dois.

Logo que me formei, consegui um emprego de meio expediente como psicóloga eorientadora na escolinha de ensino fundamental onde estudei até os 14 anos. Como sempre tiveuma relação mais do que boa com a coordenadora de lá (sim, Leo tinha razão, eu era nerd),mantivemos contato. Assim que surgiu uma vaga, ela me ofereceu. E como toda boa recém-formada sabe fazer, eu aceitei de imediato.

Mas com a minha especialização em Relacionamento Conjugal, eu desejava atenderpacientes com problemas na área amorosa da vida. Digamos apenas que eu não era autorizada afalar desse tipo de assunto para crianças de oito anos em uma escola católica.

Então, quando meu pai me ofereceu uma salinha (pequena, porém suficiente) no novoimóvel que ele havia comprado para alugar, eu agradeci aos céus. Eu finalmente poderiatrabalhar por conta própria, curando alguns corações partidos por aí, começando minha jornadacomo empreendedora.

O problema é que sou terrível nisso.Quando pedi demissão da escolinha, a mãe de uma adorável aluna me implorou para

continuar atendendo sua filha, tendo percebido uma melhora significativa em seucomportamento. Contando com Alana, num período de seis meses tenho uma somatória incrívelde duas pacientes.

Entro na livraria procurando por Leo, mas não consigo encontrá-lo. O cheiro de café vindoda cafeteria gourmet no cantinho do estabelecimento e o ar condicionado me atingem em cheio.Se eu fosse paranoica, diria que eles aumentam o ar só para que os clientes fiquem com frio ecomprem café quentinho.

– Bom dia – a voz suave de Leo surge atrás de mim.Viro-me para encontrar seus intensos olhos verdes.

Ele se veste muito bem, tenho que admitir. Blazer azul marinho, camisa preta para dentro dacalça cáqui, cinto de couro e sapatênis. O cabelo ondulado, curto e escuro, jogado para o lado.

É difícil imaginar que aquele garoto da faculdade se tornou um pouco menos desleixado eaté bonitinho. Mas eu o conheço bem. É provável que ele tenha se aprontado no capricho porcausa das várias mulheres que irão compor minha plateia.

Leo trabalha em uma agência de organização de eventos e concordou em me ajudar nashoras vagas no estilo completamente de graça a expandir minha clientela de duas pessoas para...bem, para mais gente, por favor!

– Aí está você – cumprimento-o.– Alguém andou se arrumando – ele me olha de cima a baixo. – Tomou até banho?Eu precisava de uma roupa que expressasse que sou uma terapeuta que descobriu os

mistérios dos relacionamentos, assim como Silvio Santos descobriu que jogar dinheiro pro altoem seu programa de auditório só traz mais dinheiro ainda.

Contei com a ajuda da minha consultora particular de Moda – Pati –, que não pôdecomparecer à palestra por causa da ridícula carga horária no hotel onde trabalha. Optei por umacalça social preta, que me custou o valor de todas as consultas do mês passado, mas valeutotalmente a pena, porque ela é simplesmente incrível. Adicionei uma camisa branca, um sapatode bico fino preto e um blazer para completar.

Adotei uma maquiagem leve que eu esperava que transmitisse a ideia de que acordeimaravilhosa, e não a terrível verdade, que é a de que o meu rosto está coberto por umainterminável lista de produtos: primer, base, corretivo, pó facial, bronzer, blush, iluminador,sombra, delineador marrom, rímel preto e, por fim, um batom nude.

– Eu sempre tomo banho – digo a ele, que logo se distrai com a presença de uma garota deshorts passando ao nosso lado.

Ele acompanha os movimentos dela, olhando por cima do meu ombro. É tão típico dele. ORafa nunca faz isso. Nunca! Sabe qual é a chance de encontrar um homem que não faça isso?Quase zero. É por isso que ele é especial. (Tudo bem que ele se torna um pouco menos especialpor ter furado comigo de última hora e não ter vindo à palestra. Outro compromisso detrabalho, para variar.)

Saio andando para longe do Leo, como forma de protesto, em direção ao auditório.– É para o outro lado – ele me corrige e eu volto a andar em sua direção. Paro na frente

dele.– Será que somente por hoje você poderia se concentrar em me ajudar, por favor? – suplico.

– E não ficar olhando para a bunda das mulheres da minha palestra?Fico séria ao falar com ele. Estamos nos olhando fixamente, e sinto que estamos formando

uma espécie de cooperação mútua. Mas outra garota caminha em nossa direção, ele não aguentae vira o rosto para observá-la.

– Você é ridículo! – saio batendo o pé, o salto fazendo barulho a cada passada no piso deporcelanato, deixando para trás a voz dele na forma da frase “É mais forte do que eu”.

Minhas mãos começam a tremer enquanto espio a sala cheia de mulheres.

– De onde todas elas surgiram? – falo sozinha, incomodada com a falta de homens, masimpressionada de tanta gente ter aparecido.

– Eu paguei para que elas aparecessem, claro – diz Leo bem no meu ouvido e eu dou umpulo de susto. – São figurantes.

– Figurantes?– Eu só tô brincando... relaxa – ele coloca o braço ao redor dos meus ombros. – Enviei

alguns e-mails para a lista de contatos lá do escritório que tinham a ver com o seu conteúdo. Eelas apareceram.

– Acho que as palavras “café da manhã grátis” devem ter tido algo a ver com isso.Ainda não acredito que tive que desembolsar o custo do café antes da palestra.Ele dá risada e me segura pelos ombros.– Relaxa, menina. Vai dar tudo certo. Você vai se sair bem e eu estarei lá com você – diz

ele, de repente doce e confortador. – E com outras 25 mulheres maravilhosas também.– Você acabou de me incluir nessa classificação das mulheres maravilhosas? –ressalto a

ambiguidade da frase dele, sabendo que aquilo o deixaria embaraçado.Leo fica sem graça e diz “Deixa de ser idiota”. Então, ele dá um empurrãozinho nas minhas

costas e me joga para dentro da sala. Vejo mamãe e papai sentados no canto, ela acenando paramim de forma efusiva. Aceno com a cabeça, sem esboçar sorriso.

Um passo de cada vez. Um passo de cada vez.Já era hora de fazer alguma coisa a respeito da visualização do meu negócio. As pessoas

tinham que me conhecer. Era isso ou vídeos no YouTube, mas não sou muito boa com câmerasnem com redes sociais. Foi aí que tive a ideia de oferecer uma palestra gratuita sobrerelacionamentos e, com alguma sorte, algumas dessas pessoas se tornariam minhas pacientes.

O fato de Leo ter composto a plateia somente com mulheres me faz duvidar do seuprofissionalismo?

Sim. Totalmente.Mas não posso me esquecer de que ele está fazendo tudo isso de graça. Eu lhe ofereci

sessões de terapia como retribuição, mas ele disse que não precisava. Aposto que ele aceitaria seeu retribuísse apresentando-lhe amigas terapeutas solteiras.

Subo no palco tomando o maior cuidado para não cair na escada lustrosa. As paredes dominianfiteatro da livraria são de um tom de vermelho escuro e a mobília é toda de madeira. Ébem bonita – e devia ser mesmo, já que tive que pagar R$150,00 para alugar o espaço.

Cadeiras estofadas dão assento a mulheres de olhos bem atentos a mim. E papai, o únicohomem da sala, que olha para frente com tédio, por trás das lentes dos seus óculos de grau. Étanta informação que tenho dificuldade de me concentrar em uma coisa só e de manter minharespiração num ritmo normal.

As vozes dos clientes do lado de fora são abafadas quando Leo fecha a porta, o silênciotomando conta do lugar.

– Bom dia – minha voz sai trêmula.Limpo as mãos suadas nas laterais da calça. A calça mais cara que tenho está sendo

recipiente para o meu suor.

– Meu nome é Melissa Belinque. Sou psicóloga especializada em relacionamentos e apalestra de hoje é intitulada “Os cinco hábitos para uma discussão saudável”. É destinada não sóa casais com dificuldade de se expressar em momentos de crise, mas aplica-se também aproblemas com familiares, colegas de trabalho e relacionamentos em geral.

É um bom começo. Nem gaguejei muito nem nada. Leo está de pé na parte de trás da sala eme levanta o polegar como sinal de aprovação. Algumas pessoas balançam a cabeça econcordam, mas a maioria permanece quieta. Continuo.

– Separei cinco dicas para transformar uma briga em uma discussão saudável. A primeiradelas é: seja direto e diga o que o incomoda.

Algumas pessoas fazem anotações e fico um pouco mais à vontade agora que elas seinteressaram. A não ser por uma mulher na primeira fileira, que estranhamente me lembra umpônei e que não para de me olhar com uma expressão emburrada naquela cara de cavalo dela.

– Esses passos parecem óbvios, eu sei. E se houvesse uma fórmula mágica, o divórcio nãoexistiria, certo?

A plateia ri. Ufa! Minha piadinha passou no teste. Se a carreira de psicóloga não der certo,eu posso tentar stand-up comedy.

– Mas existe muito mais do que isso. É importante lembrar que, a cada um desses passos, apaciência e a compreensão devem estar sempre presentes. Vamos começar falando sobre o passoum.

Com o laser pointer, mudo o slide da tela da apresentação que preparei. Estou indo bem!Falo sobre os passos um, dois e três, e fico bem à vontade ao me comunicar com a plateia.

Na verdade, eu adoro isso aqui! Preciso me lembrar de perguntar ao Leo se ele precisa depalestrantes para a empresa dele.

Ando pelo pequeno palco, gesticulando e falando com tranquilidade sobre os passos quatroe cinco. Alinho meu blazer ao corpo quando meu relógio de pulso revela que já se passaramtrinta minutos. É hora de abrir espaço para perguntas.

– O que eu devo fazer quando o meu namorado ameaça terminar o namoro no meio de umadiscussão? – pergunta uma garota que não deve ter mais do que 19 anos. – Tipo, toda vez queestamos discutindo e ele vê que eu tenho razão, ele solta essa “carta na manga” – ela faz aspascom os dedos.

– Certo. Essa “carta na manga”... – repito o gesto. – não é nada saudável. A hipótese determinar um relacionamento nem deveria ser colocada em pauta. Eu sugiro que você o deixeterminar, como ele diz que fará. O que eu duvido muito, se você quer saber. Assim que eleperceber que isso não tem efeito sobre você, vai parar com essa palhaçada.

Fui longe demais praticamente chamando o garoto de palhaço?A plateia dá risada e a menina também. Não falei? Stand-up comedy!– E se ele não parar de agir assim, eu sugiro que você o deixe mesmo ir. Não é saudável

viver sob pressão e ameaças. Isso pode constituir um “relacionamento abusivo”. Causa medo eansiedade. Se você perceber que ele lhe faz mal, sugiro que você se afaste.

Ela agradece e Leo passa o microfone à mulher-cavalo da primeira fileira com o dedolevantado.

– Oi. Meu nome é Magda e eu estou tendo problemas com o meu marido – ela diz com umar tímido, olhando incerta para as mulheres ao lado dela. – Talvez eu devesse marcar umaconsulta com você, querida. Estou cansada de brigar.

Ai, meu Deus! Deu certo? Deu certo mesmo? Quase não consigo conter a emoção. Não pelasituação da mulher, pobre Magda. Mas pela palestra estar rendendo os frutos que eu queria!

Sinto-me imediatamente culpada por tê-la chamado de cara de cavalo, mesmo que empensamento, já que a cara de cavalo pode ser a minha mais nova paciente! Que provavelmente sótem cara de cavalo por estar triste. Aposto que ela é bem bonita quando sorri.

Minha mãe faz joinhas entusiasmadas com as duas mãos, o sorriso quase encostando nosbrincos enormes.

– Mas é claro! – digo, tentando parecer menos impressionada do que realmente estou elimpo a garganta. Não quero que ela pense que eu não tenho muitos clientes nem nada. Nãoquero que ela saiba da verdade. – Estaremos coletando as informações de interessados ao finalda palestra, e você é a primeira da lista!

Ela sorri (e não, ela não é mais bonita quando sorri) e faz menção de continuar falando, masé interrompida por uma voz no fundo da sala, que agora porta o microfone.

– Oi, meu nome é Raquel e estou à procura de uma terapeuta especializada nessa área. Vocêteria um portfólio sobre casais com mais de dez anos de relacionamento para nos apresentar? –ela levanta o queixo. – Desculpe, mas você me parece muito nova.

Ai, droga! Eu sabia que algo assim poderia vir à tona.Mamãe olha para ela como um cachorro raivoso e temo que ela voe no pescoço da mulher.Limpo a garganta.– Na verdade, eu tenho sim experiência com terapia de relacionamentos – digo de forma

vaga.Ela não precisa saber que trato disso com uma paciente só. E que Alana está prestes a jogar

fora todo progresso que construímos casando-se impulsivamente. E que se trata de umrelacionamento que nem atingiu a marca de um ano.

Mamãe olha para trás com cara amarrada. A plateia olha de mim para a tal da Raquel comexpectativa.

– Mas com mais de dez anos de relacionamento? – ela insinua.– Er... não, infelizmente.Estou perdendo a atenção da mulher, que estende o microfone de volta para o Leo. Então

me adianto:– Mas tem uma coisa muito vantajosa em consultar-se com uma terapeuta mais nova: a

disponibilidade de ouvir.A mulher volta a me dar atenção e abaixa o microfone para si. Ando até o centro do palco,

posicionando-me bem de frente a ela.– Não me entendam mal. Acredito que todo bom terapeuta ouça seus pacientes com

atenção. Mas um profissional mais novo na área tende a tratar o problema como se fosse a coisamais interessante do mundo. Digamos que nós tenhamos mais bateria.

As mulheres dão risada.

– Tudo nos interessa. Todo problema é tratado com intensidade. Exatamente porque nuncao escutamos antes.

– Hum... – a mulher coloca o dedo no queixo, ponderando. – Não tenho certeza de que issoé suficiente para...

– Mas é claro que é, pombas! – berra mamãe.Meu queixo cai.Mamãe está com a mão levantada, em sinal de “permissão para falar”, mas ela não entende

o conceito de permissão, então simplesmente continua falando. Todos viram-se para observá-la.– Melissa é a melhor terapeuta da cidade, isso eu posso afirmar com toda a certeza! – ela

prossegue olhando para trás enquanto papai dá um sorriso nervoso, idêntico ao meu. Ambossabemos o que vem em seguida: mamãe é ótima em meter os pés pelas mãos. Tenho certeza deque Leo está prendendo a respiração assim como eu.

– E, entenda bem, eu sei o que digo – ela assume uma expressão condescendente. – Eu acriei.

Ela levanta o queixo e o dedo indicador. Eu quero me esconder na terra.– E paguei pelos estudos dela também, claro.O grupo dá risada, simpatizando com os sacrifícios financeiros de uma mulher de meia

idade. Que ótimo! Era tudo o que eu precisava. Que clientes em potencial me achassem umafilhinha da mamãe que não conseguiu entrar em uma faculdade pública e teve que ser bancadapelos pais.

E foi exatamente o que aconteceu.Leo está retesado no lugar, os olhos arregalados para mamãe. Papai puxa a manga da blusa

florida dela discretamente, mas ela não parece ligar.– Que foi, Zé? – ela faz cara feia para ele. – Eu só estou tentando ajudar. Confie em mim.Ela se levanta.Ai, Senhor! Por favor, faça com que ela se sente!– Er... mãe... – digo baixinho, os dentes cerrados, e juntando as duas mãos nas costas.– Queridas, se estiverem passando por qualquer situação conjugal ruim, ela é a melhor

pessoa para ajudá-los. Melissa é atenciosa, gentil e honesta. Posso dizer que ajudou a mim e aseu pai nos momentos mais difíceis do nosso casamento apenas sendo uma filha exemplar.Imagine o que ela pode fazer sendo uma profissional formada.

A plateia parecia impressionada com as minhas habilidades infantis, balançando a cabeçaem aprovação e me lançando olhares simpáticos. Ok, acho que posso respirar novamente. Atéque mamãe não foi tão mal dessa vez. Estou tão acostumada com suas atitudes impulsivas queessa foi fichinha. Ela se senta.

Leo sorri para mim. Ufa! Papai coloca os braços ao redor dos ombros de mamãe comoaprovação e eu não posso deixar de sorrir também.

Pobre mamãe. Como pudemos desconfiar dela? Como pudemos achar que ela faria algumacoisa que prejudicasse meu trabalho?

Em nossa defesa, temos um histórico.

– Está bem – a mulher declara, provavelmente mais envergonhada por mim do querealmente convencida. – Nesse caso, talvez a experiência não seja necessária para compreenderos problemas de um relacionamento.

– Claro que não, meu bem – mamãe se dirige a ela, agora em tom afável. –Não é só porqueela nunca namorou que não pode te ajudar – e junta as mãos, orgulhosa, como se tivesse fechadoseu discurso com chave de ouro.

E só então ela percebe minha expressão de espanto por ter revelado para todo mundo aquipresente que sou uma terapeuta de relacionamentos que nunca conseguiu ter um.

– Não foi assim tão ruim.– Não foi?– Tá legal, foi um completo desastre – admite Leo, pelo telefone.– A culpa é sua!– Ah, não seja injusta. A culpa não é minha se elas ficaram tão interessadas na sua vida –

ele diz. – Pelo menos dessa vez elas não se interessaram pela minha.– Não. A culpa é sua por ter convidado minha mãe.Depois que meu queixo caiu, o sorriso de Leo se transformou numa careta e papai passou a

mão pelo rosto e se afundou na cadeira, as pessoas começaram a me encarar como se eu fosseanormal. Parecia que procuravam bem no fundo da minha alma a resposta para a pergunta “o quehá de tão errado com ela para não ter conseguido um namorado?”.

Ou talvez seja só o meu cérebro me fazendo uma pergunta pertinente.Ainda não posso acreditar que ela tenha falado uma coisa daquela...Ah, mas é claro que posso! A quem estou querendo enganar? Ela faz esse tipo de coisa o

tempo todo. Como da vez em que ela disse para minha amiguinha de infância que não era sóporque ela era meio feia que não ia conseguir um namoradinho na escola. (Pati não ficou muitocontente com esse comentário e até hoje lembra-se disso com ressentimento.)

É isso o que ela faz. Apesar de só tentar ajudar, acaba metendo os pés pelas mãos.Como se a situação não bastasse, uma mulher rechonchuda na terceira fileira levantou a

mão, e sem esperar permissão para falar, desembestou a me perguntar:– Você nunca namorou porque acha que está muito difícil de arranjar bons partidos hoje em

dia? Qual a probabilidade de encontrarmos alguém nos tempos de hoje? – Ela falou meioesbaforida e parou de falar abruptamente, aguardando minha réplica.

Que droga de pergunta era aquela? Como é que eu ia saber? Tenho cara de IBGE, poracaso? Pareço alguém que trabalha com estatísticas?

Os minutos seguintes deram lugar a uma série interminável de perguntas que, em suamaioria, começavam com “já que você nunca namorou” e “como alguém que nunca namorou,você acha que...” e blá-blá-blá. De repente eu não era nova demais para ser terapeuta. Eu eravelha demais para nunca ter tido um namorado.

Apesar de não terem havido mais incidentes e as convidadas terem pego meu cartão devisitas na saída, a julgar pela expressão de desagrado de algumas mulheres, não terei bonsresultados. Era como se o semblante delas declarasse “eu nunca me consultaria com você nemque fosse a última psicóloga da Terra”. Até mesmo a cara-de-pônei parece ter desistido da causa,passando rapidamente por mim sem me olhar nos olhos.

– E quanto à sua mãe?– Não faço ideia – bufo, enquanto esfrego um paninho com produto de limpeza no aparelho

telefônico para retirar umas manchas de gordura quase imperceptíveis perto das teclas. – Nãotenho atendido às ligações dela.

– Não seja tão dura com ela. Ela só estava tentando ajudar.– Caramba! Imagina então se estivesse tentando me atrapalhar.– Ela tentou te defender, é sua mãe. Além do mais, se não fosse por ela você nem existiria

para poder passar a vergonha que passou.Desligo o telefone assim que nos despedimos.Eu vou perdoá-la, mais cedo ou mais tarde. Eu sempre a perdoo. Só que dessa vez, vai ser

mais tarde do que mais cedo.As buzinas dos carros lá fora conseguem adentrar minha sala mesmo com a janela fechada.– Algum sinal dela? – pergunto ao telefone com a recepção.– No – Lorraine utiliza o menor número de sílabas possível para se expressar, a fim de

gastar o mínimo de energia possível no trabalho.Olho para cima e contemplo o imenso nada. O branco do teto se assemelha com a minha

carreira, uma tela quase vazia a não ser por Alana, meu único portfólio na área derelacionamentos, que também não parece estar indo nada bem.

Mas eu vou conseguir! Só preciso fazer com que ela seja uma paciente com melhora clara eos outros verão. Preciso ter sucesso em ajudá-la, assim ela será um portfólio perfeito.

O telefone toca.– Melissa, Alana está aqui. E está no viva-voz.Preciso me lembrar de conversar com Júlio a respeito de trocarmos de aparelho telefônico

para um que não tenha esse recurso.Peço para que a madame entre, dessa vez sem cometer uma gafe igual à da semana passada.As cadeiras brancas da minha sala ficaram realmente adoráveis em contraste com as paredes

rosa-claro e a mesa de madeira. Ficou “a minha cara”, como disse o Rafa na primeira vez em queveio conhecer o consultório. Os livros de Psicologia dispostos em ordem alfabética sobre a mesa(por falta de verba para instalar prateleiras) revelam minha pobreza.

Talvez durante o dia eu devesse desligar a luminária redonda suspensa no teto por umacordinha prateada que tenta iluminar a sala, porque ela não consegue competir com o sol queentra pela janela na parede atrás de mim. E eu não consigo competir com a conta de luz.

Decorei minha sala com o máximo que pude. Gostaria de ter posicionado dois candelabrosentre a porta, uma delicada gaiola para velas e um divã rosa bem comprido.

Porém, o que consegui com o dinheiro que eu tinha foi: uma mesa bem simples, trêscadeiras e um bônus de um tapete felpudo azul-claro debaixo da mesa, onde meus pés descalços

tornam-se livres dos calçados desconfortáveis que faço questão de comprar.E faço questão de tratar Alana muito bem porque isso tudo não teria sido possível se ela não

tivesse decidido pagar as consultas de um ano inteiro adiantado por não gostar de lidar compagamentos o tempo inteiro. Isso é o quanto ela é rica. O dinheiro simplesmente não lhe faz falta.

Estico os pés para calçar novamente as sapatilhas assim que escuto passos no corredor. Equando a porta se abre, paro no meio do movimento, atônita. Alana e seu vestido esvoaçanteazul-claro adentram minha pequena salinha, que de repente parece pequena demais para ela.

Por que minha paciente tinha que ser tão deslumbrante? Xingo a mim mesma por ter saídode casa tão sem graça essa manhã. Eu estava tão deprimida com a história da palestra que nemtive vontade de me arrumar. Já a aparência dela? Impecável.

Com uma tiara brilhante na cabeça e uma enorme bolsa preta, ela me cumprimenta comseus dentes brancos de atriz de novela.

– Desculpe a demora, querida. Eu não sabia que roupa escolher!– Er... e por que não escolheu antes? – coloco, delicadamente.As coisas que eu tenho que aguentar pelo meu novo negócio...– Querida, a inspiração não vinha, entende? Simples assim! Mas não se preocupe, eu pago

esta consulta em dobro.As coisas INCRÍVEIS que eu tenho que aguentar pelo meu novo negócio!Abro um sorriso de orelha a orelha.– Por que está tão elegante?Ela me dá um beijo na bochecha.– Vou encontrar meu noivo num restaurante superdescolado e saudável. Ultimamente esses

alimentos gordurosos têm me deixado totalmente enojada! – ela se inclina para frente. – Vocêsabe quantas calorias tem em um pedaço de bolo de chocolate?

– Er... não. Quantas?– Ora, muitas!É por isso que ela é toda magrinha. O corpo dela começou a rejeitar os alimentos

gordurosos. Por que meu corpo não faz isso? Tá vendo só como não é minha culpa?Ela começa a me contar sobre sua semana, sobre os problemas no trabalho e sobre o

encontro desta tarde com o noivo.– Discutiremos algumas ideias sobre a decoração do casamento. Ele está superanimado com

os preparativos, mas eu estou uma pilha de nervos. Tenho um problemão nas mãos.O rosto dela se contorce e ela adquire um ar sofrido. Ela se inclina para frente, a fim de

revelar a causa de tanto sofrimento e me preparo para ajudá-la como psicóloga. Finalmente!O que seria assim tão problemático? Inclino-me também, para escutar a grande bucha que

ela tem para resolver.– Não sei que vestido escolher!Meu rosto finge surpresa para esconder o tédio.Será que um dia meus problemas serão assim tão não problemáticos?Alana tira da bolsa uma enorme pasta rosa-choque e a derruba em cima da mesa, fazendo

um barulhão.

Pobre mesa de madeira!– Esta é a coletânea de todos os vestidos das grifes que eu gosto – ela abre na página um. –

É claro que vou experimentá-los pessoalmente. Isto é apenas um catálogo para que eu melocalize.

– E qual o problema?– O problema é que eu não gostei de nenhum deles! São todos tão modestos – ela fala, com

repulsa.Olho para os vestidos a fim de conferir a tal lástima do mundo da moda, e eis o que vejo:

modelos e mais modelos de vestidos compridos e elegantes que qualquer garota mataria para ter.– Você não gostou de nenhum? – pergunto, sem desviar os olhos dos deslumbrantes

pedaços de pano branco.Isso simplesmente não faz sentido para mim.– Como eu poderia? – ela coloca a mão da testa. – Minha assistente é incompetente demais.

Ela fez essa coletânea de vestidos da temporada passada porque não entende nada de moda.Como ela achou que eu fosse gostar disso?

Ela aponta com sua unha comprida francesinha para um vestido de princesa longo, tomaraque caia, preso na cintura, esvoaçante no comprimento, cheio de detalhes brilhantes no busto edo branco mais branco que já vi.

No entanto, não é meu casamento. É o de Alana. Que continua falando, quase sem pararpara coletar oxigênio.

– Mas não se pode esperar muito da noção de moda de uma assistente que gosta decombinar camisa social com suéter, não é? – ela estreita os olhos para o meu suéter listrado. –Sem ofensa, Mel.

Ela fecha a pasta com força, sem um pingo de vergonha e eu ignoro seu comentário arespeito do modelito que estou usando.

– Vou experimentar alguns itens daqui só para ter certeza. Principalmente o Vera Wang.Aposto que a Vera sei lá o que já usou suéter com camisa pelo menos uma vez na vida.– Me diga uma coisa – prossigo, sem perder mais tempo. – Você chegou a questionar seu

noivo sobre o motivo de um pedido de casamento tão rápido?– Mas é claro que não. Você pirou? – ela espalma a mão na pasta e me olha como se eu

fosse imbecil. – Pra quê? Pra ele ter dúvidas quanto ao casamento?– Seria útil para o seu tratamento e...Ela estende a palma, fazendo com que eu me cale.– Não estou interessada em ficar encalhada pra sempre, obrigada. O que me interesso... –

ela cantarola e dá três tapinhas no catálogo do tamanho de uma enciclopédia. – É em escolher agrife para o meu vestido de noiva!

Caramba! Será que ela pensa que sou uma espécie de assistente pessoal dela? Outraassistente que também se veste mal? Às vezes me pergunto se ela ao menos sabe que souformada em Psicologia. E que não me visto mal coisíssima nenhuma!

Pelo jeito, ela acha que me paga para ser sua confidente sobre o casamento, e não suapsicóloga de relacionamentos. E me paga muito bem, aliás, então que seja!

O problema é que duvido que ela leve essa história de casamento adiante. Alana é impulsivademais para isso. Já terminou com tantos rapazes que eu poderia ficar rica atendendo-os, curandoa tristeza que ela deixou em seu caminho de destruição.

Ela é o Darth Vader dos relacionamentos.Só que, desta vez, ela está indo ainda mais longe. Estamos falando de casamento, pelo amor

de Deus! E temo que assim que a coisa apertar, ela vá fugir de novo e deixar todo mundo paratrás.

Ainda bem que ela me pagou adiantado.Depois do que parecem horas, Alana levanta-se e leva consigo seu vestido esvoaçante. Não

achei que fosse possível ficar cansada de não fazer nada e de não falar nada, mas eu estavaenganada.

Acompanho minha paciente até a porta, olhando para sua silhueta tão bem estruturada, levecomo uma pena.

– Mas é claro que ela estaria leve como uma pena – digo para mim mesma ao voltar para asala e notar que ela esqueceu a droga da pasta de vestidos em cima da mesa. Agarro-a com asduas mãos. Ela é mesmo pesada!

Contudo, assim que Alana se despede de Lorraine na recepção (e não ouve nenhumaresposta de Lorraine, a mal-educada!) e a porta se fecha num estalo, não há mais tempo de avisá-la. E não tenho força o suficiente para carregar a pasta até a rua. Eu cairia com o peso muitoantes disso.

Enquanto folheio a pasta de cinco quilos, passando por vestidos classificados em post-itscomo Vera Wang e Chanel, sinto uma sensação estranha na barriga, que não consigo identificar.

Talvez seja fome. O que é um pensamento totalmente contraditório ao objetivo de um diaentrar num vestido Vera Wang tamanho 36.

Para mim, no entanto, comer é mais importante.

– Desta vez, só vou comer o macarrão à bolognesa – diz Pati, segurando a bandejinhalaranja de plástico do restaurante. – Estou de dieta, sabe?

Não sei se ela entende o conceito de dieta, porque nunca precisou. Ela é um palito desdeque a conheço. Já eu me mato para manter não o meu peso ideal, mas sim o meu peso limite.

Combinamos de almoçar juntas para colocarmos as fofocas em dia. Faz cinco minutos quechegamos e ela já me presenteou com a informação de que um antigo morador vizinho nosso foipreso por agressão, então eu diria que a conversa está indo muito bem. Não para o vizinho, dequalquer maneira.

O restaurante é um self-service abarrotado de gente. O cheiro de feijão fresquinho paira peloar do ambiente, onde é servida uma deliciosa comida caseira que parece ter sido feita pelamamãe. Não pela minha, porque ela cozinha mal. Mas as mães no geral, eu quero dizer.

Pati veste o uniforme vermelho e branco do hotel onde trabalha, mas faz questão de estilizaro look com um sapato oxford preto envernizado que é a cara dela. E eu estou usando a pasta dereferências de Alana que tampa praticamente toda a frente do meu corpo, de modo que quase nãoimporta o que visto por baixo.

Ela me telefonou vinte minutos depois que saiu do consultório, implorando para que eulevasse a pasta tamanho-família até ela no restaurante em que almoçaria com seu noivo. Disse-me que era “superpertinho do consultório, não ia demorar um minuto” com a maior cara de pau,achando que eu presto serviço de motoboy a ela também. Mas concordei para agradá-la. Ocliente tem sempre razão, não é algo assim que se diz?

Encontramos uma mesa de seis lugares, já ocupadas por outras quatro pessoas. Por falta delugares vagos, pedimos licença (e com isso eu quero dizer que eu pedi licença, pois Pati aindanão parou de falar sobre o vizinho agressor) e nos sentamos uma de frente para a outra,pendurando nossas bolsas na cadeira.

– Preciso contar uma coisa. Adivinha quem me ligou um dia desses? – ela me olha sempiscar.

– Sua chefe? Pedindo que você voltasse ao hotel e trabalhasse mais dezoito horas num sódia?

– Não, não foi minha chefe. Foi o Augusto.

Pausa dramática.– Espero que você tenha conhecido outro Augusto! – digo, na esperança de que seja

qualquer Augusto. Qualquer um. Menos aquele.O negócio é que eu sei muito bem a quem ela se refere, porém me recuso a acreditar que ele

teve a cara de pau de entrar em contato com ela.E que ela teve a cara de pau de atender.– Não, é o próprio – ela suspira. – Sei que você não gosta dele por causa daquela confusão

toda, mas ele me pareceu arrependido.Todo mundo parece arrependido quando quer levar você para a cama.– Aquela “confusão toda” se chama traição, Patrícia!O casal ao lado olha para nós e me arrependo de ter falado tão alto.– Desculpe – digo baixinho.Augusto é o ex-namorado de Pati. Eles terminaram há tempo suficiente para que a

marquinha da aliança saísse do dedo dela, mas não o bastante para que o chifre parasse de doer.Então, sim, eu tenho um pé atrás com esse cara.Não, não. Eu detesto esse cara.– O que é que ele queria?– Disse que encontrou umas coisas minhas em seu apartamento, que ele nunca teve coragem

de devolver. Ligou pra saber se eu queria passar lá pra buscar.– Você. Não. Vai – digo entre dentes. – E ponto final.– Eu sei, eu sei. Relaxa, eu não vou – ela levanta as mãos, rendendo-se. – Eu disse que ele

poderia me mandar por correio. Ou então podia jogar fora, pois o que quer que esteja lá, não mefez falta até agora. Assim como ele.

– Boa garota! Você disse mesmo isso?– Menos a parte do “assim como ele”. Mas todo o resto foi dito – ela faz que sim com a

cabeça.– Ótimo – solto o ar que eu estava prendendo.Menos mal. Sempre achei que assim que ele estalasse os dedos, ela voltaria correndo para

ele.– Rafael me ligou ontem também – digo.– “Espero que tenha conhecido outro Rafael” – ela me imita, parecendo uma criança.Eu a ignoro. O casal ao nosso lado conversa e dá risadinhas, almoçando de mãos dadas

sobre a mesa e utilizando os talheres com uma mão só. Precisavam ser assim tão melosos?Ah, a quem estou querendo enganar? Eles são adoráveis!– Ele me convidou para o aniversário de 25 anos de casamento dos pais dele.– Ah, era isso? – diz Pati, antes de sugar um fio de macarrão com a boca, fazendo um bico.

– Ele também me convidou.– Sério? – digo num muxoxo.Fico decepcionada por não ter sido a única convidada. Por que ele tinha que tratar todo

mundo do mesmo jeito? Assim fica difícil me sentir especial para ele.Pati engole o macarrão que mastigou em menos de cinco segundos.

– E ele também chamou o Leo.Caramba, o mundo inteiro foi convidado?– Você vai? – ela me pergunta.– Claro que sim. Gosto muito dos pais dele.– Aham. Sei. Vai dizer que não é porque você quer que os parentes do Rafa a confundam

mais uma vez com uma namorada dele?Faço-me de desentendida.– É claro que não! Por que diz isso? – encho a boca de arroz.Sempre que eu vou a alguma festa de família do Rafa – e olha que já fui em muitas

(quatorze, para ser exata) –, alguém pressupõe que sou namorada dele. Se eu tiver sorte, aspessoas acabam falando isso na frente dele. É por isso que nessas ocasiões tento estar sempre omais perfeita possível, para que quando aqueles olhos azuis me observarem envergonhados,talvez algo mude em seu coração e abra seus olhos.

Até agora não consegui porcaria de mudança nenhuma. Mas quinze é o número da sorte, euestou sentindo!

– E vai me dizer que você não começou a pular feito uma idiota e foi correndo até o armáriodecidir o look para a festa assim que desligaram o telefone?

Nossa, ela me conhece demais.– Eu não fui até o armário.Encaro-a firmemente. Mas ela me conhece, então qual é o ponto?– Sei meu guarda-roupa de cor. Sendo assim, o que fiz na verdade foi uma lista do um ao

dez dos possíveis modelitos. Tecnicamente você estava errada – digo, triunfante.Ela balança a cabeça de um lado para o outro, em descrença.– E você é tecnicamente patética – ela diz e enfia mais macarrão na boca.O casal ao lado começa a fazer cócegas um no outro. A risada deles é tão boa de ouvir...Quero isso para mim. Onde eu compro? E o mais importante: quanto custa, e passa no

crédito?Com tristeza, percebo que eu e o Rafa não temos oportunidades de rir desse jeito um com o

outro. Obviamente porque não somos um casal. Ou talvez eu só precise fazer cócegas nele.– Se você quer a minha opinião...– Eu não quero – digo.– Acho que você deveria contar a ele. Eu sei que você nunca concorda, mas você já tentou

do seu jeito e não deu certo. Por que não faz diferente agora?Ela tem certa razão.O casal sorridente se levanta e vai embora, carregando consigo planos para um futuro que

os aguarda ao atravessar a porta. Tudo bem que é só uma porta de restaurante, mas eu digometaforicamente. Eles têm planos. E já passou da hora de eu ter alguém para fazer planoscomigo.

– Esquece isso – digo, franzindo o cenho.“Senhor, vou falar rapidinho porque estou aqui com a Pati, mas é para eu não esquecer de

pedir. Só queria Lhe lembrar de que já tenho 24 anos e que o relógio está correndo e eu tenho um

plano a cumprir. Gostaria de estar noiva no ano que vem, se não for pedir demais. Obrigada,Senhor. A Pati está acabando de comer. Acho melhor eu me despedir. Tchau. Amém.”

Depois do almoço, caminhamos até o tal restaurante superdescolado e sei lá mais o quê,para devolver a pasta peso-pesado da minha paciente peso-pena.

– Que restaurante chique! – digo, ao nos aproximarmos.– E supercaro – esclarece Pati. – Eles só servem pratos fitness, então não se fala mais de

outra coisa.– A salada deve custar o meu salário.– Falando em salário... – Pati encosta o nariz no vidro. – Sua paciente está aqui?– Foi o que ela disse – respondo ao observar o lugar da calçada.– Então anda logo, que eu preciso voltar pro hotel! – ela checa o horário pelo meu relógio

de pulso.O restaurante é todo de vidro transparente, com dois vasos de cerâmica sustentando plantas

podadas em formatos arredondados em cada lado da porta. O tempo nublado dá uma trégua aodia, deixando o sol aparecer por um breve instante, presenteando o pequeno restaurante com umaaura resplandecente. Daqui de fora consigo ver um lustre do tamanho do meu sofá pendurado noteto. Qual é a probabilidade de ele cair na cabeça de um dos clientes?

Tento me convencer de que o único motivo pelo qual eu não comeria nesse restaurante é aameaça iminente do lustre. Aperto os olhos para enxergar melhor de longe, e estou prestes aandar em direção à entrada quando percebo um rosto familiar lá dentro.

Em uma mesa no centro do restaurante, bem embaixo do lustre, está Alana com seu vestidoesvoaçante maravilhoso sentada de frente para o noivo, que está de costas para nós. Pati mepergunta se eu a encontrei e estou para lhe dizer que sim quando o noivo da minha paciente, demãos dadas com ela sobre a mesa, vira-se para chamar o garçom e o meu coração para.

Parece que tomei um soco no estômago e não consigo respirar.– Ei, o que foi? – pergunta Pati, cutucando-me no ombro, mas a voz dela já está muito

distante. – O que você está vendo?Não, não pode ser. Simplesmente não pode!Aperto os olhos com mais força ainda.– Que que foi, hein? Cara, você está pálida! – diz ela quando não respondo.Eu uso óculos e não enxergo muito bem sem eles. Mesmo assim, tenho certeza do que estou

vendo. Eu preciso ter piorado da miopia e do astigmatismo, eu preciso! Porque não posso estarvendo certo.

Vasculho a bolsa atrás dos meus óculos redondos de aro fino prateado, e quando osencontro, posiciono-os desajeitadamente na frente dos meus olhos.

Ah, meu Deus!Patrícia me segura pelos ombros e olha bem séria para mim.– O que está acontecendo, Melissa? – ela ajeita os óculos tortos no meu rosto.Eu engulo em seco.– Você está chorando? O que foi que você viu lá dentro? – diz ela, tentando enxergar

através do vidro.

– O Rafa – digo, finalmente. – Pati, eu vi o meu Rafa.

Atravesso a rua desesperada. Não consigo respirar, apesar de estar ventando tanto que o quenão falta é oxigênio. Talvez eu esteja tendo uma crise de ansiedade. Ou talvez seja essa pasta,que é bem pesada mesmo. Eu deveria ser capaz de me autodiagnosticar? Bom, então talvez eunão seja uma psicóloga tão boa assim.

Viro a primeira esquina e despejo o corpo num banco de pedra, jogando a pastabruscamente para o lado e escondendo as lágrimas com as mãos.

Pati me alcança alguns segundos depois, balançando em seus oxfords. Tento olhar para elacom meus olhos turvos.

– Mel, o que aconteceu? E daí que você viu o Rafa?Um nó tão grande forma-se em minha garganta que chega a doer. Eu choro ainda mais.– Ele estava com alguém?– S-sim... – levanto a mão, pedindo para que ela aguarde, o nó na garganta impedindo-me

de falar.Ela assente e coloca a mão no meu ombro. Mas sei pela testa franzida que a curiosidade a

está matando.– Lá dentro do restaurante, sentada numa mesa, estava a minha paciente.– Sim, e daí? Não viemos aqui devolver a pasta dela?– Escute! Na semana passada, ela me contou que está noiva.Dou um tapa na pasta.– Mas só está namorando há três míseros meses, que droga! – grito, com rancor de tudo o

que ela tem me contado.Começo a soluçar enquanto mais e mais lágrimas quentes escorrem pelo meu rosto, e minha

voz adquire um tom choroso.– Ela começou a se consultar comigo porque não conseguia permanecer em um

relacionamento estável por muito tempo. Por isso, eu torcia para que ela encontrasse alguémlegal. E o problema é que ela encontrou! O cara mais legal que ela poderia ter encontrado. E estánoiva dele.

– Como assim “problema”? – Pati pergunta.De repente, ela fica estática. E arregala os olhos.

– Ai-meu-Deus! – ela chega bem perto de mim e me segura pelos ombros. – Era o Rafa?Você viu o Rafa lá dentro com a sua paciente?

Se tem uma coisa que a Pati não é, é burra. Confirmo com a cabeça e olho para a esquina nadireção do restaurante.

– Mas o Rafa não está noivo. Vimos ele semana passada!– Mas você notou como ele tem estado distante ultimamente? Bom, eu notei.– Isso não quer dizer nada – ela cruza os braços. – Quer dizer, quais são as chances de isso

acontecer?– Sejam quais forem, não estão a meu favor.Os prédios monstruosos da cidade parecem ainda maiores, deixando clara a minha

insignificância.– Deixa disso! Até parece que ele é o noivo dela.– Pati... – digo, secando o rosto com as costas da mão. – O noivo dela se chama Rafael. Isso

quer dizer alguma coisa, não?– Você não enxerga muito bem... tem certeza de que viu o Rafa? Tipo, o Rafa mesmo? O

nosso Rafa?– Pelo jeito ele é o Rafa dela agora – meu rosto se contrai em raiva. – E eu estava usando

óculos!– Pode ter visto errado. E se estiver na hora de aumentar os graus da lente?– Mais? Eu já tenho três graus em cada olho!Como isso foi acontecer? Será que é algum tipo de pegadinha?– Não é possível, amiga – ela cruza a perna e aumenta a voz para competir com as buzinas

dos carros e o motor do ônibus que passa ao nosso lado. – Por que ele não contaria que estánoivo? Isso não faz o menor sentido. Você deve ter visto errado.

– Pati, era ele. Eu juro! – choramingo. – Eu o reconheceria a um milhão de quilômetros. Eraele!

Ficamos as duas em silêncio.Ela se levanta, olha para os dois lados ao atravessar a rua e some ao virar a esquina do

restaurante.Alguns segundos depois, Pati ressurge, olha para mim e atravessa a rua de volta.Sem dizer uma palavra, senta-se ao meu lado.– Me explica direito essa história – ela diz sem encontrar meus olhos, as sobrancelhas

levantadas. Ela viu o mesmo que eu. – Sua paciente está noiva e está almoçando com o Rafa.Faço que sim com a cabeça.– Minhas lentes parecem ótimas agora, hein?Ela me ignora.– Mas isso só quer dizer que ela está almoçando com ele. Pelo amor de Deus, ela pode

conhecer mais de um Rafael, não pode?– Pode, mas ela almoça de mãos dadas com todo Rafael que conhece?– Provavelmente não – ela concorda com a cabeça.– Pati, ela me disse que ia almoçar com o noivo dela.

Ela abre a boca para falar.– E nem venha me perguntar se ela não pode ter ido a dois almoços! – me adianto.Ela fecha a boca.Algumas pessoas caminham pela calçada em que estamos sentadas, mas eu não poderia me

sentir mais sozinha. Pati não se deixa abater.– Há alguma chance de ela ter uma compulsão por contar mentiras ou algo do tipo? – tenta

ela mais uma vez, mas nem ela mesma parece se convencer.– Não, ela não tem mitomania. Alana é egocêntrica e mimada, mas não é mentirosa.Duas adolescentes passam ao meu lado e me olham curiosas. Quase consigo ver as

engrenagens do cérebro delas movimentando-se e imaginando o porquê de eu estar chorando nomeio da rua. Cresçam, e vocês verão!

– Eu não posso acreditar – sussurro.– Nem eu.Ficamos sentadas até o vento começar a ficar mais gelado e desarrumar nossos cabelos. Pati

checa o horário no celular.– Saco! Tô atrasada.– Desculpe. Fiz você perder a hora.– Deixa pra lá. Não é como se fosse o emprego dos sonhos.– Certo... – coloco a mão na testa, desnorteada.– E agora? O que você vai fazer com a pasta? – ela fica de pé e estica as mãos para me

ajudar a levantar.Aproveito a deixa para jogar a pasta em suas mãos estendidas. Essa porcaria é mesmo muito

pesada.– Ela que vá buscar a Vera Wang no inferno.

Andamos caladas. Como pode ser verdade? Na sexta-feira passada saímos todos juntos etudo estava como sempre foi, como deveria ser. E agora, sem mais nem menos, minha vidadesmorona desse jeito?

Tinha que ser com Alana? Justo com ela? Entre milhões de mulheres no mundo?É claro que não seria fantástico vê-lo sair com mulher nenhuma. Arruinaria meus planos de

qualquer maneira. Mas tinha que ser com a minha paciente?E não é como se eles estivessem apenas namorando. Eles estão noivos!Incrível. Simplesmente incrível.Passamos por um senhor vendendo discos feios pintados à mão na calçada. Eles estão

dispostos de maneira desorganizada, e a distância entre o segundo e o terceiro disco está muitodiferente da dos demais, tornando-os ainda mais feios.

Não importa, não importa! Você tem problemas maiores agora, sua besta. Deixe o TOCpra lá.

Continuo andando.

– Mel – diz Pati. – Mel!– Me desculpe, o que disse?– Você precisa se acalmar. A gente não sabe o que está acontecendo de verdade.– E como você sugere que eu faça isso? – digo, parando de andar. Um sedan prata buzina

para mim e percebo que parei no meio do cruzamento.– Me desculpa, tá legal! – grito para o motorista. Uma senhora de mãos dadas com uma

criança me olha surpresa.– Me desculpe – digo envergonhada ao motorista, que em seguida buzina e mostra o dedo

do meio para mim.– Vá se danar! – Pati grita de volta para ele.– Pati, não sei se você entende a gravidade da situação, mas a minha paciente está noiva –

noiva, que ridículo! –, do amor da minha vida. Ele deveria estar comigo e não com ela.E é então que me dou conta.Como um vento gelado bem forte batendo na cara de alguém que acabou de sair do banho,

algo terrível me atinge. Ah, não, meu Deus, não.– Eu vou ter que vê-la de novo – paro no meio do passo.Pati também para.– Quem?– Alana! Não tinha me tocado, mas terei que vê-la novamente. Nas consultas. Falando sobre

o casamento. O-ano-inteiro!Por que é que eu fui torrar todo o dinheiro adiantado que ela me pagou? A decoração da

minha sala não me parece tão importante agora. Nada mais parece.Se ao menos eu voltasse e arrumasse aqueles discos feios... certo? Eu sei que me sentiria

muito melhor...– Certo – diz Pati. – A primeira coisa que a gente vai fazer é descobrir a verdade. E se for

verdade... – ela dá ênfase. – Então você terá que deixar de ser terapeuta dela.– Não dá.– Pelo amor de Deus, você não pode continuar ouvindo sobre ela e o Rafa.– Você não entende. Eu preciso atender Alana – passo a mão pelo rosto, esticando minha

cara como um desenho animado. – Ela me pagou adiantado.– Então devolva o dinheiro, saco! – ela levanta os braços no ar.Eu a seguro pelos ombros.– Como você acha que paguei por aquela porcaria de tapete felpudo?– Ai, sua burra! – os ombros dela caem.A ironia da situação não me passa despercebida. Há uma semana, Alana furou literalmente

o meu olho. Eu só não sabia que ela também faria isso figurativamente.– Mel, falando sério. Você é uma das pessoas mais inteligentes que conheço. Seja prática,

ok? Você não sabe o que está acontecendo. Só o que sabe é que Alana está noiva.Acho que agora não dá mais para voltar e arrumar os discos, não é? Afinal, já estou muito

longe. Bem, não estou tão longe assim. Eu poderia dar meia volta...

– E não é como se você tivesse visto eles se beijando – Pati continua, incansável. – Se liga,é do Rafa que estamos falando! Ele é certinho demais pra isso.

Humm... isso é verdade.– Casar depois de três meses de namoro? Isso parece algo que ele faria? – ela empina aquele

nariz enorme para mim.– Tenho que admitir que isso é verdade – uma ponta de esperança toma conta do meu ser e

me animo consideravelmente.Mas que ridículo! É claro que deve haver algum engano. Rafa é mesmo muito certinho para

fazer uma coisa dessas. Ele ao menos nos contaria antes.Mas é claro! Um jubilo de glória percorre minhas veias e dou um abraço aliviado em Pati.– Ele não faria algo assim tão impulsivo – digo, rindo quase histericamente.Então por que ele fez? Por que estava almoçando com ela?Ignoro pensamentos negativos. Porque deve haver uma explicação perfeitamente razoável

para tudo isso.Está decidido! Vou voltar e arrumar aquelas porcarias de discos. Preciso agradar o

universo como recompensa.– Exato. Eu não sei por que eles estavam juntos, mas você também não sabe, cara. Então

não tire conclusões precipitadas, ok? – ela diz, parada na frente do imponente hotel ondetrabalha.

Árvores podadas em formatos elegantes de um verde bem vivo enfileiram-se em frente aohotel de vinte andares, criando uma aura suntuosa para os transeuntes.

– Você sempre sofre por antecedência e se preocupa à toa.Decido confiar em Pati. Mas desconfio da natureza de suas boas ações quando ela se recusa

terminantemente a ficar com a pasta e queimá-la no fogo do inferno por mim, entregando-menovamente.

– Você é a melhor amiga dele e seria a primeira a saber se ele estivesse noivo – ela diz,dando-me um abraço rápido.

Ela está certa e eu vou ouvi-la. Vou ouvi-la e me acalmar assim que eu voltar e arrumaraqueles discos feios.

E ela conclui, antes de entrar no luxuoso hotel:– Você não pode ter certeza de nada enquanto não ouvir as palavras saindo da boca dele.

– Estou noivo! – diz Rafa, e eu tento com todas as minhas forças não fazer cara feia.Aí está. O momento que eu torci o dia todo para não acontecer. Só o que fiz foi me enganar.

O que somente prova mais uma vez que eu estava certa de sofrer por antecedência. Pelo menoseu estaria mais preparada.

Ouvir as palavras saindo da boca dele é como uma flechada na minha bunda. E não nocoração. Porque uma flechada no coração teria me matado instantaneamente, ao passo que umaflechada na bunda não me mata, mas me causa uma dor descomunal e me obriga a conviver comisso. Além de ganhar uma cicatriz parecida com uma celulite.

Só preciso aguentar essa noite sem chorar na frente dele.Não é como se eu tivesse me apaixonado muitas vezes. Não estou à disposição de sofrer. E

nunca deixei outras pessoas entrarem em minha vida esses anos todos porque esse espaçopertencia ao Rafa.

Não seria melhor ser como o Leo, que não se apega a ninguém? Do outro lado da mesa, eleestá tão chocado com a notícia quanto eu. Bem, talvez mais. Por não se ligar a ninguém, imaginoque ele não consiga entender quando alguém quer fazer isso por vontade própria.

Assim que voltei ao consultório (depois de arrumar aqueles discos de vinil e receber emtroca a expressão confusa daquele homem que imaginou que minha aproximação significavauma venda), meu celular apitou com uma mensagem de texto não lida. Era do Rafa. Nunca anteseu detestei receber notícias dele.

Meu coração afundou e foi parar no chão.Meu nariz ficou inchado, pois é isso o que acontece quando eu choro. Meu nariz fica

enorme. Não tanto quanto o de Pati, mas ainda assim, enorme.O que eu fiz para merecer isso? Caramba, eu devo ter feito uma porrada de coisas erradas na

vida passada.Eu enviei uma mensagem à Pati:

E ela me respondeu logo em seguida:

Se nem a Pati estava tentando me dizer que eu estava errada, é porque ela sabia que euestava certa.

– Acho que não ouvi direito – diz Leo, mastigando bem devagar um pedaço de frango frito.Rafa abre um sorriso tão grande que seus olhos se fecham.– Eu sei que é uma surpresa e tanto.Surpresas não deveriam ser agradáveis?– Eu conheci uma mulher incrível. O nome dela é Alana. Ela é maravilhosa. Vocês

precisam conhecer minha namorada. Quero dizer, minha noiva.Eu preciso é desconhecê-la.– Quando a vi, jurava que já a tinha visto em algum lugar antes. Foi amor à primeira vista.

Quer dizer, amor à segunda vista, então. Enfim... – ele limpa a garganta e prossegue quandoninguém diz nada. – Foi tudo muito intenso, mas temos passado o tempo todo juntos e eu a pediem casamento no sábado retrasado.

– Acho que não ouvi direito – repete Leo. – Você vai se casar?Leo derruba o pedaço de frango em cima da mesa. Finalmente alguém para compartilhar

minha preocupação.– Isso é... – Leo diz, procurando as palavras. – Incrível!Como é que é?Ele se levanta, quase pulando por cima da mesa para dar um abraço muito entusiasmado no

Rafa enquanto fico desacreditada com a reação dele.Rafa discretamente limpa os pedacinhos de comida que Leo deixou em sua camisa durante

o abraço.– Ahá. Então era por isso que o senhor andava tão sumido? – Pati levanta uma sobrancelha

ruiva e aponta o dedo para ele antes de abraçá-lo. – Ao que parece, não era a sua “carreira comomodelo” que não lhe deixava muito tempo, não é? A sua vida de modelo era só uma fachada paraa sua vida de... noivado.

Já que Pati decidiu dar-lhe os parabéns também, sou obrigada a ser falsa. Levanto-me, coma sensação de estar caminhando em direção à cadeira elétrica das minhas esperanças. Assim queeu lhe der os parabéns, estará tudo acabado. Antes mesmo de ter começado.

– Er... felicidades – digo e lhe dou um último abraço apertado, decidindo que a partir deagora os abraços serão rápidos. Serão simples. Serão com o nariz tapado para não sentir o cheirodelicioso de sabonete que emana do pescoço dele, reprimindo meus sentimentos.

Eu já fiz isso uma vez, não é? Não com ele exatamente. Mas posso fazer de novo. Por maisdoloroso que seja. E, depois de algum tempo, o verei apenas como amigo.

– Eu tenho um pedido a você – ele pega minhas mãos, que parecem muito menores entre asdele. – Você aceita ser minha madrinha de casamento?

– Madrinha de casamento? – pergunto.– Sim! Minha madrinha. Quero você participando ativamente dessa comemoração.– Ativamente? – pergunto outra vez.– Não poderia ser diferente. Você é como uma irmã pra mim.Não respondo. Minhas pernas tremem e apoio-me discretamente na quina da mesa de vidro.

Sinto uma lágrima brotar nos meus olhos e tento engolir o choro. Irmã?– Eu sei que é repentino e que você nem sabe quem é minha noiva, meu Deus! – ele dá uma

gargalhada. – Mas eu vou contar tudo, eu prometo. Só me diga que será minha madrinha. Vaiestar no altar comigo?

No altar? Santo Antônio, o que está acontecendo?Ele aguarda. Os olhos de Pati e Leo fazem peso sobre mim.– Mel? – Rafa se inclina para enxergar minha cabeça abaixada. – Você está chorando?Ele me segura pelos ombros.– Er... – abro o sorriso mais forçado que consigo e, vai por mim, eu deveria ser indicada ao

Oscar. – É que eu estou tão feliz por você!E o prêmio de melhor atriz com habilidade em disfarçar emoções negativas com maestria

vai para... Melissa Belinque! (“Quero agradecer a todos por esse prêmio, principalmente àAlana, por ter ferrado com a minha existência. Sem ela, tudo isso não teria sido possível.”)

– Eu sabia que você ficaria – Rafa diz.Coloco as duas mãos no peito. Até eu quase acredito em mim mesma.– Você não tem ideia!Meu nariz demorou muito para desinchar da última vez, mas isso não parece ser um motivo

bom o suficiente para que meu cérebro ordene que as lágrimas cessem.Por sorte, lágrimas podem ser interpretadas de vários modos. E enquanto Rafa fica satisfeito

com a minha reação, Pati me olha com muita, muita pena. Forço ainda mais o sorriso.– Então você aceita?– Aceita o quê? – digo, com uma mão na cintura e a outra na testa.– Ser minha madrinha, boba.– Nossa, eu... – dou um longo suspiro. – Nada me faria mais feliz.Ele me abraça apertado e, por cima de seus ombros, vejo um Leo desconfiado.– Eu sabia que você não recusaria – Rafa diz, por fim.–Eu? Mas é claro que não. Não, nunca. Não. – dou uma risada histérica. – Por que

recusaria? Não tenho motivos para isso, tenho?Como consigo ser tão estúpida? Não passou pela minha cabeça que eu seria uma das

madrinhas? Mas é claro que eu seria! Sou a melhor amiga dele, ora! Ou melhor, soupraticamente uma irmã, como ele fez questão de me lembrar.

Isso está mesmo acontecendo?

Por que, ao que parece, minha vida se transformou em um filme e não sei pausar a fita.Mas não para por aí. Rafa ainda faz questão de convidar Pati e Leo como padrinhos

também, o que me classifica como só mais uma nesse casamento estúpido.Limpo o rosto molhado. Já chega! Tenho muitas noites em claro para chorar. Preciso

guardar lágrimas para isso.Leo ainda me encara.“Que foi?”, sibilo para ele. “Nada”, ele responde e dá de ombros.Nós nos sentamos para “comemorar”, mesmo que o sucesso do Rafa seja a minha derrota.

Ficarei apenas tempo suficiente para não demonstrar meu imenso descontentamento/desejoassassino.

– Uma caipirinha de kiwi, por favor – peço ao garçom. – Capricha na vodca.– Uma garrafa de cerveja e uma porção enorme de batatas fritas com cheddar e bacon.

Caprichada. Aparentemente, estamos precisando... – diz Leo ao garçom e olha para mim.Que diabos ele quis dizer com “estamos precisando”?– Porque estamos comemorando, é claro – Leo acrescenta, como se lesse a minha mente, e

dá de ombros.– Conte como isso aconteceu. Como assim, gente? Quem é ela? Quero saber de tu-do! –

pergunta Pati, me olhando com cumplicidade, mas sei que na verdade ela só está muito curiosapara não perguntar.

– Certo. É justo! – Rafa levanta as mãos, rendendo-se. – Chego aqui dizendo que vou mecasar sem nem ter dito que estava namorando. Onde já se viu?

Balanço a cabeça afirmativamente bem devagar, pois sinto que qualquer movimento bruscoda minha parte pode desencadear uma reação de dilúvio. Leo está obviamente me medindo dooutro lado da mesa, mas permaneço com os olhos grudados no noivo.

– O nome dela é Alana, como eu já falei. Ela é redatora júnior, escreve para a revista SuperTeen.

– Eu adorava essa revista! – Pati comenta.Eu também, quando eu tinha treze anos.– Ela é alta, loira e uau... linda!Diga alguma coisa que eu não saiba.Ele assume um ar sonhador e eu resolvo que é o momento ideal para alinhar os quatro

porta-copos em cima da mesa, coisa que eu estava morrendo de vontade de fazer desde quecheguei.

– Estamos juntos há apenas três meses...– Mentira! – diz Pati, cínica. – Não é muito cedo pra um casório, não?– Normalmente eu pensaria o mesmo, sim – diz Rafa. – É difícil de acreditar que tenha

acontecido tão depressa, mas devido às circunstâncias, não vejo alternativa melhor.– Que circunstâncias? – pergunta Leo.Aguardo calada fitando os porta-copos na minha mão. Rafa pausa por uns segundos.– Que circunstâncias?– Foi o que perguntei – Leo responde a ele, enrugando a testa.

– Eu estou perdidamente apaixonado por ela – ele estampa um sorriso bobo naquela cara deboboca. – É circunstância suficiente para mim.

Humm... não sei não.O modo como ele disse essa última frase...Podem me chamar de louca, mas algo me soa falso. Talvez ele não queira se casar de

verdade! Você não pode saber o que quer para o resto da vida em três míseros meses.Ou talvez seja nisso que eu quero, desesperadamente, acreditar.Leo continua me espiando. Ele já está me enchendo o saco!“Que foi?”, digo sem emitir som. “Nada”, responde ele e dá de ombros novamente. Reviro

os olhos. Ele não gosta de histórias de amor mesmo, então por que simplesmente não vai paracasa?

Que é o que eu deveria fazer. Detesto histórias de amor no momento. Comédia românticaestá terminantemente proibida na minha TV a partir de hoje.

Nossos drinques chegam e tomo um gole enorme da caipirinha. O gosto da vodca nocapricho faz meu rosto se contorcer.

– E onde vocês se conheceram? – continua Pati, apoiando o rosto nas mãos, os cotovelos namesa, desesperada para saber mais.

E eu começo a me cansar de tudo isso. Alana não fecha a matraca, de modo que já ouvi essaporcaria de história mil vezes. Eu mesma poderia continuar a contar, caso o Rafa cansasse.

– Eu a conheci aqui.Aqui? Nesta droga desse bar? Disso eu não sabia.É oficial. Eu detesto este lugar!Mas será que é por isso que o Rafa o ama tanto?– Eu não conseguia tirar os olhos dela, e quando eu menos esperava ela caminhou até mim e

puxou assunto – ele dá risada. – Nunca imaginei que ela faria algo assim, mas ela falava com amaior naturalidade. E me lembro de ter pensado: que mulher incrível!

Meus olhos se enchem de lágrimas e disfarço olhando para baixo, brincando com ocanudinho da bebida. As palavras dele me corroem por saber que Alana teve coragem de fazer oque eu não tive em dez anos.

E ainda mais porque não vou poder me afastar dele com tanta facilidade. Não é como se eupudesse sumir no mundo. Não posso recusar ser sua madrinha de casamento. Ele conhece meuspais, que provavelmente serão convidados para o casamento também.

Além disso, posso acabar perdendo Pati e Leo ao me afastar, e isso doeria mais em mim doque qualquer outra coisa. Os quatro saindo como amigos, Alana ocupando o lugar que costumavaser meu? Nem a pau!

Mas como é que eu vou fazer isso? Como posso continuar sendo amiga dele?A única coisa que eu sei, sentada bem de frente para o Rafa, que sorri ao pensar na minha

paciente, é que não tem como ser mais humilhada do que isso. Achei que não tê-lo fosse ruim,mas perdê-lo para outra pessoa é ainda pior.

Ignoro os olhares de piedade de Pati e quero esbofetear Alana, que arruinou o meu planoperfeito e tudo o que eu poderia ter.

– Desculpe por não ter contado sobre ela antes, mas vocês sabem como eu sou.Um mentiroso? Ingrato?– Tenho que melhorar isso em mim. Às vezes sou tão reservado que não conto meus

segredos nem para mim mesmo.Leo dá uma gargalhada com a piada, animado demais para o meu gosto.– Mas eu não sabia se daria certo, e tudo aconteceu tão rápido que eu mal tive tempo de

raciocinar.Está vendo só? Até ele admite que não raciocinou direito.– Mas por que é que você vai se casar assim tão rápido, fofo? – pergunta Pati e eu retribuo a

pergunta com um olhar de gratidão.É, fofo. Por quê?– Não acha que deveria conhecer a moça direito? – ela bate palminhas e cantarola, o laço

preto vintage na cabeça balançando enquanto fala, e eu prendo a respiração.– Bom, er... – ele hesita e pisca rapidamente várias vezes antes de responder. –Pensei em

fazer diferente dessa vez. Eu sempre planejo a minha vida, desde o que vou comer no café damanhã até os planos para aposentadoria. Pensei em mudar um pouco. Ela é diferente. Ela me fazquerer ser diferente.

Ah, ela me faz ser diferente também! Me faz querer furar o olho dela com um lápis bempontudo, pra variar um pouco.

As risadas animadas dos clientes do bar me atingem como uma adaga. Por que estão tãofelizes? Não estão vendo o que o mundo se tornou?

Há uma semana estava tudo bem. Tudo seguia conforme o planejado. Eu não tinha o Rafaelpara mim, porém ninguém mais o tinha também.

Contudo, eu estava errada. Presumi que estivesse tudo em ordem, mas faz três meses queminha vida tomou outro curso. E eu só fiquei sabendo agora.

E quer saber? Que se dane!Levanto-me abruptamente.– Eu já vou indo...– Mas já? Acabamos de chegar – diz Rafa, olhando para seu relógio de pulso prateado.– E a batata frita ainda nem foi servida – Leo franze a testa. – Desde quando você vai

embora sem comer batata? E sem derrubar cheddar em você mesma?– Desde que estou exausta.Rafa se levanta rapidamente, pega minhas mãos e me dá um beijo na bochecha. Aí ele me

olha nos olhos.– Obrigado. Por tudo! Significa muito pra mim.Se há dez anos me dissessem que eu seria a madrinha de casamento do Rafa, eu não

acreditaria. Diria que eu seria a esposa, isso sim.Aliás, se me dissessem isso há uma semana eu também não acreditaria.O que apenas mostra que talvez seja mais proveitoso ser vidente do que terapeuta.Dou adeus a todos e saio pela porta de vidro pesada do bar, prometendo não voltar aqui

nunca mais, e sigo em direção ao metrô. Mas não sem antes parar na lanchonete da esquina e

comprar três batatas fritas tamanho gigante para me afundar também na dieta. É o que chamo defundo do poço duplo.

Meu condomínio fica localizado no bairro do Tatuapé, na Zona Leste de São Paulo. Euimaginava que só me mudaria da casa dos meus pais quando me casasse. Só que eu tambémimaginava que me casaria aos vinte, então eu diria que nossa percepção muda com o tempo.

Conforme o tempo foi passando, eu sentia mais e mais vontade de ter o meu própriocantinho. E no começo desse ano, finalmente consegui!

O que facilitou as coisas para mim é que meu pai é um entusiasta investidor de imóveis. Eletem nove espalhados por São Paulo, incluindo o interior. Emprestou-me um de seusapartamentos até que eu consiga me estabelecer financeiramente, assim como a minha salinha noconsultório.

O que me poupou de uma dívida de no mínimo duzentos mil reais em um apartamentonovo. Mas a culpa faz com que eu tente pagar um aluguel a ele todo mês, intenção essa que sedesintegra assim que chega o valor da conta do condomínio, luz, água e comida.

– Papai, por favor, aceite – é o que digo todo mês, com um cheque na mão, desesperadapara que ele não aceite.

– Não seja boba, filha. Guarde esse dinheiro numa poupança. Eu não estarei aqui prasempre.

E assim vai, mês após mês etc. etc.Só que ultimamente eu não tenho conseguido depositar quantia nenhuma na poupança, já

que não sobra dinheiro no final do mês. Inclusive, às vezes falta.De fato, o que acontece é que a poupança me salva de ficar no vermelho. Então apesar de o

dinheiro das consultas não me darem o suficiente para pagar as contas, eu ainda tenho comosegurar as pontas até o final do ano.

Mas depois disso, acumularei dívidas, ou pior: terei que voltar a morar com meus pais.E é por isso que eu preciso de mais pacientes.Depois de uma caminhada de cinco minutos do metrô até meu condomínio, estou em casa.Deixo minha bolsa e os dois pacotinhos de batatas fritas (um pacotinho se foi no caminho e

a culpa me impediu antes que eu pudesse comer o resto) em cima da mesinha de canto docorredor e acendo a luz da sala.

O quadro na parede acima do sofá faz eu me sentir um pouco melhor e aconchegada. Eu opintei quando era criança usando guache e os dedos das mãos. E possivelmente os dos pés,levando em conta a baixa qualidade da pintura. Estou vestindo um jaleco branco de mãos dadascom duas crianças. Na época eu queria me tornar pediatra e desenhei uma médica bem alta decabelos verdes (a tinta preta tinha acabado) representando a visão que eu tinha do meu futuro.

Não me tornei pediatra, nem pintei meus cabelos de verde, mas gosto de me lembrar que eusempre sonhei em ajudar as pessoas. É o meu propósito de vida.

Poder me jogar no sofá e chorar à vontade é um alívio. Não há ninguém para ouvir os meussoluços. Não há ninguém. Encosto o rosto no sofá branquinho e macio. Vale a pena sujá-lo comlágrimas causadas por esses dois ingratos filhos da mãe?

Quanto tempo da minha vida proporcionei aos dois? Seria melhor se eu sumisse. Mas ele aomenos sentiria a minha falta? Ou estaria tão feliz que nem notaria?

A felicidade dele duraria pouco, isso eu posso afirmar. Quanto tempo vai levar até queAlana se canse e largue ele também?

Que droga de dia!Será que o dia em que conheci Alana foi quando o destino dela se cruzou com o dele? Se eu

nunca tivesse lhe dado o meu cartão de visitas naquela loja, ela o teria conhecido de qualquermaneira?

E o mais importante: tudo isso valeu um cardigã?Em uma onda de fúria, levanto-me do sofá, pego uma tesoura no porta-trecos em cima da

mesinha de canto e marcho em direção ao meu quarto. Abro o guarda-roupa e encontro a peça: oimaculado cardigã rosa que Alana me deu.

Tiro-o do cabide e jogo-o com força em cima da cama que, a propósito, arrumei três vezesessa manhã. Aproximo a tesoura a fim de cortá-lo em pedacinhos.

Não preciso dessa merda!Aproximo a tesoura sem ponta com aro cor de rosa do tecido (de ótima qualidade), mas me

detenho.A quem eu estou querendo enganar? Eu jamais poderia fazer isso com um cardigã de

R$300,00. Em defesa dele, o cardigã não tem culpa de nada.E de que adiantaria? Eu só estaria punindo a mim mesma rasgando a peça mais linda e cara

que tenho, tornando-me menos elegante e muito menos atraente do que Alana. Seria mais fácil seela tivesse me presenteado com algo que eu tivesse coragem de destruir, como um vaso de vidro,que eu pudesse arremessar na parede e fazer uma cena.

Mas cá entre nós, eu teria que limpar tudo depois, não é? E quantas vezes eu teria quelimpar o chão por causa do TOC? Não se passaria três segundos até que minha compulsãoentrasse em ação e eu me visse com a pá numa mão e a vassoura na outra, tentando tirar osmilhares de cacos de vidro do carpete bege felpudo do quarto.

Eu nunca conseguiria ser uma atriz de novela mexicana.Enquanto guardo o macio cardigã de volta em seu cabide privilegiado no guarda-roupa (é o

cabide mais bonito, com pedrinhas de strass e tudo mais), pondero as minhas opções.

Pego o bloquinho ao lado do porta-trecos e guardo a tesoura no lugar. Sinto-meestranhamente calma, talvez mais como uma psicopata do que como uma pessoa tranquila.

As opções não me parecem muito boas, mas se eu optar pela primeira é quase certo queterei que voltar a tomar remédios para ansiedade. Só que, se eu optar pela segunda, perco minhapaciente-chave – que pode me proporcionar um bom portfólio – e meu melhor amigo.

Nesse momento de grande desilusão amorosa, decido fazer o que qualquer idiota faria:stalkear Alana em busca de fotos que me deixem pior do que já estou.

Pego meu celular na bolsa e clico no ícone do Google. Meu coração bate forte. Digito“Alana Trindade Instagram” no campo de busca e o primeiro resultado a surgir é o de uma garotaloira de biquíni na praia, mas a foto é pequena demais.

Droga, não enxergo direito! Caço os óculos na bolsa, focalizo a imagem e sim, com certezaé ela. Já que não tenho cadastro em nenhuma rede social e não quero ser obrigada a fazer umperfil fake só para xeretar a vida dela, eu estava torcendo para que a conta dela não fossebloqueada.

Não é.Com as mãos trêmulas, passo os olhos pelas fotos minúsculas de Alana com um Bulldog

Terrier, Alana com seu personal trainer, Alana com sua amiga blogueira, Alana, Alana e maisAlana.

Paro de rolar a tela quando avisto uma foto em especial. Minhas mãos tremem ainda mais.Ali, com o sorriso mais maravilhoso que eu já vi em uma foto dele, Rafa está abraçando a noivado Chucky.

A cena é a seguinte: o cara que eu imaginava ser meu futuro namorado usando um óculosde sol aviador e camisa polo branca, abraçando minha paciente pela cintura, enquanto ela posapara uma a fotografia digna de Vogue.

Por que minhas fotos não saem desse jeito? Isso é irrelevante quando nem tenho onde postar– e nem quero. Mas mesmo assim...

A legenda da foto dela diz: “Contando os dias! #Casório #NoivoLindo#NoivaMaravilhosa”. Quem é que cria uma hashtag para se autoelogiar?

Mamãe ficaria fula da vida comigo se me pegasse desse jeito. Isso porque ela sempre medisse que inveja é algo detestável. Mas Alana também é, então acho que estamos quites.

Tudo nessa foto é tão... perfeito. A vastidão do mar atrás deles aparenta ter sido pintada àmão, exclusivamente para o casal, que desfruta de duas taças de champanhe no parapeito de umalancha. O sol iluminando os sorrisos brancos e felizes dos dois babacas caras de pau, o cabelolisérrimo e ridículo de Alana, o azul dos olhos do Rafa olhando diretamente para mim através docelular, enquanto eu permaneço imóvel do outro lado da tela.

De repente, nós que nos conhecemos há tantos anos, parecemos pertencer a dois mundoscompletamente diferentes.

Como pude pensar que algum dia eu ficaria com ele? Qual é! É só olhar para Alana paraperceber que eu não tinha a menor chance desde o começo.

Eu sou ridícula.Alana tem fotos pra burro. Rolo a tela para baixo, passando por foto após foto do casal até

que elas se acabam.Rafa destoa de toda essa produção fotográfica falsa. Não tem nada a ver com ele! Ele

precisa de alguém mais parecido com ele. Alguém mais... madura. Como ele não percebe que eue ele temos tudo em comum? Ambos detestamos redes sociais, baladas e desorganização.

Como um sinal dos céus me dizendo que já me torturei o suficiente, a bateria do celularacaba, encerrando minha sessão de automutilação. Mas não consegue desligar também meuspensamentos.

Minha cabeça dói, mas que eu saiba não existe ressaca de uma caipirinha só. Portanto,minha dor de cabeça deve ser de tanto chorar. Fazia tempo que eu não chorava desse jeito.

Para o meu azar, isso vai continuar acontecendo. O grande e gordo “foda-se” vai ter queficar para outra hora, quando eu não tiver mais dívidas a pagar. Vou ter que suportar a opção um.Estiro-me na cama de barriga para baixo, a cabeça afundada no colchão.

Como foi que a minha vida se tornou uma novela mexicana de má qualidade, assistidaapenas por mim?

Vai ver que, de uma maneira ou de outra, um cardigã de trezentos reais comprou a minhapaz.

É terça-feira e o dia amanheceu cinzento, espelhando a nova situação da minha vidapatética. O frio é de congelar a ponta do nariz e eu coloco um par de luvas felpudas pretas debolinhas brancas – as únicas que eu tinha – mesmo com chance de parecer ridícula. É possívelque Alana zombasse de mim em sua pesquisa no metrô.

Deixei a touca com pompom no armário, pois aí também já era demais, e calcei minhasbotas pretas até os joelhos.

Hoje eu mereço uma levantada no astral, então paro em um dos duzentos Starbucks daAvenida Paulista e peço um muffin quente de chocolate. Estou com sede, mas ignoro essanecessidade fisiológica até chegar ao consultório e beber água gratuita.

Como metade do enorme bolinho delicioso até chegar na minha sala. Será que devocomprar outro na hora do almoço também? Não há sentido em fazer dieta num momento comoesse. Se eu não posso ser magra e ter um namorado, ao menos terei gordura no corpo para meaquecer nos momentos solitários.

Meu celular vibra em cima da mesa.– Desembucha – atendo a ligação.– Oi, tapada – diz Leo.– Oi, tapado. Quero dizer, tarado – reflito. – Ah, tapado também.– Agora sim você captou a essência do meu ser – diz ele, rindo como uma criança. – Como

você está?– Estou ótima, ué. E você? – minto, enfiando um pedaço generoso do bolinho na boca.– Bom, aconteceu uma coisa. Mas não quero falar sobre isso por telefone. Topa um almoço?– Eu combinei de almoçar com a Pati, mas você pode ir conosco.– Fechado. Mas se isso for uma armadilha pra vocês garotas me seduzirem, vou logo

avisando que não sou fácil.– Pelo amor de Deus, esse é o meu tipo de almoço, não o seu.Ele solta uma gargalhada.– Então não sei mais se quero ir...– Shopping Center Paulista, às 13h30. Vai estar lá ou não?– Vou verificar na minha agenda e retorno.

– Certo, querido. Tchau. Tenho mais o que fazer – respondo, a boca cheia de muffin.– Minha assistente te liga – ele diz antes de desligar o telefone, mesmo não tendo uma

assistente.– Minha assistente te liga – falo sozinha, sorrindo e imitando o tom condescendente da voz

dele.Levanto-me para guardar o resto do bolinho num potinho de vidro, imaginando se consigo

aguentar até a hora do almoço sem comer mais nada.Não aguento. Sentada na praça de alimentação do shopping, me arrependo de ter comido

aquele muffin inteiro e mais um pacote de salgadinhos de cebola. Será que além de ter TranstornoObsessivo Compulsivo eu também desenvolvi Compulsão Alimentar?

Acabo de fazer anotações sobre ideias para alavancar meu negócio no bloquinho de notasque trouxe na bolsa e abaixo a caneta preta assim que vejo Leo aproximando-se de mim.

– E aí! – Leo senta-se na minha frente e dá um soquinho na minha mão.O aroma característico do perfume dele envolve o ambiente, instalando-se em minhas

narinas. É realmente muito bom. Aposto que custou caro.– Você está atrasado. E sua assistente não me retornou.– Não? – ele coloca a mão na testa e finge aborrecimento. – Preciso me lembrar de demiti-

la.– Você precisa se lembrar de contratá-la.– Touché.– E aí, o que aconteceu? – minha voz se mistura com o ruído do resto das conversas da

praça de alimentação.– O que aconteceu com quem? – Leo arregaça as mangas da camisa social verde-musgo,

que combina com os olhos dele. E puxa o bloquinho, dá uma olhada rápida no conteúdo e odevolve para mim.

– No telefone você disse que aconteceu alguma coisa. E então, o que foi?– Ah, não. Nada aconteceu comigo – diz ele. – Aconteceu com você.– Comigo?– Acha que eu não te conheço? Você parecia arrasada no bar.Ai, droga! Eu sabia que ele tinha notado.– Não seja ridículo. Eu?– Era você ou sua irmã gêmea que eu vi entrar chorando na lanchonete da esquina. Eu sabia

que você não recusaria batata frita.– Você me seguiu?Que cara de pau a dele!– Que cara de pau a sua! – bato com a mão aberta na mesa.– Eu não te segui, idiota. Eu estava indo embora e tinha estacionado o carro ali perto. Foi

quando te vi.Ele me olha pelo que parece uma eternidade. E é então que balanço a cabeça e digo:– E você nem me deu carona?– O que houve? – pergunta ele, ignorando meu comentário.

– Você não acreditaria se eu dissesse – passo a mão no meu rosto.Eu abro a boca para continuar, mas ele é mais rápido.– Você é a fim do Rafael e essa história de casamento está te matando.Ai, meu Deus. Meus olhos se arregalam e a verdade daquelas palavras, que são ditas com

tanta clareza, me atingem como um soco. A situação é mesmo dolorosa e vai ser tão difícilquanto imaginei.

– Como você sabe?– Observando você – ele diz. – Não precisa ser um gênio.Ficamos os dois em silêncio.– Desde quando? – ele pergunta.– Desde sempre.Levanto os ombros, o sinal universal de “fazer o quê?”– Desde sempre? – pergunta ele, inclinando-se para frente e levantando uma sobrancelha.Oh, meu Deus. Não quero que ele pense que...– Não! Não desde sempre. Não na faculdade! – me apresso em explicar. – Eu gostava dele

na época da escola, mas era só uma paixonite boba, então deixei pra lá. Só que tudo voltoudepois da faculdade, eu jurava que eu ficaria com ele e...

Balanço a cabeça de um lado para o outro. Uma lágrima cai na parte de dentro dos meusóculos. Eu os retiro do rosto e passo a mão no canto dos olhos.

– Sinto muito que você tenha que passar por isso.– Eu sei que sente. Obrigada – agradeço com um sorriso, mas me distraio com a chegada de

Pati.– Desculpem o atraso – ela diz, ofegante, e joga a bolsa amarela vibrante em cima da mesa.– Onde você estava? – pergunto.– Er... eu?Ela me olha por um tempão, o cenho franzido e as bochechas coradas.– É, você.– Presa no trabalho. Só isso, só isso.– Sei...De forma estranha, Pati muda rapidamente de assunto:– Vamos comer? Estou morrendo de fome.Compramos nossos almoços e permanecemos em silêncio durante as primeiras garfadas.

Por que comer é tão bom? Por quê? Talvez porque minha vida esteja arruinada e comer seja aúnica coisa que me restou. Aposto que mulheres magras não se perguntam esse tipo de coisa.Aposto que Alana não se pergunta esse tipo de coisa.

– Vou te dar um conselho. Esqueça o Rafael – diz Leo.Pati se engasga com a comida e começa a tossir. Bato nas costas dela.– Como assim? – ela me pergunta, a fala cortada pela comida presa na garganta. – Ele sabe?– Ele percebeu.– Meu Deus, Melissa! Por que não disse antes? Eu estava louca pra comentar isso com

alguém – ela coloca uma mecha ruiva atrás da orelha e aponta seu narigão para o Leo. – Que

merda ela vai fazer agora se Alana é paciente dela?– Alana é o quê? – Leo ergue as sobrancelhas, olhando de uma para outra.– Ele não sabia a história toda – digo a ela, entre dentes.Viro-me para encará-lo.– O negócio é que Alana é minha paciente lá no consultório. Eu não sabia que o noivo a

quem ela se referia era o mesmo Rafael. Como eu poderia saber?Leo coça a testa.– Ela é sua paciente? – ele pergunta, apontando o dedo para mim.– Isso.– A noiva do Rafa?– Exato.Ele permanece imóvel, com o dedo levantado no ar.– Que merda! – ele diz e coloca um pedaço de bife na boca.– Quando diziam que o mundo era pequeno, eu não imaginava que fosse do tamanho de um

ovo de codorna – diz Pati.Leo apoia o garfo no prato e aponta o dedo para mim de novo.– Você é a terapeuta dela?– Pois é – respondo a um Leo boquiaberto.– Será que dá pra fechar a boca? Eu tô vendo a comida nos seus dentes! – É a vez de Pati

apontar o dedo pra ele.– E teve que ouvir tudo a respeito dos dois? Sem saber que era o mesmo Rafael? – diz Leo.Eu não tinha parado pra pensar nisso até agora. Mas ouvi tudo a respeito do...– Ai, meu Deus! Eu sei tudo sobre o sexo – grito. E em seguida tampo a boca por ter falado

alto demais na praça de alimentação lotada.Em contrapartida, a boca de Pati se abre tanto que agora consigo enxergar a comida nos

dentes dela.Erro fatal. Ela é muito curiosa para deixar essa informação passar.– Humm... Você... humm... – ela tamborila os dedos na mesa de granito do shopping.Quase consigo ouvir os pensamentos dela, ponderando se seria muito insensível de sua parte

perguntar sobre o assunto.Ao que parece, ela deixa a sensibilidade de lado.– O que ela te contou? Alguma coisa estranha? – ela pisca.Erro muito fatal.– Eu não posso dizer. Por uma questão de ética...– Não, não, não! Espere, não diga isso – ela fecha os olhos e junta as mãos, assumindo uma

postura serena. – Então só me diga: é pequeno?– Pati!– Anote no bloquinho, se preferir.– Pati, para com isso...– Dez centímetros? Quinze centímetros? – ela arregala os olhos quando não respondo. –

Vinte centímetros???

Eu a interrompo antes que ela conclua que o pênis do Rafa tem um metro de comprimento.– Nem pense nisso – levanto a mão. – Eu não quero pensar nisso.Leo solta um gemido de desespero.– Ah, meu Deus! Vocês são horríveis.– Pati é horrível. Eu não falei nada. O que Alana me diz é confidencial.– Mas, amiga, veja bem: você não precisaria me falar, em si. É só piscar o olho direito se eu

acertar – ela insiste. – Além do mais, seria muito injusto se você não dividisse isso comigo.– E por quê? – pergunto.– Porque, se fosse ao contrário, você sabe que eu te contaria tudo, e em detalhes, na hora em

que você me pedisse.– Você me contaria mesmo se eu não te pedisse.– Então! Viu? – ela diz, juntando as duas mãos para implorar.– Porque você é boca aberta, Patrícia! E eu não posso ser. Não com a minha profissão.Será que ela não poderia ser um pouco mais compreensiva? Eu acabei de perceber que sei

dos detalhes da vida sexual dos dois. Dá pra ser mais deprimente que isso?Por que, a cada momento que passa, eu percebo que há sempre um modo de a situação ficar

pior?– Escute o que eu vou te dizer – Leo afasta de si o prato de comida pela metade. A coisa

deve ser séria. – Você precisa se desligar de tudo isso. Tem que se afastar e esquecer o Rafael.Ele fala como se o noivado deles fosse durar! Mas ele não conhece Alana como eu. Ele não

sabe a rapidez com que ela vai cair fora.– Eu não posso.– Pode sim! É só deixar de ser terapeuta dela. Pode até deixar de ser madrinha, se for

melhor.– Você não está entendendo – mordo a ponta do dedo anelar até tirar um pedaço da pele.

Então solto tudo em uma respirada só. – Alana é podre de rica e preferiu me pagar adiantado,uma grana realmente muito boa e...

– Você gastou tudo – completa ele, compreendendo instantaneamente a minha burrice.– Até o último centavo! – confirma Pati. – Sabe aquele tapete felpudo da sala dela que você

adora? – ela começa a contar nos dedos, suas unhas pintadas de roxo. – E a mesa de madeira? Eas cadeiras brancas? A tinta das paredes?

– Tá legal, Pati. Acho que ele já entendeu – digo, mas ela dá de ombros.– De qualquer forma, eu tinha o direito de gastar. O dinheiro é meu! Bom, era meu.Leo continua me encarando com o dedo indicador no queixo. É o que ele sempre faz

quando estou com algum problema. Ele fica todo esquisito e pensativo.– Já sei! – diz ele. – Eu te empresto esse dinheiro.– A não ser que você tenha essa quantia... – anoto o valor no bloquinho de notas e deslizo-o

para o lado dele na mesa. – ... não vai adiantar.Sugo um gole do refrigerante dele pelo canudinho.– Merda! – ele toma o refrigerante de mim. – Você ganha tudo isso?

– Ela me pagou pelo ano inteiro, tá legal? – suspiro. – Dividido por mês não dá tanta coisaassim.

– Tudo bem – ele respira bem fundo. Bem, bem fundo. – Eu te empresto mesmo assim.Esse ato de bondade quase me faz chorar. Estou tão perdida que é reconfortante ter alguém

me estendendo a mão. Mão essa que não posso segurar.– Obrigada por se preocupar. Mas não posso deixar você me emprestar tanta grana.– Não me importo em te ajudar – ele diz. – Além do mais, não seria meio antiético você

continuar atendendo Alana?– Bom, tecnicamente. Mas isso se eu desse a ela conselhos sem imparcialidade, e a

qualidade das consultas fosse prejudicada. Se eu conseguir deixar a minha vida pessoal para forada sala e atendê-la visando ao seu bem, posso ser uma psicóloga decente. E se eu, de fato, tenhocondições de ajudá-la, seria antiético deixar de ajudá-la.

– Mas e você nessa história toda, como fica? – ele se remexe na cadeira. – Por favor, sóaceite o dinheiro.

– Eu não posso fazer mais dívidas do que já tenho, Leo. Além disso, já me comprometi coma minha paciente, pelo menos até o final do ano. Ela está fazendo progresso com as consultas.Ela precisa de mim.

– E se você surtar antes disso? – Pati levanta uma questão importante.– Se eu perceber que não estou sendo prestativa, eu interrompo o atendimento. Mas posso

segurar as pontas, eu sei que posso. Mesmo porque, Alana foge de um relacionamento atrás dooutro. Posso apostar que daqui a um mês estaremos deixando esse assunto para trás. E não vale apena deixar de ajudar a minha paciente por algo que muito provavelmente será passageiro.

Minha barriga fica gelada – e não é por causa do refrigerante. A imagem de Alana começa amudar ligeiramente em minha mente. É verdade que sempre a considerei uma garota superficial emaldosa, mas nunca levei para o pessoal. Ela saía da minha sala e eu pensava “ufa, agora ela éum problema do mundo”.

Mas agora? Ah, agora ela é um problema meu!– Se eu fosse você, sabe o que eu faria? – diz Pati, de súbito, levantando o garfo no ar como

se fosse o Arquimedes dizendo “Eureca”, e espalhando grãos de arroz por toda a mesa. – Eulutaria por ele.

– Não. Péssima ideia... – diz Leo, mas Pati o interrompe.– Não, não, pensa só: você é uma terapeuta de relacionamentos. É o que você faz de

melhor!– Pati, eu tenho duas pacientes. E uma delas está destruindo a minha vida. Eu não diria que

é o que eu faço de melho...– Mas... – ela me interrompe, apontando o garfo para mim e fazendo um grão de arroz

aterrissar no meu nariz. – Você até deu uma palestra um dia desses…– Justamente para atrair mais pacientes! Olha, Pati, sei que você quer ajudar, mas...– E você fez aquele “curso sobre namoros” – ela faz aspas com os dedos.– Pati, era uma especialização em Relacionamento Conjugal.– Dá no mesmo, dá no mesmo – ela abana as mãos no ar. – Você entende do assunto!

– E o que é que isso tem a ver com alguma cois...– Se liga! Você diria que três meses é tempo suficiente? – ela pousa a ponta do dedo na

mesa. – Pra saber se encontrou a pessoa certa? – completa ela ao notar minha confusão,empinando o nariz.

– Bem, não. Seria muito difícil ter certeza em tão pouco tempo...– Mas é claro! – ela grita.Bem, isso é verdade. Três meses é realmente muito pouco tempo, principalmente em se

tratando de uma pessoa tão impulsiva quanto minha paciente.– Eu digo o seguinte... – Pati continua. – Por que você não testa o relacionamento dos dois,

aplicando tudo o que você conhece sobre o assunto?– Que ideia idiota é essa? – pergunta Leo, sua voz cortante. – Essa é a última coisa que ela

precisa. Ela tem que esquecer o cara, deixar o Rafa viver a vida dele e finalmente viver a dela. Enão entrar em um jogo idiota de “teste de casais”.

– É isso! – diz Pati, juntando as mãos e dando pulinhos na cadeira, ignorandocompletamente o tom irritado da voz do Leo. – “Teste de casais”. Esse será o nome do plano.

Eu deixo um sorriso escapar.– Obrigada, Leo – ela agradece, sem perceber que ele parece a ponto de explodir de raiva.

Ou simplesmente não dando a mínima para isso.As sobrancelhas dele descem até o olho, entediado com a falta de noção de Pati.E eu? Bem... eu devo admitir que essa é uma ideia bem genial.Ou estou em estado de negação.Seja como for, eu definitivamente poderia fazer isso. Quer dizer, eu gostaria de fazer isso.

Poder ou não poder são questões completamente diferentes.Mas não vamos entrar em tecnicalidades agora.– Não é uma boa ideia, Mel – Leo diz. – Você não está seriamente pensando nisso, está?– Como assim? Por quê? – pergunta Pati, ofendida. – Você acha que minha ideia é tão

idiota que ela nem deveria considerar?– Exatamente, Patrícia. Você entendeu – ele bate palmas irônicas para ela.– Você não concorda que noivar depois de três meses é uma atitude incoerente vinda do

caretão do Rafael? – Pati se dirige a mim.Leo tenta argumentar, mas Pati não permite.– E que você tem o direito de lutar por ele? – ela aumenta o tom de voz.Eu olho de um para o outro, sem piscar. Pati está com a corda toda.– E que se perceber que Alana e Rafael realmente dão certo, poderá colocar um ponto final

nessa história? – ela junta as mãos em uma pose orgulhosa.– Você não está seriamente pensando nisso, está? – repete Leo, ignorando Pati

completamente.Ela bufa.Leo me olha como se me estendesse a mão de novo.– Não, é claro que não – respondo.Ele solta a respiração.

Os ombros de Pati caem, e ela apoia os cotovelos na mesa, o queixo nas mãos. Continuocomendo, mas a ideia ainda paira em minha mente.

– Você não pode desistir – ela diz, olhando para o prato.– Obrigada pelo apoio. Mas Alana é linda e ela o ama. Ela o ama, assim como eu. E ela o

tem. Então que chance tenho eu?– Amiga, você é uma garota honesta, verdadeira e inteligente. E ele não sabe o que você

sente por ele. Então se ele souber, que chance tem ela?Ficamos os três em silêncio.– Ei, confie em mim. É melhor assim – Leo toca em meu braço. – Você só iria sofrer ainda

mais.– Não é a primeira vez que eu sofro, de qualquer maneira – digo a ele.Mas nem ele e nem Pati fazem a mínima ideia a que me refiro. E eu prefiro que eles não

saibam. Principalmente o Leo.– Mas não se preocupe – digo. – Você me conhece. Eu não teria coragem de fazer nada

assim.Pra ser bem sincera, minha vida amorosa já está há muito esquecida e estou perfeitamente

bem do jeito que estou.Brinco com o bloco de notas. Volto algumas páginas e corro os olhos entre as duas opções

que tenho.

Sem dor, sem ganho, não é? Então acho que o inverso também é válido.Atenho-me à opção um e bebo o resto do refrigerante do Leo.

Opção três: Ela não é a pessoa certa para ele e eu vou provar isso.Repito essa frase para mim mesma como um mantra, sentada no banquinho frio do metrô.

Sei que não vou colocá-la em prática, mas não quero me esquecer das palavras, já que não ascoloquei no papel.

Meu telefone toca assim que coloco os pés em casa.Minha pulsação torna-se mais rápida quando leio o nome no visor.– Rafa? – digo, certificando-me de que minha voz soe menos ansiosa.– Mel... – sua voz firme entra pelos meus ouvidos e comanda que meu cérebro entre em

parafuso.– E aí? – pergunto, sem pensar em nada melhor para dizer.– Eu estou precisando muito da sua ajuda. Você pode me encontrar? Preciso escolher uma

camisa nova. E não conheço ninguém melhor do que você para me ajudar.Há silêncio na linha. É tão estranho estar em dúvida em relação a algo que ele me pede.

Apesar de eu querer muito passar um tempo sozinha com ele, me incomoda que ultimamente eleesteja tão... noivo.

– Mel?– Oi! Sim, estou aqui.– No shopping Boulevard. Você vem?Aí me ocorre uma coisa. Ele quer me encontrar no shopping para ajudá-lo a escolher

roupas? Todo mundo sabe que esse é um passeio típico de casais. Mas por que então ele nãochamou a outra metade de sua laranja?

Alana tem classe para dar e vender, além de ser rica como um banco. E ele me escolheu?Minhas mãos tremem ao redor do celular. Meu coração bate forte. Talvez nem tudo esteja

perdido.Além do mais, escolhi a opção um, não foi? Então preciso agir como tal.– Se vier, te compro uma blusa nova, no lugar da que você manchou de ketchup.Alerta vermelho! Isso é totalmente um passeio de casal. Será que ele não percebe isso?– O quê? Você vai me comprar um vestido? – digo, sorrateira.– Ei, eu disse blusa.

– Vou pelo vestido.Ganhar roupa nova sem movimentar a minha conta-corrente? É algo que aceito na hora.– Então, você vem?– Você me ganhou no “vestido”.– Eu disse “blusa” – ele dá risada.Desligo o telefone. Será que fiz a coisa certa?Não sobre o vestido, é claro que não. É sempre bom definir a peça antes de fazer acordos.

Ele poderia me dar um par de meias caso eu não deixasse claro.Estou falando sobre sair com ele, no geral. As palavras do Leo passeiam em minha mente,

dizendo para que eu siga com a minha vida.Mas que vida eu devo seguir? Assistir novelas sozinha no sofá de casa? E quem é ele para

me dizer como devo viver a minha vida, se nesse exato momento deve estar se engalfinhandocom alguma desconhecida no sofá da casa dele?

Mesmo que Rafa esteja comprometido – fato esse que dói mais do que bater o dedinho dopé na mesinha da sala –, eu preciso vê-lo.

Até parece que eu perderia um passeio de casal.E um vestido novo.– Aí está minha madrinha favorita! – Rafa diz, e meu rosto se contorce involuntariamente

numa careta.Finjo que não é comigo.Chego na loja em tempo recorde. Rafa para de vasculhar a arara de camisas (não o animal,

mas sim uma arara de roupas... se ele estivesse vasculhando um pássaro vestindo camisas seriamuito estranho) e aproveito para checar se há uma aliança de noivado em seu dedo. Mas não há.

Ele me cumprimenta com um beijo no rosto, uma das coisas que eu mais gosto nele: ele dábeijos nas pessoas. Ele não dá “bochechadas”. O que, pensando agora, me dá uma oportunidadede beijá-lo por acidente, se eu fingir tropeçar e cair em cima dele.

Mas não posso. Se tem uma coisa que eu jamais faria seria beijar um cara comprometido.– Você sabe que é a minha madrinha de casamento preferida, não sabe? – ele insiste.– Madrinha preferida? – meu estômago congela.– É claro. Você tem o posto principal, sendo minha melhor amiga.– Ah, sim, sim. – E como se eu já não tivesse usado essa palavra vezes demais, acrescento:

– Sim!– Mel, você está bem? – ele pergunta.Sorrio, mostrando o máximo de dentes possível.– Por que eu não estaria?Isso vai ser mais difícil do que imaginei.Giro a cabeça ao redor da loja. É um espaço extenso e sofisticado, o chão de mármore

estendendo-se entre a ala masculina e a feminina. Estico o pescoço para enxergar os vestidos dooutro lado da loja.

– Você parece aérea.– Só estou animada por você. Quem poderia imaginar, hein? Casamento!

– Eu sei. É loucura, não é?– E como! – dou uma risada estridente, que ressoa pela loja. Até o manequim de vestido do

outro lado deve ter ouvido.Engulo a saliva, tentando me livrar do angustiante arrependimento de ter vindo até aqui.

Mas agora que vim, pelo menos vou levar um vestido para casa.– E aí? Qual é a minha tarefa? – pergunto solenemente, sentindo o aroma característico de

sabonete da pele dele.– Preciso que você me ajude a escolher uma camisa. Você é ótima nessas coisas – ele

coloca a camisa roxa que estava segurando de volta no cabide.– Certo. Uma camisa. Ótimo.Apenas uma camisa e eu pico minha mula daqui.– E se você fizer um bom trabalho, vamos para a ala feminina para que escolha o seu

vestido. Os que estão em liquidação.– Até parece!Ele acha graça da minha expressão de horror.– Não, senhor! – bato o pé no chão. – Vou ganhar meu vestido de uma maneira ou de outra.

E de qualquer preço! – Acrescento, levantando uma sobrancelha. – É minha oferta final.– Sim, senhora! – diz ele, levantando as mãos em derrota. – Você venceu, senhorita

bravinha.Tento não me derreter, mas minha boca se move para cima formando um sorriso tímido.– Tá legal, então. Vamos começar – olho para o relógio. – Temos uma hora até o shopping

fechar.– Você é demais, sabia? – ele olha fixamente em meus olhos e me deixa sem graça. Desvio

o olhar e giro o corpo para as camisas em exposição.– Alguma ocasião especial para a camisa? – digo, mudando de assunto. – Para o trabalho ou

algo assim?Ele levanta as sobrancelhas.– Er... Não – ele parece confuso. – Eu não te falei pelo telefone? É para o cartório.Viro-me para fitá-lo. Fico parada por um momento, sem entender.– Para o cartório?– Para o dia do meu casamento no civil – ele me esclarece.– Oh...Oh! A ficha demora para cair e reúno forças para levantar o meu queixo, que caiu junto com

ela. Mas é claro que a camisa é para impressionar Alana! Pra quem mais seria? Pra mim?Sou uma idiota.Então é por isso que Alana não veio com ele. Não porque ele prefira a minha companhia,

não! Mas porque é uma surpresa para ela.E a triste situação para mim é a de que atravessei a cidade para me encontrar com um cara

que está noivo e claramente não quer nada comigo, a não ser dicas de moda.Viro-me de costas novamente porque de repente me sinto muito sem graça.– Que cor? – finjo analisar a camisa roxa horrorosa.

– Como disse? – ele pergunta, aproximando-se de mim.– A camisa – repito, ainda de costas. – Que cor?Como sou estúpida. Estúpida, estúpida, estúpida.Separo algumas camisas e faço com que ele segure todas elas, jogando as peças em cima

dele. Será que ele percebe a minha fúria reprimida enquanto faço isso ou interpreta comoentusiasmo de compras? Diferentemente de todas as vezes que venho ao shopping, essadefinitivamente não é uma ocasião divertida.

Uma parte de mim permanece feliz de estar com ele, mas uma outra parte quer matar esselado burro do meu cérebro.

Separo onze peças, incluindo uma linda calça cáqui – que sei que ele não me pediu, mas jáque estou aqui sofrendo, o mínimo que ele pode fazer é experimentá-la para que eu possa vercomo fica o seu bumbum nela.

Apesar de que esse bumbum não é meu, mas sim de Alana, e será ela quem desfrutará dacalça. Ou pior: ela vai desfrutar dele sem a calça. Credo! Balanço a cabeça para afastar essepensamento.

O provador é unissex, de modo que tenho permissão para aguardar do lado de fora dacabine, sentada em um pufe que puxei de dentro da cabine ao lado. Meu reflexo no espelho quefica lá no final do corredor revela que pareço bem. Até que estou bonitinha hoje. Meus cabelospretos colocados atrás das orelhas decidiram comportar-se bem, com um aspecto mais liso ecomprido que o normal, indo até a metade das minhas costas. Mas o meu batom já deve tersaído. Preciso retocar.

Rapidamente, abro o zíper da minha bolsa e tiro de lá a nécessaire.– Cadê essa porcaria? – falo baixinho, tentando encontrar o batom com a tampa preta,

porque é esse o batom da cor nude (que me dá um visual discreto, mas ao mesmo tempo deixameus lábios mais carnudos). No entanto, essa se revela uma tarefa muito complicada, já que ailuminação nos provadores é um pouco escura. Nem meu espelhinho de bolso consigo encontrar.

Encontro pelo menos o batom! Ufa! Ouço um barulho vindo da cabine do Rafa, portantocomeço a passar o batom depressa nos lábios. Ele deve estar acabando de se trocar e pode sair aqualquer momento, e não quero que ele pense que passei batom por causa dele ou algo assim.Sem tempo para me olhar no espelho, jogo o batom e a nécessaire de qualquer jeito dentro dabolsa e cruzo as pernas no exato momento em que ele escancara as cortinas e aparece usandouma camisa verde-escuro.

E uau! A camisa está perfeitamente ajustada em seu peito largo e eu quase fico sem ar. Façomovimentos de aprovação com a cabeça e levanto o polegar, enquanto recupero o controle sobrea minha língua.

– Gostou mesmo? – ele pergunta, analisando-se no espelho.– Se gostei? – consigo dizer, por fim. – Essa vai para a pilha do sim.Noto meu polegar ainda estendido, como uma criança de dois anos, e abaixo as mãos.– Por que não experimenta a azul?– O que houve com a sua boca? – ele me interrompe e dá uma risada, inclinando a cabeça

para me enxergar.

– O quê?Entro em desespero. O que é que houve com a minha boca?Ele retorna à cabine e eu corro até o espelho da cabine ao lado.Ah, meu Deus! Eu passei o batom vinho-escuro, e não o nude!Esqueci que os dois são da mesma marca e têm a mesma embalagem. As imperfeições da

aplicação do batom, que seriam imperceptíveis na cor nude, ficaram tão evidentes na cor vinhoque pareço uma bruxa. Minha boca está toda borrada, como a de uma criança que pegou amaquiagem da mãe e foi apanhada.

– Estou vestindo a azul agora – ele anuncia de dentro do provador. – Com a calça cáqui.Mas não garanto nada. Não sei se gosto desse tipo de calça...

– Acho que vai ficar boa – respondo distraída, repassando o batom vinho para consertar asarestas, desta vez com a lanterna do celular ligada.

– Até que não ficou tão mal assim – ele diz ao abrir a cortina da cabine. E a camisa ficou tãolinda nele que tenho vontade de chorar por ele já ter proposto casamento a outra pessoa.

Ele dá uma viradinha e sutilmente observa seu bumbum no espelho. Começo a rir da caradele. Ele logo se endireita e finge que não estava avaliando a própria bunda. Passa as mãos peloscabelos loiros e fecha a cortina novamente.

Ele é adorável.Quando Rafa acaba de experimentar o restante das camisas, deixo a área dos provadores

enquanto ele veste suas roupas novamente.Tá legal, você me pegou. Na verdade, estou fugindo de ter que escolher uma camisa para o

casamento dele. Ele que escolha a droga da camisa!Será que ele se importaria muito se eu não fosse à cerimônia de casamento? Talvez eu

pudesse fingir uma gripe forte. Ou uma cólica terrível. Isso, cólica sempre funciona.– Prefiro a camisa azul. O que você achou? – a voz dele invade meus pensamentos e giro

nos calcanhares para vê-lo caminhando em minha direção, com o sorriso mais gentil do mundo.Eu não poderia fazer isso com ele. Que culpa ele tem nisso tudo? Ele me obrigou a me

apaixonar por ele, por acaso? Eu seria a pior melhor amiga do mundo se não estivesse presente.O que devo fazer?– Ela ficou linda em você – assinto com a cabeça. – De verdade.– Então está decidido. Agora é sua vez!Aleluia! E quer saber de uma coisa? Que se dane o casamento! É minha vez de escolher um

presente do homem que eu amo.Ok, posso dizer que tenho um fraco por roupas. Quando pequena, eu adorava ganhar roupas

de aniversário. Meus pais me achavam muito “esquisitinha” por causa disso, como diz mamãe.Criança gosta de brinquedo, é o que minha mãe dizia. Mas eu nem ligava.Ela vive dizendo que uma vez me pegou tentando trocar uma boneca por um vestido rosa de

uma menina com quem eu costumava brincar, e me impediu antes que a troca fosse feita. Masnão sei se acredito nessa história. Mamãe é meio mentirosa.

Rodo pelas araras analisando todos os vestidos que encontro. Inclusive as etiquetas. Nãoquero ser oportunista, não me entenda mal, mas quero comprar uma peça da coleção nova. Só o

que eu poderia normalmente comprar dessa loja são as peças em liquidação, e oportunidadescomo essa não se apresentam todos os dias.

Separo alguns modelos. O que mais me chama atenção é o manequim que eu tinha visto ládo outro lado da loja. Ele sustenta um vestido azul-piscina todo soltinho, preso nos ombros portirinhas, pela bagatela de duzentos e cinquenta reais. Apanho o tamanho 40 para experimentar.Ou será o 42?

Pego os dois.– Prontinho – digo para o Rafa, que ficou me observando por cima do ombro o tempo todo,

tentando enxergar as etiquetas de preço das três peças que separei.Olho o relógio e faltam vinte minutos para a loja fechar. Entrego as peças nas mãos de Rafa,

piscando os olhos inocentemente.– Por aqui, por favor – digo e indico com o braço o sentido do provador para que ele

carregue as minhas peças até lá.– Eu virei seu chofer? – diz ele, e passa andando por mim. – Olha que eu derrubo ketchup

no seu vestido novo, hein?– Ótimo – digo, andando depressa. – Se puder fazer isso de dois em dois meses seria

perfeito. Ganharei muitos vestidos ao longo do ano.Só que aí ele me deixa sozinha, dizendo que precisa fazer uma ligação, e não me

acompanha e não faz comentários divertidos como fiz com ele. Pelo lado positivo, vou ganharum vestido novo. E, só de raiva, vou escolher o mais caro.

Provo todas as peças e fico na dúvida de qual levar. Surpreendo-me quando minha cinturase afina magicamente no vestido azul-piscina, que ficaria lindo no vento, com os meus cabelosesvoaçantes como em um comercial de perfume. Ou talvez seja melhor eu não sair no vento comele, porque na vida real o vento bate forte na região traseira e alguém sempre acaba vendo a suacalcinha.

Mas vale a pena arriscar. É só colocar uma calcinha bonita.– Vou levar este vestido, por favor – digo à atendente do caixa, meu ânimo muito mais

elevado por causa do vestido do comercial de perfume ter ficado perfeito em mim.Olho para fora da loja, onde o Rafa ainda fala ao telefone.– Vocês estão juntos? – ela aponta para ele.– Juntos? – pergunto.– Sim! Posso colocar na mesma sacola?– Ah, sim, sim – digo. – Estamos juntos, com certeza. Juntinhos.E não é mentira, eu realmente estou com ele. Na loja. Ela não perguntou se estávamos

namorando nem nada. Dou um suspiro audível, como se estivesse boiando nas nuvens.Figurativamente, porque eu não sei boiar de verdade.

– O vestido vai junto com a camisa azul e a calça cáqui, por favor – digo.Sorrio para a mulher enquanto ela embala meu vestido no papel arroz de cor creme antes de

colocá-lo na sacola preta da loja.Olha como o mundo é mágico! Você acorda achando que não vai ganhar nenhum vestido

novo, mas de repente se vê numa loja caríssima escolhendo um presente do seu cara favorito.

Pareço Julia Roberts, em “Uma linda mulher”. A não ser pelo fato de que não sou prostituta,não tenho cabelos ruivos e armados, Rafa não é tão rico quanto Richard Gere, e talvez eudevesse ter escolhido um vestido mais caro.

Caminho até meu melhor amigo. Seria correto da minha parte voltar até o caixa de braçosdados com ele? Ao me aproximar, tenho a minha resposta.

– Também estou com saudades. Um beijo, linda. Até já! – ele diz, ao finalizar a conversapor telefone.

Meu coração perde as batidas. Quem era? Como assim, “até já”?, quero perguntar comouma namorada enciumada, exigindo saber o que está acontecendo. Mas eu não tenho esse direito.Porque é mais do que óbvio quem estava do outro lado da linha. Talvez eu devesse ir emboradaqui sem avisar, mas isso implicaria deixar também o vestido para trás. Nem a pau!

Vamos combinar: eu não encontraria outro que me caísse tão bem assim nunca mais. Eu mepreparo para ficar e suportar. Ficar e suportar, esse é o meu lema. Sou boa nisso. Além disso,esta não é a primeira vez que uma coisa assim acontece comigo.

Pelo menos ele não finalizou a conversa dizendo que a ama.Ele paga pela compra enquanto fico do lado de fora da loja, sem coragem de encarar a

atendente.– Aqui está, milady – ele diz, gentilmente, e eu pego minha sacola de suas mãos.– Obrigada – digo, olhando para o chão.– Você está bem? – ele pergunta novamente. – Você parece meio... triste.– Por que eu estaria triste? – olho para os meus pés, as sapatilhas brancas que limpei hoje

cedo revelando novos traços de sujeira que adquiri durante o dia.– Tenho uma ideia! – ele checa o relógio de pulso. – Temos três minutos até o shopping

fechar. Vem comigo!Ele agarra a minha mão e saímos correndo pelo shopping quase vazio, esbarrando nas

poucas pessoas que ainda passeiam. As luzes das lojas prestes a fechar passam como um vultodiante de meus olhos enquanto solto uma gargalhada.

– Um sorvete de frutas vermelhas com leite condensado para a madame – ele pede o meusabor favorito para a atendente da sorveteria. – E um sorvete de caramelo, por favor.

Apoio-me no balcão, ofegante, e não tenho certeza se meu coração bate forte por causa dacorrida ou por causa dele.

– Ah, e uma água – ele completa, me olhando de canto de olho, pois sabe que eu nãoconsigo tomar sorvete sem uma garrafinha de água para acompanhar.

Nós nos sentamos nos banquinhos da praça de alimentação, um ao lado do outro.– O seu parece bom – ele pega um pouco do meu sorvete com a sua colher, deixando o seu

de lado.– Então seu plano era me trazer até aqui só pra roubar todo o meu sorvete? – coloco uma

mão na cintura, fingindo indignação.– Claro que era – ele se serve de mais uma colherada. – Mel, você me subestima.– Eu te subestimo, é? – digo, deliciando-me com essa conversa e com meu sorvete de frutas

vermelhas.

– Ora, mas é claro. Sei que você não se importa em dividir comigo. Você acha que não teconheço... – ele olha fixamente para mim. – Mas eu sei tudo sobre você.

– Sabe? – pergunto, parando com a colher a meio caminho da boca.– Claro que sei. E sabe por quê?– Por quê? – digo, inclinando-me lentamente para mais perto dele.Sou só eu, ou o rumo dessa conversa está ficando interessante?– Porque nós dois somos iguais – ele abre um sorriso e o furinho em seu queixo fica mais

evidente. – Eu não sei, não. Acho que devíamos ter sido almas gêmeas em outras vidas.Para tudo!Oi?Ele disse mesmo isso? Que devíamos ter sido almas gêmeas? Meu coração começa a

acelerar, e permaneço imóvel enquanto ele volta sua atenção ao próprio sorvete, como se nãotivesse dito nada demais.

– Você acha? – digo, tentando um tom casual. Seguro firme em volta da casquinha dosorvete para esconder as mãos trêmulas. Aperto-a tanto que um tlec me adverte que acabo derachar uma parte da casquinha.

Rafa abre a boca para responder, mas então...TRIMMMM!Nossa conversa é interrompida pelo toque estridente do meu celular.Rafa continua mais interessado no sorvete de caramelo, enquanto procuro a droga do

aparelho na bolsa. Cadê essa porcaria? Porém o toque cessa, e seja lá quem estivesse me ligandoacabou desistindo, sem saber que estragou um momento potencialmente mágico para mim. Oupara nós.

Ele disse mesmo aquilo? Ele finalmente está compreendendo? Então, não é tarde demais?Nós nos despedimos no final da noite, e assim que viro a primeira esquina fora do alcance

do Rafa, começo a dar pulinhos de alegria e gritinhos baixos. A noite só poderia ter sido maisinteressante se tivéssemos conseguido, de fato, prosseguir com aquela conversa. Restando assimuma dúvida importante a ser esclarecida:

Quem foi o idiota que me ligou?

Oito e cinquenta.Meu estômago está vazio, mas não sinto fome. Acho que minha pança contém gordura o

suficiente para durar semanas.Acordei às cinco da manhã e não consegui mais dormir. Organizei a prateleira de livros três

vezes e tirei o pó da estante. Não vou nem comentar que o tal pó era inexistente, para não pareceresquisita.

Não fico tão preocupada com o idiota que me ligou naquele dia no shopping (foi o Leo, apropósito), e por um momento deixo de lado aquele lance todo de almas gêmeas que o Rafadisse. Estou nervosa demais para isso.

Nove horas.Ela ainda não chegou. Agora comecei a ficar com fome. Vou até a cozinha do consultório e

me sirvo do café que Lorraine fez. Devo admitir que isso ela faz muito bem, sendo viciada emcafeína e tudo mais. Abro o meu lado no armário e pego um pacote de bisnaguinhas.

Nove horas e vinte minutos. Já me empanturrei de bisnaguinhas e nada de ela aparecer.Como mais uma e sei que já é hora de parar, pois temo eu mesma virar uma bisnaguinha.

Nove e meia. Alinho o aparelho de telefone com a borda da mesa. Naquele dia, saí doshopping em confusão total. Meu TOC chegou a um nível absurdo, como há muito não melembrava que poderia ser. Aquele comentário do Rafa me fez ir longe na ansiedade. Limpei duasvezes a sala de estar. Outro fato (talvez nem mesmo relacionável) foi que ontem à noite me senticompelida a comer não apenas uma, mas duas barras inteiras de chocolate. Mas não sei se chamoisso de repetição por conta do TOC ou de simples gula.

Nove e quarenta. Talvez eu devesse aproveitar esse tempinho para retornar a ligação doLeo. Mas assim que coloco a mão no telefone, ele começa a tocar sozinho e fico atordoada porum momento, achando que pode ser ele.

Mas não é. Claro que não. É pior.Ela chegou.– Oi, querida – Alana me cumprimenta, entrando em minha sala com seu sorriso

condescendente. Eu tremo ligeiramente enquanto ela me dá um abraço afetado. O cheiro de seuperfume doce me deixa enjoada.

Só preciso sobreviver ao dia de hoje.Essa é a primeira vez que a vejo depois de descobrir tudo. A primeira vez que desejo não

ser sua psicóloga. Isso nunca tinha acontecido antes, mesmo com toda a indelicadeza dela. Maslembro a mim mesma de que preciso deixar a minha vida pessoal de fora.

– Humm... olá – Minha voz falha. Limpo a garganta. Vê-la faz tudo parecer muito pior. – Eentão? Humm... o que me conta?

– Desculpe o atraso... os preparativos do casamento estão me deixando louca! – a mimtambém, Alana! – Te pagarei essa consulta em dobro também.

Nem isso consegue me animar.Nós nos sentamos. Dou um “ok” ao lado do nome dela na agenda de pacientes, impedindo o

impulso de riscá-la raivosamente da página e da minha vida. Não queria mais ter que ler o nomedela em lugar algum. Inclusive, melhor que eu compre uma agenda nova. Para o caso de eurasgar essa daqui durante um surto psicótico.

Acalme-se! Você é terapeuta. Se não for por você, faça em nome da sua paciente. Ou emnome desse tapete felpudo que você comprou com o dinheiro dela.

Com a falta de pacientes, os dias seguintes na minha agenda estão quase vazios. Entre ospoucos eventos está a “festa de aniversário de casamento dos pais do Rafa”, marcada para sexta-feira que vem. Discretamente, risco esse evento da agenda. Não poderei comparecer à festa seAlana estiver lá. Não estou com cabeça pra isso.

Terei que inventar alguma desculpa para a minha ausência. Dor de barriga, dente do sisoarrancado, cólicas... isso, cólicas de novo. Sempre funciona.

– Eu estou tão animada para o casamento!E aí começa a ladainha. É blá atrás de blá, atrás de bolo de um metro de altura, passando

para lista de presentes, entrando em Rafael é fantástico, o que causa uma terrível dor no meupeito. Meu coração afunda enquanto olho para o rosto pelo qual o Rafa se apaixonou.

– E você sabe como eu sou, eu a-do-ro dar festas. Mas detesto planejar, é tão chato – ela dizsem pausas para respirar, continuando a encher meus ouvidos com informações destrutivas àminha saúde mental, e eu inspiro e expiro pelo que parece uma eternidade. – Então, minhaassistente começou a procurar pelos melhores lugares para fazer a celebração. E tem um lugarem particular, onde uma amiga se casou, que é es-pe-ta-cu-lar! Você não está entendendo. Euprecisava que o meu casamento fosse lá!

– Mesmo?– Muito mais elegante, obviamente – ela acrescenta, depressa.Minha paciente sorri como se estivesse tudo bem no mundo. E no mundo dela as coisas

devem mesmo estar perfeitas! Ela veste uma blusa vermelha, com decote em v e os cabelosjogados para o lado. Ela nem imagina o que se passa na minha cabeça, não é? Será que o meucomportamento com ela mudou ou é apenas a minha forma de pensar que não é mais a mesma?

O que antes não me incomodava, suas falhas, sua falta de empatia, agora quase me levam àloucura. Depois que entramos no nível pessoal, não consigo aturar sua superficialidade, e ficotriste comigo mesma. Porque encaro isso como uma derrota profissional. Eu deveria saberseparar as coisas, não deveria? Eu deveria colocar minha paciente em primeiro lugar.

E é isso o que vou fazer. Eu consigo. Eu preciso conseguir! A partir de agora, vou precisarser duas Melissas.

Porque é um pouco injusto enxergá-la dessa forma, não é? Sem ela ao menos saber o que sepassa na minha cabeça.

Mas por que ela tinha que ter um cabelo tão sedoso na cabeça dela?– Só que lá é sempre muito requisitado e existe uma lista de espera enooorme. A data que

eu queria era para daqui seis meses...Seis meses? Eles pensam em se casar em seis meses? Seis longos meses de conversas

intermináveis com ela? Oh, meu Deus. Faça com que isso não seja verdade!Não sei se torço para que aconteça mais cedo ou mais tarde.– Mas então eles disseram que só poderiam fazer reservas para daqui a um ano e meio.Um ano e meio??? Não, Senhor, eu retiro o que eu disse. Eu prefiro os seis meses.– Puxa, que pena – é tudo o que murmuro.Não consigo imaginar um mundo onde eu sobreviva a um ano e meio com Alana

tagarelando na minha orelha sobre o casamento.Eu me encontro dividida entre dois sentimentos em particular: o primeiro (muito nobre eu

diria) é a felicidade por minha paciente ter encontrado a metade de sua laranja. O segundo (bemmenos nobre e em maior quantidade) trata-se de mim, destruindo essa laranja e me dirigindo aoutro hortifruti.

Como psicóloga, eu preciso ser nobre. Mas para ser sincera, eu detesto frutas no momento.– Mas você sabe que eu sempre consigo o que eu quero, certo? – ela abre um sorriso e junta

as duas mãos. – Eu insisti tanto que eles me informaram que houve um cancelamento de últimahora e que a data do dia 25 de agosto estava disponível!

Ela bate palminhas, e por pouco não esbarra de novo no porta-lápis.– 25 de agosto? – pergunto, parando de pensar em laranjas, maçãs ou em qualquer outra

porcaria de fruta que estava na minha cabeça.– 25 de agosto!– 25 de agosto, 25 de agosto? – pergunto. – Desse ano?– Não é incrível? – ela coloca uma mão em cada bochecha, feliz com sua destreza em

persuadir os pobres funcionários do salão de festas. Eu coloco as mãos no rosto também, em totaldescrença.

– E você reservou essa data... – digo, mais como uma afirmação do que como umapergunta. Meu coração palpita forte, pois já imagino a resposta.

– Reservei! – ela grita, e sua voz ecoa através da minha pequena sala. – Não é muitoincrível?

– Mui...tíssimo – respondo, ainda com as mãos no rosto.Não posso deixá-la fazer isso.– Já contratei a organizadora de casamentos e ela vai...– Mas... – interrompo, estendendo a palma para ela. – Alana, isso é daqui a menos de dois

meses! – grito antes que eu perceba, praticamente peidando pela boca.

Alana parece assustada, mas logo começa a gargalhar como se fôssemos grandes amigas deinfância. Uma amiga mais atordoada que a outra, mas ainda assim, amigas.

– Eu sei! Eu sei, querida. Mas isso não importa! Minha organizadora é fantástica, ela é umablogueira famosíssima também.

E blá-blá-blá.Não dá para acreditar. Vai acontecer mais rápido do que eu pensava? Para falar a verdade,

eu continuo não achando que essa história toda de casamento vá para frente. Estou certa de que onoivado da minha paciente impulsiva acabará do mesmo modo como começou: rápido! Ocasamento será cancelado, sobrando apenas uma boa história para contar aos meus filhos.

Mas ela marcou uma data! E se acontecer de verdade? O que é que eu vou contar pros meusfilhos?

– Peraí, você não acha muito repentino? Quero dizer, vocês se conhecem há apenas trêsmeses!

E nem preciso me ater ao fato de que o noivo é o Rafa. Independentemente de quem fosse onoivo, Alana deveria esperar. Onde ela pensa que está? Numa capela em Las Vegas?

– Eu sei que é, mas se você sentisse o que eu sinto por ele...Eu sinto. EU SINTO!– ... Não ia querer esperar nem mais um minuto.Ah, por favor! Eu esperei dez anos pelo cara e ela não consegue esperar mais alguns meses?

Faça-me o favor.E quem é que consegue preparar um casamento em tão pouco tempo?– Alana, mas quem é que consegue preparar um casamento em tão pouco tempo? – é

exatamente o que pergunto.– Não escutou? – ela estala os dedos no ar para que eu preste atenção. – Minha

organizadora! Ela é blogueira, sabe?E o que é que isso tem a ver com alguma coisa?– Mas e quanto ao seu vestido? – faço mais uma tentativa. Preciso colocar algum juízo na

cabeça dela. Isso tudo está acontecendo rápido demais! – Sei que você quer que ele seja perfeito.E você não pode ter encontrado um vestido sem a sua pasta mágica...

Desde o fatídico dia do restaurante, abortei a missão de entregar à Alana a enorme pasta dereferências de vestidos de noiva. Ela não podia saber o que eu tinha visto, e eu não podia encará-los. Então, inventei que fiquei doente de repente, gripe da galinha ou sei lá o quê, e que tive queir para casa. E não, eu não queimei a bendita pasta.

– Você não veio buscá-la esse tempo todo – abaixo-me para alcançar a pasta na últimagaveta da mesa.

– Ah, pode jogar essa pasta velha no lixo. Eu não vim buscá-la porque já encontrei.Levanto a cabeça de supetão e bato na quina da mesa.– Encontrou o quê? – pergunto, passando a mão na cabeça dolorida.– O vestido perfeito.Caramba, Santo Antônio!– Encontrou? – meus ombros caem de tanta decepção com o mundo.

– Uma amiga da família é estilista e desenhou um vestido deslumbrante. Aliás, ela éblogueira também. Não é incrível?

– In...crível.Todo mundo virou blogueiro nessa cidade?– Já conversei com Iolanda e ela concordou em fazê-lo para mim. Por uma pequena fortuna,

é claro.– Ah, Iolanda. Tinha me esquecido de Iolanda – digo, enquanto ela esfrega sua costureira da

alta sociedade na minha cara.– Sim, ela está ótima, está realmente ótima. Sabia que o ateliê dela saiu na revista onde

trabalho como um dos cinco melhores de São Paulo?Ah, Alana, por favor, continue. Fale mais sobre a sua vida perfeita, eu imploro.– Que máximo! – digo, os dentes cerrados.Tento abrir um sorriso, mas parece que minha mandíbula emperrou.Infelizmente para o meu coração, tenho que ser uma boa psicóloga e ajudá-la da melhor

maneira possível. Preciso deixar de lado a história toda com o Rafa e fingir que o noivo équalquer outra pessoa. Isso! Como o Leo, por exemplo.

Esquece! O Leo? Isso seria impossível. Mais impossível que toda essa situação. Finjo que onoivo é literalmente qualquer outro cara.

– Me diga uma coisa. Como está se sentindo em relação a tudo isso? Está satisfeita com o...humm... seu noivo?

– Você está falando como minha psicóloga agora, não é?Ela dá uma gargalhada, jogando o cabelo loiro para trás. O que ela pensa que estávamos

fazendo até agora? Trocando figurinhas?– Ora... sim! – respondo da maneira mais profissional e menos psicopata que consigo.– Acho que tudo está se movendo rápido demais.Somos duas.Minha paciente indica abertura. É nessas horas que conseguimos alguns progressos no

atendimento, com o paciente disposto a se abrir.– Só tenho medo de não dar certo de novo, sabe?De enjoar dele, ela quer dizer.– Você acha que é possível? – digo.Ela apoia a cabeça nas mãos. Sua expressão assume um tom sombrio.– Você acha que seu comportamento teve alguma melhora nos últimos tempos? – pergunto.

– Mesmo que tenha sido pequena?– Sei lá. Minha visão começou a mudar depois de me consultar com você, mas...Meu coração se enche de orgulho pelo feedback profissional. Até eu me lembrar de que a

paciente é Alana e o orgulho escorre pelas minhas mãos, rumo ao ralo.– Mas você sente que isso pode acontecer de novo?– Não vai acontecer de novo – ela diz, fechando-se para mim, voltando a adotar uma

expressão empolgada.Ignorando minha vida pessoal, é com grande pesar que digo:

– Se sentir dificuldade com essa questão, não jogue tudo pro alto, tá legal? Conversecomigo primeiro. E vou te ajudar a passar por isso. Lembre-se do que sempre te digo: você é adona do seu destino.

Engulo a saliva. Foi como se eu mesma tivesse dado uma facada no meu próprio coração. Jáque ela é minha paciente, antes no meu do que no dela... eu acho.

A ironia da coisa toda é que, se ela teve uma melhora, foi graças a minha ajuda.Consequentemente, eu sou culpada pela minha própria infelicidade.

Não é que eu levo a sério esse negócio de ser a dona do meu próprio destino?– Obrigada, querida – ela toca sua mão gelada na minha, revelando unhas vermelhas. –

Acredito que exista uma pessoa certa para cada um de nós. Ele me fará passar por isso semproblema algum.

O problema é que nós duas acreditamos nisso com o mesmo cara.– Mesmo porque não é todo dia que um cara te pede em casamento em uma bandeja de

prata, não é mesmo?– Desculpe, o que disse? – pergunto sem piscar, um comichão instalando-se atrás da minha

orelha.– Sim. Eu contei como ele me propôs.– Não, não... – tento parecer calma. – Não. Você não disse nada sobre uma bandeja de prata.Meu rosto deve ser uma confusão de incredulidade e choque, porque ela imediatamente

começa a me explicar.– Eu lhe contei! – Alana agita as mãos. – Estávamos no restaurante, com aquela vista

maravilhosa da cidade... bem, não é o melhor restaurante da cidade, isso eu posso te dizer. Acarne estava um pouco dura e...

– Mas, humm... sobre o pedido? – Inclino-me para frente, com pavor da resposta. – Você iadizendo?

– Ah, sim. Bom, estávamos jantando e então um garçom apareceu ao meu lado segurandouma pequena bandeja prateada, decorada com pequenas pedrinhas brilhantes – que eu posso tedizer com toda a certeza: não eram diamantes nem aqui nem na China! Não deviam nem aomenos ser zircônia. Mas enfim...

Escoro-me na cadeira. O sangue do meu corpo desce lentamente em direção ao chão. Euconheço essa história, meu Deus, eu conheço essa história!

Me diga que ele não fez isso!– Aí o garçom abaixou a bandeja bem perto do meu cabelo, e eu já estava quase ordenando

que ele se retirasse, pois não me agrada que um garçom invada meu espaço pessoal.O falatório de Alana nunca foi um problema tão grande pra mim quanto agora.– E foi aí que eu a vi: uma pequena caixinha preta de veludo – ela fecha os olhos ao contar.

Mas então os abre velozmente como um lince. – Eu devia ter percebido: caixa pequena, anelpequeno, não é mesmo? Mas, de qualquer modo, meu coração quase parou naquele momento,querida.

Igualzinho ao meu agora.– E então Rafael pegou a caixinha de veludo e se ajoelhou? – pergunto.

– Sim. Exatamente isso. Eu te contei essa parte? Estranho, porque normalmente não contoessa parte a ninguém. Acho muito brega quando um homem se ajoelha.

– Er... contou sim – disfarço e torço para que ela acredite.Mas ela imediatamente perde o interesse na coincidência, mais interessada em continuar

falando.– Bom, de qualquer maneira, o anel é ok, mas já te disse que o achei incrivelmente pequeno.Olho sutilmente ao redor, à procura de câmeras escondidas. Será que é uma pegadinha?Alana estende a mão magrela a dois centímetros do meu rosto, mostrando o anel pela

quadragésima quarta vez. O anel que ela não gostou. Do pedido que ela não gostou. Que eu, porminha vez, teria amado.

Isso porque o idiota do Rafael roubou o meu pedido de casamento!O negócio é que eu considero a forma como Alana foi proposta a mais linda de todas.

Porque quem a criou fui eu!Um dia estávamos passando em frente a uma loja de antiguidades, Pati, Rafa, Leo e eu. Na

vitrine, uma linda aliança dourada cintilava entre os outros itens expostos, cheia de arabescos emprata e com um rubi no centro do anel. Era espetacular! Colei a cara no vidro e fiquei admirandoa peça. Eu gostei tanto que até voltei lá no dia seguinte para comprá-la, mas ela já tinha sidovendida, mas a questão não é essa. A questão é que, de brincadeira, compartilhei com eles comoeu desejava ser pedida em casamento. Assim, eles poderiam me fazer o favor de compartilhar ainformação com o meu futuro noivo, para que ele soubesse que sempre sonhei em ser pedida emcasamento em uma bandeja de prata, com uma caixinha de veludo, num restaurante elegante ecom o noivo ajoelhado.

Entretanto, eu claramente não devia ter feito isso, porque o “sem imaginação” do Rafaelreproduziu a ideia com outra pessoa!

Será que posso processá-lo por direitos autorais?Quantas coisas mais ele vai tirar de mim para entregar à Alana?– Que incrível – consigo murmurar. – Fantástico. Simplesmente fan-tás-ti-co.– Achou mesmo? Eu gostei, mas não amei, entende? – ela está tão perdida no monólogo que

nem percebe meu sarcasmo.Como será que é ser assim tão egocêntrica?Ela se inclina para frente, com ar de confissão.– Bom, posso te contar isso, não posso? Ele nunca vai descobrir de qualquer maneira.Droga de sigilo entre paciente e terapeuta!– Não gostei do pedido. Definitivamente não foi o pedido de casamento dos meus sonhos.É claro que não foi! Porque foi o dos meus.

– O que aconteceu? Anda, desembucha. – pergunta Pati, sem rodeios.– Eles vão se casar em menos de dois meses.– Quem?– Quem? Dom Casmurro e Capitu! – digo, irônica.Ela fica sem entender.

– Alana e Rafael, pelo amor de Deus! – jogo as mãos pro alto.– Não-a-cre-di-to! – é a reação de Pati quando termino de contar a história toda.Eu sabia que ela entenderia melhor do que ninguém.Sentados nas poltronas confortáveis da cafeteria que exala um aroma de café fresquinho,

Leo e Pati são obrigados a aceitar seu inevitável destino de escutar meu desabafo.Pati se inclina para frente. Sua curiosidade é tão palpável que quase chega a ser um quarto

integrante do grupo, por assim dizer. Ela me interrompe de vez em quando com expressões como“filho da puta sem coração” e “vadia desgraçada”.

– Mas isso não é tudo – digo e coloco uma mecha do cabelo atrás da orelha. – Rafapraticamente me disse que somos almas gêmeas.

Leo levanta os olhos de seu café.– O quê? – Pati fica realmente muito surpresa, coloca a mão na boca e tudo.Esperei um tempo até verbalizar o ocorrido, e agora que o fiz, adoro o reconhecimento.Pati dá um tapinha no ombro do Leo, dizendo um “Ai, meu Deus, você ouviu isso?”.– Não, peraí! Ele disse que vocês são almas gêmeas? – Leo começa a investigar.– Praticamente – digo.Bato minha mão na palma estendida de Pati, que grita um “vai, garota!”.– O que quer dizer com “praticamente”? – ele insiste.– Tecnicalidades, tecnicalidades – jogo o cabelo para trás e Pati faz uma dancinha

desengonçada.– Explique-se – Leo finalmente consegue cortar o nosso barato e Pati faz cara de tédio para

ele.– Nossa, mas que sem graça, hein? – ela dá outro tapa no braço dele.– Tá legal – apoio a xícara de café na mesinha de mogno a nossa frente. – Tecnicamente ele

disse que “deveríamos ter sido almas gêmeas em outras vidas”.– Você entende a diferença do que ele disse para o que você interpretou, certo? – Leo diz.– Mesmo assim eu acho válido – diz Pati. – Ele pode estar falando nas entrelinhas.–A única coisa que ele está falando, EM LETRAS GARRAFAIS, é que vai se casar – ele

insiste em ser chato.É óbvio que ele conseguiu acabar com a nossa graça.– É, pode ser – me afundo na poltrona e tomo um gole do meu café, que agora já está

morno.Porém, não consigo me conformar.Depois de um silêncio que parece durar horas e muita cafeína ingerida, um lampejo de

coragem passa pelo meu corpo. Uma ideia que não consegue mais se calar. Talvez seja a cafeínafalando.

Não posso mais ignorar minha vida amorosa. Não posso desistir de novo!Sem querer, percebo que acabei fazendo uma bela introdução para o que digo em seguida.– Mas e se tudo isso tiver sido um sinal? – pergunto, e devagar levanto os olhos.O interesse de Pati foi novamente aguçado, o que me incentiva um bocado. É como se ela já

soubesse o que eu vou dizer. Leo, que foi até o balcão ao nosso lado retirar um novo copo de

café, inclina-se para nós e me olha desconfiado.– Sim? – incentiva Pati.– Ele a pede em casamento do jeito que eu gostaria de ser pedida, diz que deveríamos ter

sido almas gêmeas...– Em outras vidas, Melissa! – grita Leonardo do balcão, mas eu o ignoro.– ... Porque talvez eu devesse estar no lugar dela! Pati tinha razão... Eu vou testar o

relacionamento dos dois.– Não. Não. Péssima ideia – Leo vem correndo, derrubando café pelas laterais da xícara a

cada passada. – Péssima ideia. Eu não consigo ser mais claro do que isso.– Não, Leo. É uma ótima ideia – pego o copo de café da mão dele e bebo de uma vez, como

se fosse pinga, enquanto Pati volta a dançar na cadeira. – É a melhor ideia que eu já tive na vida!

Assisto a “O casamento do meu melhor amigo” acreditando que o enredo me incentivaria acolocar o meu plano em ação. Porém, fico bastante desmotivada ao descobrir que Julia Robertstermina o filme solteira e dançando com seu melhor amigo gay.

Em vez de interpretar a obra cinematográfica citada acima como um sinal dos céus, ignoro epego meu bloco de notas tamanho gigante (para anotações superimportantes).

Anoto “plano” no centro da folha e rabisco com dois traços firmes embaixo da palavra.Acontece que acabo pegando no sono e só acordo na manhã seguinte com o despertador

gritando na minha orelha. Mas não tem problema.Na noite seguinte, peço uma pizza para me ajudar a pensar melhor e abro o bloquinho na

página do “plano” novamente. Estou animada, como não me sentia há dias. É como se um jato deenergia pulsasse novamente pelo meu corpo. Acho que isso se chama esperança.

A ideia é transformar tudo o que aprendi na minha especialização em RelacionamentoConjugal em um “teste para casais”. É o plano perfeito! Vou criar uma ferramenta imparcial decunho investigativo que me ajude a entender se o relacionamento de um paciente tem as basescertas para existir.

No caso de Rafael e Alana, se o resultado do teste for positivo para eles, terei motivospalpáveis para me ajudar a seguir em frente. Porém, se o teste mostrar que eles não sãocompatíveis, serei honesta e revelarei a ele o que sinto de uma vez por todas, torcendo para queele enxergue o mesmo que eu já enxergo há anos.

– E por que não? É um plano bem inteligente – digo para o Leo ao telefone, depois de tercolocado tudo no papel.

– Porque é um plano bem babaca – diz ele, seco.E ele ainda por cima bufa pelo telefone, o mal-educado!– Qual é, Melissa? Quem é que faz isso?– Deixa de ser tão estraga-prazeres, Leonardo! – grito. – Será que você não pode

simplesmente dizer que sim? Que me apoia?– Não, eu não posso dizer que sim. Não vou te apoiar em uma coisa idiota dessas. Eu tenho

mais o que fazer.Fico calada quando a voz grossa dele cessa na linha.

– Ficou muda? – ele pergunta depois de um tempo.– Não. Deixa pra lá.– Ficou chateada?– É claro que fiquei. Você me chamou de idiota. Seu idiota!– Eu não te chamei de idiota. Eu chamei o seu plano de idiota. E ele é bem idiota mesmo.O chiado da ligação é a única coisa que soa no ar.– Não vai mais falar comigo?– Não, acho que não tenho mais nada para falar com você – rebato.Apoio a cabeça no braço do sofá, sem dar um pio.– Ah, que se dane. Eu te apoio – ele diz. – Eu sempre apoio, não é?– Obrigada – os músculos do meu corpo relaxam.– Você vai se arrepender.– Para com isso!– Eu só não quero te ver magoada.O comentário dele me incomoda. Porém ignoro, tamanha a minha felicidade.– Mas você tem que me prometer uma coisa – ele diz. – Que se isso não der certo, você vai

deixar pra lá.– Sim, vou deixar pra lá.– Imediatamente?– Sim, imediatamente.Mas vai dar certo. Algo que me diz que vai. Algo me diz que é isso o que preciso fazer para

que a minha vida volte aos eixos.Ora, faça-me o favor! Esse casamento é uma loucura. Eles se conheceram praticamente

ontem. Estão prestes a cometer o maior erro da vida deles, e vou estar cometendo o pior erro daminha se eu não fizer nada a respeito.

– E se ela descobrir quem você é? – ele me pergunta.Pelos relatos de Alana, sei que a organizadora do casamento é quem está cuidando da lista

de convidados. Acho difícil de minha paciente descobrir que estou na lista como convidada donoivo já que, nas palavras dela, ela “a-do-ra dar festas, mas detesta planejar”.

– É improvável. Ela está muito mais interessada no próprio vestido de noiva para sepreocupar com isso. Seu egocentrismo se intensificou nas últimas semanas. Além disso, nãoestou em nenhuma rede social, e Rafa também não está. Não há como ela nos relacionarvirtualmente.

– Porque vocês são antissociais – diz Leo.– Ora, eu só não me interesso muito por esses trecos.– Com “trecos” você quer dizer tecnologia?– Usar o celular já está de bom tamanho.– Talvez você devesse considerar ser mais tecnológica. Assim você pode hackear a vida dos

dois pra completar o seu plano maligno.– Ha ha! Muito engraçado.

Não é como se eu estivesse invadindo a privacidade do Rafa, nem nada. Só estou checandose ele está mesmo no caminho certo. Na verdade, considero isso um serviço de utilidade pública.Eu deveria cobrar dele.

– Eu amo esse plano, obviamente, porque eu mesma te dei a ideia – diz Pati, quando ligopara ela em seguida. – Mas você sabe que existe outra possibilidade, não sabe?

– Como assim? Qual? Você tem um novo plano em mente?– Sim. Chama-se “Contar a Verdade”.– E como funciona? – pergunto, ingênua.Ela dá risada do outro lado da linha.– Você conta a porcaria da verdade! Deus!Eu reviro os olhos.– Tenho dito isso todos esses anos. Por que não conta a ele o que sente de uma vez? Você

sempre foi a mais prática de nós duas.– Não posso. Acredite em mim, isso é o mais prática que posso ser – suspiro. – Por mais

que eu não acredite no casamento, Alana continua sendo minha paciente. Vendo a situação delaisoladamente, não posso machucá-la à toa, entende? Não posso fazer turbulência norelacionamento dela se não existir um motivo claro para isso. Tenho que colocá-la em primeirolugar.

– Ok, entendo – diz Pati. – Mas se eu fosse você, falaria mesmo assim. Não sei por quevocê precisa ser assim tão... tão... correta. – Ela diz como se eu tivesse uma doença.

Apesar de Alana ser toda rica e maravilhosa, no fundo do meu coração eu sei que eu sou amulher para o Rafa. Nós prezamos relacionamentos sérios e acreditamos na importância docasamento (ele que o diga!). Somos perfeitos um para o outro, eu sei disso. Mas ele não sabe.Dói pensar que ele pode estar deitado com Alana nesse exato instante, assistindo filmes com elano sofá. Ou fazendo coisa pior no sofá. Argh!

Ele precisava saber que existia a possibilidade de ficar comigo. Todas as oportunidadesperdidas que tive de dizer a ele o que eu sentia me tornam uma mosca morta. E agora eu nem seise terei a chance de dizer alguma coisa, no final das contas. Se eu ao menos tivesse ouvido a Pati,talvez não estivesse nessa situação. Se eu pensasse menos e sentisse mais, eu poderia ter feito oRafa sentir coisas por mim de volta. Mas não fiz. E agora preciso dar um jeito de consertar issoantes que seja tarde demais.

– Eu só preciso tentar. Estou cansada de desistir! Não posso passar o resto da minha vidaimaginando o que teria acontecido se eu tivesse tentado.

– Então, qual é o seu plano? – pergunta a curiosidade de Pati.Leo disse que se ele tivesse uma madrinha de casamento igual a mim, estaria totalmente

ferrado. Mas aí percebeu que isso não era verdade, pois eu o estaria ajudando a se livrar dosuposto casamento, o que seria ótimo para ele.

Mandei ele ir catar coquinho! Não é como se eu fosse uma péssima madrinha de casamentonem nada. Eu sempre quis ser madrinha, e pensei que quando tivesse a oportunidade, eu seria amelhor delas. Assim, para não me sentir a pior do mundo, a pedido do Rafa enviei as minhas

medidas para que a costureira de Alana preparasse o meu vestido. Ao que parece, Alana édaquele tipo de noiva que não só escolhe a cor dos vestidos, mas também o modelo deles.

Eu não tinha ideia das minhas medidas. Fazia tempo que não me pesava, para evitarsurpresa e descontentamento. Imagina então há quanto tempo não me media? Aliás, acho que eununca tinha me medido antes.

Depois disso, me senti um pouco melhor. Fora que não estou executando o plano por mim,mas por nós três. Preciso esclarecer essa situação. Ninguém quer estar casado com a pessoaerrada.

– Não acredito que você vai fazer isso tudo por um cara – diz Leo, quando nos encontramosna quarta-feira para almoçar comida asiática no bairro da Liberdade, o coração da culturajaponesa em São Paulo. As paredes vermelhas do restaurante e a luz do sol entrando pelasamplas janelas abertas dão ao dia um tom animado.

– Não é só um cara. É o Rafa. Ele é seu amigo também.– E eu não acredito em você, Leonardo – diz Pati. – Você tem essa pose de insensível, mas

acho que mais cedo ou mais tarde...Provavelmente mais tarde...– ... você vai encontrar uma mulher que te deixe de joelhos.– Ah, com certeza eu vou ficar de joelhos pra ela, se é que você me entende – ele aproveita

a deixa e eu tenho que admitir que a culpa é todinha de Pati por dizer uma frase tão ambígua auma criatura como ele.

– É sério! Você vai ficar de joelhos e não vai deixá-la escapar e ser levada por outro cara –diz ela. – Eu acredito em carma. E acho que o universo ainda vai te mandar alguém muito difícilde ser conquistada. Só pra calar essa sua boca, ô garoto!

Dou risada.– Você acha que o universo vai querer se vingar de mim? – ele pergunta.– Sim, eu acho – Pati responde.– Sim, eu espero – eu digo.– Não é culpa minha se está difícil de encontrar uma única mulher que seja tudo isso.

Talvez seja culpa do próprio universo.– Ei! – Pati diz, ofendida. – Nós duas somos tudo isso! Você teria sorte de sair com uma de

nós.Ele quase engasga.– Meu Deus, credo! Vocês são... sei lá – ele desvia os olhos de nós. – Como irmãs pra mim.– Você acabou de chamar a gente de feia – digo, dando a última garfada em meu yakisoba.Essa frase é mesmo bem ridícula. Declarar “você é como uma irmã para mim” deveria ser

crime. Difamação! Eu deveria poder processá-lo por isso. Essa é a desculpa mais cretina que ahumanidade já inventou para dispensar alguém.

– Eu não chamei vocês duas de feia... – ele diz, olhando para mim. O sorriso irônico noslábios dele instintivamente me faz dar risada, apesar do insulto.

– Ha ha! Muito engraçado – digo.

Leo e Pati continuam por mais uns cinco minutos brigando como gato e rato. E Patirealmente parece um ratinho, se pensarmos bem, o que só comprova a veracidade da minhaanalogia. Apesar de que isso torna Leo o “gato”, fato esse que me deixa desconfortável emprosseguir com a analogia em questão, pois já existem mulheres o suficiente no mundo que oacham bonito. E ele definitivamente não precisa de mais uma.

– Só não consigo enxergar vocês desse jeito.No fundo do restaurante, num lugar onde se lê “delivery”, reconheço uma figura masculina

conversando com a atendente. E dessa vez estou com os meus óculos.– Pati. Vou te dizer uma coisa, mas você não vai gostar de ouvir.Ela vira o rosto para mim, um fio de yakisoba sendo sugado para dentro de sua boca.– E o que é? – ela fala entre mastigadas.– Augusto está aqui no restaurante – faço com a cabeça na direção dele.– Onde? – ela se vira para localizá-lo e então volta os olhos assustados novamente para nós.

– Não quero que ele me veja.Pati coloca a cabeça debaixo da mesa, fingindo amarrar o seu coturno.– Pelo amor de Deus, Patrícia! Está tão traumatizada que precisa se esconder? Posso te

atender no consultório, por um precinho camarada.Será que ficou muito óbvio que estou falida?– Só não quero que ele me veja, tá legal? É a última coisa de que preciso.Respeito a decisão da minha amiga e ficamos em silêncio. Augusto vai embora e ela volta à

superfície, descabelada.– É isso que chamo de não querer ver alguém nem pintado de ouro.Leo se mostra mais interessado nas mensagens de texto que recebe o tempo todo. Com

certeza são mensagens das garotas fúteis com quem ele sai, o que faz com que eu me sinta vazia,como um lembrete de que não tenho absolutamente ninguém com quem conversar.

Por que só eu não consigo arranjar alguém?Abro meu biscoitinho da sorte e leio “O amor estará onde o coração menos esperar”.

Droga de biscoitinho da sorte! Será que alguém acredita nessas porcarias? Digamos que o meucoração não seja o órgão para o qual eu dê mais atenção, biscoitinho. Ele não tem merecido, seé o que você quer saber.

Pati também tem sempre algum cara com quem está trocando mensagens e deixandoescapar risadinhas pelo canto da boca. A única coisa que eu deixo escapar pelo canto da boca écomida.

De qualquer forma, não preciso de pessoas novas. Principalmente quando tenho o partidoperfeito à vista. Rafa já está na minha vida há tanto tempo que seria impossível deixar qualqueroutro homem preencher o papel que ele desempenha.

O que mais me dói é saber que no meu pior momento, quando estou mais triste e perdida,meu partido perfeito não está aqui para me ajudar a passar por isso.

Isso porque ele está ajudando nos preparativos do próprio casamento.

Toda quinta-feira, meus pais e eu nos reunimos para um jantar em família. O condomíniodeles, o Flor-de-Lis, é o lugar onde cresci, conheci Pati e passei alguns dos melhores anos daminha vida. O condomínio é formado por um prédio único, branco e imponente, com portões deferro pintados de dourado, cercado por árvores que tornam o lugar uma fortaleza aconchegante.

O Flor-de-Lis tem vinte andares e é bem mais sofisticado e caro do que o meu, que ésimples em tudo, desde os portões pintados de preto até o hall vazio e sem sofás ou almofadascoloridas. Mas isso não diminui em nada a minha felicidade em relação ao meu prédio. Não hánada melhor do que ter meu próprio cantinho.

Essa semana foi muito difícil.Desço a pé até a rua dos meus pais. Ainda bem que vou jantar com eles. Chego ao enorme

portão do condomínio, com duas sacolas de compras do supermercado mais próximo daqui (quecobra uma fortuna pelos tomates, eu devo acrescentar) e as mãos congelando. E lá se foram R$35,90 apenas em uma salada higienizada, alguns tomates, dois molhos de macarrão e um suco decaixinha.

Por sorte, o porteiro me libera prontamente, sem telefonar para o apartamento. Certamentepensando que eu ainda moro aqui, já que visito meus pais com frequência e me mudei daqui hápoucos meses.

Mas logo que vejo quem é o porteiro escalado da noite, entendo que na verdade eu tive foiazar.

– Olá, Mel, minha linda! – ele diz, quando fecho o portão de entrada.Carlos vem em minha direção intencionado a me dar um abraço, como se fôssemos velhos

amigos. Dou um passo para trás, como se houvesse jeito de escapar dele. Não há.– Ah. Oi, Carlos – digo, pouco à vontade com essa intimidade toda.Faço questão de parecer mal-humorada para que ele entenda que não correspondo às

cantadas que me passa toda vez que venho aqui.– Visitando os papais?Carlos, o porteiro, deve ter uns quarenta e poucos anos. É baixinho, gordinho e atrevido.

Está começando a formar uma careca, ficando parecido com um dos meus tios. Ou com o senhorPeebles, do Maguila, o Gorila.

– Isso mesmo – digo, indicando as sacolas de compras. – Noite de jantar, então precisomesmo ir...

– Deixe que eu te ajudo – ele se inclina para pegar as sacolas de compras, mas eu as tiro doalcance de suas mãozinhas pequenas.

Observo os únicos fios de cabelo que ele tem na cabeça tentando, em vão, cobrir a careca.– Tudo bem, não está pesado.Não me entenda mal, eu não pretendia ser chata nem maldosa com o cara. Mas sobre que

cargas d’água eu conversaria com Carlos durante o trajeto até o apartamento, enquanto eleestivesse levando minhas compras? Sobre o tempo? Sobre a política do país? Sobre qualshampoo deixa nossos cabelos mais sedosos? Não tenho assunto com ele e nem estou a fim deconversar sobre qual shampoo ele não usa na careca dele.

Tá legal, agora eu fui maldosa.Mas, como sempre, ele se recusa a aceitar minha recusa.– Eu faço questão – ele sorri, a barrigona sobrepondo-se ao cinto, e estende as mãos.Ah, caramba. Já me imagino no elevador com ele, para mais uma rodada de “Está um tempo

feio hoje, não acha?” ou “Mentira que você não usa condicionador?”.Terei que apelar para seus deveres obrigatórios de porteiro.– Mas quem é que vai ficar na portaria enquanto isso?– Ninguém vai aparecer agora – responde ele, dando de ombros.Droga, Carlos! Mas que insistência!Nesse exato momento, uma mulher de cabelos vermelhos, usando salto alto, com cara de

executiva (o que ela provavelmente é, num prédio chique como esse), surge do lado de fora doportão. Carlos corre até a cabine para liberar sua entrada. A atenção dele foi desviada paraalguém mais atraente, então eu aproveito a deixa e sigo em direção ao hall. Correndo.

Ainda sem fôlego, abro a porta de vidro, que me transporta direto à época da escola. Nãoconsigo contar nos dedos o número de vezes em que fiquei sentada no sofá fofinho do hall com oRafa, estudando para as provas encostados nas almofadas coloridas com estampas indianas, queainda permanecem ali. Porém agora elas parecem um pouco desbotadas.

Eu me aproximo do elevador, que está no último andar. Com a mão na cintura, bato o pé nochão repetidamente.

Décimo nono. Décimo oitavo. Décimo sétimo. Que demora!Quanto mais tempo eu ficar aguardando, maior é a probabilidade de eu querer arrumar

aquele quadro que eu já percebi estar torto na parede, e organizar as almofadas por cor.Por que eu tinha que ter TOC?O visor revela que o elevador está no décimo primeiro andar. Ah, ótimo, o elevador está se

movendo como uma tartaruga eletrônica. Será que dava pra demorar mais que isso?Concentre-se no elevador. Ninguém te pediu para endireitar aquele quadro!Respiro fundo. Olho para as almofadas. Elas não ficariam lindas organizadas por cor?

“Rosa, laranja, amarelo, azul e verde”, organizo-as mentalmente. Estou dobrando os joelhos paracolocar as sacolas pesadas no chão, a fim de correr até o sofazinho e deixar o TOC vencer,quando escuto o estalo do elevador e pego as sacolas novamente, assustada.

Um bando de garotas de uns treze anos, com shorts mais curtos que o dinheiro que eu tenhopara passar o mês, passa por mim e senta-se no sofá, depositando suas bundas minúsculas emcima das almofadas e acabando de vez com a minha chance de arrumá-las.

Entro no elevador vazio. Eu não podia pedir para que as garotas saíssem dali, permitindoassim que eu realizasse o meu desejo compulsivo, não é?

Então estou livre! Agradeço aos céus por ter conseguido prosseguir sem muito estresse. SóDeus sabe o quanto a coisa toda pode ficar estressante.

Enquanto o elevador sobe até o décimo sétimo andar, me pergunto por quanto tempo nãoterei rugas, como aquelas adolescentes. Principalmente rugas de preocupação.

– Hmmm... – viro o rosto de um lado para o outro no espelho para dar uma checada nomaterial. Ainda sem sinal de rugas. Por enquanto estamos bem. – É, nada mal.

– Está bonita. Não se preocupe.– Ai, caramba! – dou um pulo de susto e arregalo os olhos.Quem disse isso? Fico imóvel até perceber que é Carlos quem está falando comigo, lá da

portaria. Ele estava me observando esse tempo todo? Aperto o botão do intercomunicador doelevador e bufo baixinho.

– Ei, Carlos – digo, tentando não explodir com ele. – Dia parado na portaria hoje, hein?– Sim, por sorte sim. Mas hoje cedo? Ah, você nem quer saber de hoje cedo...Não quero mesmo.– A senhora do 32 ficou presa no elevador de serviço, e foi uma tortura pra tirar a coitada de

lá porque... – ele continua falando, e eu continuo ignorando.Eu me abaixo para pegar a sacola de tomates que deixei cair no susto (justo a frágil sacola

de tomates caros?), tomando o maior cuidado de encostar a bunda no canto do elevador para queCarlos não possa desfrutar também dessa visão.

Credo! Será que ele fica me observando toda vez que venho aqui? Aposto que ele estáobservando a ruiva executiva por outra câmera também.

As portas do elevador se abrem. Graças a Deus.– Tchau, Mel – é o que finjo não escutar antes de apertar o botão do vigésimo andar e fazer

a voz de Carlos sumir.Toco a campainha do apartamento 171 e aguardo. Mamãe se importa tanto comigo que

mantém o quadro do hall de entrada perfeitamente alinhado na parede. Lar, doce lar.Mas apesar de bem alinhado, o quadro não é o mesmo que sempre vejo por aqui. Em vez da

pintura impressionista de um barquinho na praia, há em seu lugar uma fotografia de um adorávelcachorrinho branco e minúsculo sentado na grama de um parque.

Toco a campainha novamente. Por que tanta demora? As vozes de papai e mamãe soamabafadas do outro lado. Encosto a orelha na porta.

– Zé, cadê a chave da porta da frente? Estava aqui agora mesmo. Você mudou de lugar? – éo que minha mãe parece dizer.

– Está no mesmo lugar de sempre, Margarete. Não no lugar que você acabou de inventar.– Se você sabe que inventei um lugar novo para as chaves, por que é que você não as deixou

lá?

Desencosto-me da porta e toco a campainha uma última vez para lembrá-los de que,independentemente do novo lugar das chaves, eu continuo aqui.

– Já vai, já vaaaai! – grita minha mãe e olha pelo olho mágico. – Peraí, querida, que seu paiestá ficando gagá.

E papai deve estar com aquela sua expressão desinteressada, propositalmente ignorandomamãe. Uma risada escapa dos meus lábios.

Ela abruptamente abre a porta e um sorriso enorme.– Querida! – ela diz, puxando-me vigorosamente para um abraço, seu perfume cítrico

chegando até mim antes dela. Quando ela finalmente me liberta do abraço de urso, seu enormebrinco hippie se enrosca na minha blusa branca de tecido fino.

– Não-se-mexa! – prendo a respiração, e mamãe se mantém estática enquanto desenvolvominha técnica de resolver situações de risco envolvendo roupas. Consigo nos soltar sem nenhumarranhão em minha blusa e expiro aliviada.

– Precisava de um brinco tão grande? – pergunto enquanto ela pega as sacolas da minhamão.

– Precisava de uma blusa com tanto tecido? – ela pergunta de volta.– Mas é claro que eu preciso, ora.– Então é claro que eu preciso de um brinco tão grande.– Mas seu argumento não faz o menor sentido!No entanto, ela já está lá na cozinha desempacotando as compras, cantarolando uma música

que provavelmente acabou de inventar. Mamãe tem 47 anos, mas não parece ter mais que 40. Oscabelos pretos, compridos e repicados estão presos em um rabo de cavalo no alto da cabeça. Elausa uma bata marrom e calça legging combinando. Dona Margarete finge não se importar comroupas, mas ela não me engana. Aquela bata é de camurça.

Abaixo para dar um beijo em papai, que lê seu jornal na poltrona verde da sala.– Qual é a do visual hippie dela? – pergunto, sentando-me no sofá creme ao seu lado e

trocando o canal da TV de 50 polegadas. Para que alguém precisa assistir ao jornal enquanto estálendo o jornal?

– Telma – diz ele, referindo-se à nossa vizinha de porta.Ele levanta os olhos cor de mel de sua leitura e me olha pela primeira vez.– Como estão as coisas no consultório?Tiro as sapatilhas e aninho meus pés no tapete persa.– Ah, tudo bem por lá.Cinquenta por cento bem, pelo menos. Uma de minhas pacientes, Camille, é um doce.

Alana, uma destruidora de vidas.– O que houve?– Como assim, “o que houve?” – pergunto. – Não houve nada, ora.– Te conheço mais do que sua mãe conhece a cozinha dela – ele pensa por um segundo,

ajeitando no rosto os óculos de grau. – O que foi um exemplo um tanto inútil, porque a sua mãecozinha muito mal.

– Foi exatamente o que eu pensei na hora que o senhor disse isso.

Rimos e ele pega o controle remoto, mudando de volta para o canal do jornal e levantando asobrancelha para mim.

– Seja o que for, filha... – ele dá um tapinha no meu joelho. – Vai passar.Ele tem razão. Vai passar. Principalmente agora que concordei em executar o plano maluco

da Pati. O que eu sempre digo às minhas pacientes mesmo? “Você é a dona do seu destino”, nãoé?

O interfone toca e fico com medo de que seja Carlos, convidando-se para subir e tomar umcafezinho conosco. Depois de pedir ao meu pai a minha mão em casamento.

– É Luli – diz minha mãe ao pegar as chaves no novo lugar das chaves inventado por ela. –Já volto.

Olho para o meu pai sem entender, mas ele só dá de ombros e diz:– Você vai ver.Alguns minutos depois, mamãe volta segurando no colo o cachorro branquinho do quadro

da entrada, com lacinhos vermelhos no alto da cabeça. Imagino que seja Luli.– Surpresa! Diga olá para Mel – mamãe diz naquele tom imbecil de quem fala com crianças

e cachorros.E gatos também, é claro. Não devemos negligenciar os gatos.– Oh, meu Deus! Você comprou um cachorro?Eu a agarro dos braços de mamãe imediatamente e sento-me com ela no sofá.– Olá, Luli. Eu sou a Mel. É uma pena que não possamos nos conhecer melhor, já que você

vai embora em uma semana – faço biquinho e falo naquele tom imbecil também. – É sim, vocêvai. É, sim. Você vaaaaaai.

– Como assim, ela vai embora em uma semana? – pergunta mamãe, com a mão na cintura. –O que quer dizer com isso, Melissa?

Paro de mexer na barriguinha rosa de Luli, uma Lhasa Apso filhote, que me observa curiosacom os olhinhos grandes. Miro papai, mas ele dá de ombros novamente.

– Bem, é o que o senhora faz – digo, sem entender a confusão dela. – Inventa uma novaatividade que pensa querer fazer e desiste uma semana depois.

– Ora, mas que coisa ridícula, Melissa! – ela olha de mim para papai. – Zé, diga a ela quenão sou assim!

– Você quer que eu minta? – diz ele, sem tirar os olhos do jornal.– Antônio! – diz minha mãe, os punhos cerrados ao lado do corpo.O nome do meu pai é José Antônio, mas mamãe só o chama assim quando está brava com

ele.– Você quer que eu minta ou não quer, mulher? É só falar – torna a dizer papai, virando

uma página do jornal. – É sério.Luli olha de um lado para o outro, provavelmente se perguntando se não seria melhor ter

ficado no pet shop.– Eu não invento moda coisa nenhuma! O fato é que eu descubro interesses novos todos os

dias. Mas eu nunca abandono uma tarefa pela metad...

– O piercing na orelha, a aula de dança, as tranças no cabelo – conto nos dedos de uma mãoe troco o canal da televisão com a outra.

– O seu celular de última geração, os livros de Jane Austen, o novo negócio de manicure –diz papai, virando a página e cruzando a perna. – Ainda temos quinze caixas de esmaltes novosno depósito.

– Tenho “Orgulho e Preconceito” na minha prateleira até hoje – digo.Ela parece ultrajada.– E, finalmente, Luli – digo, abraçando o animalzinho indefeso que cheira a perfume de

bebê. Daqui a uma semana a coitadinha estará sem lar.Mamãe é uma pessoa extremamente impulsiva, como ela fez questão de comprovar na

minha palestra da semana passada. Ela me pediu um milhão de desculpas e me mandou uns trintae-mails (esse é o máximo de tecnologia que mamãe consegue compreender).

Então eu a perdoei. Ela é minha mãe, o que mais eu poderia fazer?Além do mais, minha caixa de entrada já estava ficando lotada e eu não descobri uma forma

de bloqueá-la. A mulher sabe como ser insistente.Nós não somos aquele típico caso de “tal mãe, tal filha”. Nasci o extremo oposto dela. Sou

organizada, sigo regras. Penso muito antes de fazer qualquer coisa, pois sei que tudo temconsequência. Mas ela não. E Luli está prestes a descobrir isso também.

– Não sejam ridículos, nada vai acontecer com Luli – ela arranca a bolinha de pelos dosmeus braços e contenho um impulso de impedi-la. – Ela já é da família e vai ficar aqui.

Mamãe sai da sala e vai até a cozinha, prometendo um biscoito à Luli.– Telma? – pergunto a papai.– Telma.Telma é a vizinha de porta dos meus pais há um ano, um pouco antes de eu me mudar

daqui. É bonita, pinta os cabelos grisalhos de ruivo e fez mamãe se tornar uma Maria Vai ComAs Outras de primeira. Ou melhor, uma Maria Vai Com A Telma.

Uma vez mamãe chegou a colocar um piercing na orelha só para imitá-la. Mas, assim comotodas as novidades que Telma traz consigo, o piercing não durou uma semana. E não só porqueinflamou a orelha dela, mas porque ela simplesmente se cansa. “Onde é que eu estava com acabeça quando fiz essa porcaria de piercing? Ideia da idiota da Telma, só podia ser”.

Espero que ela não diga “Onde é que eu estava com a cabeça quando comprei essa porcariade Luli?”. Espero mesmo.

Se não a idiota da Telma vai se ver comigo!Durante o jantar, a cachorrinha pede comida o tempo inteiro. E, ignorando as regras dos

veterinários do mundo inteiro, mamãe presenteia Luli com várias porções de arroz, feliz como serealmente estivesse contribuindo para a saúde dela.

– Não é bom dar comida de gente a ela, mãe.– Como é que você sabe? Já teve um cachorro por acaso, querida? – Ela me pergunta,

irônica, do outro lado da mesa quadrada de vidro preto de quatro lugares.Ela dá um pedaço de tomate à criaturinha pequena.

– Não, nunca. Porque, se eu bem me lembro, a senhora sempre disse odiar cachorros –mastigo um pedaço de tomate, igualzinho à Luli.

– Ora, querida, era só um modo de dizer – ela abana a mão no ar. – E, além do mais, se eusoubesse que você realmente queria um pet, eu com certeza teria comprado um pra você.

– Eu queria! E a senhora sabia.Mamãe ainda vai me deixar louca.– Não seja boba, querida – diz ela, sem se abalar.Será que mamãe é sociopata? Ou apenas uma grande mentirosa?Será que ela percebe que está mentindo?– Como é o cachorro de Telma? – pergunto, enfiando outra rodela de tomate na boca,

adiando provar os pratos duvidosos preparados pela minha mamãe. O arroz, empapado. Consigover daqui.

– Como você sabe que Telma comprou um cachorro? – ela parece encantada com a minha“adivinhação”, e logo prossegue. – Exatamente como Luli. Branquinho e tudo. Não é o máximo?Agora nós duas podemos passear com nossos cachorros pela manhã e levá-los ao pet shop!

Olho para papai. Papai olha para mim. Continuamos comendo. Por que eu me dei aotrabalho de perguntar?

– Mamãe... mãe! – digo, quando ela derruba um pedaço de macarrão de propósito do pratodela até o chão. – Por favor, pare de alimentar a cachorrinha com comida de gente!

Luli será devolvida e possivelmente irá para o lar de uma família feliz, então qual é o pontode acabar com sua saúde em uma semana só?

– Por quê? Virou veterinária? – ela pergunta.Agora que foi pega no flagra, ela dá um pedaço de macarrão ao animal na cara dura,

desafiando-me. Luli mastiga o alimento em meio segundo, pedindo por mais. Papai dá umagargalhada.

No final das contas eu me rendo, pois estou sozinha nessa luta. Papai adora o jeito louco damamãe.

Assim como Luli, que pula de alegria.– Alimente-a apenas com ração – tento uma última vez.Ela não vai parar, então sou obrigada a apelar.– Aposto que você não consegue aguentar, digamos, por uma semana? Não, não acho que

consiga. Você não aguentaria, porque só donos fortes de cachorro conseguem fazer isso – digo econtinuo comendo.

Papai esboça um sorriso sutil.Se eu puder fazer com que ela pare de alimentá-la desse jeito, semana que vem Luli estará

salva na casa de sua nova família. E se tem uma coisa que mamãe não consegue recusar, é umdesafio.

– Uma semana alimentando Luli com ração? E o que eu ganho com isso?Suspiro lentamente e reviro os olhos quando o olhar de mamãe pousa sobre minha blusa.– Está certo: a droga da blusa.

Sei que ela gostou da peça no minuto em que enroscou seu brinco enorme no tecido macio.Parece até que ela fez de propósito, quando coloco desse jeito. Ela sabe muito bem que perco oencanto por roupas rasgadas, manchadas e afins, mesmo que seja imperceptível. E que as dooimediatamente para ela.

– Feito! – ela estende a mão para mim e eu a aperto, revirando os olhos.Sorrio para a bola de pelos branca, cujo colesterol acabei de salvar.Depois de lavar a louça do jantar, dou tchau à Luli – provavelmente para sempre – e fecho a

porta dos meus pais atrás de mim, dando de cara com um quadro de um cachorro felpudo naparede da porta de Telma também.

Sigo em direção ao metrô. Mas não sem antes ajeitar aquelas almofadas estúpidas do hall deentrada.

– Quero que você entenda isso como um benefício a você mesma e ao seu noivado – digo oque eu sei ser um argumento convincente ou que no mínimo chamaria a atenção de alguém tãoegocêntrica como Alana.

Fato inédito na história do meu consultório, Alana chegou no horário programado. Aindanão entendi ao certo o que aconteceu. Só posso concluir que ela se confundiu e pensou que suaconsulta era há uma hora atrás.

O perfume que emana da minha paciente me alcança deste lado da mesa, misturando-se aoaromatizador de ambientes de lavanda que comprei para a minha sala.

– E esse “teste”? É como aqueles das revistas? – ela pergunta, tentando compreender a novatécnica que estou lhe apresentando. Alana é mesmo muito envolvida nesse mundo de revistas deadolescentes e fofocas.

– Humm... Não, não é – limpo a garganta. – Na verdade, é mais como uma conversa com oseu parceiro. O segredo está na conclusão dessas conversas. É uma ferramenta nova quedesenvolvi para pacientes em estágios iniciais de relacionamentos.

– Certo... – uma de suas sobrancelhas desenhadas se eleva e ela bate com as unhascompridas na mesa.

Preciso convencê-la!– Você sabe que tem um traço de impulsividade que tem prejudicado há anos a sua vida

amorosa. Foi por isso que você me contratou. E nesse momento eu preciso ter certeza de quevocê realmente encontrou o... humm... amor da sua vida.

Porque uma de nós duas está completamente enganada sobre ter encontrado o cara certo. Eeu ainda não sei quem de nós duas é a azarada.

Ela morde o lábio inferior.– Não é nada trabalhoso e pode ser divertido conhecer mais sobre o seu parceiro. Você quer

que isso dê certo, não quer? – pressiono um pouco mais, os músculos do meu corpo tãocontraídos que sinto que os estou enrijecendo sem precisar ir à academia. Quem diria que um dosefeitos colaterais do estresse seria uma barriga de tanquinho? Talvez eu devesse escrever umatese sobre isso.

– Está bem, tanto faz – ela abana as mãos no ar. – Como começamos?

Sabe aquele momento em que você está na montanha-russa, presa pelos cintos desegurança, subindo em direção ao céu? Ouvindo os trilhos e as engrenagens da máquina epensando “agora não tem mais volta”? É assim que me sinto, porém provavelmente com maismedo. Medo de que essa montanha-russa que é a minha vida dê curto-circuito e quebre.

Dou as instruções à Alana. O “teste para casais” que desenvolvi – cujo nome verdadeiro é“Medidor de Compatibilidade Romântica” – é na verdade muito simples. Ele é dividido em trêsetapas, sendo as bases dele o passado, o presente e o futuro. Essas fases serão analisadas paraentendermos se o relacionamento tem ou não uma base sólida.

Apesar de Leo tê-lo chamado de “teste da dor de cotovelo”, sei que fiz um bom trabalho.Desenvolvi uma ferramenta neutra, justa e coerente. Ela serve para qualquer casal em início denamoro. No entanto, sinto-me como uma criminosa por estar escondendo-lhes o fato de queconheço os dois, tanto Alana quanto Rafa. Preciso ficar lembrando a mim mesma de que énecessário. E de que não estou fazendo mal a ninguém, nem infringindo nenhuma lei, ou algo dogênero.

– Vamos começar com o passado – digo. – A primeira etapa é a seguinte: “Você conhecebem o seu parceiro?”.

Analisando ambos do modo como os conheço, infelizmente para eles a probabilidade de seconhecerem bem é pequena. Isso porque não acredito que concordariam em se casar um com ooutro se soubessem que são tão diferentes assim.

Concentre-se, Melissa! Foco! Você precisa ser imparcial nas sessões. É a única forma derealmente ajudar a sua paciente.

Chacoalho a cabeça, evitando pensamentos tendenciosos. Mesmo porque só saberei comcerteza com o resultado do teste.

– Vou dar uma lista de perguntas para fazerem um ao outro. Você pode memorizá-las eintroduzi-las no meio de uma conversa, de forma agradável. – Passo-lhe a folha de papel sulfitecom as perguntas impressas, os dedos tremendo ligeiramente.

– Começarei sábado. Parece legal – ela dobra o papel ao meio e o enfia de qualquer jeitodentro da bolsa. Precisava amassá-lo? – Sexta à noite tenho um evento da revista, de modo quenão verei meu noivo.

– É mesmo? – pergunto, uma pitada de esperança despejando-se na minha correntesanguínea.

Subitamente, o céu clareia para mim. Sexta será o aniversário de casamento dos pais deRafa, que eu já tinha me conformado em perder porque a presença de Alana impossibilitava aminha.

Mas então ela não vai?– É terrível. Eu já tinha um compromisso, mas precisei cancelar – diz ela, apoiando a cabeça

nas mãos.– Sim, uma pena, realmente – é o que digo, mas por dentro estou dançando fervorosamente

músicas do É o Tchan.Ela não vai, ela não vai! Tenho vontade de sair gritando pela rua, correr até o guarda-roupa

da minha casa e escolher a roupa que usarei no evento que agora eu definitivamente vou.

Alana sai do consultório em direção ao vento gelado de inverno após acabarmos a consulta,levando consigo a folha que dará início a possíveis mudanças no destino de nós três. E eu fecho aporta atrás dela, com o coração disparado. Ainda não acredito que fiz isso.

Passei uma semana inteirinha compilando tudo o que aprendi sobre o tema, e através doslivros de Psicologia que tenho em casa. Passei horas convencendo a mim mesma de que essa erauma ótima ideia. Passei cada segundo obcecada com essa história (essa última parte mepreocupa um pouco). Passei noites mal dormidas, mas cheguei ao resultado esperado com aminha mais nova técnica. Acredito tanto nela como uma ferramenta eficaz na construção de umrelacionamento que eu poderia aplicá-la em outros casais de pacientes também.

Mas infelizmente a única outra paciente que tenho é uma menininha de oito anos que aindanão quer saber de meninos e os considera nojentos.

E, no momento, eu tendo a pensar o mesmo que ela.Minha mão é fria como o iceberg que separa Jack de Rose em Titanic. Ou pode ser que seja

por causa do vento gelado.Eu estaria mentindo se dissesse que não torço para que eles sejam incompatíveis, para que

no final eu me permita me declarar ao Rafa. Mas eu jamais faria alguma coisa que prejudicasse aimparcialidade do teste.

A sexta-feira chegou e com ela minha ansiedade. Passar a semana toda conjeturando arespeito da festa não me fez nada bem. No final da tarde, ao caminhar até a minha sala, esbarrono doutor Júlio, que vem andando e balançando aquela barrigona saltitante dele, sem percebersua presença.

– Dispensei Lorraine mais cedo, tudo bem, filha? Ela tinha consulta médica. – ele diz, masestou distraída demais para entender. Minha mente parece mais alerta do que nunca, e começo aperceber todas as imperfeições ao redor do consultório. O sofá parece estar um tantinho maispara a esquerda do que deveria, e a pilha de revistas na mesinha de centro da sala de espera estáum completo caos. Eu preciso arrumar tudo isso.

– Desculpe, o que disse? – digo, mas continuo encarando as revistas velhas que os pacientessão obrigados a ler num momento de tédio. Precisamos de revistas novas.

– Que dispensei Lorraine para que ela fosse ao médico.– Certo. Deve ter alguma coisa a ver com o tanto de café que ela toma – respondo, meio

aérea.– Mel, você está bem? – ele tenta encontrar meus olhos. Finalmente os focalizo no médico a

minha frente. – Você tem estado tão abatida...– Não é nada – coloco as mãos no bolso da calça social. – Sabe como é. A correria do

trabalho e essas coisas...Ele me olha com uma expressão engraçada. Ambos sabemos que minha vida profissional

não é nada corrida, tendo tanto tempo de folga entre uma paciente e outra. Só apareci mesmo no

consultório hoje pois não consigo trabalhar de casa. Então, vim para cá para trabalhar nas ideiasde como atrair mais clientes para o meu negócio.

– Desculpe, mas preciso ir – digo com o ar mais jovial que consigo interpretar. – Tenhouma festa. Nos vemos depois?

Vou até minha sala, pego minha bolsa e apago a luz. Mas doutor Júlio ainda está ali, de pé eme observando.

– Faz bem, minha filha. Vá se distrair um pouco. Você é jovem, terá muito tempo para sepreocupar depois – ele me lança um sorriso piedoso e diz, antes de voltar para sua sala. – Mas seprecisar de ajuda... estou do outro lado dessa porta.

Eu me concentro em sair do consultório, dizendo a mim mesma que é desnecessário ficaraqui organizando revistas e arrastando o sofá pra lá e pra cá. Eu não preciso disso. Eu nãopreciso!

Mas não consigo ir embora. É mais forte do que eu.Quanto maior a ansiedade, mais chances eu tenho de me comportar compulsivamente. Dado

o meu estado emocional, o desejo de organizar está cada vez maior dentro de mim.Que droga! Eu já tinha melhorado.A pior coisa é perceber que o TOC está começando a me atingir novamente. É como se eu

fosse completamente inútil. E sozinha. Por que não consigo desempenhar minhas atividadescomo qualquer outra pessoa? Por quê? Por que não consigo sair por aquela porta, e que sedanem as revistas? Por quê? Por quê? Por quê?

Só sei que enquanto tento descobrir a resposta, meu corpo se move derrotado até a mesinhada sala de espera, a fim de perder tempo com uma coisa que sei que eu não preciso fazer.

– Revistas idiotas – falo baixinho, culpando seres inanimados.Já faz vinte minutos e ainda não consegui sair daqui. Uma revista em cima da outra,

empilhada e em perfeita simetria não é suficiente para me parabenizar e comunicar à minhamente: “Muito bem! Você fez um bom trabalho”.

Nunca estará bom o suficiente?Por sorte, Júlio não saiu de sua sala para presenciar meu comportamento incomum.Transtorno Obsessivo Compulsivo é algo com o qual eu venho lidando desde que tinha

nove anos de idade. Muito nova para começar a me preocupar, eu sei. Mas o que é que eu podiafazer?

Tudo começou com desvirar o chinelo para que minha mãe não morresse, passando paranão pisar nas divisórias dos azulejos e prosseguiu incansavelmente até medir a distânciaperfeita entre o prato e os talheres. Então minha mãe (que às vezes desconfio estar viva graçasao meu trabalho impecável com os chinelos) percebeu que havia algo estranho.

E havia mesmo. Para os outros, pelo menos. Eu não gostava da cansativa organizaçãoexcessiva, mas para mim era necessário. Então eu organizava. Caso contrário, não conseguiaficar em paz.

Eu não podia acreditar que aquilo estava acontecendo. Por que justo comigo?O pensamento “Será que preciso mesmo organizar meu quarto de novo?” era rapidamente

substituído por “Mas é claro que precisa! Olhe em volta! Não consegue ver? Está uma bagunça.Arrume de novo!”. E lá ia eu tirar as bonecas da caixa já organizada e empilhá-las novamente,uma por uma, a ruiva, a negra, a loira, a de cabelo tingido de tinta guache verde, torcendo paraque daquela vez meu cérebro o considerasse um bom trabalho.

Exaustos de me dizer em vão que o meu quarto estava impecável, meus pais finalmente melevaram a uma psicóloga. Fiquei arrasada quando ela me disse que eu teria que tomar umremédio para os sintomas do meu transtorno.

– Não precisa chorar, Melissa. É um remédio de fraca dosagem. No momento você precisatomá-lo, e aprender a controlar o seu TOC – foi o que ela disse.

– Eu posso controlar sozinha – eu dizia com lágrimas escorrendo bochechas avantajadasabaixo. – São só algumas manias.

– No seu caso não são apenas manias, querida. TOC é uma doença séria. Esse remédioaumenta seu nível de serotonina, uma substância de que você precisa para lutar contra essetranstorno – e me entregou um lencinho de papel para secar as lágrimas.

– Mas eu não preciso de remédio! – eu tentava argumentar, sentada na cadeira fria doconsultório dela. – Posso me controlar, eu sei que posso! Acho que não me esforcei o suficiente.Eu posso parar de organizar a hora que eu quiser – eu dizia, ainda sem entender que não era tãosimples assim, e que esse era o discurso-padrão de todo viciado. E eu estava viciada.

Uma pequena viciada em organização.Muita gente pensa que TOC é brincadeira, mas essa é a parte mais difícil da minha vida. É

uma doença que faz o paciente ter comportamentos compulsivos e repetitivos, muitas vezesrelacionados a organização e limpeza.

Sabe como é se sentir obrigada a fazer uma coisa que você não quer e não precisa? Como ése sentir escrava da própria mente? Uma mente impiedosa que só parece querer o seu própriomal? Por que eu preciso lutar contra um vilão que está dentro de mim mesma? Por que precisoconviver com ele? Eu não quero conviver com isso! E por que é tão difícil de me livrar disso?Por que eu preciso, exaustivamente, implorar todos os dias para que eu mesma me deixe em paz?

Não é justo.E apesar de sumir da minha vida de vez em quando, o TOC sempre volta a aparecer.Inspiro, expiro e pego o celular. Disco o número dele. Já estou atrasada e preciso me

aprontar para o aniversário de hoje à noite. Não há tempo a perder.– Leo? – digo, secando as lágrimas do rosto.– O próprio. Que voz é essa? Você está bem?Leo é a única pessoa que sabe sobre o meu quadro, sem contar mamãe e papai. O que a

maior parte das pessoas não entende é que o TOC é coisa séria. É difícil de ser tratado, e tambémnão é frescura.

Mas Leo entende. E quando tomei coragem para contar a ele, logo me revelou que já tinhapercebido antes. “Não é todo mundo que confere se a porta está trancada oito vezes”, foi o queele disse na época.

– Eu não tô nada bem! – aperto o celular na orelha.– O que o Rafa fez dessa vez? – ele pergunta, sua voz áspera.– Não, ele não fez nada – por incrível que pareça não estou chorando por causa do Rafa,

pelo menos dessa vez. – É o meu TOC. Eu não consigo sair daqui.– Onde você está? – a voz dele adquire um tom mais compreensivo, misturando-se ao som

de porta se fechando ao fundo.– No consultório.– Já estou a caminho – ouço a chave virar na fechadura dele e desligo.

Quinze minutos depois, Leo toca a campainha e eu abro a porta com os olhos inchados detanto chorar e agarro o pescoço dele.

– Ei, calma – ele diz, me abraçando de volta.Inalo seu perfume e aconchego-me no peito dele, aproveitando o tecido de sua camisa para

secar as minhas bochechas molhadas.Desencosto a cabeça de seu peito. Seu rosto familiar faz as coisas parecerem melhores,

aquecendo um pouco o meu coração.– Por que está chorando tanto? Estou aqui, vou te ajudar.– Mas eu não deveria precisar de ajuda, deveria? Eu devia conseguir sozinha.– O que sua psicóloga tem dito sobre isso?Eu me desenrosco dos braços dele.– Er... minha psicóloga?– Foi o que eu perguntei – ele cerra os olhos para mim e encosta no batente da porta com os

braços cruzados.– Eu não tenho ido – confesso.Ele faz uma careta.– Como assim, não tem ido?– Eu não tenho ido porque não encontrei uma psicóloga de quem eu gostasse. Ponto!Digamos que esteja “entre terapias” no momento. Desde que minha antiga psicóloga se

aposentou, não encontrei outra profissional que pudesse preencher o seu lugar. Não me encaixeicom quatro outras terapeutas com quem fiz uma consulta experimental e resolvi que eu podiaesperar.

O problema é que isso já faz quase dois anos.– Você sabe que não deve ficar sem terapia – ele balança o dedo para mim. – Há quanto

tempo você tem se sentido assim de novo?– Há pouco tempo. Não é nada demais.Desde que descobri sobre Alana tem piorado. Mas não digo isso a ele. Não estou nem um

pouco a fim de ouvir um sermão sobre me distanciar de Alana e Rafael outra vez.– Melissa! – ele me segura pelos ombros. – Eu vou te ajudar a sair daqui. Mas você tem que

me prometer que vai voltar para a terapia.Ele diz isso porque não sabe como é ter que ouvir que você precisa tomar remédios, como é

o meu caso.Bufo.– Tá legal, tá legal. Acho que posso voltar a procurar – digo, finalmente.Ele me lança um olhar desconfiado, mas deixa passar.– Tá legal! O que você precisa arrumar? Sua faxineira chegou – ele segura uma vassoura

imaginária na mão e começa a varrer.Dou risada.– Essas drogas de revistas.– Então tá legal – ele se adianta e começa a ajeitá-las para mim.Desde que nos conhecemos, ele sempre se dispôs a me ajudar. Essa não é a primeira vez

que ele vem correndo ao meu resgate, mas ele não faz ideia do quanto isso é contraindicado. Nãose deve incentivar uma pessoa com TOC a permanecer em seu padrão de repetição. Mas não

digo nada. Preciso dele para situações de emergência, e ele se negaria a me ajudar se soubesse oquanto isso pode ser prejudicial também.

Ele continua empilhando as revistas, uma por uma. Mas não posso deixá-lo fazer isso pormim. Sou eu quem tem TOC. E não ele.

Pego o restante das revistas e termino de empilhá-las.– Essa parte é moleza – digo, sobrepondo uma revista de decoração com uma de fofocas. –

O difícil é sair daqui sem querer organizá-las de novo. Dá vontade de jogar tudo no lixo – abaixoa cabeça.

– Olhe para mim – ele levanta meu rosto com as mãos. – Você sabe o esquema: primeirodeve se acalmar e depois pensar se a organização é realmente necessária. Você sabe que não éobrigada a organizar as coisas quatrocentos milhões de vezes, não é?

Eu começo a dar risada. Porque ele está certo. A melhor coisa nessas situações é meacalmar e raciocinar.

– Tem razão – respiro fundo ao colocar a última revista velha e amassada na pilha. – Temrazão. Eu não preciso disso. Elas já estão perfeitamente organizadas.

– Elas não têm que estar perfeitas. São revistas.– Tem razão. Eu sei, eu sei – levanto as mãos para o alto, em rendição.O que a maioria das pessoas não entende é o que leva uma pessoa com TOC à repetição.

Dessa vez, nem mesmo o Leo. Eu sei que eu não precisava arrumar as revistas. Mas ao mesmotempo eu precisava, entende? E eu ainda preciso, pois a pilha me parece meio assimétrica.

O fato é que nem sempre é algo racional. São os chamados rituais. Repetições que eupreciso fazer como uma válvula de escape para que a minha mente fique em paz. Meu cérebroprecisa organizar as coisas ao meu redor, enquanto minha vida estiver desorganizada.

Leo se levanta e me estende a mão. Permaneço parada, apesar de precisar ir embora e deixara pilha de revistas para trás. Por fim, seguro a mão dele. Sou mais forte do que isso, droga!

Não sou?Ando até a porta, tornando a olhar para trás a cada dois passos. Meu trabalho não está bem

feito, não é? Eu poderia ter feito melhor!Ao pisarmos no tapete da entrada, Leo fecha a porta atrás de nós com firmeza.– Será que não seria melhor se eu...– Voltasse para arrumar as revistas de novo e perdesse esse dia magnífico? – ele aponta para

o céu.Há uma hora, o dia estava nublado e frio. Agora, o céu se abriu, permitindo que o sol desse

as caras e iluminasse a vida por aqui. Meu ânimo começa a mudar, e voltar lá para dentro não meparece uma ideia tão boa assim.

Caminhamos até o carro do Leo. Venci a batalha de hoje contra o TOC porque eu tinhacompanhia. Mas... e quando eu estiver sozinha? Ficarei a noite toda organizando revistas? Hajarevistas!

Leo me dá uma carona até meu prédio em seu carrinho velho, e depois faz todo o caminhode volta até o apartamento dele, a fim de se aprontar para o aniversário de hoje à noite também.

Quando finalmente boto os pés na minha sala de estar, estou cansada como se tivessecorrido numa maratona. De 300 quilômetros. Tranco a porta e encosto as costas na madeira fria,com os olhos fechados.

– Por que eu preciso ser assim?O excesso de ansiedade faz com que eu fique emocionalmente cansada, como se tivesse

trabalhado num serviço pesado o dia todo. E, querendo ou não, acho que viver dentro da minhacabeça pode ser considerado um serviço pesado sim. Eu penso demais.

Por sorte (por sorte nada, planejamento!), eu já tinha um modelito em mente para essaocasião. Para o meu azar, estou vinte minutos atrasada em relação ao horário em que eu deveriater começado a me aprontar.

Tomo uma ducha rápida e lavo os cabelos. Pego o secador no armarinho do banheiro e, umaeternidade depois (não é nada fácil ter cabelos naturalmente cacheados, mas fingir que os tenholisos), com meu cabelo sequinho, faço uma maquiagem básica e visto meu vestido envelopepreto. Coloco uma sandália de salto alto da mesma cor e levo uma clutch para guardar o celular ea carteira.

Agarro a garrafa de vinho de R$60,00 que eu tinha comprado há semanas, desde a primeiravez que soube do aniversário dos pais do Rafa, e saio do prédio em direção ao metrô.

A buzina de um carro parado bem em frente ao portão do condomínio me faz dar um pulode susto, fazendo a garrafa bambear em minhas mãos antes de eu me certificar de segurá-la bemforte e impedir sua queda. O vidro do carro é abaixado, revelando que o motorista é o Leo.

– Pediu um táxi, senhorita?Ele abre seu sorriso branquinho, o que forma pequenas rugas ao lado de seus olhos e lhe dão

um tom charmoso. A camisa branca ficou perfeita em seus ombros largos e sua pele morena, e oblazer cinza o deixa parecido com um executivo rico. Mas seu carro o entrega.

– Não pedi, não, moço – respondo, entrando na brincadeira. – Isso quer dizer que a corrida éde graça?

– Isso aí já é carona, Melissa – ele me corrige quando entro no carro e sento-me ao seu lado.– Você se aprontou rápido – cumprimento-o com um beijo na bochecha.– E você parece bem.– Estou melhor – sorrio, em cumplicidade.– Você até tomou banho.– Por que veio até aqui? – digo, dando risada e colocando o cinto de segurança. – É

totalmente fora de mão pra você.– Eu sei, mas você teve um dia difícil, então pensei em dar uma força.– Mas e se eu já tivesse saído de casa?– Até parece, senhorita perfeição. Você não consegue se aprontar em menos de cinco horas

que eu sei. Além disso, sei muito bem como você lida com atrasos.– Mal? – respondo, piscando os olhos com ar inocente.– Muito mal. E sabe como é, não queria ter que tolerar uma Melissa mal-humorada hoje à

noite – ele revira os olhos, de brincadeira. – Você de bom humor já não é lá essas coisas.– Olha só como você é fofo. Sempre pensando em si mesmo.

Ele me olha por alguns segundos, como se quisesse me dizer alguma coisa. Mas entãodesvia o foco, dá partida no carro e diz:

– Você acha que Pati precisa de carona?Pati nos aguarda na portaria do Flor-de-Lis, cinco minutos depois de termos avisado que

estávamos quase chegando. Ela usa uma calça pantacourt rosa-choque, um cropped branco esapatilhas, vindo em nossa direção. Ao longe, avisto Carlos de plantão na portaria. Bem, sei quefaz sentido, porque, sabe como é, ele é o porteiro. Mas mesmo assim. Será que ele pressentequando passarei por aqui para escolher seu turno?

– Hello! – ela diz, sentando-se no banco de trás. – Achei que seria divertido falar paraCarlos que você estava vindo pra cá, e ele demonstrou grande interesse em vir falar com você.

– O quê? Como foi que ele demonstrou interesse? – olho para o banco de trás, o cinto desegurança prendendo-me pelo pescoço.

– Vindo em nossa direção – ela aponta para Carlos, que dá passadas sorrateiras até o portão.– Vamos embora – digo ao Leo, que parece achar graça de tudo. Dou três tapas no encosto

do banco dele. – Tá esperando o quê? Vai, vai, vai!Ele dá partida no carro, gargalhando alto. Saímos da frente do prédio, deixando um Carlos

estupefato para fora do condomínio, sem saber muito bem o que fazer em seguida.Nós nos movimentamos dentro do carro de Leo com os vidros fechados e o ar condicionado

precário ligado. Pati e eu não podíamos nos dar ao luxo de ter os cabelos desarrumados pelovento (se um dia meu filho for o “vento” na peça de teatro da escola, vou dizer que ele tem umpapel importante, pois o vento é o grande vilão de muitas histórias de cabelos rebeldes e seuspenteados).

O dia se transforma lentamente em noite, tornando o céu azul clarinho em uma telamanchada com tons de coral e cor-de-rosa. O sol pega fogo numa tonalidade bem alaranjada,compondo uma vista de tirar o fôlego.

Sem piscar, tento apreciar esse pequeno momento de paz, mas meus problemas meimpedem. Não consigo apreciar de forma inteira. Qual a vantagem de observar algo tão bonito,se minha vida talvez nunca consiga se equiparar a isso?

– Hein? – Leo me cutuca. – Tô falando com você, ô maluca. Vamos fazer uma paradarápida numa lojinha ali em cima. Ainda não comprei o presente.

Mas isso era óbvio! Leo é totalmente desorganizado e incapaz de fazer as coisas comantecedência. Ele para o carro em frente a uma placa onde se lê “proibido estacionar”, deixa opisca-alerta ligado e diz:

– Se um guarda aparecer, você explica que passei mal e tive que parar.– Eu não vou dizer isso.– Eu digo – Pati diz, sem tirar os olhos do celular.Ele levanta as sobrancelhas para mim e sai do carro.– Vou dizer que ele teve diarreia – falo sozinha.Cinco minutos depois, ele volta segurando uma garrafa de vinho bem mais cara do que a

minha e diz:– Eu deixo você entregar a sua primeiro.

Isso é espetacular. Tinha me esquecido de como a casa dos pais do Rafa é enorme esofisticada. Por fora, pilastras brancas sustentam o teto da entrada e uma escada de porcelanatonos leva à porta entalhada de madeira. Por dentro, paredes azul-marinho, um lustre gigantesco eum piso que faz minhas sandálias dizerem “tlec tlec tlec” me indicam que estou na altasociedade.

Eles são bem ricos. Não tão ricos quanto Alana, mas ainda assim, bem mais ricos do que eu.E do que Pati também, que observa tudo a sua volta como uma criança em uma excursão ao

museu.– Será que aqueles quadros impressionistas são verdadeiros? – ela aponta para a parede do

outro lado da sala.– Seja discreta – abaixo delicadamente o braço estendido dela. – Mas eu não duvidaria nada

se fossem quadros de Salvador Dalí.– Não pode ser um Dalí – ela me olha como se eu fosse imbecil, repreendendo-me pela

minha óbvia falta de repertório artístico. – Ele era conhecido pelo surrealismo. Este se parecemais com um Monet.

– Podemos apenas concordar que eles são muito ricos? – digo, constatando o óbvio, mas elajá está absorta, compenetrada em uma escultura de bronze sob uma bancada lateral.

A casa – ou devo dizer “palácio”? – está impecavelmente organizada, os móveis lustrosos eo piso, brilhante. O cheiro de produto de limpeza espalha-se pelo ambiente, mas o deles é bemmais perfumado do que o que eu uso lá em casa.

Leo se aproxima de nós com Rafa a tiracolo, dando tapinhas nas costas dele, cumprindo seuobjetivo de encontrá-lo em meio à multidão de convidados da festa, para que ocumprimentássemos.

Ainda não acredito na quantidade de pessoas que tem aqui. Umas setenta, talvez oitenta.Imaginei que se tratava de um jantar para os mais íntimos, mas também não sei porque imagineiuma coisa dessas, sendo que não sou assim tão chegada dos pais do Rafa, de qualquer maneira.Então foi uma interpretação estúpida dos fatos.

O que me deixa nervosa é que, justo hoje, o dia em que eu poderia aproveitar a presença doRafa para mostrar o quanto sou encantadora e perfeita para ele, sua atenção parece ser disputadaentre todos os convidados da festa.

– Que bom que vieram! – Rafa diz, cumprimentando-nos com beijos no rosto com aqueleseu jeitão todo sério e fofo, de terno e gravata. – Fiquem à vontade. Os canapés e o champanheestão sendo servidos pela sala, e mais tarde será servido o jantar.

– Onde está sua noiva? – diz Pati, desbocada.– Infelizmente ela teve que comparecer a um evento de trabalho – Leo responde por Rafa,

olhando feio para mim.– Uma pena – digo, bebericando o champanhe. – A gente devia saber mais sobre ela antes

do casamento.– É mesmo? – Rafa se anima. – Pergunte o que quiser. Posso te contar tudo.– Er... eu não sei.Ele não entendeu que foi só um modo de dizer? Uma alfinetada por ele não se abrir com

ninguém? E eu lá quero saber mais sobre Alana, por acaso?– Humm, sei lá, a cor preferida dela?Chuto qualquer pergunta sem graça, para que o tema “Alana” seja esquecido pela noite. A

última coisa que quero é falar sobre a minha paciente fora do consultório.– Ah, aí você pegou pesado – ele diz, o cenho franzido. – Cor preferida... foi uma pergunta

muito específica. Achei que perguntaria sobre o trabalho dela, sobre como ela se parece ou algoassim.

Ele não sabe nem a cor preferida da própria noiva? Foi uma pergunta muito básica. Prevejoresultados negativos provenientes do teste um.

– Aposto que é rosa – digo, já sabendo a resposta.– Pode ser que seja mesmo – ele diz, sorridente e ingênuo.Porém, mais rápido do que chegou, Rafa pede licença e nos deixa para cumprimentar

algumas pessoas que acabaram de entrar, enquanto fico aqui perdida no pensamento de quetalvez eu simplesmente não seja tão importante para ele quanto ele é para mim.

– Adivinha quem vai entrar na igreja com você? – diz Leo para mim e estende os braços.– Não me diga que é você, por favor.Ele afirma com a cabeça.– Acredita na sua sorte? – ele acha graça e me dá um soquinho no braço.– Sorte? De entrar na igreja com alguém que vai dar em cima de todo mundo?– Eu não faria isso, Mel. É uma igreja. Isso seria pecado – ele afirma, solene.– Não se faça de santo, Leo. Isso também é pecado.Mulher nenhuma passa por ele sem que ele note. A não ser a mãe dele. E bem, eu.– Vai ser legal – ele diz, atingindo-me com uma cotovelada fraca no braço. – Pode até ser

que arranjemos alguém na festa.– Eu não preciso arranjar alguém.– Ah, precisa sim – ele abaixa a voz. – Se você está correndo atrás do noivo, tem alguma

coisa errada aí, não acha?

– Não sei porque estamos tendo essa conversa. Esse casamento pode muito bem nemacontecer, se é o que você quer saber.

– Puta merda! – Leo grita, com o olhar fixo atrás de mim, e quase derruba a bebida em suamão.

Algumas pessoas ao nosso redor param de conversar e nos observam por um momento,antes de perceberem que suas vidas continuam sendo muito mais interessantes do que a nossa evoltam a dar atenção a seus grupos.

– O que é? – digo baixinho, tentando controlar o volume da nossa conversa.Não posso passar vergonha nessa festa! Simplesmente não posso. Não enquanto alguma tia

de Rafael não me confundir com a sua namorada.– Aquela ali é a Bárbara? – Leo aponta para uma garota ao longe, de uns vinte e tantos anos,

muito bonita, de cabelos castanhos, com uma saia muito curta.– Como assim, “aquela ali é a Bárbara”? Como é que eu vou saber? – digo.– Aquela ali! – ele tampa o rosto com a mão e vira de costas para a garota. – É aquela prima

do Rafa, você a conhece.Eu a observo melhor.–Ah! – começo a me recordar da garota do jantar de aniversário do Rafa de dois anos atrás.

– Ela é muito simpática. O que é que tem ela?– Simpática uma ova, ela é maluca! – ele arregala os olhos. – Eu saí com ela mês passado e

agora ela não para de me ligar. Semana passada descobri que ela mora no mesmo prédio que eu eagora vive batendo na minha porta. Acredita?

– Nossa, que vexame. Como você fez para dar o fora nela? – pergunta Pati, louca para saberdos detalhes sórdidos.

Eu tenho dó dessa menina.– Bem, sabe como é... na verdade, eu mandei ela entrar.Pati e eu reviramos os olhos. Eu tenho menos dó dessa menina.– Você é ridículo – eu digo.– O que eu deveria fazer? A garota estava se jogando pra cima de mim. É o que eu sempre

digo: quando alguém se joga pra você desse jeito tão óbvio, você agarra!Ele sempre diz isso. É quase como um slogan dele. É como uma desculpa para o quanto ele

é um mulherengo insensível, e um modo de jogar a culpa nas garotas.– Então é melhor você estender os braços, porque ela está vindo para cá – diz Pati, e nós

duas começamos a rir e a nos distanciar, dando tchauzinhos e fazendo bicos de dó.– Não façam isso comigo. Não me deixem sozinho. Melissa! – ele sussurra e tenta puxar a

manga da blusa de Pati, mas ela escapa fazendo o moonwalk do Michael Jackson e rimos aindamais.

Nós duas ficamos discutindo sobre como o modelito ousado de Bárbara não lhe caiu bem –eu, com nenhuma base profissional para opinar, e Pati sendo a profissional aqui cursando Moda.E ralhamos as atitudes relaxadas e insensíveis do Leo até sermos interrompidas pelo som de uma

faca entrando em contato com uma taça de vidro, indicando que alguém pretende iniciar umbrinde.

– Ahn, olá a todos! – diz no microfone o pai do Rafa, o senhor Alberto.Ele sempre teve um jeito muito particular de falar. Quase tão lentamente quanto uma

tartaruga. Com todo o respeito, tenho certeza de que ele fará um bocado de gente da festacochilar de pé.

– Primeiramente, ahn... minha mulher e eu gostaríamos de agradecer a presença de todosvocês – ele pausa (obviamente). – É muito gratificante ver que praticamente todos osconvidados... ahn... puderam comparecer a nossa... ahn, humilde celebração.

Eu tenho algumas ressalvas a respeito desse início de brinde (fora as pausas).Pra começar, quem seria louco de perder um banquete desses em uma mansão como essa? E

pegando esse gancho, de humilde essa celebração não tem nada, senhor Alberto! Faça-me ofavor. As taças são de cristal, pelo amor de Deus!

– É uma pena nossa nova nora, noiva do nosso filho Rafael, não estar conosco no momento– ele acrescenta em respeito ao filho.

Ah, ótimo. Agora é que ninguém aqui vai me confundir com a sua namorada mesmo!Rafa assente para o pai, agradecido. Leo me observa do lugar onde está preso à Bárbara e

Pati sussurra um “Graças a Deus” alto demais no meu ouvido.– Mas deixe-me falar sobre a coisa mais importante na vida... o amor.Um “ooooooh” em uníssono é ouvido ao redor da sala, e uma senhora ao meu lado coloca

as duas mãos no peito. Eu não tenho estado em comum acordo com esse tal de amor nos últimostempos, mas aguento firme para ouvir o que ele tem a dizer. Afinal de contas, ele está falandoatravés de um microfone, então o que mais eu poderia fazer?

– Você sabe quando se encontra a pessoa certa? – ele faz uma pausa e os convidados paramjunto com ele, esperando pela resposta.

E, depois do que parece ser uma volta completa ao redor do sol, ele prossegue:– É quando você admira tanto uma pessoa... mas tanto... que não pode fazer outra coisa

senão ficar ao lado dela para o resto dos seus dias. – Ele assume uma expressão menos rígida. –Quando você acorda pela manhã pensando na sorte que tem e no quanto, ahn... no quanto suavida é completa e feliz com ela.

– Quando você tem um problema, mas também tem o apoio dela para passar por tudo aquilo– ele continua. – Quando você não consegue parar de sorrir e se divertir na presença dela.Quando você quer estar presente a todo momento, assim como ela quer estar com você.

Outro “oooooh” roda pelo salão.– Beatriz...O senhor Alberto estende a mão para a esposa, e ela se levanta com a ajuda do marido.– A primeira coisa que você me disse quando nos conhecemos foi “são 20h32”, na única

noite em que eu não estava usando relógio. E hoje... – ele checa o próprio relógio. – Exatamenteàs 20h32 dessa sexta-feira, eu quero dizer que esses foram os melhores 25 anos que eu poderiater tido. E que não me arrependo nem por um segundo de ter tirado aquele relógio do meu pulsoe escondido rapidamente no bolso no minuto em que eu vi você e não sabia o que dizer.

Uau! Essa foi, de longe, a coisa mais linda (e lenta) que eu já ouvi em toda a minha vida.Muito melhor que o brinde que meus pais fizeram no aniversário de 20 anos deles, que foi algocomo “Amo você… você sabe”, ou algo curto e grosso do gênero. Sei que eles não se amammenos por causa disso. Mas, com certeza, perderam feio para os pais de Rafa na performance.

Os aplausos dos convidados ecoam pela ampla sala, enquanto a senhora Beatriz dá umselinho em seu amor de longa data. Ela diz alguma coisa para o senhor Alberto, que olha para aporta enquanto Beatriz pega o microfone.

– Querida, que surpresa maravilhosa... que bom que conseguiu comparecer. – sua voz roucaé intensificada pelo microfone, enquanto ela aponta para a entrada da sala. – Essa que acaba dechegar é nossa nora, Alana.

Em sincronia, as cabeças dos convidados giram para a porta, e eu fico chocada com a visão.Alana dá passadas lentas com o queixo empinado, adorando a atenção e tentando ao máximoprolongar o momento. Mas que droga, o evento do trabalho acabou mais cedo ou o quê?! Eufinco as unhas em Pati, que diz um “ai” baixinho, e olho para o Leo, que se desvencilha deBárbara e vem em nossa direção.

– Preciso sair daqui! – digo a eles, desesperada.– Mas o jantar ainda nem foi servido... – resmunga Leo, mas finco as unhas nele também e

começamos a nos mover.A sala é grande, porém não estamos assim tão distantes de Alana, que pode me ver a

qualquer momento. Nós nos dirigimos à saída, Leo e Pati me tapando, e giro a maçaneta daimponente porta. Mas, quando estamos prestes a sair, livres como pássaros, uma voz surge atrásde nós e diz:

– Aonde vocês pensam que vão?

Paramos no meio do passo. A voz da mulher – que não consigo distinguir com perfeição porcausa do barulho – ainda ecoa em meus ouvidos. Ai, meu Deus do céu! Quem disse isso? Nãoseja Alana, não seja Alana, não seja Alana. Olho lentamente para trás, com um olho fechado e ooutro aberto. Para minha surpresa, ninguém mais no salão parece estar prestando a mínimaatenção em nós a não ser Bárbara, que tenta impedir a nossa saída.

– Aonde vocês pensam que vão? – ela torna a dizer, com a mão na cintura e um sorriso falsoestampado no rosto.

– Embora? – pergunto, confusa. A senhora Beatriz continua com seu discurso, enquantoficamos parados aqui, com a chance de a qualquer momento sermos expostos à verdadeira Alana– que agora sobe rebolando no palco pelas escadinhas laterais.

– Mas já? A festa acabou de começar! – ela tenta se fazer de desinteressada, mas asbatidinhas que seu pé direito dá no chão revelam seu nervosismo.

– Sim. Já! – Leo sorri sem mostrar os dentes e recua de mansinho. – Então, tchau.– Tchau – diz Pati, as sobrancelhas erguidas num arco, claramente com dó da garota, e

segue Leo porta afora.Bárbara me fuzila com os olhos cerrados, por baixo dos cílios postiços.– Er... então, tchau – é o que digo antes de dar o fora dali.Ainda com os olhos arregalados, ficamos em silêncio encarando a porta fechada pelo lado

de fora. Até cairmos na gargalhada.– Eu jurava que Alana me veria – digo, enquanto caminhamos até o carro de Leo.– Por que não conta a eles de uma vez? – ele para de sorrir abruptamente, as mãos nos

bolsos.– Não posso. Poderia afetar a imparcialidade dos testes. E eu preciso da resposta certa.

Preciso seguir com o plano.Pati tagarela o caminho todo para casa a respeito das obras de arte nas paredes e as

esculturas pela casa que, segundo ela, existiam em grande quantidade até mesmo no banheiro.Ela só se cala quando chegamos na primeira parada, a porta do meu prédio.

– Obrigada pela carona, Leo – abro a porta do carro e salto de lá.– Não tem problema – ele diz, segurando o volante. – Mas escute...

Abaixo-me e coloco a cabeça na janela.– O que foi?– Pense bem...Do que ele está falando?– A respeito de contar a verdade a eles – ele explica.– Leo... de novo com isso?– Só não quero te ver magoada.– Confie em mim. Eu sei o que estou fazendo – me afasto da janela do carro e sigo em

direção aos portões do prédio, deixando-o para trás.No dia seguinte, acordo com um barulho estridente.– Alô? – é o que eu digo, desnorteada, ao atender o telefone de casa que me acorda às nove

da manhã de um sábado. Mas então, escuto a voz dele.– Como está minha madrinha de casamento preferida?Santo Deus! Será que Rafa não se cansa desse apelido?Estou aqui, torcendo para que esse casamento não aconteça!– Vou bem – minto, com voz de sono. – Ótima.– Não te acordei, né? – diz o cara que acorda às seis da matina para uma corrida

revigorante.– Não, não. De fato, estou acordada há horas – bocejo sem som para que ele não escute.– Liguei para te avisar que os vestidos das madrinhas já estão disponíveis para prova na

costureira da minha noiva.Ainda não acredito que Alana escolheu os vestidos das madrinhas. Tento afastar da mente a

imagem do meu corpo entrando na igreja com um vestido horrendo e bufante.– Não diga...– Sim, senhora. Vou te passar o endereço. Tem papel e caneta por aí?Papel e caneta? Meu Deus, ele não conhece mensagem de texto?– Tenho, tenho sim – abro a gaveta da mesinha ao lado da cama e agarro uma folha

qualquer. – Pode falar.Ele me passa o endereço e eu anoto num garrancho, sem a mínima vontade de saber os

detalhes.– É ela? – ouço uma voz perguntar ao fundo. Por um momento acho que estou ficando

louca.– É sim, amor – Rafael responde e meu coração começa a bater mais rápido.– Deixa eu falar com ela. Alô? – a voz fica mais forte e meus dedos tremem ao redor do

telefone.A voz de Alana soa estridente no meu ouvido e eu jogo o telefone longe.– Alooô? – ouço-a cantarolar através do aparelho que repousa sobre a cama.Droga! O que é que eu vou fazer? Com um pensamento rápido, limpo a garganta e pego o

aparelho nas mãos.– Olô? – digo, em minha nova voz engrossada.– Olá! – ela diz, toda animada – É a Mel, né?

– Sim. É êeela – digo o mínimo que consigo, tendo plena consciência de que minha vozfingida deve soar ridícula em contraste com a voz de princesa dela.

– Ah, ótimo! Aqui é a Alana. É um prazer conhecer você! – ela prossegue, sem se importarcom a minha resposta. – Minha costureira precisa que as madrinhas provem os vestidos aindaessa semana, por causa da data do casamento estar tão próxima. O modelo é lindo, estou certa deque você vai amar.

– Ahn... Certo – digo, com uma voz um pouco mais normal. – Pode deixar.– Humm... bem, foi ótimo falar com você – Alana fica em silêncio. – Até logo, fofa.Ela acabou de me chamar de fofa? Será que Rafael disse que sou gorda, ou algo assim?Ele retorna à ligação que lhe foi previamente tomada e se despede de mim. E eu me afundo

debaixo dos lençóis, torcendo para que Alana não tenha reconhecido a minha voz. Massageio opescoço, que dói de tanta tensão.

É isso o que eu chamo de levar o trabalho para casa. Não consigo me livrar de Alana nemquando estou na cama? Depois disso, não consigo mais dormir.

Não ajuda muito o fato de eu não ter sequer um dia de descanso desse assunto. Justo noúnico minuto em que consigo esquecer, recebo uma ligação da própria noiva.

Minhas mãos ainda tremem. Eu diria que essa foi uma ótima, maravilhosa, encantadoramaneira de começar o dia.

Assim como as consultas de segunda-feira com Alana não são nada encantadoras também.

Nove e dezesseis. Espero minha paciente chegar enquanto me sirvo de mais um copinho docafé de Lorraine e desconfio que ela utilize essa tática para nos deixar dependentes dela e nuncaperder o emprego. Porque se for isso, está funcionando.

Nove e vinte e aproveito a falta do que fazer para arrastar minha mesa de madeira uns cincocentímetros para a direita, deixando as distâncias até as paredes simétricas dos dois lados.Arrependo-me amargamente de ter comprado uma mesa de madeira maciça.

Nove e meia e o cabelo de Alana está mais loiro do que nunca.– Ficou incrível, não ficou? – pergunta ela, colhendo elogios.– Er... fabuloso.E é assim que uma segunda-feira parece ter grudado na outra, como se eu não tivesse tido

folga.Não folga do trabalho, porque... sabe como é, digamos que eu tenha folga cinco vezes por

semana, com a escassez de pacientes a serem atendidos. Sinceramente estou quase eu mesmafazendo panfletagem na porta do metrô sobre o meu negócio, por falta de verba para contrataralguém que o faça.

Mas o que quero dizer é que não tenho folga de Alana. Ela chegou ao consultório todaansiosa, mas devo admitir que não mais ansiosa do que eu, que esperava pelo resultado do testenúmero um.

– Fiz o negócio que você me passou.

Inclino-me para frente. Junto as mãos tão forte que as juntas começam a doer. As batidas domeu coração são quase tão altas quanto meus pensamentos.

– O teste?– Sim. E percebi uma coisa surpreendente: meu noivo e eu não nos conhecíamos tão bem

assim.Não brinca!– E eu não fazia ideia disso até você aplicar seu superteste conosco – ela diz, com uma

expressão preocupada no rosto.Mas eu sabia! Eu estava certa esse tempo todo. Eles não se conhecem bem o suficiente para

se casarem. Ai, meu Deus! Será que eles agora enxergam isso?– Só tenho a lhe agradecer – diz ela, abrindo um sorriso enorme.É claro que ela tem que me agradecer! É uma jornada de autoconhecimento pela qual ela

está passando, e graças a mim ela agora está sendo madura para reconhecer que estava sendoimpulsiva novamente. Ela ia cometer o maior erro da vida dela.

– Se não fosse por você, a coisa mais incrível não teria acontecido – Alana diz, colocandoas mãos no coração.

Espere aí. O quê?– Passamos a noite inteirinha conversando sobre nossos gostos, nossa infância, nossas

famílias, e só olhamos para o relógio quando já eram cinco da manhã.Só pode ser brincadeira.– Foi mesmo, é?– Foi! Meu noivo disse algo sobre não saber qual era a minha cor favorita, ou algo assim,

então ficou superanimado com a conversa também – ela diz, batendo palminhas. – E foi incrível!Eu o conheço muito mais que antes. Eu o entendo totalmente!

Abro a boca para falar, mas dela não sai nada.– Então quer dizer que você sabe qual a cor favorita do seu noivo também? – digo quando

retomo o ar.Sei que essa é uma pergunta um pouco idiota, mas vou começar com o básico.– É azul – ela empina o queixo para cima e sorri como uma criança.– E, digamos, o nome do animal de estimação quando criança? Digo, se é que ele tinha

um... – me apresso em corrigir.– Sim, o nome era Pelúcia. E eu passei uns bons dez minutos tirando sarro da cara dele por

ter dado um nome desses a um peixe.– E qual o maior sonho do Rafael, humm... do seu noivo?– Ele está atrás de um cargo de gerência no banco onde trabalha.Ela acertou tudo.Droga, Alana, sua enxerida! Tinha que sair por aí perguntando coisas e descobrindo

informações sobre seu noivo?Afasto o pensamento de que a culpa é na verdade toda minha se ela se sente muito mais

conectada a ele agora.

(Também afasto figurativamente a Melissa-pessoal para fora da sala, enquanto ela esperneiae insiste em voltar. Mas tento ignorá-la, pois ela não faz parte desta sessão).

– Preciso te agradecer – Alana segura em minhas mãos, o toque frio da mão dela dando-metremeliques. – Falando sério, eu ainda estava na dúvida sobre esse casamento às pressas. Masagora? Eu tive completa certeza de que ele é a pessoa certa para mim. E isso nunca teriaacontecido se não fosse por você.

Fico em silêncio, atônita, e afasto as mãos dela. Eu causei mesmo essa reação extraordináriano relacionamento dos dois?

Meu senhor, como eu sou estúpida.– Não tem de quê – cerro os dentes disfarçados de sorriso, os punhos fechados debaixo da

mesa.Ok, então eles passaram no teste um? Tudo bem. Ainda é cedo para definir, certo? Ainda

tem muito chão pela frente. Pena que esse chão parece ser feito de pedregulhos bem pontudospara os meus pés descalços.

– Além do mais... – Alana diz, em tom de confidência. – Já que fizemos um sexomaravilhoso depois disso, posso afirmar que estou amando realizar esses testes. Então, qual é opróximo?

Depois de aplicar o segundo teste a minha paciente, o que provavelmente será o catalisadorpara mais uma sessão de sexo com seu noivo – vulgo, meu melhor amigo –, vou até a cozinha doconsultório para me servir mais uma vez de café.

E pego Júlio com a boca na botija, enchendo dois copos de tamanho grande com a bebida,provavelmente para levar para a própria sala.

– Por que não leva logo a garrafa? – pergunto e balanço a cabeça, dando risada.Ele se vira, surpreso.– Porque assim meu roubo de café fica mais sutil, filha.Ponho-me ao seu lado e alcanço a pilha de copinhos descartáveis.– E então? Como anda a busca pela mulher perfeita?– Nulas. Segui seu conselho e troquei a foto do perfil, mas percebi uma coisa crucial.– E o que é?– Não é assim que imagino encontrar o amor.Ele toma um grande gole do café e enche novamente o copo até a boca.– Sou da velha guarda. Prefiro ser apresentado a alguém por alguém, e não por um

programa tolo de computador.– Continue tentando, Júlio – encho um copo grande também, agora que nosso vício

involuntário por café está às claras. – Tenho certeza de que as coisas vão se ajeitar.Munida de cafeína, volto para minha sala a fim de focar em uma coisa pouco usual para

mim. Tendo notado minha dificuldade com esses trecos, Leo me deu algumas dicas. Mas ainda

não sei ao certo como isso pode funcionar.Abro o notebook e acesso meu e-mail. Zero mensagens, como sempre. Minha caixa de

entrada é menos badalada que o perfil de namoro online do Júlio.Incorporo ao e-mail o layout que Leo me enviou mais cedo, com uma foto minha numa

pose profissional e com os dizeres “Terapeuta Melissa Belinque. Agende sua sessão clicandoaqui”.

E-mail marketing, ele disse. “É essencial para qualquer tipo de negócio”. E então lá vou eu,adicionar um por um os endereços de e-mail de todas as mulheres que estavam na minha palestrae que deixaram seus dados na ficha de inscrição, convidando-as para conhecerem o meu espaçode trabalho.

Pelo bem do meu consultório e da minha alimentação, aperto “enviar”. Pensa que é baratomanter esse corpinho cheio de gordurinhas bem alimentado?

Meu e-mail marketing atravessa a rede em direção às caixas de entrada daquelas pessoasque me deram uma hora de sua atenção, torcendo para que agora elas me deem dinheiro.

Com os dedos cruzados, e os olhos fechados, aguardo alguma resposta, mas nada acontece.Até que um bipe ressoa do notebook, e “você tem uma nova mensagem” salta na tela. Eu

consegui?Com o coração saltitando, adio dar pulinhos de alegria e clico em cima do alerta. E é então

que me deparo com uma coisa muito mais chocante do que um cliente novo.O site “alanaerafael.com.br” brota na tela, com detalhes em verde-claro e ilustrações de

lírios para todos os lados, não só indicando-me que ainda não tenho um paciente novo, mas queterei que gastar o dinheiro que não tenho em um presente de casamento para duas pessoas ricas,que claramente não precisam de mais coisas na vida.

– O que há de errado comigo? – pergunto, quando Leo abre a porta de seu apartamento.– Você aparece na porta dos outros sem avisar?– Desculpe, o porteiro me liberou – digo e dou passadas largas para dentro. – Deve achar

que sou uma de suas muitas garotas.Encosto a cabeça no ombro do Leo e derrubo todo o meu peso sobre o dele.– Quantas garotas você acha que tenho? – ele pergunta, reconfortando-me com um abraço.– Não sei. Perdi a conta na faculdade – digo, minha voz soando abafada em seu peito.A chuva cai lá fora, tornando o apartamento dele muito mais aconchegante. Uns pingos me

atingiram quando eu entrava em seu prédio, e por pouco a chuva não me acertou em cheio. Ocheiro de molhado adentra o apartamento bagunçado dele através da janela aberta, enquanto dolado de fora as gotas pousam nas folhas da grande árvore que nos alcança aqui no primeiroandar.

– O que há com você? Esse mau humor é devido à fome? – ele diz, conhecendo muito bema natureza do meu ser.

– Se eu disser que sim, vai me servir janta? – desencosto do peito dele, muito cheiroso, devoacrescentar. A propósito, aposto que é assim que ele conquista “as muitas garotas”.

– Se eu ouvir um bom motivo, talvez eu sirva.– Não estou a fim de cozinhar.– E quando você está a fim de cozinhar? – ele me olha de canto de olho.– Touché...Ele me puxa.– Venha!Leo me conduz pela cintura até o sofá, suas mãos quentes fazendo cócegas em minhas

costelas e me fazendo gargalhar.– Para com isso! – digo, esquivando-me, e me jogo no sofá.Seus olhos fitam-me por alguns segundos antes de ele se afastar.– A senhorita fica sentadinha aí.Isso não será problema. Tenho no corpo a força de uma minhoca, sem vontade de fazer

coisa alguma. E definitivamente sem vontade de ir para casa e ficar sozinha hoje à noite. E para o

resto da vida.Talvez eu devesse adotar um gato. Sabe como é. Pra me fazer companhia.– Vai me contar o que aconteceu? – ele grita da cozinha.Eu me levanto do sofá com preguiça e vou até lá. Encosto no batente da porta e o observo

tirar várias marmitas da geladeira. Leo não mora mais com a mãe, mas ela manda comida paraele toda semana. Ao que parece, o prato de hoje é lasanha. Humm, perfeito!

– Eles se dão muito bem – jogo as mãos para cima, derrotada.– Quem?– Como, “quem”?! Romeu e Julieta.– O quê? – ele para de remexer nas marmitas por um momento para dar risada.– Alana e Rafael! Pelo amor de Deus!Ele revira os olhos.– É claro que eles se dão bem. Eles vão se casar. É bom que se deem bem mesmo.– Não, é péssimo!– Pra você, né? – ele diz, seco. – Ah, para. Esquece esse cara.– Eu não consigo, tá legal? Você não entende.Ele coloca um prato no micro-ondas, aperta o botão de “1 minuto” e cruza os braços.– Eu entendo sim.O cheiro de lasanha começa a se alastrar, confundindo meus sentimentos e me deixando até

mais feliz.– Foi tudo muito rápido, muito impulsivo – digo. – O Rafa não é assim, você o conhece!

Mais cedo ou mais tarde, essa história vai estourar e serei eu quem terá que recolher os cacos docoração dele.

– Você não acha que está preocupada pelos motivos errados? – ele diz com cuidado,provavelmente com medo do meu olhar assassino. E ele está completamente certo de ter medo.

– Elabore.– Não acha que está depositando toda a sua energia nesse plano terapêutico só para não ter

que enfrentar o fato que de que já não tem mais jeito?Ai! Essa doeu.– Mas é claro que não – digo, na defensiva. – Mas que ideia louca a sua.– Até agora não entendi por que você gosta dele...– Por que diz isso?– Ah, fala sério, vai! Ele é tão sistemático que às vezes chega a ser um pé no saco.– Ei! Eu também sou sistemática.– Eu não disse que você não era um pé no saco.Leo termina de esquentar o jantar enquanto reforça todo aquele papo de “você tem que

esquecê-lo”, “você tem que seguir com a sua vida” e mais uma porção de coisas chatas. Ele nãoentende que aquelas palavras não significam muita coisa quando tenho certeza de que o Rafa é ohomem certo para mim. E não para ela.

Alana não está preparada para um relacionamento sério, e Rafael não está preparado paraum relacionamento que não seja comigo.

Tá legal, eu posso ter inventado essa última parte. Mas é meu dever ajudá-los a não cometerum grande erro.

– Seja cavalheiro e traga meus chocolates, sim? – digo, com os cotovelos apoiados na mesa,após acabarmos com a tupperware inteira de lasanha. Eu sempre me aproveito do chocolate belgacaro do Leo quando venho aqui. Não posso me dar ao luxo de comprar chocolates caros dessejeito lá pra casa.

– Já falei que você está ficando muito folgada?Leo apoia os cotovelos na mesa também, e sua camiseta se levanta um pouco na região dos

braços, deixando seus bíceps à mostra.Ele já tinha todos esses músculos antes?– Desculpe. Mas amigo é pra essas coisas.– Ser seu amigo está ficando muito caro – ele se levanta da cadeira, revelando o botão da

calça jeans aberto e o zíper abaixado.– Leo! – grito, apontando para a calça dele. – Que pouca vergonha!– Eu comi demais, tive que abrir o botão. Qual é, vai dizer que você não faz isso?Ele entra na cozinha.– Mas é claro que não! Isso seria horrível! – digo, mas abotoo minha calça depressa, antes

que ele volte.O apartamento de Leo, um solteiro de 25 anos, é exatamente como se imagina: bagunçado,

com roupas espalhadas pela casa e objetos aleatórios jogados ao redor, como um mouse decomputador com o fio cortado ao meio na mesinha de centro.

Mas, de algum modo, meu TOC não se manifesta muito por aqui. É claro que tenho vontadede colocar aquela meia branca jogada no meio da sala na máquina de lavar, mas acho que isso sedeve mais à higiene do que ao TOC.

Estranhamente, quando estou aqui consigo relaxar. Talvez porque ele seja um relaxado decarteirinha, causando um “efeito-espelho” em quem entra.

Para dividir as despesas, ele mora com mais dois amigos, que podem chegar a qualquermomento. Por isso aproveito para me jogar no sofá enquanto posso. Sempre que venho aqui,tenho vontade de passar a semana. E não é só pela comida.

É também pela televisão de plasma de 43 polegadas (veja bem, a minha só tem 28).O interfone toca e eu instintivamente tiro os pés do sofá. De repente me sinto como uma

intrusa. Provavelmente se trata de um de seus colegas de quarto. Mas eles não tocariam ointerfone, não é?

Então pode ser ainda pior. Pode ser alguma menina fútil que ele conhece, esperando serconvidada para entrar. Já estou agarrando minha bolsa para ir embora de fininho quando ele voltapara a sala com meus chocolates e diz:

– É a Pati. Eu a mandei subir.Bem, pelo menos Pati não é fútil.– Pati? – digo, e ele nota a bolsa no meu ombro.– Onde é que você pensa que vai?

– Humm... – fico sem jeito. – Achei que você estivesse esperando companhia, sabe comoé... então ia sair do seu caminho.

– Claro que não. Por que você sempre pensa essas coisas de mim? – ele faz cara deofendido e eu me sinto uma boba. Talvez ele seja mais fofo do que parece. – Se eu estivesseesperando por alguém, já teria mandado você embora faz tempo.

Retiro o que eu disse.– Eu tô brincando, tô brincando – ele diz, puxando-me de volta pela cintura quando começo

a ir em direção à porta, com cara de nojo. – Se alguém tivesse aparecido por aqui, eu a teriamandado embora, porque hoje você é a minha companhia.

Não sei se ele entendeu o quão ambígua a frase dele ficou com a palavra “companhia”, masdeixa pra lá. Coloco a bolsa de volta na cadeira, ponho os pés pra cima no sofá e pego umchocolate da caixinha.

– Inclusive eu também não estava esperando por Pati – ele parece confuso.– Er... desculpe. Eu disse a ela que estaria aqui. E que eu estava chateada.– Se ela quiser jantar, vai ter que preparar para ela mesma – ele diz, sentando-se ao meu

lado no sofá cinza de chenille de dois lugares.– Que coisa horrível! – dou uma gargalhada alta e jogo uma almofada azul na cabeça dele. –

Veja só como você trata suas visitas!– E como é que eu trato as minhas visitas, mocinha? Dando chocolate a elas e as

empanturrando de lasanha?– Touché! – sorrio para ele, a boca cheia de chocolate meio amargo.Ele chega bem perto do meu rosto, cerra os olhos e pega um chocolate da caixinha, que eu

monopolizei completamente. A campainha toca e ele grita um “pode entrar”. Eu reviro os olhospara ele.

– Veja só como você trata suas visitas! – repito, e ele começa a fazer cócegas em mim.Dou tanta risada que não percebo Pati parada na porta – ensopada por causa da chuva, com

cara de cansada –, e caio no chão de tanto rir.– Entre, Pati. Fique à vontade – diz Leo, com uma reverência.– É isso que é ficar à vontade nesta casa? – ela se refere ao meu corpo estirado no chão. –

Não, obrigada.Daqui, consigo ver o lado bom do fundo do poço. Vai ver que morrer de rir com os meus

amigos idiotas não é a pior coisa do mundo. Além do mais, do chão eu não passo.

Camille é adorável. É minha paciente preferida (entre todas as duas que tenho). Tembochechas rosadas e enormes, cabelos curtos e lisos na altura dos ombros e uma franjinha quevai até as sobrancelhas. A mãe dela, Márcia – cuja franja idêntica à da filha evidencia o quantoas duas são parecidas – também é uma pessoa agradável. Traz Camille para as consultas,alternando entre aguardar na sala de espera ou entrar junto de Camille para a terapia.

A menina tem tido resultados muito bons nos poucos meses que tem passado comigo, semcontar as consultas que tínhamos no colégio. Ela está acima do peso e tem enfrentado uma ondade bullying com algumas crianças na escola. Trabalhamos para torná-la uma pessoa mais segura,elevando sua autoestima.

Ou seja, uma de minhas pacientes sofre bullying enquanto a outra tende a estar do outrolado dessa equação.

– Denise continua me chamando de gorda.– Aquela Denise é uma idiota – diz Márcia, vermelha de raiva. Agarrando sua bolsa bem

firme à frente do peito, com os braços cruzados, fica claro o quanto ela se desgasta com asituação pela qual a filha está passando. Mas logo que vê minhas sobrancelhas levantadas,corrige rapidamente a ofensa à garota, mas não de maneira menos ríspida. – Quero dizer, ela éuma criança imatura, eu tenho pena dela.

Temos conversado sobre como a reação dos pais pode influenciar o modo como os filhoslidam com as situações de crise, e para que Camille seja uma criança empática e pacífica,devemos fazê-la enxergar as pessoas com olhos mais tolerantes. Mesmo que isso se mostre muitodifícil para uma criança de oito anos que só quer enfiar terra na calcinha de Denise, como elaprópria já me informou há algumas consultas.

– Mas ela é mesmo uma idiota, tia Mel – Camille choraminga, pegando uma bala vermelhado pote de vidro que fica em cima da minha mesa. – Ela é uma tremenda babaca.

Eu me surpreendo com o vocabulário feroz da criancinha bochechuda a minha frente, mascompreendo sua raiva. É um pesadelo sentir-se impotente diante de uma situação como essa.

– Que tal fazermos o exercício que lhe ensinei para se acalmar?Obediente, junto comigo ela começa a inspirar pelo nariz e soltar pela boca. É importante

que a raiva não a impeça de agir com inteligência.

Proponho à Camille um exercício de desabafo, que consiste em desenhar em uma folha embranco todos os sentimentos ruins que estão dentro dela. Ela põe muito empenho na atividade,colocando até a língua para fora.

– Agora, fofinha, nós vamos destruir esse papel.– Ah não, não! – ela protesta, mastigando a bala e apontando para o papel. – Eu levei muito

tempo desenhando tudo isso.Ela levanta a folha e me mostra um desenho de uma menininha com o coração partido em

dois ao lado de uma segunda garota com o rosto todo riscado e um “x” no lugar do coração.– Escute, Ca... esse papel representa o seu coração. Você gasta muito tempo pensando

coisas ruins a respeito das crianças da escola. E eu queria muito que você percebesse que o certoseria lidar com esses sentimentos ruins, e deixar somente coisas boas aí dentro de você. Você nãoquer deixar coisas ruins dentro do seu coraçãozinho, quer?

Ela pisca.– Vamos fazer esse exercício para diminuir a importância dos comentários negativos de

outras pessoas na sua vida – digo a ela, mas explicando também à mãe, que procura manter-secalada e dar espaço à filha.

– Mas como? – Camille me pergunta, os olhinhos brilhantes.– Picotando! – anuncio, levando até ela uma tesourinha cor-de-rosa sem ponta. Ela fica

encantada.– É assim que se faz, olha só – demonstro a ela, cortando eu mesma um pedaço do papel. –

Agora é sua vez.Ela começa a cortar com a tesoura o que ela deu o nome de papel ruim para o coração.– Você pode tentar sem a tesoura também, picotando-o com as mãos.Camille coloca muito empenho na atividade. Essa é uma técnica que ajuda a criança a se

acalmar, além de mostrar a ela a importância de certas pausas para lidar com o sentimento deraiva. Pessoas com temperamento nervoso tendem a agir no calor do momento, então fazemosatividades que procurem reverter esse comportamento.

– Isso foi divertido! – ela pula na cadeira.– Sente-se melhor? – pergunto a ela.– Acho que sim – ela coloca o dedinho no queixo. – Quer dizer que posso fazer isso com

Denise?– Não! – dizemos eu e a mãe dela em uníssono.– Não picotar Denise – diz ela, revirando os olhinhos. – Quis dizer com o que sinto quando

ela me chama de gorda.– Isso! – respondo, aliviada de meu exercício ter dado certo, e de não tê-la transformado em

uma assassina-mirim. – Assim você pode reciclar o que tem aí dentro de você, deixando apenascoisas boas.

– Maneiro, tia Mel – ela diz, e pega mais uma bala do potinho.Márcia já entrou em contato com os responsáveis de todos os coleguinhas que andaram

zombando da filha e eles prometeram ensinar bons modos a seus filhos. Eu mesma tenho vontadede dar uma lição de moral nessas crianças. Mas não posso deixar o destino de minha paciente nas

mãos dos outros, por isso trabalho com ela para que consiga resolver os seus conflitosemocionais internos, e para que ame seu corpo do jeito que ele é, enquanto sua mãe resolve osconflitos com as outras crianças que, devo admitir, são bem idiotas.

Depois de mais conversa e muitas balas consumidas, Camille sai feliz da vida de mãosdadas com sua mãe, uma mulher baixa e gorda, na faixa dos 40 anos de idade, com os cabelostambém curtos, deixando à mostra uma cintura avantajada.

Doutor Júlio me encontra no corredor, com um ar animado, que deve estar muito emcontraste com o meu, e me estende um copo descartável.

– Café?– Sim, obrigada – pego o copinho pequeno e tomo um grande gole.– Parece estar precisando, hein? – ele diz, com aquela cara de Papai Noel.– Está tão óbvio assim? – forço um sorriso.Ele coloca as mãos para trás e abre um sorriso semelhante ao meu.– Só para quem olha pra você.– Não é nada demais.– Tem ido à terapia? – ele pergunta, sabendo do meu histórico de anos e anos ao lado de

uma psicóloga, mas não exatamente do porquê.– Ah, tenho sim – minto descaradamente. A última coisa de que preciso é de Júlio pegando

no meu pé. Já me basta o Leo. – Desculpe, Júlio, mas preciso ir andando. Tenho umcompromisso.

– Um compromisso bom? – ele me pergunta, esperançoso.– Ah, sim, com certeza. Super – minto novamente.Entro na minha sala, agarro minha bolsa e mais uma vez deixo o bom velhinho imaginando

o que há de errado comigo, enquanto Lorraine, praticamente uma estátua de pedra mexendo emseu celular com um copo de café ao lado, não ergue os olhos nem nota nossa presença.

Levanto a cabeça para o céu a fim de coletar o máximo de sol que consigo desse temposeminublado, e caminho até a estação de metrô mais próxima, pouco preparada para o que vem aseguir. Experimentar vestidos sempre foi meu passatempo preferido, mas não dessa vez.

O ateliê da costureira da noiva do Rafa localiza-se do outro lado da cidade, na Zona Nortede São Paulo. E é por isso que, quando chego lá, toda esbaforida e suada depois de um metrô edois ônibus no horário de pico, já são quase cinco da tarde, e temo que ela feche as portas antesque eu possa entrar. Mas a secretária, com ar bastante animado, libera minha entradaprontamente, depois de eu ter que explicar, com dor no coração, que sou uma das madrinhas doRafael.

– Cinco minutinhos e ela já vai te atender – ela diz com um sorriso enorme, em contrastecom a cara de tédio da minha própria secretária.

Exatos cinco minutos depois uma mulher na faixa dos sessenta anos, negra, com um batomvermelho nos lábios e um vestido que ajusta-se perfeitamente a sua silhueta encorpada apareceno corredor e me chama pelo nome. Levanto-me e a sigo em direção ao que parece ser o paraíso:uma sala todinha em tons pastéis rosa-claro e amarelo, o pé-direito alto, com uma poltrona

delicada com ar colonial no canto, uma mesa dourada cheia de muffins de chocolate e um bulede chá, e cortinas brancas na janela que vão do teto ao chão.

– Muito prazer, meu bem, sou Iolanda – ela aperta minha mão com firmeza, suas unhas deum azul bem vivo. O cabelo afro adorna seu rosto, e o vestido tubinho azul marinho dá a ela aelegância de uma mulher de negócios. – É a melhor amiga do noivo, correto?

– O prazer é meu. E sim, sou a própria...– Então aqui está o seu vestido – com um gesto delicado, ela aponta para uma capa preta de

vestido pendurada em um gancho no alto da parede rosa de bolinhas brancas de um dosprovadores. Abro o zíper.

E é oficial: Alana me odeia. Não consigo acreditar nos meus olhos. O vestido foi feito noestilo sereia, e apenas uma mulher sem pneuzinhos ou sem paladar poderia vesti-lo. E essa, comcerteza, não sou eu.

– Eu não posso usar isso – me pego dizendo à Iolanda, que está anotando alguma coisanuma prancheta delicada na cor azul-claro. – Eu não tenho corpo pra isso!

– Não seja boba, meu bem – ela para de escrever. – Você pode usar o que quiser.– Mas eu tenho barriga – digo, quase histérica.– Que bom! Afinal para onde é que a comida iria? – ela dá risada, com o mesmo senso de

humor de Júlio.– Você não está entendendo. Só aquelas que não colocam comida no corpo podem usar um

vestido como esse.– Meu bem, essa é a primeira prova, certo? Se não ficar bom, eu redimensiono para o seu

tamanho.Redimensionar? Para o meu tamanho?Sentindo-me uma baleia orca, experimento o vestido verde-claro. Devo admitir que ele é

um modelo maravilhoso: todo em seda, ombro a ombro, e mais escuro e esvoaçante na parteinferior. Não tem pedrarias, nem rendas. É básico, porém muito elegante.

Fecho o zíper na parte lateral. Mas não sei se culpo os chocolates ou a noiva pela formacomo ele fica no meu corpo.

Para meu completo horror, fico ridícula nele. Ele está apertado demais na cintura, deixandoevidente minha gordura corporal. Eu quero chorar! Tenho certeza de que se Denise pudesse mever agora, estaria me chamando de gorda também.

– Ficou bom, meu bem?Abro a cortina bruscamente, revelando a natureza do meu desespero.– Oh, minha nossa – são as palavras de Iolanda. – Acho que o noivo me passou as medidas

erradas. Mas é para isso mesmo que serve a primeira prova.Não sei se Rafael errou as medidas, se me medi errado eu mesma ou se engordei de lá pra

cá. Mas uma coisa é certa: não tem como eu emagrecer daqui pra lá!E se eu continuar comendo os chocolates importados da casa do Leo, definitivamente não

vou entrar nesse vestido.A costureira junta as mãos, demonstrando mais animação do que o momento merece, e pega

sua fita métrica, pronta para o trabalho.

– Vejo você em quinze dias, Melissa – ela acena para mim da porta branca e decorada doateliê, fita métrica na mão, depois de ter medido até os dedinhos do meu pé.

Mas não preciso me desesperar. Esse casamento pode nem mesmo acontecer!Retorno ao metrô ainda lotado e vou para casa me sentindo derrotada. Não sei como posso

levantar a autoestima de uma garotinha de oito anos se não consigo nem mesmo manter a minhade pé.

É sexta-feira e passo o meu tempo planejando a próxima consulta com Camille, enquantoespero Pati chegar aqui no consultório para irmos embora juntas.

Isso porquê... adivinhem só?Que rufem os tambores...Hoje à noite iremos a uma balada.Sim, nem eu mesma acredito numa coisa dessas. Faz muito tempo desde que eu não boto os

pés numa balada. Tem alguma coisa sobre esse tipo de evento que me dá nos nervos, se eu forbem sincera. São muitas pessoas juntas para o meu gosto, dançando freneticamente ao som demúsicas que eu desconheço. Mas eles parecem saber muito bem o que estão fazendo com seuscorpos, enquanto eu fico lá, sentindo-me uma pateta total por me mover de forma esquisita.

Digamos que eu não seja a melhor das dançarinas.Mas é a despedida de solteiro do Rafa e todos fomos convidados. E o melhor de tudo: Alana

não foi. Ha! Tudo bem que é porque ela está na própria despedida de solteira, mas mesmo assim.Eu estarei lá, e ela não.

Que é o único motivo de eu ter aceitado ir, para começo de conversa.Lorraine já foi embora. Seu horário é das nove às dezoito, e ela faz questão de segui-lo à

risca, principalmente na hora da saída.Agarro as moedinhas que junto na gaveta e saio para comprar um café na cafeteria a duas

quadras daqui, já que ainda falta uma hora para a Pati sair do hotel e Lorraine não está mais aquipara preencher nosso estoque de café.

A essa hora, o sol já se pôs e a avenida Paulista assume um ar ainda mais agitado. Osprédios comerciais com janelas iluminadas continuam apinhados de funcionários trabalhando atétarde da noite, misturando-se agora aos jovens – de idade ou de espírito – com roupas descoladasprontos para passar as próximas horas no bar mais próximo.

Ao caminhar de volta com meu café em mãos, quase derrubo a bebida quente em mimmesma quando, dentro de um restaurante bem ali adiante, vejo um rosto familiar e meu estômagose embrulha. É Augusto, o ex-namorado de Pati. O rabinho preso no alto da cabeça e a barba noestilo lenhador balançam enquanto aquele tremendo cretino conversa com uma garota bembonita com cara de modelo e uma pinta enorme no queixo.

Ele está com a mão na coxa dela, enquanto a pobre coitada inclina-se sobre ele, toda

sorridente. Daqui a quanto tempo ele irá chifrá-la também?Não sei e nem quero saber. Augusto só faz com que eu me lembre de outro casal que eu

recentemente também vi num restaurante. De modo que prefiro esquecer o que vi.Aliás, qual é a minha com esse negócio de ficar vendo pessoas em restaurantes? Seria um

dom? Deus! Pareço uma stalker.Paro numa livraria a caminho do consultório e compro também uma agenda nova. Ela é

rosa, de bolinhas brancas e estava na promoção por apenas R$8,90. Um verdadeiro achado! Euprecisava de uma agenda que não tivesse o nome de Alana estampado pra lá e pra cá, para que eupudesse inaugurar um novo capítulo na minha vida sem ser lembrada sobre ela a todo momento.

Ao sentar-me em frente ao notebook novamente, guardo a agenda na gaveta, finalizo aatividade de Camille e começo a bolar novas maneiras de atrair a clientela ao meu consultório.

Pati chega às oito da noite, totalmente atrasada. Eu já estava ficando cansada de fracassarcomo empreendedora, e com fome também. Saímos correndo para o metrô, depois de eu checarquatro vezes se a porta da minha sala estava devidamente trancada.

Não comento nada sobre ter visto Augusto no restaurante. Não faz sentido deixá-la chateadasem motivo. Eles já não têm mais nada um com o outro faz tempo.

Já que Pati mora no mesmo condomínio que meus pais, decidimos nos arrumar juntas nacasa deles. Por isso trago comigo uma mala do tamanho de um bebê elefante.

Carlos, o porteiro, não está em nenhum lugar para ser visto e concluo que hoje deve ser seudia de folga. E meu dia de sorte.

– Querida, vai viajar pra onde? – diz mamãe assim que abre a porta para nós e avista minhamala.

Luli vem correndo em minha direção e dá pulinhos frenéticos na minha perna. Infelizmenteela é muito pequena, e seus pulos não passam do meu joelho. Que bom que ela ainda está poraqui! Quem sabe dessa vez eu esteja errada sobre mamãe?

Damos oi para o meu pai e seguimos as três para o meu antigo quarto: Pati e Luli e eu.– Com quantas garotas você acha que o Leo fica hoje? – digo, passando rímel nos cílios.– Se ele não parar de mergulhar no perfume, nenhuma – ela responde, fazendo biquinho e

aplicando o blush alaranjado nas bochechas. – Já falei pra ele não passar demais.– O que há de errado com o perfume dele? – digo, procurando o batom vermelho na

nécessaire. – Eu adoro aquele cheiro.Começo a aplicar o batom quando sinto o olhar de Pati sobre mim.– Huuuuumm... – ela cantarola.– O que é? – digo, sem entender.– Você acabou de dizer que adora o cheiro do Leo.– Não. Não! – digo, estendendo o dedo indicador para ela. – Eu adoro o cheiro do perfume

do Leo!– E tem diferença? – ela pergunta, com um sorriso irônico nos lábios.– Quer parar? – fecho a nécessaire com força. – Tem muita diferença.– Sei.

– Joguei pedra na cruz, por acaso? Quer parar de insinuar coisas assim? Pelo amor de Deus!É o Leo! Sabe-se lá com quantas pessoas ele já ficou na vida.

Terminamos de nos arrumar e saímos do quarto equipadas de botas compridas até os joelhose saias curtíssimas (que eu não possuía, mas Pati fez questão que eu tirasse minha saia detamanho regular, alegando não se tratar de uma igreja o local para onde estávamos nosdirigindo).

– Querida, você não acha que essa blusa fininha vai protegê-la do frio, acha? – diz minhamãe ao notar meu top. – Não se deve colocar a aparência acima da saúde.

Falou a mulher com um corte de cabelo novo, maquiagem perfeitamente aplicada e batomnos lábios. Ela pode até enganar papai, mas a mim ela não engana.

– Não é para proteger, tia – diz Pati, toda à vontade. – É para atrair os caras.– Pati! – dou um tapa no braço dela.– Ela tem razão, Melissa! – diz mamãe. – Já está na hora de você arranjar uns... caras.O fato de ela ter dito isso no plural me preocupa.– Mãe, eu não estou indo procurar um cara – digo e olho para papai de canto de olho, que

está sentado em sua poltrona observando nosso diálogo por cima dos óculos.– Ah, mas essa atitude não vai te arranjar um namorado nunca, filha... – quem diz isso, para

a minha total incredulidade, é o meu próprio pai.– Papai! – exclamo.– Ah, querida. Não seja assim, vamos – diz mamãe, segurando-me pelos ombros. – Seu pai

tem razão. Você é bonita demais para não ter um namorado. Aposto que vários rapazes caem aosseus pés e é você quem não dá bola.

– Bom, tem o Carlos – diz Pati, com um sorriso matreiro.Meu rosto se contorce todo.– Vira essa boca pra lá!– Hum... Carlos? Quem é Carlos? – mamãe cantarola. Papai só observa.– Ela está falando do porteiro. Não liga pra ela, mãe – olho feio para Pati.– Você é interessada por Carlos? – mamãe é um misto de confusão e constrangimento. –

Não sabia que ele era o seu tipo.– E ele não é, pelo amor de Deus! Ele poderia ser meu pai!– Não me ofenda – diz papai, que voltou a assistir TV.– Bom... – mamãe ainda parece confusa. – Tenho certeza de que existem vários outros

rapazes da sua idade que estão caidinhos por você.Se ela soubesse o quanto está errada...Quase sinto pena dela.Quase, porque depois disso ela vai até o quarto e volta com um casaco roxo na mão, que

parece pertencer a um esquimó. É quase maior do que ela. Até Luli se assusta e se esconde atrásdo sofá.

– Ah, mas eu não uso isso nem morta! – digo e pego minhas chaves, pronta pra sair.– Vai usar sim! Está frio lá fora, querida.– Mãe, esse casaco é enorme. Ele é inflável, por acaso?

– Lembre-se, tia... os caras – diz Pati.– Ah, é mesmo! Está bem – ela se lembra da história toda e então joga o casaco no sofá,

como se fosse dar má sorte ou algo assim. – Então divirtam-se. E vê se arranja um namorado,Melissa.

– Amo vocês – digo, quando a porta do elevador se fecha.O som está distante, mas eu juro que consigo escutar mamãe dizendo algo como “seja o que

Deus quiser”.Ótimo! Era tudo o que eu precisava. Expectativas superaltas para hoje à noite.Talvez mamãe preferisse que eu voltasse grávida de gêmeos a solteira.

Depois de enfrentar uma fila de vinte minutos, finalmente entramos na Zity, uma dasbaladas mais conhecidas da Rua Augusta. E com isso eu não quero dizer que ela seja boa, nãomesmo. O lugar é apertado e escuro, e eu posso jurar que tem um cheiro esquisito. Pati diz que écoisa da minha “cabeça de velha” e prometo a ela que vou me esforçar mais para gostar do lugar.Mas percebo que fiz uma promessa que não conseguirei cumprir depois de chegarmos aosegundo andar da balada abarrotada de gente.

Pegamos nossas bebidas e caminhamos até o centro da pista de dança, onde Pati começa ainteragir com um carinha vestindo uma blusa brilhante, ambos embalados ao som de Rihanna. Eeu fico no canto, balançando de um lado para o outro, embalada ao som de... Bem, ao som deRihanna também, afinal estou no mesmo lugar que eles.

Já se passaram três músicas e eu fico torcendo para que a bebida comece a fazer efeito etorne essa noite atípica um pouco mais agradável. Já estava quase desistindo de tentar quandofinalmente vejo um rosto conhecido entre as luzes piscantes.

– Leo! – grito e aceno para ele efusivamente, que vem acompanhado de um amigo. –Finalmente!

– Não me diga que estou atrasado – diz ele e me abraça. O cheiro do seu perfume me mostraque Pati estava certa. Ele realmente precisa passar um pouco menos.

– Cinco minutos – digo, olhando para o relógio de pulso.– Vocês chegaram! – Pati vem em nossa direção rebolando no ritmo da música, pelo jeito,

incapaz de parar de dançar por um segundo que seja.– Onde será que está o Rafa? – grito na orelha dela.– Ele vai se atrasar.– Como é que você sabe? – digo. Por que sou a última a receber essa informação?– O Leo me contou por mensagem agora há pouco.– E por que é que não me falou nada?– Mas é claro que eu falei. Falei assim que entramos.Eu tinha me esquecido de que decidi simplesmente ignorar tudo o que Pati me dizia quando

entramos na balada, pois eu não estava conseguindo ouvir porcaria nenhuma por causa do

barulho da música. Então parei de prestar atenção e simplesmente concordei com a cabeça paratudo o que ela dizia.

– Ah – digo, consternada. – É verdade.Leo nos apresenta ao amigo que trouxe consigo. Ao que parece, ele é seu amigo em comum

com o Rafa. E provavelmente é do mesmo tipo que Leo, que tornará essa noite uma caçada aalguma menina que pareça difícil. O nome dele é Alessandro. E vou aproveitar para deixar umacoisa bem clara: Alessandro está de parabéns! Ou talvez eu devesse cumprimentar os pais deAlessandro, que conseguiram esculpir com perfeição esse deus grego do Olimpo e dar depresente ao mundo. Tenho que me controlar para não olhar diretamente para o Alessandro, paranão machucar minhas córneas com tanta beleza.

Ele tem os cabelos espetados e é bem forte. Muito forte mesmo. Cada braço dele me lembrauma bigorna, o corpo assemelhando-se a um triângulo invertido. Mais um pouco e ele vira oJohnny Bravo.

– Está gostando da festa? – me pergunta ninguém menos do que Alessandro, o Deus Grego,o que quase me faz cuspir meu drinque nele.

– Humm... estou sim. Ha ha – digo, sem graça e possivelmente sorrindo demais.– Eu também – ele diz e acompanha meu sorriso (mas o dele não é excessivo e nem

maníaco. É largo e muito bonito).– Eu não sou muito de baladas – por que diabos eu disse isso? Ele vai achar que sou uma

chata.– Não? – diz ele. – Mas você dança tão bem – Ele fala isso bem próximo à minha orelha e

segura levemente a minha cintura. Depois se afasta novamente e dá um sorriso de lado.Ele está dando em cima de mim? E por que diabos ele acha que pode pegar na minha

cintura?Leo me observa do outro lado da nossa semirrodinha. Depois puxa Pati e começa a dançar

com ela. Ele rebola muito. Até demais. Ele desce até o chão e começa a rir junto com ela.– Você faz o que de faculdade? – Alessandro pergunta, de novo colado na minha orelha.

Será que ele não entende o conceito de espaço pessoal?– Eu já sou formada – digo. – Psicologia.– Sério? – ele diz, desinteressado, parecendo pouco se importar se sou psicóloga ou

curandeira. – Mas você dança tão bem.E o que é que isso tem a ver?Será que essa conversa tem alguma coerência? Então me toco de que ele deve estar bêbado

e portanto não falará nada com nada. Deve ter bebido antes de vir para cá com o Leo, queprossegue com seu rebolado maluco do outro lado da roda. Sim, eles estão bêbados.

– Obrigada – digo, e tento dançar um pouco menos desengonçada.– Vem comigo – subitamente, Leo me puxa pela mão e me afasta da rodinha.Olho para trás quando Pati se aproxima do Deus Grego Apreciador de Boas Dançarinas,

enquanto ele me observa ressentido por me afastar. Mas seu ressentimento não dura muito, não.Não quando ele percebe a bunda de Pati indo ao seu encontro.

– Por que foi que me puxou? – pergunto ao Leo, assim que encostamos no balcão do bar.

– Nada. Eu só queria uma cerveja e não queria vir sozinho – ele dá de ombros.– Sei. Então pede essa daqui.Aponto para o cardápio e ele pede a cerveja que eu escolhi, mesmo sabendo que eu não

gosto de cerveja e nem conheço o gosto de nenhuma delas.– Você não está dando bola pro Alexandre, está? – ele diz, de repente.– Alexandre? Achei que o nome dele fosse Alessandro.– Não, é Alexandre. Por que você achou que fosse Alessandro? – ele pergunta, como se eu

fosse imbecil.– Porque você disse “Ei, meninas, esse é o Alessandro” – retruco.– Não, eu disse “Ei, meninas, esse é o Alexandre”.– Não disse, não.– Por que eu diria “Alessandro”, quando o nome do cara é Alexandre? – ele diz. – Enfim,

não importa. Você não está dando bola pro Alessandro, está?– Quer dizer, Alexandre. Alexandre! – ele se corrige e começamos a rir.– Não, é claro que não – Minhas bochechas ficam quentes. Brinco com as unhas, fitando a

própria mão. – Nem para o Alexandre nem para o Alessandro.Tomo um gole da cerveja dele. Credo, que gosto de xixi!– Mas, hipoteticamente falando... e se eu estivesse? – pergunto e o olho de canto de olho.Será que ele ao menos se recorda que já tivemos uma conversa parecida antes? Talvez não.

Foi há muito tempo. E eu prefiro que ele não se lembre, de qualquer maneira.– Ele não é um cara legal?Leo adquire uma expressão carrancuda.– Hipoteticamente falando? Não – ele dá um gole na cerveja. E depois outro gole e mais

outro. – Ele não é seu tipo.– E como é que você sabe?– Porque ele é igualzinho a mim.– Ah – digo, sem graça. Minha barriga gela. – E o que isso significa?– Significa que você não estaria interessada. Vai por mim.– Ele disse que eu sou uma ótima dançarina, se é o que você quer saber.– Mel, você dança muito mal.– Eu não quero nada com ele, Leo! – digo, gargalhando. – O cara é muito sem noção.– Sim, ele é – ele diz e me puxa pela mão de volta para a pista.– Além disso, é impossível ele ser um problema meu agora – grito em meio ao barulho ao

ver uma garota peituda debruçada no Alessandre Alexandro, a língua enfiada na goela dele.– Melhor assim – diz Leo. – Ele é problema dela agora.E antes que eu possa analisar se aquilo ali teria sido um ato de ciúme, escuto uma barulheira

danada vinda do canto da pista.– Aeeeeee! –alguns caras gritam quando Rafa aparece no topo da escada. Ele levanta os

punhos para o alto, como sinal de vitória.E que vitória! Estamos em um concurso de beleza essa noite? Só pode ser!

Rafa veste uma camisa de linho branca e calças cáqui dobradas na barra. A barba feita e ocabelo penteado para trás me dão uma sensação maravilhosa na boca do estômago, mas a aliançaque vejo pela primeira vez em seu dedo anelar me dá uma muito ruim.

– Ei, você! – Rafa vem me cumprimentar. Ele me abraça suavemente e sinto seu cheirinhode sabonete. – Você veio!

– Mas é claro que vim! – coloco a mão no coração e adquiro um ar solene, aproveitando adeixa para relembrá-lo da nossa conversa no shopping. – Como alma gêmea da sua vida passada,eu não perderia por nada!

– Eu estou muito feliz por você estar aqui. – ele me aperta ainda mais, o rosto em meuscabelos.

Toma essa, Alana.Antes que eu possa dizer mais alguma coisa, ele é puxado pelos amigos do trabalho e fico

com a sensação de que ele está sempre sendo tirado de mim.Dançamos, conversamos e bebemos todos em uma roda enorme, formada por amigos do

trabalho do Rafa, duas primas dele que têm mais ou menos a nossa idade – incluindo Bárbara, dequem Leo faz questão de se distanciar –, Pati e Leo.

E eu, que tento controlar a quantidade de vezes que meus olhos pousam no Rafa. A últimacoisa de que preciso é de alguém percebendo que eu sinto alguma coisa pelo noivo.

Depois de um tempo, os amigos de trabalho do Rafa o puxam para o piso inferior da balada,começando a demonstrar alterações em seus sistemas nervosos, provocadas pela bebida. Os querestaram no piso de cima continuam na roda, só que agora toda desfigurada e estranha, porémcom uma imutável característica: Bárbara continua olhando insistentemente para Leo de maneiraquase maníaca.

A noite dá uma guinada quando bebo alguns (muitos, realmente muitos) goles da cerveja doLeo. E da outra cerveja depois dessa. E da caipirinha que ele pediu em seguida. A música parecemuito melhor do que as anteriores, e eu começo a entender o sentido de o lugar estar apinhado degente. Eu quase gosto disso.

Minha cabeça roda um pouco e começo a dançar com Pati, depois com o Leo e até mesmocom o Alê – que é como decidi chamar Alexandre – já que no final das contas não sei qual o seuverdadeiro nome. Quando finalmente começa a tocar uma música que eu conheço.

– Ei! – digo, colocando a mão na boca. – Eu sei cantar essa! “Rebola, rebola até ochãoooo...”

Eles parecem gostar do meu novo estado de espírito e eu aprecio o quanto eles meapreciam.

– Leo! – digo e o abraço, rebolando de um jeito esquisito e incapaz de parar de dançar, igualà Pati no começo da noite.

– O que é, doidinha? – ele diz, segurando-me pelos ombros para que eu não esbarre naspessoas da roda atrás de nós.

– Eu amo baladas!– Ah, é mesmo? – ele solta uma gargalhada alta.

Eu estou muito próxima do rosto dele, mas nem mesmo me importo, pois fico muitopróxima ao rosto de Pati e de qualquer pessoa que se aproxime de mim. Ao que parece, a Melissabêbada é uma alma muito carinhosa.

– Seu cheiro é muito bom – digo ao Leo e noto Bárbara me olhando com uma cara muitofeia. – Acho que a Bárbrrra vai me matar.

Em um determinado momento, rebolo como uma verdadeira dançarina (amadora) e docanto da pista Rafa encara meu passinho de dança inusitado. Faço um joinha para ele, queretribui o gesto.

Alê começa a sorrir para mim e eu viro a cara para o outro lado. Mas quando volto aobservá-lo, ele ainda está me olhando.

– Já te falei que você dança superbem? – ele pergunta, aproximando-se.E eu, bêbada do jeito que estou, começo a dar risada de cada comentário que ele faz sobre a

minha dança horrível. E acho que ele entende isso como um sinal verde, porque de repentecomeça a dançar comigo. Só aí percebo que ele provavelmente vai tentar me beijar a qualquermomento. O que é que eu tenho que fazer pra me livrar dele?

Olho para o Leo, sibilo as palavras “me tire daqui”, mas ele levanta as sobrancelhas e vira-se de costas. Localizo Pati num canto escondido da pista, mas ela está ocupada demais beijandoum carinha que se parece muito com Augusto, e eu não vejo outra alternativa se não dizer aoAlecsandro:

– Zai daqui.– Ah, não seja assim – ele diz e faz cara de cachorrinho.– Naum! Votscê naum é meo tipo – digo, as palavras meio carregadas no álcool.– E qual é o seu tipo, então? – ele continua, tentando me agarrar pela cintura.Inconformada com tamanha cara de pau, empurro-o com força e levanto o dedo do meio.– Naoun ouviu naum?Viro as costas e saio à procura de Leo, pronta para ralhar com ele por ter me deixado

sozinha com seu amigo imbecil, quando vejo que ele está ocupado demais falando alguma coisaaparentemente muito engraçada no ouvido de Bárbara, que ri sem parar encostada na parede comaquela coisa curta que ela chama de vestido.

De repente me canso dessa balada. O problema desses lugares é que eles são completamenteimprevisíveis. Assim como o Leo. Quando você menos espera, ele está se agarrando com garotasestranhas em vez de permanecer ao lado das próprias amigas.

Vou para perto de Pati, que a essa altura já parou de beijar o carinha desconhecido quesumiu na multidão e passamos os próximos dez minutos fazendo comentários sarcásticos emaldosos a respeito do Leo e de como ele é um babaca e mau amigo.

Rafa volta para o andar de cima e de volta ao andar de baixo tantas vezes que parei de tentarficar perto dele. Às vezes ele encostava ao nosso lado, tentava uns passinhos de dança – eletambém dança muito mal – ou fazia algum comentário sobre como o lugar estava lotado ou sobrecomo eu precisava conhecer Alana, o que por sua vez tirava de mim a vontade de tentar ficarperto dele também.

O efeito da bebida começa a passar e Rihanna não tem mais a mesma graça que tinha antes.O horário na tela bloqueada do meu celular indica que já são três e meia da manhã. Quero irembora e esquecer que perdi meu tempo nessa balada fedorenta, mas preciso esperar Pati parapodermos pegar um táxi juntas, pois não consigo bancá-lo sozinha.

– Por que você sempre beija o mesmo tipo de caras? – pergunto para a Pati. – Esse aí eraigualzinho ao Augusto. Cruz-credo!

– Er... eu não sei – as bochechas dela ficam vermelhas, e ela desconversa. – Não é aquiloque o Leo sempre diz? “Quando alguém se joga pra você de um jeito tão óbvio, você agarra”, oualguma idiotice assim?

Eu pisco, sem entender o porquê de tanta agitação da parte dela. Ela me puxa pelo braço.– Ai, quer saber, vamos embora?– Graças a Deus –Jogo a mão para o alto, quase sambando de felicidade, mesmo que aqui só

toque música pop.Leo ainda está passando seu tempo com a prima do Rafa, de conversinha com ela na parede.

Pati vai até lá, lhe dá um beijo na bochecha e avisa que estamos indo embora. Os olhos de Leoencontram os meus e ele parece envergonhado. E devia estar mesmo! Já que literalmente virou ascostas para mim.

Eu apenas aceno com a cabeça para ele, sem nenhum entusiasmo, sorriso ou intenção de lhedar um beijo de tchau. Viro as costas enquanto ele me fita e saio em direção às escadas.

Só digo uma coisa: minha mãe vai ficar decepcionada quando eu voltar para casa semnamorado.

– Você virou as costas pra mim sim! – digo ao telefone, comendo o chocolate que o Leo meenviou via motoboy, a fim de fazer as pazes comigo. – Você acha que pode me comprar comchocolates?

– Você está ou não está comendo os chocolates?– Claro que estou! Não sou estúpida! – digo, a boca cheia de chocolate meio amargo. – Mas

isso não quer dizer que eu te perdoe.Mas o que é que posso fazer a não ser perdoar quem me dá comida? Morrer de fome?

Decido que é melhor deixar pra lá. Afinal, o chocolate foi uma escolha sábia da parte dele.– Eu achei que você estava... sabe como é... interessada no Alexandre. Não quis ficar no seu

caminho – ele diz, do outro lado da linha.– Tá legal, deixa pra lá.Estou ansiosa demais para dar atenção a isso. Hoje é o dia da segunda análise do teste para

casais que estou aplicando em Alana, e não sei o que esperar do resultado dessa etapa, devido aofiasco da última análise. Bom, fiasco para mim, de qualquer maneira. Ótimo pra eles.

Depois daquela balada infernal, onde provavelmente todo mundo meteu a língua na boca dealguém menos eu, com grande desespero percebi que meu tempo está acabando, afastando aindamais meus planos de ter um relacionamento.

Um mês já se passou, faltando apenas 26 dias para o casamento. E já que não vou tercoragem de gritar “eu” quando o padre disser “se tem alguém que deseja impedir essecasamento, que fale agora...”, essa é a minha chance de descobrir se o Rafa é ou não o homem davida da Alana. Se não, terei que me calar para sempre!

Em vista disso, tanto faz em quem Leo dá em cima na parede da balada, ou com quem Patirebola. Eu tenho coisas mais importantes na cabeça.

– Eu vou descobrir! – digo ao Leo, quando mudamos de assunto.– Não descobriu até agora. Por que seria diferente?– O teste ainda não acabou. Tenha um pouco de fé, sim?– “Fé” não é o mesmo que colocar mandinga no casamento dos outros.– Ei! Não é o que estou fazendo – digo, meio ofendida.

Ele não vê que tudo o que quero é esclarecer essa história, sem interferir à toa na vida deninguém? Eu só preciso ter certeza de que não estou perdendo nada. Pois não há como perderalguém que nunca foi meu. Eu só preciso descobrir: o Rafa era mesmo para ser dela?

Esse comentário do Leo me torrou a paciência.Se ele não tomar cuidado, terá que me mandar mais uma caixa de chocolates.Dessa vez, belgas.Abro o arquivo de Alana no computador e corro os olhos nas anotações do teste um. Pulo

uma página e digito a palavra “Presente” no centro da folha. O cursor do teclado pisca na tela,evidenciando o fato de que ainda não sei o que digitar. Ainda.

“Eles se admiram?”É só isso. Simples assim. É nisso que consiste o teste do presente, e é só o que preciso

analisar na devolutiva de hoje. Uma das coisas mais importantes quando se trata derelacionamentos é se existe admiração entre o casal. Sem admiração, a mágica pode acabar. Masum casal que se admira se mantém firme ao longo dos anos.

Minha paciente mais uma vez chega no horário exato da consulta. Se ela não tomar cuidadovai acabar me deixando mimada desse jeito.

– E então? Conseguiu? – pergunto a ela assim que abro a porta, sem mais delongas.Dei à Alana algumas instruções a respeito do teste, mas ela podia obter a resposta da forma

que desejasse.E eu disse a ela que não, sexo não contava.– Superconsegui! – ela diz.Durante essa semana, eu fiquei me perguntando se seria possível alguém tão correto quanto

o Rafa admirar as coisas maldosas que Alana fala ou o modo como ela encara a sociedade comosendo uma mera classificação de beleza ou jeito de se vestir. Mas aí me lembrei de que eu nãotenho que me perguntar nada. E que – facada no coração – sou somente a aplicadora do teste.

– E a que conclusão chegou? – esfrego as mãos e preparo-me para a resposta.– Que eu sou hilária! – ela junta as mãos, maravilhada.– O que disse?– Que eu sou in-crí-vel, Melissa.– Como assim?– É, ele me adora – ela coloca uma mecha do cabelo loiro atrás da orelha. – Relacionamento

cem por cento à prova de balas, amiga.Amiga?– Ele disse que sou a mulher mais incrível que ele já conheceu.Também não precisa humilhar, né?Meu estômago se revira como se eu tivesse ingerido comida estragada.– E, humm... por que diz isso?– Porque ele me adora do jeitinho que eu sou! – Alana continua, jogando os cabelos para o

lado, sem me esclarecer porcaria nenhuma.– E com base no que você diz isso? – digo, os dentes semicerrados.Eu não podia estar mais confusa nem se minha mãe me dissesse que sou adotada.

– Bom, deixe-me explicar, não é?Ah, você acha?– Estávamos conversando a respeito dos nossos conhecidos em comum... – ela diz e minha

garganta aperta. Graças a Deus eles não sabem que sou uma conhecida em comum!– E ele ria de tudo o que eu falava. A cada coisa que eu dizia, ele gargalhava sem parar! –

ela diz, balançando as mãos agitadamente enquanto fala.– Como o quê, por exemplo?– Como quando eu explicitei o que há de errado com o modo como a prima dele se veste.

Ou com as minhas imitações sobre o pai dele, “Ahn... senhoras e senhores... ahn... gostaria deagradecer a todos, ahn...”

Alana bate a mão na mesa, rindo sem parar.– Ou sobre como ele escolheu uma camisa azul horrorosa para nosso casamento no civil –

ela tem uma expressão divertida no rosto. – E que vou trocar na loja imediatamente.O que tem de errado com a camisa que escolhemos?– E o mais incrível de tudo foi que ele se soltou de um jeito que eu nunca tinha visto antes.

Ele estava tão relaxado, sabe?Então ele já conhece esse lado mesquinho da personalidade dela e gosta? E ainda por cima

ela fez relaxar a personalidade rígida dele?Agora é sério, pessoal! Cadê as câmeras escondidas?– E então, ele me olhou de um jeito tão carinhoso, tão terno, que aproveitei a deixa para

perguntar... “Você me admira?”.Fico em silêncio. Depois desse balde de água fria, nem quero mais saber o que ele disse.

Mas preciso prosseguir, pela integridade do teste. Droga de teste!– Foi aí que ele falou que me admira tanto que não sabia como me explicar, e então eu disse

“bom, é melhor você tentar”. E aí ele começou dizendo que admira meu jeito espontâneo, quegosta de sermos tão opostos um do outro. Que adora que eu tenha opiniões próprias e que nãotenha medo de contradizê-lo quando é preciso. E aí passamos a noite inteira rindo e trocandodetalhes das nossas despedidas de solteiro, foi o máximo...

Então, além de ele admirá-la, eles são supercomunicativos, têm diálogos divertidos e dãomuita risada juntos?

Ela só pode estar brincando com a minha cara!Com todos esses ingredientes para um relacionamento perfeito, só me resta uma última

análise: o futuro.

É sexta-feira e me preocupo com o fato de que o meu círculo social contenha apenas trêsamigos. Ainda bem que Pati nos convidou para uma reuniãozinha tranquila na casa dela hoje ànoite. Apenas Rafa, Leo e eu. Haverá comida e caipirinhas, e isso é o suficiente para que eu mearraste até o condomínio dos meus pais.

Leo e eu fomos os primeiros a chegar. Coloco minha bolsa no armário de entrada doapartamento, uma porta de tamanho regular que dá acesso a um cubículo minúsculo cheio decabides para pendurar casacos. Coloco na mesa os petiscos e bebidas que eu trouxe. E Leo sejoga no sofá vermelho de três lugares da mãe de Pati, que está em um jantar romântico hoje ànoite, deixando o apartamento para a filha.

O negócio é que fazia um bom tempo que nós não fazíamos isso. Só nós quatro, jogandoconversa fora na casa de alguém e enchendo levemente a cara, sem falar em Alana, casamento ouos sinos da igreja. Então não é à toa que passei uma camada extra de perfume e maquiagem, erealmente caprichei nos cabelos, fazendo cachos e prendendo-os em um rabo de cavalodesorganizado no topo da cabeça.

Rebolo no ritmo da música que toca no rádio da sala e inclino-me para alcançar o outro ladoda mesa, posicionando simetricamente os potinhos de petiscos. Mas quando volto à posiçãonormal, noto Leo me observando discretamente.

– Que é? – digo.– Nada, ora.– Você estava me olhando – pressiono.– Nada, eu só estava pensando...Humm... então ele realmente estava me olhando? Dou um passo em sua direção, com

curiosidade.– Se você vai adotar um gato quando perceber que é tarde demais para começar a namorar,

porque vai estar com 90 anos quando parar de correr atrás do Rafael.– Ah, cale essa boca! – jogo uma almofada com estampa psicodélica nele, que dá risada e

joga outra em cima de mim, acertando em cheio minha bochecha. – E vê se deixa os gatos empaz.

– Parem com isso! – Pati interrompe nossa guerra de almofadas. – Minha mãe morre deamores por essas almofadas.

Não sei como. Elas são muito feias.– Desculpe – dizemos os dois, envergonhados, mas lançando sorrisos de cumplicidade um

para o outro.É incrível como Leonardo me faz parecer uma criança imbecil, assim como ele. Se

fôssemos crianças, papai diria que ele não é uma boa influência para mim. Para falar a verdade,papai diria isso hoje em dia também.

O interfone do apartamento toca, e Pati se apressa até ele.– Alô! Ah, sim, pode deixar ele subir.Ela coloca o aparelho no gancho e caminha até nós.– O porteiro avisou que o Rafa acabou de chegar.Olho instintivamente no espelho com formato de triângulos e coloco uma mecha solta do

cabelo atrás da orelha, sorrindo para mim mesma.– Leo, me ajuda a pegar os copos? – pergunto para o sujeito preguiçoso estirado no sofá, a

fim de me ocupar com alguma tarefa que faça meu coração desacelerar um pouco. E tarefasdomésticas com certeza não aceleram o coração de ninguém. A não ser de nervoso.

Pegamos os copos coloridos de vidro e saímos da cozinha de ladrilhos azuis, cuja porta ficado lado oposto à entrada do apartamento. Chegamos em frente à mesa da sala quando Pati abre aporta e uma expressão de espanto toma conta de seu rosto. Ela olha para mim, e então olha para aporta de novo, lentamente dizendo:

– Oi, Rafa. Humm... – ela engole a saliva e estende a mão. – E... olá! Você deve ser Alana.Eu quase derrubo os copos de vidro no chão. O quê? Alana? O que ela está fazendo aqui?

Ai, meu Deus, ela não pode me ver!Com os olhos arregalados, começo a empurrar Leonardo de volta para a cozinha, mas não

há tempo. Pati não consegue mais impedir a entrada deles no apartamento sem que pareçaestranho, e de repente tenho o vislumbre da ponta do pé do Rafa passando pelo rodapé da porta.Eles estão entrando!

Não dá tempo, não dá tempo! Não podemos mais ir até a cozinha sem que nos vejam, ou eladescobrirá tudo. E agora?

Pati faz um obstáculo humano na passagem de Rafa, e sem pensar duas vezes, puxoLeonardo pelo colarinho da camiseta e entramos os dois silenciosamente no armário que fica aolado da porta de entrada do apartamento.

O que eu não esperava, contudo, era que dentro do closet da casa de Pati haveria tantasbugigangas sem utilidade alguma para mim nesse momento em particular, como uma vara depescar, vários casacos com um cheiro suave de mofo, um binóculo e alguns sapatos espalhados.E isso é só o que consigo enxergar (ou tatear), porque está bem escuro aqui dentro, sendo asfrestas pequeninas na porta do armário as únicas coisas que clareiam o ambiente.

O espaço apinhado de coisas me dá nos nervos.E se daqui de dentro, na situação em que me encontro, ainda consigo pensar pelo ponto de

vista do meu TOC, talvez eu devesse mesmo procurar uma psicóloga.

Mas, lá fora, as vozes deles me distraem.Olho pelas frestas e vejo minha melhor amiga conduzindo o casal maravilha até o sofá,

enquanto sorrateiramente vira de cabeça para baixo o porta-retratos com uma foto de nós duas.Que droga fui fazer! Era tudo o que eu precisava essa noite.Rafa pergunta a que horas Leo e eu chegaremos. E Pati adquire um semblante abobalhado,

sem saber o que responder.– Humm... com licença? – Leo sussurra e me cutuca no ombro. – Mas por que é que eu

estou aqui dentro?E é só então que me ocorre: não havia necessidade alguma de puxar Leonardo para dentro

do armário comigo. Quer dizer, qual seria o problema de ele estar lá fora, com eles? Ele nãoprecisa se esconder. Eu é que preciso!

Como sou burra! Com o espaço muito mais apertado pela presença desnecessária do corpode Leo, noto pela primeira vez que quase não há espaço para nós dois, que estamos colados umde frente para o outro, e meus braços – para minha total descrença – ainda se apoiam no peito doLeo, desde quando eu o empurrei para cá.

Minha respiração torna-se entrecortada.Tiro minhas mãos dele.– Humm... – sussurro de volta. – Desculpe. Eu não pensei direito. Agora shiiiiiu.Coloco um dedo nos lábios dele, sinal universal de “cale a boca”, mas meu rosto começa a

ficar quente por uma parte de mim estar tocando os lábios dele. Leo não diz nada. Afasto minhamão na mesma hora, as bochechas pegando fogo. O perfume dele embala meu coração em umritmo alucinado.

O problema com os armários é que eles não foram feitos para que as pessoas se escondamneles. Pergunto-me porque cargas d’água os amantes escolhem lugares como esses para seesconder, dada sua total incompatibilidade com o corpo humano. Posso perguntar para Augusto,se eu cruzar com ele por aí.

– Eu acho que eles vão se atrasar – Pati abre um sorriso amarelo.Sinto um frio na espinha.– Sem problemas. Eu só estava ansioso para que vocês conhecessem Alana. Já estava na

hora.Já estava na hora? Já estava na hora? A hora já passou há muito tempo!, tenho vontade de

gritar do armário. Bom, não de apresentá-la a mim, particularmente. Mas para os outros! Não énormal apresentar a namorada aos amigos somente quando ela já se tornou sua noiva,principalmente se esses amigos serão os padrinhos do dito casamento.

– Eu também estava super superansiosa para conhecer vocês! – Alana começa a falar comaquela sua típica empolgação, mexendo os bracinhos sem gordura para cima e para baixo, semque uma grama de pele se mova.

Minha boca adquire um gosto amargo.Como sempre, Alana não para de falar – por que é que eu sempre fico presa na posição de

escutá-la? – e Rafa dá gargalhadas espontâneas ao ouvi-la contar a história de como seconheceram.

Minha garganta se aperta. Uma coisa é ouvir Alana falar (e falar, e falar) sobre o casamentoou sobre o noivo. Mas outra completamente diferente é ouvir os dois juntos. Risadas altas ecoampela sala e atingem o armário onde estamos.

– Mas foi ela quem veio até mim – diz Rafa, entre as risadas.– Mas só porque você estava me encarando a noite inteira! Ou você estava dando em cima

de mim ou ia me sequestrar. E eu tinha que ir até você para descobrir o que era.E mais risadas altas. Pati também ri, bastante à vontade com a situação, constato.– Rafael me disse que você faz faculdade de Moda. Eu achei incrível! – Alana puxa assunto.– Sim! – Patrícia relaxa visivelmente – Estou no último ano.– E você já trabalha com isso?– Na verdade, não. Trabalho em um hotel como concierge até encontrar uma vaga na minha

área.– Você já ouviu falar da Pietré Belle?– Se já ouvi falar? É só a marca de sapatos mais tendência do mercado! – Pati diz.– Pois meu tio é o dono da Pietré. Posso te apresentar a ele no casamento.Ah, mas é claro que ele é o dono. Blá-blá-blá, olha como eu sou rica, blá.– Você faria isso? – Pati empina o nariz para frente e cola a mão no joelho de Alana.– Mas é claro! – ela diz. – Isso não será problema.– Mentira! – Pati se inclina mais ainda para frente. – Você está brincando?– É sério! – Alana dispara um sorriso orgulhoso.Elas trocam risadinhas e Pati agradece um montão de vezes com um “não acredito, isso

seria incrível”. Rafa fica encantado com essa troca de afeto, agarrado ao ombro da noiva.Leo me cutuca novamente, ao que eu prontamente reviro os olhos.– E aí? – ele sussurra, seu rosto a poucos centímetros do meu.– E aí o quê? – sussurro de volta.– Quantos gatos você vai querer?Faço “shiu” para ele novamente, prestando atenção no único gato que eu quero, que no

momento está bem ali na sala, com os braços ao redor de outra mulher.– Alana parece ser bem legal. E é bem bonita também – ele diz.Fico brava com esse comentário, mas quando me viro para encará-lo, vejo que ele colocou o

binóculo velho nos olhos e seguro a risada.– Para com isso! – sussurro.– Eu não sei, vou verificar – Pati responde a algo que Rafa pergunta, que graças ao Leo não

consegui ouvir.Então ela pega o celular.– E aí, Mel? Cadê você? – ela finge uma ligação comigo e olha nervosamente para o

armário. – Não acha que já deveria estar AQUI?Sei que ela está tentando se comunicar comigo através dessa ligação falsa (e muito mal

interpretada, devo acrescentar), mas ela deve estar louca se acha que vou sair desse armário.Primeiro porque não quero “conhecer” Alana coisíssima nenhuma. E segundo porque tem coisamais ridícula do que a cena sem sentido de duas pessoas saindo de um closet?

Faço que não com a cabeça, mesmo que ela não possa me ver. O que ela espera? Que eusimplesmente saia daqui agora e diga “surpresa”?

– Está bem. Certo, certo. Humm... então tchau – Ela desliga a ligação imaginária e volta aencarar o casal curioso sobre o meu paradeiro. – Ela não vai poder vir.

– Ah, que pena – Alana finge interesse, mas não tão bem assim, já que está verificando seupróprio celular, minimamente interessada na conversa.

– E por que não? – Rafa pergunta.– Porque ela... humm... está com dor de barriga.O QUÊ? Eu estou com o quê?– Filha da puta! – sussurro.Leo tem um ataque de riso sem som, chacoalhando os ombros pra cima e pra baixo.Ela não podia ter inventado outra coisa? Qualquer outra coisa?– Minha nossa! – Alana tira os olhos do celular, o rosto contorcido de nojo.– Sim, pobrezinha... – Pati diz, prosseguindo em sua saga não intencional de me humilhar. –

Parece que pegou virose ou algo assim. Então ela, humm... ela não quis vir até aqui para nãopassar virose à noiva.

Ela parece muito orgulhosa da desculpa que inventou para mim, sem perceber que acaboude dizer para esse cara maravilhoso que estou com caganeira.

– Mas ela sabia que eu vinha? – Alana pergunta ao Rafa, percebendo a incoerência nahistória de Pati. – Ela disse não querer passar virose a mim, mas achei que minha visita seria umasurpresa.

– Ah, sim... – Pati se adianta, percebendo que cometeu uma falha no processo de mentir. –Eu quis dizer o noivo. Ela não quis passar virose para o noivo.

Encosto a cabeça na porta do armário, desacreditada da minha situação. O que minha vidase tornou? Eu me escondo em armários agora? Eu culpo pacientes pelo meu fracasso amoroso? Éculpa dela que estou neste cubículo tão apertado?

Não, eu culpo o Leo a respeito disso. Ele tinha mesmo que ocupar tanto espaço?– Ai! – sussurro mais alto do que deveria quando ele tenta mudar de posição, coisa que ele

já deveria ter notado, é simplesmente impossível. – Pare com isso!Por sorte, ninguém pareceu notar a nossa interação aqui dentro. A música de fundo que toca

no rádio da sala ajuda a abafar as nossas vozes.– E quanto ao seu amigo? – Alana quer saber. – Leandro?– É Leonardo, amor – diz Rafa.– Ele deve estar na cama com alguma garota por aí – Pati responde de pronto, certamente

muito mais confiante com sua nova postura de mentirosa.Rio o mais baixo que consigo, ao que Leo sussurra bem baixinho:– Por que vocês sempre assumem essas coisas a meu respeito?– Ah, para vai, Leo! Eu não vou nem comentar. Agora shiu!– Eu não estou sempre com alguma garota por aí.– Só quando não está dormindo, né? Quer dizer, talvez assim também. Agora fique quieto!– Então pare de...

– Você está exagerando! – interrompo-o. – Agora shiiiiiu!– Eu estou exagerando? Foi você quem decidiu se esconder em um armário! – ele esquece

de sussurrar.– Você ouviu isso? – Alana diz e olha ao redor da sala.Prendo a respiração, e posso jurar que Leo faz a mesma coisa. A essa altura, a situação

ficaria ridícula para os dois. E até meio psicopata.– Eu podia jurar que ouvi vozes – Alana vira o rosto na direção do armário, depois focaliza

a porta da cozinha.– Er... acho que foi a TV – Pati improvisa, os olhos bem abertos.Eles todos fitam a televisão da sala.– Mas a TV está desligada – Rafael observa, como se Pati fosse louca.– Ah, sim... – Pati dá uma risada nervosa. – Quis dizer a do quarto. Só um minuto, vou

desligar.Ela sai da sala em direção à TV imaginariamente ligada no fundo do apartamento, fuzilando

o armário onde estamos, e eu sei que ela vai querer me matar por deixá-la nessa situação.– Ela é bacana, não é? – Rafa comenta com Alana, dando-lhe um abraço de urso, quando

Pati sai da sala.– Ela é legal... mas aquele nariz? – ela fala mais baixo, abre um sorriso sacana e dispara: –

Deveria seriamente considerar fazer uma cirurgia plástica.– Alana, amor...– Não, não... não estou falando por mal – ela se defende, gesticulando, toda inocente. –

Estou falando para o próprio bem dela! Pelo amor de Deus! Já pensou em quantas vezes ela bateo nariz sem querer por aí, sendo ele tão grande?

Eu estou chocada. Mais chocada do que Alana estaria se eu saltasse de dentro desse armárionesse exato momento e sentasse no colo dela. Estou chocada e horrorizada, porque não acreditoque ela tenha falado assim da minha melhor amiga, e ainda por cima na casa dela!

Para o meu total horror, uma risadinha escapa dos lábios do Rafa.Meu queixo cai.Olho para o Leo que, pelo que a luminosidade do ambiente me permite ver, também ficou

incomodado. Rafa acabou de dar risada da cara de Pati, sua amiga de mais de dez anos? Pelascostas dela?

Com isso, confirmo o que minha paciente me disse. Rafael realmente conhece apersonalidade dela... e a considera hilária.

A culpa é toda de Alana. Papai diria que ela é uma má influência também!– “Alana parece ser uma garota legal”, hein? – sussurro no ouvido de Leo, irônica.Legal uma ova!Pati volta para a sala, ingênua, sem ter a mínima ideia de que sua orelha deve estar pegando

fogo.– Prontinho, desliguei – ela faz cara de brava para o armário. Depois agarra uma vasilha de

cima da mesa. – Que delícia, vocês trouxeram sobremesa.

– É um doce gourmet que mandei minha chef de cozinha fazer. Você vai a-mar! – Alanadiz, cruzando as pernas com uma expressão esnobe no rosto, sem vergonha alguma do que dissesobre a minha melhor amiga.

– Incrível! E o que tem no doce?– Não sei. É algo com doce de leite – Alana responde, voltando a mexer no celular.– Hum, que delícia. Perguntei porque não posso comer nozes. Sou alérgica.– Aham – Alana diz, sem levantar os olhos.– E sabe como é, né? Alergia é uma coisa de louco. Uma hora você está bem, e em outra

você está completamente inchada...– Aham – Alana repete.Pati continua falando, e nem mesmo posso culpar Alana por não prestar atenção. Pati tende

a falar um bocado às vezes.Eles trocam algumas histórias por mais uns vinte minutos, comem meus petiscos enquanto

minha barriga ronca de fome dentro deste armário empoeirado e se deliciam com o doce no final.Mas, graças a Deus, decidem que é melhor deixarem o encontro para uma outra hora, já quesupostamente Leo e eu lhes demos o maior cano.

A porta se fecha atrás deles e eu empurro Leonardo armário afora de maneira mais bruscado que imaginei.

– Desculpe! – falo depois de ambos cairmos no chão, tropeçando em um sapato velho queestava dentro do armário.

– Tudo bem – ele diz, com um sorriso nos lábios.– Vocês me pagam, seus idiotas! – Pati diz, ignorando minha mão estendida para que ela me

ajude a levantar.Em vez disso, vira as costas, sai andando em direção ao sofá de veludo e diz:– Tive que me virar sozinha, não tive? Agora é a vez de vocês.Leo e eu “nos viramos sozinhos”, levantando-nos mutuamente do carpete, e nos sentamos

ao lado dela.– Desculpe. Não quis te colocar naquela situação – toco a mão dela. – Mas acredite quando

digo que foi muito pior para mim, que tive que ficar colada no Leo o tempo inteiro.– Quase no meu colo, você quis dizer – ele dá um sorrisinho maroto.– Não precisamos entrar em detalhes – dou uma cotovelada nele.– Por que raios Leo entrou com você no armário?– Er... eu não sei. Fiquei desesperada e, quando vi, já estávamos lá – digo, enquanto ela me

olha esquisito. Acendo e apago o abajur com estampa de ziguezague que fica na mesinha ao ladodo sofá. – Ainda não acredito que ela apareceu aqui. O que achou de Alana?

– Eu não sei, não... me dói admitir, mas ela me pareceu ser bem legal. Você ouviu tudo? Elavai me apresentar para o tio dela dono de uma marca fabulosa de sapatos!

– Humm... é mesmo? – Leo e eu trocamos um olhar rápido.A última coisa que eu quero é magoar Pati. E se isso significa ter que encobrir Alana,

escondendo o que ela disse pelas costas da minha amiga, então que seja.

Agora eu entendo! No começo, todo mundo tem a impressão errada de Alana. Pensam queela é “uma garota bem legal”, e eu nunca entendi de onde veio essa concepção.

E é aí que está: até me tornar psicóloga dela, eu achava a mesma coisa. Por que motivo euviria a não gostar de alguém que sai por aí me comprando cardigãs? E foi só quando me torneisua terapeuta e escutei suas confidências que percebi o quanto ela pode ser maldosa.

E você não sabe como uma pessoa realmente é, se ela é maldosa pelas suas costas, não émesmo?

Não quero nem saber o que ela diz de mim e dos meus suéteres por aí.– Sei que não é o que você queria ouvir... – Pati diz, se desculpando.– Está tudo bem.– Estou me sentindo mal – minha amiga tem lágrimas nos olhos, e abana o rosto com as

mãos.– Está tudo bem, de verdade. Não estou chateada com você nem nada.– Não, eu estou me sentindo muito mal mesmo! – ela diz, o rosto transformando-se num

tom avermelhado. – Fisicamente mal.Ela começa a tossir.– Ai, meu Deus! – levanto do sofá em um pulo.Leo bate nas costas dela e olha para mim.– Acho que ela está engasgando.– Não... alergia... nozes… – ela profere as palavras que consegue.– Temos que levá-la ao hospital! – eu constato a obviedade da situação, totalmente

apavorada.Leo ajuda Pati a se levantar e faz menção para que eu abra a porta, o que eu faço

prontamente – ou o mais rápido que consigo, dado que não funciono muito bem em situações decrise.

Agarro a sobremesa assassina, a fim de mostrar ao médico o que ela ingeriu antes da reaçãoalérgica. Não sei se isso é realmente necessário, pois não conheço o procedimento para crisesalérgicas. Mas não custa nada levar.

Voamos em direção ao carro (Leo voou, literalmente, porque caiu dos cinco degrausrestantes das escadas em direção à garagem. Mas acho que isso não vem ao caso).

O fato é que descemos os seis andares que nos separavam do subsolo de escada, pois oelevador estava parado em um andar acima de nós e não descia de jeito nenhum. Podíamos ouvirvozes de crianças, pancadas e pulos. Lei de Murphy, e coisa e tal.

A essa altura, eu já estou suando feito uma porca, e cheiro minhas axilas para ver se odesodorante ainda está desempenhando seu papel enquanto andamos apressados para o carro.Leo olha para trás e vê minha situação ridícula, toda suada, correndo, segurando a mão de Patienquanto minha cabeça está curvada para cheirar a minha axila esquerda. Deprimente.

– Que nojo! – ele diz, ofegante.– Cale a boca! – digo. – É tudo culpa de Alana.– Que você está fedendo?

– Eu não estou fedendo! E é culpa dela a alergia. A tal chef magnífica deve ter colocadonozes na receita.

Aposto que a chef é blogueira também.Mas Alana não tem realmente culpa nisso tudo. Ou tem? Quer dizer, ela não sabia que Pati

tinha alergia a nozes quando mandou preparar a sobremesa. Mas ela poderia ter prestado atençãoquando Pati anunciou, em alto e bom som, que tinha alergia à porcaria das nozes.

E aí a sola da minha sapatilha se solta, ficando para trás na garagem. E eu culpo Alana portudo isso. Nesse momento, eu culpo Alana pela crise no Congo!

– Droga! – pego a sola que ficou no chão, enquanto vou mancando até o carro. – Ela vai mepagar por isso.

Essa sapatilha me custou R$120,00!– O quê? Vai se vingar de Alana? Já não é o que você está fazendo? – diz Leo, após ajudar

Pati a entrar no carro (é impressão minha ou ela está com os lábios maiores que os de AngelinaJolie?).

– Estou falando do preço da sapatilha! E eu não estou me vingando de ninguém! – bato aporta do motorista do carro que meus pais me emprestaram no momento do desespero. – Estouauxiliando Alana. Não estou errada em ajudar minha paciente a tomar a decisão certa.

Seguimos mudos até o hospital, que fica a dez minutos de distância do prédio. Não tenho amenor vontade de conversar com quem não me compreende, e ele... bem, ele eu não faço ideiade por que está tão quieto assim, mas também não quero saber.

Pati entra na área de emergência e ficamos sentados na sala de espera. O bom dasemergências é que você, definitivamente, não tem tempo de pensar profundamente em maisnada. Nem em como Rafael e Alana parecem se dar muito bem, e nem em como Alana pareceser uma garota legal.

Saímos do hospital.O médico disse que Pati está bem, mas que foi ótimo trazê-la rapidamente, pois sua alergia

é bem forte. Apesar de ele não ter demonstrado interesse em provar a sobremesa (toma essa,Alana!), o médico disse que, como Pati não sentiu o gosto das nozes, provavelmente havia poucaquantidade na receita. Mas que isso comprova mais uma vez o quão forte é a alergia da minhamelhor amiga.

Ela foi liberada e a deixamos em casa aos cuidados de sua mãe, que voltou imediatamentedo jantar romântico, que acabou indo para o beleléu, horrorizada com o que aconteceu com suaprincesinha ruiva.

Bem, é culpa dela mesmo, se é o que querem saber. A alergia a nozes veio nos genes.Graças a Deus estávamos no mesmo prédio que meus pais, que me emprestaram o carro

deles prontamente, dado que Leo veio de táxi e a mãe de Pati tinha saído com o sedan preto queela e a filha possuem.

Estando motorizada, decidi dar uma carona ao Leo até o prédio dele, como retribuição atodas as caronas que ele já me deu até hoje, mesmo com todos os seus pedidos contrários.

– Você não precisa me deixar em casa, garota. Tô falando sério.– Eu sei que não preciso. Mas eu quero! Gostaria de retribuir o favor que me fez no outro

dia.– Qual dos mil? – ele diz, quebrando o gelo que esteve entre nós desde o comentário dele

sobre minha suposta vingança.– Justo.– Você precisa de um namorado – ele diz.Piso no freio sem querer, e ambos nos deslocamos bruscamente para frente.– Pra quê?– Pra que ele alivie o meu lado e faça esses favores a você.– Cale a boca – dou um soco fraco no braço dele. – Mas... desculpe se te peço muita coisa.– Não é tão mal assim.Olho para o sorriso dele e percebo: Leo está presente em todas as situações de crise da

minha vida. Será que ele é meu anjo da guarda, ou a pessoa que as causa?

– E você? – focalizo os olhos nos dele quando paramos no farol vermelho. – Por que nuncanamorou?

– Por que quer saber? – ele não desvia o olhar da rua a nossa frente.– Porque eu também nunca namorei, e quero saber se há algo de errado comigo.O farol abre e dou partida no carro.Ele começa a rir.– Tá certo. É uma pergunta válida – ele dá um soquinho fraco no meu braço. – Você parece

mesmo ter sérios problemas.– Fala sério, Leonardo.– Eu não sei, tá legal? – ele parece na defensiva.A rua escura é apenas iluminada pelos postes alinhados na calçada. Os carros ainda

passeiam para lá e para cá, pois em São Paulo (e numa sexta-feira), esse horário significa hora desair, e não de voltar para casa.

– Não vejo futuro com essas garotas com quem eu saio – a voz dele quebra o silêncio. –Não quero um relacionamento com elas.

Meu coração se afunda um pouco. Qual o problema dele com namoro?– Você é muito teimoso! Não é possível que não tenha encontrado alguém que valesse a

pena.– Eu sou teimoso? E você, então?– O que tem eu?– Você faz a mesma coisa! A diferença é que não sai com ninguém.– Quem disse que eu não saio com ninguém??? – aperto a buzina sem querer.Ele me encara.–Tá legal, eu não saio com ninguém faz tempo – digo, trocando a marcha. – Só acho que

ultimamente não tenho encontrado ninguém por quem valesse a pena lutar.– Pois é. Eu também não.– Touché!– Somos mais parecidos do que você quer admitir – ele diz. – Ambos somos seletivos

quando se trata desse assunto.– Não é bem assim.– Por que acha que nunca namorou, então?– Eu não sei – dou um suspiro. – Talvez meu timing não seja muito bom. Eu sempre chego

tarde demais, se é que você me entende.Mas acho que ele não me entende. Não completamente. Ele não faz ideia, não é? Ele nem

ao menos suspeita.– Pois eu acho que não. Nós dois somos muito perfeccionistas nessa questão. – ele diz. – Ou

apenas azarados.– Eu sou azarada. Você é um solteiro incorrigível.– Não é assim – ele passa a mão nos cabelos e dá risada. – Só que não vale a pena me

arriscar quando estou perfeitamente bem do jeito que estou.

Virando a esquina da rua dele, estaciono na vaga mais próxima aos portões do prédio queconsigo encontrar. Um mendigo está deitado no chão, coberto por um edredom surrado, em cimade uma caixa de papelão.

Uma agonia cresce dentro de mim. Pobre homem! Enquanto alguns têm uma casaquentinha, ele tem apenas um edredom surrado e um pedaço de papelão. Eu me culpoinstantaneamente pela sorte que tenho.

Enquanto pondero entre dar algum dinheiro a ele, ou a não dar dinheiro nenhum – poisdizem que esmola não é a melhor solução para o problema –, Leo interrompe meus pensamentos.

– Você vai querer isto? – ele pergunta.– Humm... não.– Então venha comigo – diz ele, abrindo a porta do carro e agarrando a enorme bandeja com

a sobremesa de Alana, que já verificamos estar em perfeitas condições. Menos para Pati, é claro.– O senhor tem alergia a nozes? – Leo pergunta ao homem e sorri para mim.– Não tenho – diz o homem, estendendo as mãos para pegar a bandeja.– Então aqui está. Ainda tem o pacote de pratos e talheres descartáveis que lhe dei semana

passada?– Ô, se tenho. Obrigado. Deus te abençoe, filho – o homem diz, com olhos doces.Leo troca mais algumas palavras com ele, com um ar tão carinhoso que faz meu coração se

apertar e eu me pego sorrindo feito uma boba. Leonardo anda em minha direção.A descartabilidade desses pratos e talheres estranhamente se assemelham às mulheres com

quem ele sai, descartáveis para ele também. Ele chega perto de mim e não resisto. Pergunto.Não, não sobre as mulheres. Sobre os pratos.– Você deu pratos descartáveis a ele?– Para o Benedito?Não compreendo por um instante. Leo vira a cabeça para o homem sentado no papelão,

comendo feliz sua sobremesa de doce de leite com nozes. E aí eu entendo. Leo não fez issosomente uma vez. Ele deve ajudar esse homem com frequência.

– Benedito? – faço que sim com a cabeça. – É um nome bonito.– Sim, também acho. Ele é um bom homem. Não gosto de vê-lo assim.– E você sempre o ajuda?– Sempre que o vejo por aqui. Mas ele nem sempre está. Às vezes fica em um abrigo.– Ah... – coitado do Benedito. Meu peito se aperta de novo.Mas a dor em meu coração desfalece ao ver o carinho que Leo tem com esse homem, seu

cuidado amenizando a vida sofrida que ele deve levar.Talvez Leo não seja tão sem coração assim.Caminhamos até o meu carro e a luz amarela do poste incide sobre o rosto do Leo. Ele olha

para mim e sorri. Tiro a chave da bolsa e abro o carro. Apesar do frio, de repente a noite ficoumuito agradável.

Só que aí Leo olha para o lado e arregala os olhos. Eu acompanho o seu olhar e uma garotamuito bonita, de pernas compridas e cabelos castanhos, vestindo calça skinny e top preto vem emnossa direção. Eu normalmente chegaria à conclusão de que ele estaria avistando seu próximo

alvo. Mas ele parece tão assustado que forço-me a inspecionar melhor e finalmente reconheço dequem se trata.

– Ah, não! – diz ele, virando de costas para ela e de frente para mim.– Se deu mal.É Bárbara.Ela se aproxima mais ainda do prédio. O que é normal, se pensarmos pelo ângulo de que ela

mora aqui. Mas Leo parece querer sumir da face da Terra.Estamos um pouco distantes, mas ela pode reconhecê-lo a qualquer momento. Qualquer

mulher consegue reconhecer seu alvo. E essa daí perece ser bem determinada.– Ela me mandou um milhão de mensagens. Droga, não quero que ela me veja agora!– Então entra no carro, ora! – falo baixo.Ele faz menção de entrar, mas nesse exato momento ela olha em nossa direção.E, no desespero, Leo faz uma coisa terrível. Terrível!Ele me puxa pela cintura... e me beija!Eu sinto meu sangue esquentar até começar a ferver. Meu coração dispara, minhas pernas

bambeiam e temo não conseguir ficar de pé.O que ele pensa que está fazendo?Estou beijando o Leo? Ai, meu Deus! Eu? Beijando o Leo?Isso é muito errado. Erradíssimo.Só que o problema é o seguinte: de repente, eu esqueço de tudo a minha volta. Eu me

esqueço do Benedito, da mulher de pernas compridas, do meu carro aberto, da onda de crimesem São Paulo. E se eu não estivesse tentando ao máximo suprimir essa sensação maravilhosa queé estar beijando o Leonardo, eu poderia jurar que gosto muito disso. A única coisa em queconsigo pensar é nele, em suas mãos segurando minha cintura com força, no porquê de ele nãoter me beijado antes, e no porquê de ter me beijado agora.

Se eu for totalmente honesta aqui, sempre imaginei como seria beijá-lo. Mas pensei que issoseria algo que eu passaria a vida toda sem saber como é.

A sensação da boca dele na minha é quente e macia, e ele aperta a minha cintura fazendocom que eu queira chegar ainda mais perto, e mais perto ainda e...

E então, com um sobressalto, eu volto a enxergar tudo. Benedito nos encarando, o carroatrás de nós, tudo. Ele parou de me beijar e eu fico desnorteada.

Minhas bochechas ardem na pele.Ai, céus! Por que é que fui retribuir o beijo dele?Meu coração bate tão forte que tenho medo de isso ser visível. Olho para o meu próprio

peito. Não, deixe de ser idiota! É claro que não dá pra ver seu coração se movendo!Tento me recompor enquanto Leo olha para a portaria do prédio, checando o paradeiro de

Bárbara, mas ela não parece estar mais por aqui. Será que ela está escondida em algum arbusto,ou até mesmo dentro do meu carro, planejando me dar uma surra por causa do beijo?

Mas quem devia levar uma surra é o Leo! O que foi que ele fez?Ai, meu Deus, o que foi que ele fez?Sabe quanto tempo eu vou levar para esquecer esse beijo agora?

Ele não tinha esse direito. Eu levei muito tempo para enterrar certos sentimentos, que elenão podia ter me feito lembrar.

Ele não tinha o direito de me fazer sentir de novo!Rafa nunca pode saber disso. Ai, não! Se ele descobrir, nunca vai querer se meter no meio

de nós dois. E o fato é que não existe “nós dois”.Tento me acalmar. Somos apenas bons amigos. E quando um amigo precisa da sua ajuda

para, digamos, despistar a ex – se é que podemos sequer chamar Bárbara de ex-alguma coisa –,nós o ajudamos. E se isso significa deixá-lo me beijar e me fazer sentir, então que seja.

Aja naturalmente.Só que sempre que penso em agir naturalmente, imagino desenhos animados olhando para o

alto e assobiando. Então continuo com a mesma cara de tonta quando ele finalmente olha paramim e diz:

– Olha, me desculpe, tá legal? Uau, me desculpe mesmo! – ele passa a mão na nuca e olhapara o próprio pé. – Eu não pensei direito. Não queria que ela me visse, e não pensei direito.Você está bem?

– Sim... sim, sim, sim. Óbvio! Ótima – digo, suspeitando que ninguém no mundo deve terdito tantos “sins” seguidos assim sem parecer idiota.

Eu disse aja naturalmente, e não como uma droga de uma adolescente!Benedito está se divertindo com a cena, nos olhando e mastigando. Olhando e mastigando.– Eu entendo – balanço as mãos. – Foi igual à coisa toda com o armário. Amigo é pra essas

coisas! – dou um soquinho no braço dele.– Certo! – diz ele, ainda me segurando pela cintura. Quando ele percebe, se afasta

imediatamente de mim.Isso para ele não deve ter sido nada. Nada! Ele está acostumado a sair por aí beijando

garotas e coisas, tudo o que se move. Para ele, isso deve ter sido uma coisa completamentenatural. Que presunçoso!

Mas, em primeiro lugar, uma coisa completamente natural não envolve a língua dele dentroda minha boca, pra cima e pra baixo. E, em segundo, não se deve sair por aí dando beijos emtodos os seus amigos. Você pode pegar herpes.

Ai, meu Deus! Será que eu peguei herpes?Será que devo perguntar? Não, acho melhor não.– Certo! – sorrio sem piscar, com os olhos vidrados.– Eu não deveria ter te beijado – ele passa as mãos no rosto.– Deveria, sim. Quer dizer, não! – corrijo-me rapidamente. – Não deveria! Não deveria

meeeesmo. Mas tudo bem – dou um segundo soco no braço dele, desta vez um pouco mais forte.– Ai.Ficamos em silêncio por um tempo e o clima está ficando um pouco tenso. Até Benedito

deve ter percebido, pois se virou para o outro lado e fingiu estar dormindo. Ou dormiu mesmo,eu sei lá.

Nenhum de nós sabe o que dizer e nenhum dos dois se olha nos olhos.

O pior de tudo é perceber uma coisa mais terrível ainda: eu queria que ele me beijasse denovo. Que ele simplesmente me puxasse para perto de si e repetisse a dose. Agora.

Cadê a porcaria da Bárbara quando se precisa dela?Mas ele não faz isso. Mortificada, procuro a chave do carro na bolsa, mas não consigo

encontrá-la.– Droga! – arranho o dedo no zíper da bolsa, durante a fúria da busca pela chave perdida.

Por que nunca encontro o que quero nessas drogas de bolsas? Eu encontrei até um absorventeaqui dentro, mas não encontro a porcaria da chave.

– Quer ajuda? – ele pergunta, e toca minha mão sem querer. E então afasta a mão de novocomo se pudesse pegar uma doença ao encostar em mim. Ou, quem sabe, para evitar que umagarota como eu imagine que esse beijo poderia nos levar a um relacionamento sério.

– Não, não precisa.Encontro a maldita chave. Mas não dentro da bolsa, e sim na fechadura do carro. Me

lembrei de que eu já tinha aberto o veículo e a chave estava na porta esse tempo todo. Perda detempo, vergonha à toa.

Eu me despeço do Leo com um aperto de mãos.– Nos vemos... humm... depois – digo, abrindo a porta.O único problema é que, nervosa do jeito que estou, tento entrar no carro pela porta do

passageiro, quando deveria estar na porta do motorista.Caramba, esse dia não acaba nunca?Tenho duas opções aqui: a) ir até a outra porta, sem graça, revelando meu verdadeiro estado

emocional ou b) mostrar que sei o que estou fazendo.E escolho, estupidamente, a última opção.Entro no carro pelo banco do passageiro e faço uma manobra como se fosse uma

contorcionista – batendo a bunda no freio de mão, importante acrescentar –, enquanto atravessopara o banco do motorista, que é por onde eu sabiamente deveria ter entrado da primeira vez.

Que ideia ridícula! Pareci ainda mais idiota.E o pior de tudo é que, enquanto dirijo de volta para a casa dos meus pais, só consigo pensar

no quanto eu já quis ter beijado o Leo um dia, há tanto tempo. E que isso finalmente sóaconteceu porque ele estava tentando despistar outra garota.

– Tô falando pra você que eu vou! – eu disse a ele.– Pois eu não acredito.Quando comecei a cursar a faculdade de Psicologia, eu disse a mim mesma que iria em

todas as festas da faculdade, para compensar todas as matinês a que eu não tinha ido na escola. ELeonardo duvidava disso.

– Ah, é? – eu disse ao Leo. – Pois então você verá.Conheci Leonardo no meio do primeiro ano. Ele estava sentado em uma das cadeiras da

secretaria, esperando ser chamado para o atendimento, assim como eu. Eu tinha que resolver umproblema sobre o pagamento da mensalidade e ele estava resolvendo um problema com amatrícula.

– Por que é que temos que pegar senha – ele apontou a sala vazia com as mãos e olhou paramim – se somente nós dois estamos esperando e há três atendentes?

Comecei a rir.– Talvez porque elas tenham coisas importantes a fazer – eu disse, com cara de entendida, e

me inclinei na direção dele, sussurrando. – Como mandar uma daquelas correntes de e-mail que,se você se recusar a repassar até a meia-noite para 358 pessoas, sua família inteira morre.

Ele deu uma risada muito alta, e eu me lembro de aquele ter sido o momento em que eu meinteressei por ele pela primeira vez. Os olhos dele eram os mais lindos que eu já tinha visto,daquele tipo que você simplesmente não consegue parar de olhar.

A atendente chamou meu número, e a essa altura eu já tinha dado o meu celular a ele.Começamos a andar juntos pelo campus da faculdade todos os dias. Na hora do intervalo, eletrazia dois amigos para conversar com as minhas dez amigas na lanchonete, e ficávamos assimaté a próxima aula começar.

Todas as minhas amigas o achavam lindo, e apesar de não ter como negar isso, eu semprenegava. Só que, de algum modo, eu não conseguia negar a mim mesma que estava começando asentir alguma coisa por ele, mesmo com o Rafa, lá em outra faculdade, há tanto tempo em meucoração. Ele parecia estar ficando sem espaço.

E acho que foi esse o motivo pelo qual eu tive que dizer não. Um mês depois que nosconhecemos, Leo estava particularmente mais próximo de mim, em todos os sentidos. Ele ficava

ao meu lado e sempre dava um jeito de me tocar, perguntava minha opinião sobre váriosassuntos, me chamava para sair com os amigos dele. E eu devo admitir que estava gostandomuito disso. Mas lá estava Rafael, no final de semana, sempre comigo. Alguém que me pareciauma opção muito mais segura. Não sei se foi o medo de arriscar, se foi porque Leo era muitomais bonito, o medo de não ser boa o suficiente para ele, ou se foi porque eu realmentecontinuava gostando do Rafa, que tive que dizer não.

– Posso te fazer uma pergunta hipotética? – Leo me perguntou em uma tarde, enquantoestudávamos na biblioteca quase vazia.

– Então terei que responder hipoteticamente também – eu disse.– Certo. Se eu te dissesse, hipoteticamente falando, é claro...– Sim, claro – disse eu, achando graça daquela brincadeira.– Se eu te dissesse que posso estar interessado em você, o que você diria? Hipoteticamente

– ele me perguntou com um sorriso confiante no rosto. Então acho que a resposta a seguir devetê-lo deixado surpreso.

– Eu... – entrei em pânico. Ele me olhava tão intensamente que pela primeira vez na vida eusoube o que era ter alguém dizendo que aprecia você de verdade. – Eu diria que eu prefiro que agente continue do jeito que está. Hipoteticamente.

Eu não poderia ter sido mais burra.Ele parecia ter tomado um tapa na cara.– Sim, claro. Foi só, você sabe...– Hipoteticamente? – eu perguntei, fazendo que sim com a cabeça.– Sim. Isso. Hipoteticamente.Eu procurava o que dizer, mas nada me surgia. Depois de um tempo em silêncio, ele me deu

um beijo no rosto, fechou o caderno e saiu pela porta da biblioteca.Eu pensei que, se eu estivesse na dúvida, era melhor deixar como estava. Pelo menos por

hora. Afinal, estávamos sempre juntos, então para que a pressa? Eu provavelmente teria outraschances. Digamos que eu não seja a melhor pessoa do mundo quando pressionada.

Tentando cumprir minha promessa de ir a festas de faculdade, eu já tinha conseguidosobreviver a duas naquele ano. Não é que eu não goste de baladas. É só que, na minha cabeça,elas são “um inferno na Terra”. Tá legal, isso soou meio negativo, mas veja bem: você se arrumapor duas horas (e estou sendo generosa aqui), mergulhando em maquiagem e perfume, vestindosua melhor roupa e salto alto para descobrir que algum idiota bêbado (ou alguma idiota bêbada,não sejamos machistas) vai derramar cerveja/vodca/energético em você, molhar a sua melhorroupa, pisar no seu sapato preferido, empurrá-la ou fazer com que você se esprema para passarpela multidão para chegar ao banheiro feminino, só para encontrar uma fila de vinte e cincomeninas apertadas, com a bexiga estourando. Por esses e outros motivos, eu considero balada“um inferno na Terra”.

Mas eu fui nas duas festas do primeiro semestre, porque estava tentando viver como umauniversitária. Sabe como é, aproveitando todos os momentos que eu não poderia viver depois. Ea terceira festa daquele ano seria à fantasia, na qual todos passavam o ano inteiro imaginandoqual fantasia usariam, para efetivamente providenciá-la apenas uma semana antes da festa.

Como sou uma pessoa relativamente organizada, já estava com a fantasia alugada muitotempo antes: coelhinha. Eu sei, eu sei. Eu não tenho cara de quem gosta de se vestir decoelhinha, a la Bridget Jones, mas é que nessa ocasião eu queria impressionar alguém, não queeu quisesse admitir para mim mesma ou para ninguém. Eu queria impressionar o Leo e fazê-locontinuar interessado em mim.

Fazia uma semana desde que ele tinha conversado hipoteticamente comigo, e as coisasestavam um pouco estranhas entre a gente. Conversávamos no intervalo, mas desde então nuncasozinhos, sempre com nossos amigos em volta. Comecei a notar que algumas colegas minhascaíam matando em cima dele e senti ciúmes. Ele era meu amigo! Eu o tinha apresentado a elas!Ficava observando, com o que eu esperava que não fosse uma expressão de raiva tão óbvia,enquanto aquela palhaçada acontecia em todos os intervalos. Talvez eu gostasse sim do Leo, masnem um pouco hipoteticamente. Eu já não pensava muito em Rafa havia algum tempo. E entãome animei com a possibilidade de me declarar ao Leo durante a festa à fantasia.

Era a noite da balada e eu estava ansiosa com meu rabinho de coelhinha no centro da bunda,grudado no tecido do vestido preto justo. Na maioria das vezes, eu me colocava para baixoquando me comparava às outras meninas, mas não naquele dia. Não senhora! Naquele dia, euestava realmente bonita.

O tomara que caia fazia meus seios ficarem empinados e lindos, como eu nunca achei queseria possível, já que eu praticamente não tenho peitos. Minha roupa chamava atenção, mas eraporque eu estava com duas orelhinhas de coelho, fantasia que por si só já é considerada sexy.Mas não era vulgar como a de muitas outras meninas que passavam por mim, que fizeram aproeza de transformar uma fantasia fofa de abelhinha em abelhinha indecente.

Pati sempre me acompanhava nas festas da faculdade. Depois de uma fila gigantesca,entramos no salão abarrotado, com luzes coloridas piscando para todos os lados, e a músicaeletrônica tão alta que era impossível falar sem gritar. Pati – que estava vestida de líder detorcida – pegou uma cerveja no bar, enquanto eu fiquei na água. Não queria ficar com hálito debebida alcoólica caso eu me encontrasse com o Leo e tomasse coragem de beijá-lo.

Sim, era esse o meu plano.Pati encontrou uma amiga de faculdade, então eu sai em busca dele. Não queria que minha

maquiagem borrasse e nem que eu começasse a ficar grudenta, então quanto antes eu oencontrasse, melhor. Fora a ansiedade imensa se insinuando na ponta do meu estômago.

Eu não podia mais segurar. O segredo estava me matando! Atravessei a horda de pessoasbem vestidas da festa à procura de seu rosto. Ele precisava saber o que eu sentia.

Será que era o certo a fazer?Eu não fazia ideia.Minhas mãos tremiam enquanto eu olhava de um lado para o outro à procura daquele rosto

que fazia meu coração saltitar igualzinho a um fã ensandecido em show de pop. A única coisaque eu sabia é que eu não podia perdê-lo sem antes tentar.

Mas eu não o encontrava de jeito nenhum. O salão estava muito lotado e eu já tinha dadouma volta inteira, parando para dar risada das inúmeras fantasias bizarras que encontrava nocaminho, como um menino vestido de privada, duas pessoas (a segunda sem respirar, imagino)

vestidas de cavalo, e um menino vestido de coelhinha sexy, o que me fez parecer totalmenteridícula ao lado dele, ou o que o fez parecer totalmente ridículo ao meu lado. Mas ele estava tãobêbado que não pareceu se importar, e inclusive tentou me puxar para dançar com ele, ao que eume esquivei de suas mãos suadas. Eu não disse? Inferno na Terra.

Liguei para o celular do Leo, mas é claro que ele não atendeu. Ninguém escutaria o toquedo celular nessa barulheira toda, se é que ele tinha levado o celular para a balada.

Estava morrendo de medo de ele não ter ido à festa de última hora, estragando todo o meuplano, minha expectativa (desde sempre alta demais) me devorando viva.

E quando eu estava quase desistindo, vi um pedaço do cabelo dele e um par de olhos verdesrefletidos pelas luzes cintilantes entre a multidão, escondido entre uma pessoa e outra que tapavaa minha visão. Apertei o passo e ajeitei o vestido colado no corpo – Deus! Aquele vestido estavamuito apertado –, a respiração entrecortada traindo meu raciocínio lógico.

Que se dane a lógica!Marchei em direção a um Leo vestido de surfista. Foi quando ultrapassei a última pessoa

entre nós que meus olhos viram o que me pareceu um soco no estômago.Não que eu já tivesse tomado um soco no estômago para saber como é.Mas eu definitivamente preferia ter levado um.O que vi me deixou enjoada. Lá estava ele... agarrado a uma das minhas colegas de sala, a

mesma que sempre dava em cima dele, os lábios colados ao dela, e me lembro de começar a ficartonta. Ele estava cambaleante, devia estar bêbado feito uma mula, e eu fiquei parada semconseguir me mover.

É claro que eu não podia culpar a nenhum dos dois, eu e o Leo não tínhamos nada um como outro. Eu não podia gritar com eles. Mas isso não me impediu de ficar chateada com ela, e deconsiderá-lo um galinha. Não achei que ele se interessaria por outra pessoa tão rápido assim, eaquilo fez com que eu me sentisse substituída. Conclui que eu estava enganada se por umsegundo imaginei que ele sentisse alguma coisa real por mim. Talvez tenha sido só umaquedinha sem importância.

Permaneci parada no meio da multidão, com o rabinho de coelho, me sentindo tão idiotaquanto a Bridget Jones quando descobre que Daniel a está mesmo traindo. Seria uma maldiçãoque essa fantasia carrega? E quando derrubaram cerveja no meu braço pela quinta vez na noite,era hora de ir embora. Porque eu estava realmente perto demais de me machucar muito, muitofeio.

E assim se encerraram as baladas da faculdade para mim. Nunca mais fui a nenhuma delas.Depois dessa história, enterrei tudo o que um dia senti pelo Leo. Era óbvio que ele sempre

escolheria ficar com um monte de garotas por aí. E foi só uma bobagem minha, não é? Ele nãocombinava comigo e nem nada. Onde é que eu estava com a cabeça?

Então voltei a minha opção segura, o Rafa. Era mais razoável ficar na fila de espera doRafa, o cara coerente, do que na fila do mulherengo do Leo.

Rafa era um cara que, assim como eu, entendia as prioridades certas da vida. Não saía por aífantasiado de surfista (muito menos de coelhinha). Alguns diziam que ficaríamos juntos, e eusorria tranquila, distraindo o meu coração partido.

Só que quando o Leo me beijou agora...Deus! Por que ele tinha que beijar tão bem?

– Melissa, temos um problema – ela entra em minha sala e joga sua bolsa Martin Gutiérrezespalhafatosamente na cadeira. – Temos um grande problema!

Alana me encara, as mãos na cintura.Fico paralisada. Por um momento, eu acho que ela descobriu tudo sobre mim.Mas é claro que ela descobriu! Como não poderia? Sou muito próxima do Rafa. Ela deve ter

descoberto de alguma forma. Minha mente voa em direção a justificativas. Como devo meportar? Fingindo-me de inocente? Finjo de morta igual a um cachorro? Admito tudo de uma vez?O que devo fazer?

– Qual... – tusso. – Humm... qual é o problema?– O futuro! – diz ela, pálida.Fico sem entender.– O futuro, Melissa – ela repete, impaciente. – Meu e do Rafael. O teste!–Ah! – abro um sorriso. – É esse o seu problema?Suspiro aliviada ao perceber que ela não faz ideia de quem eu sou. Quer dizer, ela faz ideia

de quem eu sou porque sou sua terapeuta, mas nada além disso. Paro de me impressionar com asorte que eu tenho, e paro de sorrir também. Acho que não é muito coerente sorrir de felicidadequando um paciente lhe conta que tem um problema.

Pela primeira vez, o que ela diz representa uma reviravolta nos testes, o queconsequentemente deveria representar uma vitória para mim.

Então é estranho que não pareça ter tanta graça assim? É esquisito que eu não consiga pararde pensar nos lábios do Leo?

Tá. Talvez seja esquisito. Concentre-se, Melissa!Tenho a intenção de dizer a ela que prossiga, que estou acompanhando, mas ela já se sentou

na cadeira a minha frente e prosseguiu a todo vapor.– Muitos dos nossos planos convergem. Muitos. Temos vários pontos em comum em nossa

visão para o futuro – ela balança as mãos enquanto fala, mas dessa vez elas tremem. – Mas umadelas diverge. E muito.

– Ora, mas se trata apenas de uma divergência. Talvez vocês possam conversar e...

– Ele não tem certeza se quer ter filhos.Oh!– É mesmo? – ergo as sobrancelhas.Eu sempre achei que o Rafa quisesse ter um montão de crianças correndo pela casa.Nesse momento, meu coração se quebra junto com o dela. Ele não quer ter filhos? Nunca?– O que ele disse? – pergunto, cruzando as mãos em cima da mesa.– Eu comentei com ele qual o meu nome de bebê preferido... sabe como é, só estava

imaginando. Falei que queria ter dois filhos e um cachorro e ele surtou!Rafael é alérgico a cachorros. Talvez ele tenha surtado por causa da parte do cachorro,

penso em estado de negação.Os lábios dela se afinam.– E então começamos a discutir feio e ele disse que não tinha certeza se estava preparado

para isso.– Por causa do cachorro? – arrisco.– Não! Por causa dos filhos.– Mas pode ser que ele só esteja querendo ir com calma.– Não dá para ter calma num momento como esse, Melissa! – ela dá um tapa na mesa. –

Estamos quase nos casando e... e...– E?– E preciso que ele me diga que está preparado para tudo – ela enfatiza. – Preciso saber que

ele quer ter uma família comigo.– Entendo. Mas e você, Alana? Está preparada para ter uma família?– Não totalmente – ela pensa por um momento. – Mas eu vou estar quando a hora chegar.Tenho que admitir que isso é realmente um problema. É um tremendo de um problema.

“Paternidade” é um assunto a ser discutido antes de se comprometer no sagrado matrimônio.Rafa pode ser bem mente fechada quando quer, e tem certos assuntos que ele simplesmente nãoconsegue abrir mão. Como o do cachorro, por exemplo.

– Eu acho que ele até podia mudar de opinião quanto aos filhos. Só que o problema é que,depois da discussão, ele disse um monte de coisas preocupantes.

– Como o quê? – levo a caneta até o queixo.– Que estávamos indo rápido demais e que ele precisava pensar.– Pensar? – pergunto, para que ela analise a situação junto comigo. – Teoricamente ele não

teria que pensar a essa altura, já que foi ele quem a pediu em casamento.E é então que eu entendo.– Espere um pouquinho... você acha que ele pode estar arrependido?– Talvez... – o olhar dela é tão triste que meu coração se aperta contra o peito. Nunca tinha

visto um olhar desses no rosto bronzeado e animado dela, que agora assume um tom mais pálido.O que eu sempre admirei no Rafa foi seu comprometimento. E esse traço de sua

personalidade parece ter acabado de sumir.Quem diria que seria o Rafa a desistir!

– O que devo fazer? Você tem que me ajudar. Por... favor – ela diz, apertando minha mãopor cima da mesa. A mão dela é quente e macia. Agora sim fico preocupada com ela. Desdequando Alana deixou de ter a mão fria combinando com a sua alma?

Dou um sorriso sem graça, a garganta seca contraindo-se involuntariamente. Sinto-meculpada por ela estar se sentindo dessa forma. Por um lado, os testes foram ótimos poisdesencadearam uma porção de informações sobre o parceiro. Só que esse também é,ironicamente, o lado negativo da coisa.

Ao mesmo tempo, sei que, se não fosse por mim, ela nunca saberia dessa informação deextrema importância para o relacionamento. Ela tinha o direito de saber.

– Eu sugiro que você dê um tempo a ele, para que ele esfrie a cabeça. Dê a ele dois dias edepois conversem sobre o assunto novamente. Você vai precisar tirar dele essa informação. Derepente ele pode dizer que pensou melhor e mudou de ideia.

Ela faz força com os olhos, como se estivesse evitando que as lágrimas surjam.– Tá, mas e se ele não disser?Eu solto o ar do meu peito.– Então aí você terá que decidir se é capaz de ceder.Ela olha para baixo. Uma única lágrima caindo em sua bochecha coberta de blush.– Eu não sou.– Então está aí a sua resposta. Ou ele diz que está a bordo, ou pula do barco.Toco na mão dela.– Obrigada – ela diz baixinho. – Eu não sei o que faria sem você.As palavras dela aquecem meu coração de uma maneira que eu nunca imaginei que pudesse

acontecer em sua presença. Seu rosto de princesa agora é muito menos ameaçador do que antes.E não é só por causa da maquiagem borrada.

Não. É também porque acabo de perceber que tenho nutrido um sentimento inesperado porAlana: carinho.

Leo tinha razão. Rafa realmente pode ser um pé no saco às vezes.– Eu o amo tanto, mas tanto! – ela diz, começando a chorar de verdade.– Eu entendo você. Mas o seu relacionamento amoroso deve fazê-la feliz – enfatizo essa

última parte. E não acredito no que digo em seguida. – E se você tiver certeza de que é ele quema faz feliz, podemos marcar uma consulta com vocês dois para tentarmos tornar o diálogo entrevocês mais aberto.

Isso seria um completo fiasco. Porém, mais cedo ou mais tarde, tudo estará às claras, não é?Não dá para passar o resto da vida me escondendo dos dois.

Além do mais, minha vida pode não estar lá essas coisas, mas para mim é importante quepelo menos a dela esteja.

– Vou pensar nisso – ela tira da bolsa um lenço azul de aparência cara, bordado com ummonograma, e com ele dá leves tapinhas no rosto para secar as lágrimas.

Ao final da consulta, Alana me dá um abraço apertado e suas lágrimas molham minhacamisa. Aí eu repenso duas coisas: a primeira é que vou ter que lavar essa camisa hoje, apesar deter tido a intenção de usá-la duas vezes antes disso.

A segunda é que nem tenho mais tanta certeza assim sobre essa minha história toda com oRafa.

Alana pega sua bolsa na cadeira e então põe a mão na barriga.– Querida, preciso usar o seu banheiro. Estou me sentindo mal.Ela coloca a mão na testa e então dá passadas rápidas que se transformam em uma corrida

até o banheiro. Sem fechar a porta, abre a tampa do vaso e começa a vomitar.Pobre coitada! Ela deve estar uma pilha de nervos por causa do casamento, demonstrando o

que podem ser sinais de estresse. Olho para Lorraine, que tem no rosto uma expressão enojada.Se fosse comigo, eu também vomitaria. Se meu futuro marido não quisesse ter filhos e me

avisasse a essa altura do campeonato, acho que eu vomitaria na cara dele. Eu não queria estar napele dela.

Não quero nem ver a reação de Alana quando descobrir que também não vai poder ter umcachorro.

Às cinco em ponto, eu caminho até o banheiro do consultório, torcendo para que não estejaocupado por nenhum paciente de Júlio.

Está livre, graças a Deus! Fecho a porta, carregando minha bolsinha de maquiagem em umamão e minha chapinha portátil em outra, mas não antes de vislumbrar de relance o olhar de tédiode Lorraine me seguindo até a última fresta de abertura da porta desaparecer. Eu não sei o queessa garota tem, mas confesso que ela me dá certo medo.

Às cinco horas e cinquenta e quatro minutos dessa terça-feira, a campainha do consultóriotoca e meu estômago começa a se sacudir. Talvez seja fome.

Escuto Lorraine dizer (com uma voz irreconhecivelmente doce) “pode entrar, pode entrar”para o Leo, assanhada do jeito que é. Ele responde baixinho alguma coisa que não consigo ouvirmuito bem, mas torço para que seja apenas educado com ela, e não dê em cima da garota.

Não que eu ligue.Ainda não acredito na história do Rafael não querer ter filhos, mas ultimamente tenho

prestado atenção em muitas outras coisas. Minha cabeça mais parece um turbilhão depensamentos, e estou meio biruta tentando organizar todos eles.

A carona oferecida por Leo permitiu que eu me vestisse adequadamente pelo menos umavez na vida a um lugar de alto nível como o Villa’s – que é para onde iremos para um happyhour –, com direito a salto alto e tudo mais.

Não que eu me importe.Minhas pernas tremem. Mas é claro que deve ser somente por causa do frio, ou por causa do

salto agulha que uso nos pés. Abro a porta que dá para a recepção. E eu posso jurar que o queixodo Leo cai alguns centímetros quando caminho com meus saltos doze até ele.

Mas quem é que liga?A reação dele é compreensível, já que dessa vez eu caprichei bem caprichado mesmo. Em

uma hora, ondulei o cabelo dando uma leve desorganizada nele para parecer que acordei assim eque nem precisei penteá-lo. Também passei uma tonelada de maquiagem, quase substituindomeu rosto por outro completamente novo. O toque final foi o batom vermelho matte, delineandominha boca.

Eu precisava me sentir bonita hoje. Meus lábios precisavam parecer beijáveis. Vai quealguém tentasse me beijar essa noite também...

Por isso ele parece tão surpreso. Ou talvez haja alguma coisa errada comigo, como umamancha na minha roupa, ou a calcinha presa para fora do vestido. Ou talvez eu tenha passadoaquele batom escuro de maneira borrada no lugar do claro de novo, para o Leo estar me olhandodesse jeito.

– Você está linda – ele diz, a voz rouca, e me olha com aqueles olhos cuja cor está aindamais intensa.

Ele me cumprimenta, pousando a mão suavemente sobre minha cintura através do vestidofininho, e por um momento eu até me esqueço que quem me deu esse vestido foi o Rafa. Ovestido está pendurado em meus ombros pelas duas alcinhas finas e uso um sutiã que avantajaum pouco meus seios quase inexistentes. E me lembrei também de colocar uma calcinha bonita,para o caso de o vento bater, sabe como é, na bunda.

Não que eu esteja ligando...Passamos o dia trocando mensagens sem sentido. O Leo sabe ser muito engraçado.

Descobri várias coisas sobre ele. Por exemplo, sabia que o cantor preferido dele é o JorgeVercillo? Dá pra acreditar numa coisa dessas? Eu não fazia ideia. Jorge Vercillo é tão poético eLeo é tão... bom, talvez Leo seja poético também, vai saber! E sabia que a cor preferida dele élaranja? Pelo amor de Deus, quem é que tem laranja como cor preferida?

E a fruta preferida dele também é a laranja! Dá pra acreditar? Ai... só o Leo, viu!– E aí, vamos? – digo a ele, as bochechas quentes, mas sem agradecer ao elogio. A última

coisa de que preciso é de Lorraine assistindo a minha vida de camarote. Saímos do consultórioacompanhados do olhar interessado dela. – Eu sei que o Rafa marcou de irmos ao Villa’s, masdepois de te ver vestida desse jeito... – ele para antes de abrir a porta do carro do lado domotorista. –Deveríamos ir a algum lugar mais sofisticado.

– Você só está sendo gentil – digo, entrando no carro e batendo a porta.– Não, na verdade estou tentando arranjar uma desculpa para não ir ao Villa’s – ele entra e

bate a porta também. – Eu odeio aquele lugar.– É sério? – viro-me no banco abruptamente. – Eu também! Não acredito que você também

não gosta.– Os garçons são muito esnobes.– E a água é muito cara.– O frango frito é muito caro – ele me corrige.– E a recepcionista nos olha de cima a baixo.– Hoje ela vai te olhar de cima a baixo, com certeza – ele diz e sinto meu rosto esquentar. –

Aposto que os caras vão cair matando em cima de você.– Eu duvido – digo e mexo nas unhas. – E você? Humm... com quem está saindo agora?– Com ninguém. Tem uma garota... mas ela não me quer.– Não diga? Há uma primeira vez pra tudo – deixo escapar um meio sorriso.– Segunda vez – ele diz, olhando para a avenida, e me pergunto se sei de quem ele está

falando.

Borboletas circulam meu estômago e parece que elas estão dando uma festa lá dentro.– Como sabe que ela pensa assim?– Eu a conheço bem.– Se você diz...– Então, psicóloga Melissa – um sorrisinho surge nos lábios dele, e meu coração se derrete

só de olhar para a sua boca. – O que fazer quando não tenho certeza se o interesse é recíproco?Será que ele está mesmo falando de mim? Não quero fazer papel de idiota aqui.– Não fique com outras pessoas. Já é um começo.Ele dá uma gargalhada deliciosa, que me faz rir também.– Acha que ela ia gostar disso?– Pode ser que sim, pode ser que não... Quem sou eu pra saber?O carro para no farol. Ele me encara enquanto sorrimos um para o outro, mas em seguida

desliza seu olhar para a minha boca. Acho que o negócio do batom funcionou. Mas não sei muitobem o que dizer em seguida. Então viro o rosto e observo o farol vermelho.

Como que para quebrar o silêncio, ele liga o rádio e é Jorge Vercillo quem está cantando naestação de rádio selecionada.

Começo a cantar baixinho, no ritmo da música “Final Feliz”.E me surpreendo quando Leo também começa. Ele grita, bem alto, cantando a plenos

pulmões e eu morro de rir com sua empolgação. Ele me olha e continua a cantar, como se fossepra mim.

Alguma coisa acontece, eu não sei explicar, mas começo a cantar tão alto quanto ele,enquanto o carro se move em direção ao bar que a gente odeia, e as coisas não parecem assimmais tão ruins.

Tenho deixado Rafa em uma posição que talvez não lhe pertença. Eu não estava esperandopor isso, mas acho que não há melhor amigo do que o Leo. E talvez não haja melhor pessoatambém. Não estava nos meus planos. Mas ora, que se dane, não é?

Ao chegarmos, a recepcionista não me olha de cima a baixo. Ela olha o Leo de cima a baixoe faz meu estômago embrulhar. Que atrevida! Dá vontade de dar com o cardápio na testa dela.

– Por que demoraram tanto? – uma voz grossa soa no ar e levo um minuto até perceber quenão vem da recepcionista. – Achei que não viriam mais.

Atrás de nós está Rafa, com seu cabelo certinho penteado para trás. Ele vem da porta dobanheiro, dá um abraço em Leo e um beijo em mim, observando-me por cinco segundos antes dedizer:

– Você está fantástica.Meu reflexo é olhar para Leo. Não foi a recepcionista quem me olhou de cima a baixo, foi o

Rafa, mas ele quase acertou. Porém, ele não está mais ali. Leo virou as costas e caminha emdireção à mesa, deixando-nos aqui de pé um ao lado do outro.

– Er... obrigada – fico na ponta dos pés para enxergar o caminho que Leo está fazendo até amesa.

– Senti sua falta na casa da Pati. Espero que esteja se sentindo melhor.

– O que disse? – paro de observar o Leo para olhar para o Rafa. – Ah sim, eu estava...humm... com dor de barriga, não é?

A miserável da Pati!– Parece que terei que conhecer Alana só no casamento.Os lábios de Rafa tornam-se um risco fininho e ele desvia o olhar.– Humm... Certo. – ele diz. – Por que não vamos para a mesa?– Ótimo! – aperto o passo para alcançar o Leo, que caminha a alguns metros na minha

frente com uma camisa social azul com pequenas listrinhas brancas muito bonita, que ajustam-seperfeitamente nos ombros enquanto ele se move. É sério, ele já tinha todos esses músculos antes?

Chegamos à mesa onde está sentada Pati, com uma combinação irreverente de chapéu cocoe vestido de bolinhas por baixo de um colete de tweed. Admito que a iluminação suave dá aoambiente um toque refinado, mas não à Pati.

Analisar o cardápio faz meu coração palpitar ainda mais. Os preços aumentaram e o meudrink-padrão agora custa uma fortuna. O problema é que esse não é o tipo de bar que aceita queclientes pobres lavem os pratos.

Então, sutilmente troco meu pedido, pedindo uma água mineral sem gás. E por R$5,90 ébom que ela venha da fonte da juventude.

– Ouvi dizer que hoje é por conta do noivo? – Pati diz, após checar o cardápio e fazer umacareta para mim.

Rafa não escuta e continua lendo o cardápio.– Ei... – Pati se inclina e lhe dá um cutucão. – Está tudo bem?– Como é? – Rafa levanta a cabeça. – Humm... claro, mas é claro. Eu os convidei, então

hoje é por minha conta.Pati se inclina para frente, em tom conspiratório.– Sendo assim, espero ser convidada mais vezes.– E será – diz Rafa. – Qualquer coisa para que me perdoe pelo incidente com as nozes.– Tudo bem, querido. Pode me envenenar, contanto que me pague um gim-tônica.Fazemos nossos pedidos e conversamos sobre trabalho. Eu os atualizo sobre minha

secretária desorganizada e eles reclamam de seus chefes babacas. Tenho o cuidado de evitar falarsobre os meus pacientes. Bom, de uma em particular.

O tempo vai passando, conversas são jogadas fora, petiscos são servidos e engolidos e eudou risada das coisas bobas que o Leo diz.

– Parece que você gostou da minha despedida de solteiro, não é? – Rafa dirige-se a mim. –Parece que ela gostou bastante, né, Leo?

– Do que vocês estão falando? – digo, a cabeça intercalando a direção entre um e outro.– Vimos você dançando com o Alessandro – Rafa explica.– É Alexandre! – digo.– Não é, não – Rafa sorri, diplomático. – Acho que sei o nome do meu colega de trabalho.

O nome dele é Alessandro.Viro-me para o Leo.– Mas não era Alexandre?

– Ao que parece, eu chamei o cara pelo nome errado esse tempo todo – ele sorri para mim etoma mais um gole de sua cerveja diretamente da garrafa.

Sorrio de volta, cerrando os olhos para ele.– Eu não me interessei por ele, se é o que vocês querem saber – anuncio, com o olhar fixo

ao do Leo.Rafa despeja mais chope em seu copo de vidro.– Ele não é o seu tipo – ele diz, categórico. – Você precisa de alguém mais maduro. Alguém

mais parecido com você.Coloco uma batata frita na boca, ponderando a respeito do comentário dele. E não tenho

mais tanta certeza sobre esse negócio de pessoas similares formarem melhores casais. Acho quenão preciso de alguém parecido comigo. Não! Preciso do exato oposto.

No final da noite, Rafa e eu nos posicionamos na fila para pagar a conta, enquanto Pati eLeo vão ao banheiro.

– Obrigado por ter vindo hoje. Eu estava precisando me distrair.– Não tem de quê – digo, fitando a porta do banheiro masculino.– Você sabe que eu sempre apreciei a sua disponibilidade, não é?– Como disse? – pergunto, virando o rosto para o Rafa.– Eu disse que aprecio o fato de você estar sempre presente, vir comigo aos lugares que eu

gosto. Não pense que eu não reparo nisso.A Melissa de um mês atrás estaria pulando de alegria com esse comentário. Afinal, passei

um bom tempo fissurada no cara. Mas eu ainda sou a mesma Melissa?– Er… certo. – passo a comanda do bar de uma mão para a outra, repetidas vezes.– Deixe que eu acerto isso – ele pega a comanda da minha mão e se adianta em pagar a

nossa conta.O que ele pensa que somos? Um casal?– Não tem que fazer isso, sério...– Eu faço questão.– Só estávamos brincando na mesa – tento puxar a comanda de suas mãos, mas ele não

deixa.– Será um prazer.Eu cedo.Droga, se eu soubesse, teria comido mais!Ele paga o que devemos ao restaurante – e deixa acertado também o gim-tônica de Pati – e

uma fila gigantesca se forma atrás de nós. Parece que o bar inteiro decidiu ir embora ao mesmotempo. Inclusive Pati e Leo, que agora posicionam-se ao final dela.

Dou um tchauzinho a eles e mostro a língua para o Leo, que abre um sorriso enorme e meucoração parece voar entre as nuvens. Mas logo sou puxada pelo braço por Rafa em direção aovento gelado de fora do bar e me arrependo por ter escolhido um vestido de tecido tão fino.Vestido esse que ele mesmo me deu. Vestido estúpido!

Sentamos num banquinho de pedra ao lado da porta, a fim de esperá-los pagarem a conta.– Ei, porque você disse que “estava precisando se distrair”? – digo.

– Como?– Você disse há pouco na fila.– Ah, sim! – a testa dele se enruga e seu rosto revela certa dureza. – Pra falar a verdade, tive

alguns problemas com a minha noiva. Quero dizer, com Alana.Eu pisco. Ele passa a mão no rosto, a mandíbula tensa.– Não sei se eu deveria mais chamá-la de noiva, já que ela quase cancelou o casamento

ontem à noite.– O QUÊ?Aí está o padrão de Alana. Ela finalmente resolveu jogar tudo para o alto e fugir do

compromisso, não foi?– É uma longa história – Ele passa a mão pelos cabelos, bagunçando-os ligeiramente. – Mas

basicamente tudo aconteceu muito rápido e eu não tive tempo de raciocinar direito. Posso tercometido um grande erro.

Fico pasma. Completa e inacreditavelmente pasma. Esperei por essa afirmação há tantotempo que achei que nunca a ouviria.

– Isso é sério?Então quer dizer que eu estava certa? Esse tempo todo eu estava certa! Agora seria o

momento perfeito para demonstrar todo o meu apoio e reafirmar que o casamento foi umadecisão precipitada.

No entanto, não tem tanta graça quanto eu tinha imaginado. Borboletas não circulam pelomeu estômago, nem nada parecido. Talvez algumas moscas.

– Não! – me pego dizendo. – Vocês não podem cancelar o casamento. Já comprei o presentede vocês e tudo mais!

O momento finalmente chegou. Mas chegou tarde demais. Rafa pode ficar ou não comAlana, que isso já não me importa tanto assim. Porque, se eu for bem sincera... não tenho maistanta certeza de que o Rafa é a pessoa certa para mim.

– Por que não disse nada?– Como assim? – ele tateia uma mão na outra, aquecendo-se do frio.– Por que não nos contou sobre isso no bar? Passamos... – olho para o meu relógio de pulso.

– Duas horas e vinte minutos juntos e você não nos deu nenhum sinal de que estava comproblemas. Por que não disse nada?

Rafa é um cara ótimo, não me leve a mal. Um dos melhores que já conheci. Mas tem duascoisas que percebi tarde demais.

A primeira: sua habilidade de esconder sentimentos negativos e deixar as coisas chegarem aum extremo. Exatamente como eu faço.

E a segunda é que, se tem uma coisa de que eu não preciso, é de alguém como eu.– Não quis estragar a noite de vocês com meus problemas.– Mas você nos chamou por isso! – digo, tentando fazê-lo compreender a incoerência vinda

de um cara tão coerente quanto ele.– Eu não chamei vocês por isso. Chamei porque precisava ver você. Precisava passar um

tempo com alguém que me entendesse.

– Que te entendesse? – pergunto. Qual o rumo dessa conversa?– Você sempre esteve aqui por mim e eu precisava da sua companhia. Sei lá, posso estar

confuso... – ele estreita os olhos para mim, como se me enxergasse pela primeira vez. – Mas àsvezes eu me pergunto se poderíamos ter tido alguma coisa.

Meu coração congela, e não é de excitação. Abro a boca para falar, mas dela não sai nada.Ele finalmente chegou à conclusão que eu sempre quis...

E agora não quero mais. Se arrependimento matasse!Talvez eu devesse ir embora.Os eventos das últimas semanas passeiam pela minha mente, um atrás do outro. Minha

visão deles dois juntos naquele restaurante chique, o pedido de madrinha de casamento, suadespedida de solteiro, tudo! Talvez eu tenha corrido atrás de algo que não era para mim. Eu sónão sabia disso.

É isso! Vou dizer a ele que não me sinto da mesma forma e que não acho que poderíamoster tido algo além da nossa velha amizade, já que finalmente consigo enxergar que ele não é ohomem da minha vida, afinal de contas.

Suspiro de alívio. Meus olhos estão finalmente abertos.E de repente eles se fecham. E eles se fecham como resposta instintiva ao beijo que Rafa me

dá bem no meio dos lábios.Sim, ele me beija! Dá pra acreditar? Tá legal que eu sempre quis saber como seria. Só

que… nada. Não me sinto muito diferente, a não ser pelo fato de os lábios dele serem bem maismacios do que imaginei. Mas além de poder pedir dicas de hidratação labial a ele, nada. Nadinha.Necas de pitibiriba!

E ele está noivo, pelo amor de Deus!Quando o susto inicial do beijo se evapora e eu recobro a noção, me afasto imediatamente

dele, que tem os lábios avermelhados por causa do meu batom.Preparo-me para repreendê-lo, mas para minha surpresa sou eu quem é repreendida.– Meu Deus, Melissa! O que há de errado com você? – Leo surge na porta de saída do bar,

com Pati a tiracolo, totalmente boquiaberta.

– Como você pode?– Eu? – digo. – Leo, eu não...– Meu Deus! Você não consegue mesmo, não é? – ele me interrompe.Depois de ter visto a cena toda, Leonardo permaneceu parado na porta do bar com os braços

cruzados enquanto Rafa passava a mão no rosto, nervoso. Ele me pediu desculpas baixinho,acenou com a cabeça para Pati e Leo, sem olhá-los nos olhos, e foi embora a passos rápidos.

E eu fiquei aqui, sozinha, para enfrentar o que quer que venha a seguir.– Você não consegue mesmo deixar que as coisas saiam do seu plano perfeito! – Leo

continua. Meu sangue gela. Nunca o vi com tanta raiva assim.– Você não sabe do que está falando – digo, tentando interrompê-lo antes que ele diga algo

de que se arrependa.– É a droga da vida deles, Melissa! E você não faz parte dela – ele explode. – Eles vão ter

um bebê, você sabia disso?Meu queixo cai.– Um bebê?Desde quando eles vão ter um bebê?– Ela está grávida? – Pati finalmente deixa escapar uma pergunta.Bem, isso explica o vômito... e o cheiro do banheiro que tivemos que limpar aquele dia.

Minha memória retorna ao momento em que Alana me contou a respeito de Rafa não querer terfilhos. Mas quer dizer então que naquela altura ela já estava grávida? Por isso o seu desespero!Rafael estava dando para trás em relação a tudo, mas o bebê já estava a caminho. O que eleachava? Que era só devolvê-lo à cegonha?

– Sim, ela está grávida. Ele veio me contar essa semana – ele coloca a mão na testa,prostrado na calçada de pedra, perto da porta do bar. – É por isso que ele a pediu em casamentotão rápido. É por isso. Não por nenhum impulso psicológico louco como você pensou. Masporque eles vão formar uma família. E você beijou um cara noivo. E que vai ser pai.

– Eu não o beijei!– O que foi aquilo, então? Você sabe o que é um beijo, não é? Sei que você não costuma

beijar ninguém, mas já deve ter visto em filmes.

Ai, essa doeu. Ele ao menos se lembra do beijo que me deu? Será que eu beijo assim tãomal?

Os clientes que saem do bar passam por nós encarando e cochichando, suas vozesmisturando-se ao vento.

– Ou vai dizer que foi ele quem te beijou?– Foi!– Rafael, o cara mais correto do mundo? – ele ironiza. – Só admita que você não aguentou

perder, tá legal? Fica menos feio.– Você está me ofendendo.– O casamento está chegando e você não conseguiu deixar de ser tão controladora.– Espere um pouco aí! Você está passando dos limites – minha voz aumenta muitos

decibéis. – Depois de tudo o que eu passei, ainda tenho que ouvir você fazer escândalo em portade bar? – Sem sucesso, tento me controlar, mas um grito escapa pela minha garganta. – É a drogada minha vida também!

Pati permanece imóvel, os olhos arregalados e a boca semiaberta.– Melissa, você passou dos limites. Você escondeu quem você é da sua paciente. Como fica

sua consciência como psicóloga?Ele está me tirando do sério. Lágrimas ameaçam surgir, mas de alguma forma eu consigo

impedir isso de acontecer.– Não me ofenda, Leonardo – estou quase rosnando para ele. – Eu nunca agi de má-fé. Eu

nunca sobrepus o que eu sentia nas sessões com Alana. Eu fiz o melhor que pude por ela, droga!– Será que ela acreditaria em você se soubesse?– Meu Deus! E o que é que eu deveria ter feito? – encosto uma mão na parede gelada de

tijolos laranja ao meu lado. – O que é que eu deveria ter feito, hein?Já estou tão exaltada que não dou a mínima para as pessoas que pararam para nos observar.– Hein, Leonardo? Deixar minha paciente em recuperação se casar em tão pouco tempo?

Testemunhar a infelicidade de duas pessoas que eu julgava incompatíveis? Você não sabe comoeu sofri.

Eu me aproximo de Leo, tão perto a ponto de sentir sua respiração no meu rosto. Colo odedo indicador no peito dele.

– Não venha julgar a minha moral, se você nunca passou por isso. E não venha me dizercomo me comportar, porque você não sabe como é!

– Eu não sei? – ele dá uma risada amarga.– Não, não sabe – cerro os punhos ao lado do corpo. – Você não faz ideia.– É claro que eu sei, Melissa, porque eu amo você, droga! – ele explode e meu queixo cai

mais uma vez, assim como o de Pati, que assiste à cena de camarote, infelizmente sem a adiçãode um balde de pipocas.

– O quê? – dou um passo para trás.Minhas pernas começam a bambear, e por um momento acho que vou cair. Ele disse isso

mesmo?Coloco a mão na cintura e me inclino para frente.

– O quê? O quê? Como assim? Você me... o quê?Leo passa a mão pelos cabelos escuros, engole em seco e desvia seus olhos verdes dos

meus. Ele permanece imóvel, como se pudesse impedir que as ondas sonoras das palavras queele acabou de proferir não chegassem até mim caso ele não se movesse. Mas eu ouvi. Alto e embom som.

– Desde quando? – pergunto.– Desde sempre – ele responde.– Desde sempre? – a julgar pela temperatura do meu rosto, eu devo estar parecendo um

pimentão!Sua boca se contorce em uma risada triste, seus olhos num verde mais triste ainda.– Então eu posso sim imaginar como você se sente. Porque acho que me sinto ainda pior, te

ajudando a conquistar outro homem, que por acaso também é um grande amigo meu.Minhas mãos ainda estão cerradas ao lado do meu corpo. Solto os dedos, relaxando.– Você me ama?As estrondosas batidas do meu coração me assustam.Então eu não fui a única que sentiu alguma coisa real por ele? Foi recíproco?– Isso não importa – Leo diz com ar cansado, tirando do bolso as chaves do carro. – O que

importa é que eu também sou seu amigo e você não teve consideração nenhuma por mim. Vocêestá concentrada demais nos seus planos de vida perfeitos.

– Não foi assim, Leo. Eu só...– Não me chame mais quando precisar de ajuda. Ser seu amigo ficou mesmo muito caro.Ele coloca as mãos no bolso da calça e caminha para longe de mim.– Leo, espere. Não vá! Não quero te ver magoado.Ele para onde está. Gira lentamente nos calcanhares e olha para mim.– Se eu me lembro bem, eu te disse a mesma coisa.Ele se afasta e dessa vez não olha para trás. Observo hipnotizada enquanto ele entra no

carro e vai embora, e só acordo do transe quando recebo um abraço calado de Pati. Permaneçoimóvel, sem saber o que pensar.

Estragar tudo definitivamente não estava nos meus planos.

Arrumo a sessão de Psicologia da estante de livros da minha sala de estar freneticamente. Eas lágrimas não me ajudam em nada, se é o que você quer saber.

Meu coração se aperta no peito até formar um nó enorme na garganta, que eu tento em vãosegurar.

Esse último mês roda em minha mente. O choque ao descobrir que Rafa estavacomprometido, as angustiantes consultas com Alana. O teste de casais, o beijo de Rafa (o tal caracomprometido) e a discussão com o Leo.

Mas uma coisa ficou enganchada em minha mente como pulseira em tecido fino: o beijoque Leo me deu.

Pensar fixamente no beijo é completamente natural, certo? Já que acabamos de discutir umcom o outro. Mas o pensamento tinha mesmo que vir de cinco em cinco minutos?

Não posso negar que gostei do beijo, não sou hipócrita. Só que não devo pensar napossibilidade de ter alguma coisa com ele, principalmente agora que eu já estraguei tudo. Eusempre chego atrasada!

E se eu não tivesse feito esse plano idiota, nada disso teria acontecido.Só que imaginar o Leo em um relacionamento sério é inconcebível, tanto pela quantidade

de mulheres com quem ele já dormiu sem compromisso quanto pela lembrança que tenho delebeijando outra pessoa naquela festa de faculdade.

E sinceramente até ontem eu nem ao menos sabia que ele tinha sentimentos. Não dessejeito, e principalmente, não por mim.

Depois de organizar a estante por ordem alfabética, me jogo na cama e assim permaneço,sem nem tirar os sapatos, e coloco o celular no modo silencioso. Preciso pensar: primeiro detudo, tenho que botar a cabeça no lugar. Segundo... bom, primeiro preciso botar a cabeça nolugar para descobrir o que fazer em seguida. E tentando botar a cabeça no lugar decido que omelhor lugar para ela é no travesseiro.

Só acordo às sete da manhã do dia seguinte, com a barriga reclamando de fome. A tela domeu celular indica que Pati me enviou quatro mensagens de texto e me ligou seis vezes, mas nãoretorno. Não acho que me fará bem conversar com a curiosidade dela nesse momento, se eumesma não tenho as respostas para as minhas próprias perguntas.

Meus pensamentos rodopiam como um furacão, enquanto finjo que nada está acontecendo etomo uma xícara de café preto.

Nunca me senti tão triste. Meu coração se contrai ao lembrar do beijo que Rafa me deu,como se eu tivesse traído Alana, mesmo que a culpa tenha sido dele. Eu nunca faria algo assimcom ela.

E a expressão no rosto do Leo? Corta-me o coração só de lembrar.Permaneço com o olhar na parede rosa a minha frente. Até que me levanto da cama, calço

as pantufas com estampa listrada e abro o guarda-roupa branco a fim de me olhar no espelho.Que reflexo é esse?

Não me reconheço.Meus olhos estão inchados e tenho olheiras do tamanho das orelhas. Meu cabelo está

ensebado e pareço estar mais gorda também. Não era isso que eu imaginava ao me planejar.Achei que assim as coisas dariam certo.

Tomo um banho e resolvo o problema do cabelo simplesmente ao lavá-lo. Essa foi fácil.Passo maquiagem e resolvo o problema da olheira também (mais ou menos, na verdade, já quenunca realmente descobri como usar o corretivo, ou a marca que comprei na farmácia évagabunda demais). Sobre os quilos a mais, não há muito o que fazer, essa é a parte difícil.

Coloco roupas limpas e recuso o impulso de agarrar um pacote de bolachas gordurosas.Agarro minha bolsa e saio em direção ao metrô lotado. Seguro-me na barra de ferro do vagão efaço a viagem de pé, com a falta de assentos disponíveis.

Logo que envio essa mensagem à Pati, ela me responde:

Mas ela não se aguenta e meu celular apita em seguida:

Ao que eu respondo:

Mas ela insiste:

Deixo Pati falando sozinha.Chego ao consultório e encontro Camille sentadinha na sala de espera, sua mãe de pé ao seu

lado, com a bolsa nos ombros, sempre adiantadas.Preciso afastar a tristeza por pelo menos uma hora. Essa é a meta.– Vamos entrar, lindinha? – digo a minha paciente e depois dou um abraço em Márcia.– Eu já vou indo... – a mãe de Camille dá um beijo na bochecha grande da filha.– Semana que vem nos vemos em consulta, certo? – confirmo com a mãe. Dessa vez

conversarei apenas com a menina, de modo que ela tende a colocar as asinhas de fora.– Sim, Melissa. Venho buscar essa danadinha em uma hora – ela aponta o dedo para

Camille, que a essa altura já entrou em minha sala e se ajeitou na cadeira branca, folheando oslivros infantis que deixo na mesa para as consultas com ela.

Torno a olhar para Márcia.– Por que “danadinha”?– Você vai entender... – ela diz e deixa o consultório, sorrindo e revelando o grande

bumbum enquanto caminha.Ao entrar em minha sala, fecho a porta. E, ainda de frente para ela, respiro fundo. Então

expiro, giro e ando até a mesa esforçando-me para renovar as energias e atender minha paciente.– E então, o que me conta, lindinha? – inicio nossa consulta e ela para de olhar para os

livros, pousando seus olhinhos em mim.– Bem... – ela começa, as bochechas coradas ao lado de um sorriso bem maior do que o

normal.– Bem? – induzo Camille a continuar.– Denise é carta fora do baralho – ela afirma, solene, batendo uma mãozinha na outra.– Como é? – me preocupo com o que minha paciente pode ter feito a outra criança de oito

anos, preparando-me para o pior.– Vou te contar – ela se debruça sobre a mesa, ajeitando-se na cadeira e assumindo posição

de indiozinho. A menina fala com o dedo indicador levantado. – Eu estava comendo meu lancheem paz na cantina da escola, quando aquela pessoa sentou do meu lado.

Sempre a alerto sobre palavras feias e negativas e o porquê de não usá-las, de modo queagora Camille se refere à Denise como “aquela pessoa”. Não é uma das melhores nomenclaturas,mas já é melhor do que “babaca”, “comedora de cocô” e outros termos inadequados.

– Então ela começou a dizer que eu comeria toda a comida do refeitório se as outrascrianças não tomassem cuidado comigo.

– E o que aconteceu em seguida? – meu coração se aperta com a insensibilidade quealgumas crianças adquirem em sua personalidade, muitas vezes vinda dos pais.

– Eu quis enfiar terra na calcinha dela.– Mas já conversamos sobre isso. Você concordou que era errado.

– E eu sei que é – ela continua, pegando uma bala verde do pote. – E foi por isso que eu nãofiz.

Ela coloca a bala na boca.– É mesmo? Estou impressionada.– Sim. Eu respirei fundo e me lembrei do exercício do papel.– Isso fez você se sentir mais calma?– Isso. Então eu disse pra ela que ela podia ir lamber pedra, e que... – ela abre aspas com os

dedinhos, fechando os olhos. – “Atitudes como essa vêm de pessoas infelizes. Eu tenho dó devocê, Denise. E eu gosto do meu corpo, sua comedora de... caca!”.

– Muito bem! Você se defendeu!Mas tenho certeza de que na hora ela disse “comedora de cocô”.– Sim, mas ela não calou aquela boca estúpida dela. E começou a me chamar de gorda de

novo, mas eu comecei a sorrir.– Sorriu porque percebeu que não se importava mais com o que ela dizia? – junto as mãos

de tanta felicidade.– Não. Sorri porque nesse momento a Denise ainda não tinha visto que a diretora da escola

estava atrás dela e ouviu tudinho o que ela disse. E lhe deu suspensão imediata, na frente daescola inteira.

Tento segurar a risada porque acho que seria muito antiprofissional. Mas não me aguento.Começo a gargalhar tapando a boca, segurando a barriga com a mão, ao que Camille meacompanha. Estendo a mão para a minha paciente, parabenizando-a por sua atitude exemplar epor conseguir uma resolução pacífica para o problema, apesar de seu temperamento nervoso.

– Para te parabenizar, eu tenho uma coisa para você – me inclino até a gaveta e pego aagendinha rosa de bolinhas brancas que tinha comprado para mim há um tempo atrás.

Estendo a ela. Depois de resolver a história toda com Alana, acho que não preciso mais deuma agenda nova. Não tenho mais vontade de riscar o nome dela da minha agenda. E nem daminha vida.

– Que linda! – ela celebra, com os dedos gorduchos ao redor do presente. – É pra mim?– É sim. Você pode usá-la como diário. Quando tiver um problema, repita o exercício que

fizemos do papel. Mas em vez de destruir a folha, quero que você deixe registrado o queaconteceu, para que possamos acompanhar sua evolução. Quero que você veja o quão forte vocêé, Camille. Desse jeito, será muito mais difícil que alguém te atinja.

Depois de mais conversa a respeito da nova dieta que sua pediatra lhe indicou por questõesde saúde, e sobre o quão difícil está sendo para ela comer abobrinhas, ela sai da minha sala felizda vida com seu novo diário. Sua mãe a aguarda no sofá.

– Obrigada, tia Mel – recebo um abraço apertado da minha paciente pequenina ebochechuda. – Terapia é demais!

– Viu só o que te falei? – diz Márcia.– Danadinha, não? – concordo com ela, olhando para uma Camille alegre e orgulhosa.– Obrigada, Melissa – Márcia pega em minha mão. Depois, pega a mão da filha e sai do

consultório, satisfeita.

Abro o notebook e digito anotações sobre essa última consulta. Não há recompensa maiorque a felicidade da minha paciente, que percebeu o quanto a terapia a ajuda.

Em contrapartida, como posso não seguir o exemplo de uma criança de oito anos? Háquanto tempo eu mesma estou sem fazer terapia?

Desligo o notebook, agarro minha bolsa e apago a luz da minha sala. Saio para o hall deentrada, pronta para ir embora. Lorraine está entretida com o celular e não nota a minhapresença. Está tudo muito calmo, mas não consigo me sentir do mesmo jeito. Não quando aquelapilha de revistas volta a estar tão desorganizada quanto da última vez, agora com a adição decopinhos plásticos que os pacientes esqueceram de jogar fora.

Preciso ir até lá. Eu preciso!Mas não é tão simples assim. Minhas forças se esgotaram. Parece que foram drenadas do

meu corpo. Sinto como se um caminhão tivesse passado por cima de mim.Permaneço imóvel no meio da sala, com a bolsa nos ombros, encarando a mesinha da sala

de espera.Como pode uma simples mesinha de centro ser a vilã da minha história?Tentando impedir que as lágrimas caiam sobre minhas bochechas, assinto para mim mesma

e me concentro no que eu preciso fazer. Deixo a bolsa no sofá da recepção e caminho em direçãoàs revistas. Ao me aproximar delas, porém, continuo andando e me movo com vontade, passandoreto pela mesa bagunçada, as mãos cerradas ao lado do corpo, até chegar à porta branca ao finaldo corredor.

Toc toc toc.– Pode entrar.– Júlio, você tem um minuto? – respiro fundo e entro na sala.

Quando eu era pequena, não entendia porque tinha essa necessidade de organizar tudo aomeu redor. E não entendia porque ninguém mais parecia ter essa necessidade a não ser eu.

Era muito angustiante para uma criança de oito anos ter que pausar a brincadeira paraorganizar a casinha da Barbie. As fraldas das minhas bonecas de colo eram trocadas repetidasvezes também. Pelo amor de Deus, elas nem faziam cocô!

– Eu não aguento mais – digo ao Júlio, depois de lhe contar tudo a respeito das últimassemanas. – Por causa de tudo o que anda acontecendo, o TOC está me deixando louca!

Encosto a cabeça no divã da sala dele, fitando o teto branco. O quadro abstrato na parede aminha frente e a cadeira preta de couro onde ele está sentado dão um toque clássico ao ambiente.

Preciso de um divã para a minha sala!– Filha, não é por causa do que anda acontecendo que seu TOC tem controlado você.– Não é?– De fato, esses eventos podem abrir espaço para que o transtorno volte a aparecer e podem

acarretar também o aumento da ansiedade. Mas a ocorrência do TOC acontece porque você nãoestá se tratando.

– Ah... – dou um sorriso sem graça.Fito as unhas da mão, o esmalte nude descascando. Mas que droga! Eu não acabei de pintar

as unhas ontem?Eu sei que deveria ter voltado à terapia há muito tempo. Aliás, eu não devia ter deixado de

fazer terapia, para começo de conversa. E ele não vai deixar isso passar.– Por que interrompeu o tratamento? – ele segura a prancheta em uma mão e um caneta

prateada com seu nome gravado em outra. – Você sabe que o seu quadro necessita do trabalhoconstante da terapia.

– Mas o TOC tinha desaparecido, entende? Não achei que ele voltaria. Eu não queria queele tivesse voltado.

– Então não quis voltar para a terapia porque achou que assim estaria concretizando asituação?

– Er... exatamente.Que perspicácia a de Júlio! Nem mesmo Papai Noel seria assim tão inteligente.– Eu só não queria ter que passar por isso outra vez – digo, contorcendo o rosto.

– A questão é que o TOC é um transtorno que pode aparecer a qualquer momento da suavida. Você é psicóloga, sabe melhor do que ninguém.

Aliso minha calça social com as duas mãos.– Isso é.– Você precisa começar a encarar essa situação com firmeza. Não é fugindo do problema

que ele vai se resolver.Minha boca se curva para baixo, como um gráfico que espelha a minha vida.– Mel – ele diz e olho para cima. – Existem várias maneiras de fazer com que esse

transtorno apareça com muito menos frequência, e que isso seja mais fácil daqui para frente.Lágrimas de alívio brotam dos meus olhos. Eu sofro muito com isso. A luz do sol entra

pelas frestas da cortina, esquentando meu rosto. Aconchego-me no divã de suede.– Isso é bom. Sabe como é, ouvir alguém dizer que não vou passar o resto da vida

arrumando prateleiras de livros o tempo todo.– Não vai, Melissa. Contanto que você se cuide – ele enfatiza.Ele tem razão. Para uma pessoa tão organizada, eu definitivamente deixei essa área da

minha vida um completo caos. Está na hora de arrumar o que realmente precisa ser arrumado.– Terei que... – lágrimas começam a cair pelo meu rosto. – ... voltar a tomar remédios?– Isso a incomoda?– Um pouco – digo. Mas não há porque esconder a verdade dele. – Tá legal, me incomoda

muito. Por que não posso ficar só na terapia?– Mas qual é o grande problema com os remédios? Sente que se voltar a tomá-los, estará

dando um passo para trás?Eu me pergunto se Júlio é vidente ou apenas um gênio com QI muito alto.– Na mosca – alterno risada com choro, levantando as duas mãos. – Você me pegou.Ele começa a rir também. Então ele estica a mão, abre a gaveta do armário preto e tira de lá

uma bandejinha de plástico branca, com caixas e mais caixas de medicamentos.– Eu preciso tomar quatro desses por dia. Um para a pressão alta, um para diabetes, outro

para colesterol e o último para ansiedade – ele diz, ao colocar uma a uma as caixinhas em cimada mesa de vidro. – E o resto tomo ocasionalmente, quando necessário.

Os remédios me encaram de volta, a lembrança tomando conta do meu espírito.– Confesso que não consigo viver sem meus remédios de diabetes. Sem eles eu não poderia

comer um docinho ou outro, não é? – ele coloca a mão na barrigona protuberante. – Somos todoshumanos. E cada um de nós tem um problema. Não há problema em querer se cuidar. Você sóprecisa estar disposta.

– Eu estou.Ele guarda os remédios de volta na gaveta.– Não estou dizendo que você precisará voltar a se medicar, filha. Pode ser que somente

terapia seja o suficiente. Só não feche sua mente para o tratamento, se ele te proporcionar umavida melhor.

– Diabetes, hein? – digo depois de um tempo, secando as lágrimas com as costas da mão. –Não sabia que o senhor não podia ingerir a tonelada de açúcar que toma com o café. Vou pedir à

Lorraine que troque por adoçante.Ele dá risada e encosta na cadeira, que faz barulho com o seu peso.– Eu sabia que não devia ter contado sobre a diabetes.O piado dos pássaros mistura-se com o barulho do vento lá fora.– O que devo fazer em relação ao resto? – pergunto. Será uma longa jornada até que eu

apresente alguma melhora em relação ao TOC, mas enquanto isso preciso resolver os meusoutros problemas.

– E que resto seria esse?– Todo o resto. Você sabe. Rafael, Alana, Leonardo...– Eu não sei – ele levanta e abaixa os ombros. – O que acha que deve fazer? Aliás, Melissa.

O que você quer fazer? Veja que existe uma grande diferença aí.– Como assim? – levanto-me, sentando no divã.– Você vive falando essa palavra, “dever”. É uma coisa muito presente na sua vida. Na

verdade, nós não devemos fazer nada. Somos pessoas livres. Podemos fazer o que quisermossegundo nosso objetivo.

– Na minha mente é muito claro que se eu deixar de seguir uma linha de ação as coisasdarão errado.

– Está vendo só? – ele estala os dedos no ar. – O Transtorno Obsessivo Compulsivorelaciona-se diretamente com a sua personalidade. Podemos conversar mais sobre isso naspróximas consultas, mas perceba que sua necessidade de organização a mantém presa. Tanto noTOC quanto na sua vida. E isso não é bom.

– Mas planejamento é uma coisa boa! Por que diabos ninguém entende isso?– Ser uma pessoa planejada é uma coisa ótima! – ele responde, batendo uma mão da outra.

– O problema está na rigidez da sua personalidade. E não conseguir sair do planejado é umacoisa muito perigosa.

– Sei... – coloco a mão no queixo e apoio o cotovelo no braço do divã.– Você é muito dura, filha. Eu não sei se você já reparou, mas Lorraine morre de medo de

você.– Ora, e por quê?– Uma vez ela me perguntou se você pensava em demiti-la. Ao que parece, você vive

repreendendo-a por desorganização.– Ah, meu Deus! – digo, batendo a mão na testa. – Júlio, era por causa do TOC. A mesa

dela me dá arrepios!– Você já explicou isso a ela alguma vez?– Não. É claro que não.– Nesse caso, quem sabe você possa reforçar positivamente alguma coisa que ela faz? E

evite repreendê-la pela desorganização, tendo em vista que você não é parâmetro. Você está noextremo oposto, o que também não é saudável, não é, filha?

Não acredito que fui tão dura com Lorraine por algo que ela nem mesmo tem culpa. O TOCpode me deixar cega de nervoso.

– Eu adoro o café que ela faz – digo a ele.

– Sei disso, você acaba com a garrafa inteira – ele gargalha. – Não acha que está tão focadanos seus planos que se esquece do resto?

– Talvez.Franzo o rosto. É muito para absorver.– Então como “lição de casa”... – ele faz aspas com os dedos. – Quero que tente planejar

menos e prestar mais atenção ao redor. E nas coisas que você quer fazer. Nas próximas sessões,iremos tratar dessas questões mais profundamente.

– Lição de casa anotada – levanto o polegar.Nunca pensei que meu terapeuta ideal estava bem debaixo do meu nariz. Fico

impressionada com a quantidade de coisas que eu não enxergo. Talvez meu nariz figurativo sejatão grande quanto o de Pati.

– Em relação aos outros assuntos pendentes, a pergunta é: o que você quer fazer?O que diabos que eu quero fazer?– Quero consertar as coisas.– E o que isso significa, tratando-se de sua paciente e do noivo dela?– Conversar com os dois e aconselhá-los – cruzo as pernas. – É o que eu faço de melhor.

Sinto-me na obrigação moral de fazer isso por eles. Então, se meu objetivo aqui é ser umapsicóloga decente, é isso o que eu quero fazer.

– Ótimo. E em relação ao...– Leonardo?– Isso. O que você quer fazer em relação ao Leonardo?– Eu não sei, Júlio. Isso eu realmente não sei.

– É agora ou nunca – fixo os olhos na direção dele, que me encara.Começo a me despir, fitando-o com os olhos cerrados.Vestido, é melhor que você fique bom!Iolanda me aguarda do lado de fora do provador, com uma trena nas mãos, pronta para mais

uma possível rodada de ajustes.Mas quando fecho o zíper, que sobe sem dificuldade pela minha cintura, tenho uma

revelação: eu fico maravilhosa em vestidos sereia. Não consigo acreditar na minha sorte! Ou nahabilidade de Iolanda em adaptar a peça para meu formato de corpo. Ela conseguiu escondertodas as minhas gordurinhas. Essa mulher só pode ser mágica!

O caimento do vestido me deixou acinturada, pelo amor de Deus!– Iolanda! – abro a cortina de uma vez, os olhos arregalados.– Isso é uma expressão de felicidade ou espanto, meu bem? – ela estica a trena com as duas

mãos, depositando o peso do corpo em uma perna só.Espera só até o Leo me ver nesse vestido!– Felicidade extrema! – abro um sorriso largo para ela, que guarda a trena no bolso. – Seu

ateliê deveria sair mais vezes nas revistas. Você é uma inspiração a todas as mulheresempreendedoras. Quero ser você quando eu crescer.

Ela dá risada.– Obrigada, querida – ela coloca a mão na cintura por cima da saia lápis vermelha de cintura

alta e me estende a outra. Então me induz a dar uma rodadinha para observar o caimento dovestido. – Mas, sinceramente, a última coisa que preciso no momento é pensar em trabalho.Semana passada eu saí com um tremendo workaholic e ainda não me recuperei desse episódio!

– Humm... você é solteira? – pergunto, tendo uma ideia maluca. Talvez eu possa equilibraro meu carma com o universo: quase separei um casal, mas me redimirei formando outro.

– Sou divorciada. Os melhores cinco anos da minha vida.– Do casamento?– Do divórcio.Dou uma risada alta, que se evapora quando meu reflexo no espelho exibe um vestido que

deve custar uma fortuna. Preparo-me para a hora da verdade.

– Quanto lhe devo? – pergunto a ela, esperando pela iminente facada.– Desculpe?– Qual é o valor do vestido? – e estou para perguntar em quantas vezes ela divide no cartão

de crédito. Vinte vezes sem juros?– Não, meu bem. Não há custo algum. Alana está pagando por todos os vestidos das

madrinhas.– Oh!Sem gastos, uh?O vestido acaba de se tornar ainda mais bonito! Volto a atenção ao espelho, mal

conseguindo conter os gritinhos de felicidade. Fecho a cortina dourada para dar início a umasilenciosa rodada de dancinhas, viradas e voltinhas com o vestido de princesa, como uma estrelade cinema no tapete vermelho de alguma premiação de Hollywood.

– Iolanda? – digo, quando abro a cortina novamente.Ela desvia a atenção da prancheta e me observa por cima dos óculos de gatinho.– O que acha de um encontro às cegas?

– Caramba. Você está...– Péssimo, eu sei.– Eu ia dizer abatido – digo.Mas ele parece mesmo péssimo. Até o cabelo dele, sempre muito bem ajeitado, parece ter

acordado de mau humor. As olheiras e a barba por fazer dão ao Rafa uma aparência que eu nãome lembro de ter visto nele um dia.

Rafa me ligou algumas vezes desde o fatídico incidente e finalmente marquei um almoçocom ele. Adivinha só onde ele sugeriu?

– O Villa’s fica vazio durante o dia, né? – digo, tentando amenizar o clima chato entre nós.– Eu ainda não acredito que te beijei. – Rafa diz, direto ao ponto.– Sei disso.– Você precisa me perdoar! – ele me olha, nervoso.– Eu já te perdoei – digo, e é a mais pura verdade. – Sei que foi apenas uma reação à

pressão do casamento.– Eu não sei o que deu em mim. Digo, não me leve a mal, você é linda e qualquer homem

teria sorte de ter alguém como você.– Obrigada. Mas você sabe que eu nunca te beijaria estando noivo e tudo mais, não é? Eu

nunca faria isso com Alana.– Eu sei, e você é incrível por isso... o modo como você se importa com a minha noiva,

mesmo não a conhecendo.– Er... claro. Não a conheço – digo, pisando em terreno perigoso. – Mas não é só isso. Eu

não me sinto dessa forma por você.Prefiro deixar claro a respeito do beijo. Ele foi unilateral.

– Eu sei, é claro que não – ele balança as mãos. – Sei que somos apenas amigos.Preparo-me para a costumeira enxurrada de decepção ao ouvi-lo dizer isso, mas ela não

vem. Porque eu mesma só quero tê-lo como amigo.– Não – digo. – Somos praticamente irmãos.É a primeira vez que entendo essa comparação.Os garçons movimentam-se com menos intensidade durante o dia, substituindo em suas

bandejas pratos de porções por almoços à la carte. O burburinho do ambiente é tão baixo quediminuo o volume da minha voz.

– E então? – pergunto. – Por que está se sentindo pressionado?– Tem muita coisa acontecendo – ele responde de forma vaga, olhando para as paredes

amadeiradas do bar.Será que ele vai mesmo continuar escondendo a existência do bebê? E de quem será que ele

está escondendo? De mim ou dele mesmo?– Como o quê? – insisto. – Você sabe que pode me contar qualquer coisa. Sou sua melhor

amiga, lembra? Além disso, sou terapeuta. Não existe combo melhor.– Ela está grávida – ele desabafa, depois de um minuto inteiro de silêncio.– Jura? – demonstro o máximo de surpresa que consigo, mas meu estoque de atuação parece

ter acabado. Mal levanto as sobrancelhas para o alto. Se tem uma coisa que cansei de fazer éescutar a mesma história duas vezes e fingir que não sei de nada.

– Por isso a pedi em casamento. Eu me apaixonei por ela no instante em que a vi, e queriamostrar todo o meu respeito. Decidimos nos casar antes que a barriga começasse a aparecer. Elaqueria sair magra nas fotos. Só que as coisas se tornaram grandes rápido demais e me perguntose fiz a escolha certa.

– Ao pedir Alana em casamento? Ou em relação a assumir a criança?– Em relação a tudo – ele abaixa a cabeça, desarrumando ainda mais o cabelo. – No calor do

momento, acabei dizendo que eu não sabia mais se queria ter filhos. Mas eu só estava de cabeçaquente.

Ele surtou. Foi isso o que aconteceu.– Mas qual é o grande problema? Está tudo perfeito pra vocês. Vocês têm tudo!– Eu não tinha planejado, esse é o problema. Não sei se consigo dar conta. Eu quero o bebê

e eu quero Alana, mas queria ter certeza de que eu podia cuidar muito bem deles.– Rafa. Escute o que vou dizer: se tem uma coisa que aprendi é que planos podem ser

readaptados.Por que tenho a sensação de que estou analisando a mim mesma?– Você podia tentar ser mais flexível, tentar coisas diferentes. Como por exemplo... –

aproveito a deixa, sorrateira. – Eu detesto o Villa’s.Estendo as duas mãos, apontando o lugar.– Seria bom se fôssemos a outros lugares, sabe? – digo, dando risada com a recordação do

Leo dizendo que também odiava o lugar.– Tudo bem. Podemos ir a outros bares no Jardins, não faz mal...

– Não. Podemos ir a bares de outros bairros também. A bairros mais acessíveis, com preçosmais razoáveis, por exemplo.

– Oh! Você acha o lugar muito caro? – ele coloca a mão na testa. – Desculpe, eu não faziaideia.

– Não tem problema. Mas o ponto é que você precisa aprender a absorver mudanças.Resiliência... você provavelmente só não conseguiu digerir tudo isso ainda.

Ele não diz nada.– Olhe para mim. – digo, pegando em suas mãos do outro lado da mesa. – Confesso que no

começo me preocupei que as coisas entre vocês estivessem acontecendo rápido demais. Mas sevocê ama sua noiva, que por sinal tem um grande senso de estilo, levando em conta o vestido demadrinha que ela escolheu para mim...

Tento descontrair o clima e fazê-lo sorrir. Dá certo.– Então não a deixe escapar. Sabe o quanto é difícil encontrar o que vocês dois têm? Vai

por mim, é difícil pra caramba!Ele dá risada e me sinto mais leve. Solto suas mãos das minhas e tento calcular o tempo que

perdi presa a alguém que nunca foi para mim.– E se tem alguém que é responsável o suficiente para cuidar de uma esposa e de um filho...

– aponto para ele. – ... Esse alguém é você.Ele esconde o rosto nas mãos e abaixa a cabeça, chorando baixinho, deixando à mostra um

lado dele que eu não conhecia.Inclino a cabeça para baixo, a fim de encontrar seus olhos.– Alana só precisa saber disso.– Acha mesmo? – ele diz, recompondo o semblante sóbrio.– Eu tenho certeza.– O que devo fazer se ela não quer falar comigo? Porcaria! Eu estraguei tudo!Tenho uma ideia.– Já pensou em fazer terapia de casal?– Terapia de casal?– Sim. Eu ficaria feliz em atender vocês dois.– Sem querer ofender, mas eu não acho que terapia vá me ajudar nesse momento.– E por que não? – pergunto e cruzo os braços. – Se você quer saber, tenho pacientes que se

beneficiam muito com as minhas sessões.Como por exemplo sua própria noiva!– Estou certo de que é verdade – ele responde. – Mas Alana nem mesmo atende as minhas

ligações.– Melhor ainda. Mais um motivo pra contar com a minha ajuda. Eu seria uma espécie de

mediadora da discussão.– Eu não sei não...– O que custa tentar?Muitos reais por consulta, nesse caso. Mas não digo isso. Não estou fazendo isso pelo

dinheiro.

Só que uma garota precisa comer!– Como é que você vai se casar sem a noiva?Ele cruza os braços e morde o lábio.– E então, o que me diz? – incentivo.– Está bem! – ele arregaça as mangas da camisa e apoia os cotovelos na mesa. – Mesmo

porque não pode ficar pior do que está.Respiro pelo nariz e expiro pela boca, pouco preparada pelo que sei que preciso fazer em

seguida.– Ótimo. Então eu tenho uma coisa para te contar.

– Como assim, “você é a Melissa”? – Alana me pergunta, sem piscar.O choque que vejo em câmera lenta se instalar no rosto dela transforma-se em descrença

total em apenas três segundos contados. Mas ela é muito elegante para armar um barraco ou darum vexame.

– É você a melhor amiga do meu noivo?– A própria – estendo a mão para que eles adentrem a minha sala, mas eles não se movem. –

Er... por que não entram, sim?Peço para que se acomodem enquanto eu mesma me sento depressa devido às minhas

pernas que bambeiam.Rafa me deu um belo de um sermão quando lhe contei sobre tudo na sexta-feira lá no

Villa’s. Bom, não lhe contei sobre tudo tudo, se é que você me entende. Eu não precisavamencionar a parte de achar-que-estava-apaixonada-por-ele, e blá-blá-blá.

– Minha nossa! – foi o que ele disse quando acabei de confessar, sentado do outro lado damesa. – Então foi por isso que você agiu de modo tão estranho quando lhe contei que estavanoivo. Você estava espantada pela coincidência!

– Er... mais ou menos isso.E apesar da palestra de dez minutos sobre o quão errado ele considerou a minha atitude, me

perdoou quase instantaneamente. Isso porque ele mesmo tinha acabado de cometer o terrível errode ter sido tão beijoqueiro comigo.

Só que agora me resta pedir perdão a outra pessoa.– Eu preciso confessar que, no meio do caminho, eu percebi sim quem eram vocês dois,

mas permaneci calada.Se ela está furiosa, faz questão de não demonstrar. Em vez disso, mantém a postura

impassível, tamborilando as unhas vermelhas na mesa, provavelmente se perguntando o que fazcomigo em seguida: se me joga no lago para ser comida pelos jacarés, ou se manda cortarem-mea cabeça.

– Por que preferiu permanecer calada? – são as únicas palavras que saem da boca dela,antes de seus lábios se transformarem em uma linha fina.

Delicadamente eu levanto a mão para que ela me ouça.– Sei que tenho muito a explicar, mas escute o que eu tenho a dizer – que diabos eu vou

dizer? Pense, sua maluca. Pense! Inclino-me para frente a fim de ganhar tempo. É melhor sersincera, não é? Ou o mais sincera que posso ser. – Quando percebi que você era a noiva doRafael, imaginei um milhão de cenários em que revelar quem eu era a você prejudicaria otratamento. Fiquei com receio de que você tomasse conhecimento do meu contato com o seunoivo e isso tornasse inviável o nosso contato. E você está fazendo progresso, Alana.

Forço um sorriso, mas é de nervoso. Ela permanece sem piscar. Rafa me dá um sorrisopiedoso. Minha tentativa de amenizar as coisas não deu certo. Limpo a garganta.

– Entenda, você como paciente é muito importante para mim. Digamos que eu não tenhamuitas clientes, estou no início da minha carreira... – forço uma tossida e desvio o olhar do dela,que a essa altura deve me achar uma terapeuta falida. – Então, para que continuássemos comsessões de terapia que fluíssem bem, eu não quis colocar um peso no nosso relacionamentoprofissional. Digamos que eu tenha uma relação de... humm... – como é que digo isso sem dizer?– Uma relação de muito carinho com o seu noivo. E caso você soubesse, isso poderia prejudicara relação que eu tenho com você. Que eu também prezo muito – acrescento.

O fato de eles não terem falado nada nos últimos dois minutos deveria me preocupar? Nacorda bamba, os dedinhos do meu pé se mantêm retesados.

– Desculpe – abaixo a cabeça, pronta para ser “demitida”. – Acho que fiquei com medo.A sala fica em completo silêncio, quebrada somente pela voz de Júlio, lá de fora, gritando

algo como “Lorraine, acabou o café”, ou algo assim.– Entendi o seu ponto – Alana diz, seca.Apesar de as palavras certas terem saído da boca dela, ainda não sei se estou totalmente fora

de perigo. E resta a dúvida: ela entendeu exatamente o que eu quis dizer com “uma relação demuito carinho com o seu noivo”? Tomara que não.

Essa pode ser minha última sessão com ela, e quem pode culpá-la? Eu entenderia se ela nãopudesse mais confiar em mim. É por isso que devo a ela, no mínimo, a melhor sessão de terapiade casal que eu posso lhes oferecer.

– Eu sabia que tinha reconhecido sua voz ao telefone naquele dia – Alana murmura, maispara ela mesma do que para mim.

Minhas mãos suam, e as limpo nas laterais da minha saia lápis. A ideia de trazê-los juntosaté aqui não me parece mais tão brilhante assim. Mas eu precisava resolver as coisas entre eles.Eu queria. Sabendo que eu podia ajudar, não podia ficar parada sem fazer nada, vendo umrelacionamento ruir.

Cruzo as pernas e prossigo com o que acredito que vá, de fato, dar início à sessão.– Então, Rafael. Por que não começa? – pergunto, estendendo a mão na direção dele. –

Conte a sua versão da história.Alana cruza as pernas e coloca as mãos no joelho, erguendo o queixo para cima. Não sei se

ela está mais incomodada comigo ou com ele.– Bem... – ele passa a mão nos cabelos loiros. – Não sei bem o que devo dizer.– Por que não começa pelo que está sentindo? – digo. – Não existem respostas erradas aqui.Os lábios dele estão cerrados. A luminária no teto ilumina o ambiente, já que o sol está

fraco demais para que eu não precise de luz artificial.

– Eu me sinto um pouco sufocado – diz ele de uma vez e não ousa olhar para a noiva. Alanafocaliza os próprios pés e contorce a boca.

– E o que o faz se sentir dessa forma?– Tudo aconteceu muito rápido – ele se encosta na cadeira. – Você mesma disse isso.Arregalo os olhos para o comentário. Não esperava que ele dissesse uma coisa dessas! Ele

conversou sobre aquilo com a Melissa amiga, e não com a Melissa terapeuta. É diferente agoraque Alana está ali, me observando confusa, com cara de má etc. etc.

– Eu disse que achava isso no começo! É o que qualquer um acharia se o melhor amigoanunciasse que está para se casar sem nem mesmo ter apresentado a namorada antes.

Alana me lança um olhar mais ameno. Tudo bem, tudo sob controle. Certo?– Sim, sim, sei disso – ele tenta consertar. – Tanto é que um dia você me disse que eu estava

fazendo a coisa certa em me casar.Faço de tudo para manter uma expressão neutra no rosto quando me dou conta de que eu

disse isso a ele no fatídico dia do beijo.– Não tenho dúvidas de que pedir Alana em casamento foi a atitude correta. Agora eu sei

disso. Eu só estava receoso.– Receoso com o quê? – pergunto para que ele compartilhe seus medos com a noiva, coisa

que imagino que ele faça muito pouco.Indico Alana furtivamente com a cabeça e ele gira para encará-la.– Eu tive medo de não dar conta de tudo. Queria ter certeza de que eu poderia cuidar bem de

você.Há um silêncio constrangedor que parece durar uma meia hora, enquanto Alana o fuzila

com os olhos, mas que provavelmente foram apenas uns dez segundos.– E aí você achou que jogar tudo para o alto fosse “cuidar bem de mim?” – ela faz aspas

com os dedos, olhando ressentida para ele. – Aliás, cuidar bem de nós?Alana coloca uma mão em cima da barriga, que por sinal, não demonstra nenhum sinal de

gravidez. Ela provavelmente será uma daquelas grávidas que não parecem estar grávidas, massim com um pequeno inchaço na região do estômago, como quando eu estou com o intestinopreso.

– Não, amor! Eu só...– Você não pensou em mim – ela o interrompe, sem nem mesmo gesticular. Sem nem

mesmo mover as mãos? Ela deve estar mal mesmo.– E nem você – Rafa diz, com o maxilar travado e a voz endurecida.Ajeito-me na cadeira quando os ânimos começam a se exaltar.– Está bem, está bem. Vocês estão com pensamentos muito negativos a respeito um do

outro.Alana aponta para o Rafa.– A culpa é dele.– Não importa o culpado – digo. – Nem sei se “culpado” é a palavra certa.– É a palavra certa para ele – ela fala baixinho.Eu a ignoro.

– Vamos fazer o seguinte. Esse deve ser um ambiente confortável para vocês dois. Por isso,enquanto um estiver falando, o parceiro deve tentar ouvir. Apenas ouvir.

Eles murmuram um “está bem” mal-humorado. Rafa cruza os braços de forma rígida eAlana vira de costas para ele.

– Quero que falem pelo menos uma coisa boa a respeito do outro.Eles ficam em silêncio.– Rafa, por que não começa?– Eu? – ele passa uma mão na nuca e olha para Alana, que olha para as próprias unhas da

mão. O rosto dele volta a relaxar. – Ela é linda. Tem o cabelo mais bonito que já vi. – Os ombrosdele caem e Alana o fita de canto de olho. – É carinhosa e sincera.

Sincera ou maldosa?– Ela se veste muito bem. Você mesma disse que ela tem um ótimo senso de estilo. Não é,

Mel? – Rafa sorri como um bobo.– Er... claro – digo. – Eu amei o vestido de casamento que você escolheu para as madrinhas.– O seu é o mais deslumbrante – acrescenta ela para mim, com certo sarcasmo na voz. –

Pedi para que Iolanda fizesse um modelo diferente para a melhor amiga do Rafa.Ela levanta uma sobrancelha só, irônica. Eu abaixo o olhar.Nunca tinha percebido o quanto sou querida por esses dois, cada um do seu próprio jeito.

Coincidentemente, ambos me presentearam com vestidos deslumbrantes.É quase engraçado perceber que essa situação não é mais tão terrível quanto eu pensava –

ajuda que eu já não tenha sentimentos pelo noivo. Mas a graça termina quando percebo o queisso me causou. Leo era importante demais para mim para eu tê-lo perdido. Rafa não era o caracerto. Acho que meu coração já sabia disso. Mas meu cérebro o tem ignorado há muito tempo.

– Você tem realmente um ótimo gosto, meu amor – Rafa diz para a noiva.Alana levanta o queixo para cima e dá uma espiada de canto de olho em Rafa. Ele pega seu

olhar, então ela se vira de volta.– Alana? – digo. – É sua vez.– Tá legal... – ela começa, incentivada pela enxurrada de elogios da parte do noivo. – Ele é

muito responsável, isso eu tenho que admitir. A não ser nesses últimos dias.Ela frisa bem essa parte antes de continuar, cerrando os olhos para ele.– Ele até me faz ser pontual.– O que é um feito complicado – Rafa diz, brincando, e eu faço cara feia para que ele não

abuse da sorte.Ele para imediatamente e dá uma risada para quebrar o gelo. Alana nem repara. Ela já está

toda concentrada em seu discurso.– Você tem notado, não tem Melissa? Que tenho chegado adiantada nas consultas?– Adiantada? Na verdade você só tem chegado no horário marcado...– Dá no mesmo, dá no mesmo – ela abana as mãos no ar, ganhando aquele ar agitado

novamente. – O fato é que ele insistia para que eu não deixasse minha terapeuta esperando. E eucomecei a perceber que talvez fosse errado da minha parte.

Talvez?

– Tem coisas que eu nem percebo que faço – ela cora, e eu posso jurar que vejo um relancede vergonha passar por seus olhos. – Sinto muito se atrapalhei sua agenda.

– Er... uau, tudo bem.Alana acabou de se desculpar pelo seu egoísmo? É verdade o que dizem, a maternidade

pode amolecer uma pessoa.– Ele é tudo o que eu não sou e isso me dá equilíbrio – ela aponta a cabeça na direção de

Rafa. – Só quero ser uma pessoa melhor pra ficar ao lado dele.– Não, meu amor – subitamente, ele pega na mão dela. – Eu é que não consigo ser menos

que perfeito para alguém como você.Tá legal. Isso foi até que bonitinho.Mas não parece ter sido o suficiente para acalentar o coração da noiva.Eu falo durante alguns minutos sobre relacionamentos que evoluem rapidamente e a

importância de certas pausas para alinhar as expectativas, gostos e atitudes do casal. Mas Rafaestá inquieto. A cada pausa que eu faço, ele pretende dizer alguma coisa, mas então se cala.

– Rafael, você gostaria de falar alguma coisa? – ajeito os meus óculos no rosto.– Eu descobri.Ergo uma sobrancelha.– Descobriu o quê?Alana o observa, os braços cruzados.– Lembra-se de que falei que foi amor à segunda vista com Alana, pois jurava que já a tinha

visto em algum lugar antes? – Rafa diz para mim e então olha para a noiva.– Sei, mas o que foi que você descobriu...– Foi aqui – ele diz, interrompendo-me.Aqui?– Lembra-se daquela vez em que vim conhecer seu consultório? Aguardei na sala de espera

até que você acabasse de atender uma paciente.Ele se vira para Alana.– E agora sei que era você, meu amor – ele pega nas mãos dela.Eu sabia que a culpa disso tudo tinha sido minha!Já juntei dois casais agora. Será que o universo teria alguma vaga pra cupido? Eu

definitivamente preciso de uma renda extra.– Eu não me lembro disso – Alana diz, olhando para ele com curiosidade.– Foi só por um segundo. Por isso não a reconheci como a mesma pessoa quando a vi no

bar. Mas agora me lembro! Naquele dia eu pensei: “Essa garota seria muita areia pro meucaminhão”.

Ela sorri e empina o queixo.– E quando a vi naquele bar, pensei exatamente a mesma coisa – ele continua, dizendo o

que ele sabe que Alana vai adorar ouvir. – E tive certeza de que eu teria que me esforçar muitopra chegar ao seu nível de perfeição.

Tenho que admitir. O cara é inteligente.

– Ah, Rafa... – ela diz, segurando a mão dele e mostrando aqueles dentes brancos de atriz decinema. – Eu não quero que você seja perfeito. Eu só quero que você esteja comigo!

Ela coloca a outra mão na própria barriga.– Ou melhor, conosco.E eu fico aqui do outro lado da mesa, enquanto o aperto de mãos deles se transforma num

abraço, que rapidamente se torna um beijo daqueles bem dados, com direito à língua e tudo.Bom, acho que eu mereço isso. Por ter desejado mal ao relacionamento deles e tudo o mais,

sabe como é. Mas a coisa parece estar indo longe demais, então decido que eu, definitivamente,não sou paga o suficiente para isso.

– Rram, rram... – finjo tossir e acrescento, antes que eles voltem a se amassar nas cadeirasdo meu lindo consultório. – O que vejo aqui são duas pessoas que se amam. Claramente.

Eles dão risadinhas como dois adolescentes.– Mas que estão passando por um período de transição muito abrupto. Casamento e filhos

são passos enormes na vida de uma pessoa, ainda que planejado. Imaginem quando não é?Eles concordam com a cabeça, agora de mãos dadas.– O que eu quero ressaltar aqui é o seguinte: vocês têm algo muito especial, e não me refiro

apenas ao bebê. As pessoas costumam não valorizar esse tipo de sentimento na idade de vocês.Bem, na nossa idade...

Nós três damos risada, mas somente eu ficarei para titia.– Mas não existe regra quando se trata do amor. A hora certa de vocês pode ter vindo antes

do que o esperado, mas ela veio! E vocês terão a vida toda pra fazerem dar certo.Eles sorriem um para o outro. No final das contas, devo admitir que eles indiscutivelmente

passaram nos testes.Eu me dirijo ao Rafa.– Se você quer tanto cuidar da sua família, a partir de agora precisa começar a pensar no

melhor para ela. Sua noiva e o bebê não precisam de um plano estratégico de negócios. Elesprecisam de você. E você é capaz de cuidar disso.

– Eu vou cuidar de vocês – Rafa diz, a mão na barriga de Alana.– E Alana – continuo –, você se sentiu ameaçada quando seu parceiro demonstrou medo,

porque você mesma tem tendência a desistir. E por isso ameaçou jogar tudo para o alto,fechando-se para a resolução do problema.

Ela não diz nada, olhando para baixo.– Relacionamentos não são fáceis. O casamento é uma constante batalha. Mas não é uma

batalha de um contra o outro. É contra os problemas. Vocês terão que aprender a ser fortes. E euvou te ajudar nisso, Alana. Se você me permitir...

Ela me olha, entorta a boca e dá um suspiro, como se ponderasse não me jogar aos jacarés.– Vou ser bem sincera com você – ela balança o dedo indicador. – Não gostei de você ter

escondido a verdade de mim. Eu nunca escondo nada de você, nada! Bem, somente a gravidez,mas enfim... eu te considerava uma amiga.

Nunca pensei que ouvir Alana dizer que “me considerava uma amiga”, no passado, doeriatanto.

– Mas... você sempre fez muito por mim, desde a primeira consulta. Sei que não sou umapessoa fácil de lidar. E sou grata por estar me ajudando com meu problema de relacionamentosfracassados. Sem você, e sem essa consulta de hoje, eu provavelmente não teria o Rafael. Aliás,sem você eu provavelmente não estaria desse lado da cidade para ter conhecido ele no bar.

Fecho os olhos por um segundo, para recarregar as energias. Sinto o toque gelado da mãodela na minha, e meus olhos se abrem com o choque. O sorriso de piedade – com um sutil toquede esnobismo – que ela lança em minha direção me faz respirar novamente.

– Acho que podemos reconstruir essa amizade, Melissa – ela me olha de canto de olho. –Mas vou precisar de uma coisa de você.

– O que quiser – aperto a mão dela em retorno.– De agora em diante, nas consultas comigo...– Sim...– Você vai ter que parar de usar suéter com camisa social.Dou uma gargalhada alta e seguro o impulso de chorar de emoção.Solto a mão dela para voltar à parte profissional e encerrar a consulta – e essa história – de

uma vez por todas.– Então quero que faça o seguinte, Alana – digo, com ânimo renovado. – Comece a confiar

em você mesma! Sua impulsividade é um traço da sua personalidade, mas ela não define a suavida. Lembre-se: você é a dona do seu destino. Trabalharemos esse seu lado mais profundamentenas consultas. Mas você precisa decidir que vai ficar. Vai ficar e prosseguir no caminho quecomeçou. O casamento está marcado. É agora ou nunca.

Alana empina o queixo, olha para Rafael e respira fundo, antes de sorrir e dizer:– É agora!

– Por que é que está com essa cara? – mamãe pergunta, e sei que foi o meu nariz que meentregou.

Chorei um pouco no caminho para cá. Foi só lembrar de uma coisa engraçada que o Leo medisse outro dia para me fazer ficar sentida. Parece que eu não ganhei nada com essa história toda.Eu só perdi.

E perdi muito.Pensei que se fosse para inundar a casa de alguém, que fosse a dos meus pais. Até mesmo

Luli pula em minha direção, como se estivesse tentando me animar.É muito chato quando alguém percebe que tenho alguma coisa a esconder por causa do meu

nariz. Deve ser difícil para o Pinóquio.– O que tem de errado com a minha cara? – pergunto, colocando a bolsa em cima da mesa.– Você parece triste.– Não é nada, mãe. Só estou com fome.Mas fome é o que não tenho – é isso o que me assusta. Além de que daqui a pouco mais de

uma semana o casamento vai acontecer, e o plano que eu tinha feito para o meu futuro vaioficialmente por água abaixo. Não que eu queira esse plano.

O problema é que ele era o único que eu tinha.E agora, olha a bagunça que minha vida se tornou!Fora a coisa toda com o Leo. Até fiz uma lista, de tantas reviravoltas:

Não é um raciocínio muito lógico.Vai ver ele está confuso. Ver o melhor amigo ficando noivo pode mexer com a cabeça de

alguém. Digo isso por experiência própria.Não importam as razões que eu crie para essa declaração raivosa de amor da parte dele,

sempre chego à conclusão de que foi uma confusão momentânea do cupido.De qualquer maneira, não faz diferença, visto que agora ele me odeia. É de se esperar que

ele tenha virado as costas para mim, depois de tudo o que eu o fiz passar. Meu coração se aperta.Eu o fiz sofrer esse tempo todo!

– Então vamos jantar – mamãe se apressa na direção da cozinha.Talvez seja aquela sensação de fundo do poço, mas estou mais calma. Se eu já estraguei

tudo, não há mais nada o que estragar. Nunca pensei que o fundo do poço me traria tanta calma.Eu me pergunto se os praticantes de ioga sabem disso.

– Sua mãe tem uma proposta pra você – papai diz depois que dou um beijo em suabochecha, e volta sua atenção à leitura diária do jornal.

– O que é? – pergunto quando mamãe se aproxima de nós, na sala de estar.Ela se senta ao nosso lado no sofá, com as mãos nas coxas. Luli dá um salto e senta-se entre

nós, a coleirinha de metal fazendo barulho.– Bem, como você bem sabe, eu ando muito ocupada com as coisas por aqui e um cachorro

pode dar muito trabalho, e...– Eu sabia! – digo, triunfante, apontando o dedo para ela. – Eu avisei que a senhora faria

isso!– Ora, não seja tão dramática, querida. Eu simplesmente vi que meus interesses agora são

outros.– Mãe, Luli não é um de seus esmaltes no depósito. Você não pode simplesmente guardá-la

quando perder o interesse.– Eu sei disso, querida, e é por isso que estou doando Luli a você.– A mim? – digo, apontando para mim mesma.Ela só pode estar brincando.

– Sim, a você! Não é uma ideia maravilhosa? – ela junta as mãos na frente do rosto,esperando minha reação. Pisco.

– Mãe, eu não sei se você sabe, mas meu salário mensal mal cobre o valor do condomínio eas contas do mês. Como você acha que eu poderia cuidar de Luli?

Ela tem ideia do quanto estou pobre? Sou provavelmente mais pobre que Luli. Talvez Lulidevesse me adotar. A cachorrinha olha de um lado para o outro, acompanhando a nossa voz, sementender nada. Papai nem tira os olhos do jornal.

– Mas você não tinha dito que sempre quis ter um cachorro? – ela prossegue, cínica.– Ah, e agora a senhora convenientemente se lembra disso?– Você teria tempo de cuidar dela, tendo um horário de trabalho flexível... – ela continua

citando as vantagens.– Mãe, você é dona de casa. Não tem horário de trabalho mais flexível que o seu!– Querida, mas seria tão bom pra você. Um cachorrinho pode acrescentar muito em nossa

vida.– Acrescenta muitas dívidas – digo baixinho e tampo as orelhas de Luli, para que ela não

me escute. – Não está nos meus planos.– E por que é que precisa estar sempre nos seus planos, Melissa? – ela se irrita. – Deus!

Você é igualzinha ao seu pai.Papai levanta as sobrancelhas e sorri.– Mãe, nós somos planejados, só isso.– Querida... – ela pega em minha mão. – ... de que adianta ser assim tão planejada se você

não se permite ser livre para fazer as coisas que tem vontade? Você manda na sua vida e não oplano que você fez pra você.

– Mãe, eu simplesmente não consigo imaginar um cenário em que Luli e eu não passemosfome.

– Querida, escute bem. Sei que você gosta de Luli, então eu queria que você cuidasse dela.Mas se você acha que não pode, decidi doá-la amanhã ao meio-dia para a feira de adoção ali naRua 5, perto da feira, sabe? Ao lado daquele pet shop famoso, como é mesmo o nome, Zé?

– Pet Mania – diz papai, ajeitando os óculos de grau.– Isso! Pet Mania, ali perto da feira.Fico chocada.– Você não pode simplesmente doá-la!– Querida, Luli deve ficar com uma família que vá cuidar muito bem dela. Sei que foi um

erro meu tê-la adotado sem pensar direito. Mas agora preciso fazer o que é certo.– Entendo – digo, carrancuda, os braços cruzados.– E acho que o certo para ela é ficar com você.– Desculpe, mamãe, mas não posso.Pego Luli nos braços e a acaricio. Ela lambe minha bochecha e olho para baixo, engolindo o

choro. Gostaria de poder cuidar dela, gostaria mesmo, mas não posso. Mal tenho dinheiro para

mim, como vou sustentá-la? Como mamãe mesma disse, Luli deve ficar com uma família quecuidará bem dela.

Jantamos, dou adeus à Luli com o coração apertado e saio do apartamento dos meus pais.Chego em casa sem conseguir relaxar. Ligo a televisão, mas de nada adianta. Minha cabeça estámuito cansada, de tanto pensar. Parece que é só o que faço. Pensar, pensar e pensar.

Pego no sono detestando a atitude impensada de mamãe, mas dando-lhe crédito por suainteligência emocional ao perceber que às vezes eu realmente não me permito fazer o que tenhovontade.

Acordo no dia seguinte e me levanto para preparar um café bem forte. Talvez adotar Lulinão fosse assim uma ideia tão ruim. Quer dizer, ia ser uma gracinha poder ver os adoráveis pulosdela enquanto eu faço meu café da manhã todos os dias. E eu ainda prepararia um café da manhãincrível para ela, com frutas e coisas apetitosas e saudáveis.

Mas com que dinheiro? Coloco a água do café para ferver. Tudo bem que talvez eu pudessepegar todos os acessórios que meus pais já tinham comprado a ela, como a casinha, as roupinhase as sobras do pacote de ração. Mas ainda assim não teria o suficiente. Eu ia ter que comer raçãotambém.

Pego o potinho de café e o coador na gaveta. Se eu pelo menos tivesse mais um paciente noconsultório, talvez eu pudesse ter adotado Luli. Aí sim eu poderia dar a ela uma boa vida. Mas étarde demais. Sobreponho o lábio inferior no de cima, formando uma carranca.

Jogo a água no coador, que contém bastante pó de café, quase exageradamente. Só quetalvez, só talvez, dar uma vida boa para Luli seja simplesmente dar-lhe um lar. E quem megarante que ela conseguirá ser adotada naquela feira de cachorros por uma família decente?Quem me garante, inclusive, que ela ao menos será adotada?

Ai, meu Deus! E se Luli ficar sozinha pelo resto de sua vida, sem ter ninguém para cuidardela?

Esse pensamento terrível toma conta de mim e pouso a colher na pia. O café cai sem sentidona garrafa térmica e os meus planos não me parecem tão interessantes se eles me impedem de daramor a alguém. Um cachorro definitivamente não estava nos meus planos, mas eu poderia muitobem dar um jeito.

Que se dane, eu como ração se for preciso!Com um forte impulso, deixo o café coando na pia, corro em direção à sala, agarro minha

bolsa e visto uma jaqueta de frio. Olho para o relógio de parede e ele marca que já são 12h09.Droga! A essa hora mamãe provavelmente já entregou Luli para doação. Preciso chegar lá atempo de adotá-la primeiro.

Chamo o elevador que, para a minha surpresa, chega muito rápido no meu andar, o que mereforça a ideia de que isso pode dar certo, mesmo que nada disso tenha sido planejado.Infelizmente, um casal de idosos me olha de cima a baixo e permanece em silêncio observandomeus chinelos por cima das meias, e meu modelito supermoderno de calça velha de moletom ejaqueta jeans.

Corro em direção ao ponto de ônibus quando vejo que o ônibus que devo pegar para obairro dos meus pais está passando naquele exato momento. Por mais um golpe de sorte, o

motorista pisa no freio quando me vê correndo como uma maluca que fugiu do hospício e,ofegante, consigo subir a bordo.

Nem me incomodo com os olhares curiosos para o meu look desarrumado, pois tenhoapenas um objetivo em mente, e isso significa trazer aquela bolinha de pelos para casa. Porém,aproveito para tirar as meias agora que já estou a caminho – porque estou realmente ridícula – eas guardo dentro da bolsa.

Enquanto o ônibus se movimenta na velocidade de uma tartaruga, me pergunto se omotorista parou para que eu pudesse subir no ônibus ou se ele apenas andava muito devagarmesmo. Ligo para mamãe pela terceira vez, para saber informações sobre o paradeiro dela e deLuli, mas como sempre ela não me atende. Do jeito que ela é, provavelmente nem mesmo levouo celular.

Já são 12h30 e nada de chegarmos. Minha ansiedade rompe as barreiras do termômetroquando o ônibus para em um engarrafamento que parece que vai durar uma vida inteira. Mas,como um desvio no destino, viramos na próxima esquina e começamos a nos mover depressa,dessa vez quase perigosamente, enquanto o motorista se transforma num piloto de Fórmula 1 eos passageiros se veem obrigados a se segurar nas barras e cadeiras a sua frente.

Desço no ponto perto da Rua 5 e ando depressa em direção ao Pet Mania. Ao lado, há umgrande banner que diz “feira de adoção” e aperto o passo.

Caminho pelas jaulinhas à procura de Luli, mas ela não está ali. Ouço os latidos doscachorros e começo a entrar em pânico.

Cadê ela? E se alguém a adotou?O relógio mostra que já são 12h50. Oh, não... Talvez ela já tenha sido adotada.– Com licença? – digo sem fôlego à atendente pequena e sorridente, com uma trança nos

cabelos. – Você viu uma Lhasa Apso branquinha?– Uma Lhasa Apso? – ela diz, conferindo sua prancheta.– Sim, o nome dela é Luli. Me disseram que iriam doá-la a vocês hoje ao meio dia.– Não recebemos doação de nenhuma Lhasa Apso hoje.– Tem certeza? – pergunto, colocando o cabelo desarrumado atrás da orelha, sem saber o

que fazer em seguida.– Melissa? – ouço uma voz familiar, então me viro para observar. E o que vejo é a cena de

mamãe segurando Luli nos braços, tirando os óculos de sol dos olhos e posicionando-os nacabeça. – O que é que você está fazendo aqui? E vestida desse jeito?

Ignoro o comentário dela a respeito de minhas vestimentas. Não é da conta dela.– O que é que a senhora está fazendo aqui? – aponto para o relógio no meu pulso. – Não

deveria ter vindo às 12h?– Ah, sim! Mas parei pra conversar com Telma, e você sabe como ela é enxerida. Ficou

tentando me convencer a não doar Luli, então eu disse “por que você não fica com ela?”, ao queela me respondeu “tenho cara de canil?”, e depois ficamos discutindo sobre a cor de paredehorrível que ela escolheu para a sala de estar.

A descontinuidade da conversa delas me espanta, mas não estou minimamente interessadana cor que Telma escolheu para a parede dela.

– Eu fico com ela – interrompo a falação de mamãe.– O quê? – mamãe abre um sorriso.– Sim, eu fico com Luli – estendo os braços na direção do meu novo animalzinho de

estimação, aliviada por ter chegado a tempo. Pego ela no colo, recebendo diversas lambidasanimadas na bochecha.

– Mas você disse que isso não estava nos seus “planos” – ela diz a última palavra comsarcasmo.

– Eu sei o que eu disse, mas quero cuidar dela – afago a cabecinha de Luli, que se agarraainda mais nos meus ombros, como se me pedisse para não deixá-la aqui. E não vou. Mesmo nãotendo um centavo no bolso, ela faz parte dos meus planos agora. Dos meus novos planos.

– Ótimo, querida! – mamãe diz, passando os braços ao redor dos meus ombros. – Você nãosabe o quanto isso me deixa feliz.

– Então está na hora de você me deixar feliz, dona Margarete – digo. – Primeiro precisamosde uma carona. Não posso voltar de ônibus com ela nos braços.

Entramos no carro e ajeito a cachorrinha no meu colo.– E depois, Luli e eu aceitamos doações de ração, roupinhas e todos os acessórios que a

senhora comprou para ela. As coisas andam meio paradas no consultório. – Olho para os meuspés. Eu nunca tinha confessado aos meus pais o quanto estou quebrada.

Ela me olha por um momento.– Está precisando de dinheiro?– Não, mãe, não estou – minto.– Sabe que tudo o que eu quero é te ajudar, não é, querida?– Sei disso, mamãe. Mas vocês já fizeram muito por mim. Isso é algo que preciso conseguir

sozinha.– Eu me orgulho muito por você ser tão organizada, Melissa – ela diz, com as mãos no

volante. – Mas na maioria das vezes as coisas não vão sair como o planejado na sua vida. E vocêtem que arriscar.

– Sem querer ofender, mas você não é o exemplo de sensatez. Você vive metendo os péspelas mãos, fala sem pensar, e age por impulso – digo e aponto para a filhotinha que ela estavaprestes a doar para o abrigo de animais.

– Mas no final tudo deu certo, não foi? – ela pergunta, apontando para Luli e eu.– Sim, mas...– Querida, meter os pés pelas mãos de vez em quando não é uma coisa necessariamente

ruim. Só quer dizer que você está tentando.Sinto o cheirinho doce do shampoo de Luli.– Você pode ter um pouco de razão.– Melissa, eu te pari. É claro que eu tenho razão! – ela rebate, ligando o motor do carro. – E

é por isso que pego tanto no seu pé. Você precisa pensar menos, meu amor.Eu faço isso, não faço? Pensar demais? Eu realmente faço isso. É como se eu tivesse

passado a vida inteira presa numa caixa, quando na verdade existiam muitas outras formas de

viver. Eu quero sair!– Ei, mãe – digo, dando-lhe um beijo na bochecha. – Obrigada por isso. Luli agradece

também.Ela pisa no acelerador, e cruzes! Mamãe dirige mal à beça. Buzinas soam altas quando ela

corta os carros e ônibus sem pestanejar, e temo não conseguir levar Luli para sua nova casa.– E mais uma coisa – ela acrescenta, enquanto buzina para uma motocicleta. – Fiz o que

você me pediu.– E o que foi que eu pedi?– Para que eu alimentasse Luli apenas com ração, para que ela fosse para a casa da nova

dona com saúde. E eu o fiz.– Não brinca! Isso é sério? – pergunto, afagando a cabeça do animalzinho em meu colo.– Pois é, então cadê aquela tal blusa que você me prometeu como recompensa?

Não sei se foi a noite muito bem dormida, ou se é porque estou tendo a sensação libertadorade comer um croissant de chocolate no café da manhã, mas me sinto bem.

Olho para Luli, que pula noventa centímetros no ar a fim de arrancar uma lasquinha docroissant, e as coisas parecem diferentes. Além da nova bola de pelos que ronda meuapartamento.

De qualquer jeito, nunca daria certo com Rafa. As alergias dele me impediriam de ficar comLuli, então eu teria que doar o Rafa para o abrigo.

Vou até a cozinha e me sirvo de mais café... enquanto preparo pães de queijo com calma...eu não tenho pressa! Talvez meus planos possam esperar. Não preciso necessariamente ter umrelacionamento agora. Por enquanto, posso esperar.

Talvez tudo o que eu fiz nem mesmo tenha sido por causa do Rafa. Eu simplesmente tinhame cansado de desistir da área amorosa da minha vida. E não era o meu timing que estavaerrado, no final das contas. Eu apenas tentei demais com a pessoa errada.

Falta uma semana e um dia para o casório e Pati me ligou hoje cedo no telefone doconsultório – pois sabia que eu não recusaria a chamada –, com o pretexto de me encher defofocas numa manhã semiensolarada. Mas no fundo, no fundo, sei que na verdade ela estavaintencionada a descobrir alguma fofoca da minha parte.

Não dei a ela esse gostinho.Em vez disso, ela acabou me lembrando de que hoje é o casamento de Alana e Rafael no

civil. E não que eles precisem disso, ou que já tenham precisado um dia, mas eles têm minhabenção.

Os pais dos noivos serão as testemunhas, de forma que pude me safar dessa. Para falar averdade, eu estou pensando muito menos neles ultimamente. Minha cabeça gira em torno deoutra questão.

Não que eu esteja obcecada com isso nem nada.Mas o negócio é que Leonardo não pode me beijar, dizer que me ama e em seguida virar as

costas para mim e ir embora. É simplesmente errado.Você está errado, Leonardo. Muito errado!E não digo isso porque gostei de ouvir aquelas palavras.

Certo, talvez eu tenha gostado um pouquinho de ouvir aquelas palavras, mas elas de nadaadiantam se a pessoa vai embora com raiva de você depois, não é?

Ele achou que aquilo seria romântico?Pois então ele tem assistido comédia romântica de menos, se é o que você quer saber.Ele precisa de boas referências cinematográficas da próxima vez que fizer algo assim.Não que eu queira que seja comigo.Mas se eu quisesse, hipoteticamente falando, e não estou falando que quero nem nada, esse

não seria o jeito de me impressionar.Mesmo que meu coração dispare só de pensar nisso.– Ei, Lo! – digo à Lorraine ao sair da minha sala com um montão de pastas na mão e a bolsa

no ombro, pronta para ir embora mais cedo.Afinal, o que há para fazer por aqui? Meus planejamentos de marketing estão quase se

esgotando, de qualquer maneira. Assim como o meu dinheiro.– Sim? – ela pergunta, levantando os olhos do computador, que aposto que está na tela do

Facebook, MSN ou algo assim. As pessoas ainda usam MSN?– Seu café é maravilhoso. Nós não conseguiríamos mais viver sem você por aqui. É uma

ótima secretária.– Como é?Ela desvia o foco do computador, parecendo ter visto um fantasma.– Você gosta mesmo do meu café? – ela esboça um sorriso. Será que eu já tinha visto essa

garota sorrir?– Se eu gosto? Não vê que eu acabo com a garrafa todinha?– Puxa... obrigada, Melissa!– Pode me chamar de Mel.– Tá legal, então... Mel.Apoio a bolsa no balcão.– E falando nisso... será que dava para não colocar açúcar no café de agora em diante? É

que eu descobri que...– Que doutor Júlio tem diabetes?Afirmo com a cabeça, impressionada.– Como você sabia?– Eu recebo as entregas dele da farmácia no consultório. Desde então, venho substituindo

açúcar por adoçante natural. Ele nem percebe a diferença.Ok, talvez ela preste mais atenção no trabalho do que eu imaginei.Dou uma piscadinha para ela quando Júlio passa ao nosso lado.– Boa tarde! – digo a ele.– O que disse? – ele vira para me encarar, pescoço primeiro, barriga depois.– Eu disse boa tarde.– Ah, bom dia, bom dia – ele cantarola.– O que aconteceu com você?– Comigo? – ele questiona.

– É! Com você. – apoio o peso em uma perna só.– Iolanda aconteceu comigo. Foi isso!– É mesmo? Isso é fantástico. Como foi o encontro?– Foi esplêndido. Devo estar apaixonado. Não devo? – ele abre um sorriso radiante com

aquelas bochechas enormes.– Como eu posso saber?– Ora, filha... você não é especializada em relacionamentos? Faça a sua mágica!– Quer marcar uma consulta comigo, então? – digo, brincando com ele.– Eu quero – diz uma voz familiar e me viro para conferir.E não acredito nos meus olhos.– Magda? – pergunto, ao observar a mulher com cara de cavalo da primeira fileira em

minha desastrosa palestra de mais de um mês atrás entrar pela porta do consultório.– Você se lembrou do meu nome – ela sorri, humilde.Então dá um passo cauteloso à frente e ergue uma mão para Júlio, num tímido

cumprimento.– Mas é claro que sim. Eu nunca me esqueço de um rosto – digo, omitindo que é por causa

da característica marcante do rosto dela em si e dando-lhe um abraço.– Eu... – ela hesita. – E eu nunca me esqueço de seus conselhos. Tivemos uma melhora

muito boa, meu marido e eu, mas ainda há muito o que resolver.– Que bom que ajudei – digo e estendo o braço ao redor. – E fico feliz que tenha vindo

conhecer o nosso espaço.– Sim, sim, claro. Eu recebi seu e-mail, então vim conferir.Que ideia maravilhosa a do e-mail marketing! Queria agradecer ao Leo por ter me orientado

a respeito da propaganda online. Se ele estivesse falando comigo, quer dizer.– Você também trabalha com terapia para casais?E não é que minha recém-adquirida experiência com Alana e Rafael me rendeu bons frutos?– Sim, tenho experiência prévia na área, sim – digo e cruzo os braços da mesma maneira

como na foto profissional do e-mail.Ela não precisa saber quão prévia é a experiência.Júlio levanta os dois polegares para mim atrás de Magda.– Que maravilha. E quando podemos começar? – ela pergunta.– Deixe-me checar, só um minuto – pego a agenda preta de couro dentro da bolsa e começo

a folhear. Mas então me detenho. Não faz sentido esconder dela que estou totalmente,absolutamente disponível, se tudo o que ela quer é minha disponibilidade.

– Pra falar a verdade... – digo, guardando a agenda de volta na bolsa e sorrindo para ela –, ...podemos começar agora mesmo!

É 24 de agosto, e isso quer dizer que amanhã é o dia do casamento que, como diria Alana,vai super acontecer. Até o clima da cidade esquentou, como um grande clichê, para coroar areconciliação do casal.

Os pombinhos dão crédito especial a minha pessoa pelo acerto de contas, mesmo que euainda esteja em “processo de perdão” com minha paciente. Pelo menos ela não me desconvidoupro casamento, o que já é uma grande coisa.

– Um frapê de chocolate, por favor? – peço ao atendente do café.Pego a notinha do meu pedido com dificuldade, com a mão disponível. Acabei de voltar de

Iolanda para pegar meu vestido de madrinha. Mas não sem antes ela me olhar de cima a baixo edizer, com muito tato:

– Andou comendo umas bolachinhas a mais, querida?Ela fez questão de acrescentar que não se responsabiliza se o vestido ficar apertado. A culpa

é minha se salada tem um gosto estranho? Podem me chamar de louca, mas não fui eu quem aplantou.

Então eu disse a ela que juntar casais adoráveis me dava fome, se é que ela me entendia. Elaficou toda envergonhada e me deu um abraço rápido, seguido de um “obrigada, meu bem” naforma de um sussurro.

Com o frapê congelando meus dedos, sento-me para apreciar a manhã na poltronaconfortável do café, o cheiro de croissants e folhados pairando no ar.

Agora que tenho a terça-feira preenchida com minha mais nova paciente, das dez às onze damanhã, parece até que enxergo os arredores mais coloridos. Ou talvez seja o sol que invade osespaços anteriormente frios, dando vida a tudo e a todos.

Mas o fato é que, agora, ninguém me segura!Viva o e-mail marketing! Seja lá quem inventou essa maravilha, está de parabéns. Inclusive

eu deveria mandar um e-mail marketing a seu inventor com meus formais agradecimentos. Sóque aí eu acho que não seria um e-mail marketing, mas sim, somente um e-mail.

Tanto faz, digamos que eu ainda não seja o gênio do empreendedorismo digital. Mas estouaprendendo muita coisa ultimamente. E estou pronta para curar alguns corações partidos por aí.

Talvez eu até faça uma conta em alguma rede social. Tá legal, não vamos exagerar!Se estou pronta para o dia de amanhã? Posso dizer que adoro tradições. Mas quem diria que,

como primeira vez sendo madrinha, eu ia querer separar o casamento?E, pensando por esse lado, a culpa não é realmente minha, já que essa é a minha primeira

vez, e ninguém me deu um manual de instruções. Apesar de que alguns chamariam esse manualde instruções de bom senso.

De qualquer maneira, agora já entendi essa coisa toda de madrinha.Só que não é o casamento em si que me deixa nervosa. A sensação estranha na ponta do

meu estômago fica perambulando por lá por causa do...Bom, por mais que eu não queira admitir, tudo isso é por causa...Ah, que se dane! Obviamente é por causa do Leo.E eu detesto essa sensação.Porque estou quase certa de que sei por quê, involuntariamente, me sinto dessa forma.O ambiente do café tem um clima agradável. Quadros com fotografias enormes e coloridas

de pessoas felizes preenchem as paredes.No balcão de madeira há dois amigos adolescentes com os olhos inchados de sono e

uniformes escolares bem passados – provavelmente mal-humorados por terem sido obrigados aacordar tão cedo. Estariam eles inconscientemente vingando-se de seus pais ao gastar umafortuna com cafés da manhã de valores exorbitantes no cartão de crédito deles?

Há também duas mulheres bonitas conversando, um casal adorável dividindo um sofá decouro, um senhor bem vestido com terno e gravata cinzas lendo o jornal e...

Espera aí um minuto! Um casal adorável dividindo uma poltrona? O caramba que sãoadoráveis! Mas que droga é essa?

Ajeito os óculos e estreito os olhos para ter certeza. E é mesmo Pati dividindo o sofá com oidiota do Augusto. Mas que porcaria ela está fazendo ali?

Ouço sua risada estridente. Traição de ex-namorado não é um tema engraçado para mereceressa risada entusiasmada da parte dela. Tenho vontade de ir até lá e arrancar um tufo de seucabelo ruivo, arrastando-a para longe daquele pervertido – que se divertia muito com aquela loiracom pinta no queixo e pernas bronzeadas que vi com ele no restaurante. Tenho certeza de que elenão mudou da água para o vinho.

Mas a vida é dela e não é da minha conta. Então me levanto devagar da poltrona confortáveldo café, xingando Pati mentalmente por me fazer sair dali a fim de não ser vista por ela mesma.

Saio do café quentinho quase tropeçando nos degraus com o vestido no cabide dentro dacapa e pego o celular na bolsa para contar ao Leo o que acabei de presenciar. Ah! Esquece...esqueci que ele provavelmente não quer falar comigo, então desisto no meio do caminho. Decidopor outro número, em vez disso.

– Alô?– Oi! Você não vai acreditar em quem eu acabei de ver. E com quem!– Quem? – diz ela, com a voz mais fina do que a de um esquilo.– A minha amiga ruiva burra, com o idiota do Augusto.

– Só um minuto – diz Pati com a voz doce. Olho pela janela de vidro enquanto ela se afastado canalha. – Merda! Eu sei que eu devia ter contado antes, mas eu posso explicar, eu juro!

Engraçado como a doçura na voz dela de alguns segundos atrás desapareceucompletamente.

– Você não deveria ter me contado nunca, porque isso nunca deveria ter acontecido.Patrícia, sua idiota!

– Eu sei, eu sei. Merda!– Hoje, às sete, na minha casa. Essa é uma reunião de emergência.– Ah, não! Noite do sermão? Obrigada, mas eu passo.– Você não pode simplesmente “passar” uma reunião de emergência!– Ótimo, querida. Então tá bom! – ela retorna a sua voz artificialmente doce, voltando a se

aproximar de Augusto. – Te ligo depois. Tchau, tchau – diz, como a cretina que às vezes é, edesliga o telefone na minha cara.

Chego ao consultório no momento em que o meu celular toca dentro da bolsa. Demoro umtempo até localizá-lo, e quando finalmente consigo encontrá-lo, ele para de tocar. Vejo no visor aligação perdida de Rafa, mas não quero retornar.

E se ele me disser que o casamento foi novamente cancelado e que é tudo minha culpa?Enquanto encaro o aparelho, o trim do celular ressoa novamente e quase o derrubo das

mãos.– Alô?– Oi, querida... – diz uma voz de mulher e imediatamente reconheço a dona.– Oi, Alana.– Nossa madrinha preferida... – ela diz, em tom reconciliatório.– Essa sou eu – sento-me na cadeira e abro um pequeno sorriso. Tiro as sapatilhas do pé.– Bom, te ligamos há pouco para avisar que o seu par como padrinho do casamento mudou,

ok?Como assim, mudou?– Humm... como é? – digo, calçando as sapatilhas de novo.– O Leandro, que era o padrinho correspondente a você, vai participar da cerimônia com

outra madrinha, que ele já conhece faz tempo.– Leonardo.– O que disse?– O nome dele é Leonardo.Quem é que ele conhece melhor do que eu? Quer dizer, eu entendo que ele conheça

incontáveis mulheres, mas até entre as madrinhas? Sério, Leo? Sério?– Mas ele me conhece há muito tempo – me pego respondendo, na defensiva.– Sim, mas sabe como é. Pediram-me para que a troca fosse feita, querida.– Está bem, então – digo, mais emburrada do que gostaria.– Bem... então, tchau, tchau – ela hesita, como se estivesse pisando em ovos comigo. – Não

vejo a hora de... você me ver em meu vestido amanhã. Bye.

Ela desliga abruptamente. Continuo com o celular na orelha, resmungando para mimmesma. E finalmente não é por causa de Alana. Tem a ver com a rejeição do meu antigo par.

Qual é o problema dele?– Pati – digo, assim que ela atende à ligação.– Eu-não-vou-na-sua-casa-hoje-à-noite.– Vai sim.– Não, eu não vou – ela diz cada palavra lentamente, como se eu fosse imbecil. Eu bufo.– Vai, sim. Porque eu tenho uma coisa pra contar. E você vai querer saber.

– E foi isso. Eu o vi beijar uma garota na balada e decidi que não valia a pena.Ela parece chocada com o que aconteceu na faculdade, a cabeça ruiva apoiada nas mãos em

cima da bancada de granito branco da minha cozinha. Penso em pegar água com açúcar para ela.– Eu não acredito! – ela diz, finalmente.– Eu sei, também fiquei chocada na época – falo enquanto enfio um pedaço de bolo de

chocolate na boca, satisfeita por ter partilhado essa história com ela. E por ela ter partilhado essebolo comigo.

– Não! – ela me olha como se eu fosse idiota. – Eu não acredito que você não me contouisso antes.

– Ah, para!– O que mais você escondeu de mim todos esses anos? Que você já foi casada? Hein? Seu

nome é mesmo Mel?– Não, Mel é meu apelido – rebato.– Você me entendeu! – a voz dela sobe muitos decibéis.A luz branca da cozinha ilumina os cabelos de Pati, deixando-a ainda mais ruiva, suas

mechas contrastando com os móveis brancos do ambiente.– Você é minha melhor amiga, mas isso era doloroso demais pra te contar. Além do mais,

você não é exatamente a pessoa ideal para repreender alguém por causa de um segredo, não émesmo? – digo, cortando mais um pedaço do bolo macio, o cheiro de chocolate passeando peloar. – Você mentiu pra mim, sua vaca.

– Você chama de mentira, eu chamo de omissão – Pati pega seu prato de sobremesa ecaminha da cozinha para a sala de estar minúscula do meu apartamento, os sapatos oxfordfazendo barulho no carpete de madeira. Eu a sigo.

– O mundo chama de mentira, Patrícia – Paro no meio do caminho. – Espere aí! Foi por issoque você se escondeu no dia em que vimos Augusto no restaurante chinês?

– Er...– Você não estava se escondendo dele. Estava escondendo ele da gente. – Afundo-me no

sofá ao lado dela.

– É muito difícil de te enganar, sabia? Eu não podia deixar você me ver interagindo comele, ou você descobriria tudo.

– Não precisava ser um gênio pra descobrir o que estava rolando ao ver vocês engalfinhadosno café hoje.

Ela sorri com tristeza.– Então eram para ele todas aquelas mensagens que você vivia mandando?– Pois é – ela diz e apoia a cabeça no sofá.Espere aí!– Pati, eu posso jurar que vi você beijando Augusto na despedida de solteiro do Rafa

enquanto eu estava... sabe como é... bêbada. Você o convidou??Ela estampa a maior cara de pau!– Er... eu posso ter dito alguma coisa a ele sobre o evento...– E era ele o carinha lindo, lindo, lindo com quem você estava saindo?– Culpada – ela estende uma das mãos.–Meu Deus, Patrícia! Quem é você? Uma espiã da CIA? – suspiro. – Você merece coisa

melhor.– Pelo jeito ele também acha que merece.– O que quer dizer com isso?Ela fecha os olhos, como se estivesse contemplando a própria estupidez.– Ele tem saído com outra.– Desgraçado!É obvio que o Augusto não concorre ao prêmio de “monógamo do ano”, mas pelo amor de

Deus! De novo?– Quando foi que descobriu isso?– Hoje, no café.– E o que você fez?– Um escândalo, é claro.Junto os pés em cima do sofá.– Algo além de gritar?– Também joguei café quente na cara dele.– Pati! – dou um tapinha nela. – Você podia ter queimado ele!– E o que é que eu deveria fazer? Esperar o café esfriar para aí sim jogar na cara dele? Ele

devia ficar feliz de eu não ter jogado também meu cappuccino. Isso porque eu ainda ia beber.Puxo meus joelhos para o peito e os envolvo com os braços.– O que ele fez dessa vez?– Eu fiquei desconfiada quando notei um chupão no pescoço dele. Mas deixei pra lá porque

poderia ter sido eu. Mas quando ele recebeu uma ligação, e a foto de uma loira peituda apareceuna tela do seu celular e ele apertou ignorar, somando-se ao fato de que eu não dou chupões, euconclui tudo.

Encaro minhas unhas.

– Pati, eu nem sei como dizer isso. Mas eu o vi com uma mulher loira há mais ou menos ummês num restaurante perto do consultório. Só não contei porque não fazia ideia de que vocêestava saindo com ele.

O barulho de um trem chegando à estação de metrô pertinho da minha casa é o único somque escutamos. Pati – inusitadamente calada – olha fixamente para um ponto qualquer da paredeamarela atrás de mim.

– Pode ser que ela seja a mesma? – pergunta ela, os olhos vermelhos de raiva e indignação.– Talvez. Eu me lembro de que ela tinha uma pinta horrível no...– Queixo? – ela me interrompe, e eu afirmo com a cabeça.Ela solta um grito abafado em uma almofada e cai de lado no sofá, xingando a si mesma de

nomes como “burra”, “estúpida” e mais uma porção de coisas. Abraço minha amiga cansada deser traída.

– Ela não era bonita – digo.– Era sim.– É, pode ser. Mas a pinta estragava o rosto dela.– A pinta a fazia parecer uma atriz francesa – Pati diz, emburrada.– Só se for uma atriz francesa pornô – digo, e ela esboça um sorriso. Mas ele logo se desfaz

enquanto ela abraça a almofada.Dada minha total inabilidade de consolá-la, decido agraciá-la de outra forma.–Tá legal... vou contar uma coisa que vai te animar.Ela levanta os olhos curiosos para mim. Entrelaço minhas mãos, e as separo novo. Coço a

cabeça.– Bom, é que talvez, só talvez... bem, eu não sei ao certo, é que o Leonardo me deixou sem

reação naquele dia do bar, e você sabe como eu sou... biruta! Fiquei biruta. Aí Alana me ligoupra falar que eu teria outro par no casamento. Acredita? Nossa, não acreditei – Eu tenhoconsciência de que estou falando como Alana, só não consigo parar. – Quer dizer, ele pediu paratrocar de par? Que comportamento de pré-primário! Daí eu lembrei de toda a história do beijo e...

– Beijo? Que beijo? – ela se inclina para frente, chegando muito perto de mim.– Ah, é. Não contei do beijo, não é? – nossa, ela vai me matar, isso é certo. Ela olha furiosa

para mim e cruza os braços. – Leonardo me beijou.– Ele fez o quê?– Bem, foi no dia em que você estava tendo um treco no hospital – e ficou horrível, pra ser

sincera, não me leve a mal –, e ele me beijou, mas só porque queria despistar Bárbara, que estavaatrás dele feito cachorro no cio, então ele me puxou e me beijou, e foi bom e eu amei, não voumentir, mas eu também fiquei tipo, o quê? Sabe assim?

Será que é assim que Alana se sente?– Ai-meu-Deus! Ele te beijou? – ela abre a boca e consigo ver seus dentes de trás. – Isso é o

máximo!– Não, não é. Nós nunca daríamos certo...– Ah, quer parar de ser tão cínica? É óbvio que você gosta dele! Vocês vivem grudados um

no outro – ela joga a almofada na minha cara.

– Não sei do que você está falando – jogo a almofada de volta, que ela desvia com as mãos.– É quase impossível te ver em um momento de crise sem que o Leo esteja lá.– Isso é porque ele causa as crises!– Pelo jeito, a única crise que ele causa é a de não estar com você! Uuuuuuuuh... – ela

começa a se mexer em meu sofá numa dancinha boba, embalada no ritmo de uma música quenão está tocando.

– Cale essa boca!Ela dá risada.– Cara, isso é incrível! – ela me segura pelos ombros. – Eu te conheço há muito tempo pra

saber que você está completamente perdida por causa dele. Eu nunca te vi assim, nunca!Sinceramente já desconfiei que você fosse assexuada.

– Ha ha ha! Muito engraçado.– Se liga, Mel! Você nunca ficou desse jeito por causa do Rafa. Nem uma faísca sequer.

Mas agora? Você está nervosa. Você está caidinha pelo Leo!– Talvez, mas eu...– Talvez uma ova!– Mas se eu realmente gostar dele, hipoteticamente falando... – acrescento depressa,

estendendo o dedo. – ... eu vou ter feito tudo o que eu fiz à toa. Eu vou ter corrido atrás do Rafa àtoa. Vou ter perdido todos esses anos.

– Nada é por acaso. Antes não era o momento de você e o Leo ficarem juntos. Mas agora é!– Mas do que adianta ele dizer que me ama e tudo mais... – digo, mordendo o lábio inferior.

–... se ele não quiser ter um relacionamento comigo?– Ah, sei lá... – Pati diz e se remexe no sofá procurando uma posição para se acomodar. –

Acho que você deveria tentar.– Mas qual seria o ponto?Pati engole lentamente a saliva e fixa seu olhar nos próprios pés.– Sei lá, cara... o que custa tentar? É só o que vou dizer!Mas ela comete o erro de olhar para mim, que mantenho os olhos cerrados em sua direção.

Pati morde o lábio inferior e cede. – Ai, que saco, Melissa. Eu não posso falar mais que isso!– Como assim? O que mais você teria para me falar?Ela bufa.– Ô, garota curiosa!– Curiosa? Eu?– Está bem, eu conto – diz, batendo com as duas mãos nas pernas. – Quando o Leo e eu

ficamos conversando naquela fila gigantesca no Villa’s, ele estava todo nervoso. E eudelicadamente perguntei o porquê.

– Sei – cruzo os braços.– Tá bom, eu delicadamente insisti pra caramba! E ele me contou que estava caidinho por

alguém. Mas não queria me contar por quem, dá pra acreditar? – ela coloca a mãodramaticamente no peito. – É óbvio que eu fiquei louca pra saber quem era. Só que eu jádesconfiava ser você faz tempo, então fingi dar em cima dele para...

– Você o quê? – grito.Pati sorri ironicamente, então eu logo acrescento:– Quer dizer, não tem problema. É só que eu não imaginava que alguma coisa tivesse rolado

entre vocês.– E não rolou. Você não está entendendo. Preste atenção!Ela segura meus ombros e me chacoalha.– Eu fingi dar em cima dele, porque se ele fosse apaixonado por você, não ia arriscar

estragar as coisas correspondendo a sua melhor amiga, que sou eu – ela faz um floreio paraindicar a si mesma.

– Certo.Solto a respiração que não percebi que estava prendendo.– Logo que eu comecei a beijar o pescoço dele, ele começou a me contar tudo e...– Você o quê? – interrompo de novo, o sangue me subindo à cabeça. Como ela pôde fazer

isso?– É brincadeira, é brincadeira! Eu não fiz isso. Só queria ver a sua reação – ela tira sarro da

minha cara. – Ei, estou ficando boa nisso!– Tá, quer parar?Ela dá uma gargalhada estridente que faz meus ouvidos doerem.– Certo, certo. Então, quando eu dei em cima dele “de mentirinha”, ele recuou e confessou

tudo – ela se inclina para frente no sofá. – Lembra-se de quando falei que o carma faria Leo seapaixonar por uma mulher muito difícil?

– Sim, e daí?– Pois bem, não há nada mais difícil do que uma garota que acredita estar apaixonada por

outro cara.– Ah, merda! – abraço a macia almofada cor-de-rosa.– Ele me contou que era apaixonado por você desde a faculdade. Essa última parte nem eu

tinha imaginado.– Não acredito que ele me ama.Eu sabia que Leo teve uma queda por mim na faculdade, mas nunca imaginei que esse

tempo todo ele me amava. Quem imaginaria uma coisa dessas vindo dele? E ainda mais que elenutria esse sentimento por mim há tantos anos?

– Pois acredite – ela diz e coloca os pés no sofá, sentando-se em cima deles. Eu espero queos pés dela estejam limpos! – Quando Rafa anunciou que estava noivo, o Leo morreu defelicidade porque isso significava que a sua paixonite pelo Rafa deixaria de existir.

– Mas isso não aconteceu – meus ombros caem.– Pois é. Então eu perguntei o que ele pensava a respeito de vocês dois juntos...– E o que ele disse? – é a minha vez de segurá-la pelos ombros.– Ele disse... olha, eu não posso contar.– Você? Você não pode contar?– Não posso.– E aquela história toda sobre você me contar tudo, mesmo se eu não pedir?

– Isso é diferente. Você sabe que eu adoro falar da vida dos outros, principalmente falarmal, mas dessa vez, só dessa vez, eu realmente não posso. Isso tem que vir da boca dele.

O que será que ela não está me contando?Será que ele, de fato, namoraria comigo?Ou será que é o exato oposto? Eu não ficaria nada surpresa se ela não quisesse ser a pessoa

a me contar que Leo me ama sim, mas que isso não muda o fato de que ele não quer estar em umrelacionamento sério. E acho que eu não poderia culpar Pati por não querer me dar um fora emnome do Leo.

– Se é assim, eu também não te conto mais nada – digo, apontando minha colher para ela.– Você não ousaria! – ela aponta a colher dela de volta para mim.Ficamos em silêncio, quebrado apenas pelo ponteiro do relógio de parede da sala e das

nossas mastigadas.– Não sei o que devo fazer.Não quero quebrar a cara outra vez...– Deixe de ser burra, Melissa, e vá lutar por ele – ela diz, colocando goela abaixo um

pedaço enorme de bolo de chocolate que quase não lhe cabe na boca, o que torna seu julgamentoum pouco duvidoso.

– Já segui o seu conselho uma vez e não deu muito certo.– Mas você sabe qual é a diferença dessa vez, não sabe?Não é que aquele biscoitinho da sorte estava certo, no final das contas, com aquela

baboseira toda de “o amor estará onde o coração menos esperar”?Respiro fundo, inalando o cheiro do meu aromatizador de ambientes de laranja, e digo:– Agora é com a pessoa certa.

Espero duas senhoras de idade saírem lentamente da minha frente e largo em disparada.Preciso me encontrar com o Leo antes que ele saia de casa! As batidas fortes do meu coração sãoquase mais altas que o som das minhas sandálias fazendo tlec tlec tlec no piso do metrô.

Ah, eu ainda não contei?É isso mesmo, sigo de metrô. Po-bre-é-fo-go!Ao me lembrar de que Leo planejava entrar no casamento com outra madrinha, fiz a única

coisa lógica que qualquer garota faria em meu lugar: pegar o que é meu!Assim eu teria a chance de encontrá-lo antes que ele saísse de casa e poderíamos conversar

a respeito de tudo. Se ao menos eu pudesse acertar as coisas com ele antes do casamento,entraríamos juntos no altar sem a presença dessa indesejável terceira pessoa.

O problema foi que Pati disse que seria impossível para ela sair mais cedo de casa do jeitoque estava. Quando não acreditei no que ela disse, me enviou uma foto sua cheia de bobes noscabelos e o rosto pálido sem corretivo, blush e afins. E como ela era a minha carona, e euprecisava chegar depressa ao apartamento do Leo, tive que recorrer ao plano B.

“B” de babaca, como estou começando a me dar conta.Os viajantes do metrô me olham de cima a baixo, reparando no longo tecido verde-claro de

que é feito o meu vestido modelo sereia, que cobri com um sobretudo preto. Aposto que se Alanaestivesse nesse momento fazendo sua pesquisa de campo no metrô concluiria que o nível devestimenta subiu muito desde sua última visita por aqui.

Eu não tinha outra opção. Cinquenta reais em um táxi até a casa dele na Zona Sul estavafora de cogitação, ainda mais agora que tenho um animalzinho que exige comida de cinco emcinco minutos. E imaginei que a curta distância entre meu prédio e o metrô fazia o esforço valera pena.

Não valia.Não raciocinei direito no calor do momento e quando vi já estava aqui.Será que é assim que mamãe se sente?Sento-me num banco bem no canto, esperando que as pessoas me esqueçam, o que elas logo

fazem quando um homem e seu violão entram no vagão, convergindo a atenção de todos a elemesmo e às suas músicas sertanejas sofridas.

Alana deve estar toda animada e nervosa do outro lado da cidade, comemorando a chegadade seu grande dia com muito espumante, véu branco e tudo mais que o dinheiro pode comprar.

Uma baldeação e dez estações depois, estou livre! Desço a rua do metrô e chego ao prédiodo Leo em cinco minutos cravados.

Apresso-me na direção da portaria, meu cabelo preso em um coque baixo muito elegante,que magicamente consegui fazer, apesar de eu ter puxado tanto meus cabelos para trás que meucouro cabeludo está doendo até agora.

Estou prestes a apertar o botão do interfone para me identificar para o porteiro, mas, comoda última vez, ele me deixa entrar sem mais delongas. Será que eu tenho cara de socialite dessaregião chique da cidade? Ou ele simplesmente não está prestando muita atenção em seutrabalho?

O dia amanheceu com intenções muito sarcásticas. Um calor infernal faz com que um pingode suor escorra pelas minhas costas, a última coisa que eu precisava nesse momento. Na verdade,a última coisa que eu precisava nesse momento era desse sobretudo gigante estúpido, quase piorque o de esquimó de mamãe. Faço malabarismos para tirar o bendito casaco e o deixo com oporteiro com cara de confuso, alegando a ele que o sobretudo estraga meu modelito. E se temuma coisa que Leo precisa é me ver nesse vestido!

A espera do elevador parece levar mais tempo do que o normal, e quando ele finalmentechega, entro de uma vez. Dou de cara com uma senhora de idade, que parece um pouco irritadacom a minha pressa. Mas nem ligo. Estou nas nuvens, e hoje nem mesmo o meu TOC e o quadrode avisos torto na parede do elevador podem me parar!

O elevador para no primeiro andar, expulsando-me. Dou um passo lento para fora e avelhinha bufa. Então dou um, dois e três passos mais apressados e o elevador se fecha atrás demim. Eu me aprumo toda, levanto os ombros e pressiono um lábio contra o outro com meubatom vermelho matte.

Em frente à porta branca do apartamento, estufo o peito e toco a campainha.Agora já foi! Não tem como voltar atrás. E eu nem quero.Ouço passos vindo de dentro e então a porta é escancarada. Abro o maior sorriso do mundo.Mas ele é desmanchado tão rápido que é como se eu nem tivesse sorrido, para começo de

conversa. E a visão a minha frente me surpreende como um tapa na cara.Atrás de Leo, cujo rosto é uma mistura de sobrancelhas erguidas e queixo caído, está

Bárbara com um vestido da mesma cor que o meu, porém muito, muito justo nos seios (alguémdeveria urgentemente avisar a ela que ela não sabe se vestir).

Meu olhar corre de um para o outro, movendo-se freneticamente ao redor das órbitas. O quesignifica isso? Então é ela a madrinha que entrará com ele no altar?

Opa! Só um minuto. Eles estão juntos?Ai, meu Deus, eles estão juntos! Quer dizer, se ela é o par dele, a coisa só pode ser séria.O gelo que se forma no pé da minha barriga move-se numa velocidade absurdamente rápida

até chegar a minha garganta. Engulo em seco.Sutilmente, e sem tirar os olhos dele, aperto o botão para chamar o elevador.

Só então percebo o quanto minha aparição surpresa é inadequada, e quase me sinto como...como... como a própria Bárbara! Que vergonha, eu me tornei a Bárbara!

E isso dói mais do que o coque apertado em meu couro cabeludo.Não falo nada, não expresso nenhuma reação – ou pelo menos é o que eu espero –, apenas

levanto a barra do meu vestido longo quando o estalo do elevador indica sua chegada, viro-merapidamente em direção ao elevador e aperto o botão do térreo.

Como eu consigo ser tão idiota? Vejo o rosto de Leo, ainda em choque, enquanto a porta doelevador se fecha.

– Mel... – o som abafado da voz dele consegue atingir o elevador em movimentodescendente, e eu choro encostada nas paredes geladas de metal, incapaz de defender minha belamaquiagem das lágrimas.

Corro para a rua. O que diabos vou fazer agora? Com medo de Leo vir atrás de mim, esticoa mão para o primeiro táxi que passa e sento-me no banco de couro do carro. Digo o endereço doevento ao motorista com a voz trêmula.

E penso em questões filosóficas da vida moderna como “por que diabos entrei num táxi semdinheiro na conta bancária?”, “em quantos reais ficarei no vermelho?” e “será que prejudicariamuito minha vida profissional se eu decidisse ficar bêbada como um gambá na festa decasamento da minha paciente?”.

Tentando equilibrar uma enorme bolsa de maquiagem nas mãos, Pati vem ao meu encontrotrês minutos depois de eu ter enviado uma mensagem de texto bastante chorosa a ela. Ela usa umvestido verde-claro semelhante ao meu, porém no estilo tomara que caia, a cabeça ruiva repletade cachos.

– Você trouxe essa bolsa gigantesca para o casamento? É sua bolsa carteira? – dou umarisada nervosa, tentando esquecer que o reflexo no espelho mostra que meus olhos estão prontospara o Halloween.

– Deixe de ser idiota. É o kit de emergência que eu trouxe no carro. Ah! – ela solta umgritinho quando termina de fechar a porta rosa-choque do banheiro perfumado das madrinhas efinalmente olha para mim. – Que diabos aconteceu com o seu rosto?

Ela abre a bolsa, quase do tamanho daquela pasta de referências de Alana, e localiza ocorretivo.

– Ele estava com a Bárbara.– Oi? – ela dá outro grito e deixa cair um pouco de corretivo em meu ombro. Não expresso

reação e então ela se inclina para frente. – Ah, meu Deus, você não gritou comigo por terderrubado maquiagem em você?

Faço que não com a cabeça.– Deve estar mal mesmo.Ela dá dois tapinhas em meu ombro, consolando-me, e eu aperto a garganta, esforçando-me

para não permitir que mais lágrimas caiam.

– Se for chorar, coloque agora tudo pra fora, para que eu faça o conserto da maquiagem deuma vez.

– É com isso que você está preocupada?– Vamos consertar isso, amiga.– A maquiagem ou a minha vida amorosa?– A maquiagem – ela diz sem rodeios, retocando o corretivo dos meus olhos com um pincel.

– Eles estavam... você sabe... pelados?– Urgh! É claro que não! – abro os olhos. – Por que é que ele atenderia a porta pelado?Bem...– Está certo, é ele. Ele atenderia a porta pelado.– É, ele atenderia. – ela aplica o blush nas maçãs do meu rosto.– Eles estavam pior do que pelados. Estavam inteiramente vestidos. Para vir ao casamento.– Nãoooo! – ela para com o pincel na mão, jogando o pescoço para trás em descrença.– Sim!– Eles vêm juntos? – ela diz a última palavra com repulsa.– Sim!– Filho da puta!– Gosto da mãe dele...– É, eu também – ela finaliza minha maquiagem e começa a guardar os produtos dentro da

bolsa.– Melissa, eu te adoro, mas vê se não chora de novo – ela diz, a voz fina. – Essa base é mais

cara que a sua vida!Saímos do banheiro para o sol das treze horas da tarde. O cheiro delicado de grama

misturado com lavanda me faz concluir que até o gramado deve usar perfume importado, menoseu. Minhas sandálias pisam na grama fresquinha do espaço a céu aberto do casamento e o jazzque toca ao fundo invade meus ouvidos. A cada passo que dou estou mais próxima de presenciarnão só o casamento da pessoa que eu achava que gostava, mas também a pessoa que eurealmente gosto entrando de mãos dadas com uma garota peituda no jardim.

Atravessamos o gramado sorrateiramente e nos viramos na direção oposta quandoavistamos meus pais com suas roupas de gala, sentados em duas cadeiras perto do altar.

Droga, tinha esquecido que eles foram convidados. Não quero ter que explicar o porquê deeu estar com cara de bunda. Então sutilmente nos dirigimos para a ala dos padrinhos – inclusive,nada de Alana ainda. Rafael parece aflito, enquanto olha para o relógio e conversa com sua mãe.

Pati e eu nos fixamos num cantinho florido todo decorado de lírios brancos. Daquiconseguimos ver quem entra pelo arco de flores, cada pessoa mais elegante que a outra.

Uma coisa eu devo admitir: Alana sabe como dar uma festa! O ambiente parece ter saído deuma revista de noivas. O vasto jardim é composto de uma grama de um verde bem vivo.Centenas de cadeiras brancas decoradas com arranjos florais foram enfileiradas de modo areservar o espaço central somente para o tapete vermelho que corre em direção ao amplo altarfeito de madeira. Árvores robustas fazem sombra para mesas revestidas de toalhas douradas (de

novo, não me surpreenderia nada se fosse ouro). Fotógrafos de smoking completam a elegânciada festa.

Começo a fazer os cálculos de quanto essa cerimônia deve ter custado, e, senhor, deve tersido uma fortuna! O espaço está cheio de padrinhos e madrinhas, alguns dos quais já vi em festasde família do Rafa.

Um casal de padrinhos passa de mãos dadas por nós. Por que eu nunca consigo ser parte deum casal?

“Porque perdi muito tempo correndo atrás do noivo, e quando percebi já era tarde demais eagora terei que comprar vários gatos” ou algo do tipo, como disse o idiota do Leo.

Ah, que se dane! Vou comer até o caroço das azeitonas e beber muito vinho para fazer jusao jogo de panelas que comprei aos noivos.

Pati arranja companhia em um dos padrinhos assanhados da festa, um rapaz jovem com ocabelo amarrado num coque no alto da cabeça, barba comprida e alargador nas orelhas. O queme obriga a ficar de pé olhando para o nada. Até que surge pelo arco de flores a pessoa que eugostaria que tivesse ficado presa no trânsito. Ou até mesmo no quarto com Bárbara.

– Pati, posso falar com você um minuto? – puxo minha amiga pelo braço e sorrio para opadrinho que segurava a mão dela.

– O que foi? Você está pálida.– Leo está aqui!Ela me puxa para trás de um arbusto antes que ele possa me ver. Depois me analisa,

aproximando-se para enxergar de perto meus olhos úmidos.– Ah, mas você não ouse chorar agora!– Pati, que vergonha! Por que é que fui até a casa dele?– Você se arriscou, Melissa. Não tem nada que se sentir envergonhada. Só que, veja bem...

– ela olha por cima do meu ombro. Sigo o olhar dela e focalizo Leo cumprimentando umconvidado. – Acho que você deveria tentar mais uma vez.

– Nem a pau! – falo alto demais e alguns padrinhos se viram para me encarar. Começo asussurrar. – Ele estava com outra e você acha que eu devo voltar rastejando até ele?

– Eu não posso dizer muito, tá legal? Mas vale a pena, vai por mim. Só que isso tem que virdele.

– O que é que tem que vir dele?– Eu não posso contar.– Ah, meu Deus! Ele é gay?Coloco a mão na boca.– Ele é gay, não é?– Que gay o quê, Melissa! Ele sai com trinta garotas por mês, como ele poderia ser gay?Ai. Ela não precisava jogar na minha cara a horda de mulheres com quem ele sai.– Ora, ele poderia ser sim, se essa fosse uma forma inconsciente de provar para essa

sociedade ainda muito ultrapassada que ele se adequa aos padrões que ela impõe, e que...Ela levanta a mão para mim.

– Eu vou te interromper por aqui, porque essa análise psicológica desnecessária pode levarhoras. E eu sinceramente prefiro voltar a dar em cima do Ramón. – Ela aponta a unha verde parao padrinho com as mãos nos bolsos da calça do terno, que a aguarda a uns metros de distância denós. – E estou sentindo que, assim como Leo, ele também não é gay.

– Então o que é que tem que vir dele? – meu cérebro vasculha cada canto de meu raciocínio,mas não encontra nada.

– Só vá falar com ele – ela diz, com um olhar meio assassino. – Porque se eu perder Ramónde vista, eu mato você.

Pati me empurra e consegue me jogar mais longe do que eu imaginei. Voz fina, músculosfortes. Quem imaginaria? Talvez eu devesse mesmo considerar começar uma academia.

Leo me observa ser empurrada desajeitadamente em sua direção. Ajeito meu vestido, masnão me movo mais do lugar.

Ele vem até mim, o olhar fixo ao meu. E caminha sem a companhia de Bárbara, talvez porpena de mim. Aliás, não sei onde ela foi parar, pois não a vejo em lugar algum. Emcontrapartida, nas mãos ele traz meu sobretudo preto e eu tenho vontade de me esconder noarbusto.

Ele me puxa com delicadeza pelo braço.– Olá! – ele dá um beijo suave em minha bochecha. – E é assim que se cumprimenta uma

pessoa quando se aparece na porta da casa dela.– Certo... – digo, olhando para todos os lados a não ser em seus olhos.Ele me estende o casaco.– Você me pegou de surpresa agora há pouco.– Eu percebi – digo, finalmente olhando para ele, com um sorriso irônico. Eu me consolo

com o fato de que ele nunca vai saber o porquê de eu ter ido até a casa dele.– Como assim? Percebeu o quê? – ele segue meu olhar e pousa os olhos em Bárbara, que

finalmente aparece acompanhada de uma senhora mais velha que não me é estranha, mas quenão consigo reconhecer.

– Não. Você entendeu errado. Isso não quer dizer nada.– Elas nunca querem dizer nada pra você – faço um gesto com a mão de “tanto faz”.– Não é isso, eu...– Você pediu para que me substituíssem como seu par no casamento! Quem é que faz isso?– Eu o quê?Abano as mãos para ele.– Por mim tudo bem. Não tem importância. Sério.Afinal de contas, ele não tem nada comigo, certo?Pati dá uma risada estridente de alguma coisa que o padrinho lhe diz.– E você foi até o meu apartamento por algum motivo que não tem importância também? –

diz Leo, me fitando.Desvio o olhar e observo meus pés. Antes que eu tenha chance de respondê-lo, Rafa aparece

ao nosso lado.

– Minha madrinha preferida! – ele diz, me abraçando e exibindo seu sorriso perfeito. Possover o quanto é fácil querer estar apaixonada por ele.

– Meu noivo preferido... – digo. – Quer dizer, não para mim!Ai, Deus! Onde foi parar minha dignidade?– Bom, você entendeu!– E aí, cara! – diz Leo, interrompendo meu momento constrangedor. Ele espalma a mão na

de Rafa e o abraça bem forte.– Meu padrinho preferido! – ele dá um passo para trás para observar nós dois. – Vocês

formam uma bela dupla. Pena que tive que trocá-los de par.– O que disse?– Alana não te contou? – ele franze o cenho para mim. – Minha prima é caidinha pelo Leo e

pediu para entrar com ele no altar – ele lança um olhar malicioso na direção do Leo e meuestômago se embrulha. – Achei que vocês não se importariam.

Então foi Bárbara quem pediu para que a troca fosse feita?Dou uma risada sem graça.– Inclusive, obrigado por trazê-las em segurança – Rafa diz para Leo.– Trazer... humm... trazer quem? – pergunto novamente.– Pedi a ele que trouxesse minha prima e minha tia ao casamento – ele aponta na direção de

Bárbara e Leo me lança um olhar irônico. – Você conhece minha tia, não é? Ela está sempre nosmeus aniversários.

Leo me olha com um ar divertido, enquanto Rafa aponta para a mulher mais velha, decabelos brancos, que chegou acompanhada de Bárbara.

– Elas moram no mesmo prédio que ele e estavam sem carona.Ah, bem... isso explica muita coisa.– Não sei nem como te agradecer, Leo – Rafa aperta a mão dele com firmeza enquanto eu

devo estar com a expressão mais embasbacada do mundo.– Que isso, cara! – um sorrisinho cínico preenche o rosto de Leo, que aponta aqueles olhos

para mim e comenta. – Isso já foi o suficiente.

– E por que é que escolheram lírios como parte da decoração? – faço ao Rafa a décimapergunta idiota que consigo imaginar.

Tento segurar a conversa o máximo que posso, pois assim que ele se retirar, terei que ficarsozinha com o Leo. Os pássaros cantam alto formando uma bela sinfonia natural. Não duvidonada que Alana os tenha contratado também.

Como era de esperar, ela já está atrasada meia hora, e entendo que noivas se atrasem e tudoo mais, mas se depender de Alana aguardaremos até as bodas de ouro. Fora que hoje em dia asnoivas se cansaram dessa tradição idiota e estão muito mais pontuais.

Rafa responde todas as perguntas de forma detalhada, levado a crer que eu estou realmenteinteressada. Não estou ouvindo uma palavra. Aí um convidado grita seu nome no canto dojardim e estraga todos os meus planos.

– Com licença – ele diz, dando dois tapinhas no ombro do Leo e se afastando.O jardim já está apinhado de gente em sua extensão, uma mistura de cores, vestidos e

gravatas regada a champanhe, canapé e queijo brie.– Então... – diz Leonardo, depois de um momento constrangedor de silêncio.Tiro os olhos das bandejas que acompanham os garçons para focalizar meu olhar no dele.– Tá legal, me desculpe – digo, mas Leo continua com o ar divertido.– Por que exatamente?– Nossa, como se eu tivesse feito mil monstruosidades para você não conseguir adivinhar a

qual delas me refiro.– Eu quero ouvir a desculpa completa – ele cruza os braços e deixa escapar um sorriso.Limpo a garganta e coloco a mão na cintura.– Bem... – empino o queixo, mas logo meus ombros caem. – Me desculpe por ter tirado

conclusões precipitadas agora há pouco. E também... por ter feito você sofrer, do jeito que euestava sofrendo.

Ele assente com a cabeça, um pouco mais sério.– Não foi justo com você.– Não, não foi – ele diz, com um sorriso fraco. – Mas está tudo bem. Você não tinha como

saber.

– Seria impossível, com inúmeras mulheres entrando e saindo da sua vida. Mais saindo doque entrando, aliás...

Ele dá uma risada alta e cruza os braços. Em seguida, me puxa pela mão para mais longeatravés do extenso gramado, afastando-nos da multidão de no mínimo trezentos convidados. Nossentamos em um banquinho de pedra cercado de flores.

– Desculpe por ter explodido com você naquele dia. Eu fui um idiota por ter te ofendido. Eusei que você se importa muito com os seus pacientes e...

– Eu não o beijei – digo, de supetão.Ele se cala em meio à abrupta mudança de assunto. Mas logo em seguida balança a cabeça

de cima para baixo e prossegue:– Eu sei que não. Rafa me contou. Desculpe por não ter ouvido você.– Então você também sabe que eu não o amo?Ele sorri amargamente.– Não me venha com essa. Ninguém faz o que você fez se não tiver sentimentos pelo cara.– Eu realmente precisava fazer tudo aquilo. Mas não para ficar com o Rafa.Não. Agora eu entendo.– Eu tive que passar por aquilo para finalmente entender que nunca o amei de verdade.

Acredite em mim.– Então você o superou?– Não sei se havia realmente algo a ser superado. Achei que ele fosse uma opção segura.

Tive medo de me arriscar e acabar me machucando. Aí quando ele anunciou o casamento, meusplanos “seguros” foram por água abaixo e eu pirei.

Minha sandália de camurça branca destaca-se na verdidão do gramado. Apoio o casacopreto dobrado no banco ao meu lado.

– Achei que você não falaria mais comigo – ele diz, e meu estômago congela. – Você sabe...achei que você reagiria de forma toda estranha, igual à vez em que eu te disse o que sentia nafaculdade.

Ele recosta no banco e seus ombros tocam os meus. O aroma de seu perfume deliciosoemana de seu pescoço e meu coração bate mais forte.

– É diferente agora – digo, sem encontrar os olhos dele.Ficamos em silêncio. Risadas altas de convidados com cara de ricos segurando taças de

vidro misturam-se com a música ambiente.– Se você tivesse entrado em meu apartamento, teria visto também a tia do Rafa na sala de

estar e saberia que não aconteceu absolutamente nada entre Bárbara e eu.– É. Talvez. Ou eu concluiria que você fez sexo a três com as duas. Ou a quatro, com

alguém que eu não tivesse conseguido ver.– É mesmo isso que você pensa de mim?– E você pode me culpar por isso? – pergunto na lata e me viro para encará-lo. Engulo a

saliva ao encontrar aqueles olhos viciantes.– Não, eu não a culpo. Mas, Melissa...Ele vira o corpo todo na minha direção, colocando o joelho em cima do banco.

– Eu estive procurando por uma garota legal há muito tempo, mas nunca me sinto satisfeito.E olha que eu fiz minha parte para procurar, hein? – ele empurra meu ombro com o dedoindicador. – Eu procurei pra cacete!

– Não diga... – seguro a risada.– E se você quer saber o porquê... eu estava comparando todas elas a você.Engulo a saliva. Tá, isso até que foi fofo.– Eu tinha que seguir com a minha vida e esse foi o meu jeito de fazer isso. E o seu jeito foi

correr atrás de um cara comprometido, então acho que estamos quites – ele diz, batendo seuombro no meu.

– Não estamos, não! – empurro-o de volta e solto uma gargalhada.– Relaxa, tá legal? – ele olha ao longe. – Já entendi que somos apenas amigos.É aí que a ficha cai. Ele nunca mais vai se declarar para mim. Nunca! Tomar dois foras foi o

suficiente (mesmo que ele não tenha tomado um fora da última vez, apenas me viu beijandooutro cara etc. etc.).

Mas o fato é: eu é que terei que me arriscar. Eu! Ignoro minhas mãos trêmulas. Porque setem uma coisa que não vou fazer de novo é perdê-lo para outra pessoa, de tanto esperar calada.

– Não! – digo.Ele ergue a sobrancelha.– Por que não? Também não somos mais amigos?– Não é disso que estou falando.Os olhos dele fixam-se aos meus, a luminosidade desse dia de sol transformando-os num

verde ainda mais claro. Eu espero que alguma coisa ao nosso redor se precipite e interrompa asituação que estou prestes a criar, mas nada acontece. Nada que me impeça de passar vergonha.E, ironicamente, até o vento para de soprar, como se estivesse me esperando confessar de umavez.

– O que é, então?– Quando você disse que gostava de mim na faculdade, eu fiquei com medo e me afastei.

Mas um tempo depois eu percebi que tinha sentimentos por você.Ele arregala os olhos.– Tinha?– Estava decidida a te contar isso na festa à fantasia. Lembra-se daquela festa? A que você

foi vestido de surfista?– Mas você nem foi. Como pode saber sobre a minha fantasia?– Porque eu fui, mas quando te encontrei...Pouso meu olhar na mesa do bolo de cinco camadas do outro lado do gramado. Solto todo o

ar do peito.– No meio daquele monte de gente bêbada, eu vi você beijando uma garota.– Oh... – ele não tira os olhos de mim. Sua expressão tranquila se transforma em espanto. –

Isso só aconteceu porque você deixou bem claro que eu não tinha chance com você.– É, eu sei. Sou muito boba – digo, chutando uma pedrinha do chão com o bico da minha

sandália de tirinhas.

– Ei, você não é boba.– Então decidi que seria melhor te esquecer. Achei que o Rafa fosse um bom pretendente,

de qualquer maneira. Uma opção não tão segura quanto pensei que ele fosse... – estendo osbraços, abrangendo o gramado decorado para o casório, para enfatizar o quanto eu estava errada.– O negócio é que te esqueci.

– Ah, certo... – ele vira o corpo para frente, deixando de me olhar.– Ou achei que tivesse.O rosto dele gira de volta para mim.– Eu não pretendia voltar a sentir tudo o que uma vez senti por você, até que você me beijou

na porta do seu prédio.Fecho os olhos e digo antes que eu desista:– O que eu quero dizer com tudo isso é que eu amo você. E não digo hipoteticamente.Sem coragem de olhá-lo nos olhos, abaixo a cabeça e digo:– Agora estamos quites.Mordo o lábio inferior. Ele me analisa pelo que parece uma eternidade.– E... – continuo, meu coração disparado. – Veja bem. Eu sei que você não se vê em um

relacionamento e tudo mais, então... poderíamos ir com calma, sabe? Ver no que dá... sei lá. Euposso alterar meus planos por você. Meu plano é você, entende? E desse plano eu não consigoabrir mão.

Ai, meu Deus! Do que é que eu estou falando? Eu estou quase implorando ao cara!Leo já está sem piscar por muito tempo. Talvez eu devesse ter filmado e enviado para o

Guiness. Tem gente que ganha dinheiro com recordes, não ganha?Estufo o peito.– Olha, se tudo o que eu disse foi uma grande besteira pra você, tudo bem – cruzo os braços.

– Mas eu quis dizer cada palavra!E aí ele levanta um só lado da boca, as sobrancelhas erguidas quase até o meio da testa. Ai,

senhor! Acho que segui a receita perfeita para assustar um cara com fobia de relacionamentos!Porém, em seguida a expressão do rosto dele transforma-se em um sorriso, que estampa seu

rosto com o que eu espero que seja alegria.– Você me... ama? Ama mesmo?– Dá pra acreditar? – digo, os braços ainda cruzados na frente do peito.– Claro que dá. Olhe só pra mim! – ele indica a si mesmo com as mãos num tom brincalhão.

– Mas tem uma coisa muito errada no que você disse.Meu estômago se contrai.– E o que é? – digo, o coração batendo forte no peito.– Eu nunca quis namorar as garotas com quem eu saía, é verdade. Porque elas não valiam a

pena. Elas não eram você.Meu coração bate tão acelerado que eu me preocupo que ele exploda. Agora não, coração!Ele se aproxima, ficando a um centímetro de mim.– Como pôde pensar que eu não quero ficar com você?

– Namorar? – procuro esclarecer. É sempre bom delimitar o tipo de relacionamento antes defechar o acordo. – Você quis dizer namorar comigo?

Ele dá uma gargalhada.– Como eu posso ser mais claro com você? Vejamos... – ele começa a listar nos dedos. – Eu

odeio chocolate belga, odeio o Villa’s e a Pati é meio irritante às vezes. Mas eu faço o que forpra ficar com você.

Ele coloca as mãos ao redor da minha cintura, o tecido do vestido se movendo a medida emque ele se aproxima. Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! Ai, meu Deus!

– Eu te amo, Melissa... – ele encosta o nariz no meu, sua voz rouca chegando até meusouvidos. – E quero ser seu namorado, para que eu possa te beijar a hora que eu quiser. Semprecisar inventar a desculpa de que estou fugindo de alguma garota louca.

Leo pousa a mão delicadamente em minha nuca e me aproxima dele com a outra mão emminha cintura. E é então que seus lábios tocam os meus com urgência e eu acho que acabo de meapaixonar outra vez. A sensação é bem melhor do que a do nosso primeiro beijo. Primeiramenteporque Benedito não está aqui nos observando. E depois porque é muito melhor agora que seique esse beijo não será o último.

Eu sempre imaginei que meu final feliz seria no casamento do Rafa. Só não imaginei que eunão seria a noiva. E que meu final feliz não exigia um casamento em si. E que ele seria com umapessoa cujo conceito de organizar é inexistente e que não planeja nem o que vai comer no jantar.

Fico feliz de ter imaginado errado.– Estou surpreso de Pati não ter dito nada a você – ele diz, a mão em minha cintura. – Eu

jurava que ela daria com a língua nos dentes.– Sobre o quê?O que é que tanto a Pati não podia me contar?– Sobre eu estar disposto a me comprometer com você, claro. Sabe como é... sobre...

sobre...– Sobre O QUÊ?Caramba! Pati deve sofrer muito com esse negócio de curiosidade. Será que é assim que ela

se sente?Ele me olha por alguns segundos antes de dizer:– Sobre eu ter comprado a aliança dos seus sonhos no dia em que passamos em frente

àquela loja de antiguidades e você nos contou aquela história idiota de como gostaria de serpedida em casamento.

– Você... comprou? Foi você?Tá legal, universo... Você me pegou. Por essa eu não esperava! Vou confiar mais em você

daqui para frente.O rosto de Leo cora como eu nunca tinha visto antes, quase como um tomate. O maxilar

quadrado, porém, se mantém rígido.– Sabe como é... só por precaução. Vai que... ora, de repente... bem, era uma loja de

antiguidades, não é? O anel era único. E... ah, você sabe.

Ele agarra minha mão com força. Aproximo meu rosto do dele, e a ponto de sentir suarespiração, sussurro:

– E você achou a minha história idiota?Ele dá uma gargalhada e me beija.Então era isso o que Pati não podia me contar? Ela tinha TODA razão! Com certeza, isso foi

mil vezes melhor vindo dele!Um garçom de smoking estende uma bandeja cheia de champanhe para nós. Pegamos uma

taça cada um. Pego mais outra, só para garantir.– Ainda não acredito que você tá caidinha por mim, Melissa Belinque.– Ah, Leo. Sabe como é, né? Quando alguém se joga pra você desse jeito tão óbvio... – bato

minha taça na dele, brincalhona. – ... você agarra!

– Ela chegou?– Ainda não – Pati respondeu.– Cadê ela? – perguntei, levantando a cabeça para enxergar os portões de entrada floridos.– Não me importo de esperar, contanto que ela me apresente ao tio dela.Trombetas soaram bem alto e Alana finalmente chegou ao altar. Fiquei feliz em saber que

eu não era a única que sofria com seus atrasos. Todos pareciam estar suando feito porcosenquanto a aguardavam, porque os trajes foram pensados para o inverno, mas esqueceram-se deque até no inverno São Paulo pode te surpreender e demonstrar aspectos claros de um verãolascado.

Atazanei a vida da tal da organizadora de casamentos blogueira de Alana para que Leo e euentrássemos juntos na igreja. E deu certo, de modo que Bárbara saiu em todas as fotos com carade bunda por ter que entrar com outra pessoa.

Só fico imaginando como vou fazer para lidar com uma Alana-grávida nas consultas a partirde agora. Porém, acho que vou ficar bem. É claro que é difícil apagar a lembrança do que passeipor causa da minha paciente, junto do seu noivo beijoqueiro.

Mas, em determinado momento da festa, Alana veio até mim, me deu um abraço apertado edisse:

– Você sabe que sem você eu não estaria aqui hoje, não é?Ela me lançou um olhar pomposo e disse baixinho em minha orelha:– Fico feliz em ter você como amiga.E aí saiu desfilando com as amigas madrinhas com vestidos verde-claro, dando gritinhos e

pulos pelo salão.Como eu disse, vou ficar bem.Principalmente porque passei a ter um novo incentivo. E ele segurava bem firme em minha

mão e o tempo todo buscava comida para mim na mesa do buffet, parando para me observar comseus doces olhos verdes. Mas não sem antes implicar com meus modos alimentares, afirmandoque eu tinha migalhas de comida no vestido. Calúnia!

Papai e mamãe também pareciam estar adorando a cerimônia. Eu me afastei deles quandomamãe começou a discutir se deveria ou não pintar as paredes da sala de estar da mesma cor

horrível que Telma pintou as dela.E não, Alana não apresentou Pati a nenhum membro rico e dono de marcas de sapatos de

sua família.O casamento seguiu tranquilo, a não ser por um único incidente infeliz: na hora do brinde

dos noivos, Alana insistiu para abrir o champanhe por conta própria. Mas, para meu azar,digamos apenas que ela não sabia lá muito bem como fazer isso com graça e perfeição.

Acho que nem preciso dizer no olho de quem aquela rolha foi parar.

Agradecimentos

Gostaria de agradecer imensamente a Alessandra Mayumi, Andréia Ferreira e GiovanaRocha por terem sido minhas primeiras leitoras. Nunca vou me esquecer disso! Agradeço aLúcia Facco pela leitura crítica; a Renata Toniolli, pelos direcionamentos sobre Psicologia; aCristiane Amaro, pelos direcionamentos sobre enfermagem; e a Lura Editorial, por fazer parte daexecução de um dos projetos mais importantes da minha vida.

Também gostaria de agradecer a Felipe, a meu pai e minha mãe, e a todos os amigos efamília, por terem me acompanhado nesta jornada. Não teria sido a mesma coisa sem vocês!