cinema nacional anos 90 - ismail xavier

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CINEMA NACIONAL: TTICAS PARA UMFilmografia brasileira ganha densidade a partir de 1995 sem proclamar rupturas e sem prender-se a modelos do passadoAps a crise ocorrida em torno de 1990, o cinema brasileiro vive um clima de renascimento. A presena de longas-metragens no mercado, que havia descido a cerca de seis filmes por ano no incio da dcada, chega agora a cerca de 30 ttulos. Desde 1993, uma nova produo se tornou visvel, adquirindo maior densidade a partir de 1995, com uma variedade de estilos que tem dificultado a caracterizao de perfis estticos e temticos mais relevantes. O dado contundente hoje a diversidade, no apenas tomada como fato, mas tambm como um valor. A ausncia de movimentos estticos aglutinadores, aptos a definir um estilo dominante, vista por muitos como um trao a favor do quadro atual, supostamente distinto dos anteriores, marcados por tendncias hegemnicas. No entanto, tem havido exageros na consagrao das diferenas, s vezes pautados pela equvoca imagem de uma homogeneidade, de fato inexistente no passado. O dado curioso desse viva a diferena que ele no se associa batalha por um cinema de autor contra padronizaes do mercado. Em termos prticos, o autor prevalece. Mais aberto a parcerias e talvez menos soberbo na postura, ele ou ela a fora maior na constituio de um plo de qualidade na produo. O clima cultural, porm, no reala questes de princpio como plos de debate, seja a questo nacional, a oposio entre vanguarda e mercado, a disparidade de oramentos e de estilos. A nova forma de apoio produo favorece tal clima, pois estabelece um guardachuva generoso que abriga a variedade. A Lei do Audiovisual - esquema de iseno fiscal que faculta s empresas um mecenato feito s custas do prprio governo - o grande suporte do cinema, oferecendo uma moldura para a liberdade de estilo (desde que se tenha acesso mundano) e de classe aos canais para captar recursos junto a empresas ou a governos locais que procuram favorecer a descentralizao.A escolha entre a insero no circuito do cinema de arte ou a tentativa de comunicao com o grande pblico depende fundamentalmente dos realizadores, pois no h presso imediata por retomo de capital. Valendo mais

iail Xavk!r fessor Li\rre-Docente do D q lartamentc CA-USP. ema, Rdio e Televiso da E(

1.Texto originalmente publicado como Movimentos tticos, para um tempo sem estratgias na revista Rumos: os caminhos do Brasil em debate. Brasiia: Ministrio das Relaes Exteriores. n. 1, dezembro, 1999.

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a convico pessoal que dirige o projeto numa direo ou noutra. Dentro da brecha criada pela legislao, os cineastas vo trabalhando cientes de que podem estar vivendo uma bolha de produo com morte anunciada se no houver imaginao capaz de produzir uma poltica da qual o cinema ainda carece.

DIFERENAS SEM RUPTURAA ausncia de debate vale tambm para a relao esttica com o passado. O cinema atual exibe sua diferena, mas no est preocupado em proclamar rupturas. Privilegia os dados de continuidade, como, por exemplo, na srie de filmes que focalizam o tema do serto e da seca, num retomo ao universo tpico do Cinema Novo. Trabalha-se esta questo em chaves diferentes - no grande espetculo, como em Canudos (Srgio Resende, 1997);no filme experimental mais voltado para um encontro que enseja o inventrio antropolgico, como em Crede-mi (Bia Lessa, 1997); na reciclagem do ciclo do cangao, como em Baile perfumado (Paulo Caldas e Lrio Ferreira, 1996), em Corisco e Dad (Rosemberg Cariry, 1996) e em O Cangaceiro (Anbal Massaini, 1997); ou na evocao de trajetos familiares de migrao catalisados por estagnao econmica, seca, esquemas exploratrios e retricas de modernizao esprias, como em Serto das memrias (Jos Arajo, 1996). Se evidente a variedade de estilos, Serto das memrias e Baile perfumado procuram um caminho mais original no trato com a memria nordestina. O primeiro se pauta pela reminiscncia familiar e pela busca de um classicismo pictrico afinado a fotos antigas; o segundo mais ousado, buscando o cotejo entre estmulos modernos (no estilo de cmara, de som e de montagem) e a tradio do

assunto, numa redefinio dos termos da relao entre serto e litoral, transformando Lampio, antes tomado como figura proto-revolucionria, em cone pop. A par dessa srie em tomo do serto, outros ncleos temticos se repem. O dilogo com o Cinema Novo ntido em filmes como Capitalismo selvagem (Andr Klotzel, 1993), que focaliza a questo da identidade no eixo So Paulo-Amaznia, com referncia explcita a Macunama (Joaquim Pedro, 1969). Quatrilho (Fbio Barreto, 1995) adapta para o clima do Sul brasileiro certas frmulas dramticas da novela brasileira que retomam uma poltica de conciliaes que fizeram o sucesso de Dona Flor (Bruno Barreto, 1976), enquanto que Carlota Joaquina (Carla Camurati, 1995) dialoga com a chanchada dos anos 50 e com a televiso recente. Sbado (Ugo Georgetti, 1995) faz de um edifcio o lugar alegrico da nao, lembrando Tudo Bem (Arnaldo Jabor, 1978). Alma corsria (Carlos Reichenbach, 1993)d continuidade a uma tradio de alegoria poltica referida experincia de travessia da ditadura. Pequeno dicionrio amoroso (Sandra Wemeck, 1996) retoma a experincia da comdia nos termos de Todas as mulheres do mundo (Domingos de Oliveira, 1967). E Central do Brasil (Walter Salles Jr., 1997) est cheio de referncias ao cinema brasileiro que j tratou a questo da migrao.

Esses exemplos, e o prprio perfil geral da produo, deixam claro que no h no clima cultural de hoje um tipo de contestao do passado recente como aconteceu no final dos anos 50, na emergncia do Cinema Novo, ou na segunda metade dos anos 80, quando uma nova gerao se colocou contra a esttica da fome (ou sua radicalizao na esttica do lixo) e contra o nacionalismo cultural dos anos 60 e 70.

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Ressaltei a diversidade, mas esta no impede de configurar o campo, de apontar linhas significativasou de marcar a incidncia da conjuntura atual nos filmes, todos s voltas com os problemas de representao da experincia que no so exclusivos ao cinema brasileiro. Reconhecida a crise do realismo e, no Brasil, de um alegorismo nacional totalizante, constatada a onipresena de frmulas narrativas que engessam a imaginao, os cineastas tm buscado a composio de histrias que tematizam o seu dilogo com a fico mais popular (o melodrama, o filme noir, a chanchada, o thriller), referindo-se, em seus filmes, questo do peso do cinema e da mdia em geral.

nascem os anjos (Murilo Salles, 1996) a crtica ao olhar melodramtico dirigido experincia de seus protagonistas infantis se alia vontade de explorar o efeito de situaes inverossmeis, de se afastar do realismo. E Jlio Bressane, que a partir de 1969 esteve associado ao cinema reflexivo em sua verso mais radical, avana, com Miramar (1997), em seu programa potico, debatendo a prpria produo em uma histria que, articulando a morte da famlia e a iniciao ao cinema, cita seus filmes l do incio e renova o olhar dirigido paisagem do Rio de Janeiro, de modo a traar um irnico retrato do artista enquanto adolescente.

H, no cinema dos anos 90, uma reflexividade menos ostensiva e menos desconstrutora do que a afirmada no passado. O dilogo crtico com gneros da cultura de massa se faz agora a partir da incorporao localizada das regras e de uma rejeio final ao esprito dos filmes da indstria. Os Matadores (Beto Brandt, 1997) rev a tradio dos filmes sobre pistoleiros de aluguel e regies de fronteira de forma a acenar com uma repetio das frmulas, mas instaurando, em seu final, uma resoluo original. Um cu de estrelas (Tata Amaral, 1996) faz a crtica do melodrama que algumas de suas figuras encarnam - a velha me de famlia e a jovem cultura da televiso -, depositrias das foras que os dois protagonistas combatem em seu tenaz esforo de afastar o seu drama das banalizaes que o cercam. Se a crtica do cinema de gnero ou da televiso , nesses casos, estratgia de produo de um efeito realista, em Como

H ntida mudana na maneira de se entender o papel da fotografia, do cinema e da televiso na formao do sujeito, e na maneira de se conceber o jogo de poder dentro do qual os produtores de imagem esto inseridos, numa tnica bem distinta daquela que tendeu a heroificar o cineasta independente como revelador de um Brasilverdade para os brasileiros, como aconteceu nos anos 60 e 70. O cineasta se reconhece agora como parte da mdia que tanto tematiza, pea de um grande esquema de formao da subjetividade.Como nascem os anjos retoma a crtica da TV, mas vai alm da observao presente em Pixote (Babenco, 1980) sobre as relaes entre infncia e televiso. Ed Mort (Alain Fresnot, 1996), Quem matou Pixote? (Jos Joffily, 1996), Doces poderes (Lcia Murat, 1996), O Homem nu (Hugo Carvana, 1997) e Sbado, ao discutirem o poder poltico e o lado invasivo da TV ou do cinema na sociedade moderna, acentuam a desestabilizao das distines entre pblico e privado e

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destacam a instituio de um novo espao poltico com dinmica prpria. Baile perfumado discute o papel do cinema na morte de Lampio nos anos 30 tal como os outros filmes discutem o papel da televiso na experincia das personagens dos anos 90. De diferentes formas, o cinema brasileiro sinaliza as mediaes inevitveis a o tentar dar conta d a experincia contempornea. Internaliza, a seu modo, os dados da conjuntura. Mostra-se sensvel aos aspectos humanos da compresso do espao e do tempo, prpria do mundo da alta tecnologia. Alguns filmes trabalham sob novo olhar temas clssicos - como os movimentos migratrios e a discusso da identidade nacional. A migrao, que enseja um tratamento alegrico dos espaos e dos encontros, o trao comum de filmes bem distintos, tais como Terra estrangeira (Walter Salles e Daniela Thomas, 1995), Baile perfumado, Quatrilho e Serto das memrias.

estrelas), seja quando os meninos da favela cruzam com um norte-americano e sua filha (Como nascem os anjos). Baile perjiumado sinaliza alteraes de sensibilidade quando acentua, pela primeira vez, o fato de que Benjamin Abraho, o cineasta que filmou Lampio nos anos 30, era um imigrante libans. E o territrio coberto pela experincia migratria dos brasileiros se amplia, como no movimento de fuga que assola jovens brasileiros, desencantados e deriva em Portugal (Terra estrangeira).

EMBATE CULTURALSe o cinema brasileiro moderno tratou a migrao colonizadora do territrio numa chave antipica, interessado em revelar fracassos e iluses perdidas, o cinema de hoje, s vezes, inverte a direo do movimento e pode se ver polarizado entre uma postura de desqualificao e uma de afirmao de valores culturais associados a Portugal. Tal oposio se expressa, por exemplo, quando cotejamos Carlota Joaquina com Bocage, o triunfo do amor (Djalma Batista, 1997). Em ambos, a travessia do Atlntico e a expanso portuguesa so tomados em sua dimenso formadora de identidade. Carlota compe tipos grotescos numa chave cmica que explora o imaginrio desqualificador dos ibricos. Bocage, ao contrrio, se pe num outro patamar de debate cultural; descarta a caricatura fcil e acentua o dado afirmativo da formao do complexo cultural de matriz lusitana. O afresco da expanso ultramarina compe a moldura para a homenagem ao poeta e, atravs dele, lngua portuguesa, invertendo os valores que presidem um imaginrio que toma a histria das navegaes como a figura de um equvoco cujo resultado o Brasil.

Os deslocamentos no espao e as interaes entre o local e o estrangeiro tm tido enorme efeito sobre as estruturas dramticas do cinema em vrios pases. O tema recorrente da viagem no cinema de hoje (mesmo que a histria tenha lugar no passado) um sintoma do qual a produo brasileira no se afasta. A idia de experincia local se dissolve em diferentes conexes, colocando a fico em busca de novas formas.

Cacos da histria mundial se fazem presentes, seja num apartamento de paredes corrrodas num prdio decadente do centro de So Paulo (Sbado), seja no bairro da Mooca que se liga a Miami ( U m cu de

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A questo colonial no o nico eixo em que se d este confronto entre ironia absoluta e afirmao de valores. Colocada a questo atual da violncia urbana, curiosa a posio de Central do Brasil. O filme parte da estao de trem carioca, to emblemtica no cinema brasileiro, para compor uma viagem de retorno ao serto como alegoria nacional de reposio de valores, efetuada em chave melodramtica. A parbola bblica de regenerao moral afirma um percurso de humanizao, mas sua condio afastar os protagonistas do espao atingido pela modernidade, retomando a tradicional oposio moral entre cidade e campo. O urbano moderno, em Central do Brasil, s parece admitir aquele olhar de desqualificao absoluta que tem, j h algum tempo, feito desfilar a misria brasileira nas telas.

Sem postular espaos de redeno, outros filmes recentes identificam o quadro nacional com um estilo de vida tpico de zonas de fronteira. Espaos estes com regras prprias de poder e pautados por uma interao social alheia a qualquer noo de cidadania, numa ausncia de lei e de Estado que permite aproximar as situaes vividas na fronteira do Paraguai (Os matadores) com as situaes vividas no Rio de Janeiro (Como nascem os anjos).

Dentro deste quadro maior de feudalizao do espao social, alguns filmes brasileiros tm privilegiado, como figura caracterstica da vivncia contempornea, certas situaes inusitadas em que vida e morte se decidem pelo disparo de uma arma de fogo (ou pela ausncia inesperada deste disparo) em mos despreparadas. O interesse maior por um sacar da arma que no resulta

das rotinas profissionais que formam o contexto mais sistemtico da violncia, mas por aquele tiro que se impe como soluo dramtica para situaes de impasse. Tais situaes podem adquirir a forma imediata do acidente, como explora Como nascem os anjos em sua comdia de erros de triste final. Ou podem tomar a forma de um acordo limite que responde a uma condio de cerco irremedivel, como em Um cu de estrelas. Por circunstncias diversas, em So Paulo ou no Rio de Janeiro, no serto do Nordeste ou na fronteira do pas, algum saca da arma e precipita sua prpria runa, at mesmo quando exibe, com pompa, o teatro de sua suposta competncia. H uma dramaturgia disposta a explorar os aspectos tticos dessas situaes limite que revelam o descompasso entre um perfil pessoal e uma condio prtica (Os matadores e Terra estrangeira). No se trata a de dar nfase s personagens como porta-vozes de valores, mas de explorar o aspecto de incerteza, entre tudo e nada, que as envolve, no como vtimas passivas e impotentes, mas como figuras que se enredam em esquemas que as ultrapassam. Esboa-se a uma dramaturgia que responde ao salve-se quem puder como princpio da sociedade, a um mundo de confrontos tticos que no parecem se inserir em estratgias maiores do que a luta pela sobrevivncia. A violncia reconhecida como um horizonte comum, ao mesmo tempo cotidiano e inesperado, definido por um estado de coisas que projeta sobre pases inteiros o cenrio de disputas de territrio, brigas de quadrilha. H variaes, dentro da tnica de diversidade j apontada, mas alguns filmes brasileiros vo, enfim, delineando os termos estticos de uma pragmtica das situaes de cerco e dos impasses.

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Resumo: O autor analisa a filmografia que emerge no Brasil a partir, principalmente,de 1995, destacando a variedade de estilos e de temas. A diversidade caracteriza essa produo que no est preocupada em proclamar rupturas com a produo anterior. Pode-se afirmar, segundo o autor, que essa filmografia guarda certa continuidade temtica com o passado, trabalhando sobre chaves estticas diferentes. 0 s cineastas tm buscado, na atualidade, a composio de histrias que tematizam o dilogo com a fico mais popular: o melodrama, o filme noir, a chanchada, o thriller. O autor afirma, ainda, que essa produo cinematogrfica esboa uma dramaturgia que convive com o cenrio de insegurana da atualidade, inclusive com a instabilidade de sua prpria sobrevivncia, devido as incertezas da poltica cultural no pas. Palavras-chave: cinema brasileiro, Lei do Audiovisual, diversidade, cinema novo, cultura de massa, gneros

Abstract: The author analyses the filmography that emerged in Brazil especially as of 1995, highlighting the variety in styles and themes. The diversity characterizes this production that is not concerned with proclaiming ruptures with previous production. It is possible to claim, according to the author, that this filmography guards certain thematic continuity with the past, working on different aesthetic keys. Movie directors have searched for, currently, the compositions of stories that have dialogue as a theme and that have more popular fiction: melodrama, the noir film, the slap-stick comedy, and the thriller. The author claims, furthermore, that this movie production has a dramaturgy that lives together the current picture of insecurity, including with the instability of its own survival due to uncertainties in the Country's cultural policy. Key words: Brazilian cinema, Audiovisual Law, diversity, new cinema, mass culture, genre