a busca pelo autor desaparecido em roberto bolaño

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I CONGRESO INTERNACIONAL: NUEVOS HORIZONTES DE IBEROAMÉRICA MENDOZA ARGENTINA 2013 1 A BUSCA PELO AUTOR DESAPARECIDO NA LITERATURA DE ROBERTO BOLAÑO MAGRI, Ieda Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) [email protected] No primeiro ensaio de Nudez, Giorgio Agamben faz uma interessante aproximação entre a crítica e a escrita literária e a noção judaico-cristã de salvação e criação. Uma e outra definem os dois polos da ação divina. No entanto, enquanto a criação é obra do Deus, do espírito, a salvação está mais ligada a um elemento corpóreo representado pelo Filho e pelo profeta. “Na cultura da época moderna, a filosofia e a crítica herdaram a obra profética da salvação (que na esfera sagrada fora antes confiada às exegeses) poesia, técnica e arte, à obra angélica da criação” (2010, p. 13). Mas, criação e salvação são inseparáveis: aquele que produz deve também poder salvar sua criação. Agamben argumenta que no processo de secularização da tradição religiosa, perdeu-se a relação entre criador / profeta redentor e poeta / crítico, fazendo desaparecer o que a criação e a salvação tem de elo e reciprocidade. Assim, hoje, separadas em dois sujeitos diferentes procuram a sua unidade perdida, pois “Uma obra crítica ou fi losófica que não se mantenha de alguma maneira numa relação essencial com a criação, está condenada a girar no vazio, do mesmo modo que uma obra de arte ou poesia, que não contenha em si uma exigência crítica, está destinada ao esquecimento” (p. 14). Admitindo-se, desse modo, que o escritor soma-se ao crítico no mesmo sujeito, a obra se define na tensão entre o ato divino de criar e o ato profético e humano de salvar. Mas, pergunta Agamben, o que significa salvar se nada há na criação que não seja, em última instância, destinado a perder-se? Também as obras de arte, fruto de longo e paciente trabalho, estão condenadas ao desaparecimento. A resposta de Agamben é que a obra de salvação e a obra de criação coincidem no fato de estarem condenadas uma e outra pelo desfazimento, “criação e salvação coincidem no insalvável” (p. 16). Em Amuleto, na voz de Auxilio Lacouture, Bolaño dá conta dessa ligação entre o gesto de escrever e o gesto de destruir, reverso de salvar: Luego cogí el papel higiénico en donde había escrito y lo arrojé al water y tiré de la cadena. El ruido del agua me hizo dar un salto y entonces pensé que estaba perdida. Pensé: pese a toda mi astucia y a todos mis sacrificios, estoy perdida. Pensé: qué acto poético destruir mis escritos. Pensé: mejor hubiera sido tragármelos, ahora estoy perdida. Pensé: la vanidad de la escritura, la vanidad de la destrucción. Pensé: porque escribí, resistí. Pensé: porque destruí lo escrito me van a descubrir, me van a pegar, me van a violar, me van a matar. Pensé: ambos hechos están relacionados, escribir y destruir, ocultarse y ser descubierta. Luego me senté en el trono y cerré los ojos. Luego me dormí. Luego me desperté (1999, p. 58). O barulho da descarga denunciou o descarte do escrito e pôs a perder o silêncio e com ele o gesto que deveria ser invisível aqui o barulho equivale à visibilidade: fazer desaparecer o escrito, fazer aparecer o autor, quando tudo deveria ser secreto. Essa passagem, no romance, está em relação com uma cena do capítulo anterior, na qual Auxílio conversa com uma voz, uma sua “anja da guarda argentinasendo ela uruguaya (um índice da transnacionalização e do agenciamento de uma voz coletiva “latinoamericana” que opera Bolaño em sua ficção). Na cena da conversa, Auxilio anuncia suas profecias para o futuro da literatura do século XX: Vladímir Maiakovski volverá a estar de moda allá por el año 2150. James Joyce se reencarnará en un niño chino en el año 2124. Thomas Mann se convertirá en un farmacéutico ecuatoriano en el año 2101. Marcel Proust entrará en un desesperado y prolongado olvido a partir del año 2033. Ezra Pound desaparecerá de algunas bibliotecas en el año 2089. Vachel Lindsay será un poeta de masas en el año 2101.

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I CONGRESO INTERNACIONAL: NUEVOS HORIZONTES DE IBEROAMÉRICA – MENDOZA – ARGENTINA – 2013

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A BUSCA PELO AUTOR DESAPARECIDO NA LITERATURA DE ROBERTO BOLAÑO

MAGRI, Ieda Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

[email protected]

No primeiro ensaio de Nudez, Giorgio Agamben faz uma interessante aproximação entre a crítica e a escrita literária e a noção judaico-cristã de salvação e criação. Uma e outra definem os dois polos da ação divina. No entanto, enquanto a criação é obra do Deus, do espírito, a salvação está mais ligada a um elemento corpóreo representado pelo Filho e pelo profeta. “Na cultura da época moderna, a filosofia e a crítica herdaram a obra profética da salvação (que na esfera sagrada fora antes confiada às exegeses);; poesia, técnica e arte, à obra angélica da criação” (2010, p. 13). Mas, criação e salvação são inseparáveis: aquele que produz deve também poder salvar sua criação. Agamben argumenta que no processo de secularização da tradição religiosa, perdeu-se a relação entre criador / profeta redentor e poeta / crítico, fazendo desaparecer o que a criação e a salvação tem de elo e reciprocidade. Assim, hoje, separadas em dois sujeitos diferentes procuram a sua unidade perdida, pois “Uma obra crítica ou filosófica que não se mantenha de alguma maneira numa relação essencial com a criação, está condenada a girar no vazio, do mesmo modo que uma obra de arte ou poesia, que não contenha em si uma exigência crítica, está destinada ao esquecimento” (p. 14). Admitindo-se, desse modo, que o escritor soma-se ao crítico no mesmo sujeito, a obra se define na tensão entre o ato divino de criar e o ato profético e humano de salvar. Mas, pergunta Agamben, o que significa salvar se nada há na criação que não seja, em última instância, destinado a perder-se? Também as obras de arte, fruto de longo e paciente trabalho, estão condenadas ao desaparecimento. A resposta de Agamben é que a obra de salvação e a obra de criação coincidem no fato de estarem condenadas uma e outra pelo desfazimento, “criação e salvação coincidem no insalvável” (p. 16). Em Amuleto, na voz de Auxilio Lacouture, Bolaño dá conta dessa ligação entre o gesto de escrever e o gesto de destruir, reverso de salvar: Luego cogí el papel higiénico en donde había escrito y lo arrojé al water y tiré de la cadena. El ruido del agua me hizo dar un salto y entonces pensé que estaba perdida. Pensé: pese a toda mi astucia y a todos mis sacrificios, estoy perdida. Pensé: qué acto poético destruir mis escritos. Pensé: mejor hubiera sido tragármelos, ahora estoy perdida. Pensé: la vanidad de la escritura, la vanidad de la destrucción. Pensé: porque escribí, resistí. Pensé: porque destruí lo escrito me van a descubrir, me van a pegar, me van a violar, me van a matar. Pensé: ambos hechos están relacionados, escribir y destruir, ocultarse y ser descubierta. Luego me senté en el trono y cerré los ojos. Luego me dormí. Luego me desperté (1999, p. 58). O barulho da descarga denunciou o descarte do escrito e pôs a perder o silêncio e com ele o gesto que deveria ser invisível – aqui o barulho equivale à visibilidade: fazer desaparecer o escrito, fazer aparecer o autor, quando tudo deveria ser secreto. Essa passagem, no romance, está em relação com uma cena do capítulo anterior, na qual Auxílio conversa com uma voz, uma sua “anja da guarda argentina” sendo ela uruguaya (um índice da transnacionalização e do agenciamento de uma voz coletiva “latinoamericana” que opera Bolaño em sua ficção). Na cena da conversa, Auxilio anuncia suas profecias para o futuro da literatura do século XX: Vladímir Maiakovski volverá a estar de moda allá por el año 2150. James Joyce se reencarnará en un niño chino en el año 2124. Thomas Mann se convertirá en un farmacéutico ecuatoriano en el año 2101. Marcel Proust entrará en un desesperado y prolongado olvido a partir del año 2033. Ezra Pound desaparecerá de algunas bibliotecas en el año 2089. Vachel Lindsay será un poeta de masas en el año 2101.

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César Vallejo será leído en los túneles en el año 2045. Jorge Luis Borges será leído en los túneles en el año 2045. Vicente Huidobro será un poeta de masas en el año 2045. Virginia Woolf se reencarnará en una narradora argentina en el año 2076. Louis Ferdinand Céline entrará en el Purgatorio en el año 2094. Paul Eluard será un poeta de masas en el año 2101. Metempsicosis. La poesía no desaparecerá. Su no-poder se hará visible de otra manera. (…) Nicanor Parra, sin embargo, tendrá una estatua en una plaza de Chile en el año 2059. Octavio Paz tendrá una estatua en México en el año 2020. Ernesto Cardenal tendrá una estatua, no muy grande, en Nicaragua en el año 2018. Pero todas las estatuas vuelan, por intervención divina o más usualmente por dinamita, como voló la estatua de Heine. Así que no confiemos demasiado en las estatuas. (…) El caso de Antón Chéjov será un poco distinto: se reencarnará en el año 2003, se reencarnará en el año 2010, se reencarnará en el año 2014. Finalmente volverá a aparecer en el año 2081. Y ya nunca más. Alice Sheldon será una escritora de masas en el año 2017. Alfonso Reyes será definitivamente asesinado en el año 2058 pero en realidad será Alfonso Reyes quien asesine a sus asesinos. Marguerite Duras vivirá en el sistema nervioso de miles de mujeres en el año 2035 (1999, p. 53-54). Se na cena da destruição do escrito pela descarga que dissolve e manda para o fosso os papéis de Auxilio Lacouture esse gesto já colocava em risco o corpo da escritora/autora, na lista profética em que se joga o jogo das leituras futuras o desaparecimento/reaparecimento se inscreve também como corpo, morte, reencarnação, segunda vida. Voltar a ser lido é voltar a existir. Alfonso Reyes será definitivamente assassinado, Checóv se reencarnará duas vezes, voltará a aparecer mais uma vez e depois nunca mais. De uma lista na qual se destacaria o desaparecimento da obra, temos o desaparecimento do autor. E diríamos com Foucault: do nome do autor, da função autor de cada um desses homens e mulheres que o nome de autor evoca. Porém, como se uma provocação de autor, Bolaño diz o corpo, que aparece ou desaparece, e com ele a obra. Nesse sentido, é interessante pensar na ausência do nome Pablo Neruda, o mais conhecido nome de autor chileno em oposição à presença de Nicanor Parra, não como obra, mas como nome de autor (e é o único autor ainda vivo da lista) ligado à simbologia da estátua pública. O desaparecimento de um autor, que chega ao extremo de nem ser mencionado, e o aparecimento de um autor erigido estátua faz duas perguntas: ao tomar o lugar de representante oficial da poesia chilena, Parra deixa de ser lido? Seu corpo/obra morre ao dar lugar à estátua? E: seu destino é a não-menção tal qual acontece a Neruda? “Mas todas as estátuas voam, por intervenção divina ou por dinamite (...) assim que não confiemos demais em estátuas” (Bolaño, 1999, p. 53). Poderíamos incluir mais uma pergunta na lista: O Chile só é capaz de reconhecer um autor como monumento? E diante dessa pergunta, a única resposta seria voltara à leitura. Do mesmo modo que enumera os autores que parece, com o gesto de citar, querer salvar do esquecimento, Bolaño insiste na necessidade de o autor se dar conta de sua mortalidade literária: Yo no sé cómo hay escritores que aún creen en la inmortalidad literaria. Entiendo que haya quienes creen en la inmortalidad del alma, incluso puedo entender a los que creen en el Paraíso y el Infierno, y en esa estación intermedia y sobrecogedora que es el Purgatorio, pero cuando escucho a un escritor hablar de la inmortalidad de determinadas obras literarias me dan ganas de abofetearlo. No estoy hablando de pegarle sino de darle una sola bofetada y después, probablemente, abrazarlo y confortarlo. En esto, yo sé que algunos no estarán de acuerdo conmigo por ser personas básicamente no violentas. Yo también lo soy. Cuando digo darle una bofetada estoy más bien pensando en el carácter lenitivo de ciertas bofetadas, como aquellas que en el cine se les da a los histéricos o a las histéricas para que reaccionen y dejen de gritar y salven su vida ( 2003, Radar, Página/12). Que se eleve post-mortem, ainda não é a imortalidade e, sempre, mais importante salvar a vida que salvar a literatura, parece, tanto para Bolaño como para sua criatura, Auxilio.

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Em meio a toda a lista supracitada, aparece, no entanto, uma frase que concentra o parágrafo em sua completude: “Metempsicosis. La poesía no desaparecerá. Su no-poder se hará visible de otra manera”. O desaparecimento do escritor não faz desaparecer a poesia, mas o que ocorre quando se diz que Alejandra Pizarnik perderá sua última leitora em 2100? Essas duas previsões aparentemente antagônicas lembram o desenrolar dos séculos, a constante mutação de autores e leitores: estes morrem, a poesia fica1. É, porém, a procura de autores encarnados em pessoas que desaparecem, que move grande parte das personagens protagonistas dos livros de Bolaño. Em Os detetives selvagens Arturo Belano, Ulises Lima e García Madero empreendem uma viagem em busca da poetisa-mito Cesárea Tinajero. Restam dela alguns cadernos, mas poucos a conheceram e ninguém sabe de seu paradeiro. Quando, enfim, a encontram, Cesárea acaba sendo morta. Sua poesia sobrevive, uma única poesia, em uma revista antiga, e é difícil dizer se ela sobrevive pelo que tem de enigmático, na visão do poeta velho, Amadeo Salvatierra, que não alcança interpretá-la, ou se na interpretação algo fácil e banal levada a cabo pelos poetas jovens embriagados de tequila numa noite infindável do México, DF. Y los muchachos me miraron y dijeron que no, Amadeo, un poema no necesariamente significaba algo, excepto que era un poema, aunque éste, el de Cesárea, en principio ni eso. Así que les dije déjenme verlo y extendí la mano como quien pide limosna y ellos pusieron el único número de Caborca que quedaba en el mundo entre mis dedos acalambrados. Y vi el poema que había visto tantas veces:

Y les pregunté a los muchachos, les dije, muchachos, ¿qué es lo que han sacado en limpio de este poema?, les dije, muchachos, yo llevo más de cuarenta años mirándolo y nunca he entendido una chingada. Ésa es la verdad. Para qué voy a mentirles. Y ellos dijeron: es una broma, Amadeo, el poema es una broma que encubre algo muy serio. ¿Pero qué significa?, dije. (…) Bueno, pues, les dije, ¿cuál es el misterio? Entonces los muchachos me miraron y dijeron: no hay misterio, Amadeo (1998, p. 397-97). Empecemos por el título, dijo uno de ellos, ¿qué crees que significa? Sión, el monte Sión en Jerusalén, dije sin dudarlo, y también la ciudad suiza de Sion, en alemán Sitten, en el cantón de Valais. Muy bien, Amadeo, dijeron, se nota que has pensado en ello, ¿y con cuál de las dos posibilidades te quedas?, ¿con el monte Sión, verdad? Me parece que sí, dije. Evidentemente, dijeron ellos. Ahora vamos con el primer corte del poema, ¿qué tenemos? Una línea recta y sobre ésta un rectángulo, dije. Bueno, dijo el chileno, olvídate del rectángulo, has de cuenta que no existe. Mira sólo la línea recta. ¿Qué ves?

1 “Books survive if they are read and disappear if they aren’t: and when an entire generic system vanishes at the once, the likeliest explanation is that its readers vanished at once” (Moretti, 2005, p. 20). Ao constatar que a cada 25 ou 30 anos os gêneros costumam apresentar mudanças (por exemplo, abandono ou quase desaparecimento da narrativa de cunho religioso, depois do romance epistolar etc.) Moretti percebe que é nesse período que também muda o ciclo geracional, ou seja, que há um ritmo na sequência de gerações. Se os livros ficarem à mercê de seus primeiros leitores, os de sua geração, entram logo na lista dos desaparecidos. O trabalho do crítico (ou do escritor, no caso de Bolaño) é o de reintegrar esses livros na lista das leituras das novas gerações. Moretti diz que a literatura é formada por 1% do cânone e 99% dos livros esquecidos. Bolaño trabalha incansavelmente para reintegrar às listas de leitura esses livros esquecidos.

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Una línea recta, dije. ¿Qué otra cosa podría ver, muchachos? ¿Y qué te sugiere una línea recta, Amadeo? El horizonte, dije. El horizonte de una mesa, dije. ¿Tranquilidad?, dijo uno de ellos. Sí, tranquilidad, calma. Bien: horizonte y calma. Ahora veamos el segundo corte del poema:

¿Qué ves, Amadeo? Pues una línea ondulada, ¿qué otra cosa podría ver? Bien, Amadeo, dijeron, ahora ves una línea ondulada, antes veías una línea recta que te sugería calma y ahora ves una línea ondulada. ¿Te sigue sugiriendo calma? Pues no, dije comprendiendo de golpe por dónde iban, hacia dónde querían llevarme. ¿Qué te sugiere la línea ondulada? ¿Un horizonte de colinas? ¿El mar, olas? Puede ser, puede ser. ¿Una premonición de que la calma se altera? ¿Movimiento, ruptura? Un horizonte de colinas, dije. Tal vez olas. Ahora veamos el tercer corte del poema:

Tenemos una línea quebrada, Amadeo, que puede ser muchas cosas. ¿Los dientes de un tiburón, muchachos? ¿Un horizonte de montañas? ¿La Sierra Madre occidental? Bueno, muchas cosas (…). El poema es una broma, dijeron ellos, es muy fácil de entender, Amadeo, mira: añádele a cada rectángulo de cada corte una vela, así:

¿Qué tenemos ahora? ¿Un barco?, dije yo. Exacto, Amadeo, un barco. Y el título, Sión, en realidad esconde la palabra Navegación. Y eso es todo, Amadeo, sencillísimo, no hay más misterio, dijeron los muchachos y yo hubiera querido decirles que me sacaban un peso de encima, eso hubiera querido decirles, o que Sión podía esconder Simón, una afirmación en caló lanzada desde el pasado, pero lo único que hice fue decir ah, caray, y buscar la botella de tequila y servirme una copa, otra más. Eso era todo lo que quedaba de Cesárea, pensé, un barco en un mar en calma, un barco en un mar movido y un barco en una tormenta (p. 420-423). Nenhuma necessidade de Cesarea Tinajero para elucidar seu poema. O que os poetas detetives selvagens buscam no deserto é Cesarea, a vida; Cesarea, seu tempo livre; Cesarea, o que dela nenhum texto pode dizer; Cesarea, seu corpo (e ela, de magra que era no passado passa a gorda, corpulenta, enorme, capaz de salvar o poeta jovem de um tiro de morte); é, enfim, Cesarea, o mito, o fetiche (deles, porque ninguém além dos amigos íntimos se lembram dela), o que os poetas detetives selvagens procuram. Algo a acrescentar e não para dizer do texto. O que buscam de Cesarea é o que ela é quando não escreve. Em Estrela distante Carlos Wieder é procurado por um detetive, que, de resto, nunca o encontra, pelo assassinato de vários poetas seus conhecidos do tempo em que, com o nome Ruiz-Tagle, havia se inscrito em uma oficina de poesia. A história de Tagle|Wieder é narrada a partir de seu desaparecimento e dá conta da misteriosa identidade de assassino e poeta cujos atos poéticos (a escrita em fumaça traçada no ar por uma aeronave, também rastros que se apagam e, no limite, a exposição fotográfica de corpos torturados) são conhecidos pelo narrador e pelo detetive. É a personagem que melhor encarna o mal absoluto, nos dizeres do próprio Bolaño. Então, nada a dizer sobre sua atividade poética, a obra é toda bem conhecida dos detetives, criticada, analisada, interpretada. O que interessa é o seu não-ser-poeta. Sua

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atividade extraliterária. De novo sua porção de vida e corpo e, por conseguinte, um corpo que pode ser assassinado em vingança aos assassinatos por ele cometidos, um corpo que pode ser caçado e cessado, enquanto a obra permanecerá. A obra não pode causar dano. O poeta sim. A cisão entre escrita e escritor, fica sempre bem marcada. Em 2666, “A parte dos críticos” é dedicada a quatro críticos que procuram por Beno Von Archimboldi, autor secreto cujos livros são amplamente cultuados. A última parte do romance, “A parte de Archimboldi”, é dedicada a sua biografia, que revela ao leitor o nome por trás do pseudônimo: o alemão Hans Reiter, o nome de um dos médicos responsáveis pela política nazista do Reich, também responsabilizado no julgamento dos médicos de Nuremberg por experimentos científicos com judeus durante a Segunda Guerra. No livro de Bolaño, porém, a biografia desse Hans Reiter nada tem a ver com a da personagem histórica e, ao contrário desta, revela um homem grande, que lembra uma enorme alga e só capaz de fazer o bem. Em Os dissabores do verdadeiro polícia (Os dissabores do verdadeiro tira, na versão brasileira), aparece outro escritor desaparecido: Arcimboldi. Os nomes são diferentes, a identidade também, já que Arcimboldi é francês (como também em Os detetives selvagens) e Archimboldi é alemão (mas passou um tempo na França). Contudo, os dois se igualam no desejo de ficarem ocultos enquanto sua obra é lida, enquanto os outros escritores que os admiram fazem viagens em busca de suas identidades, paradeiros e livros esgotados. Eles estão em busca da fonte de onde pode brotar um novo livro mas, principalmente, de um corpo capaz de responder perguntas. Essas respostas não elucidariam, de novo, o texto, mas seriam capazes de mostrar vida, dar algo para decifrar o homem, fetiche nascido do texto. Se, como se tornou lugar comum dizer, os romances de Bolaño estão à procura do leitor-detetive, e se esse livro foi trabalhado até 2003, ano de sua morte, e tem as partes que parecem faltar ou que parecem complicar as tramas de seus romances anteriores, é lícito dizer que o efeito de apagamento e redefinição da identidade de seus personagens, Arcimboldi e Archimboldi por um lado, Amalfitano, Arturo Belano e Roberto Bolaño por outro, se inscreve no projeto maior de sua obra, qual seja o de colocar em cena uma literatura que apaga a presença obstruidora do autor, transformando-o num mito que funciona como uma pegada distante para a obra ao invés de ofuscá-la. Porque só a obra a aparece, o autor está escondido e só o fato de ele permanecer desconhecido é que gera a necessidade de conhecê-lo. Como se fosse preciso que o escritor desaparecesse para que se condensasse em sua obra2. O escritor desaparece, a poesia não. Por outro lado, os leitores protagonistas dos livros de Bolaño têm acesso a toda a obra desses autores secretos ou desaparecidos, a leem, decifram, analisam, comentam, interpretam, mas estão fascinados pelo autor. É o autor e não um manuscrito perdido que eles buscam em todos os trajetos – na cidade, no deserto, no fim do mundo – não para que os ajudem a entender a obra, esses leitores são inteligentes – leram Barthes, leram Foucault, são críticos, professores universitários, poetas utópicos – nem mesmo para tirar uma foto. O fascínio pelo autor diz respeito a algo que está oculto em seus gestos, em o que pode dele se ver de novo, não o texto, mas o corpo, a vida. A decifração do homem revelado pelo texto e que se quer colocar em xeque. E, no limite, as suas implicações políticas: ele foi um torturador? Ele foi um dedo-duro? Ele foi um médico nazista? Ele foi um assassino? Os leitores-detetives querem buscar no autor o homem e no homem o passado. Não o “Como foi feito ‘O capote’, de Gogol” mas como foi feita uma carreira literária. E: que sangue poderia jorrar das veias de um escritor? Ainda por mais um lado: chegar perto do autor, partilhar uma mesa, um lugar num carro, algumas palavras, pode fazer o leitor se apossar do autor, participar do ser-autor? E descobrir como tornar-se um autor? O autor pode levar o leitor a ser um autor? Nesse encontro pode haver sempre algo mefistofélico. Como em 2666, um encontro com um autor pode desfazer o desejo de ser autor. O horror, o horror A figura do autor secreto ou desaparecido encerra, então, pelo menos três grandes temas da literatura contemporânea amplamente explorados por Bolaño: a) o escritor de obra cultuada que desaparece e, inversamente, o escritor de sucesso sem uma obra; b) o passado político do homem e/ou nação que é apagado ou esquecido sob o nome de autor; c) a busca incessante de identidades, prazeres e sentidos para dissipar o tédio da existência, simbolizada pelo verso de Mallarmé “A carne é triste, sim, e eu li todos os livros” hoje transfigurada na saturação mercadológica e na busca de prazeres novos, de jogos de horror, que se colocam em seu lugar.

2 É possível lembrar outro autor espanhol que escreveu belos textos com a mesma temática. Em Suicídios exemplares, de Enrique Vila-Matas, amigo de Bolaño, há o belíssimo conto “A arte de desaparecer”, no qual Anatol, um autor secreto, no momento em que sua obra é descoberta e publicada, resolve perder-se na cidade e desaparecer no mar para que possa, então, ser lido.

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É interessante pensar que Archimboldi sai do centro do mundo para desaparecer nas margens, na cidade fictícia de Santa Teresa, próxima ao deserto mexicano, essa parte tão exótica e cheia de perigos situada na América Latina. É para esse lugar, o fim do mundo, que se dirigem os críticos mais importantes da Europa em busca do escritor-mito, é para esse fim de mundo que Amalfitano deve se dirigir se quiser continuar dando suas aulas de literatura depois de ter sido expulso da Espanha e, no final de 2666, todos os olhares convergem para esse fim de mundo com sua violência, prisões e pobreza. No lugar do latino que é preso no centro do mundo, temos um alemão, sobrinho do grande escritor indicado ao Nobel, preso em Santa Teresa, acusado de assassinar centenas de mulheres. No texto “Direto para o fim do mundo” (2002, p. 199-228) Beatriz Resende lê a temática do fim do mundo no cinema e na literatura dos anos 1980-90 a partir da ideia de utopia. O fim do mundo como o fim da utopia. Parece-me que Bolaño parte justamente dessa ideia para mostrar uma crise de valores de um centro que se recusa a pensar os problemas da periferia, para discutir como, afinal de contas, esse fim de mundo acaba sendo um problema que implica o centro. Aprofundando um pouco a questão do desaparecimento|apagamento em relação com o gesto de fazer lembrar, e pensando na dupla de nomes Hans Reiter e Archimboldi, no que um nome esconde do outro, chega-se ao horror do experimentos científicos durante a Segunda Guerra. Em Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua, Giorgio Agamben dedica-se a escritos de Reiter sobre a assim dita necessidade de se estabelecer o valor das vidas humanas e entregar ao Estado a decisão sobre a vida ou a morte. É sabido que essa política, implantada antes da Segunda Guerra, era um eficaz programa de eutanásia que levava à morte os doentes mentais e velhos residentes na Alemanha e que só se intensificou durante a guerra, levando à morte pelas mãos do Estado milhares de ciganos e judeus que serviram, antes do extermínio, antes da “solução final” a uma série de experimentos, descritos no livro de Agamben. Há um mito que diz que Hans Reiter teria fingido sua morte e fugido para a Argentina, onde teria vivido sob o pseudônimo de Archimboldi, escrevendo livros até ser descoberto na década de 1960. Impossível não colocar em paralelo as duas escritas: na atividade de escrita reservada aos relatórios dos experimentos, assinada por Reiter e na escrita de romances, assinada por Archimboldi. A história dessa descoberta e entrega ao Estado de Israel diz respeito mais bem à Eichmann que, verdadeiramente, se escondeu na Argentina, como é narrado por Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal. Na Wikipédia há uma biografia de Hans Reiter que bem poderia ter sido escrita por Bolaño à maneira das de La literatura nazi em América3. A Segunda Guerra é tema frequente de seus livros, forçando, parece, a lembrança do horror vivido pelas vítimas. Em Amuleto, a referência a 2666 é clara e esclarecedora: A Guerrero, a esa hora, se parece sobre todas las cosas a un cementerio, pero no a un cementerio de 1974, ni a un cementerio de 1968, ni a un cementerio de 1975, sino a un cementerio del año 2666, un cementerio olvidado debajo de un párpado muerto o nonato, las acuosidades desapasionadas de un ojo que por querer olvidar algo ha terminado por olvidarlo todo (Bolaño, 1999, p. 28). As datas, alusivas aos anos de chumbo das ditaduras latino-americanas, não deixam dúvidas, ainda mais que reforçadas no discurso de Bolaño na entrega do prêmio Rômulo Galegos, remetem ao sacrifício dos jovens da geração do autor, cuja imagem ameaçadora e lírica ao mesmo tempo está tão bem imortalizada no final de Amuleto. Y los oí cantar, los oigo cantar todavía, ahora que ya no estoy en el valle, muy bajito, apenas un murmullo casi inaudible, a los niños más lindos de Latinoamérica, a los niños mal alimentados y a los bien alimentados, a los que lo tuvieron todo y a los que no tuvieron nada, qué canto más bonito es el que sale de sus labios, qué bonitos eran ellos, qué belleza, aunque estuvieran marchando hombro con hombro hacia la muerte, los oí cantar y me volví loca, los oí cantar y nada pude hacer para que se detuvieran, yo estaba demasiado lejos y no tenía fuerzas para bajar al valle, para ponerme en medio de aquel prado y decirles que se detuvieran, que marchaban hacia una muerte cierta. Lo único que pude hacer fue ponerme de pie, temblorosa, y escuchar hasta el último suspiro su canto, escuchar siempre su canto, porque aunque a ellos se los tragó el abismo el canto siguió en el aire del valle, en la neblina del valle que al atardecer subía hacia los faldeos y hacia los riscos (Bolaño, 1999, p. 61). O tema do horror está ligado ao problema do esquecimento e à proposta clara de Bolaño da literatura como jogo de lembrar. Diz o narrador de O terceiro Reich: “Este tipo de jogo gera um impulso documental bastante curioso. É como se

3 Disponível em: http://es.wikipedia.org/wiki/Benno_von_Archimboldi Pesquisado em junho 2013. Em Noturno do Chile Bolaño faz referência também ao pintor italiano Giuseppe Arcimboldo (1527-1593).

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quiséssemos saber tudo o que se fez para transformar o que se fez malfeito” (2010b, 253). A afirmação, de resto cínica, da personagem, vale para o jogo de guerra, o jogo de estratégia, mas também para a literatura. Tudo leva a crer que Bolaño estava atento ao que diz Walter Benjamin: “A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido” (1994, p. 224), e monta, com esse relâmpago, um jogo que o reescreve incessantemente, no qual cada peça tem a virtude de mostrar a imagem espelhada passado-presente que, se é incapaz de redimir o passado – os detetives não chegam nunca a resolver os crimes, as vítimas não têm novas chances, os assassinos não pagam por seus crimes – ilumina o devir da história como algo que se pode prever e mudar e não como uma marcha cega do progresso. A experiência de Auxilio Lacouture, presa e escondida no banheiro da Universidade Autônoma do México por 12 dias, durante os quais a força policial invadiu a universidade, mas também durante os quais centenas de jovens foram mortos no massacre de Tlatelolco, ao mesmo tempo que serve como testemunho de um passado violento, é impotente no pressentimento de que tudo pode ocorrer de novo: (…) no sé, una vez más, si estoy en el 68 o en el 74 o en el 80 o si de una vez por todas me estoy aproximando como la sombra de un barco naufragado al dichoso año 2000 que no veré. Sea lo que sea, algo pasa con el tiempo. Yo sé que algo pasa con el tiempo y no digamos con el espacio. Yo presiento que algo pasa y que además no es la primera vez que pasa, aunque tratándose del tiempo todo pasa por primera vez y aquí no hay experiencia que valga, lo que en el fondo es mejor, porque la experiencia generalmente es un fraude (Bolaño, 1999, p. 42). Alguns capítulos depois, deflagrada pela história de Erígone e Orestes contada por outro personagem (Carlos Cofeen Serpas), a experiência anestesiada pelo tempo vem à tona como para ressignificar o passado a partir da figura do exilado que, na cena final da história de Erígone tal como contou Coffen e também na cena final de Amuleto, se revela como uma falsa saída, uma saída para a morte. Assim, o passado está no presente de Auxílio, ela se dá conta de que continua presa daquela experiência: (...) Pensé: estoy en el lavabo de mujeres de la Facultad de Filosofía y Letras y soy la última que queda. Iba hacia el quirófano. Iba hacia el parto de la Historia. Y también pensé (porque no soy tonta): todo ha acabado, los granaderos se han marchado de la Universidad, los estudiantes han muerto en Tlatelolco, la Universidad ha vuelto a abrirse, pero yo sigo encerrada en el lavabo de la cuarta planta, como si de tanto arañar las baldosas iluminadas por la luna hubiera abierto una puerta que no es el pórtico de la tristeza en el contínuum del Tiempo (p. 49-50). A experiência das guerras floridas, verdadeiro leitmotiv de Amuleto, parece não valer para impedir que, numa volta do tempo tudo aconteça de novo. Como diz Augusto Monterroso, desdizendo Heráclito: “Quando o rio é lento e se conta com uma boa bicicleta ou cavalo, sim, é possível banharmo-nos duas (e até três, consoante as necessidades higiênicas de cada um) vezes no mesmo rio.” Essa é, por sinal, a epígrafe de A literatura nazi nas américas (1996). O tédio Em “Literatura + enfermedad = enfermedad”, de El gaúcho insufrible, livro póstumo, porém entregue ao editor antes da morte, nesse sentido, seu último livro, Bolaño parte de “Brisa Marinha”, de Mallarmé4, para armar o problema da doença

4 A carne é triste, sim, e eu li todos os livros. Fugir! Fugir! Sinto que os pássaros são livres, Ébrios de se entregar à espuma e aos céus imensos. Nada, nem os jardins dentro do olhar suspensos, Impede o coração de submergir no mar Ó noites! nem a luz deserta a iluminar Este papel vazio com seu branco anseio, Nem a jovem mulher que preme o filho ao seio. Eu partirei! Vapor a balouçar nas vagas, Ergue a âncora em prol das mais estranhas plagas!

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do mundo contemporâneo, que é ainda a mesma do artista moderno: a doença revestida do véu do tédio, a doença como resignação. Bolaño parte de Mallarmé, pois para ele, na poesia francesa do século XIX prefiguram os grandes problemas que a Europa enfrentaria e que ainda estão por resolver. Essa grande poesia se teria iniciado com Baudelaire, adquiriu sua maior tensão com Lautréamont e Rimbaud e terminou em Mallarmé, o último dos quatro a morrer e o menos ingênuo de todos, segundo Bolaño. Daí que, para Bolaño, o verso de Mallarmé “A carne é triste, sim, e eu li todos os livros” é uma resposta à poesia “A viagem” de Baudelaire, para ele “talvez a poesia mais lúcida de todo o século XX”, embora uma poesia sem saída, doente. Dela, Bolaño retira algumas partes e um de seus versos como exemplar, não por acaso, o verso que serviria de epígrafe ao seu 2666. “Um oásis de horror em meio a um deserto de tédio”, o verso de Baudelaire, para Bolaño, é o diagnóstico mais lúcido para a doença do homem moderno, que continua no homem de depois do moderno, no homem dito contemporâneo, o dos anos 2000. E, diga-se de passagem, está presente também em Poe, por Baudelaire traduzido. Em “William Wilson”, de Histórias extraordinárias, diz o narrador: “Desejaria que descobrissem para mim, entre os pormenores que estou a ponto de relatar, algum pequeno oásis de fatalidade, perdido num deserto de erros” (Poe, 1986, p. 258). Baudelaire ressignifica o achado de Poe de modo que a frase, transformada em verso, passe de uma descrição de um fato singular, particular, que diz respeito à vida do personagem-narrador do conto de Poe para uma leitura de mundo. “Viagem” é um diagnóstico terrível, uma visão de um mundo sem saídas, oposto à qualquer ideia de progresso. Baudelaire diz em carta a Asselineau a propósito desse poema: “Concluí um poema dedicado a Du Camp que fará tremer a natureza e, sobretudo, os amantes do progresso” (Baudelaire, 1985, p. 619). Bolaño, ao escolher esse verso como epígrafe de 2666, dá à humanidade o mesmo diagnóstico de Baudelaire: para sair do tédio, a única coisa à disposição seria o horror. Hoje tudo parece indicar que todos os oásis se encaminham em direção ao horror: En un oasis uno puede beber, comer, curarse las heridas, descansar, pero si el oasis es de horror, si sólo existen oasis de horror, el viajero podrá confirmar, esta vez de forma fehaciente, que la carne es triste, que llega um dia em que todos los libros están leídos y que viajar es um espejismo. Hoy, todo parece indicar que sólo existen oasis de horror o que la deriva de todo oasis es hacia el horror (2004b, p. 152). Há, porém, os últimos versos da poesia de Baudelaire: Queremos, tal o cérebro nos arde em fogo, Ir ao fundo do abismo, Inferno ou Céu, que importa? Para encontrar no ignoto o que ele tem de novo!” (Baudelaire, 1985, p. 441). e eles são a bandeira da arte que se opõe ao horror, como uma batalha perdida de início. Ler, que é o mesmo que escrever, diz Bolaño tomando o exemplo de Rimbaud, o sexo e a viagem, as três promessas de liberdade e de descoberta, para Mallarmé, perderam completamente a importância, já que tudo o que há é o abismo e o horror, digamos, a impotência, o tédio. Bolaño, nesse lugar da sua exposição, se pergunta: Por que, então, Mallarmé insiste em viajar? (Eu partirei! Vapor a balouçar nas vagas, | Ergue a âncora em prol das mais estranhas plagas! || Um Tédio, desolado por cruéis silêncios, | Ainda crê no derradeiro adeus dos lenços!) E responde: “Mallarmé quer recomeçar, mas sabendo que a viagem e o viajante estão condenados”:

Um Tédio, desolado por cruéis silêncios, Ainda crê no derradeiro adeus dos lenços! E é possível que os mastros, entre ondas más, Rompam-se ao vento sobre os náufragos, sem mas- Tros, sem mastros, nem ilhas férteis a vogar... Mas, ó meu peito, ouve a canção que vem do mar!

(Tradução de Augusto de Campos)

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Es decir, para el poeta de Igitur no sólo nuestros actos están enfermos sino que también esta el lenguaje. Pero mientras buscamos el antídoto o la medicina para curarnos, lo nuevo, aquello que sólo se puede encontrar en lo ignoto, hay que seguir transitando por el sexo, los libros y los viajes, aun a sabiendas de que nos llevan al abismo, que es, casualmente, el único sitio donde uno puede encontrar el antídoto (2004b, p. 156). O fascínio pelo abismo, pelo precipício, pelo risco, está lembrado por Bolaño em quase todas as suas falas públicas. O risco e o fascínio do abismo são a identidade do escritor, a garantia da qualidade literária, o que está implicado no seu conceito de literatura. Para que surja algo mais do que “escrivinhação”, esse substantivo que liga o produto ao escrivinhador (como ele chama alguns colegas chilenos), é preciso encarar o abismo, correr o risco de desaparecer no abismo. Não é sem propósito, portanto, que os escritores capazes ainda de encantar as novas gerações de poetas e de críticos e de leitores de romances sejam aqueles que desapareceram no abismo, no deserto, no não conhecido, no não confortável, naqueles lugares do fim do mundo, em que ler também é um risco. O autor desparecido, aquele que gastou sua própria vida para se equilibrar na borda do mundo para que existisse a escrita, aquele que tentou salvar a vida na escrita e não no reconhecimento é o único que merece os leitores-detetives, os leitores do risco. Referências AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Trad. Selvino J. Assmann. São Baulo: Boitempo, 2008. AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio d’água, 2010. ARENDT, Hannah. Eichmann in Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 1999. BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. 1. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. (Obras Escolhidas; v. 3) BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras Escolhidas; v. 1) BOLAÑO, Roberto. La literatura nazi em América. Barcelona: Editorial Seix Barral, 1996. BOLAÑO, Roberto. Amuleto. Barcelona: Anagrama, 1999. BOLAÑO. “La inmortalidad literaria”. Radar, jornal Página 12, sábado, 19 de julio de 2003, p. 3. In: http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/radar/6-852-2003-07-19.html BOLAÑO, Roberto. El gaúcho insufrible. Barcelona: Anagrama, 2004b. BOLAÑO, Roberto. Los sensabores del verdadero policía. Barcelona: Anagrama, 2004c. BOLAÑO, Roberto. Os detetives selvagens. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. BOLAÑO, Roberto. El secreto del mal. Barcelona: Anagrama, 2007. BOLAÑO, Roberto. Amuleto. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. BOLAÑO, Roberto. Estrela distante. Trad. Bernardo Ajzenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. BOLAÑO, Roberto. 2666. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. BOLAÑO, Roberto. Os dissabores do verdadeiro polícia. Lisboa: Quetzal, 2011. BOLAÑO, Roberto. O Terceiro Reich. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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