ismail xavier cinema revelacaoengano

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Ismail Xavier o olhar e a cena Melodrama, Hol{ywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues .. Cosac & Na ify . cinomaleca brasileira

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Page 1: Ismail Xavier Cinema Revelacaoengano

Ismail Xavier

o olhar e a cena Melodrama Holywood Cinema Novo Nelson Rodrigues

bull Cosac amp Na ify cinomaleca brasileira bull

I Cinema revelaccedilatildeo e engano

ATESTEMUNHA DE MCCARTHY

Haacute quem tome o cinema como lugar de de acesso a uma vershy

dade por outros meios inatingiacutevel Haacute quem assuma tal poder revclatoacuterio

como uma simulaccedilatildeo de acesso agrave verdade engano que natildeo resulta de acishy

dente mas de estrateacutegia Eacute preciso discutir essa questatildeo ao especificar

determinadas condiccedilotildees de leitura de imagens para tanto faccedilo uma recashy

pitulaccedilatildeo histoacuterica pois o binocircmio revelaccedilatildeo-engano projeta-se no temshy

po referido a dois momentos da reflexatildeo sobre cinema o da promessa

maior na aurora do seacuteculo xx e o do desencanto nos anos

Comento de iniacutecio uma situaccedilatildeo extraiacuteda do documentaacuterio Poiacutent of

Order [I963] de Emilio de Antonio filme que focaliza os processos e as

seccedilotildees de tribunal no periacuteodo do macarthismo nos Estados Unidos Tratashy

se de uma remontagem da documentaccedilatildeo colhida ao vivo nos

rios Em determinado momento uma testemunha de eacute

pelo advogado de defesa de um militar aCllsado de atividades anriamerishy

canas Esse advogado mostra uma foto agrave testemunha Nessa foto se

numa tomada relativamente proacutexima duas figuras o reacuteu e ao seu

promotoria como peccedila

testemunha se considera a foto verdadei~a Aacute resposta eacute sim O

do mostra uma foto maior em que aacuteparece numa reuniatildeo

um grupo de pessoas - dentre elas algumas insuspeitas e que traz num

algueacutem jaacute comprometido jaacute indexado na eacuteaccedila agraves bruxas A imagem

mostrar os dois conversando em tom de certa intimidade

da acusaccedilao pergunta agrave

dos cantos a anteriormente vista na foto menor Entendemos sem

demora que a eacute um recorte da segunda ou eacute parte

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de um contexto maior com muita gente envolvida uma situaccedilatildeo puacuteblica

que natildeo denota nenhuma cumplicidade entre o reacuteu e seu interlocu

O curioso no fato eacute que ao ser reiterada a pergunta vocecirc continua

achando esta foto [menor] verdadeira - a resposta eacute de novo sim

Chegamos aqui ao dado significativo A -resposta surpreende-nos mas

ilustra muito bem uma certa noccedilatildeo de verdade noccedilatildeo muito mais presenshy

te no senso comum de uma sociedade como a nossa do que tagravelvez gostariacuteashy

mos A testemunha trazia a convicccedilatildeo de que a verdade estava em cada

pedacinho da foto como tambeacutem da realidade Aquele canto da imagem

aquele fragmentoacute extraiacutedo da maior foi obtido sem que se adulshy

terasse cada ponto da foto sem maquiagem sem alteraccedilatildeo das

que lhe satildeo internas Logo conteacutem a verdad~ Eacute uma imagem

as duas figuras estiveram efetivamente juntas diante da cacircmera

importa aiacute o contexto) O recorte definidor da moldura natildeo incomodou

a testemunha para quem a verdade eacute soma estaacute em cada parte

Em nossa cultura o processo fotograacutefico tem grande poder sobre as

convicccedilotildees desse tipo de observador assim embalado pela evidecircncia

empiacuterica trazida pela imagem Mais ateacute do que a acuidade da reproduccedilatildeo

(eixo da semelhanccedila) a imagem fotograacutefica (e cinematograacutefica) ganha

autenticidade porque corresponde a u~ registro automaacutetico ela se imprishy

me na emulsatildeo sensiacutevel por um processo objetivo sustentado na causalishy

dade fotoquiacutemica Como resultado do encontro entre o olhar do sistema

de lentes (a objetiva da e o acontecimento fica depositada uma

desse que funciona como um documento Quando se esquece a

funccedilatildeo do recorte prevalecendo a feacute na evidecircncia da imagem isolada

temos um sujeito totalmente cativo do processo de simulaccedilatildeo por mais

que ele pareccedila Caso tiacutepico eacute o dessa testemunha de McCarthv a consagrar o engodo de uma promotoria

Diantc de tal feacute na imagem nossa primeira operaccedilatildeo eacute reverter o

processo e chamar a atenccedilatildeo para a moldura para a entre a foto e

seu entorno para o fato de que o sentido se tece a partir das relaccedilotildees entre

o visiacutevel e o invisiacutevcl de cada situaccedilatildeo Vou aqui um pouco adiante para

ressaltar o quanto aleacutem da foto e de seu contexto haacute que se inserir no

tambeacutem o universo do observador e o tipo de pergunta que ele endereccedila agrave

imagem Ou seja dentro de que se daacute a leitura e ao longo de que

eixo opotildeem-se verdade e revelaccedilatildeo e engano Voltando agrave foto

menor apresentada pelo advogado constatamos num niacutevel mais elemenshy

tar de interrogaccedilatildeo que ela produz um resiacuteduo de documento na imagem

dos interlocutores (sua postura e suas roupas indicam certo estilo etc) No

entanto a ilegitimidade da foto eacute flagrante quando fabrico o fato convershy

sa isolada c o evidecircncia da culpabilidade interessado na dimensatildeo

poliacutetica da imagem Quando pergunto pela autenticidade de uma imagem

natildeo estou portanto discutindo sua verdade em sentido absoluto incondishy

cionado Natildeo discuto a existecircncia das dadas ao olhar Pergunto

pela significaccedilatildeo do que eacute dado a ver numa interrogaccedilatildeo cuja resposta

mobiliza dois referenciais o da foto (enquadre e moldura) que definc um

campo visiacutevel e seus limites e o do observador que define um campo de

Questotildees e seu estatuto seu lugar na ellperiecircncia individual e coletiva

No cinema as entre visiacutevel e invisiacutevel a interaccedilatildeo entre o

dado imediato e sua significaccedilatildeo tornam-se mais intrincadas A sucessatildeo

de imagens criada montagem relaccedilotildees novas a todo instante e

somos sempre levados a estabelecer ligaccedilotildees propriamente natildeo existentes

na tela A montagem sugere noacutes deduzimos As significaccedilotildees engendramshy

se menos por forccedila de isolamentos (como na foto comentada) e mais por

forccedila de contextualizaccedilotildees para as quais o cinema possui uma liberdade inshy

vejaacutevel Eacute sabido que a combinaccedilatildeo de imagens cria significados natildeo preshy

sentes em cada uma isoladamertte Eacute ceacutelebre o experimento do cineasta

russo Kulechov primeiro grande teoacuterico da montagem Selecionando uma

uacuteniea tomada do rosto de um ator e inserindo-a em contextos

chegou a conclusotildees radicais a cada combinaccedilatildeo o rosto parecia expressar

algo bem diferente num espectro que incluiacutea ternura fome alegria

A elasticidade admitida por Kulechov num primeiro momento (anos

foi depois atenuada por ele proacuteprio e seria hoje ingecircnuo supor um

poder absoluto da montagem nesses casos Dentro de determinados limishy

tes jaacute no periacuteodo do cinema mudo era comum a utilizaccedilatildeo da diferenccedila enshy

tre as circunstacircncias da filmagem e as da imagem na tela para sugerir um

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acontecimento ou dar significado particular a um rosto em close-up

Pudovkin ao realizar A matildee [I926] queria uma expressatildeo particular de

no rosto do heroacutei numa cena em que na prisatildeo ele recebe uma

mensagem de sua matildee trazendo esperanccedilas de liberdade O jovem ator

natildeo conseguiu a expressatildeo pedida o cineasta buscou outra soluccedilatildeo Surshy

o ator num momento desavisado numa circunstacircncia de riso e

filmou seu rosto que reagia a um estiacutemulo completamente estrashy

nho agrave cena do heroacutei Combinou a imagcm registrada com as cenas

vizinhas no filme e julgou saacircsfatoacuterio o efeito obtido Se imagem do

ator eacute um material no qual a montagem inocular um se~tido esse foi

e ainda hoje eacute um dado de desconforto para muita gente Os atores tecircm

razatildeo em desconfiar dessa distacircncia entre seu trabalho e a percepccedilatildeo de

sua imagem na tela Operaccedilotildees como essa de Pudovkin desde cedo entrashy

ram na rotina do trabalho Muitos teoacutericos tecircm se interessado pela discusshy

satildeo de diferentes aspectos dessa manipulaccedilatildeo que ilustra com bastante

evidecircncia a relatividade das expressotildees e das performances no cinema

Comparando a questatildeo dos atores a serviccedilo da ficccedilatildeo com a da foto

observada no tribunal ganha toda ecircnfase a importacircncia da pergunta que

o observador dirige agrave imagem em funccedilatildeo de sua proacutepria circunstacircncia e

interesse Afinal na condiccedilatildeo de espectador de um filme de ficccedilatildeo estou

no de quem aceita o do faz-de-contaacute de quem sabe estar dianshy

te de representaccedilotildees e portanto natildeo vecirc cabimento em discutir questotildees

de legitimidade ou autenticidade no niacutevel da testemunha de tribunal

Aceito e ateacute acho bem-vindi~ o artifiacutecio do diretor que muda o signif shy

do de um gesto - o essencial eacute a imagem ser convincente dentro dos proshy

poacutesitos do filme que procuraacute instaiirar um mundo imaginaacute

A partir de imagens deesquiilas fachadas e avenidas o cinema cria

uma nova geografia com friigmenros de diferentes corpos um novo corshy

po com segmentos de ereaccedilOtildees um fato que soacute existe na tela Natildeo

questiono a cidade imaginaacuteiacutea - o vejo na tela natildeo corresponde por

exemplo ao Rio ou agrave Satildeo PaJlo que conheccedilo Natildeo cabe perguntar de quem

eacute o corpo imaginaacuterio ou qual aestnIacutetura real de um espaccedilo visto na tela em

fragmentos Se assim o o espectador rompe o pacto que assina ao

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entrar na sala escura para assistir a um filme que tem

res Diante da imagem apresentada como prova em a Clrcunsshy

tacircncia e o compromisso satildeo outros o eixo da verdade e da mentira requer

criteacuterios proacuteprios Para iludir convencer eacute necessaacuterio competecircncia e frtz

parte dessa saber antecipar com precisatildeo a moldura do observador as cirshy

cunstacircncias da recepccedilatildeo da os em jogo Embora pareccedila

a leitura da imagem natildeo eacute imediata Ela resulta de um processo em que

intervecircm natildeo soacute as mediaccedilotildees que estatildeo na esfera do olhar que produz a

imagem mas tambeacutem aquelas presentes na esfera do olhar que as recebe

Este natildeo eacute inerte pois armado participa do

o OLHAH DO CINEMA COMO MEDIACcedilAtildeO

Haacute entre o aparato cinematograacutefico e o olho natural uma seacuterie de elemenshy

tos e operaccedilotildees comuns que favorecem uma identificaccedilatildeo do meu olhar

com o da cacircmera resultando daiacute um forte sentimento da presenccedila do

mundo emoldurado na tela simultacircneo ao meu saber de sua ausecircncia

(trata-se de e natildeo das proacuteprias coisas) Discutir essa identificaccedilatildeo

e essa presenccedila do mundo em minha consciecircncia eacute em primeiro lugar

acentuar as accedilotildees do aparato que constroacutei o olhar do cinema A imagem

que recebo compotildee um mundo filtrado por um olhar exterior a mim que

me organiza uma aparecircncia das coisas estabelecendo uma ponte mas tamshy

beacutem se interpondo entre mim e o mundo Trata-se de um olhar anterior ao

meu cuja circunstacircncia natildeo se confunde com a minha na sala de projeccedilatildeo

O encontro cacircmeraobjeto (a produccedilatildeo do acontecimento que me eacute dado

ver) e o encontro espectadoraparato de projeccedilatildeo constituem dois moshy

mentos distintos separados por todo um processo Na estatildeo

implicados uma co-presenccedila um compromisso um riSCO um prazer e um

poder de quem tem a possibilidade e escolhe filmar Como espectador

tenho acesso agrave aparecircnci

ou seja sem a circunstacircncia Conteiacutenplo uma imagem sem ter parshy

ticipado de sua produccedilatildeo sem escolher acircngulo distacircncia sem definir uma

perspectiva proacutepria para a observaccedilatildeo Ao contraacuterio das situaccedilotildees de vida

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em que estou presente ao acontecimento na sala de espetaacuteculos jaacute sentashy

do natildeo tenho o trabalho de buscar diferentes posiccedilotildees para observar o

mundo pois tudo se faz em meu nome antes de meu olhar intervir num

processo que franqueia o que talvez de outro modo seria para mim de

impossiacutevel acesso Espectador de cinema tenho meus privileacutegios Mas

simultaneamente algo me eacute roubado o privileacutegio da escolha

Nesse compromisso de ganhos e perdas aceito e valorizo o olhar

mediador do cinema porque as imagens que ele me oferece tecircm algo de

prodigioso - hoje talvez banalizado advindo de sua liberdade ao invashy

dir a intimidade (uma liberdade da qual usufruo sem riscos) de sua preshy

cisatildeo e destreza nos maiores desafios No cinema posso ver tudo de

perto e bem visto ampliado na tela de modo a ~urpreender detalhes no

fluxo dos acontecimentos e dos gestos A imagem na tela tem sua durashy

ccedilatildeo ela persiste pulsa reserva surpresas Se eacute contiacutenua posso acompashy

nhar um movimento enquanto esse se faz diante da cacircmera se a montashy

gem interveacutem vejo uma sucessatildeo de imagens tomadas de diferentes

acircngulos acompanho a evoluccedilatildeo de um ac~gtntecimento a partir de uma

coleccedilatildeo de pontos de vista via privilegiados especialmente cuishy

dados para que o espetaacuteculo do mundo se faccedila para miiacuten com clareza

dramaticidade beleza As possibilidades abertas pela temporal idade proacuteshy

pria da imagem satildeo infinitas haacute o movimento do mundo observado e o

movimento do olhar do apa~ato que observa Quando a imagem eacute de rosshy

tos tenho a interaccedilatildeo dos olhares (lue se confrontam verdadeira orquesshy

traccedilatildeo o olho que vecirc e o que eacute vi~to tecircm ambos sua dinacircmica proacutepria e

cada um de noacutes jaacute teve ocasiOtildees de avaliar com maior ou menor consciecircnshy

cia a intensidade dos efeitos extraiacutedos dessa orquestraccedilatildeo

O usufruto desse olhar privilegiacuteado natildeo a sua anaacutelise eacute algo que o

cinema tem nos garantido propiciando essa condiccedilatildeo prazerosa de ver

o mundo e estar a salvo ocupar o centro sem assumir encargos Estou preshy

sente sem participar do mundo observado Puro olhar insinuo-me invishy

shrel nos espaccedilos a interceptr os ~ihares de dois interlocutores escrutishy

narreaccedilotildees e gestos explorar ambientes de longe de perto Salto com

velocidade infinita de um poacutento a outro de um tempo a outro Ocupo

posiccedilotildees do olhar sem comprometer o corpo sem os limites do meu corshy

po Na ficccedilatildeo cinematograacutefica junto com a cacircmera estou em toda parte c

em nenhum lugar em todos os cantos ao lado das personagens mas sem

preencher espaccedilo sem ter presenccedila reconhecida Em suma o olhar do

cinema eacute um olhar sem corpo Por isso mesmo ubiacutequo onividente Idenshy

tificado com esse olhar eu espectador tenho o prazer do olhar que natildeo

estaacute situado natildeo estaacute ancorado vejo muito mais e melhor

Observando a experiecircncia por esse acircngulo como entatildeo natildeo exaltar

o cinema Como natildeo pensar sua teacutecnica de base cm termos de

de progresso Retomemos um clima tiacutepico do iniacutecio do seacuteculo

o PRIMEIRO ELOGIO AgraveS DO OLHAR

O MOMENTO DA PROMESSA

Alguns cineastas e estetas dos anos 10-20 deixaram registradas as duas reashy

ccedilotildees a esse lado prodigioso da oferecida pela entatildeo nova teacutecnica de

reproduccedilatildeo Pensaram o cinema quando sua mediaccedilatildeo era um dado inaushy

gural que gerava certas descobertas uma eacuteonstelaccedilatildeo de sentimentos e pershy

cepccedilotildees novos ainda natildeo bem equacionados que exigiacuteam novos conceitos

um trabalho com a linguagem escrita para expressar o lado mais peculiar da

nova experiecircncia Hoje eacute praticamente impossiacutevel recuperar vivamente

aquele momento noacutes que crescemos satur~ados de imagens e nos movemos

num mundo em que o que era antes promessa dc revoluccedilatildeo se faz agora

dado banal do cotidiano experiecircncia reiterada De uma pluralidade de reashy

ccedilotildees elogios desconfianccedilas destaco dois tipos de recepccedilatildeo ao advento do

cinema Na primcira ele eacute observado como coroamento de um projeto jaacute

definido na esfera da representaccedilatildeo na segunda vislumbra-se o cinema

enquanto inauguraccedilatildeo de um universo de expressatildeo sem precedente destishy

nado a provocar uma ruptura na esfera da representaccedilatildeo

Aqueles que o vecircem com simpatia como um coroamento inserem

o cinema na tradiccedilatildeo do espetaacuteculo dramaacutetico mais popular de grande

vitalidade no seacuteculo raquoIX Avaliam que cumprindo os mesmos objetivos

o cinema vai mais longe pois multiplica os recursos da representaccedilatildeo faz o

36 37

I I

espectador mergulhar no drama com mais intensidade O olho sem corshy t po cerca a encenaccedilatildeo torna tudo mais claro enfaacutetico expressivo ao narshy

rar uma histoacuteria o cinema faz fluir as accedilotildees no espaccedilo e no tempo e o I

mundo torna-se palpaacutevel aos olhos da plateacuteia com uma forccedila impensaacutevel I em outras formas de representaccedilatildeo Ou seja em seu tornar visiacutevel a meshy

rdiaccedilatildeo do olha cinematograacutefico otimiza o efeito da ficccedilatildeo cumprindo com

muita competecircncia uma tarefa que na esfera da cultura considera-se como Jproacutepria da arte e em especial dos espetaacuteculos Ao exaltar esse salto na efishy ccedil

iciecircncia dentro d~ continuidade de princiacutepios e funccedilotildees os criacuteticos cineasshy

tas e prod~tores afinados agraves regras do mercado cultural da eacutepoca celebram

o na produccedilatildeo industrial do seacuteculo xx de um projeto que vem do

seacuteculo XVIII e que se definiu na origem para a representaccedilatildeo teatraL

Eacute comum sermos lembrados ~o quanto a cacircmera fotograacutefica constishy

tui uma objetivaccedilatildeo tecnoloacutegica recente de princiacutepios da representaccedilatildeo jaacute I

conhecidos cuja sistematizaccedilatildeo vem do Renascimento italiano (cacircmara i iacuteescura o meacutetodo da perspectiva os efeitos de profundidade na superfiacutecie

da tela) Com a imagem em movimento o representar a dos homens iacute se daacute com a franca hegemonia do ilusionismo a encenaccedilatildeo tal e qual o I real plantado no cinema industrial desde os tempos de D W Griffith

Fato que cristaliza uma heranccedila menos tematizada pela criacutetica a do olhar Ital como constituiacutedo no drama burguecircs Aqui a referecircncia teoacuterica essenshy

cial eacute Diderot No momento em que escreve suas peccedilas e formula a teoria trenovadora do teatro definiuacutedoo drama seacuterio burguecircs do seacuteculo XVIII

~ um elemento central no seu ideaacuterio eacute a criacutetica ao teatro vinculado aos ~

gecircneros claacutessicos - principalmente ao tipo de encenaccedilatildeo que se dava agraves

trageacutedias claacutessicas francesas do seacuteculo XVII Esse teatro por demais ancoshy

rado na palavra depende da exclusiva forccedila poeacutetica do texto desdenhanshy

doo aspecto visual da experiecircncia do palco Ou eacute incapaz de elaboshy

rar a cena propriamente dita tal como o filoacutesofo a entende explorando a

expressividade do gesto e a cocircmposiccedilatildeo visual da cena (os tableaux consshy

truiacutedos pela posiccedilatildeo reciacuteproca dos atores e da cenografia)

Diderot queria um teatro dirigido agrave sensibilidade por meio da reshy

produccedilatildeo integral das aparecircncias do mundo queria um meacutetodo de dar

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a ver as situaccedilotildees os gestos as emoccedilotildees O ilusionismo fonte do enshy

volvimento da plateacuteia eacute entatildeo assumido como a ponte privilegiada no

caminho da compreensatildeo da experiecircncia humana da assimilaccedilatildeo de

valores da explicitaccedilatildeo de movimentos do coraccedilatildeo Tal demanda proacutepria

do universo da Ilustraccedilatildeo do seacuteculo XVIIl tem seus desdobramentos e

depois da Revoluccedilatildeo Francesa em outra atmosfera social e

explode no teatro popular de 1800 Aiacute se consolida o gecircnero dramaacutetico

de massas por excelecircncia o melodrama Esse tem sido por meio do teashy

tro (seacuteculo do cinema (seacuteculo xx) e da TV (desde

taccedilatildeo mais contundente de uma busca de expressividade

moral) em que tudo se quer ver estampado na superfiacutecie do mundo na

ecircnfase do gesto no trejeito do rosto na eloquumlecircncia da voz Apanaacutegio do

exagero e do excesso o melodrama eacute o gecircnero afim agraves grandes revelashy

ccedilotildees agraves encenaccedilotildees do acesso a uma verdade que se desvenda um

sem-nuacutemero de misteacuterios equiacutevocos pistas falsas vilanias Intenso nas

accedilotildees e sentimentos carrega nas reviravoltas ansioso pelo efeito e a

comunicaccedilatildeo envolvendo toda uma pedagogia em que nosso olhar eacute

convidado a apreender formas mais imediatas de reconhecimento da

virtude ou do pecado N a virada do seacuteculo XIX para o XX natildeo surpreende que a teacutecnica do

cinema entatildeo emergente tenha assumido essa pedagogia e tenha substishy

tuiacutedo o melodrama teatral na satisfaccedilatildeo de uma demanda de ficccedilatildeo na soshy

ciedade Quando falo em ilusionismo reproduccedilatildeo das aparecircncias na vershy

dade que adveacutem do conflito de forccedilas que se expressam e se revelam pelo

olhar estou afirmando princiacutepios da representaccedilatildeo aos quais o cinema vem

se ajustar como uma luva Como braccedilo da induacutestria cultural ele

do movimento de objetivaccedilatildeo institucional da Ilustraccedilatildeo Sua

do olhar melodramaacutetico eacute o ponto-limite de um projeto de expressatildeo

total da natureza na representaccedilatildeo Reflete um ideal de domiacutenio e controshy

le da aparecircncia como sinal de conhecimento da natureza um ideal que

inscreve a arte como espelho pedagoacutegico que requer a competecircncia tecnoshy

loacutegica de criar ilusatildeo e por essamiddotvia atingir a sensibilidade a passagem

das trevas agrave luz se faz de efeitos sobre o olhar

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Dentro do projeto de revelaccedilatildeo do mundo para o olhar os efeitos do

close-up logo adquirem a condiccedilatildeo de emblema das virtudes da nova arte

Mais do que a montagem - sua condiccedilatildeo preacutevia - o close-up na Franccedila e

nos Estados Unidos atrai o dos cineacutefilos corno ponto de condenshy

de um drama que se faz movimento dos olhos - o que vecirc e o

que eacute visto - e pela trama formada pela sucessatildeo de detalhes

e reveladores Corno movimento em direccedilatildeo agrave intimidade e V1stO corno

potecircncia maior do cinema que muito cedo impressionou a todos pela sua

capacidade de devastaccedilatildeo das intenccedilotildees ocultas do pequeno gesto fora do

alcance dos interlocutores do movimento facial que trai um sentimento

Natildeo foi preciso a manifestaccedilatildeo da criacutetica cineastas e produtores conduzishy

ram as experiecircncias reveladoras da forccedila dramaacutetica do rosto isolado na e usando a tradicional muito antes de 1920 jaacute insshy

truiacutea seus atores para a dos olhos - janela da alma _ trazishy

dos para perto no close-up para o exame

Foco das atenccedilotildees e dos o close-up estaraacute em I920 tambeacutem

no centro das reflexotildees de quem afastado dos valores promovidos pela

induacutestria do cinema observa seus prodiacutegios com outra moldura de inteshy

resses e julga os filmes do mercado por demais domesticados pela

demanda de ficccedilatildeo que induz o novo meio a seguir os passos do teatro e

da literatura popular Encontramos aqui quem vecirc o cinema como ruptushy

ra espectadores avessos aos do filme de accedilatildeo corrente cinecircfilos

natildeo interessados na fluecircncia dos acontecimentos no pulsar da

nas tensotildees dramaacuteticas usuais Por intermeacutedio deles o cinema uma

recepccedilatildeo mais empenhada em surpreender aspectos da plaacutestica da imashy

gem do trabalho da cacircmera e da presenccedila peculiar do mundo na tela que

permanecem recalcados na visatildeo dominante Para esse olhar diferenciashy

do por meio do cinema toda urna esfera nova de percepccedilotildees abre-se agrave

nossa experiecircncia desde que sejamos capazes de entender a expressividashy

de da nova imagem em outros termos elogiando sim o mas denshy

tro de urna outra oacutetica a de quem entende o cinema natildeo como coroamenshy

to do ilusionismo teatral mas como ruptura inauguraccedilatildeo de um novo diaacutelogo com a natureza e os homens

4deg

Satildeo os intelectuais e artistas ligados agrave arte moderna que lideram essa

nova leitura do cinema de uma perspectiva que na Franccedila traduziu-se no

cineacutema davant-garde nas experiecircncias dos surrealistas e nas polecircmicas

que tiveram como pauta a superaccedilatildeo da moldura melodramaacutetica a libershy

taccedilatildeo do olhar sem corpo das amarras da continuidade narrativa a adeshy

da nova arte agrave sua teacutecnica moderna A

fcrentes grupos postos de lado os conflitos que os

cinema destina-se a uma tarefa de redenccedilatildeo A cultural

do Ocidente europeu estaria falida o poder criador preso a convenccedilotildees

obsoletas saturado de referecircncias que o desvigoram Enredado em formas

de pensar e sentir desgastadas o homem culto se vecirc separado da natureshy

za reprimido cercado de mentiras de clichecircs da de maacutescaras

O cinema eacute radicalmente novo inocente e traz a da tecnologia

Ele pode e deve romper essa grade devolvendo aos homens o acesso a

uma natureza alienada pelos artifiacutecios de uma cultura

A vanguarda se estabelece como cultUra de separando o

espaccedilo utoacutepico da verdade (cinema vida futura) e o espaccedilo da mentira da

convenccedilatildeo (tradiccedilatildeo literaacuteria teatro cotidiano burguecircs) Sua feacute no cinema

ancora-se numa ideacuteia de expressatildeo que tambeacutem se apoacuteia na acuidade de

reproduccedilatildeo da aparecircncia proacutepria da nova teacutecnica mas com um traccedilo pecushy

liar que afasta a do pensamento gerado na esfera da induacutestria

Germaine Dulac e Epstein principais porta-vozes da avant-ga

concebem o cinema corno expressividade do mundo num sentido radishy

ca1 Combatem a vaga que nos leva a sob qualquer pretexto

isto expressa aquilo de um modo que equivale a isto significa aquilo

dentro dos variados caminhos pelos quais vamos de um poacutelo a outro do

significante ao significado Reservam expressatildeo para designar um proshy

cesso determinado impelido por forccedilas naturais no a composiccedilatildeo de

forccedilas interior a um organismo deixa narcas na do mesmo shy

eacute o movimento nelo Qual ci Que estaacute no interior vem forcosashy

mente agrave tona a forma

I Cf Xavier Seacutetima arte um cuto moderno (Satildeo Paulo 1978)

41

vel) que o cinema vemcaptar com exclusividade pois fixa os movimenshy

tos na peliacutecula sem as atrapalhaccedilotildees do olho natural O cinema tem seu

vigor proacuteprio de um olhar mais automaacutetico

natildeo maculado pelos preconceitos culturais

dade Eacute irocircnico que justamente porque natildeo tem interioridade o olhar

da maacutequina possa atingir o princiacutepio interior dos movimentos revelar a

verdade que organicamente expressa-se em sentido pleno imprime-se

numa textura do mundo que soacute a cacircmera eacute capaz de registrar O proacuteprio

instantacircneo fotograacutefico em sua estrutura mais simples jaacute nos mostra o

quanto a imagem revelada faz emergir dados ocultos que natildeo estavam na

mira do fotoacutegrafo No cinema o movimento poteacutencializa tal desocultashy

mento o qual pode tornar-se mais efetivo quando os cineastas forem cuacutemshy

plices da nova teacutecnica em vez de tentar agrave como no

melodrama a expressividade do fica atrelada a toda uma

cadeia de loacutegica eacute tomada de empreacutestimo agrave do natushy

em que o tOrnar visiacutevel resulta do de uma retoacuterica que ~rH+tia Para

o que era aaequado ao teatro - como ilusionismo do seacuteculo XIX natildeo o eacute para o cinema do seacuteculo xx pois a

imitaccedilatildeo dos gestos antes oferecida a olhos desarmados natildeo resiste agrave anaacuteshy

lise da nova sensibilidade Com o cinema a percepccedilatildeo humana ganhou

um acesso especial agrave intimidade dos processos - ~ele a aparecircncia eacute jaacute uma

anaacutelise O cose-up natildeo eacute o lugar do fingimento eacute uma presenccedila que reveshy

la o que se eacute natildeo o que se pretende ser (inuacuteteis as caretas dos

A aposta da vanguarda estaacute no poder analiacutetico do cinematoshygraacutefico no que ressalta natildeil

espaccedilo) mas tambeacutem as

mente a cacircmera lenta (arnplia(acirco no eixo do tempo) que reveshyIa o mundo em outra e de~cobre-nos a vida secreta que se tece a

nossa volta e em noacutes ganhando ~xpressatildeo nas formas instaacuteveis fora da

nossa consciecircncia que temo~ fixadas pela teacutecnica2 Epstein nos seus

2 Essa aposta no poder analiacutetko do dnema tem uma versatildeo radical moshymento na Uniatildeo Sovieacutetica encarnada rio projeto do Cine-Olho de Vertov gt

42

o ~__ao~ das diferentes velocidades

do movimento animal e dos fenocircmenos Fershy

nand Leacuteger as relaccedilotildees e a forma dos objetos fora de sua inserccedilatildeo

utilitaacuteria no cotidiano Embora natildeo totalmente afinado ao cineacutema dayantshy

garde o surrealismo torna-se o movimento de contestaccedil50 ao cinema inshy

dustrial de maior impacto com sua exploraccedilatildeo da montagem como reveshy

laccedil50 das pulsotildees anatomia do desejo Em diferentes busca-se a

experiecircncia fora do senso comum o olhar em sintonia com ~l~r

do - a sensibilidade efetivamente moderna A

(Epstein) surge entatildeo como nova pedagogia

ccedilatildeo ao cenaacuterio do melodrama - pois o cincma teria como destino

trazer-nos de volta uma cosmologia e um encantamento do mundo para

os quais o cartesianismo e a filosofia da Ilustraccedilatildeo cegos

O horizonte desse renascimento seria a explosatildeo do universo carceraacuterio

da existecircncia atual (para usar a expressatildeo de Walter Benjamin em seu

ceacutelebre ensaio de T936 ao falar de reproduccedilatildeo teacutecnica arte e

A formulaccedilatildeo de Epstein-Dulae eacute questionaacutevel auando examinada a

partir de sua ideacuteia-matriz de expressatildeo

analiacutetico (inegaacutevel) da ~~a~Mrl~ aiacute uma feacute inteshy

gral no dado visiacutevel na caj)acldlde exclusiva de

suas relaccedilotildees internas trazer a verdade agrave tona

agrave ao contexto de cada a~aM~A mais de-

no entanto estaacute no impulso utoacutepico nela presente c no salto teoacuterico

que oferece ao buscar um pensameMo agrave alwra dos aspectos radicalmente

novos da experiecircncia do cinema no inicio do seacuteculo Benjamin o filoacutesofo

atento agraves transformaccedilotildees da sensibilidade geradas pelas novas diraacute

em 1936 A natureza que se dirifie dmera natildeo eacute a mesma que a que se

dirige ao olhar Essas c outras suas - sobre o ator o

gt que procura realizar no cinema documentaacuterio a verdade que desmascara a culshy

tura tradicional A cIacutee Vertov diante dos franceses eacute a

ccedilatildeo que ele estabelece cntre desmascaramento e exposiccedilatildeo dos processos efetivos

da Drodudiacuteo social das relaccedilotildees de atraveacutes do montagem cinematogniacutefica

43

analiacutetico da Imagem retomam muito do repertoacuterio da vanguarda dos anos

20 inserindo a caracterizaccedilatildeo do olhar do cinema numa reflexatildeo mais amshy

pIa sobre teacutecnica e cultura Nessa reflexatildeo a moldura eacute outra mas prevalece

o mesmo movimento de ressaltar o papel subversivo revelado r da fotoshy

grafia e do cinema dentro da cultura europeacuteia A promessa entatildeo se reafirshy

ma sem as premissas de eXflressividade total e de retorno agrave natureza

Com Benjamin ela aSSume um contorno histoacuterico mais bem demarcado eacute

por um persamento mais sensiacutevel agrave contradiccedilatildeo e ao caraacuteter das

forccedilas sociais em conflito Pensamento que nos trouxe uma avaliaccedilatildeo da

questatildeo da arte dentro de uma articulaccedilatildeo mais luacutecida com a conjuntura

poliacutetica e a proacutepria natureza das apostas em na Europa dos anos 30

polarizada por uma confrontaccedilatildeo decisiva entre revoluccedilatildeo e reaccedilatildeo

A CRiacuteTICA DO OLHAR SEM CORPO

No seu elogio ao aspecto revelador do olhar no cinema o pensamento

dos anos 20 colocou o debate em termos de verdade (cinema) emendra

(tradiccedilatildeo cultural) e deu toda ecircnfase agrave cumplicidade entre cinema e natushy

reza solidaacuterios enquanto um organismo e sua expressatildeo visual prontos a

expulsar a simulaccedilatildeo desde que a nova teacutecnica fosse salva de su~ adultera-

promovida pelo universo da mercadoria Por esse a oposishyentre um cinema desejado objeto do recalque e aquele que

realmente impera (a pedagogia da induacutestria orienta-se por uma teleoIOPla o presente eacute o mOmelItO dos entraves que impedem o desenshy

volvimento na direccedilatildeo COrreta eacuteapaz de realizar as promessas da nova

teacutecnica o futuro eacute o preenchimen~o dessas promessas que desde jaacute as vanshy

guardas anunciam e preparam Entre 1920 e J960 os poderes reais inshy

sistiram em repor o mesno cinema dominante o que trouxe em linhas

a reiteraccedilatildeo da mesnla matriz de contestaccedilatildeo O conflito dominanshy

tedominado traduzido em termos de verdade e refez-se ao

longo de eixos diversos Quando prevaleceu um eixo poliacutetico o poacutelo da

verdade (futuro) identificou-se agrave cultura revolucionaacuteria o da mentira

presentet agraves mistificaccedilotildees da reaccedilatildeo Quando prevaleceu um eixo esteacutetishy

co verdade foi poesia originalidade experimentaccedilatildeo mentira foi a rotishy

na do comeacutercio o kitscll industrializado

Natildeo cabe agora a recapitulaccedilatildeo do que foram as diferentes versotildees

desse conflito vanguardacultura de massa em cada e eacutepoca Natildeo o

poderia fazer nem quero pois meu objetivo eacute saltar dessa primeira refleshy

xatildeo dos anos 20 para uma mais proacutexima de gerada no contexto franshy

cecircs poacutes-68 reflexatildeo que abandonou a tradiccedilatildeo de opor verdade e mentishy

ra deslocando a discussatildeo sobre a teacutecnica do cinema

No grande intervalo que a criacutetica avanccedilou na caracterizashy

ccedilatildeo do olhar sem corpo e suas implicaccedilotildees notadamente na avaliaccedilatildeo de

sua estrutura mais comunicativa e sedutora o cinema olhar da

induacutestria da ideologia dominante nos meios Extensatildeo do qlle

chamei olhar melodramaacutetico o cinema claacutessico eacute sua modernizaccedilatildeo Faz

com que ele abandone os excessos maiores do ganhe em

profundidade dramaacutetica amplitude temaacutetica concretizando o ver mais e

melhor do cinema na direccedilatildeo de um ilusionismo mais completo - o cineshy

ma claacutessico eacute o olhar sem corpo atuando em sentido

caracterizaccedilatildeo dos seus poderes apresentada em minha primeira

que de fato ajusta-se mais precisamente a esse estilo particular dOJTIinanshy

te no mercado e natildeo a todo o cinema possiacutevel Eacute nele mais do que em

qualquer outra proposta que vemos realizado o de intensificar ao

extremo nossa relaccedilatildeo com o mundo-objeto fazer tal mundo parecer autocircshy

nomo existente em seu proacuteprio direito natildeo encorajando perguntas na

direccedilatildeo do proacuteprio olhar mediador sua estrutura e comportamento Soshy

mos aiacute convidados a tomar o olhar sem corpo como dado natural

Entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 60 dois grandes

de reflexatildeo conduziram a criacutetica a essa naturalidade postulada pelo cineshy

ma claacutessico a teoria radical do cinema-discurso baseado nas operaccedilotildees da

montagem (o Eisenstein dos anos 20-30 permaneceu aqui a referecircncia

central) e a criacutetica francesa inspirada na fenomenologia tendo como [oco

maior Andreacute Bazin3

3 Cf Bazin Cinema ensaios trad Eloisa Ribeiro (Satildeo Paulo Brasilicnse 1991)

44 45

Falar de Eisenstein exigiria uma abordagem radicalmente distinta da

que faccedilo agora pois sua criacutetica ao ilusionismo COmeccedila com a advertecircncia

de que a imagem cinematograacutefica natildeo deve ser lida c0f110 produto de um

olhar Para ele a suposiccedilatildeo de que houve um encontro uma contiguumlidade

espacial e temporal entre cacircmera e objeto natildeo eacute O dado central e impresshy

cindiacutevel da leitura da imagem Sua presenccedila na tela eacute um fato de natureza

que deve ser observado em seu valor simboacutelico

caracteriacutesticas de sua composiccedilatildeo e sua no Contexto de um discurshy

so que eacute exposiccedilatildeo de ideacuteias natildeo sucessatildeo natural de fatos captados

pelo olhar A diferenccedila entre um plano geral e um cose-up por

muitas vezes natildeo pode ser entendida como olhar versus

olhar de mesmo quando se focaliza o mesmo ODjeto mas como

confronto de duas imagens de valores distintos A diferenccedila eacute de

natildeo de posiccedilatildeo no espaccedilo pois pode natildeo haver COntinuidade e

homogeneidade espacial para que se possa falar num mais perto

- tudo depende do contexto do discurso por imagens

Ao contraacuterio de Eisenstein os criacuteticos inspirados na fenomenologia

endossam e defendem a premissa de que no cinema toda imagem eacute proshy

duto de um olhar - eacute essencial que ela seja vista como tal- e a sucessatildeo

define sempre a atitude do observador diante de um mundo homogecircneo

Agrave imagem-signo de Eisenstein eles opotildeem a imagem-acontecimento agrave

defesa da descontinuidade proacutepria do cineasta russo respondem Com

uma defesa ateacute mais radical do princiacutepio de continuidade jaacute presente na

narraccedilatildeo claacutessica fazendo a ela um reparo fundamental se a imagem em

movimento nos traz a percepccedilatildeo privilegiada do homem como ser lanccedilashy

do no mundo como ser-em-situaccedilatildeo a falsidade do cinema claacutessico estaacute

na manipulaccedilatildeo impliacutecita em sua montagem o olhar sem corpo e a

onividecircncia criam na tela uni mundo abstrato de sentido fechado preshy

julgado e organizado pelo cin~ina Toda montagem eacute discurso manipulashy

ccedilatildeo de Eisenstein de GrUacutefith ou de Bufiacuteuel Em oposiccedilatildeo um criacutetishy

co como Bazin solicita um olhar cinematograacutefico mais afinado ao olho de

um sujeito circunstanciado que p6ssui limites aceita a abertura do

mundo convive com ambiguumlidades Quando pede realismo ele natildeo se

46

deteacutem em consideraccedilotildees de conteuacutedo (o tipo de universo Ciccional ou doshy

cumentaacuterio) Sublinha a postura do olhar em sua interaccedilatildeo com o mundo

tanto mais legiacutetima quanto mais as condiccedilotildees de nosso olhar

ancorado no corpo vivenciando uma duraccedilatildeo e uma circunstacircncia em sua

continuidade trabalhando as incertezas de uma percepccedilatildeo

ultrapassada mundo Daiacute sua minimizaccedilatildeo da montagem (instacircncia

construtora da onividecircncia) sua defesa do plano-seguumlecircncia (olhar uacutenico

sem cortes observando uma em seu um acontecimento

em seu fluir

Numa visatildeo mais atual prestamos atenccedilatildeo especial ao que aproxima

e natildeo apenas ao que afasta o cinema-discurso de Eisenstein e o realismo

existencial de Bazin haacute em ambos novamente a atribuiccedilatildeo de um poder

de verdade e de um poder de mentira encarnados em determinados estishy

los Para Eisenstein haacute um estilo capaz de dizer o mundo social-histoacuterishy

co colocando o cinema como potecircncia maior no plano do conhecimento

Para Bazin O cinema eacute uma espeacutecie de terceiro estado da e exisshy

te um estilo autecircntico na captaccedilatildeo da vivecircncia humana em sua

essencial abertura no tempo

Contra esse pano de fundo da tradiccedilatildeo teoacuterica a intervenccedilatildeo de

]ean-Louis Baudry em 1969-70 em questatildeo a constante promessa de

um estilo mais verdadeiro e dirige seu ataque agraves premissas do cinema em

geral examinando mais a fundo as condiccedilotildees do espectador raciociacuteshy

nio estaacute municiado para analisar o espectador do filme claacutessico mas

fala em cinema tout couTe) 4 O horizonte de seu exame eacute ressaltar o

modo pelo qual a recepccedilatildeo da imagem possui uma estrutura que a seu ver

solapa o reiterado creacutedito - de Eisenstein Griffith Epstein na

da verdade como destinaccedilatildeo fundamental do cinema Ele invershy

te a tradiccedilatildeo e vecirc na simulaccedilatildeo na de efeitos (ilusoacuterios) de

conhecimento o destino maior da nova arte (visatildeo que

4 O mais importante dos textos de Jean-Louis dessa

1970 Os efeitos ideoloacutegicos do de base estaacute publicado em Ismail

Xavier (orll) A experiecircncia do cinema (Rio de Janeiro

47

pela permanecircncia do ilusionismo do cinema industrial) Isso se daacute por

forccedila da proacutepria natureza da teacutecnica cinematograacutefica herdeira das ilusotildees _

da perspectiva da persistecircncia retiniana (natildeo vemos os fotogramas vemos

o que natildeo ocorre na tela ou seja o movimento da imagem e temos a imshy

pressatildeo de continuidade) da falsa autenticidade documental da fotografia

Rearticulando elementos jaacute conhecidos Baudry nos traz uma interpretashy

ccedilatildeo radical que- questiona natildeo estilos particulares de fazer cinema mas o

fundamento mesmo de sua objetividade como teacutecnica essa mes~a objetishy

vidade que tem sido a sustentaccedilatildeo maior das esperanccedilas de verdade Na

nova perspectiva as diferentes posiccedilotildees teoacutericas desde 1920 definem um

pensar o cinema a priori capturado pelas ilusotildees da teacutecnica e desatento agraves

implicaccedilotildees contidas na proacutepria estrutura do olhar da cacircmera tal como se

daacute para noacutes na plateacuteia A teacutecnica tem suas inclinaccedilotildees seus efeitos ideoloacuteshy

gicos e nesse sentido eacute ela mesma que impele o cinema industrial a desenshy

volver seu ilusionismo e trazer o espectador para dentro do mundo ficcioshy

na A forccedila de encantamento desse cinema persiste na histoacuteria porque o

dado crucial em jogo natildeo eacute tanto a imitaccedilatildeo do real na tela _ a reproduccedilatildeo

integral das aparecircncias - mas a simulaccedilatildeo de um certo tipo de sujeito-doshy

olhar pelas operaccedilotildees do aparato cinematograacutefico

Avaliar a potecircncia do olhar sem corpo natildeo eacute entatildeo inventariar as

imagens que ele oferece efocaIacuteIacutezar o seu movimento proacuteprio sua forma

de mediaccedilatildeo o que impiacuteica analisar sua incidecircncia no espectador que

vivenda o poder de clarividecircncia a percepccedilatildeo tota Na sala escura idenshy

tificado com o movimento do olhar da cacircmera eu me represento como

sujeito dessa percepccedilatildeo total capaz de doar sentido agraves coisas sobrevoar as

aparecircncias fazer a siacutentese do mundo Minha emoccedilatildeo estaacute com os fatos

que o olhar segue mas a cbndiccedilatildeo desse envolvimento eacute eu me colocar no

lugar do aparato sintoniz~do com suas operaccedilotildees Com isso incorporo

(ilusoriamente) seus poder~s e ericontro nessa sintonia - solo do entendishy

mento cinematograacutefico - o maior cenaacuterio de simulaccedilatildeo de uma onipotecircnshy

cia imaginaacuteria No cinema faccedilo uma viagem que confirma minha condishy

ccedilatildeo de sujeito tal como a desejo Maacutequina de efeitos a realizaccedilatildeo maior do

cinema seria entatildeo esse efeito-sujeito a simulaccedilatildeo de uma consciecircncia

48

transcendente que descortina o mundo e se vecirc no centro das coisas ao

mesmo tempo que radicalmente separada delas a observar o mundo coshy

mo puro olhar Nessa apropriaccedilatildeo ilusoacuteria da competecircncia ideal do olhar

estou portanto no centro mas eacute o aparato que aiacute me coloca pois eacute dele o

movimento da percepccedilatildeo monitor da minha fantasia

Para Baudry uma filosofia idealista que postula um sujeito transshy

cendente em oposiccedilatildeo ao mundo objetivo que se dispotildee ao conhecimento

encontra aiacute na teacutecnica do cinema sua traduccedilatildeo visiacutevel Toda sua ecircnfase

recai sobre a produccedilatildeo simultacircnea da imagem e do sujeito-observador

onividente A engenharia simuladora do cinema define com o efeitoshy

sujeito seu teatro da percepccedilatildeo total cujo protagonista sou eu-espectador

identificado com o olhar da cacircmera

N esses termos o que dificulta a consolidaccedilatildeo de linguagens alternashy

tivas mais verdadeiras eacute esse pecado original inscrito na teacutecnica Esta

tem na ilusatildeo seu sustentaacuteculo e os percalccedilos das vanguardas devem-se a

que sua aposta eacute reverter a funccedilatildeo daquilo que jaacute nasceu para cumprir

outro destino Digo destino porque a loacutegica dessa teoria transforma o cineshy

ma num oacutergatildeo que surgiu para cumprir um programa o de objetivar na

esfera do visiacutevel estrateacutegias de dominaccedilatildeo especialmente as da classe burshy

guesa que presidiu sua origem Assim antes de instacircncia liberadora subshy

versiva a condiccedilatildeo do cinema eacute preencher uma demanda do proacuteprio unishy

verso carceraacuterio tornando-o mais preciso e poderoso em seu aparato

Haacute uma atmosfera de desencanto instalada a partir dos anos 70 a

formulaccedilatildeo aqui exposta eacute a traduccedilatildeo teacuteoacuterica radical dos impasses da conshy

testaccedilatildeo no cinema Temos o esgotamento de uma teleologia a da teacutecnishy

ca redentora entravada pela poliacutetica e a economia e sua substituiccedilatildeo

por u~a outra a da teacutecnica como instrumento maior de reposiccedilatildeo de um

sistema de poder Em consonacircncia corn a tonalidade da reflexatildeo sobre a

linguagem a cultura e a ideologia naquele momento a teoria do cinema

mais original e polecircmica ressalta o lado sistemaacutetico inelutaacutevel das ilusotildees

e dos enganos do olhar da cacircmera Nesse contexto a proacutepria praacutetica do

cinema amplia o espaccedilo para a reflexatildeo teoacuterica voltada para a questatildeo do

simulacro - a citaccedilatildeo a imagem que-alude agrave imagem o circuito das refeshy

49

recircncias a si mesmo que o cinema leva ao paroxismo entram para valer na

esfera da induacutestria constituem sua nova marca Tal reflexatildeo se faz dentro

de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do

cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura

contemporacircnea A imagem cinematograacutefica eacute entatildeo obseJvada a partir de

sua participaccedilatildeo em outra rede de relaccedilotildees em que natildeo haacute para a

interpretaccedilatildeo (esse tomar a imagem como representaccedilatildeo de algo exterior

a ela) para o juiacutezo da verdade ou mentira em que se a oposlccedilao

aparecircncia (imagem)essecircncia (substacircncia) -nada haacute por traacutes das lmlti~e~ns

elas valem como efeitos-de-superfiacutecie imagem remetendo a imagem fluxo de simulacros

Faccedilo agora uma incursatildeo que natildeo eacute propriamente no terreno da

nova filosofia e das questotildees mais amplas do simulacro na produccedilatildeo

Trata-se de uma anaacutelise particular no niacutevel da engenharia da simulaccedilatildeo

caracterizaccedilatildeo de um efeito na qual natildeo eacute necessaacuterio assumir as noccedilotildees

com a mesma ressonacircncia elas adquiriram na literatura dos anos 80

Fecho a exposiccedilatildeo com a consideraccedilatildeo de um novo exeacutemplo que acredishy

to esclareccedila algumas observaccedilotildees feitas ateacute aqui sobre a interaccedilatildeo entre

espectador e imagem sobre o papel da moldura do sujeito na leitura

Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o

efeito de uma depende de sua ~elaccedilatildeo com o sujeito em determishy

nadas condiccedilotildees Da situaccedilatildeo da testemunha de McCarthy passei a uma

caracterizaccedilatildeo mais detida do olhar do cinema e examinei dois momenshy

tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexatildeo criacuteshy

tica em torno do que hiacute de erigano e rcvelaccedilatildeo nesse olhar A partir de

uma discussatildeo mais sobre a simulaccedilatildeo do fato - na fotografia no

cinema chegamos a uma questatildeo mais especiacutefica a simulaccedilatildeo do sujeishy

to na estrutura mesma (lo olhar cinematograacutefico Dentro da discussatildeo

mais geral o exemplo a envolve uma situaccedilatildeo mais complicada do

quea das fotos do tribunal estaremos no cinema Como inspiraccedilatildeo

terei presentes as liccedilotildees de Baildry sem no entanto incorporar o movishy

mento totalizador de suaacute criacutetica ao olhar do cinema Seu amplo diagnoacutesshy

tico mobilizando a psicaacutenaacutelise tem como pressuposto o fato de sabershy

0

mos o bastante sobre a natureza do espectador de modo a prever o caraacuteshy

tcr de sua identificaccedilatildeo com o aparato a qual assume uma dimensatildeo

uacutenica de adesatildeo agrave imagem por forccedila do efeito-sujeito Como conhecedoshy

res do desejo do espectador denunciamos o conluio desse desejo com o

programa da induacutestria e deduzimos daiacute as alienaccedilotildees do cinema e da

teacuteia Natildeo tenho condiccedilotildees de endossar a generalidade desse saber a resshy

peito do espectador o aparato atua em determinada direccedilatildeo mas a expeshy

riecircncia do cinema inclui outras forccedilas e condiccedilotildees que natildeo se ajustam ao

programa do sistema A formulaccedilatildeo dc Baudry embora inclua com toda

a forccedila a dimensatildeo do desejo do espectador natildeo deixa de ser outra vershy

satildeo das teorias da manipulaccedilatildeo global centradas em excesso no aspecto

da experiecircncia de modo a confundir o processo que efetishy

vamente ocorre com a loacutegica ideal do sistema Focalizo uma situaccedilatildeo

didaacutetica nesse contcxto em que eacute perfeito o funcionamcnto do

aparato cm quc podemos verificar o mecanismo da simulaccedilatildeo em estashy

do digamos de laboratoacuterio

IVIULALAU E PONTO OE VISTA

Toda leitura de eacute pr()(llltatildeo de um ponto de vista o do sujeito

observador natildeo o da objetividade (b irnagetnA condiccedilatildeo dos efeitos

da imagem eacute essa Em particular o ekilO rb apoacuteia-se numa

construccedilatildeo que inclui o fmguh do obSlrVIr1or O simulacro parece o

que natildeo eacute a partir de um pOIHo ele vista () sujeito estaacute aiacute pressuposto Porshy

tanto o processo elc simulaccedilatildeo nlo l o (Li imagemem si mas o da sua

relaccedilatildeo com o sujeito Num (gt1lt1110 elemelltar podemos tomar o cinema

como modelo do processo O (llIC eacute a fjltnilgcm senatildeo a organizaccedilatildeo do

I 1 I - C f dacontecllnento pra 11111 angu () (C o lscrvaccedilao o que se con un e com

Nessas asserccedilotildees no de Xavier Audouard Le Simulacrc in

eacutepisteacutemologie de lEcole Normale gtuucushy

rc n mai-jun 1966) O horizonte de Audouard eacute o de uma discussatildeo sobre o

idealismo platocircnico seu terreno eacute ponanto distinto e meu natildeo

ca uma identificaccedilatildeo agrave sua perspectiva de anaacutelise

i J

o da cacircmera e nenhum outro mais) O que eacute a fachada de preacutedio de estuacuteshy

dio senatildeo a duplicaccedilatildeo do mesmo princiacutepio da fachada de rua que sushy

gere o que natildeo eacute justamente quando observada de um certo acircngulo e disshy

tacircncia jaacute pressupostos em sua composiccedilatildeo O que eacute a ficccedilatildeo do cinema

senatildeo uma simulaccedilatildeo de mundo para o espectador identificado com o aparato

Vertigo (Um corpo que cai) O filme de Hitchcock realizado

em 1958 Ele eacute a trama da simulaccedilatildeo por excelecircncia como jaacute foi observashy

do pela criacutetica Trago um aspecto novo agrave consideraccedilatildeo o do espelhamenshy

to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e

o proacuteprio princiacutepio da narraccedilatildeo do filme Tal como em outras obras de

Hitchcltck o cinepa c1aacutessi~o aqui operagrave com eficiecircncia maacutexima e ao

mesmo tempo oferece a metaacutefora viva para o seu proacuteprio processo Inteshy

ressado nessa metaacutefora acentuo nesta anaacutelise a mecacircnica da simulaccedilacirco o

funcionamento exterior do aparato natildeo o que nas personagens eacute desejo

do estratagema e disposiccedilatildeo para a vertigem da imagem

Sigamos passo a passo a narrativa ateacute o ponto que interessa

Vertigem tiacutetulo original eacute a palavra que condensa as ideacuteias-forccedila

do filme em sua tematiacutezaccedilatildeo do olhar e do ponto de vista A apresentaccedilatildeo

de Vertigo criaccedilatildeo de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em

close-up tratado como maacutescara enigmaacutetica imoacutevel Uma aproximaccedilatildeo

maior e um passeio da cacircmcra examinam essa maacutescara em seus detalhes

ateacute que isolado o olho ofereccedila os sinais de vida Os seus movimentos no

entanto natildeo criam uma ~xpressatildeo definida uma intcncionalidade do olhar

Preparam apenas o cenaacuterio ptra um movimentoem espiral na profundishy

dade Mergulho na inteacuteiioridaacutedc cujo fundo inatingiacutevel estaacute sempre em

recesso Aproximaccedilatildeo e recuo atraccedilatildeo e fuga a ambiguumlidade do movishy

mento da espiral ~ experiecircncia matriz de todo o filme cujo eixo eacute o

percurso de profissional do olhar detetive personificaccedilatildeo da

vertigem Logo na primeira sequumlecircncia define-se a questatildeo desse protagoshy

nista numa perseguiccedilatildeo telhados de Satildeo Francisco a vertigem de Scottie o faz responsaacuteveacutel pela morte de um

tentar ajudaacute-lo Sentimeriacuteto de cu1Da aposentadoria

52

lecida a disponibilidade total de a situaccedilatildeo-chave de Vertigo deseshy

nha-se quando ele atende ao chamado de Elster de escola que

no reencontro surpreende-o com o pedido para que sua mulher

Madeleine Elster mostra-se apreensivo com as manifestaccedilotildees de ausecircnshy

cia que ela apresenta com os periacuteodos de comportamento estranho em

que ela parece ser outra pessoa de que retoma sem lembranccedilas

O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma

proposto Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine pesquisa pela

recolhe dados essenciais Um primeiro quadro se compotildee a

ra que dela se apossa em seus transes eacute Cadota Valdez mulher que viveu

em San Francisco no seacuteculo XIX e que se suicidou em circunstacircncias meshy

lancoacutelicas Novamente com Elster Scottie relata as descobertas O marishy

do introduz novo dado Madeleine estaacute em perigo de vida pois descende

de Carlota outras mulheres da linhagem cometeram suiciacutedio e ela tem

agora a idade de Carlota ao morrer

Na primeiraacute seacuterie de passeios de Madeleine fase em que se compotildec

o quadro tivemos uma ostensiva duplicaccedilatildeo num primeiro plano Scortie

observa MadeJeine que natildeo reconhece sua presenccedila (ele estaacute fora do tershy

ritoacuterio dela) e se potildee disponiacutevel ao olhar movimentando-se como numa

cena num segundo plano ao longo do mesmo eixo a cacircmera observa

Scottie que Madeleine Satildeo duas uma dentro da outra que

natildeo se tocam Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele ambos enquadra~

dos por noacutes no lugar da cacircmera Madeleine nunca devolve o olhar a Scotshy

tie devolve o olhar agrave cacircmera (regra do filme claacutessico) Mas eacute

ambiacutegua essa passividade pois eacute o movimento dela que dirige o olhar

dele eacute a accedilatildeo de ambos que dirige o nosso olhar sempre na esteira do

acircngulo de de Scottie com quem partilhamos a ignoracircncia a

curiosidade a descoberta

Apoacutes a segunda conversa com Elster o tema do suiciacutedio engendra

uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria MadeleineCarlota

atira-se nas aacuteguas da baiacutea de San Francisco Scottie a resgata Permaneceshy

mos puro olhar ele passa ao plano da intervenccedilatildeo e do diaacutelogo Com os

dois juntos certa concretude o que em Scottie eacute jaacute sonho romacircnshy

53

tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do

filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs

do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e

terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM

sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a

lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute

coloca adiante dele na investigaccedilatildeo

A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy

satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela

que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e

com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy

gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave

de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre

alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se

e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos

da escada retido pela vertigem - e somos retidos

com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai

O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um

psicologicamente massacrado Elsshy

natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco

destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar

em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um

dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras

no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de

Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus

motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade

(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy

to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme

natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente

natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy

54

dos no quarto ficamos ao lado de

sem delongas que natildeo espera o final

Sozinha no quarto hesitante nervosa

assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy

a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy

para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade

para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy

blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez

de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao

topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o

mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre

Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou

resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda

para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas

posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy

ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema

bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia

apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do

suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo

de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy

dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as

imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()

prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a

loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy

lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy

leine-Carlota em a Scottic

O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse

mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy

vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade

e o de (a natildeo foi apenas para ele a

Urna leimra mais completa de Vertigo exishy

~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy

para o estratagema do as permanecem na

55

esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy

sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas

consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui

afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte

final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema

No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo

na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a

reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos

nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que

era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy

satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy

tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy

sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da

outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o

estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy

nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy

Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a

accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata

Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave

moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo

nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir

de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma

questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy

posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy

to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o

espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)

6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy

ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin

Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a

psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense

1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ

Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se

uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy

co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para

finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do

cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy

nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy

ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens

do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que

nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle

de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta

o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos

entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve

a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim

oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos

a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy

so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu

ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa

segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista

muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da

relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar

e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo

eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de

imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo

vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz

de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos

Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy

te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo

implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas

colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo

com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que

fora do campo torna visiacutevel

56 57

Page 2: Ismail Xavier Cinema Revelacaoengano

I Cinema revelaccedilatildeo e engano

ATESTEMUNHA DE MCCARTHY

Haacute quem tome o cinema como lugar de de acesso a uma vershy

dade por outros meios inatingiacutevel Haacute quem assuma tal poder revclatoacuterio

como uma simulaccedilatildeo de acesso agrave verdade engano que natildeo resulta de acishy

dente mas de estrateacutegia Eacute preciso discutir essa questatildeo ao especificar

determinadas condiccedilotildees de leitura de imagens para tanto faccedilo uma recashy

pitulaccedilatildeo histoacuterica pois o binocircmio revelaccedilatildeo-engano projeta-se no temshy

po referido a dois momentos da reflexatildeo sobre cinema o da promessa

maior na aurora do seacuteculo xx e o do desencanto nos anos

Comento de iniacutecio uma situaccedilatildeo extraiacuteda do documentaacuterio Poiacutent of

Order [I963] de Emilio de Antonio filme que focaliza os processos e as

seccedilotildees de tribunal no periacuteodo do macarthismo nos Estados Unidos Tratashy

se de uma remontagem da documentaccedilatildeo colhida ao vivo nos

rios Em determinado momento uma testemunha de eacute

pelo advogado de defesa de um militar aCllsado de atividades anriamerishy

canas Esse advogado mostra uma foto agrave testemunha Nessa foto se

numa tomada relativamente proacutexima duas figuras o reacuteu e ao seu

promotoria como peccedila

testemunha se considera a foto verdadei~a Aacute resposta eacute sim O

do mostra uma foto maior em que aacuteparece numa reuniatildeo

um grupo de pessoas - dentre elas algumas insuspeitas e que traz num

algueacutem jaacute comprometido jaacute indexado na eacuteaccedila agraves bruxas A imagem

mostrar os dois conversando em tom de certa intimidade

da acusaccedilao pergunta agrave

dos cantos a anteriormente vista na foto menor Entendemos sem

demora que a eacute um recorte da segunda ou eacute parte

31

de um contexto maior com muita gente envolvida uma situaccedilatildeo puacuteblica

que natildeo denota nenhuma cumplicidade entre o reacuteu e seu interlocu

O curioso no fato eacute que ao ser reiterada a pergunta vocecirc continua

achando esta foto [menor] verdadeira - a resposta eacute de novo sim

Chegamos aqui ao dado significativo A -resposta surpreende-nos mas

ilustra muito bem uma certa noccedilatildeo de verdade noccedilatildeo muito mais presenshy

te no senso comum de uma sociedade como a nossa do que tagravelvez gostariacuteashy

mos A testemunha trazia a convicccedilatildeo de que a verdade estava em cada

pedacinho da foto como tambeacutem da realidade Aquele canto da imagem

aquele fragmentoacute extraiacutedo da maior foi obtido sem que se adulshy

terasse cada ponto da foto sem maquiagem sem alteraccedilatildeo das

que lhe satildeo internas Logo conteacutem a verdad~ Eacute uma imagem

as duas figuras estiveram efetivamente juntas diante da cacircmera

importa aiacute o contexto) O recorte definidor da moldura natildeo incomodou

a testemunha para quem a verdade eacute soma estaacute em cada parte

Em nossa cultura o processo fotograacutefico tem grande poder sobre as

convicccedilotildees desse tipo de observador assim embalado pela evidecircncia

empiacuterica trazida pela imagem Mais ateacute do que a acuidade da reproduccedilatildeo

(eixo da semelhanccedila) a imagem fotograacutefica (e cinematograacutefica) ganha

autenticidade porque corresponde a u~ registro automaacutetico ela se imprishy

me na emulsatildeo sensiacutevel por um processo objetivo sustentado na causalishy

dade fotoquiacutemica Como resultado do encontro entre o olhar do sistema

de lentes (a objetiva da e o acontecimento fica depositada uma

desse que funciona como um documento Quando se esquece a

funccedilatildeo do recorte prevalecendo a feacute na evidecircncia da imagem isolada

temos um sujeito totalmente cativo do processo de simulaccedilatildeo por mais

que ele pareccedila Caso tiacutepico eacute o dessa testemunha de McCarthv a consagrar o engodo de uma promotoria

Diantc de tal feacute na imagem nossa primeira operaccedilatildeo eacute reverter o

processo e chamar a atenccedilatildeo para a moldura para a entre a foto e

seu entorno para o fato de que o sentido se tece a partir das relaccedilotildees entre

o visiacutevel e o invisiacutevcl de cada situaccedilatildeo Vou aqui um pouco adiante para

ressaltar o quanto aleacutem da foto e de seu contexto haacute que se inserir no

tambeacutem o universo do observador e o tipo de pergunta que ele endereccedila agrave

imagem Ou seja dentro de que se daacute a leitura e ao longo de que

eixo opotildeem-se verdade e revelaccedilatildeo e engano Voltando agrave foto

menor apresentada pelo advogado constatamos num niacutevel mais elemenshy

tar de interrogaccedilatildeo que ela produz um resiacuteduo de documento na imagem

dos interlocutores (sua postura e suas roupas indicam certo estilo etc) No

entanto a ilegitimidade da foto eacute flagrante quando fabrico o fato convershy

sa isolada c o evidecircncia da culpabilidade interessado na dimensatildeo

poliacutetica da imagem Quando pergunto pela autenticidade de uma imagem

natildeo estou portanto discutindo sua verdade em sentido absoluto incondishy

cionado Natildeo discuto a existecircncia das dadas ao olhar Pergunto

pela significaccedilatildeo do que eacute dado a ver numa interrogaccedilatildeo cuja resposta

mobiliza dois referenciais o da foto (enquadre e moldura) que definc um

campo visiacutevel e seus limites e o do observador que define um campo de

Questotildees e seu estatuto seu lugar na ellperiecircncia individual e coletiva

No cinema as entre visiacutevel e invisiacutevel a interaccedilatildeo entre o

dado imediato e sua significaccedilatildeo tornam-se mais intrincadas A sucessatildeo

de imagens criada montagem relaccedilotildees novas a todo instante e

somos sempre levados a estabelecer ligaccedilotildees propriamente natildeo existentes

na tela A montagem sugere noacutes deduzimos As significaccedilotildees engendramshy

se menos por forccedila de isolamentos (como na foto comentada) e mais por

forccedila de contextualizaccedilotildees para as quais o cinema possui uma liberdade inshy

vejaacutevel Eacute sabido que a combinaccedilatildeo de imagens cria significados natildeo preshy

sentes em cada uma isoladamertte Eacute ceacutelebre o experimento do cineasta

russo Kulechov primeiro grande teoacuterico da montagem Selecionando uma

uacuteniea tomada do rosto de um ator e inserindo-a em contextos

chegou a conclusotildees radicais a cada combinaccedilatildeo o rosto parecia expressar

algo bem diferente num espectro que incluiacutea ternura fome alegria

A elasticidade admitida por Kulechov num primeiro momento (anos

foi depois atenuada por ele proacuteprio e seria hoje ingecircnuo supor um

poder absoluto da montagem nesses casos Dentro de determinados limishy

tes jaacute no periacuteodo do cinema mudo era comum a utilizaccedilatildeo da diferenccedila enshy

tre as circunstacircncias da filmagem e as da imagem na tela para sugerir um

33

acontecimento ou dar significado particular a um rosto em close-up

Pudovkin ao realizar A matildee [I926] queria uma expressatildeo particular de

no rosto do heroacutei numa cena em que na prisatildeo ele recebe uma

mensagem de sua matildee trazendo esperanccedilas de liberdade O jovem ator

natildeo conseguiu a expressatildeo pedida o cineasta buscou outra soluccedilatildeo Surshy

o ator num momento desavisado numa circunstacircncia de riso e

filmou seu rosto que reagia a um estiacutemulo completamente estrashy

nho agrave cena do heroacutei Combinou a imagcm registrada com as cenas

vizinhas no filme e julgou saacircsfatoacuterio o efeito obtido Se imagem do

ator eacute um material no qual a montagem inocular um se~tido esse foi

e ainda hoje eacute um dado de desconforto para muita gente Os atores tecircm

razatildeo em desconfiar dessa distacircncia entre seu trabalho e a percepccedilatildeo de

sua imagem na tela Operaccedilotildees como essa de Pudovkin desde cedo entrashy

ram na rotina do trabalho Muitos teoacutericos tecircm se interessado pela discusshy

satildeo de diferentes aspectos dessa manipulaccedilatildeo que ilustra com bastante

evidecircncia a relatividade das expressotildees e das performances no cinema

Comparando a questatildeo dos atores a serviccedilo da ficccedilatildeo com a da foto

observada no tribunal ganha toda ecircnfase a importacircncia da pergunta que

o observador dirige agrave imagem em funccedilatildeo de sua proacutepria circunstacircncia e

interesse Afinal na condiccedilatildeo de espectador de um filme de ficccedilatildeo estou

no de quem aceita o do faz-de-contaacute de quem sabe estar dianshy

te de representaccedilotildees e portanto natildeo vecirc cabimento em discutir questotildees

de legitimidade ou autenticidade no niacutevel da testemunha de tribunal

Aceito e ateacute acho bem-vindi~ o artifiacutecio do diretor que muda o signif shy

do de um gesto - o essencial eacute a imagem ser convincente dentro dos proshy

poacutesitos do filme que procuraacute instaiirar um mundo imaginaacute

A partir de imagens deesquiilas fachadas e avenidas o cinema cria

uma nova geografia com friigmenros de diferentes corpos um novo corshy

po com segmentos de ereaccedilOtildees um fato que soacute existe na tela Natildeo

questiono a cidade imaginaacuteiacutea - o vejo na tela natildeo corresponde por

exemplo ao Rio ou agrave Satildeo PaJlo que conheccedilo Natildeo cabe perguntar de quem

eacute o corpo imaginaacuterio ou qual aestnIacutetura real de um espaccedilo visto na tela em

fragmentos Se assim o o espectador rompe o pacto que assina ao

34

entrar na sala escura para assistir a um filme que tem

res Diante da imagem apresentada como prova em a Clrcunsshy

tacircncia e o compromisso satildeo outros o eixo da verdade e da mentira requer

criteacuterios proacuteprios Para iludir convencer eacute necessaacuterio competecircncia e frtz

parte dessa saber antecipar com precisatildeo a moldura do observador as cirshy

cunstacircncias da recepccedilatildeo da os em jogo Embora pareccedila

a leitura da imagem natildeo eacute imediata Ela resulta de um processo em que

intervecircm natildeo soacute as mediaccedilotildees que estatildeo na esfera do olhar que produz a

imagem mas tambeacutem aquelas presentes na esfera do olhar que as recebe

Este natildeo eacute inerte pois armado participa do

o OLHAH DO CINEMA COMO MEDIACcedilAtildeO

Haacute entre o aparato cinematograacutefico e o olho natural uma seacuterie de elemenshy

tos e operaccedilotildees comuns que favorecem uma identificaccedilatildeo do meu olhar

com o da cacircmera resultando daiacute um forte sentimento da presenccedila do

mundo emoldurado na tela simultacircneo ao meu saber de sua ausecircncia

(trata-se de e natildeo das proacuteprias coisas) Discutir essa identificaccedilatildeo

e essa presenccedila do mundo em minha consciecircncia eacute em primeiro lugar

acentuar as accedilotildees do aparato que constroacutei o olhar do cinema A imagem

que recebo compotildee um mundo filtrado por um olhar exterior a mim que

me organiza uma aparecircncia das coisas estabelecendo uma ponte mas tamshy

beacutem se interpondo entre mim e o mundo Trata-se de um olhar anterior ao

meu cuja circunstacircncia natildeo se confunde com a minha na sala de projeccedilatildeo

O encontro cacircmeraobjeto (a produccedilatildeo do acontecimento que me eacute dado

ver) e o encontro espectadoraparato de projeccedilatildeo constituem dois moshy

mentos distintos separados por todo um processo Na estatildeo

implicados uma co-presenccedila um compromisso um riSCO um prazer e um

poder de quem tem a possibilidade e escolhe filmar Como espectador

tenho acesso agrave aparecircnci

ou seja sem a circunstacircncia Conteiacutenplo uma imagem sem ter parshy

ticipado de sua produccedilatildeo sem escolher acircngulo distacircncia sem definir uma

perspectiva proacutepria para a observaccedilatildeo Ao contraacuterio das situaccedilotildees de vida

35

em que estou presente ao acontecimento na sala de espetaacuteculos jaacute sentashy

do natildeo tenho o trabalho de buscar diferentes posiccedilotildees para observar o

mundo pois tudo se faz em meu nome antes de meu olhar intervir num

processo que franqueia o que talvez de outro modo seria para mim de

impossiacutevel acesso Espectador de cinema tenho meus privileacutegios Mas

simultaneamente algo me eacute roubado o privileacutegio da escolha

Nesse compromisso de ganhos e perdas aceito e valorizo o olhar

mediador do cinema porque as imagens que ele me oferece tecircm algo de

prodigioso - hoje talvez banalizado advindo de sua liberdade ao invashy

dir a intimidade (uma liberdade da qual usufruo sem riscos) de sua preshy

cisatildeo e destreza nos maiores desafios No cinema posso ver tudo de

perto e bem visto ampliado na tela de modo a ~urpreender detalhes no

fluxo dos acontecimentos e dos gestos A imagem na tela tem sua durashy

ccedilatildeo ela persiste pulsa reserva surpresas Se eacute contiacutenua posso acompashy

nhar um movimento enquanto esse se faz diante da cacircmera se a montashy

gem interveacutem vejo uma sucessatildeo de imagens tomadas de diferentes

acircngulos acompanho a evoluccedilatildeo de um ac~gtntecimento a partir de uma

coleccedilatildeo de pontos de vista via privilegiados especialmente cuishy

dados para que o espetaacuteculo do mundo se faccedila para miiacuten com clareza

dramaticidade beleza As possibilidades abertas pela temporal idade proacuteshy

pria da imagem satildeo infinitas haacute o movimento do mundo observado e o

movimento do olhar do apa~ato que observa Quando a imagem eacute de rosshy

tos tenho a interaccedilatildeo dos olhares (lue se confrontam verdadeira orquesshy

traccedilatildeo o olho que vecirc e o que eacute vi~to tecircm ambos sua dinacircmica proacutepria e

cada um de noacutes jaacute teve ocasiOtildees de avaliar com maior ou menor consciecircnshy

cia a intensidade dos efeitos extraiacutedos dessa orquestraccedilatildeo

O usufruto desse olhar privilegiacuteado natildeo a sua anaacutelise eacute algo que o

cinema tem nos garantido propiciando essa condiccedilatildeo prazerosa de ver

o mundo e estar a salvo ocupar o centro sem assumir encargos Estou preshy

sente sem participar do mundo observado Puro olhar insinuo-me invishy

shrel nos espaccedilos a interceptr os ~ihares de dois interlocutores escrutishy

narreaccedilotildees e gestos explorar ambientes de longe de perto Salto com

velocidade infinita de um poacutento a outro de um tempo a outro Ocupo

posiccedilotildees do olhar sem comprometer o corpo sem os limites do meu corshy

po Na ficccedilatildeo cinematograacutefica junto com a cacircmera estou em toda parte c

em nenhum lugar em todos os cantos ao lado das personagens mas sem

preencher espaccedilo sem ter presenccedila reconhecida Em suma o olhar do

cinema eacute um olhar sem corpo Por isso mesmo ubiacutequo onividente Idenshy

tificado com esse olhar eu espectador tenho o prazer do olhar que natildeo

estaacute situado natildeo estaacute ancorado vejo muito mais e melhor

Observando a experiecircncia por esse acircngulo como entatildeo natildeo exaltar

o cinema Como natildeo pensar sua teacutecnica de base cm termos de

de progresso Retomemos um clima tiacutepico do iniacutecio do seacuteculo

o PRIMEIRO ELOGIO AgraveS DO OLHAR

O MOMENTO DA PROMESSA

Alguns cineastas e estetas dos anos 10-20 deixaram registradas as duas reashy

ccedilotildees a esse lado prodigioso da oferecida pela entatildeo nova teacutecnica de

reproduccedilatildeo Pensaram o cinema quando sua mediaccedilatildeo era um dado inaushy

gural que gerava certas descobertas uma eacuteonstelaccedilatildeo de sentimentos e pershy

cepccedilotildees novos ainda natildeo bem equacionados que exigiacuteam novos conceitos

um trabalho com a linguagem escrita para expressar o lado mais peculiar da

nova experiecircncia Hoje eacute praticamente impossiacutevel recuperar vivamente

aquele momento noacutes que crescemos satur~ados de imagens e nos movemos

num mundo em que o que era antes promessa dc revoluccedilatildeo se faz agora

dado banal do cotidiano experiecircncia reiterada De uma pluralidade de reashy

ccedilotildees elogios desconfianccedilas destaco dois tipos de recepccedilatildeo ao advento do

cinema Na primcira ele eacute observado como coroamento de um projeto jaacute

definido na esfera da representaccedilatildeo na segunda vislumbra-se o cinema

enquanto inauguraccedilatildeo de um universo de expressatildeo sem precedente destishy

nado a provocar uma ruptura na esfera da representaccedilatildeo

Aqueles que o vecircem com simpatia como um coroamento inserem

o cinema na tradiccedilatildeo do espetaacuteculo dramaacutetico mais popular de grande

vitalidade no seacuteculo raquoIX Avaliam que cumprindo os mesmos objetivos

o cinema vai mais longe pois multiplica os recursos da representaccedilatildeo faz o

36 37

I I

espectador mergulhar no drama com mais intensidade O olho sem corshy t po cerca a encenaccedilatildeo torna tudo mais claro enfaacutetico expressivo ao narshy

rar uma histoacuteria o cinema faz fluir as accedilotildees no espaccedilo e no tempo e o I

mundo torna-se palpaacutevel aos olhos da plateacuteia com uma forccedila impensaacutevel I em outras formas de representaccedilatildeo Ou seja em seu tornar visiacutevel a meshy

rdiaccedilatildeo do olha cinematograacutefico otimiza o efeito da ficccedilatildeo cumprindo com

muita competecircncia uma tarefa que na esfera da cultura considera-se como Jproacutepria da arte e em especial dos espetaacuteculos Ao exaltar esse salto na efishy ccedil

iciecircncia dentro d~ continuidade de princiacutepios e funccedilotildees os criacuteticos cineasshy

tas e prod~tores afinados agraves regras do mercado cultural da eacutepoca celebram

o na produccedilatildeo industrial do seacuteculo xx de um projeto que vem do

seacuteculo XVIII e que se definiu na origem para a representaccedilatildeo teatraL

Eacute comum sermos lembrados ~o quanto a cacircmera fotograacutefica constishy

tui uma objetivaccedilatildeo tecnoloacutegica recente de princiacutepios da representaccedilatildeo jaacute I

conhecidos cuja sistematizaccedilatildeo vem do Renascimento italiano (cacircmara i iacuteescura o meacutetodo da perspectiva os efeitos de profundidade na superfiacutecie

da tela) Com a imagem em movimento o representar a dos homens iacute se daacute com a franca hegemonia do ilusionismo a encenaccedilatildeo tal e qual o I real plantado no cinema industrial desde os tempos de D W Griffith

Fato que cristaliza uma heranccedila menos tematizada pela criacutetica a do olhar Ital como constituiacutedo no drama burguecircs Aqui a referecircncia teoacuterica essenshy

cial eacute Diderot No momento em que escreve suas peccedilas e formula a teoria trenovadora do teatro definiuacutedoo drama seacuterio burguecircs do seacuteculo XVIII

~ um elemento central no seu ideaacuterio eacute a criacutetica ao teatro vinculado aos ~

gecircneros claacutessicos - principalmente ao tipo de encenaccedilatildeo que se dava agraves

trageacutedias claacutessicas francesas do seacuteculo XVII Esse teatro por demais ancoshy

rado na palavra depende da exclusiva forccedila poeacutetica do texto desdenhanshy

doo aspecto visual da experiecircncia do palco Ou eacute incapaz de elaboshy

rar a cena propriamente dita tal como o filoacutesofo a entende explorando a

expressividade do gesto e a cocircmposiccedilatildeo visual da cena (os tableaux consshy

truiacutedos pela posiccedilatildeo reciacuteproca dos atores e da cenografia)

Diderot queria um teatro dirigido agrave sensibilidade por meio da reshy

produccedilatildeo integral das aparecircncias do mundo queria um meacutetodo de dar

38

a ver as situaccedilotildees os gestos as emoccedilotildees O ilusionismo fonte do enshy

volvimento da plateacuteia eacute entatildeo assumido como a ponte privilegiada no

caminho da compreensatildeo da experiecircncia humana da assimilaccedilatildeo de

valores da explicitaccedilatildeo de movimentos do coraccedilatildeo Tal demanda proacutepria

do universo da Ilustraccedilatildeo do seacuteculo XVIIl tem seus desdobramentos e

depois da Revoluccedilatildeo Francesa em outra atmosfera social e

explode no teatro popular de 1800 Aiacute se consolida o gecircnero dramaacutetico

de massas por excelecircncia o melodrama Esse tem sido por meio do teashy

tro (seacuteculo do cinema (seacuteculo xx) e da TV (desde

taccedilatildeo mais contundente de uma busca de expressividade

moral) em que tudo se quer ver estampado na superfiacutecie do mundo na

ecircnfase do gesto no trejeito do rosto na eloquumlecircncia da voz Apanaacutegio do

exagero e do excesso o melodrama eacute o gecircnero afim agraves grandes revelashy

ccedilotildees agraves encenaccedilotildees do acesso a uma verdade que se desvenda um

sem-nuacutemero de misteacuterios equiacutevocos pistas falsas vilanias Intenso nas

accedilotildees e sentimentos carrega nas reviravoltas ansioso pelo efeito e a

comunicaccedilatildeo envolvendo toda uma pedagogia em que nosso olhar eacute

convidado a apreender formas mais imediatas de reconhecimento da

virtude ou do pecado N a virada do seacuteculo XIX para o XX natildeo surpreende que a teacutecnica do

cinema entatildeo emergente tenha assumido essa pedagogia e tenha substishy

tuiacutedo o melodrama teatral na satisfaccedilatildeo de uma demanda de ficccedilatildeo na soshy

ciedade Quando falo em ilusionismo reproduccedilatildeo das aparecircncias na vershy

dade que adveacutem do conflito de forccedilas que se expressam e se revelam pelo

olhar estou afirmando princiacutepios da representaccedilatildeo aos quais o cinema vem

se ajustar como uma luva Como braccedilo da induacutestria cultural ele

do movimento de objetivaccedilatildeo institucional da Ilustraccedilatildeo Sua

do olhar melodramaacutetico eacute o ponto-limite de um projeto de expressatildeo

total da natureza na representaccedilatildeo Reflete um ideal de domiacutenio e controshy

le da aparecircncia como sinal de conhecimento da natureza um ideal que

inscreve a arte como espelho pedagoacutegico que requer a competecircncia tecnoshy

loacutegica de criar ilusatildeo e por essamiddotvia atingir a sensibilidade a passagem

das trevas agrave luz se faz de efeitos sobre o olhar

39

Dentro do projeto de revelaccedilatildeo do mundo para o olhar os efeitos do

close-up logo adquirem a condiccedilatildeo de emblema das virtudes da nova arte

Mais do que a montagem - sua condiccedilatildeo preacutevia - o close-up na Franccedila e

nos Estados Unidos atrai o dos cineacutefilos corno ponto de condenshy

de um drama que se faz movimento dos olhos - o que vecirc e o

que eacute visto - e pela trama formada pela sucessatildeo de detalhes

e reveladores Corno movimento em direccedilatildeo agrave intimidade e V1stO corno

potecircncia maior do cinema que muito cedo impressionou a todos pela sua

capacidade de devastaccedilatildeo das intenccedilotildees ocultas do pequeno gesto fora do

alcance dos interlocutores do movimento facial que trai um sentimento

Natildeo foi preciso a manifestaccedilatildeo da criacutetica cineastas e produtores conduzishy

ram as experiecircncias reveladoras da forccedila dramaacutetica do rosto isolado na e usando a tradicional muito antes de 1920 jaacute insshy

truiacutea seus atores para a dos olhos - janela da alma _ trazishy

dos para perto no close-up para o exame

Foco das atenccedilotildees e dos o close-up estaraacute em I920 tambeacutem

no centro das reflexotildees de quem afastado dos valores promovidos pela

induacutestria do cinema observa seus prodiacutegios com outra moldura de inteshy

resses e julga os filmes do mercado por demais domesticados pela

demanda de ficccedilatildeo que induz o novo meio a seguir os passos do teatro e

da literatura popular Encontramos aqui quem vecirc o cinema como ruptushy

ra espectadores avessos aos do filme de accedilatildeo corrente cinecircfilos

natildeo interessados na fluecircncia dos acontecimentos no pulsar da

nas tensotildees dramaacuteticas usuais Por intermeacutedio deles o cinema uma

recepccedilatildeo mais empenhada em surpreender aspectos da plaacutestica da imashy

gem do trabalho da cacircmera e da presenccedila peculiar do mundo na tela que

permanecem recalcados na visatildeo dominante Para esse olhar diferenciashy

do por meio do cinema toda urna esfera nova de percepccedilotildees abre-se agrave

nossa experiecircncia desde que sejamos capazes de entender a expressividashy

de da nova imagem em outros termos elogiando sim o mas denshy

tro de urna outra oacutetica a de quem entende o cinema natildeo como coroamenshy

to do ilusionismo teatral mas como ruptura inauguraccedilatildeo de um novo diaacutelogo com a natureza e os homens

4deg

Satildeo os intelectuais e artistas ligados agrave arte moderna que lideram essa

nova leitura do cinema de uma perspectiva que na Franccedila traduziu-se no

cineacutema davant-garde nas experiecircncias dos surrealistas e nas polecircmicas

que tiveram como pauta a superaccedilatildeo da moldura melodramaacutetica a libershy

taccedilatildeo do olhar sem corpo das amarras da continuidade narrativa a adeshy

da nova arte agrave sua teacutecnica moderna A

fcrentes grupos postos de lado os conflitos que os

cinema destina-se a uma tarefa de redenccedilatildeo A cultural

do Ocidente europeu estaria falida o poder criador preso a convenccedilotildees

obsoletas saturado de referecircncias que o desvigoram Enredado em formas

de pensar e sentir desgastadas o homem culto se vecirc separado da natureshy

za reprimido cercado de mentiras de clichecircs da de maacutescaras

O cinema eacute radicalmente novo inocente e traz a da tecnologia

Ele pode e deve romper essa grade devolvendo aos homens o acesso a

uma natureza alienada pelos artifiacutecios de uma cultura

A vanguarda se estabelece como cultUra de separando o

espaccedilo utoacutepico da verdade (cinema vida futura) e o espaccedilo da mentira da

convenccedilatildeo (tradiccedilatildeo literaacuteria teatro cotidiano burguecircs) Sua feacute no cinema

ancora-se numa ideacuteia de expressatildeo que tambeacutem se apoacuteia na acuidade de

reproduccedilatildeo da aparecircncia proacutepria da nova teacutecnica mas com um traccedilo pecushy

liar que afasta a do pensamento gerado na esfera da induacutestria

Germaine Dulac e Epstein principais porta-vozes da avant-ga

concebem o cinema corno expressividade do mundo num sentido radishy

ca1 Combatem a vaga que nos leva a sob qualquer pretexto

isto expressa aquilo de um modo que equivale a isto significa aquilo

dentro dos variados caminhos pelos quais vamos de um poacutelo a outro do

significante ao significado Reservam expressatildeo para designar um proshy

cesso determinado impelido por forccedilas naturais no a composiccedilatildeo de

forccedilas interior a um organismo deixa narcas na do mesmo shy

eacute o movimento nelo Qual ci Que estaacute no interior vem forcosashy

mente agrave tona a forma

I Cf Xavier Seacutetima arte um cuto moderno (Satildeo Paulo 1978)

41

vel) que o cinema vemcaptar com exclusividade pois fixa os movimenshy

tos na peliacutecula sem as atrapalhaccedilotildees do olho natural O cinema tem seu

vigor proacuteprio de um olhar mais automaacutetico

natildeo maculado pelos preconceitos culturais

dade Eacute irocircnico que justamente porque natildeo tem interioridade o olhar

da maacutequina possa atingir o princiacutepio interior dos movimentos revelar a

verdade que organicamente expressa-se em sentido pleno imprime-se

numa textura do mundo que soacute a cacircmera eacute capaz de registrar O proacuteprio

instantacircneo fotograacutefico em sua estrutura mais simples jaacute nos mostra o

quanto a imagem revelada faz emergir dados ocultos que natildeo estavam na

mira do fotoacutegrafo No cinema o movimento poteacutencializa tal desocultashy

mento o qual pode tornar-se mais efetivo quando os cineastas forem cuacutemshy

plices da nova teacutecnica em vez de tentar agrave como no

melodrama a expressividade do fica atrelada a toda uma

cadeia de loacutegica eacute tomada de empreacutestimo agrave do natushy

em que o tOrnar visiacutevel resulta do de uma retoacuterica que ~rH+tia Para

o que era aaequado ao teatro - como ilusionismo do seacuteculo XIX natildeo o eacute para o cinema do seacuteculo xx pois a

imitaccedilatildeo dos gestos antes oferecida a olhos desarmados natildeo resiste agrave anaacuteshy

lise da nova sensibilidade Com o cinema a percepccedilatildeo humana ganhou

um acesso especial agrave intimidade dos processos - ~ele a aparecircncia eacute jaacute uma

anaacutelise O cose-up natildeo eacute o lugar do fingimento eacute uma presenccedila que reveshy

la o que se eacute natildeo o que se pretende ser (inuacuteteis as caretas dos

A aposta da vanguarda estaacute no poder analiacutetico do cinematoshygraacutefico no que ressalta natildeil

espaccedilo) mas tambeacutem as

mente a cacircmera lenta (arnplia(acirco no eixo do tempo) que reveshyIa o mundo em outra e de~cobre-nos a vida secreta que se tece a

nossa volta e em noacutes ganhando ~xpressatildeo nas formas instaacuteveis fora da

nossa consciecircncia que temo~ fixadas pela teacutecnica2 Epstein nos seus

2 Essa aposta no poder analiacutetko do dnema tem uma versatildeo radical moshymento na Uniatildeo Sovieacutetica encarnada rio projeto do Cine-Olho de Vertov gt

42

o ~__ao~ das diferentes velocidades

do movimento animal e dos fenocircmenos Fershy

nand Leacuteger as relaccedilotildees e a forma dos objetos fora de sua inserccedilatildeo

utilitaacuteria no cotidiano Embora natildeo totalmente afinado ao cineacutema dayantshy

garde o surrealismo torna-se o movimento de contestaccedil50 ao cinema inshy

dustrial de maior impacto com sua exploraccedilatildeo da montagem como reveshy

laccedil50 das pulsotildees anatomia do desejo Em diferentes busca-se a

experiecircncia fora do senso comum o olhar em sintonia com ~l~r

do - a sensibilidade efetivamente moderna A

(Epstein) surge entatildeo como nova pedagogia

ccedilatildeo ao cenaacuterio do melodrama - pois o cincma teria como destino

trazer-nos de volta uma cosmologia e um encantamento do mundo para

os quais o cartesianismo e a filosofia da Ilustraccedilatildeo cegos

O horizonte desse renascimento seria a explosatildeo do universo carceraacuterio

da existecircncia atual (para usar a expressatildeo de Walter Benjamin em seu

ceacutelebre ensaio de T936 ao falar de reproduccedilatildeo teacutecnica arte e

A formulaccedilatildeo de Epstein-Dulae eacute questionaacutevel auando examinada a

partir de sua ideacuteia-matriz de expressatildeo

analiacutetico (inegaacutevel) da ~~a~Mrl~ aiacute uma feacute inteshy

gral no dado visiacutevel na caj)acldlde exclusiva de

suas relaccedilotildees internas trazer a verdade agrave tona

agrave ao contexto de cada a~aM~A mais de-

no entanto estaacute no impulso utoacutepico nela presente c no salto teoacuterico

que oferece ao buscar um pensameMo agrave alwra dos aspectos radicalmente

novos da experiecircncia do cinema no inicio do seacuteculo Benjamin o filoacutesofo

atento agraves transformaccedilotildees da sensibilidade geradas pelas novas diraacute

em 1936 A natureza que se dirifie dmera natildeo eacute a mesma que a que se

dirige ao olhar Essas c outras suas - sobre o ator o

gt que procura realizar no cinema documentaacuterio a verdade que desmascara a culshy

tura tradicional A cIacutee Vertov diante dos franceses eacute a

ccedilatildeo que ele estabelece cntre desmascaramento e exposiccedilatildeo dos processos efetivos

da Drodudiacuteo social das relaccedilotildees de atraveacutes do montagem cinematogniacutefica

43

analiacutetico da Imagem retomam muito do repertoacuterio da vanguarda dos anos

20 inserindo a caracterizaccedilatildeo do olhar do cinema numa reflexatildeo mais amshy

pIa sobre teacutecnica e cultura Nessa reflexatildeo a moldura eacute outra mas prevalece

o mesmo movimento de ressaltar o papel subversivo revelado r da fotoshy

grafia e do cinema dentro da cultura europeacuteia A promessa entatildeo se reafirshy

ma sem as premissas de eXflressividade total e de retorno agrave natureza

Com Benjamin ela aSSume um contorno histoacuterico mais bem demarcado eacute

por um persamento mais sensiacutevel agrave contradiccedilatildeo e ao caraacuteter das

forccedilas sociais em conflito Pensamento que nos trouxe uma avaliaccedilatildeo da

questatildeo da arte dentro de uma articulaccedilatildeo mais luacutecida com a conjuntura

poliacutetica e a proacutepria natureza das apostas em na Europa dos anos 30

polarizada por uma confrontaccedilatildeo decisiva entre revoluccedilatildeo e reaccedilatildeo

A CRiacuteTICA DO OLHAR SEM CORPO

No seu elogio ao aspecto revelador do olhar no cinema o pensamento

dos anos 20 colocou o debate em termos de verdade (cinema) emendra

(tradiccedilatildeo cultural) e deu toda ecircnfase agrave cumplicidade entre cinema e natushy

reza solidaacuterios enquanto um organismo e sua expressatildeo visual prontos a

expulsar a simulaccedilatildeo desde que a nova teacutecnica fosse salva de su~ adultera-

promovida pelo universo da mercadoria Por esse a oposishyentre um cinema desejado objeto do recalque e aquele que

realmente impera (a pedagogia da induacutestria orienta-se por uma teleoIOPla o presente eacute o mOmelItO dos entraves que impedem o desenshy

volvimento na direccedilatildeo COrreta eacuteapaz de realizar as promessas da nova

teacutecnica o futuro eacute o preenchimen~o dessas promessas que desde jaacute as vanshy

guardas anunciam e preparam Entre 1920 e J960 os poderes reais inshy

sistiram em repor o mesno cinema dominante o que trouxe em linhas

a reiteraccedilatildeo da mesnla matriz de contestaccedilatildeo O conflito dominanshy

tedominado traduzido em termos de verdade e refez-se ao

longo de eixos diversos Quando prevaleceu um eixo poliacutetico o poacutelo da

verdade (futuro) identificou-se agrave cultura revolucionaacuteria o da mentira

presentet agraves mistificaccedilotildees da reaccedilatildeo Quando prevaleceu um eixo esteacutetishy

co verdade foi poesia originalidade experimentaccedilatildeo mentira foi a rotishy

na do comeacutercio o kitscll industrializado

Natildeo cabe agora a recapitulaccedilatildeo do que foram as diferentes versotildees

desse conflito vanguardacultura de massa em cada e eacutepoca Natildeo o

poderia fazer nem quero pois meu objetivo eacute saltar dessa primeira refleshy

xatildeo dos anos 20 para uma mais proacutexima de gerada no contexto franshy

cecircs poacutes-68 reflexatildeo que abandonou a tradiccedilatildeo de opor verdade e mentishy

ra deslocando a discussatildeo sobre a teacutecnica do cinema

No grande intervalo que a criacutetica avanccedilou na caracterizashy

ccedilatildeo do olhar sem corpo e suas implicaccedilotildees notadamente na avaliaccedilatildeo de

sua estrutura mais comunicativa e sedutora o cinema olhar da

induacutestria da ideologia dominante nos meios Extensatildeo do qlle

chamei olhar melodramaacutetico o cinema claacutessico eacute sua modernizaccedilatildeo Faz

com que ele abandone os excessos maiores do ganhe em

profundidade dramaacutetica amplitude temaacutetica concretizando o ver mais e

melhor do cinema na direccedilatildeo de um ilusionismo mais completo - o cineshy

ma claacutessico eacute o olhar sem corpo atuando em sentido

caracterizaccedilatildeo dos seus poderes apresentada em minha primeira

que de fato ajusta-se mais precisamente a esse estilo particular dOJTIinanshy

te no mercado e natildeo a todo o cinema possiacutevel Eacute nele mais do que em

qualquer outra proposta que vemos realizado o de intensificar ao

extremo nossa relaccedilatildeo com o mundo-objeto fazer tal mundo parecer autocircshy

nomo existente em seu proacuteprio direito natildeo encorajando perguntas na

direccedilatildeo do proacuteprio olhar mediador sua estrutura e comportamento Soshy

mos aiacute convidados a tomar o olhar sem corpo como dado natural

Entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 60 dois grandes

de reflexatildeo conduziram a criacutetica a essa naturalidade postulada pelo cineshy

ma claacutessico a teoria radical do cinema-discurso baseado nas operaccedilotildees da

montagem (o Eisenstein dos anos 20-30 permaneceu aqui a referecircncia

central) e a criacutetica francesa inspirada na fenomenologia tendo como [oco

maior Andreacute Bazin3

3 Cf Bazin Cinema ensaios trad Eloisa Ribeiro (Satildeo Paulo Brasilicnse 1991)

44 45

Falar de Eisenstein exigiria uma abordagem radicalmente distinta da

que faccedilo agora pois sua criacutetica ao ilusionismo COmeccedila com a advertecircncia

de que a imagem cinematograacutefica natildeo deve ser lida c0f110 produto de um

olhar Para ele a suposiccedilatildeo de que houve um encontro uma contiguumlidade

espacial e temporal entre cacircmera e objeto natildeo eacute O dado central e impresshy

cindiacutevel da leitura da imagem Sua presenccedila na tela eacute um fato de natureza

que deve ser observado em seu valor simboacutelico

caracteriacutesticas de sua composiccedilatildeo e sua no Contexto de um discurshy

so que eacute exposiccedilatildeo de ideacuteias natildeo sucessatildeo natural de fatos captados

pelo olhar A diferenccedila entre um plano geral e um cose-up por

muitas vezes natildeo pode ser entendida como olhar versus

olhar de mesmo quando se focaliza o mesmo ODjeto mas como

confronto de duas imagens de valores distintos A diferenccedila eacute de

natildeo de posiccedilatildeo no espaccedilo pois pode natildeo haver COntinuidade e

homogeneidade espacial para que se possa falar num mais perto

- tudo depende do contexto do discurso por imagens

Ao contraacuterio de Eisenstein os criacuteticos inspirados na fenomenologia

endossam e defendem a premissa de que no cinema toda imagem eacute proshy

duto de um olhar - eacute essencial que ela seja vista como tal- e a sucessatildeo

define sempre a atitude do observador diante de um mundo homogecircneo

Agrave imagem-signo de Eisenstein eles opotildeem a imagem-acontecimento agrave

defesa da descontinuidade proacutepria do cineasta russo respondem Com

uma defesa ateacute mais radical do princiacutepio de continuidade jaacute presente na

narraccedilatildeo claacutessica fazendo a ela um reparo fundamental se a imagem em

movimento nos traz a percepccedilatildeo privilegiada do homem como ser lanccedilashy

do no mundo como ser-em-situaccedilatildeo a falsidade do cinema claacutessico estaacute

na manipulaccedilatildeo impliacutecita em sua montagem o olhar sem corpo e a

onividecircncia criam na tela uni mundo abstrato de sentido fechado preshy

julgado e organizado pelo cin~ina Toda montagem eacute discurso manipulashy

ccedilatildeo de Eisenstein de GrUacutefith ou de Bufiacuteuel Em oposiccedilatildeo um criacutetishy

co como Bazin solicita um olhar cinematograacutefico mais afinado ao olho de

um sujeito circunstanciado que p6ssui limites aceita a abertura do

mundo convive com ambiguumlidades Quando pede realismo ele natildeo se

46

deteacutem em consideraccedilotildees de conteuacutedo (o tipo de universo Ciccional ou doshy

cumentaacuterio) Sublinha a postura do olhar em sua interaccedilatildeo com o mundo

tanto mais legiacutetima quanto mais as condiccedilotildees de nosso olhar

ancorado no corpo vivenciando uma duraccedilatildeo e uma circunstacircncia em sua

continuidade trabalhando as incertezas de uma percepccedilatildeo

ultrapassada mundo Daiacute sua minimizaccedilatildeo da montagem (instacircncia

construtora da onividecircncia) sua defesa do plano-seguumlecircncia (olhar uacutenico

sem cortes observando uma em seu um acontecimento

em seu fluir

Numa visatildeo mais atual prestamos atenccedilatildeo especial ao que aproxima

e natildeo apenas ao que afasta o cinema-discurso de Eisenstein e o realismo

existencial de Bazin haacute em ambos novamente a atribuiccedilatildeo de um poder

de verdade e de um poder de mentira encarnados em determinados estishy

los Para Eisenstein haacute um estilo capaz de dizer o mundo social-histoacuterishy

co colocando o cinema como potecircncia maior no plano do conhecimento

Para Bazin O cinema eacute uma espeacutecie de terceiro estado da e exisshy

te um estilo autecircntico na captaccedilatildeo da vivecircncia humana em sua

essencial abertura no tempo

Contra esse pano de fundo da tradiccedilatildeo teoacuterica a intervenccedilatildeo de

]ean-Louis Baudry em 1969-70 em questatildeo a constante promessa de

um estilo mais verdadeiro e dirige seu ataque agraves premissas do cinema em

geral examinando mais a fundo as condiccedilotildees do espectador raciociacuteshy

nio estaacute municiado para analisar o espectador do filme claacutessico mas

fala em cinema tout couTe) 4 O horizonte de seu exame eacute ressaltar o

modo pelo qual a recepccedilatildeo da imagem possui uma estrutura que a seu ver

solapa o reiterado creacutedito - de Eisenstein Griffith Epstein na

da verdade como destinaccedilatildeo fundamental do cinema Ele invershy

te a tradiccedilatildeo e vecirc na simulaccedilatildeo na de efeitos (ilusoacuterios) de

conhecimento o destino maior da nova arte (visatildeo que

4 O mais importante dos textos de Jean-Louis dessa

1970 Os efeitos ideoloacutegicos do de base estaacute publicado em Ismail

Xavier (orll) A experiecircncia do cinema (Rio de Janeiro

47

pela permanecircncia do ilusionismo do cinema industrial) Isso se daacute por

forccedila da proacutepria natureza da teacutecnica cinematograacutefica herdeira das ilusotildees _

da perspectiva da persistecircncia retiniana (natildeo vemos os fotogramas vemos

o que natildeo ocorre na tela ou seja o movimento da imagem e temos a imshy

pressatildeo de continuidade) da falsa autenticidade documental da fotografia

Rearticulando elementos jaacute conhecidos Baudry nos traz uma interpretashy

ccedilatildeo radical que- questiona natildeo estilos particulares de fazer cinema mas o

fundamento mesmo de sua objetividade como teacutecnica essa mes~a objetishy

vidade que tem sido a sustentaccedilatildeo maior das esperanccedilas de verdade Na

nova perspectiva as diferentes posiccedilotildees teoacutericas desde 1920 definem um

pensar o cinema a priori capturado pelas ilusotildees da teacutecnica e desatento agraves

implicaccedilotildees contidas na proacutepria estrutura do olhar da cacircmera tal como se

daacute para noacutes na plateacuteia A teacutecnica tem suas inclinaccedilotildees seus efeitos ideoloacuteshy

gicos e nesse sentido eacute ela mesma que impele o cinema industrial a desenshy

volver seu ilusionismo e trazer o espectador para dentro do mundo ficcioshy

na A forccedila de encantamento desse cinema persiste na histoacuteria porque o

dado crucial em jogo natildeo eacute tanto a imitaccedilatildeo do real na tela _ a reproduccedilatildeo

integral das aparecircncias - mas a simulaccedilatildeo de um certo tipo de sujeito-doshy

olhar pelas operaccedilotildees do aparato cinematograacutefico

Avaliar a potecircncia do olhar sem corpo natildeo eacute entatildeo inventariar as

imagens que ele oferece efocaIacuteIacutezar o seu movimento proacuteprio sua forma

de mediaccedilatildeo o que impiacuteica analisar sua incidecircncia no espectador que

vivenda o poder de clarividecircncia a percepccedilatildeo tota Na sala escura idenshy

tificado com o movimento do olhar da cacircmera eu me represento como

sujeito dessa percepccedilatildeo total capaz de doar sentido agraves coisas sobrevoar as

aparecircncias fazer a siacutentese do mundo Minha emoccedilatildeo estaacute com os fatos

que o olhar segue mas a cbndiccedilatildeo desse envolvimento eacute eu me colocar no

lugar do aparato sintoniz~do com suas operaccedilotildees Com isso incorporo

(ilusoriamente) seus poder~s e ericontro nessa sintonia - solo do entendishy

mento cinematograacutefico - o maior cenaacuterio de simulaccedilatildeo de uma onipotecircnshy

cia imaginaacuteria No cinema faccedilo uma viagem que confirma minha condishy

ccedilatildeo de sujeito tal como a desejo Maacutequina de efeitos a realizaccedilatildeo maior do

cinema seria entatildeo esse efeito-sujeito a simulaccedilatildeo de uma consciecircncia

48

transcendente que descortina o mundo e se vecirc no centro das coisas ao

mesmo tempo que radicalmente separada delas a observar o mundo coshy

mo puro olhar Nessa apropriaccedilatildeo ilusoacuteria da competecircncia ideal do olhar

estou portanto no centro mas eacute o aparato que aiacute me coloca pois eacute dele o

movimento da percepccedilatildeo monitor da minha fantasia

Para Baudry uma filosofia idealista que postula um sujeito transshy

cendente em oposiccedilatildeo ao mundo objetivo que se dispotildee ao conhecimento

encontra aiacute na teacutecnica do cinema sua traduccedilatildeo visiacutevel Toda sua ecircnfase

recai sobre a produccedilatildeo simultacircnea da imagem e do sujeito-observador

onividente A engenharia simuladora do cinema define com o efeitoshy

sujeito seu teatro da percepccedilatildeo total cujo protagonista sou eu-espectador

identificado com o olhar da cacircmera

N esses termos o que dificulta a consolidaccedilatildeo de linguagens alternashy

tivas mais verdadeiras eacute esse pecado original inscrito na teacutecnica Esta

tem na ilusatildeo seu sustentaacuteculo e os percalccedilos das vanguardas devem-se a

que sua aposta eacute reverter a funccedilatildeo daquilo que jaacute nasceu para cumprir

outro destino Digo destino porque a loacutegica dessa teoria transforma o cineshy

ma num oacutergatildeo que surgiu para cumprir um programa o de objetivar na

esfera do visiacutevel estrateacutegias de dominaccedilatildeo especialmente as da classe burshy

guesa que presidiu sua origem Assim antes de instacircncia liberadora subshy

versiva a condiccedilatildeo do cinema eacute preencher uma demanda do proacuteprio unishy

verso carceraacuterio tornando-o mais preciso e poderoso em seu aparato

Haacute uma atmosfera de desencanto instalada a partir dos anos 70 a

formulaccedilatildeo aqui exposta eacute a traduccedilatildeo teacuteoacuterica radical dos impasses da conshy

testaccedilatildeo no cinema Temos o esgotamento de uma teleologia a da teacutecnishy

ca redentora entravada pela poliacutetica e a economia e sua substituiccedilatildeo

por u~a outra a da teacutecnica como instrumento maior de reposiccedilatildeo de um

sistema de poder Em consonacircncia corn a tonalidade da reflexatildeo sobre a

linguagem a cultura e a ideologia naquele momento a teoria do cinema

mais original e polecircmica ressalta o lado sistemaacutetico inelutaacutevel das ilusotildees

e dos enganos do olhar da cacircmera Nesse contexto a proacutepria praacutetica do

cinema amplia o espaccedilo para a reflexatildeo teoacuterica voltada para a questatildeo do

simulacro - a citaccedilatildeo a imagem que-alude agrave imagem o circuito das refeshy

49

recircncias a si mesmo que o cinema leva ao paroxismo entram para valer na

esfera da induacutestria constituem sua nova marca Tal reflexatildeo se faz dentro

de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do

cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura

contemporacircnea A imagem cinematograacutefica eacute entatildeo obseJvada a partir de

sua participaccedilatildeo em outra rede de relaccedilotildees em que natildeo haacute para a

interpretaccedilatildeo (esse tomar a imagem como representaccedilatildeo de algo exterior

a ela) para o juiacutezo da verdade ou mentira em que se a oposlccedilao

aparecircncia (imagem)essecircncia (substacircncia) -nada haacute por traacutes das lmlti~e~ns

elas valem como efeitos-de-superfiacutecie imagem remetendo a imagem fluxo de simulacros

Faccedilo agora uma incursatildeo que natildeo eacute propriamente no terreno da

nova filosofia e das questotildees mais amplas do simulacro na produccedilatildeo

Trata-se de uma anaacutelise particular no niacutevel da engenharia da simulaccedilatildeo

caracterizaccedilatildeo de um efeito na qual natildeo eacute necessaacuterio assumir as noccedilotildees

com a mesma ressonacircncia elas adquiriram na literatura dos anos 80

Fecho a exposiccedilatildeo com a consideraccedilatildeo de um novo exeacutemplo que acredishy

to esclareccedila algumas observaccedilotildees feitas ateacute aqui sobre a interaccedilatildeo entre

espectador e imagem sobre o papel da moldura do sujeito na leitura

Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o

efeito de uma depende de sua ~elaccedilatildeo com o sujeito em determishy

nadas condiccedilotildees Da situaccedilatildeo da testemunha de McCarthy passei a uma

caracterizaccedilatildeo mais detida do olhar do cinema e examinei dois momenshy

tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexatildeo criacuteshy

tica em torno do que hiacute de erigano e rcvelaccedilatildeo nesse olhar A partir de

uma discussatildeo mais sobre a simulaccedilatildeo do fato - na fotografia no

cinema chegamos a uma questatildeo mais especiacutefica a simulaccedilatildeo do sujeishy

to na estrutura mesma (lo olhar cinematograacutefico Dentro da discussatildeo

mais geral o exemplo a envolve uma situaccedilatildeo mais complicada do

quea das fotos do tribunal estaremos no cinema Como inspiraccedilatildeo

terei presentes as liccedilotildees de Baildry sem no entanto incorporar o movishy

mento totalizador de suaacute criacutetica ao olhar do cinema Seu amplo diagnoacutesshy

tico mobilizando a psicaacutenaacutelise tem como pressuposto o fato de sabershy

0

mos o bastante sobre a natureza do espectador de modo a prever o caraacuteshy

tcr de sua identificaccedilatildeo com o aparato a qual assume uma dimensatildeo

uacutenica de adesatildeo agrave imagem por forccedila do efeito-sujeito Como conhecedoshy

res do desejo do espectador denunciamos o conluio desse desejo com o

programa da induacutestria e deduzimos daiacute as alienaccedilotildees do cinema e da

teacuteia Natildeo tenho condiccedilotildees de endossar a generalidade desse saber a resshy

peito do espectador o aparato atua em determinada direccedilatildeo mas a expeshy

riecircncia do cinema inclui outras forccedilas e condiccedilotildees que natildeo se ajustam ao

programa do sistema A formulaccedilatildeo dc Baudry embora inclua com toda

a forccedila a dimensatildeo do desejo do espectador natildeo deixa de ser outra vershy

satildeo das teorias da manipulaccedilatildeo global centradas em excesso no aspecto

da experiecircncia de modo a confundir o processo que efetishy

vamente ocorre com a loacutegica ideal do sistema Focalizo uma situaccedilatildeo

didaacutetica nesse contcxto em que eacute perfeito o funcionamcnto do

aparato cm quc podemos verificar o mecanismo da simulaccedilatildeo em estashy

do digamos de laboratoacuterio

IVIULALAU E PONTO OE VISTA

Toda leitura de eacute pr()(llltatildeo de um ponto de vista o do sujeito

observador natildeo o da objetividade (b irnagetnA condiccedilatildeo dos efeitos

da imagem eacute essa Em particular o ekilO rb apoacuteia-se numa

construccedilatildeo que inclui o fmguh do obSlrVIr1or O simulacro parece o

que natildeo eacute a partir de um pOIHo ele vista () sujeito estaacute aiacute pressuposto Porshy

tanto o processo elc simulaccedilatildeo nlo l o (Li imagemem si mas o da sua

relaccedilatildeo com o sujeito Num (gt1lt1110 elemelltar podemos tomar o cinema

como modelo do processo O (llIC eacute a fjltnilgcm senatildeo a organizaccedilatildeo do

I 1 I - C f dacontecllnento pra 11111 angu () (C o lscrvaccedilao o que se con un e com

Nessas asserccedilotildees no de Xavier Audouard Le Simulacrc in

eacutepisteacutemologie de lEcole Normale gtuucushy

rc n mai-jun 1966) O horizonte de Audouard eacute o de uma discussatildeo sobre o

idealismo platocircnico seu terreno eacute ponanto distinto e meu natildeo

ca uma identificaccedilatildeo agrave sua perspectiva de anaacutelise

i J

o da cacircmera e nenhum outro mais) O que eacute a fachada de preacutedio de estuacuteshy

dio senatildeo a duplicaccedilatildeo do mesmo princiacutepio da fachada de rua que sushy

gere o que natildeo eacute justamente quando observada de um certo acircngulo e disshy

tacircncia jaacute pressupostos em sua composiccedilatildeo O que eacute a ficccedilatildeo do cinema

senatildeo uma simulaccedilatildeo de mundo para o espectador identificado com o aparato

Vertigo (Um corpo que cai) O filme de Hitchcock realizado

em 1958 Ele eacute a trama da simulaccedilatildeo por excelecircncia como jaacute foi observashy

do pela criacutetica Trago um aspecto novo agrave consideraccedilatildeo o do espelhamenshy

to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e

o proacuteprio princiacutepio da narraccedilatildeo do filme Tal como em outras obras de

Hitchcltck o cinepa c1aacutessi~o aqui operagrave com eficiecircncia maacutexima e ao

mesmo tempo oferece a metaacutefora viva para o seu proacuteprio processo Inteshy

ressado nessa metaacutefora acentuo nesta anaacutelise a mecacircnica da simulaccedilacirco o

funcionamento exterior do aparato natildeo o que nas personagens eacute desejo

do estratagema e disposiccedilatildeo para a vertigem da imagem

Sigamos passo a passo a narrativa ateacute o ponto que interessa

Vertigem tiacutetulo original eacute a palavra que condensa as ideacuteias-forccedila

do filme em sua tematiacutezaccedilatildeo do olhar e do ponto de vista A apresentaccedilatildeo

de Vertigo criaccedilatildeo de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em

close-up tratado como maacutescara enigmaacutetica imoacutevel Uma aproximaccedilatildeo

maior e um passeio da cacircmcra examinam essa maacutescara em seus detalhes

ateacute que isolado o olho ofereccedila os sinais de vida Os seus movimentos no

entanto natildeo criam uma ~xpressatildeo definida uma intcncionalidade do olhar

Preparam apenas o cenaacuterio ptra um movimentoem espiral na profundishy

dade Mergulho na inteacuteiioridaacutedc cujo fundo inatingiacutevel estaacute sempre em

recesso Aproximaccedilatildeo e recuo atraccedilatildeo e fuga a ambiguumlidade do movishy

mento da espiral ~ experiecircncia matriz de todo o filme cujo eixo eacute o

percurso de profissional do olhar detetive personificaccedilatildeo da

vertigem Logo na primeira sequumlecircncia define-se a questatildeo desse protagoshy

nista numa perseguiccedilatildeo telhados de Satildeo Francisco a vertigem de Scottie o faz responsaacuteveacutel pela morte de um

tentar ajudaacute-lo Sentimeriacuteto de cu1Da aposentadoria

52

lecida a disponibilidade total de a situaccedilatildeo-chave de Vertigo deseshy

nha-se quando ele atende ao chamado de Elster de escola que

no reencontro surpreende-o com o pedido para que sua mulher

Madeleine Elster mostra-se apreensivo com as manifestaccedilotildees de ausecircnshy

cia que ela apresenta com os periacuteodos de comportamento estranho em

que ela parece ser outra pessoa de que retoma sem lembranccedilas

O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma

proposto Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine pesquisa pela

recolhe dados essenciais Um primeiro quadro se compotildee a

ra que dela se apossa em seus transes eacute Cadota Valdez mulher que viveu

em San Francisco no seacuteculo XIX e que se suicidou em circunstacircncias meshy

lancoacutelicas Novamente com Elster Scottie relata as descobertas O marishy

do introduz novo dado Madeleine estaacute em perigo de vida pois descende

de Carlota outras mulheres da linhagem cometeram suiciacutedio e ela tem

agora a idade de Carlota ao morrer

Na primeiraacute seacuterie de passeios de Madeleine fase em que se compotildec

o quadro tivemos uma ostensiva duplicaccedilatildeo num primeiro plano Scortie

observa MadeJeine que natildeo reconhece sua presenccedila (ele estaacute fora do tershy

ritoacuterio dela) e se potildee disponiacutevel ao olhar movimentando-se como numa

cena num segundo plano ao longo do mesmo eixo a cacircmera observa

Scottie que Madeleine Satildeo duas uma dentro da outra que

natildeo se tocam Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele ambos enquadra~

dos por noacutes no lugar da cacircmera Madeleine nunca devolve o olhar a Scotshy

tie devolve o olhar agrave cacircmera (regra do filme claacutessico) Mas eacute

ambiacutegua essa passividade pois eacute o movimento dela que dirige o olhar

dele eacute a accedilatildeo de ambos que dirige o nosso olhar sempre na esteira do

acircngulo de de Scottie com quem partilhamos a ignoracircncia a

curiosidade a descoberta

Apoacutes a segunda conversa com Elster o tema do suiciacutedio engendra

uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria MadeleineCarlota

atira-se nas aacuteguas da baiacutea de San Francisco Scottie a resgata Permaneceshy

mos puro olhar ele passa ao plano da intervenccedilatildeo e do diaacutelogo Com os

dois juntos certa concretude o que em Scottie eacute jaacute sonho romacircnshy

53

tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do

filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs

do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e

terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM

sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a

lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute

coloca adiante dele na investigaccedilatildeo

A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy

satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela

que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e

com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy

gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave

de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre

alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se

e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos

da escada retido pela vertigem - e somos retidos

com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai

O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um

psicologicamente massacrado Elsshy

natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco

destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar

em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um

dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras

no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de

Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus

motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade

(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy

to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme

natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente

natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy

54

dos no quarto ficamos ao lado de

sem delongas que natildeo espera o final

Sozinha no quarto hesitante nervosa

assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy

a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy

para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade

para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy

blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez

de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao

topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o

mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre

Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou

resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda

para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas

posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy

ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema

bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia

apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do

suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo

de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy

dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as

imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()

prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a

loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy

lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy

leine-Carlota em a Scottic

O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse

mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy

vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade

e o de (a natildeo foi apenas para ele a

Urna leimra mais completa de Vertigo exishy

~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy

para o estratagema do as permanecem na

55

esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy

sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas

consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui

afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte

final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema

No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo

na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a

reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos

nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que

era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy

satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy

tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy

sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da

outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o

estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy

nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy

Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a

accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata

Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave

moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo

nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir

de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma

questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy

posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy

to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o

espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)

6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy

ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin

Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a

psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense

1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ

Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se

uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy

co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para

finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do

cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy

nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy

ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens

do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que

nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle

de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta

o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos

entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve

a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim

oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos

a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy

so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu

ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa

segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista

muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da

relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar

e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo

eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de

imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo

vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz

de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos

Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy

te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo

implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas

colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo

com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que

fora do campo torna visiacutevel

56 57

Page 3: Ismail Xavier Cinema Revelacaoengano

de um contexto maior com muita gente envolvida uma situaccedilatildeo puacuteblica

que natildeo denota nenhuma cumplicidade entre o reacuteu e seu interlocu

O curioso no fato eacute que ao ser reiterada a pergunta vocecirc continua

achando esta foto [menor] verdadeira - a resposta eacute de novo sim

Chegamos aqui ao dado significativo A -resposta surpreende-nos mas

ilustra muito bem uma certa noccedilatildeo de verdade noccedilatildeo muito mais presenshy

te no senso comum de uma sociedade como a nossa do que tagravelvez gostariacuteashy

mos A testemunha trazia a convicccedilatildeo de que a verdade estava em cada

pedacinho da foto como tambeacutem da realidade Aquele canto da imagem

aquele fragmentoacute extraiacutedo da maior foi obtido sem que se adulshy

terasse cada ponto da foto sem maquiagem sem alteraccedilatildeo das

que lhe satildeo internas Logo conteacutem a verdad~ Eacute uma imagem

as duas figuras estiveram efetivamente juntas diante da cacircmera

importa aiacute o contexto) O recorte definidor da moldura natildeo incomodou

a testemunha para quem a verdade eacute soma estaacute em cada parte

Em nossa cultura o processo fotograacutefico tem grande poder sobre as

convicccedilotildees desse tipo de observador assim embalado pela evidecircncia

empiacuterica trazida pela imagem Mais ateacute do que a acuidade da reproduccedilatildeo

(eixo da semelhanccedila) a imagem fotograacutefica (e cinematograacutefica) ganha

autenticidade porque corresponde a u~ registro automaacutetico ela se imprishy

me na emulsatildeo sensiacutevel por um processo objetivo sustentado na causalishy

dade fotoquiacutemica Como resultado do encontro entre o olhar do sistema

de lentes (a objetiva da e o acontecimento fica depositada uma

desse que funciona como um documento Quando se esquece a

funccedilatildeo do recorte prevalecendo a feacute na evidecircncia da imagem isolada

temos um sujeito totalmente cativo do processo de simulaccedilatildeo por mais

que ele pareccedila Caso tiacutepico eacute o dessa testemunha de McCarthv a consagrar o engodo de uma promotoria

Diantc de tal feacute na imagem nossa primeira operaccedilatildeo eacute reverter o

processo e chamar a atenccedilatildeo para a moldura para a entre a foto e

seu entorno para o fato de que o sentido se tece a partir das relaccedilotildees entre

o visiacutevel e o invisiacutevcl de cada situaccedilatildeo Vou aqui um pouco adiante para

ressaltar o quanto aleacutem da foto e de seu contexto haacute que se inserir no

tambeacutem o universo do observador e o tipo de pergunta que ele endereccedila agrave

imagem Ou seja dentro de que se daacute a leitura e ao longo de que

eixo opotildeem-se verdade e revelaccedilatildeo e engano Voltando agrave foto

menor apresentada pelo advogado constatamos num niacutevel mais elemenshy

tar de interrogaccedilatildeo que ela produz um resiacuteduo de documento na imagem

dos interlocutores (sua postura e suas roupas indicam certo estilo etc) No

entanto a ilegitimidade da foto eacute flagrante quando fabrico o fato convershy

sa isolada c o evidecircncia da culpabilidade interessado na dimensatildeo

poliacutetica da imagem Quando pergunto pela autenticidade de uma imagem

natildeo estou portanto discutindo sua verdade em sentido absoluto incondishy

cionado Natildeo discuto a existecircncia das dadas ao olhar Pergunto

pela significaccedilatildeo do que eacute dado a ver numa interrogaccedilatildeo cuja resposta

mobiliza dois referenciais o da foto (enquadre e moldura) que definc um

campo visiacutevel e seus limites e o do observador que define um campo de

Questotildees e seu estatuto seu lugar na ellperiecircncia individual e coletiva

No cinema as entre visiacutevel e invisiacutevel a interaccedilatildeo entre o

dado imediato e sua significaccedilatildeo tornam-se mais intrincadas A sucessatildeo

de imagens criada montagem relaccedilotildees novas a todo instante e

somos sempre levados a estabelecer ligaccedilotildees propriamente natildeo existentes

na tela A montagem sugere noacutes deduzimos As significaccedilotildees engendramshy

se menos por forccedila de isolamentos (como na foto comentada) e mais por

forccedila de contextualizaccedilotildees para as quais o cinema possui uma liberdade inshy

vejaacutevel Eacute sabido que a combinaccedilatildeo de imagens cria significados natildeo preshy

sentes em cada uma isoladamertte Eacute ceacutelebre o experimento do cineasta

russo Kulechov primeiro grande teoacuterico da montagem Selecionando uma

uacuteniea tomada do rosto de um ator e inserindo-a em contextos

chegou a conclusotildees radicais a cada combinaccedilatildeo o rosto parecia expressar

algo bem diferente num espectro que incluiacutea ternura fome alegria

A elasticidade admitida por Kulechov num primeiro momento (anos

foi depois atenuada por ele proacuteprio e seria hoje ingecircnuo supor um

poder absoluto da montagem nesses casos Dentro de determinados limishy

tes jaacute no periacuteodo do cinema mudo era comum a utilizaccedilatildeo da diferenccedila enshy

tre as circunstacircncias da filmagem e as da imagem na tela para sugerir um

33

acontecimento ou dar significado particular a um rosto em close-up

Pudovkin ao realizar A matildee [I926] queria uma expressatildeo particular de

no rosto do heroacutei numa cena em que na prisatildeo ele recebe uma

mensagem de sua matildee trazendo esperanccedilas de liberdade O jovem ator

natildeo conseguiu a expressatildeo pedida o cineasta buscou outra soluccedilatildeo Surshy

o ator num momento desavisado numa circunstacircncia de riso e

filmou seu rosto que reagia a um estiacutemulo completamente estrashy

nho agrave cena do heroacutei Combinou a imagcm registrada com as cenas

vizinhas no filme e julgou saacircsfatoacuterio o efeito obtido Se imagem do

ator eacute um material no qual a montagem inocular um se~tido esse foi

e ainda hoje eacute um dado de desconforto para muita gente Os atores tecircm

razatildeo em desconfiar dessa distacircncia entre seu trabalho e a percepccedilatildeo de

sua imagem na tela Operaccedilotildees como essa de Pudovkin desde cedo entrashy

ram na rotina do trabalho Muitos teoacutericos tecircm se interessado pela discusshy

satildeo de diferentes aspectos dessa manipulaccedilatildeo que ilustra com bastante

evidecircncia a relatividade das expressotildees e das performances no cinema

Comparando a questatildeo dos atores a serviccedilo da ficccedilatildeo com a da foto

observada no tribunal ganha toda ecircnfase a importacircncia da pergunta que

o observador dirige agrave imagem em funccedilatildeo de sua proacutepria circunstacircncia e

interesse Afinal na condiccedilatildeo de espectador de um filme de ficccedilatildeo estou

no de quem aceita o do faz-de-contaacute de quem sabe estar dianshy

te de representaccedilotildees e portanto natildeo vecirc cabimento em discutir questotildees

de legitimidade ou autenticidade no niacutevel da testemunha de tribunal

Aceito e ateacute acho bem-vindi~ o artifiacutecio do diretor que muda o signif shy

do de um gesto - o essencial eacute a imagem ser convincente dentro dos proshy

poacutesitos do filme que procuraacute instaiirar um mundo imaginaacute

A partir de imagens deesquiilas fachadas e avenidas o cinema cria

uma nova geografia com friigmenros de diferentes corpos um novo corshy

po com segmentos de ereaccedilOtildees um fato que soacute existe na tela Natildeo

questiono a cidade imaginaacuteiacutea - o vejo na tela natildeo corresponde por

exemplo ao Rio ou agrave Satildeo PaJlo que conheccedilo Natildeo cabe perguntar de quem

eacute o corpo imaginaacuterio ou qual aestnIacutetura real de um espaccedilo visto na tela em

fragmentos Se assim o o espectador rompe o pacto que assina ao

34

entrar na sala escura para assistir a um filme que tem

res Diante da imagem apresentada como prova em a Clrcunsshy

tacircncia e o compromisso satildeo outros o eixo da verdade e da mentira requer

criteacuterios proacuteprios Para iludir convencer eacute necessaacuterio competecircncia e frtz

parte dessa saber antecipar com precisatildeo a moldura do observador as cirshy

cunstacircncias da recepccedilatildeo da os em jogo Embora pareccedila

a leitura da imagem natildeo eacute imediata Ela resulta de um processo em que

intervecircm natildeo soacute as mediaccedilotildees que estatildeo na esfera do olhar que produz a

imagem mas tambeacutem aquelas presentes na esfera do olhar que as recebe

Este natildeo eacute inerte pois armado participa do

o OLHAH DO CINEMA COMO MEDIACcedilAtildeO

Haacute entre o aparato cinematograacutefico e o olho natural uma seacuterie de elemenshy

tos e operaccedilotildees comuns que favorecem uma identificaccedilatildeo do meu olhar

com o da cacircmera resultando daiacute um forte sentimento da presenccedila do

mundo emoldurado na tela simultacircneo ao meu saber de sua ausecircncia

(trata-se de e natildeo das proacuteprias coisas) Discutir essa identificaccedilatildeo

e essa presenccedila do mundo em minha consciecircncia eacute em primeiro lugar

acentuar as accedilotildees do aparato que constroacutei o olhar do cinema A imagem

que recebo compotildee um mundo filtrado por um olhar exterior a mim que

me organiza uma aparecircncia das coisas estabelecendo uma ponte mas tamshy

beacutem se interpondo entre mim e o mundo Trata-se de um olhar anterior ao

meu cuja circunstacircncia natildeo se confunde com a minha na sala de projeccedilatildeo

O encontro cacircmeraobjeto (a produccedilatildeo do acontecimento que me eacute dado

ver) e o encontro espectadoraparato de projeccedilatildeo constituem dois moshy

mentos distintos separados por todo um processo Na estatildeo

implicados uma co-presenccedila um compromisso um riSCO um prazer e um

poder de quem tem a possibilidade e escolhe filmar Como espectador

tenho acesso agrave aparecircnci

ou seja sem a circunstacircncia Conteiacutenplo uma imagem sem ter parshy

ticipado de sua produccedilatildeo sem escolher acircngulo distacircncia sem definir uma

perspectiva proacutepria para a observaccedilatildeo Ao contraacuterio das situaccedilotildees de vida

35

em que estou presente ao acontecimento na sala de espetaacuteculos jaacute sentashy

do natildeo tenho o trabalho de buscar diferentes posiccedilotildees para observar o

mundo pois tudo se faz em meu nome antes de meu olhar intervir num

processo que franqueia o que talvez de outro modo seria para mim de

impossiacutevel acesso Espectador de cinema tenho meus privileacutegios Mas

simultaneamente algo me eacute roubado o privileacutegio da escolha

Nesse compromisso de ganhos e perdas aceito e valorizo o olhar

mediador do cinema porque as imagens que ele me oferece tecircm algo de

prodigioso - hoje talvez banalizado advindo de sua liberdade ao invashy

dir a intimidade (uma liberdade da qual usufruo sem riscos) de sua preshy

cisatildeo e destreza nos maiores desafios No cinema posso ver tudo de

perto e bem visto ampliado na tela de modo a ~urpreender detalhes no

fluxo dos acontecimentos e dos gestos A imagem na tela tem sua durashy

ccedilatildeo ela persiste pulsa reserva surpresas Se eacute contiacutenua posso acompashy

nhar um movimento enquanto esse se faz diante da cacircmera se a montashy

gem interveacutem vejo uma sucessatildeo de imagens tomadas de diferentes

acircngulos acompanho a evoluccedilatildeo de um ac~gtntecimento a partir de uma

coleccedilatildeo de pontos de vista via privilegiados especialmente cuishy

dados para que o espetaacuteculo do mundo se faccedila para miiacuten com clareza

dramaticidade beleza As possibilidades abertas pela temporal idade proacuteshy

pria da imagem satildeo infinitas haacute o movimento do mundo observado e o

movimento do olhar do apa~ato que observa Quando a imagem eacute de rosshy

tos tenho a interaccedilatildeo dos olhares (lue se confrontam verdadeira orquesshy

traccedilatildeo o olho que vecirc e o que eacute vi~to tecircm ambos sua dinacircmica proacutepria e

cada um de noacutes jaacute teve ocasiOtildees de avaliar com maior ou menor consciecircnshy

cia a intensidade dos efeitos extraiacutedos dessa orquestraccedilatildeo

O usufruto desse olhar privilegiacuteado natildeo a sua anaacutelise eacute algo que o

cinema tem nos garantido propiciando essa condiccedilatildeo prazerosa de ver

o mundo e estar a salvo ocupar o centro sem assumir encargos Estou preshy

sente sem participar do mundo observado Puro olhar insinuo-me invishy

shrel nos espaccedilos a interceptr os ~ihares de dois interlocutores escrutishy

narreaccedilotildees e gestos explorar ambientes de longe de perto Salto com

velocidade infinita de um poacutento a outro de um tempo a outro Ocupo

posiccedilotildees do olhar sem comprometer o corpo sem os limites do meu corshy

po Na ficccedilatildeo cinematograacutefica junto com a cacircmera estou em toda parte c

em nenhum lugar em todos os cantos ao lado das personagens mas sem

preencher espaccedilo sem ter presenccedila reconhecida Em suma o olhar do

cinema eacute um olhar sem corpo Por isso mesmo ubiacutequo onividente Idenshy

tificado com esse olhar eu espectador tenho o prazer do olhar que natildeo

estaacute situado natildeo estaacute ancorado vejo muito mais e melhor

Observando a experiecircncia por esse acircngulo como entatildeo natildeo exaltar

o cinema Como natildeo pensar sua teacutecnica de base cm termos de

de progresso Retomemos um clima tiacutepico do iniacutecio do seacuteculo

o PRIMEIRO ELOGIO AgraveS DO OLHAR

O MOMENTO DA PROMESSA

Alguns cineastas e estetas dos anos 10-20 deixaram registradas as duas reashy

ccedilotildees a esse lado prodigioso da oferecida pela entatildeo nova teacutecnica de

reproduccedilatildeo Pensaram o cinema quando sua mediaccedilatildeo era um dado inaushy

gural que gerava certas descobertas uma eacuteonstelaccedilatildeo de sentimentos e pershy

cepccedilotildees novos ainda natildeo bem equacionados que exigiacuteam novos conceitos

um trabalho com a linguagem escrita para expressar o lado mais peculiar da

nova experiecircncia Hoje eacute praticamente impossiacutevel recuperar vivamente

aquele momento noacutes que crescemos satur~ados de imagens e nos movemos

num mundo em que o que era antes promessa dc revoluccedilatildeo se faz agora

dado banal do cotidiano experiecircncia reiterada De uma pluralidade de reashy

ccedilotildees elogios desconfianccedilas destaco dois tipos de recepccedilatildeo ao advento do

cinema Na primcira ele eacute observado como coroamento de um projeto jaacute

definido na esfera da representaccedilatildeo na segunda vislumbra-se o cinema

enquanto inauguraccedilatildeo de um universo de expressatildeo sem precedente destishy

nado a provocar uma ruptura na esfera da representaccedilatildeo

Aqueles que o vecircem com simpatia como um coroamento inserem

o cinema na tradiccedilatildeo do espetaacuteculo dramaacutetico mais popular de grande

vitalidade no seacuteculo raquoIX Avaliam que cumprindo os mesmos objetivos

o cinema vai mais longe pois multiplica os recursos da representaccedilatildeo faz o

36 37

I I

espectador mergulhar no drama com mais intensidade O olho sem corshy t po cerca a encenaccedilatildeo torna tudo mais claro enfaacutetico expressivo ao narshy

rar uma histoacuteria o cinema faz fluir as accedilotildees no espaccedilo e no tempo e o I

mundo torna-se palpaacutevel aos olhos da plateacuteia com uma forccedila impensaacutevel I em outras formas de representaccedilatildeo Ou seja em seu tornar visiacutevel a meshy

rdiaccedilatildeo do olha cinematograacutefico otimiza o efeito da ficccedilatildeo cumprindo com

muita competecircncia uma tarefa que na esfera da cultura considera-se como Jproacutepria da arte e em especial dos espetaacuteculos Ao exaltar esse salto na efishy ccedil

iciecircncia dentro d~ continuidade de princiacutepios e funccedilotildees os criacuteticos cineasshy

tas e prod~tores afinados agraves regras do mercado cultural da eacutepoca celebram

o na produccedilatildeo industrial do seacuteculo xx de um projeto que vem do

seacuteculo XVIII e que se definiu na origem para a representaccedilatildeo teatraL

Eacute comum sermos lembrados ~o quanto a cacircmera fotograacutefica constishy

tui uma objetivaccedilatildeo tecnoloacutegica recente de princiacutepios da representaccedilatildeo jaacute I

conhecidos cuja sistematizaccedilatildeo vem do Renascimento italiano (cacircmara i iacuteescura o meacutetodo da perspectiva os efeitos de profundidade na superfiacutecie

da tela) Com a imagem em movimento o representar a dos homens iacute se daacute com a franca hegemonia do ilusionismo a encenaccedilatildeo tal e qual o I real plantado no cinema industrial desde os tempos de D W Griffith

Fato que cristaliza uma heranccedila menos tematizada pela criacutetica a do olhar Ital como constituiacutedo no drama burguecircs Aqui a referecircncia teoacuterica essenshy

cial eacute Diderot No momento em que escreve suas peccedilas e formula a teoria trenovadora do teatro definiuacutedoo drama seacuterio burguecircs do seacuteculo XVIII

~ um elemento central no seu ideaacuterio eacute a criacutetica ao teatro vinculado aos ~

gecircneros claacutessicos - principalmente ao tipo de encenaccedilatildeo que se dava agraves

trageacutedias claacutessicas francesas do seacuteculo XVII Esse teatro por demais ancoshy

rado na palavra depende da exclusiva forccedila poeacutetica do texto desdenhanshy

doo aspecto visual da experiecircncia do palco Ou eacute incapaz de elaboshy

rar a cena propriamente dita tal como o filoacutesofo a entende explorando a

expressividade do gesto e a cocircmposiccedilatildeo visual da cena (os tableaux consshy

truiacutedos pela posiccedilatildeo reciacuteproca dos atores e da cenografia)

Diderot queria um teatro dirigido agrave sensibilidade por meio da reshy

produccedilatildeo integral das aparecircncias do mundo queria um meacutetodo de dar

38

a ver as situaccedilotildees os gestos as emoccedilotildees O ilusionismo fonte do enshy

volvimento da plateacuteia eacute entatildeo assumido como a ponte privilegiada no

caminho da compreensatildeo da experiecircncia humana da assimilaccedilatildeo de

valores da explicitaccedilatildeo de movimentos do coraccedilatildeo Tal demanda proacutepria

do universo da Ilustraccedilatildeo do seacuteculo XVIIl tem seus desdobramentos e

depois da Revoluccedilatildeo Francesa em outra atmosfera social e

explode no teatro popular de 1800 Aiacute se consolida o gecircnero dramaacutetico

de massas por excelecircncia o melodrama Esse tem sido por meio do teashy

tro (seacuteculo do cinema (seacuteculo xx) e da TV (desde

taccedilatildeo mais contundente de uma busca de expressividade

moral) em que tudo se quer ver estampado na superfiacutecie do mundo na

ecircnfase do gesto no trejeito do rosto na eloquumlecircncia da voz Apanaacutegio do

exagero e do excesso o melodrama eacute o gecircnero afim agraves grandes revelashy

ccedilotildees agraves encenaccedilotildees do acesso a uma verdade que se desvenda um

sem-nuacutemero de misteacuterios equiacutevocos pistas falsas vilanias Intenso nas

accedilotildees e sentimentos carrega nas reviravoltas ansioso pelo efeito e a

comunicaccedilatildeo envolvendo toda uma pedagogia em que nosso olhar eacute

convidado a apreender formas mais imediatas de reconhecimento da

virtude ou do pecado N a virada do seacuteculo XIX para o XX natildeo surpreende que a teacutecnica do

cinema entatildeo emergente tenha assumido essa pedagogia e tenha substishy

tuiacutedo o melodrama teatral na satisfaccedilatildeo de uma demanda de ficccedilatildeo na soshy

ciedade Quando falo em ilusionismo reproduccedilatildeo das aparecircncias na vershy

dade que adveacutem do conflito de forccedilas que se expressam e se revelam pelo

olhar estou afirmando princiacutepios da representaccedilatildeo aos quais o cinema vem

se ajustar como uma luva Como braccedilo da induacutestria cultural ele

do movimento de objetivaccedilatildeo institucional da Ilustraccedilatildeo Sua

do olhar melodramaacutetico eacute o ponto-limite de um projeto de expressatildeo

total da natureza na representaccedilatildeo Reflete um ideal de domiacutenio e controshy

le da aparecircncia como sinal de conhecimento da natureza um ideal que

inscreve a arte como espelho pedagoacutegico que requer a competecircncia tecnoshy

loacutegica de criar ilusatildeo e por essamiddotvia atingir a sensibilidade a passagem

das trevas agrave luz se faz de efeitos sobre o olhar

39

Dentro do projeto de revelaccedilatildeo do mundo para o olhar os efeitos do

close-up logo adquirem a condiccedilatildeo de emblema das virtudes da nova arte

Mais do que a montagem - sua condiccedilatildeo preacutevia - o close-up na Franccedila e

nos Estados Unidos atrai o dos cineacutefilos corno ponto de condenshy

de um drama que se faz movimento dos olhos - o que vecirc e o

que eacute visto - e pela trama formada pela sucessatildeo de detalhes

e reveladores Corno movimento em direccedilatildeo agrave intimidade e V1stO corno

potecircncia maior do cinema que muito cedo impressionou a todos pela sua

capacidade de devastaccedilatildeo das intenccedilotildees ocultas do pequeno gesto fora do

alcance dos interlocutores do movimento facial que trai um sentimento

Natildeo foi preciso a manifestaccedilatildeo da criacutetica cineastas e produtores conduzishy

ram as experiecircncias reveladoras da forccedila dramaacutetica do rosto isolado na e usando a tradicional muito antes de 1920 jaacute insshy

truiacutea seus atores para a dos olhos - janela da alma _ trazishy

dos para perto no close-up para o exame

Foco das atenccedilotildees e dos o close-up estaraacute em I920 tambeacutem

no centro das reflexotildees de quem afastado dos valores promovidos pela

induacutestria do cinema observa seus prodiacutegios com outra moldura de inteshy

resses e julga os filmes do mercado por demais domesticados pela

demanda de ficccedilatildeo que induz o novo meio a seguir os passos do teatro e

da literatura popular Encontramos aqui quem vecirc o cinema como ruptushy

ra espectadores avessos aos do filme de accedilatildeo corrente cinecircfilos

natildeo interessados na fluecircncia dos acontecimentos no pulsar da

nas tensotildees dramaacuteticas usuais Por intermeacutedio deles o cinema uma

recepccedilatildeo mais empenhada em surpreender aspectos da plaacutestica da imashy

gem do trabalho da cacircmera e da presenccedila peculiar do mundo na tela que

permanecem recalcados na visatildeo dominante Para esse olhar diferenciashy

do por meio do cinema toda urna esfera nova de percepccedilotildees abre-se agrave

nossa experiecircncia desde que sejamos capazes de entender a expressividashy

de da nova imagem em outros termos elogiando sim o mas denshy

tro de urna outra oacutetica a de quem entende o cinema natildeo como coroamenshy

to do ilusionismo teatral mas como ruptura inauguraccedilatildeo de um novo diaacutelogo com a natureza e os homens

4deg

Satildeo os intelectuais e artistas ligados agrave arte moderna que lideram essa

nova leitura do cinema de uma perspectiva que na Franccedila traduziu-se no

cineacutema davant-garde nas experiecircncias dos surrealistas e nas polecircmicas

que tiveram como pauta a superaccedilatildeo da moldura melodramaacutetica a libershy

taccedilatildeo do olhar sem corpo das amarras da continuidade narrativa a adeshy

da nova arte agrave sua teacutecnica moderna A

fcrentes grupos postos de lado os conflitos que os

cinema destina-se a uma tarefa de redenccedilatildeo A cultural

do Ocidente europeu estaria falida o poder criador preso a convenccedilotildees

obsoletas saturado de referecircncias que o desvigoram Enredado em formas

de pensar e sentir desgastadas o homem culto se vecirc separado da natureshy

za reprimido cercado de mentiras de clichecircs da de maacutescaras

O cinema eacute radicalmente novo inocente e traz a da tecnologia

Ele pode e deve romper essa grade devolvendo aos homens o acesso a

uma natureza alienada pelos artifiacutecios de uma cultura

A vanguarda se estabelece como cultUra de separando o

espaccedilo utoacutepico da verdade (cinema vida futura) e o espaccedilo da mentira da

convenccedilatildeo (tradiccedilatildeo literaacuteria teatro cotidiano burguecircs) Sua feacute no cinema

ancora-se numa ideacuteia de expressatildeo que tambeacutem se apoacuteia na acuidade de

reproduccedilatildeo da aparecircncia proacutepria da nova teacutecnica mas com um traccedilo pecushy

liar que afasta a do pensamento gerado na esfera da induacutestria

Germaine Dulac e Epstein principais porta-vozes da avant-ga

concebem o cinema corno expressividade do mundo num sentido radishy

ca1 Combatem a vaga que nos leva a sob qualquer pretexto

isto expressa aquilo de um modo que equivale a isto significa aquilo

dentro dos variados caminhos pelos quais vamos de um poacutelo a outro do

significante ao significado Reservam expressatildeo para designar um proshy

cesso determinado impelido por forccedilas naturais no a composiccedilatildeo de

forccedilas interior a um organismo deixa narcas na do mesmo shy

eacute o movimento nelo Qual ci Que estaacute no interior vem forcosashy

mente agrave tona a forma

I Cf Xavier Seacutetima arte um cuto moderno (Satildeo Paulo 1978)

41

vel) que o cinema vemcaptar com exclusividade pois fixa os movimenshy

tos na peliacutecula sem as atrapalhaccedilotildees do olho natural O cinema tem seu

vigor proacuteprio de um olhar mais automaacutetico

natildeo maculado pelos preconceitos culturais

dade Eacute irocircnico que justamente porque natildeo tem interioridade o olhar

da maacutequina possa atingir o princiacutepio interior dos movimentos revelar a

verdade que organicamente expressa-se em sentido pleno imprime-se

numa textura do mundo que soacute a cacircmera eacute capaz de registrar O proacuteprio

instantacircneo fotograacutefico em sua estrutura mais simples jaacute nos mostra o

quanto a imagem revelada faz emergir dados ocultos que natildeo estavam na

mira do fotoacutegrafo No cinema o movimento poteacutencializa tal desocultashy

mento o qual pode tornar-se mais efetivo quando os cineastas forem cuacutemshy

plices da nova teacutecnica em vez de tentar agrave como no

melodrama a expressividade do fica atrelada a toda uma

cadeia de loacutegica eacute tomada de empreacutestimo agrave do natushy

em que o tOrnar visiacutevel resulta do de uma retoacuterica que ~rH+tia Para

o que era aaequado ao teatro - como ilusionismo do seacuteculo XIX natildeo o eacute para o cinema do seacuteculo xx pois a

imitaccedilatildeo dos gestos antes oferecida a olhos desarmados natildeo resiste agrave anaacuteshy

lise da nova sensibilidade Com o cinema a percepccedilatildeo humana ganhou

um acesso especial agrave intimidade dos processos - ~ele a aparecircncia eacute jaacute uma

anaacutelise O cose-up natildeo eacute o lugar do fingimento eacute uma presenccedila que reveshy

la o que se eacute natildeo o que se pretende ser (inuacuteteis as caretas dos

A aposta da vanguarda estaacute no poder analiacutetico do cinematoshygraacutefico no que ressalta natildeil

espaccedilo) mas tambeacutem as

mente a cacircmera lenta (arnplia(acirco no eixo do tempo) que reveshyIa o mundo em outra e de~cobre-nos a vida secreta que se tece a

nossa volta e em noacutes ganhando ~xpressatildeo nas formas instaacuteveis fora da

nossa consciecircncia que temo~ fixadas pela teacutecnica2 Epstein nos seus

2 Essa aposta no poder analiacutetko do dnema tem uma versatildeo radical moshymento na Uniatildeo Sovieacutetica encarnada rio projeto do Cine-Olho de Vertov gt

42

o ~__ao~ das diferentes velocidades

do movimento animal e dos fenocircmenos Fershy

nand Leacuteger as relaccedilotildees e a forma dos objetos fora de sua inserccedilatildeo

utilitaacuteria no cotidiano Embora natildeo totalmente afinado ao cineacutema dayantshy

garde o surrealismo torna-se o movimento de contestaccedil50 ao cinema inshy

dustrial de maior impacto com sua exploraccedilatildeo da montagem como reveshy

laccedil50 das pulsotildees anatomia do desejo Em diferentes busca-se a

experiecircncia fora do senso comum o olhar em sintonia com ~l~r

do - a sensibilidade efetivamente moderna A

(Epstein) surge entatildeo como nova pedagogia

ccedilatildeo ao cenaacuterio do melodrama - pois o cincma teria como destino

trazer-nos de volta uma cosmologia e um encantamento do mundo para

os quais o cartesianismo e a filosofia da Ilustraccedilatildeo cegos

O horizonte desse renascimento seria a explosatildeo do universo carceraacuterio

da existecircncia atual (para usar a expressatildeo de Walter Benjamin em seu

ceacutelebre ensaio de T936 ao falar de reproduccedilatildeo teacutecnica arte e

A formulaccedilatildeo de Epstein-Dulae eacute questionaacutevel auando examinada a

partir de sua ideacuteia-matriz de expressatildeo

analiacutetico (inegaacutevel) da ~~a~Mrl~ aiacute uma feacute inteshy

gral no dado visiacutevel na caj)acldlde exclusiva de

suas relaccedilotildees internas trazer a verdade agrave tona

agrave ao contexto de cada a~aM~A mais de-

no entanto estaacute no impulso utoacutepico nela presente c no salto teoacuterico

que oferece ao buscar um pensameMo agrave alwra dos aspectos radicalmente

novos da experiecircncia do cinema no inicio do seacuteculo Benjamin o filoacutesofo

atento agraves transformaccedilotildees da sensibilidade geradas pelas novas diraacute

em 1936 A natureza que se dirifie dmera natildeo eacute a mesma que a que se

dirige ao olhar Essas c outras suas - sobre o ator o

gt que procura realizar no cinema documentaacuterio a verdade que desmascara a culshy

tura tradicional A cIacutee Vertov diante dos franceses eacute a

ccedilatildeo que ele estabelece cntre desmascaramento e exposiccedilatildeo dos processos efetivos

da Drodudiacuteo social das relaccedilotildees de atraveacutes do montagem cinematogniacutefica

43

analiacutetico da Imagem retomam muito do repertoacuterio da vanguarda dos anos

20 inserindo a caracterizaccedilatildeo do olhar do cinema numa reflexatildeo mais amshy

pIa sobre teacutecnica e cultura Nessa reflexatildeo a moldura eacute outra mas prevalece

o mesmo movimento de ressaltar o papel subversivo revelado r da fotoshy

grafia e do cinema dentro da cultura europeacuteia A promessa entatildeo se reafirshy

ma sem as premissas de eXflressividade total e de retorno agrave natureza

Com Benjamin ela aSSume um contorno histoacuterico mais bem demarcado eacute

por um persamento mais sensiacutevel agrave contradiccedilatildeo e ao caraacuteter das

forccedilas sociais em conflito Pensamento que nos trouxe uma avaliaccedilatildeo da

questatildeo da arte dentro de uma articulaccedilatildeo mais luacutecida com a conjuntura

poliacutetica e a proacutepria natureza das apostas em na Europa dos anos 30

polarizada por uma confrontaccedilatildeo decisiva entre revoluccedilatildeo e reaccedilatildeo

A CRiacuteTICA DO OLHAR SEM CORPO

No seu elogio ao aspecto revelador do olhar no cinema o pensamento

dos anos 20 colocou o debate em termos de verdade (cinema) emendra

(tradiccedilatildeo cultural) e deu toda ecircnfase agrave cumplicidade entre cinema e natushy

reza solidaacuterios enquanto um organismo e sua expressatildeo visual prontos a

expulsar a simulaccedilatildeo desde que a nova teacutecnica fosse salva de su~ adultera-

promovida pelo universo da mercadoria Por esse a oposishyentre um cinema desejado objeto do recalque e aquele que

realmente impera (a pedagogia da induacutestria orienta-se por uma teleoIOPla o presente eacute o mOmelItO dos entraves que impedem o desenshy

volvimento na direccedilatildeo COrreta eacuteapaz de realizar as promessas da nova

teacutecnica o futuro eacute o preenchimen~o dessas promessas que desde jaacute as vanshy

guardas anunciam e preparam Entre 1920 e J960 os poderes reais inshy

sistiram em repor o mesno cinema dominante o que trouxe em linhas

a reiteraccedilatildeo da mesnla matriz de contestaccedilatildeo O conflito dominanshy

tedominado traduzido em termos de verdade e refez-se ao

longo de eixos diversos Quando prevaleceu um eixo poliacutetico o poacutelo da

verdade (futuro) identificou-se agrave cultura revolucionaacuteria o da mentira

presentet agraves mistificaccedilotildees da reaccedilatildeo Quando prevaleceu um eixo esteacutetishy

co verdade foi poesia originalidade experimentaccedilatildeo mentira foi a rotishy

na do comeacutercio o kitscll industrializado

Natildeo cabe agora a recapitulaccedilatildeo do que foram as diferentes versotildees

desse conflito vanguardacultura de massa em cada e eacutepoca Natildeo o

poderia fazer nem quero pois meu objetivo eacute saltar dessa primeira refleshy

xatildeo dos anos 20 para uma mais proacutexima de gerada no contexto franshy

cecircs poacutes-68 reflexatildeo que abandonou a tradiccedilatildeo de opor verdade e mentishy

ra deslocando a discussatildeo sobre a teacutecnica do cinema

No grande intervalo que a criacutetica avanccedilou na caracterizashy

ccedilatildeo do olhar sem corpo e suas implicaccedilotildees notadamente na avaliaccedilatildeo de

sua estrutura mais comunicativa e sedutora o cinema olhar da

induacutestria da ideologia dominante nos meios Extensatildeo do qlle

chamei olhar melodramaacutetico o cinema claacutessico eacute sua modernizaccedilatildeo Faz

com que ele abandone os excessos maiores do ganhe em

profundidade dramaacutetica amplitude temaacutetica concretizando o ver mais e

melhor do cinema na direccedilatildeo de um ilusionismo mais completo - o cineshy

ma claacutessico eacute o olhar sem corpo atuando em sentido

caracterizaccedilatildeo dos seus poderes apresentada em minha primeira

que de fato ajusta-se mais precisamente a esse estilo particular dOJTIinanshy

te no mercado e natildeo a todo o cinema possiacutevel Eacute nele mais do que em

qualquer outra proposta que vemos realizado o de intensificar ao

extremo nossa relaccedilatildeo com o mundo-objeto fazer tal mundo parecer autocircshy

nomo existente em seu proacuteprio direito natildeo encorajando perguntas na

direccedilatildeo do proacuteprio olhar mediador sua estrutura e comportamento Soshy

mos aiacute convidados a tomar o olhar sem corpo como dado natural

Entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 60 dois grandes

de reflexatildeo conduziram a criacutetica a essa naturalidade postulada pelo cineshy

ma claacutessico a teoria radical do cinema-discurso baseado nas operaccedilotildees da

montagem (o Eisenstein dos anos 20-30 permaneceu aqui a referecircncia

central) e a criacutetica francesa inspirada na fenomenologia tendo como [oco

maior Andreacute Bazin3

3 Cf Bazin Cinema ensaios trad Eloisa Ribeiro (Satildeo Paulo Brasilicnse 1991)

44 45

Falar de Eisenstein exigiria uma abordagem radicalmente distinta da

que faccedilo agora pois sua criacutetica ao ilusionismo COmeccedila com a advertecircncia

de que a imagem cinematograacutefica natildeo deve ser lida c0f110 produto de um

olhar Para ele a suposiccedilatildeo de que houve um encontro uma contiguumlidade

espacial e temporal entre cacircmera e objeto natildeo eacute O dado central e impresshy

cindiacutevel da leitura da imagem Sua presenccedila na tela eacute um fato de natureza

que deve ser observado em seu valor simboacutelico

caracteriacutesticas de sua composiccedilatildeo e sua no Contexto de um discurshy

so que eacute exposiccedilatildeo de ideacuteias natildeo sucessatildeo natural de fatos captados

pelo olhar A diferenccedila entre um plano geral e um cose-up por

muitas vezes natildeo pode ser entendida como olhar versus

olhar de mesmo quando se focaliza o mesmo ODjeto mas como

confronto de duas imagens de valores distintos A diferenccedila eacute de

natildeo de posiccedilatildeo no espaccedilo pois pode natildeo haver COntinuidade e

homogeneidade espacial para que se possa falar num mais perto

- tudo depende do contexto do discurso por imagens

Ao contraacuterio de Eisenstein os criacuteticos inspirados na fenomenologia

endossam e defendem a premissa de que no cinema toda imagem eacute proshy

duto de um olhar - eacute essencial que ela seja vista como tal- e a sucessatildeo

define sempre a atitude do observador diante de um mundo homogecircneo

Agrave imagem-signo de Eisenstein eles opotildeem a imagem-acontecimento agrave

defesa da descontinuidade proacutepria do cineasta russo respondem Com

uma defesa ateacute mais radical do princiacutepio de continuidade jaacute presente na

narraccedilatildeo claacutessica fazendo a ela um reparo fundamental se a imagem em

movimento nos traz a percepccedilatildeo privilegiada do homem como ser lanccedilashy

do no mundo como ser-em-situaccedilatildeo a falsidade do cinema claacutessico estaacute

na manipulaccedilatildeo impliacutecita em sua montagem o olhar sem corpo e a

onividecircncia criam na tela uni mundo abstrato de sentido fechado preshy

julgado e organizado pelo cin~ina Toda montagem eacute discurso manipulashy

ccedilatildeo de Eisenstein de GrUacutefith ou de Bufiacuteuel Em oposiccedilatildeo um criacutetishy

co como Bazin solicita um olhar cinematograacutefico mais afinado ao olho de

um sujeito circunstanciado que p6ssui limites aceita a abertura do

mundo convive com ambiguumlidades Quando pede realismo ele natildeo se

46

deteacutem em consideraccedilotildees de conteuacutedo (o tipo de universo Ciccional ou doshy

cumentaacuterio) Sublinha a postura do olhar em sua interaccedilatildeo com o mundo

tanto mais legiacutetima quanto mais as condiccedilotildees de nosso olhar

ancorado no corpo vivenciando uma duraccedilatildeo e uma circunstacircncia em sua

continuidade trabalhando as incertezas de uma percepccedilatildeo

ultrapassada mundo Daiacute sua minimizaccedilatildeo da montagem (instacircncia

construtora da onividecircncia) sua defesa do plano-seguumlecircncia (olhar uacutenico

sem cortes observando uma em seu um acontecimento

em seu fluir

Numa visatildeo mais atual prestamos atenccedilatildeo especial ao que aproxima

e natildeo apenas ao que afasta o cinema-discurso de Eisenstein e o realismo

existencial de Bazin haacute em ambos novamente a atribuiccedilatildeo de um poder

de verdade e de um poder de mentira encarnados em determinados estishy

los Para Eisenstein haacute um estilo capaz de dizer o mundo social-histoacuterishy

co colocando o cinema como potecircncia maior no plano do conhecimento

Para Bazin O cinema eacute uma espeacutecie de terceiro estado da e exisshy

te um estilo autecircntico na captaccedilatildeo da vivecircncia humana em sua

essencial abertura no tempo

Contra esse pano de fundo da tradiccedilatildeo teoacuterica a intervenccedilatildeo de

]ean-Louis Baudry em 1969-70 em questatildeo a constante promessa de

um estilo mais verdadeiro e dirige seu ataque agraves premissas do cinema em

geral examinando mais a fundo as condiccedilotildees do espectador raciociacuteshy

nio estaacute municiado para analisar o espectador do filme claacutessico mas

fala em cinema tout couTe) 4 O horizonte de seu exame eacute ressaltar o

modo pelo qual a recepccedilatildeo da imagem possui uma estrutura que a seu ver

solapa o reiterado creacutedito - de Eisenstein Griffith Epstein na

da verdade como destinaccedilatildeo fundamental do cinema Ele invershy

te a tradiccedilatildeo e vecirc na simulaccedilatildeo na de efeitos (ilusoacuterios) de

conhecimento o destino maior da nova arte (visatildeo que

4 O mais importante dos textos de Jean-Louis dessa

1970 Os efeitos ideoloacutegicos do de base estaacute publicado em Ismail

Xavier (orll) A experiecircncia do cinema (Rio de Janeiro

47

pela permanecircncia do ilusionismo do cinema industrial) Isso se daacute por

forccedila da proacutepria natureza da teacutecnica cinematograacutefica herdeira das ilusotildees _

da perspectiva da persistecircncia retiniana (natildeo vemos os fotogramas vemos

o que natildeo ocorre na tela ou seja o movimento da imagem e temos a imshy

pressatildeo de continuidade) da falsa autenticidade documental da fotografia

Rearticulando elementos jaacute conhecidos Baudry nos traz uma interpretashy

ccedilatildeo radical que- questiona natildeo estilos particulares de fazer cinema mas o

fundamento mesmo de sua objetividade como teacutecnica essa mes~a objetishy

vidade que tem sido a sustentaccedilatildeo maior das esperanccedilas de verdade Na

nova perspectiva as diferentes posiccedilotildees teoacutericas desde 1920 definem um

pensar o cinema a priori capturado pelas ilusotildees da teacutecnica e desatento agraves

implicaccedilotildees contidas na proacutepria estrutura do olhar da cacircmera tal como se

daacute para noacutes na plateacuteia A teacutecnica tem suas inclinaccedilotildees seus efeitos ideoloacuteshy

gicos e nesse sentido eacute ela mesma que impele o cinema industrial a desenshy

volver seu ilusionismo e trazer o espectador para dentro do mundo ficcioshy

na A forccedila de encantamento desse cinema persiste na histoacuteria porque o

dado crucial em jogo natildeo eacute tanto a imitaccedilatildeo do real na tela _ a reproduccedilatildeo

integral das aparecircncias - mas a simulaccedilatildeo de um certo tipo de sujeito-doshy

olhar pelas operaccedilotildees do aparato cinematograacutefico

Avaliar a potecircncia do olhar sem corpo natildeo eacute entatildeo inventariar as

imagens que ele oferece efocaIacuteIacutezar o seu movimento proacuteprio sua forma

de mediaccedilatildeo o que impiacuteica analisar sua incidecircncia no espectador que

vivenda o poder de clarividecircncia a percepccedilatildeo tota Na sala escura idenshy

tificado com o movimento do olhar da cacircmera eu me represento como

sujeito dessa percepccedilatildeo total capaz de doar sentido agraves coisas sobrevoar as

aparecircncias fazer a siacutentese do mundo Minha emoccedilatildeo estaacute com os fatos

que o olhar segue mas a cbndiccedilatildeo desse envolvimento eacute eu me colocar no

lugar do aparato sintoniz~do com suas operaccedilotildees Com isso incorporo

(ilusoriamente) seus poder~s e ericontro nessa sintonia - solo do entendishy

mento cinematograacutefico - o maior cenaacuterio de simulaccedilatildeo de uma onipotecircnshy

cia imaginaacuteria No cinema faccedilo uma viagem que confirma minha condishy

ccedilatildeo de sujeito tal como a desejo Maacutequina de efeitos a realizaccedilatildeo maior do

cinema seria entatildeo esse efeito-sujeito a simulaccedilatildeo de uma consciecircncia

48

transcendente que descortina o mundo e se vecirc no centro das coisas ao

mesmo tempo que radicalmente separada delas a observar o mundo coshy

mo puro olhar Nessa apropriaccedilatildeo ilusoacuteria da competecircncia ideal do olhar

estou portanto no centro mas eacute o aparato que aiacute me coloca pois eacute dele o

movimento da percepccedilatildeo monitor da minha fantasia

Para Baudry uma filosofia idealista que postula um sujeito transshy

cendente em oposiccedilatildeo ao mundo objetivo que se dispotildee ao conhecimento

encontra aiacute na teacutecnica do cinema sua traduccedilatildeo visiacutevel Toda sua ecircnfase

recai sobre a produccedilatildeo simultacircnea da imagem e do sujeito-observador

onividente A engenharia simuladora do cinema define com o efeitoshy

sujeito seu teatro da percepccedilatildeo total cujo protagonista sou eu-espectador

identificado com o olhar da cacircmera

N esses termos o que dificulta a consolidaccedilatildeo de linguagens alternashy

tivas mais verdadeiras eacute esse pecado original inscrito na teacutecnica Esta

tem na ilusatildeo seu sustentaacuteculo e os percalccedilos das vanguardas devem-se a

que sua aposta eacute reverter a funccedilatildeo daquilo que jaacute nasceu para cumprir

outro destino Digo destino porque a loacutegica dessa teoria transforma o cineshy

ma num oacutergatildeo que surgiu para cumprir um programa o de objetivar na

esfera do visiacutevel estrateacutegias de dominaccedilatildeo especialmente as da classe burshy

guesa que presidiu sua origem Assim antes de instacircncia liberadora subshy

versiva a condiccedilatildeo do cinema eacute preencher uma demanda do proacuteprio unishy

verso carceraacuterio tornando-o mais preciso e poderoso em seu aparato

Haacute uma atmosfera de desencanto instalada a partir dos anos 70 a

formulaccedilatildeo aqui exposta eacute a traduccedilatildeo teacuteoacuterica radical dos impasses da conshy

testaccedilatildeo no cinema Temos o esgotamento de uma teleologia a da teacutecnishy

ca redentora entravada pela poliacutetica e a economia e sua substituiccedilatildeo

por u~a outra a da teacutecnica como instrumento maior de reposiccedilatildeo de um

sistema de poder Em consonacircncia corn a tonalidade da reflexatildeo sobre a

linguagem a cultura e a ideologia naquele momento a teoria do cinema

mais original e polecircmica ressalta o lado sistemaacutetico inelutaacutevel das ilusotildees

e dos enganos do olhar da cacircmera Nesse contexto a proacutepria praacutetica do

cinema amplia o espaccedilo para a reflexatildeo teoacuterica voltada para a questatildeo do

simulacro - a citaccedilatildeo a imagem que-alude agrave imagem o circuito das refeshy

49

recircncias a si mesmo que o cinema leva ao paroxismo entram para valer na

esfera da induacutestria constituem sua nova marca Tal reflexatildeo se faz dentro

de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do

cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura

contemporacircnea A imagem cinematograacutefica eacute entatildeo obseJvada a partir de

sua participaccedilatildeo em outra rede de relaccedilotildees em que natildeo haacute para a

interpretaccedilatildeo (esse tomar a imagem como representaccedilatildeo de algo exterior

a ela) para o juiacutezo da verdade ou mentira em que se a oposlccedilao

aparecircncia (imagem)essecircncia (substacircncia) -nada haacute por traacutes das lmlti~e~ns

elas valem como efeitos-de-superfiacutecie imagem remetendo a imagem fluxo de simulacros

Faccedilo agora uma incursatildeo que natildeo eacute propriamente no terreno da

nova filosofia e das questotildees mais amplas do simulacro na produccedilatildeo

Trata-se de uma anaacutelise particular no niacutevel da engenharia da simulaccedilatildeo

caracterizaccedilatildeo de um efeito na qual natildeo eacute necessaacuterio assumir as noccedilotildees

com a mesma ressonacircncia elas adquiriram na literatura dos anos 80

Fecho a exposiccedilatildeo com a consideraccedilatildeo de um novo exeacutemplo que acredishy

to esclareccedila algumas observaccedilotildees feitas ateacute aqui sobre a interaccedilatildeo entre

espectador e imagem sobre o papel da moldura do sujeito na leitura

Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o

efeito de uma depende de sua ~elaccedilatildeo com o sujeito em determishy

nadas condiccedilotildees Da situaccedilatildeo da testemunha de McCarthy passei a uma

caracterizaccedilatildeo mais detida do olhar do cinema e examinei dois momenshy

tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexatildeo criacuteshy

tica em torno do que hiacute de erigano e rcvelaccedilatildeo nesse olhar A partir de

uma discussatildeo mais sobre a simulaccedilatildeo do fato - na fotografia no

cinema chegamos a uma questatildeo mais especiacutefica a simulaccedilatildeo do sujeishy

to na estrutura mesma (lo olhar cinematograacutefico Dentro da discussatildeo

mais geral o exemplo a envolve uma situaccedilatildeo mais complicada do

quea das fotos do tribunal estaremos no cinema Como inspiraccedilatildeo

terei presentes as liccedilotildees de Baildry sem no entanto incorporar o movishy

mento totalizador de suaacute criacutetica ao olhar do cinema Seu amplo diagnoacutesshy

tico mobilizando a psicaacutenaacutelise tem como pressuposto o fato de sabershy

0

mos o bastante sobre a natureza do espectador de modo a prever o caraacuteshy

tcr de sua identificaccedilatildeo com o aparato a qual assume uma dimensatildeo

uacutenica de adesatildeo agrave imagem por forccedila do efeito-sujeito Como conhecedoshy

res do desejo do espectador denunciamos o conluio desse desejo com o

programa da induacutestria e deduzimos daiacute as alienaccedilotildees do cinema e da

teacuteia Natildeo tenho condiccedilotildees de endossar a generalidade desse saber a resshy

peito do espectador o aparato atua em determinada direccedilatildeo mas a expeshy

riecircncia do cinema inclui outras forccedilas e condiccedilotildees que natildeo se ajustam ao

programa do sistema A formulaccedilatildeo dc Baudry embora inclua com toda

a forccedila a dimensatildeo do desejo do espectador natildeo deixa de ser outra vershy

satildeo das teorias da manipulaccedilatildeo global centradas em excesso no aspecto

da experiecircncia de modo a confundir o processo que efetishy

vamente ocorre com a loacutegica ideal do sistema Focalizo uma situaccedilatildeo

didaacutetica nesse contcxto em que eacute perfeito o funcionamcnto do

aparato cm quc podemos verificar o mecanismo da simulaccedilatildeo em estashy

do digamos de laboratoacuterio

IVIULALAU E PONTO OE VISTA

Toda leitura de eacute pr()(llltatildeo de um ponto de vista o do sujeito

observador natildeo o da objetividade (b irnagetnA condiccedilatildeo dos efeitos

da imagem eacute essa Em particular o ekilO rb apoacuteia-se numa

construccedilatildeo que inclui o fmguh do obSlrVIr1or O simulacro parece o

que natildeo eacute a partir de um pOIHo ele vista () sujeito estaacute aiacute pressuposto Porshy

tanto o processo elc simulaccedilatildeo nlo l o (Li imagemem si mas o da sua

relaccedilatildeo com o sujeito Num (gt1lt1110 elemelltar podemos tomar o cinema

como modelo do processo O (llIC eacute a fjltnilgcm senatildeo a organizaccedilatildeo do

I 1 I - C f dacontecllnento pra 11111 angu () (C o lscrvaccedilao o que se con un e com

Nessas asserccedilotildees no de Xavier Audouard Le Simulacrc in

eacutepisteacutemologie de lEcole Normale gtuucushy

rc n mai-jun 1966) O horizonte de Audouard eacute o de uma discussatildeo sobre o

idealismo platocircnico seu terreno eacute ponanto distinto e meu natildeo

ca uma identificaccedilatildeo agrave sua perspectiva de anaacutelise

i J

o da cacircmera e nenhum outro mais) O que eacute a fachada de preacutedio de estuacuteshy

dio senatildeo a duplicaccedilatildeo do mesmo princiacutepio da fachada de rua que sushy

gere o que natildeo eacute justamente quando observada de um certo acircngulo e disshy

tacircncia jaacute pressupostos em sua composiccedilatildeo O que eacute a ficccedilatildeo do cinema

senatildeo uma simulaccedilatildeo de mundo para o espectador identificado com o aparato

Vertigo (Um corpo que cai) O filme de Hitchcock realizado

em 1958 Ele eacute a trama da simulaccedilatildeo por excelecircncia como jaacute foi observashy

do pela criacutetica Trago um aspecto novo agrave consideraccedilatildeo o do espelhamenshy

to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e

o proacuteprio princiacutepio da narraccedilatildeo do filme Tal como em outras obras de

Hitchcltck o cinepa c1aacutessi~o aqui operagrave com eficiecircncia maacutexima e ao

mesmo tempo oferece a metaacutefora viva para o seu proacuteprio processo Inteshy

ressado nessa metaacutefora acentuo nesta anaacutelise a mecacircnica da simulaccedilacirco o

funcionamento exterior do aparato natildeo o que nas personagens eacute desejo

do estratagema e disposiccedilatildeo para a vertigem da imagem

Sigamos passo a passo a narrativa ateacute o ponto que interessa

Vertigem tiacutetulo original eacute a palavra que condensa as ideacuteias-forccedila

do filme em sua tematiacutezaccedilatildeo do olhar e do ponto de vista A apresentaccedilatildeo

de Vertigo criaccedilatildeo de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em

close-up tratado como maacutescara enigmaacutetica imoacutevel Uma aproximaccedilatildeo

maior e um passeio da cacircmcra examinam essa maacutescara em seus detalhes

ateacute que isolado o olho ofereccedila os sinais de vida Os seus movimentos no

entanto natildeo criam uma ~xpressatildeo definida uma intcncionalidade do olhar

Preparam apenas o cenaacuterio ptra um movimentoem espiral na profundishy

dade Mergulho na inteacuteiioridaacutedc cujo fundo inatingiacutevel estaacute sempre em

recesso Aproximaccedilatildeo e recuo atraccedilatildeo e fuga a ambiguumlidade do movishy

mento da espiral ~ experiecircncia matriz de todo o filme cujo eixo eacute o

percurso de profissional do olhar detetive personificaccedilatildeo da

vertigem Logo na primeira sequumlecircncia define-se a questatildeo desse protagoshy

nista numa perseguiccedilatildeo telhados de Satildeo Francisco a vertigem de Scottie o faz responsaacuteveacutel pela morte de um

tentar ajudaacute-lo Sentimeriacuteto de cu1Da aposentadoria

52

lecida a disponibilidade total de a situaccedilatildeo-chave de Vertigo deseshy

nha-se quando ele atende ao chamado de Elster de escola que

no reencontro surpreende-o com o pedido para que sua mulher

Madeleine Elster mostra-se apreensivo com as manifestaccedilotildees de ausecircnshy

cia que ela apresenta com os periacuteodos de comportamento estranho em

que ela parece ser outra pessoa de que retoma sem lembranccedilas

O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma

proposto Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine pesquisa pela

recolhe dados essenciais Um primeiro quadro se compotildee a

ra que dela se apossa em seus transes eacute Cadota Valdez mulher que viveu

em San Francisco no seacuteculo XIX e que se suicidou em circunstacircncias meshy

lancoacutelicas Novamente com Elster Scottie relata as descobertas O marishy

do introduz novo dado Madeleine estaacute em perigo de vida pois descende

de Carlota outras mulheres da linhagem cometeram suiciacutedio e ela tem

agora a idade de Carlota ao morrer

Na primeiraacute seacuterie de passeios de Madeleine fase em que se compotildec

o quadro tivemos uma ostensiva duplicaccedilatildeo num primeiro plano Scortie

observa MadeJeine que natildeo reconhece sua presenccedila (ele estaacute fora do tershy

ritoacuterio dela) e se potildee disponiacutevel ao olhar movimentando-se como numa

cena num segundo plano ao longo do mesmo eixo a cacircmera observa

Scottie que Madeleine Satildeo duas uma dentro da outra que

natildeo se tocam Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele ambos enquadra~

dos por noacutes no lugar da cacircmera Madeleine nunca devolve o olhar a Scotshy

tie devolve o olhar agrave cacircmera (regra do filme claacutessico) Mas eacute

ambiacutegua essa passividade pois eacute o movimento dela que dirige o olhar

dele eacute a accedilatildeo de ambos que dirige o nosso olhar sempre na esteira do

acircngulo de de Scottie com quem partilhamos a ignoracircncia a

curiosidade a descoberta

Apoacutes a segunda conversa com Elster o tema do suiciacutedio engendra

uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria MadeleineCarlota

atira-se nas aacuteguas da baiacutea de San Francisco Scottie a resgata Permaneceshy

mos puro olhar ele passa ao plano da intervenccedilatildeo e do diaacutelogo Com os

dois juntos certa concretude o que em Scottie eacute jaacute sonho romacircnshy

53

tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do

filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs

do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e

terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM

sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a

lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute

coloca adiante dele na investigaccedilatildeo

A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy

satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela

que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e

com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy

gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave

de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre

alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se

e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos

da escada retido pela vertigem - e somos retidos

com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai

O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um

psicologicamente massacrado Elsshy

natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco

destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar

em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um

dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras

no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de

Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus

motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade

(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy

to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme

natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente

natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy

54

dos no quarto ficamos ao lado de

sem delongas que natildeo espera o final

Sozinha no quarto hesitante nervosa

assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy

a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy

para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade

para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy

blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez

de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao

topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o

mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre

Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou

resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda

para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas

posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy

ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema

bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia

apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do

suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo

de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy

dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as

imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()

prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a

loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy

lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy

leine-Carlota em a Scottic

O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse

mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy

vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade

e o de (a natildeo foi apenas para ele a

Urna leimra mais completa de Vertigo exishy

~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy

para o estratagema do as permanecem na

55

esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy

sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas

consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui

afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte

final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema

No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo

na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a

reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos

nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que

era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy

satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy

tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy

sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da

outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o

estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy

nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy

Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a

accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata

Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave

moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo

nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir

de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma

questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy

posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy

to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o

espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)

6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy

ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin

Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a

psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense

1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ

Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se

uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy

co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para

finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do

cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy

nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy

ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens

do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que

nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle

de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta

o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos

entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve

a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim

oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos

a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy

so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu

ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa

segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista

muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da

relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar

e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo

eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de

imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo

vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz

de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos

Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy

te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo

implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas

colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo

com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que

fora do campo torna visiacutevel

56 57

Page 4: Ismail Xavier Cinema Revelacaoengano

acontecimento ou dar significado particular a um rosto em close-up

Pudovkin ao realizar A matildee [I926] queria uma expressatildeo particular de

no rosto do heroacutei numa cena em que na prisatildeo ele recebe uma

mensagem de sua matildee trazendo esperanccedilas de liberdade O jovem ator

natildeo conseguiu a expressatildeo pedida o cineasta buscou outra soluccedilatildeo Surshy

o ator num momento desavisado numa circunstacircncia de riso e

filmou seu rosto que reagia a um estiacutemulo completamente estrashy

nho agrave cena do heroacutei Combinou a imagcm registrada com as cenas

vizinhas no filme e julgou saacircsfatoacuterio o efeito obtido Se imagem do

ator eacute um material no qual a montagem inocular um se~tido esse foi

e ainda hoje eacute um dado de desconforto para muita gente Os atores tecircm

razatildeo em desconfiar dessa distacircncia entre seu trabalho e a percepccedilatildeo de

sua imagem na tela Operaccedilotildees como essa de Pudovkin desde cedo entrashy

ram na rotina do trabalho Muitos teoacutericos tecircm se interessado pela discusshy

satildeo de diferentes aspectos dessa manipulaccedilatildeo que ilustra com bastante

evidecircncia a relatividade das expressotildees e das performances no cinema

Comparando a questatildeo dos atores a serviccedilo da ficccedilatildeo com a da foto

observada no tribunal ganha toda ecircnfase a importacircncia da pergunta que

o observador dirige agrave imagem em funccedilatildeo de sua proacutepria circunstacircncia e

interesse Afinal na condiccedilatildeo de espectador de um filme de ficccedilatildeo estou

no de quem aceita o do faz-de-contaacute de quem sabe estar dianshy

te de representaccedilotildees e portanto natildeo vecirc cabimento em discutir questotildees

de legitimidade ou autenticidade no niacutevel da testemunha de tribunal

Aceito e ateacute acho bem-vindi~ o artifiacutecio do diretor que muda o signif shy

do de um gesto - o essencial eacute a imagem ser convincente dentro dos proshy

poacutesitos do filme que procuraacute instaiirar um mundo imaginaacute

A partir de imagens deesquiilas fachadas e avenidas o cinema cria

uma nova geografia com friigmenros de diferentes corpos um novo corshy

po com segmentos de ereaccedilOtildees um fato que soacute existe na tela Natildeo

questiono a cidade imaginaacuteiacutea - o vejo na tela natildeo corresponde por

exemplo ao Rio ou agrave Satildeo PaJlo que conheccedilo Natildeo cabe perguntar de quem

eacute o corpo imaginaacuterio ou qual aestnIacutetura real de um espaccedilo visto na tela em

fragmentos Se assim o o espectador rompe o pacto que assina ao

34

entrar na sala escura para assistir a um filme que tem

res Diante da imagem apresentada como prova em a Clrcunsshy

tacircncia e o compromisso satildeo outros o eixo da verdade e da mentira requer

criteacuterios proacuteprios Para iludir convencer eacute necessaacuterio competecircncia e frtz

parte dessa saber antecipar com precisatildeo a moldura do observador as cirshy

cunstacircncias da recepccedilatildeo da os em jogo Embora pareccedila

a leitura da imagem natildeo eacute imediata Ela resulta de um processo em que

intervecircm natildeo soacute as mediaccedilotildees que estatildeo na esfera do olhar que produz a

imagem mas tambeacutem aquelas presentes na esfera do olhar que as recebe

Este natildeo eacute inerte pois armado participa do

o OLHAH DO CINEMA COMO MEDIACcedilAtildeO

Haacute entre o aparato cinematograacutefico e o olho natural uma seacuterie de elemenshy

tos e operaccedilotildees comuns que favorecem uma identificaccedilatildeo do meu olhar

com o da cacircmera resultando daiacute um forte sentimento da presenccedila do

mundo emoldurado na tela simultacircneo ao meu saber de sua ausecircncia

(trata-se de e natildeo das proacuteprias coisas) Discutir essa identificaccedilatildeo

e essa presenccedila do mundo em minha consciecircncia eacute em primeiro lugar

acentuar as accedilotildees do aparato que constroacutei o olhar do cinema A imagem

que recebo compotildee um mundo filtrado por um olhar exterior a mim que

me organiza uma aparecircncia das coisas estabelecendo uma ponte mas tamshy

beacutem se interpondo entre mim e o mundo Trata-se de um olhar anterior ao

meu cuja circunstacircncia natildeo se confunde com a minha na sala de projeccedilatildeo

O encontro cacircmeraobjeto (a produccedilatildeo do acontecimento que me eacute dado

ver) e o encontro espectadoraparato de projeccedilatildeo constituem dois moshy

mentos distintos separados por todo um processo Na estatildeo

implicados uma co-presenccedila um compromisso um riSCO um prazer e um

poder de quem tem a possibilidade e escolhe filmar Como espectador

tenho acesso agrave aparecircnci

ou seja sem a circunstacircncia Conteiacutenplo uma imagem sem ter parshy

ticipado de sua produccedilatildeo sem escolher acircngulo distacircncia sem definir uma

perspectiva proacutepria para a observaccedilatildeo Ao contraacuterio das situaccedilotildees de vida

35

em que estou presente ao acontecimento na sala de espetaacuteculos jaacute sentashy

do natildeo tenho o trabalho de buscar diferentes posiccedilotildees para observar o

mundo pois tudo se faz em meu nome antes de meu olhar intervir num

processo que franqueia o que talvez de outro modo seria para mim de

impossiacutevel acesso Espectador de cinema tenho meus privileacutegios Mas

simultaneamente algo me eacute roubado o privileacutegio da escolha

Nesse compromisso de ganhos e perdas aceito e valorizo o olhar

mediador do cinema porque as imagens que ele me oferece tecircm algo de

prodigioso - hoje talvez banalizado advindo de sua liberdade ao invashy

dir a intimidade (uma liberdade da qual usufruo sem riscos) de sua preshy

cisatildeo e destreza nos maiores desafios No cinema posso ver tudo de

perto e bem visto ampliado na tela de modo a ~urpreender detalhes no

fluxo dos acontecimentos e dos gestos A imagem na tela tem sua durashy

ccedilatildeo ela persiste pulsa reserva surpresas Se eacute contiacutenua posso acompashy

nhar um movimento enquanto esse se faz diante da cacircmera se a montashy

gem interveacutem vejo uma sucessatildeo de imagens tomadas de diferentes

acircngulos acompanho a evoluccedilatildeo de um ac~gtntecimento a partir de uma

coleccedilatildeo de pontos de vista via privilegiados especialmente cuishy

dados para que o espetaacuteculo do mundo se faccedila para miiacuten com clareza

dramaticidade beleza As possibilidades abertas pela temporal idade proacuteshy

pria da imagem satildeo infinitas haacute o movimento do mundo observado e o

movimento do olhar do apa~ato que observa Quando a imagem eacute de rosshy

tos tenho a interaccedilatildeo dos olhares (lue se confrontam verdadeira orquesshy

traccedilatildeo o olho que vecirc e o que eacute vi~to tecircm ambos sua dinacircmica proacutepria e

cada um de noacutes jaacute teve ocasiOtildees de avaliar com maior ou menor consciecircnshy

cia a intensidade dos efeitos extraiacutedos dessa orquestraccedilatildeo

O usufruto desse olhar privilegiacuteado natildeo a sua anaacutelise eacute algo que o

cinema tem nos garantido propiciando essa condiccedilatildeo prazerosa de ver

o mundo e estar a salvo ocupar o centro sem assumir encargos Estou preshy

sente sem participar do mundo observado Puro olhar insinuo-me invishy

shrel nos espaccedilos a interceptr os ~ihares de dois interlocutores escrutishy

narreaccedilotildees e gestos explorar ambientes de longe de perto Salto com

velocidade infinita de um poacutento a outro de um tempo a outro Ocupo

posiccedilotildees do olhar sem comprometer o corpo sem os limites do meu corshy

po Na ficccedilatildeo cinematograacutefica junto com a cacircmera estou em toda parte c

em nenhum lugar em todos os cantos ao lado das personagens mas sem

preencher espaccedilo sem ter presenccedila reconhecida Em suma o olhar do

cinema eacute um olhar sem corpo Por isso mesmo ubiacutequo onividente Idenshy

tificado com esse olhar eu espectador tenho o prazer do olhar que natildeo

estaacute situado natildeo estaacute ancorado vejo muito mais e melhor

Observando a experiecircncia por esse acircngulo como entatildeo natildeo exaltar

o cinema Como natildeo pensar sua teacutecnica de base cm termos de

de progresso Retomemos um clima tiacutepico do iniacutecio do seacuteculo

o PRIMEIRO ELOGIO AgraveS DO OLHAR

O MOMENTO DA PROMESSA

Alguns cineastas e estetas dos anos 10-20 deixaram registradas as duas reashy

ccedilotildees a esse lado prodigioso da oferecida pela entatildeo nova teacutecnica de

reproduccedilatildeo Pensaram o cinema quando sua mediaccedilatildeo era um dado inaushy

gural que gerava certas descobertas uma eacuteonstelaccedilatildeo de sentimentos e pershy

cepccedilotildees novos ainda natildeo bem equacionados que exigiacuteam novos conceitos

um trabalho com a linguagem escrita para expressar o lado mais peculiar da

nova experiecircncia Hoje eacute praticamente impossiacutevel recuperar vivamente

aquele momento noacutes que crescemos satur~ados de imagens e nos movemos

num mundo em que o que era antes promessa dc revoluccedilatildeo se faz agora

dado banal do cotidiano experiecircncia reiterada De uma pluralidade de reashy

ccedilotildees elogios desconfianccedilas destaco dois tipos de recepccedilatildeo ao advento do

cinema Na primcira ele eacute observado como coroamento de um projeto jaacute

definido na esfera da representaccedilatildeo na segunda vislumbra-se o cinema

enquanto inauguraccedilatildeo de um universo de expressatildeo sem precedente destishy

nado a provocar uma ruptura na esfera da representaccedilatildeo

Aqueles que o vecircem com simpatia como um coroamento inserem

o cinema na tradiccedilatildeo do espetaacuteculo dramaacutetico mais popular de grande

vitalidade no seacuteculo raquoIX Avaliam que cumprindo os mesmos objetivos

o cinema vai mais longe pois multiplica os recursos da representaccedilatildeo faz o

36 37

I I

espectador mergulhar no drama com mais intensidade O olho sem corshy t po cerca a encenaccedilatildeo torna tudo mais claro enfaacutetico expressivo ao narshy

rar uma histoacuteria o cinema faz fluir as accedilotildees no espaccedilo e no tempo e o I

mundo torna-se palpaacutevel aos olhos da plateacuteia com uma forccedila impensaacutevel I em outras formas de representaccedilatildeo Ou seja em seu tornar visiacutevel a meshy

rdiaccedilatildeo do olha cinematograacutefico otimiza o efeito da ficccedilatildeo cumprindo com

muita competecircncia uma tarefa que na esfera da cultura considera-se como Jproacutepria da arte e em especial dos espetaacuteculos Ao exaltar esse salto na efishy ccedil

iciecircncia dentro d~ continuidade de princiacutepios e funccedilotildees os criacuteticos cineasshy

tas e prod~tores afinados agraves regras do mercado cultural da eacutepoca celebram

o na produccedilatildeo industrial do seacuteculo xx de um projeto que vem do

seacuteculo XVIII e que se definiu na origem para a representaccedilatildeo teatraL

Eacute comum sermos lembrados ~o quanto a cacircmera fotograacutefica constishy

tui uma objetivaccedilatildeo tecnoloacutegica recente de princiacutepios da representaccedilatildeo jaacute I

conhecidos cuja sistematizaccedilatildeo vem do Renascimento italiano (cacircmara i iacuteescura o meacutetodo da perspectiva os efeitos de profundidade na superfiacutecie

da tela) Com a imagem em movimento o representar a dos homens iacute se daacute com a franca hegemonia do ilusionismo a encenaccedilatildeo tal e qual o I real plantado no cinema industrial desde os tempos de D W Griffith

Fato que cristaliza uma heranccedila menos tematizada pela criacutetica a do olhar Ital como constituiacutedo no drama burguecircs Aqui a referecircncia teoacuterica essenshy

cial eacute Diderot No momento em que escreve suas peccedilas e formula a teoria trenovadora do teatro definiuacutedoo drama seacuterio burguecircs do seacuteculo XVIII

~ um elemento central no seu ideaacuterio eacute a criacutetica ao teatro vinculado aos ~

gecircneros claacutessicos - principalmente ao tipo de encenaccedilatildeo que se dava agraves

trageacutedias claacutessicas francesas do seacuteculo XVII Esse teatro por demais ancoshy

rado na palavra depende da exclusiva forccedila poeacutetica do texto desdenhanshy

doo aspecto visual da experiecircncia do palco Ou eacute incapaz de elaboshy

rar a cena propriamente dita tal como o filoacutesofo a entende explorando a

expressividade do gesto e a cocircmposiccedilatildeo visual da cena (os tableaux consshy

truiacutedos pela posiccedilatildeo reciacuteproca dos atores e da cenografia)

Diderot queria um teatro dirigido agrave sensibilidade por meio da reshy

produccedilatildeo integral das aparecircncias do mundo queria um meacutetodo de dar

38

a ver as situaccedilotildees os gestos as emoccedilotildees O ilusionismo fonte do enshy

volvimento da plateacuteia eacute entatildeo assumido como a ponte privilegiada no

caminho da compreensatildeo da experiecircncia humana da assimilaccedilatildeo de

valores da explicitaccedilatildeo de movimentos do coraccedilatildeo Tal demanda proacutepria

do universo da Ilustraccedilatildeo do seacuteculo XVIIl tem seus desdobramentos e

depois da Revoluccedilatildeo Francesa em outra atmosfera social e

explode no teatro popular de 1800 Aiacute se consolida o gecircnero dramaacutetico

de massas por excelecircncia o melodrama Esse tem sido por meio do teashy

tro (seacuteculo do cinema (seacuteculo xx) e da TV (desde

taccedilatildeo mais contundente de uma busca de expressividade

moral) em que tudo se quer ver estampado na superfiacutecie do mundo na

ecircnfase do gesto no trejeito do rosto na eloquumlecircncia da voz Apanaacutegio do

exagero e do excesso o melodrama eacute o gecircnero afim agraves grandes revelashy

ccedilotildees agraves encenaccedilotildees do acesso a uma verdade que se desvenda um

sem-nuacutemero de misteacuterios equiacutevocos pistas falsas vilanias Intenso nas

accedilotildees e sentimentos carrega nas reviravoltas ansioso pelo efeito e a

comunicaccedilatildeo envolvendo toda uma pedagogia em que nosso olhar eacute

convidado a apreender formas mais imediatas de reconhecimento da

virtude ou do pecado N a virada do seacuteculo XIX para o XX natildeo surpreende que a teacutecnica do

cinema entatildeo emergente tenha assumido essa pedagogia e tenha substishy

tuiacutedo o melodrama teatral na satisfaccedilatildeo de uma demanda de ficccedilatildeo na soshy

ciedade Quando falo em ilusionismo reproduccedilatildeo das aparecircncias na vershy

dade que adveacutem do conflito de forccedilas que se expressam e se revelam pelo

olhar estou afirmando princiacutepios da representaccedilatildeo aos quais o cinema vem

se ajustar como uma luva Como braccedilo da induacutestria cultural ele

do movimento de objetivaccedilatildeo institucional da Ilustraccedilatildeo Sua

do olhar melodramaacutetico eacute o ponto-limite de um projeto de expressatildeo

total da natureza na representaccedilatildeo Reflete um ideal de domiacutenio e controshy

le da aparecircncia como sinal de conhecimento da natureza um ideal que

inscreve a arte como espelho pedagoacutegico que requer a competecircncia tecnoshy

loacutegica de criar ilusatildeo e por essamiddotvia atingir a sensibilidade a passagem

das trevas agrave luz se faz de efeitos sobre o olhar

39

Dentro do projeto de revelaccedilatildeo do mundo para o olhar os efeitos do

close-up logo adquirem a condiccedilatildeo de emblema das virtudes da nova arte

Mais do que a montagem - sua condiccedilatildeo preacutevia - o close-up na Franccedila e

nos Estados Unidos atrai o dos cineacutefilos corno ponto de condenshy

de um drama que se faz movimento dos olhos - o que vecirc e o

que eacute visto - e pela trama formada pela sucessatildeo de detalhes

e reveladores Corno movimento em direccedilatildeo agrave intimidade e V1stO corno

potecircncia maior do cinema que muito cedo impressionou a todos pela sua

capacidade de devastaccedilatildeo das intenccedilotildees ocultas do pequeno gesto fora do

alcance dos interlocutores do movimento facial que trai um sentimento

Natildeo foi preciso a manifestaccedilatildeo da criacutetica cineastas e produtores conduzishy

ram as experiecircncias reveladoras da forccedila dramaacutetica do rosto isolado na e usando a tradicional muito antes de 1920 jaacute insshy

truiacutea seus atores para a dos olhos - janela da alma _ trazishy

dos para perto no close-up para o exame

Foco das atenccedilotildees e dos o close-up estaraacute em I920 tambeacutem

no centro das reflexotildees de quem afastado dos valores promovidos pela

induacutestria do cinema observa seus prodiacutegios com outra moldura de inteshy

resses e julga os filmes do mercado por demais domesticados pela

demanda de ficccedilatildeo que induz o novo meio a seguir os passos do teatro e

da literatura popular Encontramos aqui quem vecirc o cinema como ruptushy

ra espectadores avessos aos do filme de accedilatildeo corrente cinecircfilos

natildeo interessados na fluecircncia dos acontecimentos no pulsar da

nas tensotildees dramaacuteticas usuais Por intermeacutedio deles o cinema uma

recepccedilatildeo mais empenhada em surpreender aspectos da plaacutestica da imashy

gem do trabalho da cacircmera e da presenccedila peculiar do mundo na tela que

permanecem recalcados na visatildeo dominante Para esse olhar diferenciashy

do por meio do cinema toda urna esfera nova de percepccedilotildees abre-se agrave

nossa experiecircncia desde que sejamos capazes de entender a expressividashy

de da nova imagem em outros termos elogiando sim o mas denshy

tro de urna outra oacutetica a de quem entende o cinema natildeo como coroamenshy

to do ilusionismo teatral mas como ruptura inauguraccedilatildeo de um novo diaacutelogo com a natureza e os homens

4deg

Satildeo os intelectuais e artistas ligados agrave arte moderna que lideram essa

nova leitura do cinema de uma perspectiva que na Franccedila traduziu-se no

cineacutema davant-garde nas experiecircncias dos surrealistas e nas polecircmicas

que tiveram como pauta a superaccedilatildeo da moldura melodramaacutetica a libershy

taccedilatildeo do olhar sem corpo das amarras da continuidade narrativa a adeshy

da nova arte agrave sua teacutecnica moderna A

fcrentes grupos postos de lado os conflitos que os

cinema destina-se a uma tarefa de redenccedilatildeo A cultural

do Ocidente europeu estaria falida o poder criador preso a convenccedilotildees

obsoletas saturado de referecircncias que o desvigoram Enredado em formas

de pensar e sentir desgastadas o homem culto se vecirc separado da natureshy

za reprimido cercado de mentiras de clichecircs da de maacutescaras

O cinema eacute radicalmente novo inocente e traz a da tecnologia

Ele pode e deve romper essa grade devolvendo aos homens o acesso a

uma natureza alienada pelos artifiacutecios de uma cultura

A vanguarda se estabelece como cultUra de separando o

espaccedilo utoacutepico da verdade (cinema vida futura) e o espaccedilo da mentira da

convenccedilatildeo (tradiccedilatildeo literaacuteria teatro cotidiano burguecircs) Sua feacute no cinema

ancora-se numa ideacuteia de expressatildeo que tambeacutem se apoacuteia na acuidade de

reproduccedilatildeo da aparecircncia proacutepria da nova teacutecnica mas com um traccedilo pecushy

liar que afasta a do pensamento gerado na esfera da induacutestria

Germaine Dulac e Epstein principais porta-vozes da avant-ga

concebem o cinema corno expressividade do mundo num sentido radishy

ca1 Combatem a vaga que nos leva a sob qualquer pretexto

isto expressa aquilo de um modo que equivale a isto significa aquilo

dentro dos variados caminhos pelos quais vamos de um poacutelo a outro do

significante ao significado Reservam expressatildeo para designar um proshy

cesso determinado impelido por forccedilas naturais no a composiccedilatildeo de

forccedilas interior a um organismo deixa narcas na do mesmo shy

eacute o movimento nelo Qual ci Que estaacute no interior vem forcosashy

mente agrave tona a forma

I Cf Xavier Seacutetima arte um cuto moderno (Satildeo Paulo 1978)

41

vel) que o cinema vemcaptar com exclusividade pois fixa os movimenshy

tos na peliacutecula sem as atrapalhaccedilotildees do olho natural O cinema tem seu

vigor proacuteprio de um olhar mais automaacutetico

natildeo maculado pelos preconceitos culturais

dade Eacute irocircnico que justamente porque natildeo tem interioridade o olhar

da maacutequina possa atingir o princiacutepio interior dos movimentos revelar a

verdade que organicamente expressa-se em sentido pleno imprime-se

numa textura do mundo que soacute a cacircmera eacute capaz de registrar O proacuteprio

instantacircneo fotograacutefico em sua estrutura mais simples jaacute nos mostra o

quanto a imagem revelada faz emergir dados ocultos que natildeo estavam na

mira do fotoacutegrafo No cinema o movimento poteacutencializa tal desocultashy

mento o qual pode tornar-se mais efetivo quando os cineastas forem cuacutemshy

plices da nova teacutecnica em vez de tentar agrave como no

melodrama a expressividade do fica atrelada a toda uma

cadeia de loacutegica eacute tomada de empreacutestimo agrave do natushy

em que o tOrnar visiacutevel resulta do de uma retoacuterica que ~rH+tia Para

o que era aaequado ao teatro - como ilusionismo do seacuteculo XIX natildeo o eacute para o cinema do seacuteculo xx pois a

imitaccedilatildeo dos gestos antes oferecida a olhos desarmados natildeo resiste agrave anaacuteshy

lise da nova sensibilidade Com o cinema a percepccedilatildeo humana ganhou

um acesso especial agrave intimidade dos processos - ~ele a aparecircncia eacute jaacute uma

anaacutelise O cose-up natildeo eacute o lugar do fingimento eacute uma presenccedila que reveshy

la o que se eacute natildeo o que se pretende ser (inuacuteteis as caretas dos

A aposta da vanguarda estaacute no poder analiacutetico do cinematoshygraacutefico no que ressalta natildeil

espaccedilo) mas tambeacutem as

mente a cacircmera lenta (arnplia(acirco no eixo do tempo) que reveshyIa o mundo em outra e de~cobre-nos a vida secreta que se tece a

nossa volta e em noacutes ganhando ~xpressatildeo nas formas instaacuteveis fora da

nossa consciecircncia que temo~ fixadas pela teacutecnica2 Epstein nos seus

2 Essa aposta no poder analiacutetko do dnema tem uma versatildeo radical moshymento na Uniatildeo Sovieacutetica encarnada rio projeto do Cine-Olho de Vertov gt

42

o ~__ao~ das diferentes velocidades

do movimento animal e dos fenocircmenos Fershy

nand Leacuteger as relaccedilotildees e a forma dos objetos fora de sua inserccedilatildeo

utilitaacuteria no cotidiano Embora natildeo totalmente afinado ao cineacutema dayantshy

garde o surrealismo torna-se o movimento de contestaccedil50 ao cinema inshy

dustrial de maior impacto com sua exploraccedilatildeo da montagem como reveshy

laccedil50 das pulsotildees anatomia do desejo Em diferentes busca-se a

experiecircncia fora do senso comum o olhar em sintonia com ~l~r

do - a sensibilidade efetivamente moderna A

(Epstein) surge entatildeo como nova pedagogia

ccedilatildeo ao cenaacuterio do melodrama - pois o cincma teria como destino

trazer-nos de volta uma cosmologia e um encantamento do mundo para

os quais o cartesianismo e a filosofia da Ilustraccedilatildeo cegos

O horizonte desse renascimento seria a explosatildeo do universo carceraacuterio

da existecircncia atual (para usar a expressatildeo de Walter Benjamin em seu

ceacutelebre ensaio de T936 ao falar de reproduccedilatildeo teacutecnica arte e

A formulaccedilatildeo de Epstein-Dulae eacute questionaacutevel auando examinada a

partir de sua ideacuteia-matriz de expressatildeo

analiacutetico (inegaacutevel) da ~~a~Mrl~ aiacute uma feacute inteshy

gral no dado visiacutevel na caj)acldlde exclusiva de

suas relaccedilotildees internas trazer a verdade agrave tona

agrave ao contexto de cada a~aM~A mais de-

no entanto estaacute no impulso utoacutepico nela presente c no salto teoacuterico

que oferece ao buscar um pensameMo agrave alwra dos aspectos radicalmente

novos da experiecircncia do cinema no inicio do seacuteculo Benjamin o filoacutesofo

atento agraves transformaccedilotildees da sensibilidade geradas pelas novas diraacute

em 1936 A natureza que se dirifie dmera natildeo eacute a mesma que a que se

dirige ao olhar Essas c outras suas - sobre o ator o

gt que procura realizar no cinema documentaacuterio a verdade que desmascara a culshy

tura tradicional A cIacutee Vertov diante dos franceses eacute a

ccedilatildeo que ele estabelece cntre desmascaramento e exposiccedilatildeo dos processos efetivos

da Drodudiacuteo social das relaccedilotildees de atraveacutes do montagem cinematogniacutefica

43

analiacutetico da Imagem retomam muito do repertoacuterio da vanguarda dos anos

20 inserindo a caracterizaccedilatildeo do olhar do cinema numa reflexatildeo mais amshy

pIa sobre teacutecnica e cultura Nessa reflexatildeo a moldura eacute outra mas prevalece

o mesmo movimento de ressaltar o papel subversivo revelado r da fotoshy

grafia e do cinema dentro da cultura europeacuteia A promessa entatildeo se reafirshy

ma sem as premissas de eXflressividade total e de retorno agrave natureza

Com Benjamin ela aSSume um contorno histoacuterico mais bem demarcado eacute

por um persamento mais sensiacutevel agrave contradiccedilatildeo e ao caraacuteter das

forccedilas sociais em conflito Pensamento que nos trouxe uma avaliaccedilatildeo da

questatildeo da arte dentro de uma articulaccedilatildeo mais luacutecida com a conjuntura

poliacutetica e a proacutepria natureza das apostas em na Europa dos anos 30

polarizada por uma confrontaccedilatildeo decisiva entre revoluccedilatildeo e reaccedilatildeo

A CRiacuteTICA DO OLHAR SEM CORPO

No seu elogio ao aspecto revelador do olhar no cinema o pensamento

dos anos 20 colocou o debate em termos de verdade (cinema) emendra

(tradiccedilatildeo cultural) e deu toda ecircnfase agrave cumplicidade entre cinema e natushy

reza solidaacuterios enquanto um organismo e sua expressatildeo visual prontos a

expulsar a simulaccedilatildeo desde que a nova teacutecnica fosse salva de su~ adultera-

promovida pelo universo da mercadoria Por esse a oposishyentre um cinema desejado objeto do recalque e aquele que

realmente impera (a pedagogia da induacutestria orienta-se por uma teleoIOPla o presente eacute o mOmelItO dos entraves que impedem o desenshy

volvimento na direccedilatildeo COrreta eacuteapaz de realizar as promessas da nova

teacutecnica o futuro eacute o preenchimen~o dessas promessas que desde jaacute as vanshy

guardas anunciam e preparam Entre 1920 e J960 os poderes reais inshy

sistiram em repor o mesno cinema dominante o que trouxe em linhas

a reiteraccedilatildeo da mesnla matriz de contestaccedilatildeo O conflito dominanshy

tedominado traduzido em termos de verdade e refez-se ao

longo de eixos diversos Quando prevaleceu um eixo poliacutetico o poacutelo da

verdade (futuro) identificou-se agrave cultura revolucionaacuteria o da mentira

presentet agraves mistificaccedilotildees da reaccedilatildeo Quando prevaleceu um eixo esteacutetishy

co verdade foi poesia originalidade experimentaccedilatildeo mentira foi a rotishy

na do comeacutercio o kitscll industrializado

Natildeo cabe agora a recapitulaccedilatildeo do que foram as diferentes versotildees

desse conflito vanguardacultura de massa em cada e eacutepoca Natildeo o

poderia fazer nem quero pois meu objetivo eacute saltar dessa primeira refleshy

xatildeo dos anos 20 para uma mais proacutexima de gerada no contexto franshy

cecircs poacutes-68 reflexatildeo que abandonou a tradiccedilatildeo de opor verdade e mentishy

ra deslocando a discussatildeo sobre a teacutecnica do cinema

No grande intervalo que a criacutetica avanccedilou na caracterizashy

ccedilatildeo do olhar sem corpo e suas implicaccedilotildees notadamente na avaliaccedilatildeo de

sua estrutura mais comunicativa e sedutora o cinema olhar da

induacutestria da ideologia dominante nos meios Extensatildeo do qlle

chamei olhar melodramaacutetico o cinema claacutessico eacute sua modernizaccedilatildeo Faz

com que ele abandone os excessos maiores do ganhe em

profundidade dramaacutetica amplitude temaacutetica concretizando o ver mais e

melhor do cinema na direccedilatildeo de um ilusionismo mais completo - o cineshy

ma claacutessico eacute o olhar sem corpo atuando em sentido

caracterizaccedilatildeo dos seus poderes apresentada em minha primeira

que de fato ajusta-se mais precisamente a esse estilo particular dOJTIinanshy

te no mercado e natildeo a todo o cinema possiacutevel Eacute nele mais do que em

qualquer outra proposta que vemos realizado o de intensificar ao

extremo nossa relaccedilatildeo com o mundo-objeto fazer tal mundo parecer autocircshy

nomo existente em seu proacuteprio direito natildeo encorajando perguntas na

direccedilatildeo do proacuteprio olhar mediador sua estrutura e comportamento Soshy

mos aiacute convidados a tomar o olhar sem corpo como dado natural

Entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 60 dois grandes

de reflexatildeo conduziram a criacutetica a essa naturalidade postulada pelo cineshy

ma claacutessico a teoria radical do cinema-discurso baseado nas operaccedilotildees da

montagem (o Eisenstein dos anos 20-30 permaneceu aqui a referecircncia

central) e a criacutetica francesa inspirada na fenomenologia tendo como [oco

maior Andreacute Bazin3

3 Cf Bazin Cinema ensaios trad Eloisa Ribeiro (Satildeo Paulo Brasilicnse 1991)

44 45

Falar de Eisenstein exigiria uma abordagem radicalmente distinta da

que faccedilo agora pois sua criacutetica ao ilusionismo COmeccedila com a advertecircncia

de que a imagem cinematograacutefica natildeo deve ser lida c0f110 produto de um

olhar Para ele a suposiccedilatildeo de que houve um encontro uma contiguumlidade

espacial e temporal entre cacircmera e objeto natildeo eacute O dado central e impresshy

cindiacutevel da leitura da imagem Sua presenccedila na tela eacute um fato de natureza

que deve ser observado em seu valor simboacutelico

caracteriacutesticas de sua composiccedilatildeo e sua no Contexto de um discurshy

so que eacute exposiccedilatildeo de ideacuteias natildeo sucessatildeo natural de fatos captados

pelo olhar A diferenccedila entre um plano geral e um cose-up por

muitas vezes natildeo pode ser entendida como olhar versus

olhar de mesmo quando se focaliza o mesmo ODjeto mas como

confronto de duas imagens de valores distintos A diferenccedila eacute de

natildeo de posiccedilatildeo no espaccedilo pois pode natildeo haver COntinuidade e

homogeneidade espacial para que se possa falar num mais perto

- tudo depende do contexto do discurso por imagens

Ao contraacuterio de Eisenstein os criacuteticos inspirados na fenomenologia

endossam e defendem a premissa de que no cinema toda imagem eacute proshy

duto de um olhar - eacute essencial que ela seja vista como tal- e a sucessatildeo

define sempre a atitude do observador diante de um mundo homogecircneo

Agrave imagem-signo de Eisenstein eles opotildeem a imagem-acontecimento agrave

defesa da descontinuidade proacutepria do cineasta russo respondem Com

uma defesa ateacute mais radical do princiacutepio de continuidade jaacute presente na

narraccedilatildeo claacutessica fazendo a ela um reparo fundamental se a imagem em

movimento nos traz a percepccedilatildeo privilegiada do homem como ser lanccedilashy

do no mundo como ser-em-situaccedilatildeo a falsidade do cinema claacutessico estaacute

na manipulaccedilatildeo impliacutecita em sua montagem o olhar sem corpo e a

onividecircncia criam na tela uni mundo abstrato de sentido fechado preshy

julgado e organizado pelo cin~ina Toda montagem eacute discurso manipulashy

ccedilatildeo de Eisenstein de GrUacutefith ou de Bufiacuteuel Em oposiccedilatildeo um criacutetishy

co como Bazin solicita um olhar cinematograacutefico mais afinado ao olho de

um sujeito circunstanciado que p6ssui limites aceita a abertura do

mundo convive com ambiguumlidades Quando pede realismo ele natildeo se

46

deteacutem em consideraccedilotildees de conteuacutedo (o tipo de universo Ciccional ou doshy

cumentaacuterio) Sublinha a postura do olhar em sua interaccedilatildeo com o mundo

tanto mais legiacutetima quanto mais as condiccedilotildees de nosso olhar

ancorado no corpo vivenciando uma duraccedilatildeo e uma circunstacircncia em sua

continuidade trabalhando as incertezas de uma percepccedilatildeo

ultrapassada mundo Daiacute sua minimizaccedilatildeo da montagem (instacircncia

construtora da onividecircncia) sua defesa do plano-seguumlecircncia (olhar uacutenico

sem cortes observando uma em seu um acontecimento

em seu fluir

Numa visatildeo mais atual prestamos atenccedilatildeo especial ao que aproxima

e natildeo apenas ao que afasta o cinema-discurso de Eisenstein e o realismo

existencial de Bazin haacute em ambos novamente a atribuiccedilatildeo de um poder

de verdade e de um poder de mentira encarnados em determinados estishy

los Para Eisenstein haacute um estilo capaz de dizer o mundo social-histoacuterishy

co colocando o cinema como potecircncia maior no plano do conhecimento

Para Bazin O cinema eacute uma espeacutecie de terceiro estado da e exisshy

te um estilo autecircntico na captaccedilatildeo da vivecircncia humana em sua

essencial abertura no tempo

Contra esse pano de fundo da tradiccedilatildeo teoacuterica a intervenccedilatildeo de

]ean-Louis Baudry em 1969-70 em questatildeo a constante promessa de

um estilo mais verdadeiro e dirige seu ataque agraves premissas do cinema em

geral examinando mais a fundo as condiccedilotildees do espectador raciociacuteshy

nio estaacute municiado para analisar o espectador do filme claacutessico mas

fala em cinema tout couTe) 4 O horizonte de seu exame eacute ressaltar o

modo pelo qual a recepccedilatildeo da imagem possui uma estrutura que a seu ver

solapa o reiterado creacutedito - de Eisenstein Griffith Epstein na

da verdade como destinaccedilatildeo fundamental do cinema Ele invershy

te a tradiccedilatildeo e vecirc na simulaccedilatildeo na de efeitos (ilusoacuterios) de

conhecimento o destino maior da nova arte (visatildeo que

4 O mais importante dos textos de Jean-Louis dessa

1970 Os efeitos ideoloacutegicos do de base estaacute publicado em Ismail

Xavier (orll) A experiecircncia do cinema (Rio de Janeiro

47

pela permanecircncia do ilusionismo do cinema industrial) Isso se daacute por

forccedila da proacutepria natureza da teacutecnica cinematograacutefica herdeira das ilusotildees _

da perspectiva da persistecircncia retiniana (natildeo vemos os fotogramas vemos

o que natildeo ocorre na tela ou seja o movimento da imagem e temos a imshy

pressatildeo de continuidade) da falsa autenticidade documental da fotografia

Rearticulando elementos jaacute conhecidos Baudry nos traz uma interpretashy

ccedilatildeo radical que- questiona natildeo estilos particulares de fazer cinema mas o

fundamento mesmo de sua objetividade como teacutecnica essa mes~a objetishy

vidade que tem sido a sustentaccedilatildeo maior das esperanccedilas de verdade Na

nova perspectiva as diferentes posiccedilotildees teoacutericas desde 1920 definem um

pensar o cinema a priori capturado pelas ilusotildees da teacutecnica e desatento agraves

implicaccedilotildees contidas na proacutepria estrutura do olhar da cacircmera tal como se

daacute para noacutes na plateacuteia A teacutecnica tem suas inclinaccedilotildees seus efeitos ideoloacuteshy

gicos e nesse sentido eacute ela mesma que impele o cinema industrial a desenshy

volver seu ilusionismo e trazer o espectador para dentro do mundo ficcioshy

na A forccedila de encantamento desse cinema persiste na histoacuteria porque o

dado crucial em jogo natildeo eacute tanto a imitaccedilatildeo do real na tela _ a reproduccedilatildeo

integral das aparecircncias - mas a simulaccedilatildeo de um certo tipo de sujeito-doshy

olhar pelas operaccedilotildees do aparato cinematograacutefico

Avaliar a potecircncia do olhar sem corpo natildeo eacute entatildeo inventariar as

imagens que ele oferece efocaIacuteIacutezar o seu movimento proacuteprio sua forma

de mediaccedilatildeo o que impiacuteica analisar sua incidecircncia no espectador que

vivenda o poder de clarividecircncia a percepccedilatildeo tota Na sala escura idenshy

tificado com o movimento do olhar da cacircmera eu me represento como

sujeito dessa percepccedilatildeo total capaz de doar sentido agraves coisas sobrevoar as

aparecircncias fazer a siacutentese do mundo Minha emoccedilatildeo estaacute com os fatos

que o olhar segue mas a cbndiccedilatildeo desse envolvimento eacute eu me colocar no

lugar do aparato sintoniz~do com suas operaccedilotildees Com isso incorporo

(ilusoriamente) seus poder~s e ericontro nessa sintonia - solo do entendishy

mento cinematograacutefico - o maior cenaacuterio de simulaccedilatildeo de uma onipotecircnshy

cia imaginaacuteria No cinema faccedilo uma viagem que confirma minha condishy

ccedilatildeo de sujeito tal como a desejo Maacutequina de efeitos a realizaccedilatildeo maior do

cinema seria entatildeo esse efeito-sujeito a simulaccedilatildeo de uma consciecircncia

48

transcendente que descortina o mundo e se vecirc no centro das coisas ao

mesmo tempo que radicalmente separada delas a observar o mundo coshy

mo puro olhar Nessa apropriaccedilatildeo ilusoacuteria da competecircncia ideal do olhar

estou portanto no centro mas eacute o aparato que aiacute me coloca pois eacute dele o

movimento da percepccedilatildeo monitor da minha fantasia

Para Baudry uma filosofia idealista que postula um sujeito transshy

cendente em oposiccedilatildeo ao mundo objetivo que se dispotildee ao conhecimento

encontra aiacute na teacutecnica do cinema sua traduccedilatildeo visiacutevel Toda sua ecircnfase

recai sobre a produccedilatildeo simultacircnea da imagem e do sujeito-observador

onividente A engenharia simuladora do cinema define com o efeitoshy

sujeito seu teatro da percepccedilatildeo total cujo protagonista sou eu-espectador

identificado com o olhar da cacircmera

N esses termos o que dificulta a consolidaccedilatildeo de linguagens alternashy

tivas mais verdadeiras eacute esse pecado original inscrito na teacutecnica Esta

tem na ilusatildeo seu sustentaacuteculo e os percalccedilos das vanguardas devem-se a

que sua aposta eacute reverter a funccedilatildeo daquilo que jaacute nasceu para cumprir

outro destino Digo destino porque a loacutegica dessa teoria transforma o cineshy

ma num oacutergatildeo que surgiu para cumprir um programa o de objetivar na

esfera do visiacutevel estrateacutegias de dominaccedilatildeo especialmente as da classe burshy

guesa que presidiu sua origem Assim antes de instacircncia liberadora subshy

versiva a condiccedilatildeo do cinema eacute preencher uma demanda do proacuteprio unishy

verso carceraacuterio tornando-o mais preciso e poderoso em seu aparato

Haacute uma atmosfera de desencanto instalada a partir dos anos 70 a

formulaccedilatildeo aqui exposta eacute a traduccedilatildeo teacuteoacuterica radical dos impasses da conshy

testaccedilatildeo no cinema Temos o esgotamento de uma teleologia a da teacutecnishy

ca redentora entravada pela poliacutetica e a economia e sua substituiccedilatildeo

por u~a outra a da teacutecnica como instrumento maior de reposiccedilatildeo de um

sistema de poder Em consonacircncia corn a tonalidade da reflexatildeo sobre a

linguagem a cultura e a ideologia naquele momento a teoria do cinema

mais original e polecircmica ressalta o lado sistemaacutetico inelutaacutevel das ilusotildees

e dos enganos do olhar da cacircmera Nesse contexto a proacutepria praacutetica do

cinema amplia o espaccedilo para a reflexatildeo teoacuterica voltada para a questatildeo do

simulacro - a citaccedilatildeo a imagem que-alude agrave imagem o circuito das refeshy

49

recircncias a si mesmo que o cinema leva ao paroxismo entram para valer na

esfera da induacutestria constituem sua nova marca Tal reflexatildeo se faz dentro

de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do

cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura

contemporacircnea A imagem cinematograacutefica eacute entatildeo obseJvada a partir de

sua participaccedilatildeo em outra rede de relaccedilotildees em que natildeo haacute para a

interpretaccedilatildeo (esse tomar a imagem como representaccedilatildeo de algo exterior

a ela) para o juiacutezo da verdade ou mentira em que se a oposlccedilao

aparecircncia (imagem)essecircncia (substacircncia) -nada haacute por traacutes das lmlti~e~ns

elas valem como efeitos-de-superfiacutecie imagem remetendo a imagem fluxo de simulacros

Faccedilo agora uma incursatildeo que natildeo eacute propriamente no terreno da

nova filosofia e das questotildees mais amplas do simulacro na produccedilatildeo

Trata-se de uma anaacutelise particular no niacutevel da engenharia da simulaccedilatildeo

caracterizaccedilatildeo de um efeito na qual natildeo eacute necessaacuterio assumir as noccedilotildees

com a mesma ressonacircncia elas adquiriram na literatura dos anos 80

Fecho a exposiccedilatildeo com a consideraccedilatildeo de um novo exeacutemplo que acredishy

to esclareccedila algumas observaccedilotildees feitas ateacute aqui sobre a interaccedilatildeo entre

espectador e imagem sobre o papel da moldura do sujeito na leitura

Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o

efeito de uma depende de sua ~elaccedilatildeo com o sujeito em determishy

nadas condiccedilotildees Da situaccedilatildeo da testemunha de McCarthy passei a uma

caracterizaccedilatildeo mais detida do olhar do cinema e examinei dois momenshy

tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexatildeo criacuteshy

tica em torno do que hiacute de erigano e rcvelaccedilatildeo nesse olhar A partir de

uma discussatildeo mais sobre a simulaccedilatildeo do fato - na fotografia no

cinema chegamos a uma questatildeo mais especiacutefica a simulaccedilatildeo do sujeishy

to na estrutura mesma (lo olhar cinematograacutefico Dentro da discussatildeo

mais geral o exemplo a envolve uma situaccedilatildeo mais complicada do

quea das fotos do tribunal estaremos no cinema Como inspiraccedilatildeo

terei presentes as liccedilotildees de Baildry sem no entanto incorporar o movishy

mento totalizador de suaacute criacutetica ao olhar do cinema Seu amplo diagnoacutesshy

tico mobilizando a psicaacutenaacutelise tem como pressuposto o fato de sabershy

0

mos o bastante sobre a natureza do espectador de modo a prever o caraacuteshy

tcr de sua identificaccedilatildeo com o aparato a qual assume uma dimensatildeo

uacutenica de adesatildeo agrave imagem por forccedila do efeito-sujeito Como conhecedoshy

res do desejo do espectador denunciamos o conluio desse desejo com o

programa da induacutestria e deduzimos daiacute as alienaccedilotildees do cinema e da

teacuteia Natildeo tenho condiccedilotildees de endossar a generalidade desse saber a resshy

peito do espectador o aparato atua em determinada direccedilatildeo mas a expeshy

riecircncia do cinema inclui outras forccedilas e condiccedilotildees que natildeo se ajustam ao

programa do sistema A formulaccedilatildeo dc Baudry embora inclua com toda

a forccedila a dimensatildeo do desejo do espectador natildeo deixa de ser outra vershy

satildeo das teorias da manipulaccedilatildeo global centradas em excesso no aspecto

da experiecircncia de modo a confundir o processo que efetishy

vamente ocorre com a loacutegica ideal do sistema Focalizo uma situaccedilatildeo

didaacutetica nesse contcxto em que eacute perfeito o funcionamcnto do

aparato cm quc podemos verificar o mecanismo da simulaccedilatildeo em estashy

do digamos de laboratoacuterio

IVIULALAU E PONTO OE VISTA

Toda leitura de eacute pr()(llltatildeo de um ponto de vista o do sujeito

observador natildeo o da objetividade (b irnagetnA condiccedilatildeo dos efeitos

da imagem eacute essa Em particular o ekilO rb apoacuteia-se numa

construccedilatildeo que inclui o fmguh do obSlrVIr1or O simulacro parece o

que natildeo eacute a partir de um pOIHo ele vista () sujeito estaacute aiacute pressuposto Porshy

tanto o processo elc simulaccedilatildeo nlo l o (Li imagemem si mas o da sua

relaccedilatildeo com o sujeito Num (gt1lt1110 elemelltar podemos tomar o cinema

como modelo do processo O (llIC eacute a fjltnilgcm senatildeo a organizaccedilatildeo do

I 1 I - C f dacontecllnento pra 11111 angu () (C o lscrvaccedilao o que se con un e com

Nessas asserccedilotildees no de Xavier Audouard Le Simulacrc in

eacutepisteacutemologie de lEcole Normale gtuucushy

rc n mai-jun 1966) O horizonte de Audouard eacute o de uma discussatildeo sobre o

idealismo platocircnico seu terreno eacute ponanto distinto e meu natildeo

ca uma identificaccedilatildeo agrave sua perspectiva de anaacutelise

i J

o da cacircmera e nenhum outro mais) O que eacute a fachada de preacutedio de estuacuteshy

dio senatildeo a duplicaccedilatildeo do mesmo princiacutepio da fachada de rua que sushy

gere o que natildeo eacute justamente quando observada de um certo acircngulo e disshy

tacircncia jaacute pressupostos em sua composiccedilatildeo O que eacute a ficccedilatildeo do cinema

senatildeo uma simulaccedilatildeo de mundo para o espectador identificado com o aparato

Vertigo (Um corpo que cai) O filme de Hitchcock realizado

em 1958 Ele eacute a trama da simulaccedilatildeo por excelecircncia como jaacute foi observashy

do pela criacutetica Trago um aspecto novo agrave consideraccedilatildeo o do espelhamenshy

to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e

o proacuteprio princiacutepio da narraccedilatildeo do filme Tal como em outras obras de

Hitchcltck o cinepa c1aacutessi~o aqui operagrave com eficiecircncia maacutexima e ao

mesmo tempo oferece a metaacutefora viva para o seu proacuteprio processo Inteshy

ressado nessa metaacutefora acentuo nesta anaacutelise a mecacircnica da simulaccedilacirco o

funcionamento exterior do aparato natildeo o que nas personagens eacute desejo

do estratagema e disposiccedilatildeo para a vertigem da imagem

Sigamos passo a passo a narrativa ateacute o ponto que interessa

Vertigem tiacutetulo original eacute a palavra que condensa as ideacuteias-forccedila

do filme em sua tematiacutezaccedilatildeo do olhar e do ponto de vista A apresentaccedilatildeo

de Vertigo criaccedilatildeo de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em

close-up tratado como maacutescara enigmaacutetica imoacutevel Uma aproximaccedilatildeo

maior e um passeio da cacircmcra examinam essa maacutescara em seus detalhes

ateacute que isolado o olho ofereccedila os sinais de vida Os seus movimentos no

entanto natildeo criam uma ~xpressatildeo definida uma intcncionalidade do olhar

Preparam apenas o cenaacuterio ptra um movimentoem espiral na profundishy

dade Mergulho na inteacuteiioridaacutedc cujo fundo inatingiacutevel estaacute sempre em

recesso Aproximaccedilatildeo e recuo atraccedilatildeo e fuga a ambiguumlidade do movishy

mento da espiral ~ experiecircncia matriz de todo o filme cujo eixo eacute o

percurso de profissional do olhar detetive personificaccedilatildeo da

vertigem Logo na primeira sequumlecircncia define-se a questatildeo desse protagoshy

nista numa perseguiccedilatildeo telhados de Satildeo Francisco a vertigem de Scottie o faz responsaacuteveacutel pela morte de um

tentar ajudaacute-lo Sentimeriacuteto de cu1Da aposentadoria

52

lecida a disponibilidade total de a situaccedilatildeo-chave de Vertigo deseshy

nha-se quando ele atende ao chamado de Elster de escola que

no reencontro surpreende-o com o pedido para que sua mulher

Madeleine Elster mostra-se apreensivo com as manifestaccedilotildees de ausecircnshy

cia que ela apresenta com os periacuteodos de comportamento estranho em

que ela parece ser outra pessoa de que retoma sem lembranccedilas

O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma

proposto Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine pesquisa pela

recolhe dados essenciais Um primeiro quadro se compotildee a

ra que dela se apossa em seus transes eacute Cadota Valdez mulher que viveu

em San Francisco no seacuteculo XIX e que se suicidou em circunstacircncias meshy

lancoacutelicas Novamente com Elster Scottie relata as descobertas O marishy

do introduz novo dado Madeleine estaacute em perigo de vida pois descende

de Carlota outras mulheres da linhagem cometeram suiciacutedio e ela tem

agora a idade de Carlota ao morrer

Na primeiraacute seacuterie de passeios de Madeleine fase em que se compotildec

o quadro tivemos uma ostensiva duplicaccedilatildeo num primeiro plano Scortie

observa MadeJeine que natildeo reconhece sua presenccedila (ele estaacute fora do tershy

ritoacuterio dela) e se potildee disponiacutevel ao olhar movimentando-se como numa

cena num segundo plano ao longo do mesmo eixo a cacircmera observa

Scottie que Madeleine Satildeo duas uma dentro da outra que

natildeo se tocam Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele ambos enquadra~

dos por noacutes no lugar da cacircmera Madeleine nunca devolve o olhar a Scotshy

tie devolve o olhar agrave cacircmera (regra do filme claacutessico) Mas eacute

ambiacutegua essa passividade pois eacute o movimento dela que dirige o olhar

dele eacute a accedilatildeo de ambos que dirige o nosso olhar sempre na esteira do

acircngulo de de Scottie com quem partilhamos a ignoracircncia a

curiosidade a descoberta

Apoacutes a segunda conversa com Elster o tema do suiciacutedio engendra

uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria MadeleineCarlota

atira-se nas aacuteguas da baiacutea de San Francisco Scottie a resgata Permaneceshy

mos puro olhar ele passa ao plano da intervenccedilatildeo e do diaacutelogo Com os

dois juntos certa concretude o que em Scottie eacute jaacute sonho romacircnshy

53

tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do

filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs

do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e

terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM

sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a

lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute

coloca adiante dele na investigaccedilatildeo

A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy

satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela

que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e

com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy

gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave

de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre

alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se

e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos

da escada retido pela vertigem - e somos retidos

com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai

O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um

psicologicamente massacrado Elsshy

natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco

destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar

em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um

dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras

no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de

Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus

motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade

(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy

to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme

natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente

natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy

54

dos no quarto ficamos ao lado de

sem delongas que natildeo espera o final

Sozinha no quarto hesitante nervosa

assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy

a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy

para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade

para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy

blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez

de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao

topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o

mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre

Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou

resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda

para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas

posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy

ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema

bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia

apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do

suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo

de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy

dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as

imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()

prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a

loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy

lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy

leine-Carlota em a Scottic

O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse

mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy

vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade

e o de (a natildeo foi apenas para ele a

Urna leimra mais completa de Vertigo exishy

~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy

para o estratagema do as permanecem na

55

esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy

sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas

consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui

afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte

final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema

No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo

na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a

reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos

nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que

era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy

satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy

tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy

sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da

outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o

estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy

nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy

Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a

accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata

Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave

moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo

nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir

de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma

questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy

posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy

to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o

espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)

6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy

ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin

Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a

psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense

1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ

Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se

uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy

co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para

finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do

cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy

nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy

ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens

do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que

nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle

de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta

o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos

entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve

a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim

oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos

a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy

so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu

ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa

segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista

muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da

relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar

e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo

eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de

imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo

vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz

de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos

Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy

te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo

implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas

colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo

com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que

fora do campo torna visiacutevel

56 57

Page 5: Ismail Xavier Cinema Revelacaoengano

em que estou presente ao acontecimento na sala de espetaacuteculos jaacute sentashy

do natildeo tenho o trabalho de buscar diferentes posiccedilotildees para observar o

mundo pois tudo se faz em meu nome antes de meu olhar intervir num

processo que franqueia o que talvez de outro modo seria para mim de

impossiacutevel acesso Espectador de cinema tenho meus privileacutegios Mas

simultaneamente algo me eacute roubado o privileacutegio da escolha

Nesse compromisso de ganhos e perdas aceito e valorizo o olhar

mediador do cinema porque as imagens que ele me oferece tecircm algo de

prodigioso - hoje talvez banalizado advindo de sua liberdade ao invashy

dir a intimidade (uma liberdade da qual usufruo sem riscos) de sua preshy

cisatildeo e destreza nos maiores desafios No cinema posso ver tudo de

perto e bem visto ampliado na tela de modo a ~urpreender detalhes no

fluxo dos acontecimentos e dos gestos A imagem na tela tem sua durashy

ccedilatildeo ela persiste pulsa reserva surpresas Se eacute contiacutenua posso acompashy

nhar um movimento enquanto esse se faz diante da cacircmera se a montashy

gem interveacutem vejo uma sucessatildeo de imagens tomadas de diferentes

acircngulos acompanho a evoluccedilatildeo de um ac~gtntecimento a partir de uma

coleccedilatildeo de pontos de vista via privilegiados especialmente cuishy

dados para que o espetaacuteculo do mundo se faccedila para miiacuten com clareza

dramaticidade beleza As possibilidades abertas pela temporal idade proacuteshy

pria da imagem satildeo infinitas haacute o movimento do mundo observado e o

movimento do olhar do apa~ato que observa Quando a imagem eacute de rosshy

tos tenho a interaccedilatildeo dos olhares (lue se confrontam verdadeira orquesshy

traccedilatildeo o olho que vecirc e o que eacute vi~to tecircm ambos sua dinacircmica proacutepria e

cada um de noacutes jaacute teve ocasiOtildees de avaliar com maior ou menor consciecircnshy

cia a intensidade dos efeitos extraiacutedos dessa orquestraccedilatildeo

O usufruto desse olhar privilegiacuteado natildeo a sua anaacutelise eacute algo que o

cinema tem nos garantido propiciando essa condiccedilatildeo prazerosa de ver

o mundo e estar a salvo ocupar o centro sem assumir encargos Estou preshy

sente sem participar do mundo observado Puro olhar insinuo-me invishy

shrel nos espaccedilos a interceptr os ~ihares de dois interlocutores escrutishy

narreaccedilotildees e gestos explorar ambientes de longe de perto Salto com

velocidade infinita de um poacutento a outro de um tempo a outro Ocupo

posiccedilotildees do olhar sem comprometer o corpo sem os limites do meu corshy

po Na ficccedilatildeo cinematograacutefica junto com a cacircmera estou em toda parte c

em nenhum lugar em todos os cantos ao lado das personagens mas sem

preencher espaccedilo sem ter presenccedila reconhecida Em suma o olhar do

cinema eacute um olhar sem corpo Por isso mesmo ubiacutequo onividente Idenshy

tificado com esse olhar eu espectador tenho o prazer do olhar que natildeo

estaacute situado natildeo estaacute ancorado vejo muito mais e melhor

Observando a experiecircncia por esse acircngulo como entatildeo natildeo exaltar

o cinema Como natildeo pensar sua teacutecnica de base cm termos de

de progresso Retomemos um clima tiacutepico do iniacutecio do seacuteculo

o PRIMEIRO ELOGIO AgraveS DO OLHAR

O MOMENTO DA PROMESSA

Alguns cineastas e estetas dos anos 10-20 deixaram registradas as duas reashy

ccedilotildees a esse lado prodigioso da oferecida pela entatildeo nova teacutecnica de

reproduccedilatildeo Pensaram o cinema quando sua mediaccedilatildeo era um dado inaushy

gural que gerava certas descobertas uma eacuteonstelaccedilatildeo de sentimentos e pershy

cepccedilotildees novos ainda natildeo bem equacionados que exigiacuteam novos conceitos

um trabalho com a linguagem escrita para expressar o lado mais peculiar da

nova experiecircncia Hoje eacute praticamente impossiacutevel recuperar vivamente

aquele momento noacutes que crescemos satur~ados de imagens e nos movemos

num mundo em que o que era antes promessa dc revoluccedilatildeo se faz agora

dado banal do cotidiano experiecircncia reiterada De uma pluralidade de reashy

ccedilotildees elogios desconfianccedilas destaco dois tipos de recepccedilatildeo ao advento do

cinema Na primcira ele eacute observado como coroamento de um projeto jaacute

definido na esfera da representaccedilatildeo na segunda vislumbra-se o cinema

enquanto inauguraccedilatildeo de um universo de expressatildeo sem precedente destishy

nado a provocar uma ruptura na esfera da representaccedilatildeo

Aqueles que o vecircem com simpatia como um coroamento inserem

o cinema na tradiccedilatildeo do espetaacuteculo dramaacutetico mais popular de grande

vitalidade no seacuteculo raquoIX Avaliam que cumprindo os mesmos objetivos

o cinema vai mais longe pois multiplica os recursos da representaccedilatildeo faz o

36 37

I I

espectador mergulhar no drama com mais intensidade O olho sem corshy t po cerca a encenaccedilatildeo torna tudo mais claro enfaacutetico expressivo ao narshy

rar uma histoacuteria o cinema faz fluir as accedilotildees no espaccedilo e no tempo e o I

mundo torna-se palpaacutevel aos olhos da plateacuteia com uma forccedila impensaacutevel I em outras formas de representaccedilatildeo Ou seja em seu tornar visiacutevel a meshy

rdiaccedilatildeo do olha cinematograacutefico otimiza o efeito da ficccedilatildeo cumprindo com

muita competecircncia uma tarefa que na esfera da cultura considera-se como Jproacutepria da arte e em especial dos espetaacuteculos Ao exaltar esse salto na efishy ccedil

iciecircncia dentro d~ continuidade de princiacutepios e funccedilotildees os criacuteticos cineasshy

tas e prod~tores afinados agraves regras do mercado cultural da eacutepoca celebram

o na produccedilatildeo industrial do seacuteculo xx de um projeto que vem do

seacuteculo XVIII e que se definiu na origem para a representaccedilatildeo teatraL

Eacute comum sermos lembrados ~o quanto a cacircmera fotograacutefica constishy

tui uma objetivaccedilatildeo tecnoloacutegica recente de princiacutepios da representaccedilatildeo jaacute I

conhecidos cuja sistematizaccedilatildeo vem do Renascimento italiano (cacircmara i iacuteescura o meacutetodo da perspectiva os efeitos de profundidade na superfiacutecie

da tela) Com a imagem em movimento o representar a dos homens iacute se daacute com a franca hegemonia do ilusionismo a encenaccedilatildeo tal e qual o I real plantado no cinema industrial desde os tempos de D W Griffith

Fato que cristaliza uma heranccedila menos tematizada pela criacutetica a do olhar Ital como constituiacutedo no drama burguecircs Aqui a referecircncia teoacuterica essenshy

cial eacute Diderot No momento em que escreve suas peccedilas e formula a teoria trenovadora do teatro definiuacutedoo drama seacuterio burguecircs do seacuteculo XVIII

~ um elemento central no seu ideaacuterio eacute a criacutetica ao teatro vinculado aos ~

gecircneros claacutessicos - principalmente ao tipo de encenaccedilatildeo que se dava agraves

trageacutedias claacutessicas francesas do seacuteculo XVII Esse teatro por demais ancoshy

rado na palavra depende da exclusiva forccedila poeacutetica do texto desdenhanshy

doo aspecto visual da experiecircncia do palco Ou eacute incapaz de elaboshy

rar a cena propriamente dita tal como o filoacutesofo a entende explorando a

expressividade do gesto e a cocircmposiccedilatildeo visual da cena (os tableaux consshy

truiacutedos pela posiccedilatildeo reciacuteproca dos atores e da cenografia)

Diderot queria um teatro dirigido agrave sensibilidade por meio da reshy

produccedilatildeo integral das aparecircncias do mundo queria um meacutetodo de dar

38

a ver as situaccedilotildees os gestos as emoccedilotildees O ilusionismo fonte do enshy

volvimento da plateacuteia eacute entatildeo assumido como a ponte privilegiada no

caminho da compreensatildeo da experiecircncia humana da assimilaccedilatildeo de

valores da explicitaccedilatildeo de movimentos do coraccedilatildeo Tal demanda proacutepria

do universo da Ilustraccedilatildeo do seacuteculo XVIIl tem seus desdobramentos e

depois da Revoluccedilatildeo Francesa em outra atmosfera social e

explode no teatro popular de 1800 Aiacute se consolida o gecircnero dramaacutetico

de massas por excelecircncia o melodrama Esse tem sido por meio do teashy

tro (seacuteculo do cinema (seacuteculo xx) e da TV (desde

taccedilatildeo mais contundente de uma busca de expressividade

moral) em que tudo se quer ver estampado na superfiacutecie do mundo na

ecircnfase do gesto no trejeito do rosto na eloquumlecircncia da voz Apanaacutegio do

exagero e do excesso o melodrama eacute o gecircnero afim agraves grandes revelashy

ccedilotildees agraves encenaccedilotildees do acesso a uma verdade que se desvenda um

sem-nuacutemero de misteacuterios equiacutevocos pistas falsas vilanias Intenso nas

accedilotildees e sentimentos carrega nas reviravoltas ansioso pelo efeito e a

comunicaccedilatildeo envolvendo toda uma pedagogia em que nosso olhar eacute

convidado a apreender formas mais imediatas de reconhecimento da

virtude ou do pecado N a virada do seacuteculo XIX para o XX natildeo surpreende que a teacutecnica do

cinema entatildeo emergente tenha assumido essa pedagogia e tenha substishy

tuiacutedo o melodrama teatral na satisfaccedilatildeo de uma demanda de ficccedilatildeo na soshy

ciedade Quando falo em ilusionismo reproduccedilatildeo das aparecircncias na vershy

dade que adveacutem do conflito de forccedilas que se expressam e se revelam pelo

olhar estou afirmando princiacutepios da representaccedilatildeo aos quais o cinema vem

se ajustar como uma luva Como braccedilo da induacutestria cultural ele

do movimento de objetivaccedilatildeo institucional da Ilustraccedilatildeo Sua

do olhar melodramaacutetico eacute o ponto-limite de um projeto de expressatildeo

total da natureza na representaccedilatildeo Reflete um ideal de domiacutenio e controshy

le da aparecircncia como sinal de conhecimento da natureza um ideal que

inscreve a arte como espelho pedagoacutegico que requer a competecircncia tecnoshy

loacutegica de criar ilusatildeo e por essamiddotvia atingir a sensibilidade a passagem

das trevas agrave luz se faz de efeitos sobre o olhar

39

Dentro do projeto de revelaccedilatildeo do mundo para o olhar os efeitos do

close-up logo adquirem a condiccedilatildeo de emblema das virtudes da nova arte

Mais do que a montagem - sua condiccedilatildeo preacutevia - o close-up na Franccedila e

nos Estados Unidos atrai o dos cineacutefilos corno ponto de condenshy

de um drama que se faz movimento dos olhos - o que vecirc e o

que eacute visto - e pela trama formada pela sucessatildeo de detalhes

e reveladores Corno movimento em direccedilatildeo agrave intimidade e V1stO corno

potecircncia maior do cinema que muito cedo impressionou a todos pela sua

capacidade de devastaccedilatildeo das intenccedilotildees ocultas do pequeno gesto fora do

alcance dos interlocutores do movimento facial que trai um sentimento

Natildeo foi preciso a manifestaccedilatildeo da criacutetica cineastas e produtores conduzishy

ram as experiecircncias reveladoras da forccedila dramaacutetica do rosto isolado na e usando a tradicional muito antes de 1920 jaacute insshy

truiacutea seus atores para a dos olhos - janela da alma _ trazishy

dos para perto no close-up para o exame

Foco das atenccedilotildees e dos o close-up estaraacute em I920 tambeacutem

no centro das reflexotildees de quem afastado dos valores promovidos pela

induacutestria do cinema observa seus prodiacutegios com outra moldura de inteshy

resses e julga os filmes do mercado por demais domesticados pela

demanda de ficccedilatildeo que induz o novo meio a seguir os passos do teatro e

da literatura popular Encontramos aqui quem vecirc o cinema como ruptushy

ra espectadores avessos aos do filme de accedilatildeo corrente cinecircfilos

natildeo interessados na fluecircncia dos acontecimentos no pulsar da

nas tensotildees dramaacuteticas usuais Por intermeacutedio deles o cinema uma

recepccedilatildeo mais empenhada em surpreender aspectos da plaacutestica da imashy

gem do trabalho da cacircmera e da presenccedila peculiar do mundo na tela que

permanecem recalcados na visatildeo dominante Para esse olhar diferenciashy

do por meio do cinema toda urna esfera nova de percepccedilotildees abre-se agrave

nossa experiecircncia desde que sejamos capazes de entender a expressividashy

de da nova imagem em outros termos elogiando sim o mas denshy

tro de urna outra oacutetica a de quem entende o cinema natildeo como coroamenshy

to do ilusionismo teatral mas como ruptura inauguraccedilatildeo de um novo diaacutelogo com a natureza e os homens

4deg

Satildeo os intelectuais e artistas ligados agrave arte moderna que lideram essa

nova leitura do cinema de uma perspectiva que na Franccedila traduziu-se no

cineacutema davant-garde nas experiecircncias dos surrealistas e nas polecircmicas

que tiveram como pauta a superaccedilatildeo da moldura melodramaacutetica a libershy

taccedilatildeo do olhar sem corpo das amarras da continuidade narrativa a adeshy

da nova arte agrave sua teacutecnica moderna A

fcrentes grupos postos de lado os conflitos que os

cinema destina-se a uma tarefa de redenccedilatildeo A cultural

do Ocidente europeu estaria falida o poder criador preso a convenccedilotildees

obsoletas saturado de referecircncias que o desvigoram Enredado em formas

de pensar e sentir desgastadas o homem culto se vecirc separado da natureshy

za reprimido cercado de mentiras de clichecircs da de maacutescaras

O cinema eacute radicalmente novo inocente e traz a da tecnologia

Ele pode e deve romper essa grade devolvendo aos homens o acesso a

uma natureza alienada pelos artifiacutecios de uma cultura

A vanguarda se estabelece como cultUra de separando o

espaccedilo utoacutepico da verdade (cinema vida futura) e o espaccedilo da mentira da

convenccedilatildeo (tradiccedilatildeo literaacuteria teatro cotidiano burguecircs) Sua feacute no cinema

ancora-se numa ideacuteia de expressatildeo que tambeacutem se apoacuteia na acuidade de

reproduccedilatildeo da aparecircncia proacutepria da nova teacutecnica mas com um traccedilo pecushy

liar que afasta a do pensamento gerado na esfera da induacutestria

Germaine Dulac e Epstein principais porta-vozes da avant-ga

concebem o cinema corno expressividade do mundo num sentido radishy

ca1 Combatem a vaga que nos leva a sob qualquer pretexto

isto expressa aquilo de um modo que equivale a isto significa aquilo

dentro dos variados caminhos pelos quais vamos de um poacutelo a outro do

significante ao significado Reservam expressatildeo para designar um proshy

cesso determinado impelido por forccedilas naturais no a composiccedilatildeo de

forccedilas interior a um organismo deixa narcas na do mesmo shy

eacute o movimento nelo Qual ci Que estaacute no interior vem forcosashy

mente agrave tona a forma

I Cf Xavier Seacutetima arte um cuto moderno (Satildeo Paulo 1978)

41

vel) que o cinema vemcaptar com exclusividade pois fixa os movimenshy

tos na peliacutecula sem as atrapalhaccedilotildees do olho natural O cinema tem seu

vigor proacuteprio de um olhar mais automaacutetico

natildeo maculado pelos preconceitos culturais

dade Eacute irocircnico que justamente porque natildeo tem interioridade o olhar

da maacutequina possa atingir o princiacutepio interior dos movimentos revelar a

verdade que organicamente expressa-se em sentido pleno imprime-se

numa textura do mundo que soacute a cacircmera eacute capaz de registrar O proacuteprio

instantacircneo fotograacutefico em sua estrutura mais simples jaacute nos mostra o

quanto a imagem revelada faz emergir dados ocultos que natildeo estavam na

mira do fotoacutegrafo No cinema o movimento poteacutencializa tal desocultashy

mento o qual pode tornar-se mais efetivo quando os cineastas forem cuacutemshy

plices da nova teacutecnica em vez de tentar agrave como no

melodrama a expressividade do fica atrelada a toda uma

cadeia de loacutegica eacute tomada de empreacutestimo agrave do natushy

em que o tOrnar visiacutevel resulta do de uma retoacuterica que ~rH+tia Para

o que era aaequado ao teatro - como ilusionismo do seacuteculo XIX natildeo o eacute para o cinema do seacuteculo xx pois a

imitaccedilatildeo dos gestos antes oferecida a olhos desarmados natildeo resiste agrave anaacuteshy

lise da nova sensibilidade Com o cinema a percepccedilatildeo humana ganhou

um acesso especial agrave intimidade dos processos - ~ele a aparecircncia eacute jaacute uma

anaacutelise O cose-up natildeo eacute o lugar do fingimento eacute uma presenccedila que reveshy

la o que se eacute natildeo o que se pretende ser (inuacuteteis as caretas dos

A aposta da vanguarda estaacute no poder analiacutetico do cinematoshygraacutefico no que ressalta natildeil

espaccedilo) mas tambeacutem as

mente a cacircmera lenta (arnplia(acirco no eixo do tempo) que reveshyIa o mundo em outra e de~cobre-nos a vida secreta que se tece a

nossa volta e em noacutes ganhando ~xpressatildeo nas formas instaacuteveis fora da

nossa consciecircncia que temo~ fixadas pela teacutecnica2 Epstein nos seus

2 Essa aposta no poder analiacutetko do dnema tem uma versatildeo radical moshymento na Uniatildeo Sovieacutetica encarnada rio projeto do Cine-Olho de Vertov gt

42

o ~__ao~ das diferentes velocidades

do movimento animal e dos fenocircmenos Fershy

nand Leacuteger as relaccedilotildees e a forma dos objetos fora de sua inserccedilatildeo

utilitaacuteria no cotidiano Embora natildeo totalmente afinado ao cineacutema dayantshy

garde o surrealismo torna-se o movimento de contestaccedil50 ao cinema inshy

dustrial de maior impacto com sua exploraccedilatildeo da montagem como reveshy

laccedil50 das pulsotildees anatomia do desejo Em diferentes busca-se a

experiecircncia fora do senso comum o olhar em sintonia com ~l~r

do - a sensibilidade efetivamente moderna A

(Epstein) surge entatildeo como nova pedagogia

ccedilatildeo ao cenaacuterio do melodrama - pois o cincma teria como destino

trazer-nos de volta uma cosmologia e um encantamento do mundo para

os quais o cartesianismo e a filosofia da Ilustraccedilatildeo cegos

O horizonte desse renascimento seria a explosatildeo do universo carceraacuterio

da existecircncia atual (para usar a expressatildeo de Walter Benjamin em seu

ceacutelebre ensaio de T936 ao falar de reproduccedilatildeo teacutecnica arte e

A formulaccedilatildeo de Epstein-Dulae eacute questionaacutevel auando examinada a

partir de sua ideacuteia-matriz de expressatildeo

analiacutetico (inegaacutevel) da ~~a~Mrl~ aiacute uma feacute inteshy

gral no dado visiacutevel na caj)acldlde exclusiva de

suas relaccedilotildees internas trazer a verdade agrave tona

agrave ao contexto de cada a~aM~A mais de-

no entanto estaacute no impulso utoacutepico nela presente c no salto teoacuterico

que oferece ao buscar um pensameMo agrave alwra dos aspectos radicalmente

novos da experiecircncia do cinema no inicio do seacuteculo Benjamin o filoacutesofo

atento agraves transformaccedilotildees da sensibilidade geradas pelas novas diraacute

em 1936 A natureza que se dirifie dmera natildeo eacute a mesma que a que se

dirige ao olhar Essas c outras suas - sobre o ator o

gt que procura realizar no cinema documentaacuterio a verdade que desmascara a culshy

tura tradicional A cIacutee Vertov diante dos franceses eacute a

ccedilatildeo que ele estabelece cntre desmascaramento e exposiccedilatildeo dos processos efetivos

da Drodudiacuteo social das relaccedilotildees de atraveacutes do montagem cinematogniacutefica

43

analiacutetico da Imagem retomam muito do repertoacuterio da vanguarda dos anos

20 inserindo a caracterizaccedilatildeo do olhar do cinema numa reflexatildeo mais amshy

pIa sobre teacutecnica e cultura Nessa reflexatildeo a moldura eacute outra mas prevalece

o mesmo movimento de ressaltar o papel subversivo revelado r da fotoshy

grafia e do cinema dentro da cultura europeacuteia A promessa entatildeo se reafirshy

ma sem as premissas de eXflressividade total e de retorno agrave natureza

Com Benjamin ela aSSume um contorno histoacuterico mais bem demarcado eacute

por um persamento mais sensiacutevel agrave contradiccedilatildeo e ao caraacuteter das

forccedilas sociais em conflito Pensamento que nos trouxe uma avaliaccedilatildeo da

questatildeo da arte dentro de uma articulaccedilatildeo mais luacutecida com a conjuntura

poliacutetica e a proacutepria natureza das apostas em na Europa dos anos 30

polarizada por uma confrontaccedilatildeo decisiva entre revoluccedilatildeo e reaccedilatildeo

A CRiacuteTICA DO OLHAR SEM CORPO

No seu elogio ao aspecto revelador do olhar no cinema o pensamento

dos anos 20 colocou o debate em termos de verdade (cinema) emendra

(tradiccedilatildeo cultural) e deu toda ecircnfase agrave cumplicidade entre cinema e natushy

reza solidaacuterios enquanto um organismo e sua expressatildeo visual prontos a

expulsar a simulaccedilatildeo desde que a nova teacutecnica fosse salva de su~ adultera-

promovida pelo universo da mercadoria Por esse a oposishyentre um cinema desejado objeto do recalque e aquele que

realmente impera (a pedagogia da induacutestria orienta-se por uma teleoIOPla o presente eacute o mOmelItO dos entraves que impedem o desenshy

volvimento na direccedilatildeo COrreta eacuteapaz de realizar as promessas da nova

teacutecnica o futuro eacute o preenchimen~o dessas promessas que desde jaacute as vanshy

guardas anunciam e preparam Entre 1920 e J960 os poderes reais inshy

sistiram em repor o mesno cinema dominante o que trouxe em linhas

a reiteraccedilatildeo da mesnla matriz de contestaccedilatildeo O conflito dominanshy

tedominado traduzido em termos de verdade e refez-se ao

longo de eixos diversos Quando prevaleceu um eixo poliacutetico o poacutelo da

verdade (futuro) identificou-se agrave cultura revolucionaacuteria o da mentira

presentet agraves mistificaccedilotildees da reaccedilatildeo Quando prevaleceu um eixo esteacutetishy

co verdade foi poesia originalidade experimentaccedilatildeo mentira foi a rotishy

na do comeacutercio o kitscll industrializado

Natildeo cabe agora a recapitulaccedilatildeo do que foram as diferentes versotildees

desse conflito vanguardacultura de massa em cada e eacutepoca Natildeo o

poderia fazer nem quero pois meu objetivo eacute saltar dessa primeira refleshy

xatildeo dos anos 20 para uma mais proacutexima de gerada no contexto franshy

cecircs poacutes-68 reflexatildeo que abandonou a tradiccedilatildeo de opor verdade e mentishy

ra deslocando a discussatildeo sobre a teacutecnica do cinema

No grande intervalo que a criacutetica avanccedilou na caracterizashy

ccedilatildeo do olhar sem corpo e suas implicaccedilotildees notadamente na avaliaccedilatildeo de

sua estrutura mais comunicativa e sedutora o cinema olhar da

induacutestria da ideologia dominante nos meios Extensatildeo do qlle

chamei olhar melodramaacutetico o cinema claacutessico eacute sua modernizaccedilatildeo Faz

com que ele abandone os excessos maiores do ganhe em

profundidade dramaacutetica amplitude temaacutetica concretizando o ver mais e

melhor do cinema na direccedilatildeo de um ilusionismo mais completo - o cineshy

ma claacutessico eacute o olhar sem corpo atuando em sentido

caracterizaccedilatildeo dos seus poderes apresentada em minha primeira

que de fato ajusta-se mais precisamente a esse estilo particular dOJTIinanshy

te no mercado e natildeo a todo o cinema possiacutevel Eacute nele mais do que em

qualquer outra proposta que vemos realizado o de intensificar ao

extremo nossa relaccedilatildeo com o mundo-objeto fazer tal mundo parecer autocircshy

nomo existente em seu proacuteprio direito natildeo encorajando perguntas na

direccedilatildeo do proacuteprio olhar mediador sua estrutura e comportamento Soshy

mos aiacute convidados a tomar o olhar sem corpo como dado natural

Entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 60 dois grandes

de reflexatildeo conduziram a criacutetica a essa naturalidade postulada pelo cineshy

ma claacutessico a teoria radical do cinema-discurso baseado nas operaccedilotildees da

montagem (o Eisenstein dos anos 20-30 permaneceu aqui a referecircncia

central) e a criacutetica francesa inspirada na fenomenologia tendo como [oco

maior Andreacute Bazin3

3 Cf Bazin Cinema ensaios trad Eloisa Ribeiro (Satildeo Paulo Brasilicnse 1991)

44 45

Falar de Eisenstein exigiria uma abordagem radicalmente distinta da

que faccedilo agora pois sua criacutetica ao ilusionismo COmeccedila com a advertecircncia

de que a imagem cinematograacutefica natildeo deve ser lida c0f110 produto de um

olhar Para ele a suposiccedilatildeo de que houve um encontro uma contiguumlidade

espacial e temporal entre cacircmera e objeto natildeo eacute O dado central e impresshy

cindiacutevel da leitura da imagem Sua presenccedila na tela eacute um fato de natureza

que deve ser observado em seu valor simboacutelico

caracteriacutesticas de sua composiccedilatildeo e sua no Contexto de um discurshy

so que eacute exposiccedilatildeo de ideacuteias natildeo sucessatildeo natural de fatos captados

pelo olhar A diferenccedila entre um plano geral e um cose-up por

muitas vezes natildeo pode ser entendida como olhar versus

olhar de mesmo quando se focaliza o mesmo ODjeto mas como

confronto de duas imagens de valores distintos A diferenccedila eacute de

natildeo de posiccedilatildeo no espaccedilo pois pode natildeo haver COntinuidade e

homogeneidade espacial para que se possa falar num mais perto

- tudo depende do contexto do discurso por imagens

Ao contraacuterio de Eisenstein os criacuteticos inspirados na fenomenologia

endossam e defendem a premissa de que no cinema toda imagem eacute proshy

duto de um olhar - eacute essencial que ela seja vista como tal- e a sucessatildeo

define sempre a atitude do observador diante de um mundo homogecircneo

Agrave imagem-signo de Eisenstein eles opotildeem a imagem-acontecimento agrave

defesa da descontinuidade proacutepria do cineasta russo respondem Com

uma defesa ateacute mais radical do princiacutepio de continuidade jaacute presente na

narraccedilatildeo claacutessica fazendo a ela um reparo fundamental se a imagem em

movimento nos traz a percepccedilatildeo privilegiada do homem como ser lanccedilashy

do no mundo como ser-em-situaccedilatildeo a falsidade do cinema claacutessico estaacute

na manipulaccedilatildeo impliacutecita em sua montagem o olhar sem corpo e a

onividecircncia criam na tela uni mundo abstrato de sentido fechado preshy

julgado e organizado pelo cin~ina Toda montagem eacute discurso manipulashy

ccedilatildeo de Eisenstein de GrUacutefith ou de Bufiacuteuel Em oposiccedilatildeo um criacutetishy

co como Bazin solicita um olhar cinematograacutefico mais afinado ao olho de

um sujeito circunstanciado que p6ssui limites aceita a abertura do

mundo convive com ambiguumlidades Quando pede realismo ele natildeo se

46

deteacutem em consideraccedilotildees de conteuacutedo (o tipo de universo Ciccional ou doshy

cumentaacuterio) Sublinha a postura do olhar em sua interaccedilatildeo com o mundo

tanto mais legiacutetima quanto mais as condiccedilotildees de nosso olhar

ancorado no corpo vivenciando uma duraccedilatildeo e uma circunstacircncia em sua

continuidade trabalhando as incertezas de uma percepccedilatildeo

ultrapassada mundo Daiacute sua minimizaccedilatildeo da montagem (instacircncia

construtora da onividecircncia) sua defesa do plano-seguumlecircncia (olhar uacutenico

sem cortes observando uma em seu um acontecimento

em seu fluir

Numa visatildeo mais atual prestamos atenccedilatildeo especial ao que aproxima

e natildeo apenas ao que afasta o cinema-discurso de Eisenstein e o realismo

existencial de Bazin haacute em ambos novamente a atribuiccedilatildeo de um poder

de verdade e de um poder de mentira encarnados em determinados estishy

los Para Eisenstein haacute um estilo capaz de dizer o mundo social-histoacuterishy

co colocando o cinema como potecircncia maior no plano do conhecimento

Para Bazin O cinema eacute uma espeacutecie de terceiro estado da e exisshy

te um estilo autecircntico na captaccedilatildeo da vivecircncia humana em sua

essencial abertura no tempo

Contra esse pano de fundo da tradiccedilatildeo teoacuterica a intervenccedilatildeo de

]ean-Louis Baudry em 1969-70 em questatildeo a constante promessa de

um estilo mais verdadeiro e dirige seu ataque agraves premissas do cinema em

geral examinando mais a fundo as condiccedilotildees do espectador raciociacuteshy

nio estaacute municiado para analisar o espectador do filme claacutessico mas

fala em cinema tout couTe) 4 O horizonte de seu exame eacute ressaltar o

modo pelo qual a recepccedilatildeo da imagem possui uma estrutura que a seu ver

solapa o reiterado creacutedito - de Eisenstein Griffith Epstein na

da verdade como destinaccedilatildeo fundamental do cinema Ele invershy

te a tradiccedilatildeo e vecirc na simulaccedilatildeo na de efeitos (ilusoacuterios) de

conhecimento o destino maior da nova arte (visatildeo que

4 O mais importante dos textos de Jean-Louis dessa

1970 Os efeitos ideoloacutegicos do de base estaacute publicado em Ismail

Xavier (orll) A experiecircncia do cinema (Rio de Janeiro

47

pela permanecircncia do ilusionismo do cinema industrial) Isso se daacute por

forccedila da proacutepria natureza da teacutecnica cinematograacutefica herdeira das ilusotildees _

da perspectiva da persistecircncia retiniana (natildeo vemos os fotogramas vemos

o que natildeo ocorre na tela ou seja o movimento da imagem e temos a imshy

pressatildeo de continuidade) da falsa autenticidade documental da fotografia

Rearticulando elementos jaacute conhecidos Baudry nos traz uma interpretashy

ccedilatildeo radical que- questiona natildeo estilos particulares de fazer cinema mas o

fundamento mesmo de sua objetividade como teacutecnica essa mes~a objetishy

vidade que tem sido a sustentaccedilatildeo maior das esperanccedilas de verdade Na

nova perspectiva as diferentes posiccedilotildees teoacutericas desde 1920 definem um

pensar o cinema a priori capturado pelas ilusotildees da teacutecnica e desatento agraves

implicaccedilotildees contidas na proacutepria estrutura do olhar da cacircmera tal como se

daacute para noacutes na plateacuteia A teacutecnica tem suas inclinaccedilotildees seus efeitos ideoloacuteshy

gicos e nesse sentido eacute ela mesma que impele o cinema industrial a desenshy

volver seu ilusionismo e trazer o espectador para dentro do mundo ficcioshy

na A forccedila de encantamento desse cinema persiste na histoacuteria porque o

dado crucial em jogo natildeo eacute tanto a imitaccedilatildeo do real na tela _ a reproduccedilatildeo

integral das aparecircncias - mas a simulaccedilatildeo de um certo tipo de sujeito-doshy

olhar pelas operaccedilotildees do aparato cinematograacutefico

Avaliar a potecircncia do olhar sem corpo natildeo eacute entatildeo inventariar as

imagens que ele oferece efocaIacuteIacutezar o seu movimento proacuteprio sua forma

de mediaccedilatildeo o que impiacuteica analisar sua incidecircncia no espectador que

vivenda o poder de clarividecircncia a percepccedilatildeo tota Na sala escura idenshy

tificado com o movimento do olhar da cacircmera eu me represento como

sujeito dessa percepccedilatildeo total capaz de doar sentido agraves coisas sobrevoar as

aparecircncias fazer a siacutentese do mundo Minha emoccedilatildeo estaacute com os fatos

que o olhar segue mas a cbndiccedilatildeo desse envolvimento eacute eu me colocar no

lugar do aparato sintoniz~do com suas operaccedilotildees Com isso incorporo

(ilusoriamente) seus poder~s e ericontro nessa sintonia - solo do entendishy

mento cinematograacutefico - o maior cenaacuterio de simulaccedilatildeo de uma onipotecircnshy

cia imaginaacuteria No cinema faccedilo uma viagem que confirma minha condishy

ccedilatildeo de sujeito tal como a desejo Maacutequina de efeitos a realizaccedilatildeo maior do

cinema seria entatildeo esse efeito-sujeito a simulaccedilatildeo de uma consciecircncia

48

transcendente que descortina o mundo e se vecirc no centro das coisas ao

mesmo tempo que radicalmente separada delas a observar o mundo coshy

mo puro olhar Nessa apropriaccedilatildeo ilusoacuteria da competecircncia ideal do olhar

estou portanto no centro mas eacute o aparato que aiacute me coloca pois eacute dele o

movimento da percepccedilatildeo monitor da minha fantasia

Para Baudry uma filosofia idealista que postula um sujeito transshy

cendente em oposiccedilatildeo ao mundo objetivo que se dispotildee ao conhecimento

encontra aiacute na teacutecnica do cinema sua traduccedilatildeo visiacutevel Toda sua ecircnfase

recai sobre a produccedilatildeo simultacircnea da imagem e do sujeito-observador

onividente A engenharia simuladora do cinema define com o efeitoshy

sujeito seu teatro da percepccedilatildeo total cujo protagonista sou eu-espectador

identificado com o olhar da cacircmera

N esses termos o que dificulta a consolidaccedilatildeo de linguagens alternashy

tivas mais verdadeiras eacute esse pecado original inscrito na teacutecnica Esta

tem na ilusatildeo seu sustentaacuteculo e os percalccedilos das vanguardas devem-se a

que sua aposta eacute reverter a funccedilatildeo daquilo que jaacute nasceu para cumprir

outro destino Digo destino porque a loacutegica dessa teoria transforma o cineshy

ma num oacutergatildeo que surgiu para cumprir um programa o de objetivar na

esfera do visiacutevel estrateacutegias de dominaccedilatildeo especialmente as da classe burshy

guesa que presidiu sua origem Assim antes de instacircncia liberadora subshy

versiva a condiccedilatildeo do cinema eacute preencher uma demanda do proacuteprio unishy

verso carceraacuterio tornando-o mais preciso e poderoso em seu aparato

Haacute uma atmosfera de desencanto instalada a partir dos anos 70 a

formulaccedilatildeo aqui exposta eacute a traduccedilatildeo teacuteoacuterica radical dos impasses da conshy

testaccedilatildeo no cinema Temos o esgotamento de uma teleologia a da teacutecnishy

ca redentora entravada pela poliacutetica e a economia e sua substituiccedilatildeo

por u~a outra a da teacutecnica como instrumento maior de reposiccedilatildeo de um

sistema de poder Em consonacircncia corn a tonalidade da reflexatildeo sobre a

linguagem a cultura e a ideologia naquele momento a teoria do cinema

mais original e polecircmica ressalta o lado sistemaacutetico inelutaacutevel das ilusotildees

e dos enganos do olhar da cacircmera Nesse contexto a proacutepria praacutetica do

cinema amplia o espaccedilo para a reflexatildeo teoacuterica voltada para a questatildeo do

simulacro - a citaccedilatildeo a imagem que-alude agrave imagem o circuito das refeshy

49

recircncias a si mesmo que o cinema leva ao paroxismo entram para valer na

esfera da induacutestria constituem sua nova marca Tal reflexatildeo se faz dentro

de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do

cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura

contemporacircnea A imagem cinematograacutefica eacute entatildeo obseJvada a partir de

sua participaccedilatildeo em outra rede de relaccedilotildees em que natildeo haacute para a

interpretaccedilatildeo (esse tomar a imagem como representaccedilatildeo de algo exterior

a ela) para o juiacutezo da verdade ou mentira em que se a oposlccedilao

aparecircncia (imagem)essecircncia (substacircncia) -nada haacute por traacutes das lmlti~e~ns

elas valem como efeitos-de-superfiacutecie imagem remetendo a imagem fluxo de simulacros

Faccedilo agora uma incursatildeo que natildeo eacute propriamente no terreno da

nova filosofia e das questotildees mais amplas do simulacro na produccedilatildeo

Trata-se de uma anaacutelise particular no niacutevel da engenharia da simulaccedilatildeo

caracterizaccedilatildeo de um efeito na qual natildeo eacute necessaacuterio assumir as noccedilotildees

com a mesma ressonacircncia elas adquiriram na literatura dos anos 80

Fecho a exposiccedilatildeo com a consideraccedilatildeo de um novo exeacutemplo que acredishy

to esclareccedila algumas observaccedilotildees feitas ateacute aqui sobre a interaccedilatildeo entre

espectador e imagem sobre o papel da moldura do sujeito na leitura

Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o

efeito de uma depende de sua ~elaccedilatildeo com o sujeito em determishy

nadas condiccedilotildees Da situaccedilatildeo da testemunha de McCarthy passei a uma

caracterizaccedilatildeo mais detida do olhar do cinema e examinei dois momenshy

tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexatildeo criacuteshy

tica em torno do que hiacute de erigano e rcvelaccedilatildeo nesse olhar A partir de

uma discussatildeo mais sobre a simulaccedilatildeo do fato - na fotografia no

cinema chegamos a uma questatildeo mais especiacutefica a simulaccedilatildeo do sujeishy

to na estrutura mesma (lo olhar cinematograacutefico Dentro da discussatildeo

mais geral o exemplo a envolve uma situaccedilatildeo mais complicada do

quea das fotos do tribunal estaremos no cinema Como inspiraccedilatildeo

terei presentes as liccedilotildees de Baildry sem no entanto incorporar o movishy

mento totalizador de suaacute criacutetica ao olhar do cinema Seu amplo diagnoacutesshy

tico mobilizando a psicaacutenaacutelise tem como pressuposto o fato de sabershy

0

mos o bastante sobre a natureza do espectador de modo a prever o caraacuteshy

tcr de sua identificaccedilatildeo com o aparato a qual assume uma dimensatildeo

uacutenica de adesatildeo agrave imagem por forccedila do efeito-sujeito Como conhecedoshy

res do desejo do espectador denunciamos o conluio desse desejo com o

programa da induacutestria e deduzimos daiacute as alienaccedilotildees do cinema e da

teacuteia Natildeo tenho condiccedilotildees de endossar a generalidade desse saber a resshy

peito do espectador o aparato atua em determinada direccedilatildeo mas a expeshy

riecircncia do cinema inclui outras forccedilas e condiccedilotildees que natildeo se ajustam ao

programa do sistema A formulaccedilatildeo dc Baudry embora inclua com toda

a forccedila a dimensatildeo do desejo do espectador natildeo deixa de ser outra vershy

satildeo das teorias da manipulaccedilatildeo global centradas em excesso no aspecto

da experiecircncia de modo a confundir o processo que efetishy

vamente ocorre com a loacutegica ideal do sistema Focalizo uma situaccedilatildeo

didaacutetica nesse contcxto em que eacute perfeito o funcionamcnto do

aparato cm quc podemos verificar o mecanismo da simulaccedilatildeo em estashy

do digamos de laboratoacuterio

IVIULALAU E PONTO OE VISTA

Toda leitura de eacute pr()(llltatildeo de um ponto de vista o do sujeito

observador natildeo o da objetividade (b irnagetnA condiccedilatildeo dos efeitos

da imagem eacute essa Em particular o ekilO rb apoacuteia-se numa

construccedilatildeo que inclui o fmguh do obSlrVIr1or O simulacro parece o

que natildeo eacute a partir de um pOIHo ele vista () sujeito estaacute aiacute pressuposto Porshy

tanto o processo elc simulaccedilatildeo nlo l o (Li imagemem si mas o da sua

relaccedilatildeo com o sujeito Num (gt1lt1110 elemelltar podemos tomar o cinema

como modelo do processo O (llIC eacute a fjltnilgcm senatildeo a organizaccedilatildeo do

I 1 I - C f dacontecllnento pra 11111 angu () (C o lscrvaccedilao o que se con un e com

Nessas asserccedilotildees no de Xavier Audouard Le Simulacrc in

eacutepisteacutemologie de lEcole Normale gtuucushy

rc n mai-jun 1966) O horizonte de Audouard eacute o de uma discussatildeo sobre o

idealismo platocircnico seu terreno eacute ponanto distinto e meu natildeo

ca uma identificaccedilatildeo agrave sua perspectiva de anaacutelise

i J

o da cacircmera e nenhum outro mais) O que eacute a fachada de preacutedio de estuacuteshy

dio senatildeo a duplicaccedilatildeo do mesmo princiacutepio da fachada de rua que sushy

gere o que natildeo eacute justamente quando observada de um certo acircngulo e disshy

tacircncia jaacute pressupostos em sua composiccedilatildeo O que eacute a ficccedilatildeo do cinema

senatildeo uma simulaccedilatildeo de mundo para o espectador identificado com o aparato

Vertigo (Um corpo que cai) O filme de Hitchcock realizado

em 1958 Ele eacute a trama da simulaccedilatildeo por excelecircncia como jaacute foi observashy

do pela criacutetica Trago um aspecto novo agrave consideraccedilatildeo o do espelhamenshy

to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e

o proacuteprio princiacutepio da narraccedilatildeo do filme Tal como em outras obras de

Hitchcltck o cinepa c1aacutessi~o aqui operagrave com eficiecircncia maacutexima e ao

mesmo tempo oferece a metaacutefora viva para o seu proacuteprio processo Inteshy

ressado nessa metaacutefora acentuo nesta anaacutelise a mecacircnica da simulaccedilacirco o

funcionamento exterior do aparato natildeo o que nas personagens eacute desejo

do estratagema e disposiccedilatildeo para a vertigem da imagem

Sigamos passo a passo a narrativa ateacute o ponto que interessa

Vertigem tiacutetulo original eacute a palavra que condensa as ideacuteias-forccedila

do filme em sua tematiacutezaccedilatildeo do olhar e do ponto de vista A apresentaccedilatildeo

de Vertigo criaccedilatildeo de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em

close-up tratado como maacutescara enigmaacutetica imoacutevel Uma aproximaccedilatildeo

maior e um passeio da cacircmcra examinam essa maacutescara em seus detalhes

ateacute que isolado o olho ofereccedila os sinais de vida Os seus movimentos no

entanto natildeo criam uma ~xpressatildeo definida uma intcncionalidade do olhar

Preparam apenas o cenaacuterio ptra um movimentoem espiral na profundishy

dade Mergulho na inteacuteiioridaacutedc cujo fundo inatingiacutevel estaacute sempre em

recesso Aproximaccedilatildeo e recuo atraccedilatildeo e fuga a ambiguumlidade do movishy

mento da espiral ~ experiecircncia matriz de todo o filme cujo eixo eacute o

percurso de profissional do olhar detetive personificaccedilatildeo da

vertigem Logo na primeira sequumlecircncia define-se a questatildeo desse protagoshy

nista numa perseguiccedilatildeo telhados de Satildeo Francisco a vertigem de Scottie o faz responsaacuteveacutel pela morte de um

tentar ajudaacute-lo Sentimeriacuteto de cu1Da aposentadoria

52

lecida a disponibilidade total de a situaccedilatildeo-chave de Vertigo deseshy

nha-se quando ele atende ao chamado de Elster de escola que

no reencontro surpreende-o com o pedido para que sua mulher

Madeleine Elster mostra-se apreensivo com as manifestaccedilotildees de ausecircnshy

cia que ela apresenta com os periacuteodos de comportamento estranho em

que ela parece ser outra pessoa de que retoma sem lembranccedilas

O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma

proposto Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine pesquisa pela

recolhe dados essenciais Um primeiro quadro se compotildee a

ra que dela se apossa em seus transes eacute Cadota Valdez mulher que viveu

em San Francisco no seacuteculo XIX e que se suicidou em circunstacircncias meshy

lancoacutelicas Novamente com Elster Scottie relata as descobertas O marishy

do introduz novo dado Madeleine estaacute em perigo de vida pois descende

de Carlota outras mulheres da linhagem cometeram suiciacutedio e ela tem

agora a idade de Carlota ao morrer

Na primeiraacute seacuterie de passeios de Madeleine fase em que se compotildec

o quadro tivemos uma ostensiva duplicaccedilatildeo num primeiro plano Scortie

observa MadeJeine que natildeo reconhece sua presenccedila (ele estaacute fora do tershy

ritoacuterio dela) e se potildee disponiacutevel ao olhar movimentando-se como numa

cena num segundo plano ao longo do mesmo eixo a cacircmera observa

Scottie que Madeleine Satildeo duas uma dentro da outra que

natildeo se tocam Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele ambos enquadra~

dos por noacutes no lugar da cacircmera Madeleine nunca devolve o olhar a Scotshy

tie devolve o olhar agrave cacircmera (regra do filme claacutessico) Mas eacute

ambiacutegua essa passividade pois eacute o movimento dela que dirige o olhar

dele eacute a accedilatildeo de ambos que dirige o nosso olhar sempre na esteira do

acircngulo de de Scottie com quem partilhamos a ignoracircncia a

curiosidade a descoberta

Apoacutes a segunda conversa com Elster o tema do suiciacutedio engendra

uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria MadeleineCarlota

atira-se nas aacuteguas da baiacutea de San Francisco Scottie a resgata Permaneceshy

mos puro olhar ele passa ao plano da intervenccedilatildeo e do diaacutelogo Com os

dois juntos certa concretude o que em Scottie eacute jaacute sonho romacircnshy

53

tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do

filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs

do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e

terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM

sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a

lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute

coloca adiante dele na investigaccedilatildeo

A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy

satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela

que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e

com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy

gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave

de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre

alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se

e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos

da escada retido pela vertigem - e somos retidos

com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai

O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um

psicologicamente massacrado Elsshy

natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco

destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar

em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um

dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras

no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de

Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus

motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade

(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy

to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme

natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente

natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy

54

dos no quarto ficamos ao lado de

sem delongas que natildeo espera o final

Sozinha no quarto hesitante nervosa

assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy

a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy

para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade

para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy

blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez

de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao

topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o

mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre

Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou

resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda

para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas

posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy

ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema

bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia

apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do

suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo

de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy

dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as

imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()

prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a

loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy

lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy

leine-Carlota em a Scottic

O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse

mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy

vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade

e o de (a natildeo foi apenas para ele a

Urna leimra mais completa de Vertigo exishy

~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy

para o estratagema do as permanecem na

55

esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy

sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas

consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui

afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte

final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema

No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo

na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a

reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos

nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que

era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy

satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy

tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy

sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da

outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o

estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy

nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy

Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a

accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata

Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave

moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo

nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir

de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma

questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy

posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy

to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o

espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)

6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy

ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin

Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a

psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense

1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ

Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se

uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy

co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para

finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do

cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy

nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy

ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens

do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que

nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle

de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta

o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos

entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve

a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim

oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos

a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy

so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu

ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa

segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista

muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da

relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar

e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo

eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de

imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo

vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz

de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos

Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy

te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo

implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas

colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo

com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que

fora do campo torna visiacutevel

56 57

Page 6: Ismail Xavier Cinema Revelacaoengano

I I

espectador mergulhar no drama com mais intensidade O olho sem corshy t po cerca a encenaccedilatildeo torna tudo mais claro enfaacutetico expressivo ao narshy

rar uma histoacuteria o cinema faz fluir as accedilotildees no espaccedilo e no tempo e o I

mundo torna-se palpaacutevel aos olhos da plateacuteia com uma forccedila impensaacutevel I em outras formas de representaccedilatildeo Ou seja em seu tornar visiacutevel a meshy

rdiaccedilatildeo do olha cinematograacutefico otimiza o efeito da ficccedilatildeo cumprindo com

muita competecircncia uma tarefa que na esfera da cultura considera-se como Jproacutepria da arte e em especial dos espetaacuteculos Ao exaltar esse salto na efishy ccedil

iciecircncia dentro d~ continuidade de princiacutepios e funccedilotildees os criacuteticos cineasshy

tas e prod~tores afinados agraves regras do mercado cultural da eacutepoca celebram

o na produccedilatildeo industrial do seacuteculo xx de um projeto que vem do

seacuteculo XVIII e que se definiu na origem para a representaccedilatildeo teatraL

Eacute comum sermos lembrados ~o quanto a cacircmera fotograacutefica constishy

tui uma objetivaccedilatildeo tecnoloacutegica recente de princiacutepios da representaccedilatildeo jaacute I

conhecidos cuja sistematizaccedilatildeo vem do Renascimento italiano (cacircmara i iacuteescura o meacutetodo da perspectiva os efeitos de profundidade na superfiacutecie

da tela) Com a imagem em movimento o representar a dos homens iacute se daacute com a franca hegemonia do ilusionismo a encenaccedilatildeo tal e qual o I real plantado no cinema industrial desde os tempos de D W Griffith

Fato que cristaliza uma heranccedila menos tematizada pela criacutetica a do olhar Ital como constituiacutedo no drama burguecircs Aqui a referecircncia teoacuterica essenshy

cial eacute Diderot No momento em que escreve suas peccedilas e formula a teoria trenovadora do teatro definiuacutedoo drama seacuterio burguecircs do seacuteculo XVIII

~ um elemento central no seu ideaacuterio eacute a criacutetica ao teatro vinculado aos ~

gecircneros claacutessicos - principalmente ao tipo de encenaccedilatildeo que se dava agraves

trageacutedias claacutessicas francesas do seacuteculo XVII Esse teatro por demais ancoshy

rado na palavra depende da exclusiva forccedila poeacutetica do texto desdenhanshy

doo aspecto visual da experiecircncia do palco Ou eacute incapaz de elaboshy

rar a cena propriamente dita tal como o filoacutesofo a entende explorando a

expressividade do gesto e a cocircmposiccedilatildeo visual da cena (os tableaux consshy

truiacutedos pela posiccedilatildeo reciacuteproca dos atores e da cenografia)

Diderot queria um teatro dirigido agrave sensibilidade por meio da reshy

produccedilatildeo integral das aparecircncias do mundo queria um meacutetodo de dar

38

a ver as situaccedilotildees os gestos as emoccedilotildees O ilusionismo fonte do enshy

volvimento da plateacuteia eacute entatildeo assumido como a ponte privilegiada no

caminho da compreensatildeo da experiecircncia humana da assimilaccedilatildeo de

valores da explicitaccedilatildeo de movimentos do coraccedilatildeo Tal demanda proacutepria

do universo da Ilustraccedilatildeo do seacuteculo XVIIl tem seus desdobramentos e

depois da Revoluccedilatildeo Francesa em outra atmosfera social e

explode no teatro popular de 1800 Aiacute se consolida o gecircnero dramaacutetico

de massas por excelecircncia o melodrama Esse tem sido por meio do teashy

tro (seacuteculo do cinema (seacuteculo xx) e da TV (desde

taccedilatildeo mais contundente de uma busca de expressividade

moral) em que tudo se quer ver estampado na superfiacutecie do mundo na

ecircnfase do gesto no trejeito do rosto na eloquumlecircncia da voz Apanaacutegio do

exagero e do excesso o melodrama eacute o gecircnero afim agraves grandes revelashy

ccedilotildees agraves encenaccedilotildees do acesso a uma verdade que se desvenda um

sem-nuacutemero de misteacuterios equiacutevocos pistas falsas vilanias Intenso nas

accedilotildees e sentimentos carrega nas reviravoltas ansioso pelo efeito e a

comunicaccedilatildeo envolvendo toda uma pedagogia em que nosso olhar eacute

convidado a apreender formas mais imediatas de reconhecimento da

virtude ou do pecado N a virada do seacuteculo XIX para o XX natildeo surpreende que a teacutecnica do

cinema entatildeo emergente tenha assumido essa pedagogia e tenha substishy

tuiacutedo o melodrama teatral na satisfaccedilatildeo de uma demanda de ficccedilatildeo na soshy

ciedade Quando falo em ilusionismo reproduccedilatildeo das aparecircncias na vershy

dade que adveacutem do conflito de forccedilas que se expressam e se revelam pelo

olhar estou afirmando princiacutepios da representaccedilatildeo aos quais o cinema vem

se ajustar como uma luva Como braccedilo da induacutestria cultural ele

do movimento de objetivaccedilatildeo institucional da Ilustraccedilatildeo Sua

do olhar melodramaacutetico eacute o ponto-limite de um projeto de expressatildeo

total da natureza na representaccedilatildeo Reflete um ideal de domiacutenio e controshy

le da aparecircncia como sinal de conhecimento da natureza um ideal que

inscreve a arte como espelho pedagoacutegico que requer a competecircncia tecnoshy

loacutegica de criar ilusatildeo e por essamiddotvia atingir a sensibilidade a passagem

das trevas agrave luz se faz de efeitos sobre o olhar

39

Dentro do projeto de revelaccedilatildeo do mundo para o olhar os efeitos do

close-up logo adquirem a condiccedilatildeo de emblema das virtudes da nova arte

Mais do que a montagem - sua condiccedilatildeo preacutevia - o close-up na Franccedila e

nos Estados Unidos atrai o dos cineacutefilos corno ponto de condenshy

de um drama que se faz movimento dos olhos - o que vecirc e o

que eacute visto - e pela trama formada pela sucessatildeo de detalhes

e reveladores Corno movimento em direccedilatildeo agrave intimidade e V1stO corno

potecircncia maior do cinema que muito cedo impressionou a todos pela sua

capacidade de devastaccedilatildeo das intenccedilotildees ocultas do pequeno gesto fora do

alcance dos interlocutores do movimento facial que trai um sentimento

Natildeo foi preciso a manifestaccedilatildeo da criacutetica cineastas e produtores conduzishy

ram as experiecircncias reveladoras da forccedila dramaacutetica do rosto isolado na e usando a tradicional muito antes de 1920 jaacute insshy

truiacutea seus atores para a dos olhos - janela da alma _ trazishy

dos para perto no close-up para o exame

Foco das atenccedilotildees e dos o close-up estaraacute em I920 tambeacutem

no centro das reflexotildees de quem afastado dos valores promovidos pela

induacutestria do cinema observa seus prodiacutegios com outra moldura de inteshy

resses e julga os filmes do mercado por demais domesticados pela

demanda de ficccedilatildeo que induz o novo meio a seguir os passos do teatro e

da literatura popular Encontramos aqui quem vecirc o cinema como ruptushy

ra espectadores avessos aos do filme de accedilatildeo corrente cinecircfilos

natildeo interessados na fluecircncia dos acontecimentos no pulsar da

nas tensotildees dramaacuteticas usuais Por intermeacutedio deles o cinema uma

recepccedilatildeo mais empenhada em surpreender aspectos da plaacutestica da imashy

gem do trabalho da cacircmera e da presenccedila peculiar do mundo na tela que

permanecem recalcados na visatildeo dominante Para esse olhar diferenciashy

do por meio do cinema toda urna esfera nova de percepccedilotildees abre-se agrave

nossa experiecircncia desde que sejamos capazes de entender a expressividashy

de da nova imagem em outros termos elogiando sim o mas denshy

tro de urna outra oacutetica a de quem entende o cinema natildeo como coroamenshy

to do ilusionismo teatral mas como ruptura inauguraccedilatildeo de um novo diaacutelogo com a natureza e os homens

4deg

Satildeo os intelectuais e artistas ligados agrave arte moderna que lideram essa

nova leitura do cinema de uma perspectiva que na Franccedila traduziu-se no

cineacutema davant-garde nas experiecircncias dos surrealistas e nas polecircmicas

que tiveram como pauta a superaccedilatildeo da moldura melodramaacutetica a libershy

taccedilatildeo do olhar sem corpo das amarras da continuidade narrativa a adeshy

da nova arte agrave sua teacutecnica moderna A

fcrentes grupos postos de lado os conflitos que os

cinema destina-se a uma tarefa de redenccedilatildeo A cultural

do Ocidente europeu estaria falida o poder criador preso a convenccedilotildees

obsoletas saturado de referecircncias que o desvigoram Enredado em formas

de pensar e sentir desgastadas o homem culto se vecirc separado da natureshy

za reprimido cercado de mentiras de clichecircs da de maacutescaras

O cinema eacute radicalmente novo inocente e traz a da tecnologia

Ele pode e deve romper essa grade devolvendo aos homens o acesso a

uma natureza alienada pelos artifiacutecios de uma cultura

A vanguarda se estabelece como cultUra de separando o

espaccedilo utoacutepico da verdade (cinema vida futura) e o espaccedilo da mentira da

convenccedilatildeo (tradiccedilatildeo literaacuteria teatro cotidiano burguecircs) Sua feacute no cinema

ancora-se numa ideacuteia de expressatildeo que tambeacutem se apoacuteia na acuidade de

reproduccedilatildeo da aparecircncia proacutepria da nova teacutecnica mas com um traccedilo pecushy

liar que afasta a do pensamento gerado na esfera da induacutestria

Germaine Dulac e Epstein principais porta-vozes da avant-ga

concebem o cinema corno expressividade do mundo num sentido radishy

ca1 Combatem a vaga que nos leva a sob qualquer pretexto

isto expressa aquilo de um modo que equivale a isto significa aquilo

dentro dos variados caminhos pelos quais vamos de um poacutelo a outro do

significante ao significado Reservam expressatildeo para designar um proshy

cesso determinado impelido por forccedilas naturais no a composiccedilatildeo de

forccedilas interior a um organismo deixa narcas na do mesmo shy

eacute o movimento nelo Qual ci Que estaacute no interior vem forcosashy

mente agrave tona a forma

I Cf Xavier Seacutetima arte um cuto moderno (Satildeo Paulo 1978)

41

vel) que o cinema vemcaptar com exclusividade pois fixa os movimenshy

tos na peliacutecula sem as atrapalhaccedilotildees do olho natural O cinema tem seu

vigor proacuteprio de um olhar mais automaacutetico

natildeo maculado pelos preconceitos culturais

dade Eacute irocircnico que justamente porque natildeo tem interioridade o olhar

da maacutequina possa atingir o princiacutepio interior dos movimentos revelar a

verdade que organicamente expressa-se em sentido pleno imprime-se

numa textura do mundo que soacute a cacircmera eacute capaz de registrar O proacuteprio

instantacircneo fotograacutefico em sua estrutura mais simples jaacute nos mostra o

quanto a imagem revelada faz emergir dados ocultos que natildeo estavam na

mira do fotoacutegrafo No cinema o movimento poteacutencializa tal desocultashy

mento o qual pode tornar-se mais efetivo quando os cineastas forem cuacutemshy

plices da nova teacutecnica em vez de tentar agrave como no

melodrama a expressividade do fica atrelada a toda uma

cadeia de loacutegica eacute tomada de empreacutestimo agrave do natushy

em que o tOrnar visiacutevel resulta do de uma retoacuterica que ~rH+tia Para

o que era aaequado ao teatro - como ilusionismo do seacuteculo XIX natildeo o eacute para o cinema do seacuteculo xx pois a

imitaccedilatildeo dos gestos antes oferecida a olhos desarmados natildeo resiste agrave anaacuteshy

lise da nova sensibilidade Com o cinema a percepccedilatildeo humana ganhou

um acesso especial agrave intimidade dos processos - ~ele a aparecircncia eacute jaacute uma

anaacutelise O cose-up natildeo eacute o lugar do fingimento eacute uma presenccedila que reveshy

la o que se eacute natildeo o que se pretende ser (inuacuteteis as caretas dos

A aposta da vanguarda estaacute no poder analiacutetico do cinematoshygraacutefico no que ressalta natildeil

espaccedilo) mas tambeacutem as

mente a cacircmera lenta (arnplia(acirco no eixo do tempo) que reveshyIa o mundo em outra e de~cobre-nos a vida secreta que se tece a

nossa volta e em noacutes ganhando ~xpressatildeo nas formas instaacuteveis fora da

nossa consciecircncia que temo~ fixadas pela teacutecnica2 Epstein nos seus

2 Essa aposta no poder analiacutetko do dnema tem uma versatildeo radical moshymento na Uniatildeo Sovieacutetica encarnada rio projeto do Cine-Olho de Vertov gt

42

o ~__ao~ das diferentes velocidades

do movimento animal e dos fenocircmenos Fershy

nand Leacuteger as relaccedilotildees e a forma dos objetos fora de sua inserccedilatildeo

utilitaacuteria no cotidiano Embora natildeo totalmente afinado ao cineacutema dayantshy

garde o surrealismo torna-se o movimento de contestaccedil50 ao cinema inshy

dustrial de maior impacto com sua exploraccedilatildeo da montagem como reveshy

laccedil50 das pulsotildees anatomia do desejo Em diferentes busca-se a

experiecircncia fora do senso comum o olhar em sintonia com ~l~r

do - a sensibilidade efetivamente moderna A

(Epstein) surge entatildeo como nova pedagogia

ccedilatildeo ao cenaacuterio do melodrama - pois o cincma teria como destino

trazer-nos de volta uma cosmologia e um encantamento do mundo para

os quais o cartesianismo e a filosofia da Ilustraccedilatildeo cegos

O horizonte desse renascimento seria a explosatildeo do universo carceraacuterio

da existecircncia atual (para usar a expressatildeo de Walter Benjamin em seu

ceacutelebre ensaio de T936 ao falar de reproduccedilatildeo teacutecnica arte e

A formulaccedilatildeo de Epstein-Dulae eacute questionaacutevel auando examinada a

partir de sua ideacuteia-matriz de expressatildeo

analiacutetico (inegaacutevel) da ~~a~Mrl~ aiacute uma feacute inteshy

gral no dado visiacutevel na caj)acldlde exclusiva de

suas relaccedilotildees internas trazer a verdade agrave tona

agrave ao contexto de cada a~aM~A mais de-

no entanto estaacute no impulso utoacutepico nela presente c no salto teoacuterico

que oferece ao buscar um pensameMo agrave alwra dos aspectos radicalmente

novos da experiecircncia do cinema no inicio do seacuteculo Benjamin o filoacutesofo

atento agraves transformaccedilotildees da sensibilidade geradas pelas novas diraacute

em 1936 A natureza que se dirifie dmera natildeo eacute a mesma que a que se

dirige ao olhar Essas c outras suas - sobre o ator o

gt que procura realizar no cinema documentaacuterio a verdade que desmascara a culshy

tura tradicional A cIacutee Vertov diante dos franceses eacute a

ccedilatildeo que ele estabelece cntre desmascaramento e exposiccedilatildeo dos processos efetivos

da Drodudiacuteo social das relaccedilotildees de atraveacutes do montagem cinematogniacutefica

43

analiacutetico da Imagem retomam muito do repertoacuterio da vanguarda dos anos

20 inserindo a caracterizaccedilatildeo do olhar do cinema numa reflexatildeo mais amshy

pIa sobre teacutecnica e cultura Nessa reflexatildeo a moldura eacute outra mas prevalece

o mesmo movimento de ressaltar o papel subversivo revelado r da fotoshy

grafia e do cinema dentro da cultura europeacuteia A promessa entatildeo se reafirshy

ma sem as premissas de eXflressividade total e de retorno agrave natureza

Com Benjamin ela aSSume um contorno histoacuterico mais bem demarcado eacute

por um persamento mais sensiacutevel agrave contradiccedilatildeo e ao caraacuteter das

forccedilas sociais em conflito Pensamento que nos trouxe uma avaliaccedilatildeo da

questatildeo da arte dentro de uma articulaccedilatildeo mais luacutecida com a conjuntura

poliacutetica e a proacutepria natureza das apostas em na Europa dos anos 30

polarizada por uma confrontaccedilatildeo decisiva entre revoluccedilatildeo e reaccedilatildeo

A CRiacuteTICA DO OLHAR SEM CORPO

No seu elogio ao aspecto revelador do olhar no cinema o pensamento

dos anos 20 colocou o debate em termos de verdade (cinema) emendra

(tradiccedilatildeo cultural) e deu toda ecircnfase agrave cumplicidade entre cinema e natushy

reza solidaacuterios enquanto um organismo e sua expressatildeo visual prontos a

expulsar a simulaccedilatildeo desde que a nova teacutecnica fosse salva de su~ adultera-

promovida pelo universo da mercadoria Por esse a oposishyentre um cinema desejado objeto do recalque e aquele que

realmente impera (a pedagogia da induacutestria orienta-se por uma teleoIOPla o presente eacute o mOmelItO dos entraves que impedem o desenshy

volvimento na direccedilatildeo COrreta eacuteapaz de realizar as promessas da nova

teacutecnica o futuro eacute o preenchimen~o dessas promessas que desde jaacute as vanshy

guardas anunciam e preparam Entre 1920 e J960 os poderes reais inshy

sistiram em repor o mesno cinema dominante o que trouxe em linhas

a reiteraccedilatildeo da mesnla matriz de contestaccedilatildeo O conflito dominanshy

tedominado traduzido em termos de verdade e refez-se ao

longo de eixos diversos Quando prevaleceu um eixo poliacutetico o poacutelo da

verdade (futuro) identificou-se agrave cultura revolucionaacuteria o da mentira

presentet agraves mistificaccedilotildees da reaccedilatildeo Quando prevaleceu um eixo esteacutetishy

co verdade foi poesia originalidade experimentaccedilatildeo mentira foi a rotishy

na do comeacutercio o kitscll industrializado

Natildeo cabe agora a recapitulaccedilatildeo do que foram as diferentes versotildees

desse conflito vanguardacultura de massa em cada e eacutepoca Natildeo o

poderia fazer nem quero pois meu objetivo eacute saltar dessa primeira refleshy

xatildeo dos anos 20 para uma mais proacutexima de gerada no contexto franshy

cecircs poacutes-68 reflexatildeo que abandonou a tradiccedilatildeo de opor verdade e mentishy

ra deslocando a discussatildeo sobre a teacutecnica do cinema

No grande intervalo que a criacutetica avanccedilou na caracterizashy

ccedilatildeo do olhar sem corpo e suas implicaccedilotildees notadamente na avaliaccedilatildeo de

sua estrutura mais comunicativa e sedutora o cinema olhar da

induacutestria da ideologia dominante nos meios Extensatildeo do qlle

chamei olhar melodramaacutetico o cinema claacutessico eacute sua modernizaccedilatildeo Faz

com que ele abandone os excessos maiores do ganhe em

profundidade dramaacutetica amplitude temaacutetica concretizando o ver mais e

melhor do cinema na direccedilatildeo de um ilusionismo mais completo - o cineshy

ma claacutessico eacute o olhar sem corpo atuando em sentido

caracterizaccedilatildeo dos seus poderes apresentada em minha primeira

que de fato ajusta-se mais precisamente a esse estilo particular dOJTIinanshy

te no mercado e natildeo a todo o cinema possiacutevel Eacute nele mais do que em

qualquer outra proposta que vemos realizado o de intensificar ao

extremo nossa relaccedilatildeo com o mundo-objeto fazer tal mundo parecer autocircshy

nomo existente em seu proacuteprio direito natildeo encorajando perguntas na

direccedilatildeo do proacuteprio olhar mediador sua estrutura e comportamento Soshy

mos aiacute convidados a tomar o olhar sem corpo como dado natural

Entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 60 dois grandes

de reflexatildeo conduziram a criacutetica a essa naturalidade postulada pelo cineshy

ma claacutessico a teoria radical do cinema-discurso baseado nas operaccedilotildees da

montagem (o Eisenstein dos anos 20-30 permaneceu aqui a referecircncia

central) e a criacutetica francesa inspirada na fenomenologia tendo como [oco

maior Andreacute Bazin3

3 Cf Bazin Cinema ensaios trad Eloisa Ribeiro (Satildeo Paulo Brasilicnse 1991)

44 45

Falar de Eisenstein exigiria uma abordagem radicalmente distinta da

que faccedilo agora pois sua criacutetica ao ilusionismo COmeccedila com a advertecircncia

de que a imagem cinematograacutefica natildeo deve ser lida c0f110 produto de um

olhar Para ele a suposiccedilatildeo de que houve um encontro uma contiguumlidade

espacial e temporal entre cacircmera e objeto natildeo eacute O dado central e impresshy

cindiacutevel da leitura da imagem Sua presenccedila na tela eacute um fato de natureza

que deve ser observado em seu valor simboacutelico

caracteriacutesticas de sua composiccedilatildeo e sua no Contexto de um discurshy

so que eacute exposiccedilatildeo de ideacuteias natildeo sucessatildeo natural de fatos captados

pelo olhar A diferenccedila entre um plano geral e um cose-up por

muitas vezes natildeo pode ser entendida como olhar versus

olhar de mesmo quando se focaliza o mesmo ODjeto mas como

confronto de duas imagens de valores distintos A diferenccedila eacute de

natildeo de posiccedilatildeo no espaccedilo pois pode natildeo haver COntinuidade e

homogeneidade espacial para que se possa falar num mais perto

- tudo depende do contexto do discurso por imagens

Ao contraacuterio de Eisenstein os criacuteticos inspirados na fenomenologia

endossam e defendem a premissa de que no cinema toda imagem eacute proshy

duto de um olhar - eacute essencial que ela seja vista como tal- e a sucessatildeo

define sempre a atitude do observador diante de um mundo homogecircneo

Agrave imagem-signo de Eisenstein eles opotildeem a imagem-acontecimento agrave

defesa da descontinuidade proacutepria do cineasta russo respondem Com

uma defesa ateacute mais radical do princiacutepio de continuidade jaacute presente na

narraccedilatildeo claacutessica fazendo a ela um reparo fundamental se a imagem em

movimento nos traz a percepccedilatildeo privilegiada do homem como ser lanccedilashy

do no mundo como ser-em-situaccedilatildeo a falsidade do cinema claacutessico estaacute

na manipulaccedilatildeo impliacutecita em sua montagem o olhar sem corpo e a

onividecircncia criam na tela uni mundo abstrato de sentido fechado preshy

julgado e organizado pelo cin~ina Toda montagem eacute discurso manipulashy

ccedilatildeo de Eisenstein de GrUacutefith ou de Bufiacuteuel Em oposiccedilatildeo um criacutetishy

co como Bazin solicita um olhar cinematograacutefico mais afinado ao olho de

um sujeito circunstanciado que p6ssui limites aceita a abertura do

mundo convive com ambiguumlidades Quando pede realismo ele natildeo se

46

deteacutem em consideraccedilotildees de conteuacutedo (o tipo de universo Ciccional ou doshy

cumentaacuterio) Sublinha a postura do olhar em sua interaccedilatildeo com o mundo

tanto mais legiacutetima quanto mais as condiccedilotildees de nosso olhar

ancorado no corpo vivenciando uma duraccedilatildeo e uma circunstacircncia em sua

continuidade trabalhando as incertezas de uma percepccedilatildeo

ultrapassada mundo Daiacute sua minimizaccedilatildeo da montagem (instacircncia

construtora da onividecircncia) sua defesa do plano-seguumlecircncia (olhar uacutenico

sem cortes observando uma em seu um acontecimento

em seu fluir

Numa visatildeo mais atual prestamos atenccedilatildeo especial ao que aproxima

e natildeo apenas ao que afasta o cinema-discurso de Eisenstein e o realismo

existencial de Bazin haacute em ambos novamente a atribuiccedilatildeo de um poder

de verdade e de um poder de mentira encarnados em determinados estishy

los Para Eisenstein haacute um estilo capaz de dizer o mundo social-histoacuterishy

co colocando o cinema como potecircncia maior no plano do conhecimento

Para Bazin O cinema eacute uma espeacutecie de terceiro estado da e exisshy

te um estilo autecircntico na captaccedilatildeo da vivecircncia humana em sua

essencial abertura no tempo

Contra esse pano de fundo da tradiccedilatildeo teoacuterica a intervenccedilatildeo de

]ean-Louis Baudry em 1969-70 em questatildeo a constante promessa de

um estilo mais verdadeiro e dirige seu ataque agraves premissas do cinema em

geral examinando mais a fundo as condiccedilotildees do espectador raciociacuteshy

nio estaacute municiado para analisar o espectador do filme claacutessico mas

fala em cinema tout couTe) 4 O horizonte de seu exame eacute ressaltar o

modo pelo qual a recepccedilatildeo da imagem possui uma estrutura que a seu ver

solapa o reiterado creacutedito - de Eisenstein Griffith Epstein na

da verdade como destinaccedilatildeo fundamental do cinema Ele invershy

te a tradiccedilatildeo e vecirc na simulaccedilatildeo na de efeitos (ilusoacuterios) de

conhecimento o destino maior da nova arte (visatildeo que

4 O mais importante dos textos de Jean-Louis dessa

1970 Os efeitos ideoloacutegicos do de base estaacute publicado em Ismail

Xavier (orll) A experiecircncia do cinema (Rio de Janeiro

47

pela permanecircncia do ilusionismo do cinema industrial) Isso se daacute por

forccedila da proacutepria natureza da teacutecnica cinematograacutefica herdeira das ilusotildees _

da perspectiva da persistecircncia retiniana (natildeo vemos os fotogramas vemos

o que natildeo ocorre na tela ou seja o movimento da imagem e temos a imshy

pressatildeo de continuidade) da falsa autenticidade documental da fotografia

Rearticulando elementos jaacute conhecidos Baudry nos traz uma interpretashy

ccedilatildeo radical que- questiona natildeo estilos particulares de fazer cinema mas o

fundamento mesmo de sua objetividade como teacutecnica essa mes~a objetishy

vidade que tem sido a sustentaccedilatildeo maior das esperanccedilas de verdade Na

nova perspectiva as diferentes posiccedilotildees teoacutericas desde 1920 definem um

pensar o cinema a priori capturado pelas ilusotildees da teacutecnica e desatento agraves

implicaccedilotildees contidas na proacutepria estrutura do olhar da cacircmera tal como se

daacute para noacutes na plateacuteia A teacutecnica tem suas inclinaccedilotildees seus efeitos ideoloacuteshy

gicos e nesse sentido eacute ela mesma que impele o cinema industrial a desenshy

volver seu ilusionismo e trazer o espectador para dentro do mundo ficcioshy

na A forccedila de encantamento desse cinema persiste na histoacuteria porque o

dado crucial em jogo natildeo eacute tanto a imitaccedilatildeo do real na tela _ a reproduccedilatildeo

integral das aparecircncias - mas a simulaccedilatildeo de um certo tipo de sujeito-doshy

olhar pelas operaccedilotildees do aparato cinematograacutefico

Avaliar a potecircncia do olhar sem corpo natildeo eacute entatildeo inventariar as

imagens que ele oferece efocaIacuteIacutezar o seu movimento proacuteprio sua forma

de mediaccedilatildeo o que impiacuteica analisar sua incidecircncia no espectador que

vivenda o poder de clarividecircncia a percepccedilatildeo tota Na sala escura idenshy

tificado com o movimento do olhar da cacircmera eu me represento como

sujeito dessa percepccedilatildeo total capaz de doar sentido agraves coisas sobrevoar as

aparecircncias fazer a siacutentese do mundo Minha emoccedilatildeo estaacute com os fatos

que o olhar segue mas a cbndiccedilatildeo desse envolvimento eacute eu me colocar no

lugar do aparato sintoniz~do com suas operaccedilotildees Com isso incorporo

(ilusoriamente) seus poder~s e ericontro nessa sintonia - solo do entendishy

mento cinematograacutefico - o maior cenaacuterio de simulaccedilatildeo de uma onipotecircnshy

cia imaginaacuteria No cinema faccedilo uma viagem que confirma minha condishy

ccedilatildeo de sujeito tal como a desejo Maacutequina de efeitos a realizaccedilatildeo maior do

cinema seria entatildeo esse efeito-sujeito a simulaccedilatildeo de uma consciecircncia

48

transcendente que descortina o mundo e se vecirc no centro das coisas ao

mesmo tempo que radicalmente separada delas a observar o mundo coshy

mo puro olhar Nessa apropriaccedilatildeo ilusoacuteria da competecircncia ideal do olhar

estou portanto no centro mas eacute o aparato que aiacute me coloca pois eacute dele o

movimento da percepccedilatildeo monitor da minha fantasia

Para Baudry uma filosofia idealista que postula um sujeito transshy

cendente em oposiccedilatildeo ao mundo objetivo que se dispotildee ao conhecimento

encontra aiacute na teacutecnica do cinema sua traduccedilatildeo visiacutevel Toda sua ecircnfase

recai sobre a produccedilatildeo simultacircnea da imagem e do sujeito-observador

onividente A engenharia simuladora do cinema define com o efeitoshy

sujeito seu teatro da percepccedilatildeo total cujo protagonista sou eu-espectador

identificado com o olhar da cacircmera

N esses termos o que dificulta a consolidaccedilatildeo de linguagens alternashy

tivas mais verdadeiras eacute esse pecado original inscrito na teacutecnica Esta

tem na ilusatildeo seu sustentaacuteculo e os percalccedilos das vanguardas devem-se a

que sua aposta eacute reverter a funccedilatildeo daquilo que jaacute nasceu para cumprir

outro destino Digo destino porque a loacutegica dessa teoria transforma o cineshy

ma num oacutergatildeo que surgiu para cumprir um programa o de objetivar na

esfera do visiacutevel estrateacutegias de dominaccedilatildeo especialmente as da classe burshy

guesa que presidiu sua origem Assim antes de instacircncia liberadora subshy

versiva a condiccedilatildeo do cinema eacute preencher uma demanda do proacuteprio unishy

verso carceraacuterio tornando-o mais preciso e poderoso em seu aparato

Haacute uma atmosfera de desencanto instalada a partir dos anos 70 a

formulaccedilatildeo aqui exposta eacute a traduccedilatildeo teacuteoacuterica radical dos impasses da conshy

testaccedilatildeo no cinema Temos o esgotamento de uma teleologia a da teacutecnishy

ca redentora entravada pela poliacutetica e a economia e sua substituiccedilatildeo

por u~a outra a da teacutecnica como instrumento maior de reposiccedilatildeo de um

sistema de poder Em consonacircncia corn a tonalidade da reflexatildeo sobre a

linguagem a cultura e a ideologia naquele momento a teoria do cinema

mais original e polecircmica ressalta o lado sistemaacutetico inelutaacutevel das ilusotildees

e dos enganos do olhar da cacircmera Nesse contexto a proacutepria praacutetica do

cinema amplia o espaccedilo para a reflexatildeo teoacuterica voltada para a questatildeo do

simulacro - a citaccedilatildeo a imagem que-alude agrave imagem o circuito das refeshy

49

recircncias a si mesmo que o cinema leva ao paroxismo entram para valer na

esfera da induacutestria constituem sua nova marca Tal reflexatildeo se faz dentro

de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do

cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura

contemporacircnea A imagem cinematograacutefica eacute entatildeo obseJvada a partir de

sua participaccedilatildeo em outra rede de relaccedilotildees em que natildeo haacute para a

interpretaccedilatildeo (esse tomar a imagem como representaccedilatildeo de algo exterior

a ela) para o juiacutezo da verdade ou mentira em que se a oposlccedilao

aparecircncia (imagem)essecircncia (substacircncia) -nada haacute por traacutes das lmlti~e~ns

elas valem como efeitos-de-superfiacutecie imagem remetendo a imagem fluxo de simulacros

Faccedilo agora uma incursatildeo que natildeo eacute propriamente no terreno da

nova filosofia e das questotildees mais amplas do simulacro na produccedilatildeo

Trata-se de uma anaacutelise particular no niacutevel da engenharia da simulaccedilatildeo

caracterizaccedilatildeo de um efeito na qual natildeo eacute necessaacuterio assumir as noccedilotildees

com a mesma ressonacircncia elas adquiriram na literatura dos anos 80

Fecho a exposiccedilatildeo com a consideraccedilatildeo de um novo exeacutemplo que acredishy

to esclareccedila algumas observaccedilotildees feitas ateacute aqui sobre a interaccedilatildeo entre

espectador e imagem sobre o papel da moldura do sujeito na leitura

Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o

efeito de uma depende de sua ~elaccedilatildeo com o sujeito em determishy

nadas condiccedilotildees Da situaccedilatildeo da testemunha de McCarthy passei a uma

caracterizaccedilatildeo mais detida do olhar do cinema e examinei dois momenshy

tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexatildeo criacuteshy

tica em torno do que hiacute de erigano e rcvelaccedilatildeo nesse olhar A partir de

uma discussatildeo mais sobre a simulaccedilatildeo do fato - na fotografia no

cinema chegamos a uma questatildeo mais especiacutefica a simulaccedilatildeo do sujeishy

to na estrutura mesma (lo olhar cinematograacutefico Dentro da discussatildeo

mais geral o exemplo a envolve uma situaccedilatildeo mais complicada do

quea das fotos do tribunal estaremos no cinema Como inspiraccedilatildeo

terei presentes as liccedilotildees de Baildry sem no entanto incorporar o movishy

mento totalizador de suaacute criacutetica ao olhar do cinema Seu amplo diagnoacutesshy

tico mobilizando a psicaacutenaacutelise tem como pressuposto o fato de sabershy

0

mos o bastante sobre a natureza do espectador de modo a prever o caraacuteshy

tcr de sua identificaccedilatildeo com o aparato a qual assume uma dimensatildeo

uacutenica de adesatildeo agrave imagem por forccedila do efeito-sujeito Como conhecedoshy

res do desejo do espectador denunciamos o conluio desse desejo com o

programa da induacutestria e deduzimos daiacute as alienaccedilotildees do cinema e da

teacuteia Natildeo tenho condiccedilotildees de endossar a generalidade desse saber a resshy

peito do espectador o aparato atua em determinada direccedilatildeo mas a expeshy

riecircncia do cinema inclui outras forccedilas e condiccedilotildees que natildeo se ajustam ao

programa do sistema A formulaccedilatildeo dc Baudry embora inclua com toda

a forccedila a dimensatildeo do desejo do espectador natildeo deixa de ser outra vershy

satildeo das teorias da manipulaccedilatildeo global centradas em excesso no aspecto

da experiecircncia de modo a confundir o processo que efetishy

vamente ocorre com a loacutegica ideal do sistema Focalizo uma situaccedilatildeo

didaacutetica nesse contcxto em que eacute perfeito o funcionamcnto do

aparato cm quc podemos verificar o mecanismo da simulaccedilatildeo em estashy

do digamos de laboratoacuterio

IVIULALAU E PONTO OE VISTA

Toda leitura de eacute pr()(llltatildeo de um ponto de vista o do sujeito

observador natildeo o da objetividade (b irnagetnA condiccedilatildeo dos efeitos

da imagem eacute essa Em particular o ekilO rb apoacuteia-se numa

construccedilatildeo que inclui o fmguh do obSlrVIr1or O simulacro parece o

que natildeo eacute a partir de um pOIHo ele vista () sujeito estaacute aiacute pressuposto Porshy

tanto o processo elc simulaccedilatildeo nlo l o (Li imagemem si mas o da sua

relaccedilatildeo com o sujeito Num (gt1lt1110 elemelltar podemos tomar o cinema

como modelo do processo O (llIC eacute a fjltnilgcm senatildeo a organizaccedilatildeo do

I 1 I - C f dacontecllnento pra 11111 angu () (C o lscrvaccedilao o que se con un e com

Nessas asserccedilotildees no de Xavier Audouard Le Simulacrc in

eacutepisteacutemologie de lEcole Normale gtuucushy

rc n mai-jun 1966) O horizonte de Audouard eacute o de uma discussatildeo sobre o

idealismo platocircnico seu terreno eacute ponanto distinto e meu natildeo

ca uma identificaccedilatildeo agrave sua perspectiva de anaacutelise

i J

o da cacircmera e nenhum outro mais) O que eacute a fachada de preacutedio de estuacuteshy

dio senatildeo a duplicaccedilatildeo do mesmo princiacutepio da fachada de rua que sushy

gere o que natildeo eacute justamente quando observada de um certo acircngulo e disshy

tacircncia jaacute pressupostos em sua composiccedilatildeo O que eacute a ficccedilatildeo do cinema

senatildeo uma simulaccedilatildeo de mundo para o espectador identificado com o aparato

Vertigo (Um corpo que cai) O filme de Hitchcock realizado

em 1958 Ele eacute a trama da simulaccedilatildeo por excelecircncia como jaacute foi observashy

do pela criacutetica Trago um aspecto novo agrave consideraccedilatildeo o do espelhamenshy

to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e

o proacuteprio princiacutepio da narraccedilatildeo do filme Tal como em outras obras de

Hitchcltck o cinepa c1aacutessi~o aqui operagrave com eficiecircncia maacutexima e ao

mesmo tempo oferece a metaacutefora viva para o seu proacuteprio processo Inteshy

ressado nessa metaacutefora acentuo nesta anaacutelise a mecacircnica da simulaccedilacirco o

funcionamento exterior do aparato natildeo o que nas personagens eacute desejo

do estratagema e disposiccedilatildeo para a vertigem da imagem

Sigamos passo a passo a narrativa ateacute o ponto que interessa

Vertigem tiacutetulo original eacute a palavra que condensa as ideacuteias-forccedila

do filme em sua tematiacutezaccedilatildeo do olhar e do ponto de vista A apresentaccedilatildeo

de Vertigo criaccedilatildeo de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em

close-up tratado como maacutescara enigmaacutetica imoacutevel Uma aproximaccedilatildeo

maior e um passeio da cacircmcra examinam essa maacutescara em seus detalhes

ateacute que isolado o olho ofereccedila os sinais de vida Os seus movimentos no

entanto natildeo criam uma ~xpressatildeo definida uma intcncionalidade do olhar

Preparam apenas o cenaacuterio ptra um movimentoem espiral na profundishy

dade Mergulho na inteacuteiioridaacutedc cujo fundo inatingiacutevel estaacute sempre em

recesso Aproximaccedilatildeo e recuo atraccedilatildeo e fuga a ambiguumlidade do movishy

mento da espiral ~ experiecircncia matriz de todo o filme cujo eixo eacute o

percurso de profissional do olhar detetive personificaccedilatildeo da

vertigem Logo na primeira sequumlecircncia define-se a questatildeo desse protagoshy

nista numa perseguiccedilatildeo telhados de Satildeo Francisco a vertigem de Scottie o faz responsaacuteveacutel pela morte de um

tentar ajudaacute-lo Sentimeriacuteto de cu1Da aposentadoria

52

lecida a disponibilidade total de a situaccedilatildeo-chave de Vertigo deseshy

nha-se quando ele atende ao chamado de Elster de escola que

no reencontro surpreende-o com o pedido para que sua mulher

Madeleine Elster mostra-se apreensivo com as manifestaccedilotildees de ausecircnshy

cia que ela apresenta com os periacuteodos de comportamento estranho em

que ela parece ser outra pessoa de que retoma sem lembranccedilas

O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma

proposto Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine pesquisa pela

recolhe dados essenciais Um primeiro quadro se compotildee a

ra que dela se apossa em seus transes eacute Cadota Valdez mulher que viveu

em San Francisco no seacuteculo XIX e que se suicidou em circunstacircncias meshy

lancoacutelicas Novamente com Elster Scottie relata as descobertas O marishy

do introduz novo dado Madeleine estaacute em perigo de vida pois descende

de Carlota outras mulheres da linhagem cometeram suiciacutedio e ela tem

agora a idade de Carlota ao morrer

Na primeiraacute seacuterie de passeios de Madeleine fase em que se compotildec

o quadro tivemos uma ostensiva duplicaccedilatildeo num primeiro plano Scortie

observa MadeJeine que natildeo reconhece sua presenccedila (ele estaacute fora do tershy

ritoacuterio dela) e se potildee disponiacutevel ao olhar movimentando-se como numa

cena num segundo plano ao longo do mesmo eixo a cacircmera observa

Scottie que Madeleine Satildeo duas uma dentro da outra que

natildeo se tocam Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele ambos enquadra~

dos por noacutes no lugar da cacircmera Madeleine nunca devolve o olhar a Scotshy

tie devolve o olhar agrave cacircmera (regra do filme claacutessico) Mas eacute

ambiacutegua essa passividade pois eacute o movimento dela que dirige o olhar

dele eacute a accedilatildeo de ambos que dirige o nosso olhar sempre na esteira do

acircngulo de de Scottie com quem partilhamos a ignoracircncia a

curiosidade a descoberta

Apoacutes a segunda conversa com Elster o tema do suiciacutedio engendra

uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria MadeleineCarlota

atira-se nas aacuteguas da baiacutea de San Francisco Scottie a resgata Permaneceshy

mos puro olhar ele passa ao plano da intervenccedilatildeo e do diaacutelogo Com os

dois juntos certa concretude o que em Scottie eacute jaacute sonho romacircnshy

53

tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do

filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs

do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e

terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM

sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a

lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute

coloca adiante dele na investigaccedilatildeo

A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy

satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela

que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e

com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy

gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave

de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre

alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se

e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos

da escada retido pela vertigem - e somos retidos

com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai

O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um

psicologicamente massacrado Elsshy

natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco

destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar

em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um

dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras

no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de

Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus

motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade

(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy

to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme

natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente

natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy

54

dos no quarto ficamos ao lado de

sem delongas que natildeo espera o final

Sozinha no quarto hesitante nervosa

assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy

a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy

para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade

para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy

blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez

de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao

topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o

mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre

Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou

resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda

para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas

posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy

ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema

bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia

apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do

suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo

de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy

dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as

imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()

prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a

loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy

lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy

leine-Carlota em a Scottic

O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse

mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy

vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade

e o de (a natildeo foi apenas para ele a

Urna leimra mais completa de Vertigo exishy

~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy

para o estratagema do as permanecem na

55

esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy

sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas

consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui

afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte

final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema

No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo

na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a

reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos

nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que

era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy

satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy

tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy

sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da

outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o

estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy

nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy

Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a

accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata

Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave

moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo

nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir

de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma

questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy

posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy

to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o

espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)

6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy

ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin

Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a

psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense

1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ

Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se

uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy

co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para

finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do

cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy

nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy

ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens

do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que

nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle

de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta

o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos

entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve

a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim

oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos

a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy

so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu

ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa

segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista

muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da

relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar

e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo

eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de

imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo

vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz

de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos

Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy

te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo

implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas

colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo

com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que

fora do campo torna visiacutevel

56 57

Page 7: Ismail Xavier Cinema Revelacaoengano

Dentro do projeto de revelaccedilatildeo do mundo para o olhar os efeitos do

close-up logo adquirem a condiccedilatildeo de emblema das virtudes da nova arte

Mais do que a montagem - sua condiccedilatildeo preacutevia - o close-up na Franccedila e

nos Estados Unidos atrai o dos cineacutefilos corno ponto de condenshy

de um drama que se faz movimento dos olhos - o que vecirc e o

que eacute visto - e pela trama formada pela sucessatildeo de detalhes

e reveladores Corno movimento em direccedilatildeo agrave intimidade e V1stO corno

potecircncia maior do cinema que muito cedo impressionou a todos pela sua

capacidade de devastaccedilatildeo das intenccedilotildees ocultas do pequeno gesto fora do

alcance dos interlocutores do movimento facial que trai um sentimento

Natildeo foi preciso a manifestaccedilatildeo da criacutetica cineastas e produtores conduzishy

ram as experiecircncias reveladoras da forccedila dramaacutetica do rosto isolado na e usando a tradicional muito antes de 1920 jaacute insshy

truiacutea seus atores para a dos olhos - janela da alma _ trazishy

dos para perto no close-up para o exame

Foco das atenccedilotildees e dos o close-up estaraacute em I920 tambeacutem

no centro das reflexotildees de quem afastado dos valores promovidos pela

induacutestria do cinema observa seus prodiacutegios com outra moldura de inteshy

resses e julga os filmes do mercado por demais domesticados pela

demanda de ficccedilatildeo que induz o novo meio a seguir os passos do teatro e

da literatura popular Encontramos aqui quem vecirc o cinema como ruptushy

ra espectadores avessos aos do filme de accedilatildeo corrente cinecircfilos

natildeo interessados na fluecircncia dos acontecimentos no pulsar da

nas tensotildees dramaacuteticas usuais Por intermeacutedio deles o cinema uma

recepccedilatildeo mais empenhada em surpreender aspectos da plaacutestica da imashy

gem do trabalho da cacircmera e da presenccedila peculiar do mundo na tela que

permanecem recalcados na visatildeo dominante Para esse olhar diferenciashy

do por meio do cinema toda urna esfera nova de percepccedilotildees abre-se agrave

nossa experiecircncia desde que sejamos capazes de entender a expressividashy

de da nova imagem em outros termos elogiando sim o mas denshy

tro de urna outra oacutetica a de quem entende o cinema natildeo como coroamenshy

to do ilusionismo teatral mas como ruptura inauguraccedilatildeo de um novo diaacutelogo com a natureza e os homens

4deg

Satildeo os intelectuais e artistas ligados agrave arte moderna que lideram essa

nova leitura do cinema de uma perspectiva que na Franccedila traduziu-se no

cineacutema davant-garde nas experiecircncias dos surrealistas e nas polecircmicas

que tiveram como pauta a superaccedilatildeo da moldura melodramaacutetica a libershy

taccedilatildeo do olhar sem corpo das amarras da continuidade narrativa a adeshy

da nova arte agrave sua teacutecnica moderna A

fcrentes grupos postos de lado os conflitos que os

cinema destina-se a uma tarefa de redenccedilatildeo A cultural

do Ocidente europeu estaria falida o poder criador preso a convenccedilotildees

obsoletas saturado de referecircncias que o desvigoram Enredado em formas

de pensar e sentir desgastadas o homem culto se vecirc separado da natureshy

za reprimido cercado de mentiras de clichecircs da de maacutescaras

O cinema eacute radicalmente novo inocente e traz a da tecnologia

Ele pode e deve romper essa grade devolvendo aos homens o acesso a

uma natureza alienada pelos artifiacutecios de uma cultura

A vanguarda se estabelece como cultUra de separando o

espaccedilo utoacutepico da verdade (cinema vida futura) e o espaccedilo da mentira da

convenccedilatildeo (tradiccedilatildeo literaacuteria teatro cotidiano burguecircs) Sua feacute no cinema

ancora-se numa ideacuteia de expressatildeo que tambeacutem se apoacuteia na acuidade de

reproduccedilatildeo da aparecircncia proacutepria da nova teacutecnica mas com um traccedilo pecushy

liar que afasta a do pensamento gerado na esfera da induacutestria

Germaine Dulac e Epstein principais porta-vozes da avant-ga

concebem o cinema corno expressividade do mundo num sentido radishy

ca1 Combatem a vaga que nos leva a sob qualquer pretexto

isto expressa aquilo de um modo que equivale a isto significa aquilo

dentro dos variados caminhos pelos quais vamos de um poacutelo a outro do

significante ao significado Reservam expressatildeo para designar um proshy

cesso determinado impelido por forccedilas naturais no a composiccedilatildeo de

forccedilas interior a um organismo deixa narcas na do mesmo shy

eacute o movimento nelo Qual ci Que estaacute no interior vem forcosashy

mente agrave tona a forma

I Cf Xavier Seacutetima arte um cuto moderno (Satildeo Paulo 1978)

41

vel) que o cinema vemcaptar com exclusividade pois fixa os movimenshy

tos na peliacutecula sem as atrapalhaccedilotildees do olho natural O cinema tem seu

vigor proacuteprio de um olhar mais automaacutetico

natildeo maculado pelos preconceitos culturais

dade Eacute irocircnico que justamente porque natildeo tem interioridade o olhar

da maacutequina possa atingir o princiacutepio interior dos movimentos revelar a

verdade que organicamente expressa-se em sentido pleno imprime-se

numa textura do mundo que soacute a cacircmera eacute capaz de registrar O proacuteprio

instantacircneo fotograacutefico em sua estrutura mais simples jaacute nos mostra o

quanto a imagem revelada faz emergir dados ocultos que natildeo estavam na

mira do fotoacutegrafo No cinema o movimento poteacutencializa tal desocultashy

mento o qual pode tornar-se mais efetivo quando os cineastas forem cuacutemshy

plices da nova teacutecnica em vez de tentar agrave como no

melodrama a expressividade do fica atrelada a toda uma

cadeia de loacutegica eacute tomada de empreacutestimo agrave do natushy

em que o tOrnar visiacutevel resulta do de uma retoacuterica que ~rH+tia Para

o que era aaequado ao teatro - como ilusionismo do seacuteculo XIX natildeo o eacute para o cinema do seacuteculo xx pois a

imitaccedilatildeo dos gestos antes oferecida a olhos desarmados natildeo resiste agrave anaacuteshy

lise da nova sensibilidade Com o cinema a percepccedilatildeo humana ganhou

um acesso especial agrave intimidade dos processos - ~ele a aparecircncia eacute jaacute uma

anaacutelise O cose-up natildeo eacute o lugar do fingimento eacute uma presenccedila que reveshy

la o que se eacute natildeo o que se pretende ser (inuacuteteis as caretas dos

A aposta da vanguarda estaacute no poder analiacutetico do cinematoshygraacutefico no que ressalta natildeil

espaccedilo) mas tambeacutem as

mente a cacircmera lenta (arnplia(acirco no eixo do tempo) que reveshyIa o mundo em outra e de~cobre-nos a vida secreta que se tece a

nossa volta e em noacutes ganhando ~xpressatildeo nas formas instaacuteveis fora da

nossa consciecircncia que temo~ fixadas pela teacutecnica2 Epstein nos seus

2 Essa aposta no poder analiacutetko do dnema tem uma versatildeo radical moshymento na Uniatildeo Sovieacutetica encarnada rio projeto do Cine-Olho de Vertov gt

42

o ~__ao~ das diferentes velocidades

do movimento animal e dos fenocircmenos Fershy

nand Leacuteger as relaccedilotildees e a forma dos objetos fora de sua inserccedilatildeo

utilitaacuteria no cotidiano Embora natildeo totalmente afinado ao cineacutema dayantshy

garde o surrealismo torna-se o movimento de contestaccedil50 ao cinema inshy

dustrial de maior impacto com sua exploraccedilatildeo da montagem como reveshy

laccedil50 das pulsotildees anatomia do desejo Em diferentes busca-se a

experiecircncia fora do senso comum o olhar em sintonia com ~l~r

do - a sensibilidade efetivamente moderna A

(Epstein) surge entatildeo como nova pedagogia

ccedilatildeo ao cenaacuterio do melodrama - pois o cincma teria como destino

trazer-nos de volta uma cosmologia e um encantamento do mundo para

os quais o cartesianismo e a filosofia da Ilustraccedilatildeo cegos

O horizonte desse renascimento seria a explosatildeo do universo carceraacuterio

da existecircncia atual (para usar a expressatildeo de Walter Benjamin em seu

ceacutelebre ensaio de T936 ao falar de reproduccedilatildeo teacutecnica arte e

A formulaccedilatildeo de Epstein-Dulae eacute questionaacutevel auando examinada a

partir de sua ideacuteia-matriz de expressatildeo

analiacutetico (inegaacutevel) da ~~a~Mrl~ aiacute uma feacute inteshy

gral no dado visiacutevel na caj)acldlde exclusiva de

suas relaccedilotildees internas trazer a verdade agrave tona

agrave ao contexto de cada a~aM~A mais de-

no entanto estaacute no impulso utoacutepico nela presente c no salto teoacuterico

que oferece ao buscar um pensameMo agrave alwra dos aspectos radicalmente

novos da experiecircncia do cinema no inicio do seacuteculo Benjamin o filoacutesofo

atento agraves transformaccedilotildees da sensibilidade geradas pelas novas diraacute

em 1936 A natureza que se dirifie dmera natildeo eacute a mesma que a que se

dirige ao olhar Essas c outras suas - sobre o ator o

gt que procura realizar no cinema documentaacuterio a verdade que desmascara a culshy

tura tradicional A cIacutee Vertov diante dos franceses eacute a

ccedilatildeo que ele estabelece cntre desmascaramento e exposiccedilatildeo dos processos efetivos

da Drodudiacuteo social das relaccedilotildees de atraveacutes do montagem cinematogniacutefica

43

analiacutetico da Imagem retomam muito do repertoacuterio da vanguarda dos anos

20 inserindo a caracterizaccedilatildeo do olhar do cinema numa reflexatildeo mais amshy

pIa sobre teacutecnica e cultura Nessa reflexatildeo a moldura eacute outra mas prevalece

o mesmo movimento de ressaltar o papel subversivo revelado r da fotoshy

grafia e do cinema dentro da cultura europeacuteia A promessa entatildeo se reafirshy

ma sem as premissas de eXflressividade total e de retorno agrave natureza

Com Benjamin ela aSSume um contorno histoacuterico mais bem demarcado eacute

por um persamento mais sensiacutevel agrave contradiccedilatildeo e ao caraacuteter das

forccedilas sociais em conflito Pensamento que nos trouxe uma avaliaccedilatildeo da

questatildeo da arte dentro de uma articulaccedilatildeo mais luacutecida com a conjuntura

poliacutetica e a proacutepria natureza das apostas em na Europa dos anos 30

polarizada por uma confrontaccedilatildeo decisiva entre revoluccedilatildeo e reaccedilatildeo

A CRiacuteTICA DO OLHAR SEM CORPO

No seu elogio ao aspecto revelador do olhar no cinema o pensamento

dos anos 20 colocou o debate em termos de verdade (cinema) emendra

(tradiccedilatildeo cultural) e deu toda ecircnfase agrave cumplicidade entre cinema e natushy

reza solidaacuterios enquanto um organismo e sua expressatildeo visual prontos a

expulsar a simulaccedilatildeo desde que a nova teacutecnica fosse salva de su~ adultera-

promovida pelo universo da mercadoria Por esse a oposishyentre um cinema desejado objeto do recalque e aquele que

realmente impera (a pedagogia da induacutestria orienta-se por uma teleoIOPla o presente eacute o mOmelItO dos entraves que impedem o desenshy

volvimento na direccedilatildeo COrreta eacuteapaz de realizar as promessas da nova

teacutecnica o futuro eacute o preenchimen~o dessas promessas que desde jaacute as vanshy

guardas anunciam e preparam Entre 1920 e J960 os poderes reais inshy

sistiram em repor o mesno cinema dominante o que trouxe em linhas

a reiteraccedilatildeo da mesnla matriz de contestaccedilatildeo O conflito dominanshy

tedominado traduzido em termos de verdade e refez-se ao

longo de eixos diversos Quando prevaleceu um eixo poliacutetico o poacutelo da

verdade (futuro) identificou-se agrave cultura revolucionaacuteria o da mentira

presentet agraves mistificaccedilotildees da reaccedilatildeo Quando prevaleceu um eixo esteacutetishy

co verdade foi poesia originalidade experimentaccedilatildeo mentira foi a rotishy

na do comeacutercio o kitscll industrializado

Natildeo cabe agora a recapitulaccedilatildeo do que foram as diferentes versotildees

desse conflito vanguardacultura de massa em cada e eacutepoca Natildeo o

poderia fazer nem quero pois meu objetivo eacute saltar dessa primeira refleshy

xatildeo dos anos 20 para uma mais proacutexima de gerada no contexto franshy

cecircs poacutes-68 reflexatildeo que abandonou a tradiccedilatildeo de opor verdade e mentishy

ra deslocando a discussatildeo sobre a teacutecnica do cinema

No grande intervalo que a criacutetica avanccedilou na caracterizashy

ccedilatildeo do olhar sem corpo e suas implicaccedilotildees notadamente na avaliaccedilatildeo de

sua estrutura mais comunicativa e sedutora o cinema olhar da

induacutestria da ideologia dominante nos meios Extensatildeo do qlle

chamei olhar melodramaacutetico o cinema claacutessico eacute sua modernizaccedilatildeo Faz

com que ele abandone os excessos maiores do ganhe em

profundidade dramaacutetica amplitude temaacutetica concretizando o ver mais e

melhor do cinema na direccedilatildeo de um ilusionismo mais completo - o cineshy

ma claacutessico eacute o olhar sem corpo atuando em sentido

caracterizaccedilatildeo dos seus poderes apresentada em minha primeira

que de fato ajusta-se mais precisamente a esse estilo particular dOJTIinanshy

te no mercado e natildeo a todo o cinema possiacutevel Eacute nele mais do que em

qualquer outra proposta que vemos realizado o de intensificar ao

extremo nossa relaccedilatildeo com o mundo-objeto fazer tal mundo parecer autocircshy

nomo existente em seu proacuteprio direito natildeo encorajando perguntas na

direccedilatildeo do proacuteprio olhar mediador sua estrutura e comportamento Soshy

mos aiacute convidados a tomar o olhar sem corpo como dado natural

Entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 60 dois grandes

de reflexatildeo conduziram a criacutetica a essa naturalidade postulada pelo cineshy

ma claacutessico a teoria radical do cinema-discurso baseado nas operaccedilotildees da

montagem (o Eisenstein dos anos 20-30 permaneceu aqui a referecircncia

central) e a criacutetica francesa inspirada na fenomenologia tendo como [oco

maior Andreacute Bazin3

3 Cf Bazin Cinema ensaios trad Eloisa Ribeiro (Satildeo Paulo Brasilicnse 1991)

44 45

Falar de Eisenstein exigiria uma abordagem radicalmente distinta da

que faccedilo agora pois sua criacutetica ao ilusionismo COmeccedila com a advertecircncia

de que a imagem cinematograacutefica natildeo deve ser lida c0f110 produto de um

olhar Para ele a suposiccedilatildeo de que houve um encontro uma contiguumlidade

espacial e temporal entre cacircmera e objeto natildeo eacute O dado central e impresshy

cindiacutevel da leitura da imagem Sua presenccedila na tela eacute um fato de natureza

que deve ser observado em seu valor simboacutelico

caracteriacutesticas de sua composiccedilatildeo e sua no Contexto de um discurshy

so que eacute exposiccedilatildeo de ideacuteias natildeo sucessatildeo natural de fatos captados

pelo olhar A diferenccedila entre um plano geral e um cose-up por

muitas vezes natildeo pode ser entendida como olhar versus

olhar de mesmo quando se focaliza o mesmo ODjeto mas como

confronto de duas imagens de valores distintos A diferenccedila eacute de

natildeo de posiccedilatildeo no espaccedilo pois pode natildeo haver COntinuidade e

homogeneidade espacial para que se possa falar num mais perto

- tudo depende do contexto do discurso por imagens

Ao contraacuterio de Eisenstein os criacuteticos inspirados na fenomenologia

endossam e defendem a premissa de que no cinema toda imagem eacute proshy

duto de um olhar - eacute essencial que ela seja vista como tal- e a sucessatildeo

define sempre a atitude do observador diante de um mundo homogecircneo

Agrave imagem-signo de Eisenstein eles opotildeem a imagem-acontecimento agrave

defesa da descontinuidade proacutepria do cineasta russo respondem Com

uma defesa ateacute mais radical do princiacutepio de continuidade jaacute presente na

narraccedilatildeo claacutessica fazendo a ela um reparo fundamental se a imagem em

movimento nos traz a percepccedilatildeo privilegiada do homem como ser lanccedilashy

do no mundo como ser-em-situaccedilatildeo a falsidade do cinema claacutessico estaacute

na manipulaccedilatildeo impliacutecita em sua montagem o olhar sem corpo e a

onividecircncia criam na tela uni mundo abstrato de sentido fechado preshy

julgado e organizado pelo cin~ina Toda montagem eacute discurso manipulashy

ccedilatildeo de Eisenstein de GrUacutefith ou de Bufiacuteuel Em oposiccedilatildeo um criacutetishy

co como Bazin solicita um olhar cinematograacutefico mais afinado ao olho de

um sujeito circunstanciado que p6ssui limites aceita a abertura do

mundo convive com ambiguumlidades Quando pede realismo ele natildeo se

46

deteacutem em consideraccedilotildees de conteuacutedo (o tipo de universo Ciccional ou doshy

cumentaacuterio) Sublinha a postura do olhar em sua interaccedilatildeo com o mundo

tanto mais legiacutetima quanto mais as condiccedilotildees de nosso olhar

ancorado no corpo vivenciando uma duraccedilatildeo e uma circunstacircncia em sua

continuidade trabalhando as incertezas de uma percepccedilatildeo

ultrapassada mundo Daiacute sua minimizaccedilatildeo da montagem (instacircncia

construtora da onividecircncia) sua defesa do plano-seguumlecircncia (olhar uacutenico

sem cortes observando uma em seu um acontecimento

em seu fluir

Numa visatildeo mais atual prestamos atenccedilatildeo especial ao que aproxima

e natildeo apenas ao que afasta o cinema-discurso de Eisenstein e o realismo

existencial de Bazin haacute em ambos novamente a atribuiccedilatildeo de um poder

de verdade e de um poder de mentira encarnados em determinados estishy

los Para Eisenstein haacute um estilo capaz de dizer o mundo social-histoacuterishy

co colocando o cinema como potecircncia maior no plano do conhecimento

Para Bazin O cinema eacute uma espeacutecie de terceiro estado da e exisshy

te um estilo autecircntico na captaccedilatildeo da vivecircncia humana em sua

essencial abertura no tempo

Contra esse pano de fundo da tradiccedilatildeo teoacuterica a intervenccedilatildeo de

]ean-Louis Baudry em 1969-70 em questatildeo a constante promessa de

um estilo mais verdadeiro e dirige seu ataque agraves premissas do cinema em

geral examinando mais a fundo as condiccedilotildees do espectador raciociacuteshy

nio estaacute municiado para analisar o espectador do filme claacutessico mas

fala em cinema tout couTe) 4 O horizonte de seu exame eacute ressaltar o

modo pelo qual a recepccedilatildeo da imagem possui uma estrutura que a seu ver

solapa o reiterado creacutedito - de Eisenstein Griffith Epstein na

da verdade como destinaccedilatildeo fundamental do cinema Ele invershy

te a tradiccedilatildeo e vecirc na simulaccedilatildeo na de efeitos (ilusoacuterios) de

conhecimento o destino maior da nova arte (visatildeo que

4 O mais importante dos textos de Jean-Louis dessa

1970 Os efeitos ideoloacutegicos do de base estaacute publicado em Ismail

Xavier (orll) A experiecircncia do cinema (Rio de Janeiro

47

pela permanecircncia do ilusionismo do cinema industrial) Isso se daacute por

forccedila da proacutepria natureza da teacutecnica cinematograacutefica herdeira das ilusotildees _

da perspectiva da persistecircncia retiniana (natildeo vemos os fotogramas vemos

o que natildeo ocorre na tela ou seja o movimento da imagem e temos a imshy

pressatildeo de continuidade) da falsa autenticidade documental da fotografia

Rearticulando elementos jaacute conhecidos Baudry nos traz uma interpretashy

ccedilatildeo radical que- questiona natildeo estilos particulares de fazer cinema mas o

fundamento mesmo de sua objetividade como teacutecnica essa mes~a objetishy

vidade que tem sido a sustentaccedilatildeo maior das esperanccedilas de verdade Na

nova perspectiva as diferentes posiccedilotildees teoacutericas desde 1920 definem um

pensar o cinema a priori capturado pelas ilusotildees da teacutecnica e desatento agraves

implicaccedilotildees contidas na proacutepria estrutura do olhar da cacircmera tal como se

daacute para noacutes na plateacuteia A teacutecnica tem suas inclinaccedilotildees seus efeitos ideoloacuteshy

gicos e nesse sentido eacute ela mesma que impele o cinema industrial a desenshy

volver seu ilusionismo e trazer o espectador para dentro do mundo ficcioshy

na A forccedila de encantamento desse cinema persiste na histoacuteria porque o

dado crucial em jogo natildeo eacute tanto a imitaccedilatildeo do real na tela _ a reproduccedilatildeo

integral das aparecircncias - mas a simulaccedilatildeo de um certo tipo de sujeito-doshy

olhar pelas operaccedilotildees do aparato cinematograacutefico

Avaliar a potecircncia do olhar sem corpo natildeo eacute entatildeo inventariar as

imagens que ele oferece efocaIacuteIacutezar o seu movimento proacuteprio sua forma

de mediaccedilatildeo o que impiacuteica analisar sua incidecircncia no espectador que

vivenda o poder de clarividecircncia a percepccedilatildeo tota Na sala escura idenshy

tificado com o movimento do olhar da cacircmera eu me represento como

sujeito dessa percepccedilatildeo total capaz de doar sentido agraves coisas sobrevoar as

aparecircncias fazer a siacutentese do mundo Minha emoccedilatildeo estaacute com os fatos

que o olhar segue mas a cbndiccedilatildeo desse envolvimento eacute eu me colocar no

lugar do aparato sintoniz~do com suas operaccedilotildees Com isso incorporo

(ilusoriamente) seus poder~s e ericontro nessa sintonia - solo do entendishy

mento cinematograacutefico - o maior cenaacuterio de simulaccedilatildeo de uma onipotecircnshy

cia imaginaacuteria No cinema faccedilo uma viagem que confirma minha condishy

ccedilatildeo de sujeito tal como a desejo Maacutequina de efeitos a realizaccedilatildeo maior do

cinema seria entatildeo esse efeito-sujeito a simulaccedilatildeo de uma consciecircncia

48

transcendente que descortina o mundo e se vecirc no centro das coisas ao

mesmo tempo que radicalmente separada delas a observar o mundo coshy

mo puro olhar Nessa apropriaccedilatildeo ilusoacuteria da competecircncia ideal do olhar

estou portanto no centro mas eacute o aparato que aiacute me coloca pois eacute dele o

movimento da percepccedilatildeo monitor da minha fantasia

Para Baudry uma filosofia idealista que postula um sujeito transshy

cendente em oposiccedilatildeo ao mundo objetivo que se dispotildee ao conhecimento

encontra aiacute na teacutecnica do cinema sua traduccedilatildeo visiacutevel Toda sua ecircnfase

recai sobre a produccedilatildeo simultacircnea da imagem e do sujeito-observador

onividente A engenharia simuladora do cinema define com o efeitoshy

sujeito seu teatro da percepccedilatildeo total cujo protagonista sou eu-espectador

identificado com o olhar da cacircmera

N esses termos o que dificulta a consolidaccedilatildeo de linguagens alternashy

tivas mais verdadeiras eacute esse pecado original inscrito na teacutecnica Esta

tem na ilusatildeo seu sustentaacuteculo e os percalccedilos das vanguardas devem-se a

que sua aposta eacute reverter a funccedilatildeo daquilo que jaacute nasceu para cumprir

outro destino Digo destino porque a loacutegica dessa teoria transforma o cineshy

ma num oacutergatildeo que surgiu para cumprir um programa o de objetivar na

esfera do visiacutevel estrateacutegias de dominaccedilatildeo especialmente as da classe burshy

guesa que presidiu sua origem Assim antes de instacircncia liberadora subshy

versiva a condiccedilatildeo do cinema eacute preencher uma demanda do proacuteprio unishy

verso carceraacuterio tornando-o mais preciso e poderoso em seu aparato

Haacute uma atmosfera de desencanto instalada a partir dos anos 70 a

formulaccedilatildeo aqui exposta eacute a traduccedilatildeo teacuteoacuterica radical dos impasses da conshy

testaccedilatildeo no cinema Temos o esgotamento de uma teleologia a da teacutecnishy

ca redentora entravada pela poliacutetica e a economia e sua substituiccedilatildeo

por u~a outra a da teacutecnica como instrumento maior de reposiccedilatildeo de um

sistema de poder Em consonacircncia corn a tonalidade da reflexatildeo sobre a

linguagem a cultura e a ideologia naquele momento a teoria do cinema

mais original e polecircmica ressalta o lado sistemaacutetico inelutaacutevel das ilusotildees

e dos enganos do olhar da cacircmera Nesse contexto a proacutepria praacutetica do

cinema amplia o espaccedilo para a reflexatildeo teoacuterica voltada para a questatildeo do

simulacro - a citaccedilatildeo a imagem que-alude agrave imagem o circuito das refeshy

49

recircncias a si mesmo que o cinema leva ao paroxismo entram para valer na

esfera da induacutestria constituem sua nova marca Tal reflexatildeo se faz dentro

de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do

cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura

contemporacircnea A imagem cinematograacutefica eacute entatildeo obseJvada a partir de

sua participaccedilatildeo em outra rede de relaccedilotildees em que natildeo haacute para a

interpretaccedilatildeo (esse tomar a imagem como representaccedilatildeo de algo exterior

a ela) para o juiacutezo da verdade ou mentira em que se a oposlccedilao

aparecircncia (imagem)essecircncia (substacircncia) -nada haacute por traacutes das lmlti~e~ns

elas valem como efeitos-de-superfiacutecie imagem remetendo a imagem fluxo de simulacros

Faccedilo agora uma incursatildeo que natildeo eacute propriamente no terreno da

nova filosofia e das questotildees mais amplas do simulacro na produccedilatildeo

Trata-se de uma anaacutelise particular no niacutevel da engenharia da simulaccedilatildeo

caracterizaccedilatildeo de um efeito na qual natildeo eacute necessaacuterio assumir as noccedilotildees

com a mesma ressonacircncia elas adquiriram na literatura dos anos 80

Fecho a exposiccedilatildeo com a consideraccedilatildeo de um novo exeacutemplo que acredishy

to esclareccedila algumas observaccedilotildees feitas ateacute aqui sobre a interaccedilatildeo entre

espectador e imagem sobre o papel da moldura do sujeito na leitura

Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o

efeito de uma depende de sua ~elaccedilatildeo com o sujeito em determishy

nadas condiccedilotildees Da situaccedilatildeo da testemunha de McCarthy passei a uma

caracterizaccedilatildeo mais detida do olhar do cinema e examinei dois momenshy

tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexatildeo criacuteshy

tica em torno do que hiacute de erigano e rcvelaccedilatildeo nesse olhar A partir de

uma discussatildeo mais sobre a simulaccedilatildeo do fato - na fotografia no

cinema chegamos a uma questatildeo mais especiacutefica a simulaccedilatildeo do sujeishy

to na estrutura mesma (lo olhar cinematograacutefico Dentro da discussatildeo

mais geral o exemplo a envolve uma situaccedilatildeo mais complicada do

quea das fotos do tribunal estaremos no cinema Como inspiraccedilatildeo

terei presentes as liccedilotildees de Baildry sem no entanto incorporar o movishy

mento totalizador de suaacute criacutetica ao olhar do cinema Seu amplo diagnoacutesshy

tico mobilizando a psicaacutenaacutelise tem como pressuposto o fato de sabershy

0

mos o bastante sobre a natureza do espectador de modo a prever o caraacuteshy

tcr de sua identificaccedilatildeo com o aparato a qual assume uma dimensatildeo

uacutenica de adesatildeo agrave imagem por forccedila do efeito-sujeito Como conhecedoshy

res do desejo do espectador denunciamos o conluio desse desejo com o

programa da induacutestria e deduzimos daiacute as alienaccedilotildees do cinema e da

teacuteia Natildeo tenho condiccedilotildees de endossar a generalidade desse saber a resshy

peito do espectador o aparato atua em determinada direccedilatildeo mas a expeshy

riecircncia do cinema inclui outras forccedilas e condiccedilotildees que natildeo se ajustam ao

programa do sistema A formulaccedilatildeo dc Baudry embora inclua com toda

a forccedila a dimensatildeo do desejo do espectador natildeo deixa de ser outra vershy

satildeo das teorias da manipulaccedilatildeo global centradas em excesso no aspecto

da experiecircncia de modo a confundir o processo que efetishy

vamente ocorre com a loacutegica ideal do sistema Focalizo uma situaccedilatildeo

didaacutetica nesse contcxto em que eacute perfeito o funcionamcnto do

aparato cm quc podemos verificar o mecanismo da simulaccedilatildeo em estashy

do digamos de laboratoacuterio

IVIULALAU E PONTO OE VISTA

Toda leitura de eacute pr()(llltatildeo de um ponto de vista o do sujeito

observador natildeo o da objetividade (b irnagetnA condiccedilatildeo dos efeitos

da imagem eacute essa Em particular o ekilO rb apoacuteia-se numa

construccedilatildeo que inclui o fmguh do obSlrVIr1or O simulacro parece o

que natildeo eacute a partir de um pOIHo ele vista () sujeito estaacute aiacute pressuposto Porshy

tanto o processo elc simulaccedilatildeo nlo l o (Li imagemem si mas o da sua

relaccedilatildeo com o sujeito Num (gt1lt1110 elemelltar podemos tomar o cinema

como modelo do processo O (llIC eacute a fjltnilgcm senatildeo a organizaccedilatildeo do

I 1 I - C f dacontecllnento pra 11111 angu () (C o lscrvaccedilao o que se con un e com

Nessas asserccedilotildees no de Xavier Audouard Le Simulacrc in

eacutepisteacutemologie de lEcole Normale gtuucushy

rc n mai-jun 1966) O horizonte de Audouard eacute o de uma discussatildeo sobre o

idealismo platocircnico seu terreno eacute ponanto distinto e meu natildeo

ca uma identificaccedilatildeo agrave sua perspectiva de anaacutelise

i J

o da cacircmera e nenhum outro mais) O que eacute a fachada de preacutedio de estuacuteshy

dio senatildeo a duplicaccedilatildeo do mesmo princiacutepio da fachada de rua que sushy

gere o que natildeo eacute justamente quando observada de um certo acircngulo e disshy

tacircncia jaacute pressupostos em sua composiccedilatildeo O que eacute a ficccedilatildeo do cinema

senatildeo uma simulaccedilatildeo de mundo para o espectador identificado com o aparato

Vertigo (Um corpo que cai) O filme de Hitchcock realizado

em 1958 Ele eacute a trama da simulaccedilatildeo por excelecircncia como jaacute foi observashy

do pela criacutetica Trago um aspecto novo agrave consideraccedilatildeo o do espelhamenshy

to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e

o proacuteprio princiacutepio da narraccedilatildeo do filme Tal como em outras obras de

Hitchcltck o cinepa c1aacutessi~o aqui operagrave com eficiecircncia maacutexima e ao

mesmo tempo oferece a metaacutefora viva para o seu proacuteprio processo Inteshy

ressado nessa metaacutefora acentuo nesta anaacutelise a mecacircnica da simulaccedilacirco o

funcionamento exterior do aparato natildeo o que nas personagens eacute desejo

do estratagema e disposiccedilatildeo para a vertigem da imagem

Sigamos passo a passo a narrativa ateacute o ponto que interessa

Vertigem tiacutetulo original eacute a palavra que condensa as ideacuteias-forccedila

do filme em sua tematiacutezaccedilatildeo do olhar e do ponto de vista A apresentaccedilatildeo

de Vertigo criaccedilatildeo de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em

close-up tratado como maacutescara enigmaacutetica imoacutevel Uma aproximaccedilatildeo

maior e um passeio da cacircmcra examinam essa maacutescara em seus detalhes

ateacute que isolado o olho ofereccedila os sinais de vida Os seus movimentos no

entanto natildeo criam uma ~xpressatildeo definida uma intcncionalidade do olhar

Preparam apenas o cenaacuterio ptra um movimentoem espiral na profundishy

dade Mergulho na inteacuteiioridaacutedc cujo fundo inatingiacutevel estaacute sempre em

recesso Aproximaccedilatildeo e recuo atraccedilatildeo e fuga a ambiguumlidade do movishy

mento da espiral ~ experiecircncia matriz de todo o filme cujo eixo eacute o

percurso de profissional do olhar detetive personificaccedilatildeo da

vertigem Logo na primeira sequumlecircncia define-se a questatildeo desse protagoshy

nista numa perseguiccedilatildeo telhados de Satildeo Francisco a vertigem de Scottie o faz responsaacuteveacutel pela morte de um

tentar ajudaacute-lo Sentimeriacuteto de cu1Da aposentadoria

52

lecida a disponibilidade total de a situaccedilatildeo-chave de Vertigo deseshy

nha-se quando ele atende ao chamado de Elster de escola que

no reencontro surpreende-o com o pedido para que sua mulher

Madeleine Elster mostra-se apreensivo com as manifestaccedilotildees de ausecircnshy

cia que ela apresenta com os periacuteodos de comportamento estranho em

que ela parece ser outra pessoa de que retoma sem lembranccedilas

O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma

proposto Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine pesquisa pela

recolhe dados essenciais Um primeiro quadro se compotildee a

ra que dela se apossa em seus transes eacute Cadota Valdez mulher que viveu

em San Francisco no seacuteculo XIX e que se suicidou em circunstacircncias meshy

lancoacutelicas Novamente com Elster Scottie relata as descobertas O marishy

do introduz novo dado Madeleine estaacute em perigo de vida pois descende

de Carlota outras mulheres da linhagem cometeram suiciacutedio e ela tem

agora a idade de Carlota ao morrer

Na primeiraacute seacuterie de passeios de Madeleine fase em que se compotildec

o quadro tivemos uma ostensiva duplicaccedilatildeo num primeiro plano Scortie

observa MadeJeine que natildeo reconhece sua presenccedila (ele estaacute fora do tershy

ritoacuterio dela) e se potildee disponiacutevel ao olhar movimentando-se como numa

cena num segundo plano ao longo do mesmo eixo a cacircmera observa

Scottie que Madeleine Satildeo duas uma dentro da outra que

natildeo se tocam Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele ambos enquadra~

dos por noacutes no lugar da cacircmera Madeleine nunca devolve o olhar a Scotshy

tie devolve o olhar agrave cacircmera (regra do filme claacutessico) Mas eacute

ambiacutegua essa passividade pois eacute o movimento dela que dirige o olhar

dele eacute a accedilatildeo de ambos que dirige o nosso olhar sempre na esteira do

acircngulo de de Scottie com quem partilhamos a ignoracircncia a

curiosidade a descoberta

Apoacutes a segunda conversa com Elster o tema do suiciacutedio engendra

uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria MadeleineCarlota

atira-se nas aacuteguas da baiacutea de San Francisco Scottie a resgata Permaneceshy

mos puro olhar ele passa ao plano da intervenccedilatildeo e do diaacutelogo Com os

dois juntos certa concretude o que em Scottie eacute jaacute sonho romacircnshy

53

tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do

filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs

do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e

terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM

sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a

lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute

coloca adiante dele na investigaccedilatildeo

A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy

satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela

que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e

com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy

gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave

de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre

alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se

e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos

da escada retido pela vertigem - e somos retidos

com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai

O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um

psicologicamente massacrado Elsshy

natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco

destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar

em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um

dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras

no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de

Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus

motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade

(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy

to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme

natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente

natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy

54

dos no quarto ficamos ao lado de

sem delongas que natildeo espera o final

Sozinha no quarto hesitante nervosa

assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy

a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy

para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade

para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy

blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez

de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao

topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o

mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre

Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou

resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda

para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas

posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy

ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema

bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia

apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do

suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo

de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy

dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as

imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()

prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a

loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy

lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy

leine-Carlota em a Scottic

O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse

mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy

vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade

e o de (a natildeo foi apenas para ele a

Urna leimra mais completa de Vertigo exishy

~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy

para o estratagema do as permanecem na

55

esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy

sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas

consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui

afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte

final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema

No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo

na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a

reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos

nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que

era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy

satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy

tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy

sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da

outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o

estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy

nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy

Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a

accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata

Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave

moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo

nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir

de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma

questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy

posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy

to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o

espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)

6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy

ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin

Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a

psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense

1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ

Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se

uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy

co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para

finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do

cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy

nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy

ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens

do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que

nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle

de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta

o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos

entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve

a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim

oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos

a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy

so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu

ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa

segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista

muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da

relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar

e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo

eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de

imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo

vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz

de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos

Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy

te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo

implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas

colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo

com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que

fora do campo torna visiacutevel

56 57

Page 8: Ismail Xavier Cinema Revelacaoengano

vel) que o cinema vemcaptar com exclusividade pois fixa os movimenshy

tos na peliacutecula sem as atrapalhaccedilotildees do olho natural O cinema tem seu

vigor proacuteprio de um olhar mais automaacutetico

natildeo maculado pelos preconceitos culturais

dade Eacute irocircnico que justamente porque natildeo tem interioridade o olhar

da maacutequina possa atingir o princiacutepio interior dos movimentos revelar a

verdade que organicamente expressa-se em sentido pleno imprime-se

numa textura do mundo que soacute a cacircmera eacute capaz de registrar O proacuteprio

instantacircneo fotograacutefico em sua estrutura mais simples jaacute nos mostra o

quanto a imagem revelada faz emergir dados ocultos que natildeo estavam na

mira do fotoacutegrafo No cinema o movimento poteacutencializa tal desocultashy

mento o qual pode tornar-se mais efetivo quando os cineastas forem cuacutemshy

plices da nova teacutecnica em vez de tentar agrave como no

melodrama a expressividade do fica atrelada a toda uma

cadeia de loacutegica eacute tomada de empreacutestimo agrave do natushy

em que o tOrnar visiacutevel resulta do de uma retoacuterica que ~rH+tia Para

o que era aaequado ao teatro - como ilusionismo do seacuteculo XIX natildeo o eacute para o cinema do seacuteculo xx pois a

imitaccedilatildeo dos gestos antes oferecida a olhos desarmados natildeo resiste agrave anaacuteshy

lise da nova sensibilidade Com o cinema a percepccedilatildeo humana ganhou

um acesso especial agrave intimidade dos processos - ~ele a aparecircncia eacute jaacute uma

anaacutelise O cose-up natildeo eacute o lugar do fingimento eacute uma presenccedila que reveshy

la o que se eacute natildeo o que se pretende ser (inuacuteteis as caretas dos

A aposta da vanguarda estaacute no poder analiacutetico do cinematoshygraacutefico no que ressalta natildeil

espaccedilo) mas tambeacutem as

mente a cacircmera lenta (arnplia(acirco no eixo do tempo) que reveshyIa o mundo em outra e de~cobre-nos a vida secreta que se tece a

nossa volta e em noacutes ganhando ~xpressatildeo nas formas instaacuteveis fora da

nossa consciecircncia que temo~ fixadas pela teacutecnica2 Epstein nos seus

2 Essa aposta no poder analiacutetko do dnema tem uma versatildeo radical moshymento na Uniatildeo Sovieacutetica encarnada rio projeto do Cine-Olho de Vertov gt

42

o ~__ao~ das diferentes velocidades

do movimento animal e dos fenocircmenos Fershy

nand Leacuteger as relaccedilotildees e a forma dos objetos fora de sua inserccedilatildeo

utilitaacuteria no cotidiano Embora natildeo totalmente afinado ao cineacutema dayantshy

garde o surrealismo torna-se o movimento de contestaccedil50 ao cinema inshy

dustrial de maior impacto com sua exploraccedilatildeo da montagem como reveshy

laccedil50 das pulsotildees anatomia do desejo Em diferentes busca-se a

experiecircncia fora do senso comum o olhar em sintonia com ~l~r

do - a sensibilidade efetivamente moderna A

(Epstein) surge entatildeo como nova pedagogia

ccedilatildeo ao cenaacuterio do melodrama - pois o cincma teria como destino

trazer-nos de volta uma cosmologia e um encantamento do mundo para

os quais o cartesianismo e a filosofia da Ilustraccedilatildeo cegos

O horizonte desse renascimento seria a explosatildeo do universo carceraacuterio

da existecircncia atual (para usar a expressatildeo de Walter Benjamin em seu

ceacutelebre ensaio de T936 ao falar de reproduccedilatildeo teacutecnica arte e

A formulaccedilatildeo de Epstein-Dulae eacute questionaacutevel auando examinada a

partir de sua ideacuteia-matriz de expressatildeo

analiacutetico (inegaacutevel) da ~~a~Mrl~ aiacute uma feacute inteshy

gral no dado visiacutevel na caj)acldlde exclusiva de

suas relaccedilotildees internas trazer a verdade agrave tona

agrave ao contexto de cada a~aM~A mais de-

no entanto estaacute no impulso utoacutepico nela presente c no salto teoacuterico

que oferece ao buscar um pensameMo agrave alwra dos aspectos radicalmente

novos da experiecircncia do cinema no inicio do seacuteculo Benjamin o filoacutesofo

atento agraves transformaccedilotildees da sensibilidade geradas pelas novas diraacute

em 1936 A natureza que se dirifie dmera natildeo eacute a mesma que a que se

dirige ao olhar Essas c outras suas - sobre o ator o

gt que procura realizar no cinema documentaacuterio a verdade que desmascara a culshy

tura tradicional A cIacutee Vertov diante dos franceses eacute a

ccedilatildeo que ele estabelece cntre desmascaramento e exposiccedilatildeo dos processos efetivos

da Drodudiacuteo social das relaccedilotildees de atraveacutes do montagem cinematogniacutefica

43

analiacutetico da Imagem retomam muito do repertoacuterio da vanguarda dos anos

20 inserindo a caracterizaccedilatildeo do olhar do cinema numa reflexatildeo mais amshy

pIa sobre teacutecnica e cultura Nessa reflexatildeo a moldura eacute outra mas prevalece

o mesmo movimento de ressaltar o papel subversivo revelado r da fotoshy

grafia e do cinema dentro da cultura europeacuteia A promessa entatildeo se reafirshy

ma sem as premissas de eXflressividade total e de retorno agrave natureza

Com Benjamin ela aSSume um contorno histoacuterico mais bem demarcado eacute

por um persamento mais sensiacutevel agrave contradiccedilatildeo e ao caraacuteter das

forccedilas sociais em conflito Pensamento que nos trouxe uma avaliaccedilatildeo da

questatildeo da arte dentro de uma articulaccedilatildeo mais luacutecida com a conjuntura

poliacutetica e a proacutepria natureza das apostas em na Europa dos anos 30

polarizada por uma confrontaccedilatildeo decisiva entre revoluccedilatildeo e reaccedilatildeo

A CRiacuteTICA DO OLHAR SEM CORPO

No seu elogio ao aspecto revelador do olhar no cinema o pensamento

dos anos 20 colocou o debate em termos de verdade (cinema) emendra

(tradiccedilatildeo cultural) e deu toda ecircnfase agrave cumplicidade entre cinema e natushy

reza solidaacuterios enquanto um organismo e sua expressatildeo visual prontos a

expulsar a simulaccedilatildeo desde que a nova teacutecnica fosse salva de su~ adultera-

promovida pelo universo da mercadoria Por esse a oposishyentre um cinema desejado objeto do recalque e aquele que

realmente impera (a pedagogia da induacutestria orienta-se por uma teleoIOPla o presente eacute o mOmelItO dos entraves que impedem o desenshy

volvimento na direccedilatildeo COrreta eacuteapaz de realizar as promessas da nova

teacutecnica o futuro eacute o preenchimen~o dessas promessas que desde jaacute as vanshy

guardas anunciam e preparam Entre 1920 e J960 os poderes reais inshy

sistiram em repor o mesno cinema dominante o que trouxe em linhas

a reiteraccedilatildeo da mesnla matriz de contestaccedilatildeo O conflito dominanshy

tedominado traduzido em termos de verdade e refez-se ao

longo de eixos diversos Quando prevaleceu um eixo poliacutetico o poacutelo da

verdade (futuro) identificou-se agrave cultura revolucionaacuteria o da mentira

presentet agraves mistificaccedilotildees da reaccedilatildeo Quando prevaleceu um eixo esteacutetishy

co verdade foi poesia originalidade experimentaccedilatildeo mentira foi a rotishy

na do comeacutercio o kitscll industrializado

Natildeo cabe agora a recapitulaccedilatildeo do que foram as diferentes versotildees

desse conflito vanguardacultura de massa em cada e eacutepoca Natildeo o

poderia fazer nem quero pois meu objetivo eacute saltar dessa primeira refleshy

xatildeo dos anos 20 para uma mais proacutexima de gerada no contexto franshy

cecircs poacutes-68 reflexatildeo que abandonou a tradiccedilatildeo de opor verdade e mentishy

ra deslocando a discussatildeo sobre a teacutecnica do cinema

No grande intervalo que a criacutetica avanccedilou na caracterizashy

ccedilatildeo do olhar sem corpo e suas implicaccedilotildees notadamente na avaliaccedilatildeo de

sua estrutura mais comunicativa e sedutora o cinema olhar da

induacutestria da ideologia dominante nos meios Extensatildeo do qlle

chamei olhar melodramaacutetico o cinema claacutessico eacute sua modernizaccedilatildeo Faz

com que ele abandone os excessos maiores do ganhe em

profundidade dramaacutetica amplitude temaacutetica concretizando o ver mais e

melhor do cinema na direccedilatildeo de um ilusionismo mais completo - o cineshy

ma claacutessico eacute o olhar sem corpo atuando em sentido

caracterizaccedilatildeo dos seus poderes apresentada em minha primeira

que de fato ajusta-se mais precisamente a esse estilo particular dOJTIinanshy

te no mercado e natildeo a todo o cinema possiacutevel Eacute nele mais do que em

qualquer outra proposta que vemos realizado o de intensificar ao

extremo nossa relaccedilatildeo com o mundo-objeto fazer tal mundo parecer autocircshy

nomo existente em seu proacuteprio direito natildeo encorajando perguntas na

direccedilatildeo do proacuteprio olhar mediador sua estrutura e comportamento Soshy

mos aiacute convidados a tomar o olhar sem corpo como dado natural

Entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 60 dois grandes

de reflexatildeo conduziram a criacutetica a essa naturalidade postulada pelo cineshy

ma claacutessico a teoria radical do cinema-discurso baseado nas operaccedilotildees da

montagem (o Eisenstein dos anos 20-30 permaneceu aqui a referecircncia

central) e a criacutetica francesa inspirada na fenomenologia tendo como [oco

maior Andreacute Bazin3

3 Cf Bazin Cinema ensaios trad Eloisa Ribeiro (Satildeo Paulo Brasilicnse 1991)

44 45

Falar de Eisenstein exigiria uma abordagem radicalmente distinta da

que faccedilo agora pois sua criacutetica ao ilusionismo COmeccedila com a advertecircncia

de que a imagem cinematograacutefica natildeo deve ser lida c0f110 produto de um

olhar Para ele a suposiccedilatildeo de que houve um encontro uma contiguumlidade

espacial e temporal entre cacircmera e objeto natildeo eacute O dado central e impresshy

cindiacutevel da leitura da imagem Sua presenccedila na tela eacute um fato de natureza

que deve ser observado em seu valor simboacutelico

caracteriacutesticas de sua composiccedilatildeo e sua no Contexto de um discurshy

so que eacute exposiccedilatildeo de ideacuteias natildeo sucessatildeo natural de fatos captados

pelo olhar A diferenccedila entre um plano geral e um cose-up por

muitas vezes natildeo pode ser entendida como olhar versus

olhar de mesmo quando se focaliza o mesmo ODjeto mas como

confronto de duas imagens de valores distintos A diferenccedila eacute de

natildeo de posiccedilatildeo no espaccedilo pois pode natildeo haver COntinuidade e

homogeneidade espacial para que se possa falar num mais perto

- tudo depende do contexto do discurso por imagens

Ao contraacuterio de Eisenstein os criacuteticos inspirados na fenomenologia

endossam e defendem a premissa de que no cinema toda imagem eacute proshy

duto de um olhar - eacute essencial que ela seja vista como tal- e a sucessatildeo

define sempre a atitude do observador diante de um mundo homogecircneo

Agrave imagem-signo de Eisenstein eles opotildeem a imagem-acontecimento agrave

defesa da descontinuidade proacutepria do cineasta russo respondem Com

uma defesa ateacute mais radical do princiacutepio de continuidade jaacute presente na

narraccedilatildeo claacutessica fazendo a ela um reparo fundamental se a imagem em

movimento nos traz a percepccedilatildeo privilegiada do homem como ser lanccedilashy

do no mundo como ser-em-situaccedilatildeo a falsidade do cinema claacutessico estaacute

na manipulaccedilatildeo impliacutecita em sua montagem o olhar sem corpo e a

onividecircncia criam na tela uni mundo abstrato de sentido fechado preshy

julgado e organizado pelo cin~ina Toda montagem eacute discurso manipulashy

ccedilatildeo de Eisenstein de GrUacutefith ou de Bufiacuteuel Em oposiccedilatildeo um criacutetishy

co como Bazin solicita um olhar cinematograacutefico mais afinado ao olho de

um sujeito circunstanciado que p6ssui limites aceita a abertura do

mundo convive com ambiguumlidades Quando pede realismo ele natildeo se

46

deteacutem em consideraccedilotildees de conteuacutedo (o tipo de universo Ciccional ou doshy

cumentaacuterio) Sublinha a postura do olhar em sua interaccedilatildeo com o mundo

tanto mais legiacutetima quanto mais as condiccedilotildees de nosso olhar

ancorado no corpo vivenciando uma duraccedilatildeo e uma circunstacircncia em sua

continuidade trabalhando as incertezas de uma percepccedilatildeo

ultrapassada mundo Daiacute sua minimizaccedilatildeo da montagem (instacircncia

construtora da onividecircncia) sua defesa do plano-seguumlecircncia (olhar uacutenico

sem cortes observando uma em seu um acontecimento

em seu fluir

Numa visatildeo mais atual prestamos atenccedilatildeo especial ao que aproxima

e natildeo apenas ao que afasta o cinema-discurso de Eisenstein e o realismo

existencial de Bazin haacute em ambos novamente a atribuiccedilatildeo de um poder

de verdade e de um poder de mentira encarnados em determinados estishy

los Para Eisenstein haacute um estilo capaz de dizer o mundo social-histoacuterishy

co colocando o cinema como potecircncia maior no plano do conhecimento

Para Bazin O cinema eacute uma espeacutecie de terceiro estado da e exisshy

te um estilo autecircntico na captaccedilatildeo da vivecircncia humana em sua

essencial abertura no tempo

Contra esse pano de fundo da tradiccedilatildeo teoacuterica a intervenccedilatildeo de

]ean-Louis Baudry em 1969-70 em questatildeo a constante promessa de

um estilo mais verdadeiro e dirige seu ataque agraves premissas do cinema em

geral examinando mais a fundo as condiccedilotildees do espectador raciociacuteshy

nio estaacute municiado para analisar o espectador do filme claacutessico mas

fala em cinema tout couTe) 4 O horizonte de seu exame eacute ressaltar o

modo pelo qual a recepccedilatildeo da imagem possui uma estrutura que a seu ver

solapa o reiterado creacutedito - de Eisenstein Griffith Epstein na

da verdade como destinaccedilatildeo fundamental do cinema Ele invershy

te a tradiccedilatildeo e vecirc na simulaccedilatildeo na de efeitos (ilusoacuterios) de

conhecimento o destino maior da nova arte (visatildeo que

4 O mais importante dos textos de Jean-Louis dessa

1970 Os efeitos ideoloacutegicos do de base estaacute publicado em Ismail

Xavier (orll) A experiecircncia do cinema (Rio de Janeiro

47

pela permanecircncia do ilusionismo do cinema industrial) Isso se daacute por

forccedila da proacutepria natureza da teacutecnica cinematograacutefica herdeira das ilusotildees _

da perspectiva da persistecircncia retiniana (natildeo vemos os fotogramas vemos

o que natildeo ocorre na tela ou seja o movimento da imagem e temos a imshy

pressatildeo de continuidade) da falsa autenticidade documental da fotografia

Rearticulando elementos jaacute conhecidos Baudry nos traz uma interpretashy

ccedilatildeo radical que- questiona natildeo estilos particulares de fazer cinema mas o

fundamento mesmo de sua objetividade como teacutecnica essa mes~a objetishy

vidade que tem sido a sustentaccedilatildeo maior das esperanccedilas de verdade Na

nova perspectiva as diferentes posiccedilotildees teoacutericas desde 1920 definem um

pensar o cinema a priori capturado pelas ilusotildees da teacutecnica e desatento agraves

implicaccedilotildees contidas na proacutepria estrutura do olhar da cacircmera tal como se

daacute para noacutes na plateacuteia A teacutecnica tem suas inclinaccedilotildees seus efeitos ideoloacuteshy

gicos e nesse sentido eacute ela mesma que impele o cinema industrial a desenshy

volver seu ilusionismo e trazer o espectador para dentro do mundo ficcioshy

na A forccedila de encantamento desse cinema persiste na histoacuteria porque o

dado crucial em jogo natildeo eacute tanto a imitaccedilatildeo do real na tela _ a reproduccedilatildeo

integral das aparecircncias - mas a simulaccedilatildeo de um certo tipo de sujeito-doshy

olhar pelas operaccedilotildees do aparato cinematograacutefico

Avaliar a potecircncia do olhar sem corpo natildeo eacute entatildeo inventariar as

imagens que ele oferece efocaIacuteIacutezar o seu movimento proacuteprio sua forma

de mediaccedilatildeo o que impiacuteica analisar sua incidecircncia no espectador que

vivenda o poder de clarividecircncia a percepccedilatildeo tota Na sala escura idenshy

tificado com o movimento do olhar da cacircmera eu me represento como

sujeito dessa percepccedilatildeo total capaz de doar sentido agraves coisas sobrevoar as

aparecircncias fazer a siacutentese do mundo Minha emoccedilatildeo estaacute com os fatos

que o olhar segue mas a cbndiccedilatildeo desse envolvimento eacute eu me colocar no

lugar do aparato sintoniz~do com suas operaccedilotildees Com isso incorporo

(ilusoriamente) seus poder~s e ericontro nessa sintonia - solo do entendishy

mento cinematograacutefico - o maior cenaacuterio de simulaccedilatildeo de uma onipotecircnshy

cia imaginaacuteria No cinema faccedilo uma viagem que confirma minha condishy

ccedilatildeo de sujeito tal como a desejo Maacutequina de efeitos a realizaccedilatildeo maior do

cinema seria entatildeo esse efeito-sujeito a simulaccedilatildeo de uma consciecircncia

48

transcendente que descortina o mundo e se vecirc no centro das coisas ao

mesmo tempo que radicalmente separada delas a observar o mundo coshy

mo puro olhar Nessa apropriaccedilatildeo ilusoacuteria da competecircncia ideal do olhar

estou portanto no centro mas eacute o aparato que aiacute me coloca pois eacute dele o

movimento da percepccedilatildeo monitor da minha fantasia

Para Baudry uma filosofia idealista que postula um sujeito transshy

cendente em oposiccedilatildeo ao mundo objetivo que se dispotildee ao conhecimento

encontra aiacute na teacutecnica do cinema sua traduccedilatildeo visiacutevel Toda sua ecircnfase

recai sobre a produccedilatildeo simultacircnea da imagem e do sujeito-observador

onividente A engenharia simuladora do cinema define com o efeitoshy

sujeito seu teatro da percepccedilatildeo total cujo protagonista sou eu-espectador

identificado com o olhar da cacircmera

N esses termos o que dificulta a consolidaccedilatildeo de linguagens alternashy

tivas mais verdadeiras eacute esse pecado original inscrito na teacutecnica Esta

tem na ilusatildeo seu sustentaacuteculo e os percalccedilos das vanguardas devem-se a

que sua aposta eacute reverter a funccedilatildeo daquilo que jaacute nasceu para cumprir

outro destino Digo destino porque a loacutegica dessa teoria transforma o cineshy

ma num oacutergatildeo que surgiu para cumprir um programa o de objetivar na

esfera do visiacutevel estrateacutegias de dominaccedilatildeo especialmente as da classe burshy

guesa que presidiu sua origem Assim antes de instacircncia liberadora subshy

versiva a condiccedilatildeo do cinema eacute preencher uma demanda do proacuteprio unishy

verso carceraacuterio tornando-o mais preciso e poderoso em seu aparato

Haacute uma atmosfera de desencanto instalada a partir dos anos 70 a

formulaccedilatildeo aqui exposta eacute a traduccedilatildeo teacuteoacuterica radical dos impasses da conshy

testaccedilatildeo no cinema Temos o esgotamento de uma teleologia a da teacutecnishy

ca redentora entravada pela poliacutetica e a economia e sua substituiccedilatildeo

por u~a outra a da teacutecnica como instrumento maior de reposiccedilatildeo de um

sistema de poder Em consonacircncia corn a tonalidade da reflexatildeo sobre a

linguagem a cultura e a ideologia naquele momento a teoria do cinema

mais original e polecircmica ressalta o lado sistemaacutetico inelutaacutevel das ilusotildees

e dos enganos do olhar da cacircmera Nesse contexto a proacutepria praacutetica do

cinema amplia o espaccedilo para a reflexatildeo teoacuterica voltada para a questatildeo do

simulacro - a citaccedilatildeo a imagem que-alude agrave imagem o circuito das refeshy

49

recircncias a si mesmo que o cinema leva ao paroxismo entram para valer na

esfera da induacutestria constituem sua nova marca Tal reflexatildeo se faz dentro

de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do

cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura

contemporacircnea A imagem cinematograacutefica eacute entatildeo obseJvada a partir de

sua participaccedilatildeo em outra rede de relaccedilotildees em que natildeo haacute para a

interpretaccedilatildeo (esse tomar a imagem como representaccedilatildeo de algo exterior

a ela) para o juiacutezo da verdade ou mentira em que se a oposlccedilao

aparecircncia (imagem)essecircncia (substacircncia) -nada haacute por traacutes das lmlti~e~ns

elas valem como efeitos-de-superfiacutecie imagem remetendo a imagem fluxo de simulacros

Faccedilo agora uma incursatildeo que natildeo eacute propriamente no terreno da

nova filosofia e das questotildees mais amplas do simulacro na produccedilatildeo

Trata-se de uma anaacutelise particular no niacutevel da engenharia da simulaccedilatildeo

caracterizaccedilatildeo de um efeito na qual natildeo eacute necessaacuterio assumir as noccedilotildees

com a mesma ressonacircncia elas adquiriram na literatura dos anos 80

Fecho a exposiccedilatildeo com a consideraccedilatildeo de um novo exeacutemplo que acredishy

to esclareccedila algumas observaccedilotildees feitas ateacute aqui sobre a interaccedilatildeo entre

espectador e imagem sobre o papel da moldura do sujeito na leitura

Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o

efeito de uma depende de sua ~elaccedilatildeo com o sujeito em determishy

nadas condiccedilotildees Da situaccedilatildeo da testemunha de McCarthy passei a uma

caracterizaccedilatildeo mais detida do olhar do cinema e examinei dois momenshy

tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexatildeo criacuteshy

tica em torno do que hiacute de erigano e rcvelaccedilatildeo nesse olhar A partir de

uma discussatildeo mais sobre a simulaccedilatildeo do fato - na fotografia no

cinema chegamos a uma questatildeo mais especiacutefica a simulaccedilatildeo do sujeishy

to na estrutura mesma (lo olhar cinematograacutefico Dentro da discussatildeo

mais geral o exemplo a envolve uma situaccedilatildeo mais complicada do

quea das fotos do tribunal estaremos no cinema Como inspiraccedilatildeo

terei presentes as liccedilotildees de Baildry sem no entanto incorporar o movishy

mento totalizador de suaacute criacutetica ao olhar do cinema Seu amplo diagnoacutesshy

tico mobilizando a psicaacutenaacutelise tem como pressuposto o fato de sabershy

0

mos o bastante sobre a natureza do espectador de modo a prever o caraacuteshy

tcr de sua identificaccedilatildeo com o aparato a qual assume uma dimensatildeo

uacutenica de adesatildeo agrave imagem por forccedila do efeito-sujeito Como conhecedoshy

res do desejo do espectador denunciamos o conluio desse desejo com o

programa da induacutestria e deduzimos daiacute as alienaccedilotildees do cinema e da

teacuteia Natildeo tenho condiccedilotildees de endossar a generalidade desse saber a resshy

peito do espectador o aparato atua em determinada direccedilatildeo mas a expeshy

riecircncia do cinema inclui outras forccedilas e condiccedilotildees que natildeo se ajustam ao

programa do sistema A formulaccedilatildeo dc Baudry embora inclua com toda

a forccedila a dimensatildeo do desejo do espectador natildeo deixa de ser outra vershy

satildeo das teorias da manipulaccedilatildeo global centradas em excesso no aspecto

da experiecircncia de modo a confundir o processo que efetishy

vamente ocorre com a loacutegica ideal do sistema Focalizo uma situaccedilatildeo

didaacutetica nesse contcxto em que eacute perfeito o funcionamcnto do

aparato cm quc podemos verificar o mecanismo da simulaccedilatildeo em estashy

do digamos de laboratoacuterio

IVIULALAU E PONTO OE VISTA

Toda leitura de eacute pr()(llltatildeo de um ponto de vista o do sujeito

observador natildeo o da objetividade (b irnagetnA condiccedilatildeo dos efeitos

da imagem eacute essa Em particular o ekilO rb apoacuteia-se numa

construccedilatildeo que inclui o fmguh do obSlrVIr1or O simulacro parece o

que natildeo eacute a partir de um pOIHo ele vista () sujeito estaacute aiacute pressuposto Porshy

tanto o processo elc simulaccedilatildeo nlo l o (Li imagemem si mas o da sua

relaccedilatildeo com o sujeito Num (gt1lt1110 elemelltar podemos tomar o cinema

como modelo do processo O (llIC eacute a fjltnilgcm senatildeo a organizaccedilatildeo do

I 1 I - C f dacontecllnento pra 11111 angu () (C o lscrvaccedilao o que se con un e com

Nessas asserccedilotildees no de Xavier Audouard Le Simulacrc in

eacutepisteacutemologie de lEcole Normale gtuucushy

rc n mai-jun 1966) O horizonte de Audouard eacute o de uma discussatildeo sobre o

idealismo platocircnico seu terreno eacute ponanto distinto e meu natildeo

ca uma identificaccedilatildeo agrave sua perspectiva de anaacutelise

i J

o da cacircmera e nenhum outro mais) O que eacute a fachada de preacutedio de estuacuteshy

dio senatildeo a duplicaccedilatildeo do mesmo princiacutepio da fachada de rua que sushy

gere o que natildeo eacute justamente quando observada de um certo acircngulo e disshy

tacircncia jaacute pressupostos em sua composiccedilatildeo O que eacute a ficccedilatildeo do cinema

senatildeo uma simulaccedilatildeo de mundo para o espectador identificado com o aparato

Vertigo (Um corpo que cai) O filme de Hitchcock realizado

em 1958 Ele eacute a trama da simulaccedilatildeo por excelecircncia como jaacute foi observashy

do pela criacutetica Trago um aspecto novo agrave consideraccedilatildeo o do espelhamenshy

to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e

o proacuteprio princiacutepio da narraccedilatildeo do filme Tal como em outras obras de

Hitchcltck o cinepa c1aacutessi~o aqui operagrave com eficiecircncia maacutexima e ao

mesmo tempo oferece a metaacutefora viva para o seu proacuteprio processo Inteshy

ressado nessa metaacutefora acentuo nesta anaacutelise a mecacircnica da simulaccedilacirco o

funcionamento exterior do aparato natildeo o que nas personagens eacute desejo

do estratagema e disposiccedilatildeo para a vertigem da imagem

Sigamos passo a passo a narrativa ateacute o ponto que interessa

Vertigem tiacutetulo original eacute a palavra que condensa as ideacuteias-forccedila

do filme em sua tematiacutezaccedilatildeo do olhar e do ponto de vista A apresentaccedilatildeo

de Vertigo criaccedilatildeo de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em

close-up tratado como maacutescara enigmaacutetica imoacutevel Uma aproximaccedilatildeo

maior e um passeio da cacircmcra examinam essa maacutescara em seus detalhes

ateacute que isolado o olho ofereccedila os sinais de vida Os seus movimentos no

entanto natildeo criam uma ~xpressatildeo definida uma intcncionalidade do olhar

Preparam apenas o cenaacuterio ptra um movimentoem espiral na profundishy

dade Mergulho na inteacuteiioridaacutedc cujo fundo inatingiacutevel estaacute sempre em

recesso Aproximaccedilatildeo e recuo atraccedilatildeo e fuga a ambiguumlidade do movishy

mento da espiral ~ experiecircncia matriz de todo o filme cujo eixo eacute o

percurso de profissional do olhar detetive personificaccedilatildeo da

vertigem Logo na primeira sequumlecircncia define-se a questatildeo desse protagoshy

nista numa perseguiccedilatildeo telhados de Satildeo Francisco a vertigem de Scottie o faz responsaacuteveacutel pela morte de um

tentar ajudaacute-lo Sentimeriacuteto de cu1Da aposentadoria

52

lecida a disponibilidade total de a situaccedilatildeo-chave de Vertigo deseshy

nha-se quando ele atende ao chamado de Elster de escola que

no reencontro surpreende-o com o pedido para que sua mulher

Madeleine Elster mostra-se apreensivo com as manifestaccedilotildees de ausecircnshy

cia que ela apresenta com os periacuteodos de comportamento estranho em

que ela parece ser outra pessoa de que retoma sem lembranccedilas

O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma

proposto Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine pesquisa pela

recolhe dados essenciais Um primeiro quadro se compotildee a

ra que dela se apossa em seus transes eacute Cadota Valdez mulher que viveu

em San Francisco no seacuteculo XIX e que se suicidou em circunstacircncias meshy

lancoacutelicas Novamente com Elster Scottie relata as descobertas O marishy

do introduz novo dado Madeleine estaacute em perigo de vida pois descende

de Carlota outras mulheres da linhagem cometeram suiciacutedio e ela tem

agora a idade de Carlota ao morrer

Na primeiraacute seacuterie de passeios de Madeleine fase em que se compotildec

o quadro tivemos uma ostensiva duplicaccedilatildeo num primeiro plano Scortie

observa MadeJeine que natildeo reconhece sua presenccedila (ele estaacute fora do tershy

ritoacuterio dela) e se potildee disponiacutevel ao olhar movimentando-se como numa

cena num segundo plano ao longo do mesmo eixo a cacircmera observa

Scottie que Madeleine Satildeo duas uma dentro da outra que

natildeo se tocam Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele ambos enquadra~

dos por noacutes no lugar da cacircmera Madeleine nunca devolve o olhar a Scotshy

tie devolve o olhar agrave cacircmera (regra do filme claacutessico) Mas eacute

ambiacutegua essa passividade pois eacute o movimento dela que dirige o olhar

dele eacute a accedilatildeo de ambos que dirige o nosso olhar sempre na esteira do

acircngulo de de Scottie com quem partilhamos a ignoracircncia a

curiosidade a descoberta

Apoacutes a segunda conversa com Elster o tema do suiciacutedio engendra

uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria MadeleineCarlota

atira-se nas aacuteguas da baiacutea de San Francisco Scottie a resgata Permaneceshy

mos puro olhar ele passa ao plano da intervenccedilatildeo e do diaacutelogo Com os

dois juntos certa concretude o que em Scottie eacute jaacute sonho romacircnshy

53

tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do

filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs

do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e

terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM

sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a

lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute

coloca adiante dele na investigaccedilatildeo

A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy

satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela

que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e

com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy

gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave

de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre

alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se

e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos

da escada retido pela vertigem - e somos retidos

com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai

O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um

psicologicamente massacrado Elsshy

natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco

destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar

em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um

dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras

no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de

Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus

motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade

(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy

to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme

natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente

natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy

54

dos no quarto ficamos ao lado de

sem delongas que natildeo espera o final

Sozinha no quarto hesitante nervosa

assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy

a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy

para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade

para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy

blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez

de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao

topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o

mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre

Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou

resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda

para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas

posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy

ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema

bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia

apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do

suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo

de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy

dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as

imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()

prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a

loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy

lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy

leine-Carlota em a Scottic

O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse

mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy

vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade

e o de (a natildeo foi apenas para ele a

Urna leimra mais completa de Vertigo exishy

~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy

para o estratagema do as permanecem na

55

esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy

sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas

consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui

afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte

final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema

No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo

na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a

reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos

nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que

era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy

satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy

tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy

sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da

outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o

estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy

nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy

Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a

accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata

Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave

moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo

nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir

de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma

questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy

posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy

to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o

espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)

6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy

ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin

Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a

psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense

1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ

Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se

uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy

co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para

finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do

cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy

nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy

ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens

do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que

nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle

de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta

o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos

entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve

a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim

oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos

a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy

so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu

ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa

segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista

muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da

relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar

e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo

eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de

imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo

vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz

de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos

Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy

te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo

implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas

colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo

com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que

fora do campo torna visiacutevel

56 57

Page 9: Ismail Xavier Cinema Revelacaoengano

analiacutetico da Imagem retomam muito do repertoacuterio da vanguarda dos anos

20 inserindo a caracterizaccedilatildeo do olhar do cinema numa reflexatildeo mais amshy

pIa sobre teacutecnica e cultura Nessa reflexatildeo a moldura eacute outra mas prevalece

o mesmo movimento de ressaltar o papel subversivo revelado r da fotoshy

grafia e do cinema dentro da cultura europeacuteia A promessa entatildeo se reafirshy

ma sem as premissas de eXflressividade total e de retorno agrave natureza

Com Benjamin ela aSSume um contorno histoacuterico mais bem demarcado eacute

por um persamento mais sensiacutevel agrave contradiccedilatildeo e ao caraacuteter das

forccedilas sociais em conflito Pensamento que nos trouxe uma avaliaccedilatildeo da

questatildeo da arte dentro de uma articulaccedilatildeo mais luacutecida com a conjuntura

poliacutetica e a proacutepria natureza das apostas em na Europa dos anos 30

polarizada por uma confrontaccedilatildeo decisiva entre revoluccedilatildeo e reaccedilatildeo

A CRiacuteTICA DO OLHAR SEM CORPO

No seu elogio ao aspecto revelador do olhar no cinema o pensamento

dos anos 20 colocou o debate em termos de verdade (cinema) emendra

(tradiccedilatildeo cultural) e deu toda ecircnfase agrave cumplicidade entre cinema e natushy

reza solidaacuterios enquanto um organismo e sua expressatildeo visual prontos a

expulsar a simulaccedilatildeo desde que a nova teacutecnica fosse salva de su~ adultera-

promovida pelo universo da mercadoria Por esse a oposishyentre um cinema desejado objeto do recalque e aquele que

realmente impera (a pedagogia da induacutestria orienta-se por uma teleoIOPla o presente eacute o mOmelItO dos entraves que impedem o desenshy

volvimento na direccedilatildeo COrreta eacuteapaz de realizar as promessas da nova

teacutecnica o futuro eacute o preenchimen~o dessas promessas que desde jaacute as vanshy

guardas anunciam e preparam Entre 1920 e J960 os poderes reais inshy

sistiram em repor o mesno cinema dominante o que trouxe em linhas

a reiteraccedilatildeo da mesnla matriz de contestaccedilatildeo O conflito dominanshy

tedominado traduzido em termos de verdade e refez-se ao

longo de eixos diversos Quando prevaleceu um eixo poliacutetico o poacutelo da

verdade (futuro) identificou-se agrave cultura revolucionaacuteria o da mentira

presentet agraves mistificaccedilotildees da reaccedilatildeo Quando prevaleceu um eixo esteacutetishy

co verdade foi poesia originalidade experimentaccedilatildeo mentira foi a rotishy

na do comeacutercio o kitscll industrializado

Natildeo cabe agora a recapitulaccedilatildeo do que foram as diferentes versotildees

desse conflito vanguardacultura de massa em cada e eacutepoca Natildeo o

poderia fazer nem quero pois meu objetivo eacute saltar dessa primeira refleshy

xatildeo dos anos 20 para uma mais proacutexima de gerada no contexto franshy

cecircs poacutes-68 reflexatildeo que abandonou a tradiccedilatildeo de opor verdade e mentishy

ra deslocando a discussatildeo sobre a teacutecnica do cinema

No grande intervalo que a criacutetica avanccedilou na caracterizashy

ccedilatildeo do olhar sem corpo e suas implicaccedilotildees notadamente na avaliaccedilatildeo de

sua estrutura mais comunicativa e sedutora o cinema olhar da

induacutestria da ideologia dominante nos meios Extensatildeo do qlle

chamei olhar melodramaacutetico o cinema claacutessico eacute sua modernizaccedilatildeo Faz

com que ele abandone os excessos maiores do ganhe em

profundidade dramaacutetica amplitude temaacutetica concretizando o ver mais e

melhor do cinema na direccedilatildeo de um ilusionismo mais completo - o cineshy

ma claacutessico eacute o olhar sem corpo atuando em sentido

caracterizaccedilatildeo dos seus poderes apresentada em minha primeira

que de fato ajusta-se mais precisamente a esse estilo particular dOJTIinanshy

te no mercado e natildeo a todo o cinema possiacutevel Eacute nele mais do que em

qualquer outra proposta que vemos realizado o de intensificar ao

extremo nossa relaccedilatildeo com o mundo-objeto fazer tal mundo parecer autocircshy

nomo existente em seu proacuteprio direito natildeo encorajando perguntas na

direccedilatildeo do proacuteprio olhar mediador sua estrutura e comportamento Soshy

mos aiacute convidados a tomar o olhar sem corpo como dado natural

Entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 60 dois grandes

de reflexatildeo conduziram a criacutetica a essa naturalidade postulada pelo cineshy

ma claacutessico a teoria radical do cinema-discurso baseado nas operaccedilotildees da

montagem (o Eisenstein dos anos 20-30 permaneceu aqui a referecircncia

central) e a criacutetica francesa inspirada na fenomenologia tendo como [oco

maior Andreacute Bazin3

3 Cf Bazin Cinema ensaios trad Eloisa Ribeiro (Satildeo Paulo Brasilicnse 1991)

44 45

Falar de Eisenstein exigiria uma abordagem radicalmente distinta da

que faccedilo agora pois sua criacutetica ao ilusionismo COmeccedila com a advertecircncia

de que a imagem cinematograacutefica natildeo deve ser lida c0f110 produto de um

olhar Para ele a suposiccedilatildeo de que houve um encontro uma contiguumlidade

espacial e temporal entre cacircmera e objeto natildeo eacute O dado central e impresshy

cindiacutevel da leitura da imagem Sua presenccedila na tela eacute um fato de natureza

que deve ser observado em seu valor simboacutelico

caracteriacutesticas de sua composiccedilatildeo e sua no Contexto de um discurshy

so que eacute exposiccedilatildeo de ideacuteias natildeo sucessatildeo natural de fatos captados

pelo olhar A diferenccedila entre um plano geral e um cose-up por

muitas vezes natildeo pode ser entendida como olhar versus

olhar de mesmo quando se focaliza o mesmo ODjeto mas como

confronto de duas imagens de valores distintos A diferenccedila eacute de

natildeo de posiccedilatildeo no espaccedilo pois pode natildeo haver COntinuidade e

homogeneidade espacial para que se possa falar num mais perto

- tudo depende do contexto do discurso por imagens

Ao contraacuterio de Eisenstein os criacuteticos inspirados na fenomenologia

endossam e defendem a premissa de que no cinema toda imagem eacute proshy

duto de um olhar - eacute essencial que ela seja vista como tal- e a sucessatildeo

define sempre a atitude do observador diante de um mundo homogecircneo

Agrave imagem-signo de Eisenstein eles opotildeem a imagem-acontecimento agrave

defesa da descontinuidade proacutepria do cineasta russo respondem Com

uma defesa ateacute mais radical do princiacutepio de continuidade jaacute presente na

narraccedilatildeo claacutessica fazendo a ela um reparo fundamental se a imagem em

movimento nos traz a percepccedilatildeo privilegiada do homem como ser lanccedilashy

do no mundo como ser-em-situaccedilatildeo a falsidade do cinema claacutessico estaacute

na manipulaccedilatildeo impliacutecita em sua montagem o olhar sem corpo e a

onividecircncia criam na tela uni mundo abstrato de sentido fechado preshy

julgado e organizado pelo cin~ina Toda montagem eacute discurso manipulashy

ccedilatildeo de Eisenstein de GrUacutefith ou de Bufiacuteuel Em oposiccedilatildeo um criacutetishy

co como Bazin solicita um olhar cinematograacutefico mais afinado ao olho de

um sujeito circunstanciado que p6ssui limites aceita a abertura do

mundo convive com ambiguumlidades Quando pede realismo ele natildeo se

46

deteacutem em consideraccedilotildees de conteuacutedo (o tipo de universo Ciccional ou doshy

cumentaacuterio) Sublinha a postura do olhar em sua interaccedilatildeo com o mundo

tanto mais legiacutetima quanto mais as condiccedilotildees de nosso olhar

ancorado no corpo vivenciando uma duraccedilatildeo e uma circunstacircncia em sua

continuidade trabalhando as incertezas de uma percepccedilatildeo

ultrapassada mundo Daiacute sua minimizaccedilatildeo da montagem (instacircncia

construtora da onividecircncia) sua defesa do plano-seguumlecircncia (olhar uacutenico

sem cortes observando uma em seu um acontecimento

em seu fluir

Numa visatildeo mais atual prestamos atenccedilatildeo especial ao que aproxima

e natildeo apenas ao que afasta o cinema-discurso de Eisenstein e o realismo

existencial de Bazin haacute em ambos novamente a atribuiccedilatildeo de um poder

de verdade e de um poder de mentira encarnados em determinados estishy

los Para Eisenstein haacute um estilo capaz de dizer o mundo social-histoacuterishy

co colocando o cinema como potecircncia maior no plano do conhecimento

Para Bazin O cinema eacute uma espeacutecie de terceiro estado da e exisshy

te um estilo autecircntico na captaccedilatildeo da vivecircncia humana em sua

essencial abertura no tempo

Contra esse pano de fundo da tradiccedilatildeo teoacuterica a intervenccedilatildeo de

]ean-Louis Baudry em 1969-70 em questatildeo a constante promessa de

um estilo mais verdadeiro e dirige seu ataque agraves premissas do cinema em

geral examinando mais a fundo as condiccedilotildees do espectador raciociacuteshy

nio estaacute municiado para analisar o espectador do filme claacutessico mas

fala em cinema tout couTe) 4 O horizonte de seu exame eacute ressaltar o

modo pelo qual a recepccedilatildeo da imagem possui uma estrutura que a seu ver

solapa o reiterado creacutedito - de Eisenstein Griffith Epstein na

da verdade como destinaccedilatildeo fundamental do cinema Ele invershy

te a tradiccedilatildeo e vecirc na simulaccedilatildeo na de efeitos (ilusoacuterios) de

conhecimento o destino maior da nova arte (visatildeo que

4 O mais importante dos textos de Jean-Louis dessa

1970 Os efeitos ideoloacutegicos do de base estaacute publicado em Ismail

Xavier (orll) A experiecircncia do cinema (Rio de Janeiro

47

pela permanecircncia do ilusionismo do cinema industrial) Isso se daacute por

forccedila da proacutepria natureza da teacutecnica cinematograacutefica herdeira das ilusotildees _

da perspectiva da persistecircncia retiniana (natildeo vemos os fotogramas vemos

o que natildeo ocorre na tela ou seja o movimento da imagem e temos a imshy

pressatildeo de continuidade) da falsa autenticidade documental da fotografia

Rearticulando elementos jaacute conhecidos Baudry nos traz uma interpretashy

ccedilatildeo radical que- questiona natildeo estilos particulares de fazer cinema mas o

fundamento mesmo de sua objetividade como teacutecnica essa mes~a objetishy

vidade que tem sido a sustentaccedilatildeo maior das esperanccedilas de verdade Na

nova perspectiva as diferentes posiccedilotildees teoacutericas desde 1920 definem um

pensar o cinema a priori capturado pelas ilusotildees da teacutecnica e desatento agraves

implicaccedilotildees contidas na proacutepria estrutura do olhar da cacircmera tal como se

daacute para noacutes na plateacuteia A teacutecnica tem suas inclinaccedilotildees seus efeitos ideoloacuteshy

gicos e nesse sentido eacute ela mesma que impele o cinema industrial a desenshy

volver seu ilusionismo e trazer o espectador para dentro do mundo ficcioshy

na A forccedila de encantamento desse cinema persiste na histoacuteria porque o

dado crucial em jogo natildeo eacute tanto a imitaccedilatildeo do real na tela _ a reproduccedilatildeo

integral das aparecircncias - mas a simulaccedilatildeo de um certo tipo de sujeito-doshy

olhar pelas operaccedilotildees do aparato cinematograacutefico

Avaliar a potecircncia do olhar sem corpo natildeo eacute entatildeo inventariar as

imagens que ele oferece efocaIacuteIacutezar o seu movimento proacuteprio sua forma

de mediaccedilatildeo o que impiacuteica analisar sua incidecircncia no espectador que

vivenda o poder de clarividecircncia a percepccedilatildeo tota Na sala escura idenshy

tificado com o movimento do olhar da cacircmera eu me represento como

sujeito dessa percepccedilatildeo total capaz de doar sentido agraves coisas sobrevoar as

aparecircncias fazer a siacutentese do mundo Minha emoccedilatildeo estaacute com os fatos

que o olhar segue mas a cbndiccedilatildeo desse envolvimento eacute eu me colocar no

lugar do aparato sintoniz~do com suas operaccedilotildees Com isso incorporo

(ilusoriamente) seus poder~s e ericontro nessa sintonia - solo do entendishy

mento cinematograacutefico - o maior cenaacuterio de simulaccedilatildeo de uma onipotecircnshy

cia imaginaacuteria No cinema faccedilo uma viagem que confirma minha condishy

ccedilatildeo de sujeito tal como a desejo Maacutequina de efeitos a realizaccedilatildeo maior do

cinema seria entatildeo esse efeito-sujeito a simulaccedilatildeo de uma consciecircncia

48

transcendente que descortina o mundo e se vecirc no centro das coisas ao

mesmo tempo que radicalmente separada delas a observar o mundo coshy

mo puro olhar Nessa apropriaccedilatildeo ilusoacuteria da competecircncia ideal do olhar

estou portanto no centro mas eacute o aparato que aiacute me coloca pois eacute dele o

movimento da percepccedilatildeo monitor da minha fantasia

Para Baudry uma filosofia idealista que postula um sujeito transshy

cendente em oposiccedilatildeo ao mundo objetivo que se dispotildee ao conhecimento

encontra aiacute na teacutecnica do cinema sua traduccedilatildeo visiacutevel Toda sua ecircnfase

recai sobre a produccedilatildeo simultacircnea da imagem e do sujeito-observador

onividente A engenharia simuladora do cinema define com o efeitoshy

sujeito seu teatro da percepccedilatildeo total cujo protagonista sou eu-espectador

identificado com o olhar da cacircmera

N esses termos o que dificulta a consolidaccedilatildeo de linguagens alternashy

tivas mais verdadeiras eacute esse pecado original inscrito na teacutecnica Esta

tem na ilusatildeo seu sustentaacuteculo e os percalccedilos das vanguardas devem-se a

que sua aposta eacute reverter a funccedilatildeo daquilo que jaacute nasceu para cumprir

outro destino Digo destino porque a loacutegica dessa teoria transforma o cineshy

ma num oacutergatildeo que surgiu para cumprir um programa o de objetivar na

esfera do visiacutevel estrateacutegias de dominaccedilatildeo especialmente as da classe burshy

guesa que presidiu sua origem Assim antes de instacircncia liberadora subshy

versiva a condiccedilatildeo do cinema eacute preencher uma demanda do proacuteprio unishy

verso carceraacuterio tornando-o mais preciso e poderoso em seu aparato

Haacute uma atmosfera de desencanto instalada a partir dos anos 70 a

formulaccedilatildeo aqui exposta eacute a traduccedilatildeo teacuteoacuterica radical dos impasses da conshy

testaccedilatildeo no cinema Temos o esgotamento de uma teleologia a da teacutecnishy

ca redentora entravada pela poliacutetica e a economia e sua substituiccedilatildeo

por u~a outra a da teacutecnica como instrumento maior de reposiccedilatildeo de um

sistema de poder Em consonacircncia corn a tonalidade da reflexatildeo sobre a

linguagem a cultura e a ideologia naquele momento a teoria do cinema

mais original e polecircmica ressalta o lado sistemaacutetico inelutaacutevel das ilusotildees

e dos enganos do olhar da cacircmera Nesse contexto a proacutepria praacutetica do

cinema amplia o espaccedilo para a reflexatildeo teoacuterica voltada para a questatildeo do

simulacro - a citaccedilatildeo a imagem que-alude agrave imagem o circuito das refeshy

49

recircncias a si mesmo que o cinema leva ao paroxismo entram para valer na

esfera da induacutestria constituem sua nova marca Tal reflexatildeo se faz dentro

de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do

cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura

contemporacircnea A imagem cinematograacutefica eacute entatildeo obseJvada a partir de

sua participaccedilatildeo em outra rede de relaccedilotildees em que natildeo haacute para a

interpretaccedilatildeo (esse tomar a imagem como representaccedilatildeo de algo exterior

a ela) para o juiacutezo da verdade ou mentira em que se a oposlccedilao

aparecircncia (imagem)essecircncia (substacircncia) -nada haacute por traacutes das lmlti~e~ns

elas valem como efeitos-de-superfiacutecie imagem remetendo a imagem fluxo de simulacros

Faccedilo agora uma incursatildeo que natildeo eacute propriamente no terreno da

nova filosofia e das questotildees mais amplas do simulacro na produccedilatildeo

Trata-se de uma anaacutelise particular no niacutevel da engenharia da simulaccedilatildeo

caracterizaccedilatildeo de um efeito na qual natildeo eacute necessaacuterio assumir as noccedilotildees

com a mesma ressonacircncia elas adquiriram na literatura dos anos 80

Fecho a exposiccedilatildeo com a consideraccedilatildeo de um novo exeacutemplo que acredishy

to esclareccedila algumas observaccedilotildees feitas ateacute aqui sobre a interaccedilatildeo entre

espectador e imagem sobre o papel da moldura do sujeito na leitura

Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o

efeito de uma depende de sua ~elaccedilatildeo com o sujeito em determishy

nadas condiccedilotildees Da situaccedilatildeo da testemunha de McCarthy passei a uma

caracterizaccedilatildeo mais detida do olhar do cinema e examinei dois momenshy

tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexatildeo criacuteshy

tica em torno do que hiacute de erigano e rcvelaccedilatildeo nesse olhar A partir de

uma discussatildeo mais sobre a simulaccedilatildeo do fato - na fotografia no

cinema chegamos a uma questatildeo mais especiacutefica a simulaccedilatildeo do sujeishy

to na estrutura mesma (lo olhar cinematograacutefico Dentro da discussatildeo

mais geral o exemplo a envolve uma situaccedilatildeo mais complicada do

quea das fotos do tribunal estaremos no cinema Como inspiraccedilatildeo

terei presentes as liccedilotildees de Baildry sem no entanto incorporar o movishy

mento totalizador de suaacute criacutetica ao olhar do cinema Seu amplo diagnoacutesshy

tico mobilizando a psicaacutenaacutelise tem como pressuposto o fato de sabershy

0

mos o bastante sobre a natureza do espectador de modo a prever o caraacuteshy

tcr de sua identificaccedilatildeo com o aparato a qual assume uma dimensatildeo

uacutenica de adesatildeo agrave imagem por forccedila do efeito-sujeito Como conhecedoshy

res do desejo do espectador denunciamos o conluio desse desejo com o

programa da induacutestria e deduzimos daiacute as alienaccedilotildees do cinema e da

teacuteia Natildeo tenho condiccedilotildees de endossar a generalidade desse saber a resshy

peito do espectador o aparato atua em determinada direccedilatildeo mas a expeshy

riecircncia do cinema inclui outras forccedilas e condiccedilotildees que natildeo se ajustam ao

programa do sistema A formulaccedilatildeo dc Baudry embora inclua com toda

a forccedila a dimensatildeo do desejo do espectador natildeo deixa de ser outra vershy

satildeo das teorias da manipulaccedilatildeo global centradas em excesso no aspecto

da experiecircncia de modo a confundir o processo que efetishy

vamente ocorre com a loacutegica ideal do sistema Focalizo uma situaccedilatildeo

didaacutetica nesse contcxto em que eacute perfeito o funcionamcnto do

aparato cm quc podemos verificar o mecanismo da simulaccedilatildeo em estashy

do digamos de laboratoacuterio

IVIULALAU E PONTO OE VISTA

Toda leitura de eacute pr()(llltatildeo de um ponto de vista o do sujeito

observador natildeo o da objetividade (b irnagetnA condiccedilatildeo dos efeitos

da imagem eacute essa Em particular o ekilO rb apoacuteia-se numa

construccedilatildeo que inclui o fmguh do obSlrVIr1or O simulacro parece o

que natildeo eacute a partir de um pOIHo ele vista () sujeito estaacute aiacute pressuposto Porshy

tanto o processo elc simulaccedilatildeo nlo l o (Li imagemem si mas o da sua

relaccedilatildeo com o sujeito Num (gt1lt1110 elemelltar podemos tomar o cinema

como modelo do processo O (llIC eacute a fjltnilgcm senatildeo a organizaccedilatildeo do

I 1 I - C f dacontecllnento pra 11111 angu () (C o lscrvaccedilao o que se con un e com

Nessas asserccedilotildees no de Xavier Audouard Le Simulacrc in

eacutepisteacutemologie de lEcole Normale gtuucushy

rc n mai-jun 1966) O horizonte de Audouard eacute o de uma discussatildeo sobre o

idealismo platocircnico seu terreno eacute ponanto distinto e meu natildeo

ca uma identificaccedilatildeo agrave sua perspectiva de anaacutelise

i J

o da cacircmera e nenhum outro mais) O que eacute a fachada de preacutedio de estuacuteshy

dio senatildeo a duplicaccedilatildeo do mesmo princiacutepio da fachada de rua que sushy

gere o que natildeo eacute justamente quando observada de um certo acircngulo e disshy

tacircncia jaacute pressupostos em sua composiccedilatildeo O que eacute a ficccedilatildeo do cinema

senatildeo uma simulaccedilatildeo de mundo para o espectador identificado com o aparato

Vertigo (Um corpo que cai) O filme de Hitchcock realizado

em 1958 Ele eacute a trama da simulaccedilatildeo por excelecircncia como jaacute foi observashy

do pela criacutetica Trago um aspecto novo agrave consideraccedilatildeo o do espelhamenshy

to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e

o proacuteprio princiacutepio da narraccedilatildeo do filme Tal como em outras obras de

Hitchcltck o cinepa c1aacutessi~o aqui operagrave com eficiecircncia maacutexima e ao

mesmo tempo oferece a metaacutefora viva para o seu proacuteprio processo Inteshy

ressado nessa metaacutefora acentuo nesta anaacutelise a mecacircnica da simulaccedilacirco o

funcionamento exterior do aparato natildeo o que nas personagens eacute desejo

do estratagema e disposiccedilatildeo para a vertigem da imagem

Sigamos passo a passo a narrativa ateacute o ponto que interessa

Vertigem tiacutetulo original eacute a palavra que condensa as ideacuteias-forccedila

do filme em sua tematiacutezaccedilatildeo do olhar e do ponto de vista A apresentaccedilatildeo

de Vertigo criaccedilatildeo de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em

close-up tratado como maacutescara enigmaacutetica imoacutevel Uma aproximaccedilatildeo

maior e um passeio da cacircmcra examinam essa maacutescara em seus detalhes

ateacute que isolado o olho ofereccedila os sinais de vida Os seus movimentos no

entanto natildeo criam uma ~xpressatildeo definida uma intcncionalidade do olhar

Preparam apenas o cenaacuterio ptra um movimentoem espiral na profundishy

dade Mergulho na inteacuteiioridaacutedc cujo fundo inatingiacutevel estaacute sempre em

recesso Aproximaccedilatildeo e recuo atraccedilatildeo e fuga a ambiguumlidade do movishy

mento da espiral ~ experiecircncia matriz de todo o filme cujo eixo eacute o

percurso de profissional do olhar detetive personificaccedilatildeo da

vertigem Logo na primeira sequumlecircncia define-se a questatildeo desse protagoshy

nista numa perseguiccedilatildeo telhados de Satildeo Francisco a vertigem de Scottie o faz responsaacuteveacutel pela morte de um

tentar ajudaacute-lo Sentimeriacuteto de cu1Da aposentadoria

52

lecida a disponibilidade total de a situaccedilatildeo-chave de Vertigo deseshy

nha-se quando ele atende ao chamado de Elster de escola que

no reencontro surpreende-o com o pedido para que sua mulher

Madeleine Elster mostra-se apreensivo com as manifestaccedilotildees de ausecircnshy

cia que ela apresenta com os periacuteodos de comportamento estranho em

que ela parece ser outra pessoa de que retoma sem lembranccedilas

O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma

proposto Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine pesquisa pela

recolhe dados essenciais Um primeiro quadro se compotildee a

ra que dela se apossa em seus transes eacute Cadota Valdez mulher que viveu

em San Francisco no seacuteculo XIX e que se suicidou em circunstacircncias meshy

lancoacutelicas Novamente com Elster Scottie relata as descobertas O marishy

do introduz novo dado Madeleine estaacute em perigo de vida pois descende

de Carlota outras mulheres da linhagem cometeram suiciacutedio e ela tem

agora a idade de Carlota ao morrer

Na primeiraacute seacuterie de passeios de Madeleine fase em que se compotildec

o quadro tivemos uma ostensiva duplicaccedilatildeo num primeiro plano Scortie

observa MadeJeine que natildeo reconhece sua presenccedila (ele estaacute fora do tershy

ritoacuterio dela) e se potildee disponiacutevel ao olhar movimentando-se como numa

cena num segundo plano ao longo do mesmo eixo a cacircmera observa

Scottie que Madeleine Satildeo duas uma dentro da outra que

natildeo se tocam Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele ambos enquadra~

dos por noacutes no lugar da cacircmera Madeleine nunca devolve o olhar a Scotshy

tie devolve o olhar agrave cacircmera (regra do filme claacutessico) Mas eacute

ambiacutegua essa passividade pois eacute o movimento dela que dirige o olhar

dele eacute a accedilatildeo de ambos que dirige o nosso olhar sempre na esteira do

acircngulo de de Scottie com quem partilhamos a ignoracircncia a

curiosidade a descoberta

Apoacutes a segunda conversa com Elster o tema do suiciacutedio engendra

uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria MadeleineCarlota

atira-se nas aacuteguas da baiacutea de San Francisco Scottie a resgata Permaneceshy

mos puro olhar ele passa ao plano da intervenccedilatildeo e do diaacutelogo Com os

dois juntos certa concretude o que em Scottie eacute jaacute sonho romacircnshy

53

tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do

filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs

do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e

terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM

sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a

lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute

coloca adiante dele na investigaccedilatildeo

A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy

satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela

que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e

com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy

gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave

de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre

alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se

e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos

da escada retido pela vertigem - e somos retidos

com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai

O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um

psicologicamente massacrado Elsshy

natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco

destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar

em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um

dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras

no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de

Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus

motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade

(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy

to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme

natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente

natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy

54

dos no quarto ficamos ao lado de

sem delongas que natildeo espera o final

Sozinha no quarto hesitante nervosa

assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy

a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy

para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade

para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy

blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez

de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao

topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o

mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre

Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou

resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda

para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas

posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy

ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema

bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia

apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do

suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo

de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy

dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as

imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()

prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a

loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy

lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy

leine-Carlota em a Scottic

O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse

mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy

vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade

e o de (a natildeo foi apenas para ele a

Urna leimra mais completa de Vertigo exishy

~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy

para o estratagema do as permanecem na

55

esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy

sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas

consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui

afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte

final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema

No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo

na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a

reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos

nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que

era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy

satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy

tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy

sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da

outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o

estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy

nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy

Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a

accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata

Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave

moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo

nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir

de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma

questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy

posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy

to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o

espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)

6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy

ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin

Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a

psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense

1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ

Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se

uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy

co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para

finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do

cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy

nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy

ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens

do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que

nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle

de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta

o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos

entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve

a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim

oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos

a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy

so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu

ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa

segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista

muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da

relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar

e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo

eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de

imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo

vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz

de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos

Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy

te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo

implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas

colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo

com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que

fora do campo torna visiacutevel

56 57

Page 10: Ismail Xavier Cinema Revelacaoengano

Falar de Eisenstein exigiria uma abordagem radicalmente distinta da

que faccedilo agora pois sua criacutetica ao ilusionismo COmeccedila com a advertecircncia

de que a imagem cinematograacutefica natildeo deve ser lida c0f110 produto de um

olhar Para ele a suposiccedilatildeo de que houve um encontro uma contiguumlidade

espacial e temporal entre cacircmera e objeto natildeo eacute O dado central e impresshy

cindiacutevel da leitura da imagem Sua presenccedila na tela eacute um fato de natureza

que deve ser observado em seu valor simboacutelico

caracteriacutesticas de sua composiccedilatildeo e sua no Contexto de um discurshy

so que eacute exposiccedilatildeo de ideacuteias natildeo sucessatildeo natural de fatos captados

pelo olhar A diferenccedila entre um plano geral e um cose-up por

muitas vezes natildeo pode ser entendida como olhar versus

olhar de mesmo quando se focaliza o mesmo ODjeto mas como

confronto de duas imagens de valores distintos A diferenccedila eacute de

natildeo de posiccedilatildeo no espaccedilo pois pode natildeo haver COntinuidade e

homogeneidade espacial para que se possa falar num mais perto

- tudo depende do contexto do discurso por imagens

Ao contraacuterio de Eisenstein os criacuteticos inspirados na fenomenologia

endossam e defendem a premissa de que no cinema toda imagem eacute proshy

duto de um olhar - eacute essencial que ela seja vista como tal- e a sucessatildeo

define sempre a atitude do observador diante de um mundo homogecircneo

Agrave imagem-signo de Eisenstein eles opotildeem a imagem-acontecimento agrave

defesa da descontinuidade proacutepria do cineasta russo respondem Com

uma defesa ateacute mais radical do princiacutepio de continuidade jaacute presente na

narraccedilatildeo claacutessica fazendo a ela um reparo fundamental se a imagem em

movimento nos traz a percepccedilatildeo privilegiada do homem como ser lanccedilashy

do no mundo como ser-em-situaccedilatildeo a falsidade do cinema claacutessico estaacute

na manipulaccedilatildeo impliacutecita em sua montagem o olhar sem corpo e a

onividecircncia criam na tela uni mundo abstrato de sentido fechado preshy

julgado e organizado pelo cin~ina Toda montagem eacute discurso manipulashy

ccedilatildeo de Eisenstein de GrUacutefith ou de Bufiacuteuel Em oposiccedilatildeo um criacutetishy

co como Bazin solicita um olhar cinematograacutefico mais afinado ao olho de

um sujeito circunstanciado que p6ssui limites aceita a abertura do

mundo convive com ambiguumlidades Quando pede realismo ele natildeo se

46

deteacutem em consideraccedilotildees de conteuacutedo (o tipo de universo Ciccional ou doshy

cumentaacuterio) Sublinha a postura do olhar em sua interaccedilatildeo com o mundo

tanto mais legiacutetima quanto mais as condiccedilotildees de nosso olhar

ancorado no corpo vivenciando uma duraccedilatildeo e uma circunstacircncia em sua

continuidade trabalhando as incertezas de uma percepccedilatildeo

ultrapassada mundo Daiacute sua minimizaccedilatildeo da montagem (instacircncia

construtora da onividecircncia) sua defesa do plano-seguumlecircncia (olhar uacutenico

sem cortes observando uma em seu um acontecimento

em seu fluir

Numa visatildeo mais atual prestamos atenccedilatildeo especial ao que aproxima

e natildeo apenas ao que afasta o cinema-discurso de Eisenstein e o realismo

existencial de Bazin haacute em ambos novamente a atribuiccedilatildeo de um poder

de verdade e de um poder de mentira encarnados em determinados estishy

los Para Eisenstein haacute um estilo capaz de dizer o mundo social-histoacuterishy

co colocando o cinema como potecircncia maior no plano do conhecimento

Para Bazin O cinema eacute uma espeacutecie de terceiro estado da e exisshy

te um estilo autecircntico na captaccedilatildeo da vivecircncia humana em sua

essencial abertura no tempo

Contra esse pano de fundo da tradiccedilatildeo teoacuterica a intervenccedilatildeo de

]ean-Louis Baudry em 1969-70 em questatildeo a constante promessa de

um estilo mais verdadeiro e dirige seu ataque agraves premissas do cinema em

geral examinando mais a fundo as condiccedilotildees do espectador raciociacuteshy

nio estaacute municiado para analisar o espectador do filme claacutessico mas

fala em cinema tout couTe) 4 O horizonte de seu exame eacute ressaltar o

modo pelo qual a recepccedilatildeo da imagem possui uma estrutura que a seu ver

solapa o reiterado creacutedito - de Eisenstein Griffith Epstein na

da verdade como destinaccedilatildeo fundamental do cinema Ele invershy

te a tradiccedilatildeo e vecirc na simulaccedilatildeo na de efeitos (ilusoacuterios) de

conhecimento o destino maior da nova arte (visatildeo que

4 O mais importante dos textos de Jean-Louis dessa

1970 Os efeitos ideoloacutegicos do de base estaacute publicado em Ismail

Xavier (orll) A experiecircncia do cinema (Rio de Janeiro

47

pela permanecircncia do ilusionismo do cinema industrial) Isso se daacute por

forccedila da proacutepria natureza da teacutecnica cinematograacutefica herdeira das ilusotildees _

da perspectiva da persistecircncia retiniana (natildeo vemos os fotogramas vemos

o que natildeo ocorre na tela ou seja o movimento da imagem e temos a imshy

pressatildeo de continuidade) da falsa autenticidade documental da fotografia

Rearticulando elementos jaacute conhecidos Baudry nos traz uma interpretashy

ccedilatildeo radical que- questiona natildeo estilos particulares de fazer cinema mas o

fundamento mesmo de sua objetividade como teacutecnica essa mes~a objetishy

vidade que tem sido a sustentaccedilatildeo maior das esperanccedilas de verdade Na

nova perspectiva as diferentes posiccedilotildees teoacutericas desde 1920 definem um

pensar o cinema a priori capturado pelas ilusotildees da teacutecnica e desatento agraves

implicaccedilotildees contidas na proacutepria estrutura do olhar da cacircmera tal como se

daacute para noacutes na plateacuteia A teacutecnica tem suas inclinaccedilotildees seus efeitos ideoloacuteshy

gicos e nesse sentido eacute ela mesma que impele o cinema industrial a desenshy

volver seu ilusionismo e trazer o espectador para dentro do mundo ficcioshy

na A forccedila de encantamento desse cinema persiste na histoacuteria porque o

dado crucial em jogo natildeo eacute tanto a imitaccedilatildeo do real na tela _ a reproduccedilatildeo

integral das aparecircncias - mas a simulaccedilatildeo de um certo tipo de sujeito-doshy

olhar pelas operaccedilotildees do aparato cinematograacutefico

Avaliar a potecircncia do olhar sem corpo natildeo eacute entatildeo inventariar as

imagens que ele oferece efocaIacuteIacutezar o seu movimento proacuteprio sua forma

de mediaccedilatildeo o que impiacuteica analisar sua incidecircncia no espectador que

vivenda o poder de clarividecircncia a percepccedilatildeo tota Na sala escura idenshy

tificado com o movimento do olhar da cacircmera eu me represento como

sujeito dessa percepccedilatildeo total capaz de doar sentido agraves coisas sobrevoar as

aparecircncias fazer a siacutentese do mundo Minha emoccedilatildeo estaacute com os fatos

que o olhar segue mas a cbndiccedilatildeo desse envolvimento eacute eu me colocar no

lugar do aparato sintoniz~do com suas operaccedilotildees Com isso incorporo

(ilusoriamente) seus poder~s e ericontro nessa sintonia - solo do entendishy

mento cinematograacutefico - o maior cenaacuterio de simulaccedilatildeo de uma onipotecircnshy

cia imaginaacuteria No cinema faccedilo uma viagem que confirma minha condishy

ccedilatildeo de sujeito tal como a desejo Maacutequina de efeitos a realizaccedilatildeo maior do

cinema seria entatildeo esse efeito-sujeito a simulaccedilatildeo de uma consciecircncia

48

transcendente que descortina o mundo e se vecirc no centro das coisas ao

mesmo tempo que radicalmente separada delas a observar o mundo coshy

mo puro olhar Nessa apropriaccedilatildeo ilusoacuteria da competecircncia ideal do olhar

estou portanto no centro mas eacute o aparato que aiacute me coloca pois eacute dele o

movimento da percepccedilatildeo monitor da minha fantasia

Para Baudry uma filosofia idealista que postula um sujeito transshy

cendente em oposiccedilatildeo ao mundo objetivo que se dispotildee ao conhecimento

encontra aiacute na teacutecnica do cinema sua traduccedilatildeo visiacutevel Toda sua ecircnfase

recai sobre a produccedilatildeo simultacircnea da imagem e do sujeito-observador

onividente A engenharia simuladora do cinema define com o efeitoshy

sujeito seu teatro da percepccedilatildeo total cujo protagonista sou eu-espectador

identificado com o olhar da cacircmera

N esses termos o que dificulta a consolidaccedilatildeo de linguagens alternashy

tivas mais verdadeiras eacute esse pecado original inscrito na teacutecnica Esta

tem na ilusatildeo seu sustentaacuteculo e os percalccedilos das vanguardas devem-se a

que sua aposta eacute reverter a funccedilatildeo daquilo que jaacute nasceu para cumprir

outro destino Digo destino porque a loacutegica dessa teoria transforma o cineshy

ma num oacutergatildeo que surgiu para cumprir um programa o de objetivar na

esfera do visiacutevel estrateacutegias de dominaccedilatildeo especialmente as da classe burshy

guesa que presidiu sua origem Assim antes de instacircncia liberadora subshy

versiva a condiccedilatildeo do cinema eacute preencher uma demanda do proacuteprio unishy

verso carceraacuterio tornando-o mais preciso e poderoso em seu aparato

Haacute uma atmosfera de desencanto instalada a partir dos anos 70 a

formulaccedilatildeo aqui exposta eacute a traduccedilatildeo teacuteoacuterica radical dos impasses da conshy

testaccedilatildeo no cinema Temos o esgotamento de uma teleologia a da teacutecnishy

ca redentora entravada pela poliacutetica e a economia e sua substituiccedilatildeo

por u~a outra a da teacutecnica como instrumento maior de reposiccedilatildeo de um

sistema de poder Em consonacircncia corn a tonalidade da reflexatildeo sobre a

linguagem a cultura e a ideologia naquele momento a teoria do cinema

mais original e polecircmica ressalta o lado sistemaacutetico inelutaacutevel das ilusotildees

e dos enganos do olhar da cacircmera Nesse contexto a proacutepria praacutetica do

cinema amplia o espaccedilo para a reflexatildeo teoacuterica voltada para a questatildeo do

simulacro - a citaccedilatildeo a imagem que-alude agrave imagem o circuito das refeshy

49

recircncias a si mesmo que o cinema leva ao paroxismo entram para valer na

esfera da induacutestria constituem sua nova marca Tal reflexatildeo se faz dentro

de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do

cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura

contemporacircnea A imagem cinematograacutefica eacute entatildeo obseJvada a partir de

sua participaccedilatildeo em outra rede de relaccedilotildees em que natildeo haacute para a

interpretaccedilatildeo (esse tomar a imagem como representaccedilatildeo de algo exterior

a ela) para o juiacutezo da verdade ou mentira em que se a oposlccedilao

aparecircncia (imagem)essecircncia (substacircncia) -nada haacute por traacutes das lmlti~e~ns

elas valem como efeitos-de-superfiacutecie imagem remetendo a imagem fluxo de simulacros

Faccedilo agora uma incursatildeo que natildeo eacute propriamente no terreno da

nova filosofia e das questotildees mais amplas do simulacro na produccedilatildeo

Trata-se de uma anaacutelise particular no niacutevel da engenharia da simulaccedilatildeo

caracterizaccedilatildeo de um efeito na qual natildeo eacute necessaacuterio assumir as noccedilotildees

com a mesma ressonacircncia elas adquiriram na literatura dos anos 80

Fecho a exposiccedilatildeo com a consideraccedilatildeo de um novo exeacutemplo que acredishy

to esclareccedila algumas observaccedilotildees feitas ateacute aqui sobre a interaccedilatildeo entre

espectador e imagem sobre o papel da moldura do sujeito na leitura

Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o

efeito de uma depende de sua ~elaccedilatildeo com o sujeito em determishy

nadas condiccedilotildees Da situaccedilatildeo da testemunha de McCarthy passei a uma

caracterizaccedilatildeo mais detida do olhar do cinema e examinei dois momenshy

tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexatildeo criacuteshy

tica em torno do que hiacute de erigano e rcvelaccedilatildeo nesse olhar A partir de

uma discussatildeo mais sobre a simulaccedilatildeo do fato - na fotografia no

cinema chegamos a uma questatildeo mais especiacutefica a simulaccedilatildeo do sujeishy

to na estrutura mesma (lo olhar cinematograacutefico Dentro da discussatildeo

mais geral o exemplo a envolve uma situaccedilatildeo mais complicada do

quea das fotos do tribunal estaremos no cinema Como inspiraccedilatildeo

terei presentes as liccedilotildees de Baildry sem no entanto incorporar o movishy

mento totalizador de suaacute criacutetica ao olhar do cinema Seu amplo diagnoacutesshy

tico mobilizando a psicaacutenaacutelise tem como pressuposto o fato de sabershy

0

mos o bastante sobre a natureza do espectador de modo a prever o caraacuteshy

tcr de sua identificaccedilatildeo com o aparato a qual assume uma dimensatildeo

uacutenica de adesatildeo agrave imagem por forccedila do efeito-sujeito Como conhecedoshy

res do desejo do espectador denunciamos o conluio desse desejo com o

programa da induacutestria e deduzimos daiacute as alienaccedilotildees do cinema e da

teacuteia Natildeo tenho condiccedilotildees de endossar a generalidade desse saber a resshy

peito do espectador o aparato atua em determinada direccedilatildeo mas a expeshy

riecircncia do cinema inclui outras forccedilas e condiccedilotildees que natildeo se ajustam ao

programa do sistema A formulaccedilatildeo dc Baudry embora inclua com toda

a forccedila a dimensatildeo do desejo do espectador natildeo deixa de ser outra vershy

satildeo das teorias da manipulaccedilatildeo global centradas em excesso no aspecto

da experiecircncia de modo a confundir o processo que efetishy

vamente ocorre com a loacutegica ideal do sistema Focalizo uma situaccedilatildeo

didaacutetica nesse contcxto em que eacute perfeito o funcionamcnto do

aparato cm quc podemos verificar o mecanismo da simulaccedilatildeo em estashy

do digamos de laboratoacuterio

IVIULALAU E PONTO OE VISTA

Toda leitura de eacute pr()(llltatildeo de um ponto de vista o do sujeito

observador natildeo o da objetividade (b irnagetnA condiccedilatildeo dos efeitos

da imagem eacute essa Em particular o ekilO rb apoacuteia-se numa

construccedilatildeo que inclui o fmguh do obSlrVIr1or O simulacro parece o

que natildeo eacute a partir de um pOIHo ele vista () sujeito estaacute aiacute pressuposto Porshy

tanto o processo elc simulaccedilatildeo nlo l o (Li imagemem si mas o da sua

relaccedilatildeo com o sujeito Num (gt1lt1110 elemelltar podemos tomar o cinema

como modelo do processo O (llIC eacute a fjltnilgcm senatildeo a organizaccedilatildeo do

I 1 I - C f dacontecllnento pra 11111 angu () (C o lscrvaccedilao o que se con un e com

Nessas asserccedilotildees no de Xavier Audouard Le Simulacrc in

eacutepisteacutemologie de lEcole Normale gtuucushy

rc n mai-jun 1966) O horizonte de Audouard eacute o de uma discussatildeo sobre o

idealismo platocircnico seu terreno eacute ponanto distinto e meu natildeo

ca uma identificaccedilatildeo agrave sua perspectiva de anaacutelise

i J

o da cacircmera e nenhum outro mais) O que eacute a fachada de preacutedio de estuacuteshy

dio senatildeo a duplicaccedilatildeo do mesmo princiacutepio da fachada de rua que sushy

gere o que natildeo eacute justamente quando observada de um certo acircngulo e disshy

tacircncia jaacute pressupostos em sua composiccedilatildeo O que eacute a ficccedilatildeo do cinema

senatildeo uma simulaccedilatildeo de mundo para o espectador identificado com o aparato

Vertigo (Um corpo que cai) O filme de Hitchcock realizado

em 1958 Ele eacute a trama da simulaccedilatildeo por excelecircncia como jaacute foi observashy

do pela criacutetica Trago um aspecto novo agrave consideraccedilatildeo o do espelhamenshy

to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e

o proacuteprio princiacutepio da narraccedilatildeo do filme Tal como em outras obras de

Hitchcltck o cinepa c1aacutessi~o aqui operagrave com eficiecircncia maacutexima e ao

mesmo tempo oferece a metaacutefora viva para o seu proacuteprio processo Inteshy

ressado nessa metaacutefora acentuo nesta anaacutelise a mecacircnica da simulaccedilacirco o

funcionamento exterior do aparato natildeo o que nas personagens eacute desejo

do estratagema e disposiccedilatildeo para a vertigem da imagem

Sigamos passo a passo a narrativa ateacute o ponto que interessa

Vertigem tiacutetulo original eacute a palavra que condensa as ideacuteias-forccedila

do filme em sua tematiacutezaccedilatildeo do olhar e do ponto de vista A apresentaccedilatildeo

de Vertigo criaccedilatildeo de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em

close-up tratado como maacutescara enigmaacutetica imoacutevel Uma aproximaccedilatildeo

maior e um passeio da cacircmcra examinam essa maacutescara em seus detalhes

ateacute que isolado o olho ofereccedila os sinais de vida Os seus movimentos no

entanto natildeo criam uma ~xpressatildeo definida uma intcncionalidade do olhar

Preparam apenas o cenaacuterio ptra um movimentoem espiral na profundishy

dade Mergulho na inteacuteiioridaacutedc cujo fundo inatingiacutevel estaacute sempre em

recesso Aproximaccedilatildeo e recuo atraccedilatildeo e fuga a ambiguumlidade do movishy

mento da espiral ~ experiecircncia matriz de todo o filme cujo eixo eacute o

percurso de profissional do olhar detetive personificaccedilatildeo da

vertigem Logo na primeira sequumlecircncia define-se a questatildeo desse protagoshy

nista numa perseguiccedilatildeo telhados de Satildeo Francisco a vertigem de Scottie o faz responsaacuteveacutel pela morte de um

tentar ajudaacute-lo Sentimeriacuteto de cu1Da aposentadoria

52

lecida a disponibilidade total de a situaccedilatildeo-chave de Vertigo deseshy

nha-se quando ele atende ao chamado de Elster de escola que

no reencontro surpreende-o com o pedido para que sua mulher

Madeleine Elster mostra-se apreensivo com as manifestaccedilotildees de ausecircnshy

cia que ela apresenta com os periacuteodos de comportamento estranho em

que ela parece ser outra pessoa de que retoma sem lembranccedilas

O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma

proposto Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine pesquisa pela

recolhe dados essenciais Um primeiro quadro se compotildee a

ra que dela se apossa em seus transes eacute Cadota Valdez mulher que viveu

em San Francisco no seacuteculo XIX e que se suicidou em circunstacircncias meshy

lancoacutelicas Novamente com Elster Scottie relata as descobertas O marishy

do introduz novo dado Madeleine estaacute em perigo de vida pois descende

de Carlota outras mulheres da linhagem cometeram suiciacutedio e ela tem

agora a idade de Carlota ao morrer

Na primeiraacute seacuterie de passeios de Madeleine fase em que se compotildec

o quadro tivemos uma ostensiva duplicaccedilatildeo num primeiro plano Scortie

observa MadeJeine que natildeo reconhece sua presenccedila (ele estaacute fora do tershy

ritoacuterio dela) e se potildee disponiacutevel ao olhar movimentando-se como numa

cena num segundo plano ao longo do mesmo eixo a cacircmera observa

Scottie que Madeleine Satildeo duas uma dentro da outra que

natildeo se tocam Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele ambos enquadra~

dos por noacutes no lugar da cacircmera Madeleine nunca devolve o olhar a Scotshy

tie devolve o olhar agrave cacircmera (regra do filme claacutessico) Mas eacute

ambiacutegua essa passividade pois eacute o movimento dela que dirige o olhar

dele eacute a accedilatildeo de ambos que dirige o nosso olhar sempre na esteira do

acircngulo de de Scottie com quem partilhamos a ignoracircncia a

curiosidade a descoberta

Apoacutes a segunda conversa com Elster o tema do suiciacutedio engendra

uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria MadeleineCarlota

atira-se nas aacuteguas da baiacutea de San Francisco Scottie a resgata Permaneceshy

mos puro olhar ele passa ao plano da intervenccedilatildeo e do diaacutelogo Com os

dois juntos certa concretude o que em Scottie eacute jaacute sonho romacircnshy

53

tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do

filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs

do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e

terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM

sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a

lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute

coloca adiante dele na investigaccedilatildeo

A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy

satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela

que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e

com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy

gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave

de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre

alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se

e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos

da escada retido pela vertigem - e somos retidos

com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai

O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um

psicologicamente massacrado Elsshy

natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco

destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar

em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um

dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras

no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de

Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus

motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade

(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy

to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme

natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente

natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy

54

dos no quarto ficamos ao lado de

sem delongas que natildeo espera o final

Sozinha no quarto hesitante nervosa

assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy

a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy

para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade

para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy

blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez

de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao

topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o

mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre

Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou

resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda

para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas

posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy

ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema

bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia

apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do

suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo

de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy

dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as

imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()

prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a

loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy

lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy

leine-Carlota em a Scottic

O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse

mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy

vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade

e o de (a natildeo foi apenas para ele a

Urna leimra mais completa de Vertigo exishy

~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy

para o estratagema do as permanecem na

55

esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy

sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas

consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui

afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte

final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema

No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo

na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a

reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos

nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que

era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy

satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy

tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy

sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da

outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o

estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy

nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy

Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a

accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata

Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave

moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo

nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir

de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma

questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy

posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy

to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o

espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)

6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy

ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin

Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a

psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense

1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ

Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se

uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy

co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para

finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do

cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy

nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy

ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens

do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que

nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle

de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta

o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos

entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve

a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim

oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos

a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy

so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu

ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa

segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista

muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da

relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar

e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo

eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de

imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo

vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz

de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos

Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy

te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo

implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas

colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo

com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que

fora do campo torna visiacutevel

56 57

Page 11: Ismail Xavier Cinema Revelacaoengano

pela permanecircncia do ilusionismo do cinema industrial) Isso se daacute por

forccedila da proacutepria natureza da teacutecnica cinematograacutefica herdeira das ilusotildees _

da perspectiva da persistecircncia retiniana (natildeo vemos os fotogramas vemos

o que natildeo ocorre na tela ou seja o movimento da imagem e temos a imshy

pressatildeo de continuidade) da falsa autenticidade documental da fotografia

Rearticulando elementos jaacute conhecidos Baudry nos traz uma interpretashy

ccedilatildeo radical que- questiona natildeo estilos particulares de fazer cinema mas o

fundamento mesmo de sua objetividade como teacutecnica essa mes~a objetishy

vidade que tem sido a sustentaccedilatildeo maior das esperanccedilas de verdade Na

nova perspectiva as diferentes posiccedilotildees teoacutericas desde 1920 definem um

pensar o cinema a priori capturado pelas ilusotildees da teacutecnica e desatento agraves

implicaccedilotildees contidas na proacutepria estrutura do olhar da cacircmera tal como se

daacute para noacutes na plateacuteia A teacutecnica tem suas inclinaccedilotildees seus efeitos ideoloacuteshy

gicos e nesse sentido eacute ela mesma que impele o cinema industrial a desenshy

volver seu ilusionismo e trazer o espectador para dentro do mundo ficcioshy

na A forccedila de encantamento desse cinema persiste na histoacuteria porque o

dado crucial em jogo natildeo eacute tanto a imitaccedilatildeo do real na tela _ a reproduccedilatildeo

integral das aparecircncias - mas a simulaccedilatildeo de um certo tipo de sujeito-doshy

olhar pelas operaccedilotildees do aparato cinematograacutefico

Avaliar a potecircncia do olhar sem corpo natildeo eacute entatildeo inventariar as

imagens que ele oferece efocaIacuteIacutezar o seu movimento proacuteprio sua forma

de mediaccedilatildeo o que impiacuteica analisar sua incidecircncia no espectador que

vivenda o poder de clarividecircncia a percepccedilatildeo tota Na sala escura idenshy

tificado com o movimento do olhar da cacircmera eu me represento como

sujeito dessa percepccedilatildeo total capaz de doar sentido agraves coisas sobrevoar as

aparecircncias fazer a siacutentese do mundo Minha emoccedilatildeo estaacute com os fatos

que o olhar segue mas a cbndiccedilatildeo desse envolvimento eacute eu me colocar no

lugar do aparato sintoniz~do com suas operaccedilotildees Com isso incorporo

(ilusoriamente) seus poder~s e ericontro nessa sintonia - solo do entendishy

mento cinematograacutefico - o maior cenaacuterio de simulaccedilatildeo de uma onipotecircnshy

cia imaginaacuteria No cinema faccedilo uma viagem que confirma minha condishy

ccedilatildeo de sujeito tal como a desejo Maacutequina de efeitos a realizaccedilatildeo maior do

cinema seria entatildeo esse efeito-sujeito a simulaccedilatildeo de uma consciecircncia

48

transcendente que descortina o mundo e se vecirc no centro das coisas ao

mesmo tempo que radicalmente separada delas a observar o mundo coshy

mo puro olhar Nessa apropriaccedilatildeo ilusoacuteria da competecircncia ideal do olhar

estou portanto no centro mas eacute o aparato que aiacute me coloca pois eacute dele o

movimento da percepccedilatildeo monitor da minha fantasia

Para Baudry uma filosofia idealista que postula um sujeito transshy

cendente em oposiccedilatildeo ao mundo objetivo que se dispotildee ao conhecimento

encontra aiacute na teacutecnica do cinema sua traduccedilatildeo visiacutevel Toda sua ecircnfase

recai sobre a produccedilatildeo simultacircnea da imagem e do sujeito-observador

onividente A engenharia simuladora do cinema define com o efeitoshy

sujeito seu teatro da percepccedilatildeo total cujo protagonista sou eu-espectador

identificado com o olhar da cacircmera

N esses termos o que dificulta a consolidaccedilatildeo de linguagens alternashy

tivas mais verdadeiras eacute esse pecado original inscrito na teacutecnica Esta

tem na ilusatildeo seu sustentaacuteculo e os percalccedilos das vanguardas devem-se a

que sua aposta eacute reverter a funccedilatildeo daquilo que jaacute nasceu para cumprir

outro destino Digo destino porque a loacutegica dessa teoria transforma o cineshy

ma num oacutergatildeo que surgiu para cumprir um programa o de objetivar na

esfera do visiacutevel estrateacutegias de dominaccedilatildeo especialmente as da classe burshy

guesa que presidiu sua origem Assim antes de instacircncia liberadora subshy

versiva a condiccedilatildeo do cinema eacute preencher uma demanda do proacuteprio unishy

verso carceraacuterio tornando-o mais preciso e poderoso em seu aparato

Haacute uma atmosfera de desencanto instalada a partir dos anos 70 a

formulaccedilatildeo aqui exposta eacute a traduccedilatildeo teacuteoacuterica radical dos impasses da conshy

testaccedilatildeo no cinema Temos o esgotamento de uma teleologia a da teacutecnishy

ca redentora entravada pela poliacutetica e a economia e sua substituiccedilatildeo

por u~a outra a da teacutecnica como instrumento maior de reposiccedilatildeo de um

sistema de poder Em consonacircncia corn a tonalidade da reflexatildeo sobre a

linguagem a cultura e a ideologia naquele momento a teoria do cinema

mais original e polecircmica ressalta o lado sistemaacutetico inelutaacutevel das ilusotildees

e dos enganos do olhar da cacircmera Nesse contexto a proacutepria praacutetica do

cinema amplia o espaccedilo para a reflexatildeo teoacuterica voltada para a questatildeo do

simulacro - a citaccedilatildeo a imagem que-alude agrave imagem o circuito das refeshy

49

recircncias a si mesmo que o cinema leva ao paroxismo entram para valer na

esfera da induacutestria constituem sua nova marca Tal reflexatildeo se faz dentro

de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do

cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura

contemporacircnea A imagem cinematograacutefica eacute entatildeo obseJvada a partir de

sua participaccedilatildeo em outra rede de relaccedilotildees em que natildeo haacute para a

interpretaccedilatildeo (esse tomar a imagem como representaccedilatildeo de algo exterior

a ela) para o juiacutezo da verdade ou mentira em que se a oposlccedilao

aparecircncia (imagem)essecircncia (substacircncia) -nada haacute por traacutes das lmlti~e~ns

elas valem como efeitos-de-superfiacutecie imagem remetendo a imagem fluxo de simulacros

Faccedilo agora uma incursatildeo que natildeo eacute propriamente no terreno da

nova filosofia e das questotildees mais amplas do simulacro na produccedilatildeo

Trata-se de uma anaacutelise particular no niacutevel da engenharia da simulaccedilatildeo

caracterizaccedilatildeo de um efeito na qual natildeo eacute necessaacuterio assumir as noccedilotildees

com a mesma ressonacircncia elas adquiriram na literatura dos anos 80

Fecho a exposiccedilatildeo com a consideraccedilatildeo de um novo exeacutemplo que acredishy

to esclareccedila algumas observaccedilotildees feitas ateacute aqui sobre a interaccedilatildeo entre

espectador e imagem sobre o papel da moldura do sujeito na leitura

Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o

efeito de uma depende de sua ~elaccedilatildeo com o sujeito em determishy

nadas condiccedilotildees Da situaccedilatildeo da testemunha de McCarthy passei a uma

caracterizaccedilatildeo mais detida do olhar do cinema e examinei dois momenshy

tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexatildeo criacuteshy

tica em torno do que hiacute de erigano e rcvelaccedilatildeo nesse olhar A partir de

uma discussatildeo mais sobre a simulaccedilatildeo do fato - na fotografia no

cinema chegamos a uma questatildeo mais especiacutefica a simulaccedilatildeo do sujeishy

to na estrutura mesma (lo olhar cinematograacutefico Dentro da discussatildeo

mais geral o exemplo a envolve uma situaccedilatildeo mais complicada do

quea das fotos do tribunal estaremos no cinema Como inspiraccedilatildeo

terei presentes as liccedilotildees de Baildry sem no entanto incorporar o movishy

mento totalizador de suaacute criacutetica ao olhar do cinema Seu amplo diagnoacutesshy

tico mobilizando a psicaacutenaacutelise tem como pressuposto o fato de sabershy

0

mos o bastante sobre a natureza do espectador de modo a prever o caraacuteshy

tcr de sua identificaccedilatildeo com o aparato a qual assume uma dimensatildeo

uacutenica de adesatildeo agrave imagem por forccedila do efeito-sujeito Como conhecedoshy

res do desejo do espectador denunciamos o conluio desse desejo com o

programa da induacutestria e deduzimos daiacute as alienaccedilotildees do cinema e da

teacuteia Natildeo tenho condiccedilotildees de endossar a generalidade desse saber a resshy

peito do espectador o aparato atua em determinada direccedilatildeo mas a expeshy

riecircncia do cinema inclui outras forccedilas e condiccedilotildees que natildeo se ajustam ao

programa do sistema A formulaccedilatildeo dc Baudry embora inclua com toda

a forccedila a dimensatildeo do desejo do espectador natildeo deixa de ser outra vershy

satildeo das teorias da manipulaccedilatildeo global centradas em excesso no aspecto

da experiecircncia de modo a confundir o processo que efetishy

vamente ocorre com a loacutegica ideal do sistema Focalizo uma situaccedilatildeo

didaacutetica nesse contcxto em que eacute perfeito o funcionamcnto do

aparato cm quc podemos verificar o mecanismo da simulaccedilatildeo em estashy

do digamos de laboratoacuterio

IVIULALAU E PONTO OE VISTA

Toda leitura de eacute pr()(llltatildeo de um ponto de vista o do sujeito

observador natildeo o da objetividade (b irnagetnA condiccedilatildeo dos efeitos

da imagem eacute essa Em particular o ekilO rb apoacuteia-se numa

construccedilatildeo que inclui o fmguh do obSlrVIr1or O simulacro parece o

que natildeo eacute a partir de um pOIHo ele vista () sujeito estaacute aiacute pressuposto Porshy

tanto o processo elc simulaccedilatildeo nlo l o (Li imagemem si mas o da sua

relaccedilatildeo com o sujeito Num (gt1lt1110 elemelltar podemos tomar o cinema

como modelo do processo O (llIC eacute a fjltnilgcm senatildeo a organizaccedilatildeo do

I 1 I - C f dacontecllnento pra 11111 angu () (C o lscrvaccedilao o que se con un e com

Nessas asserccedilotildees no de Xavier Audouard Le Simulacrc in

eacutepisteacutemologie de lEcole Normale gtuucushy

rc n mai-jun 1966) O horizonte de Audouard eacute o de uma discussatildeo sobre o

idealismo platocircnico seu terreno eacute ponanto distinto e meu natildeo

ca uma identificaccedilatildeo agrave sua perspectiva de anaacutelise

i J

o da cacircmera e nenhum outro mais) O que eacute a fachada de preacutedio de estuacuteshy

dio senatildeo a duplicaccedilatildeo do mesmo princiacutepio da fachada de rua que sushy

gere o que natildeo eacute justamente quando observada de um certo acircngulo e disshy

tacircncia jaacute pressupostos em sua composiccedilatildeo O que eacute a ficccedilatildeo do cinema

senatildeo uma simulaccedilatildeo de mundo para o espectador identificado com o aparato

Vertigo (Um corpo que cai) O filme de Hitchcock realizado

em 1958 Ele eacute a trama da simulaccedilatildeo por excelecircncia como jaacute foi observashy

do pela criacutetica Trago um aspecto novo agrave consideraccedilatildeo o do espelhamenshy

to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e

o proacuteprio princiacutepio da narraccedilatildeo do filme Tal como em outras obras de

Hitchcltck o cinepa c1aacutessi~o aqui operagrave com eficiecircncia maacutexima e ao

mesmo tempo oferece a metaacutefora viva para o seu proacuteprio processo Inteshy

ressado nessa metaacutefora acentuo nesta anaacutelise a mecacircnica da simulaccedilacirco o

funcionamento exterior do aparato natildeo o que nas personagens eacute desejo

do estratagema e disposiccedilatildeo para a vertigem da imagem

Sigamos passo a passo a narrativa ateacute o ponto que interessa

Vertigem tiacutetulo original eacute a palavra que condensa as ideacuteias-forccedila

do filme em sua tematiacutezaccedilatildeo do olhar e do ponto de vista A apresentaccedilatildeo

de Vertigo criaccedilatildeo de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em

close-up tratado como maacutescara enigmaacutetica imoacutevel Uma aproximaccedilatildeo

maior e um passeio da cacircmcra examinam essa maacutescara em seus detalhes

ateacute que isolado o olho ofereccedila os sinais de vida Os seus movimentos no

entanto natildeo criam uma ~xpressatildeo definida uma intcncionalidade do olhar

Preparam apenas o cenaacuterio ptra um movimentoem espiral na profundishy

dade Mergulho na inteacuteiioridaacutedc cujo fundo inatingiacutevel estaacute sempre em

recesso Aproximaccedilatildeo e recuo atraccedilatildeo e fuga a ambiguumlidade do movishy

mento da espiral ~ experiecircncia matriz de todo o filme cujo eixo eacute o

percurso de profissional do olhar detetive personificaccedilatildeo da

vertigem Logo na primeira sequumlecircncia define-se a questatildeo desse protagoshy

nista numa perseguiccedilatildeo telhados de Satildeo Francisco a vertigem de Scottie o faz responsaacuteveacutel pela morte de um

tentar ajudaacute-lo Sentimeriacuteto de cu1Da aposentadoria

52

lecida a disponibilidade total de a situaccedilatildeo-chave de Vertigo deseshy

nha-se quando ele atende ao chamado de Elster de escola que

no reencontro surpreende-o com o pedido para que sua mulher

Madeleine Elster mostra-se apreensivo com as manifestaccedilotildees de ausecircnshy

cia que ela apresenta com os periacuteodos de comportamento estranho em

que ela parece ser outra pessoa de que retoma sem lembranccedilas

O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma

proposto Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine pesquisa pela

recolhe dados essenciais Um primeiro quadro se compotildee a

ra que dela se apossa em seus transes eacute Cadota Valdez mulher que viveu

em San Francisco no seacuteculo XIX e que se suicidou em circunstacircncias meshy

lancoacutelicas Novamente com Elster Scottie relata as descobertas O marishy

do introduz novo dado Madeleine estaacute em perigo de vida pois descende

de Carlota outras mulheres da linhagem cometeram suiciacutedio e ela tem

agora a idade de Carlota ao morrer

Na primeiraacute seacuterie de passeios de Madeleine fase em que se compotildec

o quadro tivemos uma ostensiva duplicaccedilatildeo num primeiro plano Scortie

observa MadeJeine que natildeo reconhece sua presenccedila (ele estaacute fora do tershy

ritoacuterio dela) e se potildee disponiacutevel ao olhar movimentando-se como numa

cena num segundo plano ao longo do mesmo eixo a cacircmera observa

Scottie que Madeleine Satildeo duas uma dentro da outra que

natildeo se tocam Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele ambos enquadra~

dos por noacutes no lugar da cacircmera Madeleine nunca devolve o olhar a Scotshy

tie devolve o olhar agrave cacircmera (regra do filme claacutessico) Mas eacute

ambiacutegua essa passividade pois eacute o movimento dela que dirige o olhar

dele eacute a accedilatildeo de ambos que dirige o nosso olhar sempre na esteira do

acircngulo de de Scottie com quem partilhamos a ignoracircncia a

curiosidade a descoberta

Apoacutes a segunda conversa com Elster o tema do suiciacutedio engendra

uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria MadeleineCarlota

atira-se nas aacuteguas da baiacutea de San Francisco Scottie a resgata Permaneceshy

mos puro olhar ele passa ao plano da intervenccedilatildeo e do diaacutelogo Com os

dois juntos certa concretude o que em Scottie eacute jaacute sonho romacircnshy

53

tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do

filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs

do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e

terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM

sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a

lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute

coloca adiante dele na investigaccedilatildeo

A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy

satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela

que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e

com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy

gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave

de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre

alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se

e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos

da escada retido pela vertigem - e somos retidos

com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai

O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um

psicologicamente massacrado Elsshy

natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco

destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar

em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um

dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras

no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de

Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus

motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade

(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy

to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme

natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente

natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy

54

dos no quarto ficamos ao lado de

sem delongas que natildeo espera o final

Sozinha no quarto hesitante nervosa

assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy

a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy

para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade

para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy

blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez

de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao

topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o

mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre

Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou

resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda

para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas

posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy

ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema

bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia

apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do

suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo

de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy

dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as

imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()

prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a

loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy

lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy

leine-Carlota em a Scottic

O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse

mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy

vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade

e o de (a natildeo foi apenas para ele a

Urna leimra mais completa de Vertigo exishy

~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy

para o estratagema do as permanecem na

55

esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy

sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas

consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui

afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte

final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema

No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo

na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a

reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos

nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que

era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy

satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy

tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy

sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da

outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o

estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy

nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy

Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a

accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata

Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave

moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo

nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir

de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma

questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy

posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy

to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o

espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)

6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy

ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin

Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a

psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense

1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ

Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se

uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy

co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para

finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do

cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy

nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy

ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens

do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que

nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle

de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta

o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos

entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve

a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim

oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos

a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy

so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu

ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa

segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista

muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da

relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar

e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo

eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de

imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo

vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz

de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos

Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy

te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo

implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas

colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo

com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que

fora do campo torna visiacutevel

56 57

Page 12: Ismail Xavier Cinema Revelacaoengano

recircncias a si mesmo que o cinema leva ao paroxismo entram para valer na

esfera da induacutestria constituem sua nova marca Tal reflexatildeo se faz dentro

de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do

cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura

contemporacircnea A imagem cinematograacutefica eacute entatildeo obseJvada a partir de

sua participaccedilatildeo em outra rede de relaccedilotildees em que natildeo haacute para a

interpretaccedilatildeo (esse tomar a imagem como representaccedilatildeo de algo exterior

a ela) para o juiacutezo da verdade ou mentira em que se a oposlccedilao

aparecircncia (imagem)essecircncia (substacircncia) -nada haacute por traacutes das lmlti~e~ns

elas valem como efeitos-de-superfiacutecie imagem remetendo a imagem fluxo de simulacros

Faccedilo agora uma incursatildeo que natildeo eacute propriamente no terreno da

nova filosofia e das questotildees mais amplas do simulacro na produccedilatildeo

Trata-se de uma anaacutelise particular no niacutevel da engenharia da simulaccedilatildeo

caracterizaccedilatildeo de um efeito na qual natildeo eacute necessaacuterio assumir as noccedilotildees

com a mesma ressonacircncia elas adquiriram na literatura dos anos 80

Fecho a exposiccedilatildeo com a consideraccedilatildeo de um novo exeacutemplo que acredishy

to esclareccedila algumas observaccedilotildees feitas ateacute aqui sobre a interaccedilatildeo entre

espectador e imagem sobre o papel da moldura do sujeito na leitura

Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o

efeito de uma depende de sua ~elaccedilatildeo com o sujeito em determishy

nadas condiccedilotildees Da situaccedilatildeo da testemunha de McCarthy passei a uma

caracterizaccedilatildeo mais detida do olhar do cinema e examinei dois momenshy

tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexatildeo criacuteshy

tica em torno do que hiacute de erigano e rcvelaccedilatildeo nesse olhar A partir de

uma discussatildeo mais sobre a simulaccedilatildeo do fato - na fotografia no

cinema chegamos a uma questatildeo mais especiacutefica a simulaccedilatildeo do sujeishy

to na estrutura mesma (lo olhar cinematograacutefico Dentro da discussatildeo

mais geral o exemplo a envolve uma situaccedilatildeo mais complicada do

quea das fotos do tribunal estaremos no cinema Como inspiraccedilatildeo

terei presentes as liccedilotildees de Baildry sem no entanto incorporar o movishy

mento totalizador de suaacute criacutetica ao olhar do cinema Seu amplo diagnoacutesshy

tico mobilizando a psicaacutenaacutelise tem como pressuposto o fato de sabershy

0

mos o bastante sobre a natureza do espectador de modo a prever o caraacuteshy

tcr de sua identificaccedilatildeo com o aparato a qual assume uma dimensatildeo

uacutenica de adesatildeo agrave imagem por forccedila do efeito-sujeito Como conhecedoshy

res do desejo do espectador denunciamos o conluio desse desejo com o

programa da induacutestria e deduzimos daiacute as alienaccedilotildees do cinema e da

teacuteia Natildeo tenho condiccedilotildees de endossar a generalidade desse saber a resshy

peito do espectador o aparato atua em determinada direccedilatildeo mas a expeshy

riecircncia do cinema inclui outras forccedilas e condiccedilotildees que natildeo se ajustam ao

programa do sistema A formulaccedilatildeo dc Baudry embora inclua com toda

a forccedila a dimensatildeo do desejo do espectador natildeo deixa de ser outra vershy

satildeo das teorias da manipulaccedilatildeo global centradas em excesso no aspecto

da experiecircncia de modo a confundir o processo que efetishy

vamente ocorre com a loacutegica ideal do sistema Focalizo uma situaccedilatildeo

didaacutetica nesse contcxto em que eacute perfeito o funcionamcnto do

aparato cm quc podemos verificar o mecanismo da simulaccedilatildeo em estashy

do digamos de laboratoacuterio

IVIULALAU E PONTO OE VISTA

Toda leitura de eacute pr()(llltatildeo de um ponto de vista o do sujeito

observador natildeo o da objetividade (b irnagetnA condiccedilatildeo dos efeitos

da imagem eacute essa Em particular o ekilO rb apoacuteia-se numa

construccedilatildeo que inclui o fmguh do obSlrVIr1or O simulacro parece o

que natildeo eacute a partir de um pOIHo ele vista () sujeito estaacute aiacute pressuposto Porshy

tanto o processo elc simulaccedilatildeo nlo l o (Li imagemem si mas o da sua

relaccedilatildeo com o sujeito Num (gt1lt1110 elemelltar podemos tomar o cinema

como modelo do processo O (llIC eacute a fjltnilgcm senatildeo a organizaccedilatildeo do

I 1 I - C f dacontecllnento pra 11111 angu () (C o lscrvaccedilao o que se con un e com

Nessas asserccedilotildees no de Xavier Audouard Le Simulacrc in

eacutepisteacutemologie de lEcole Normale gtuucushy

rc n mai-jun 1966) O horizonte de Audouard eacute o de uma discussatildeo sobre o

idealismo platocircnico seu terreno eacute ponanto distinto e meu natildeo

ca uma identificaccedilatildeo agrave sua perspectiva de anaacutelise

i J

o da cacircmera e nenhum outro mais) O que eacute a fachada de preacutedio de estuacuteshy

dio senatildeo a duplicaccedilatildeo do mesmo princiacutepio da fachada de rua que sushy

gere o que natildeo eacute justamente quando observada de um certo acircngulo e disshy

tacircncia jaacute pressupostos em sua composiccedilatildeo O que eacute a ficccedilatildeo do cinema

senatildeo uma simulaccedilatildeo de mundo para o espectador identificado com o aparato

Vertigo (Um corpo que cai) O filme de Hitchcock realizado

em 1958 Ele eacute a trama da simulaccedilatildeo por excelecircncia como jaacute foi observashy

do pela criacutetica Trago um aspecto novo agrave consideraccedilatildeo o do espelhamenshy

to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e

o proacuteprio princiacutepio da narraccedilatildeo do filme Tal como em outras obras de

Hitchcltck o cinepa c1aacutessi~o aqui operagrave com eficiecircncia maacutexima e ao

mesmo tempo oferece a metaacutefora viva para o seu proacuteprio processo Inteshy

ressado nessa metaacutefora acentuo nesta anaacutelise a mecacircnica da simulaccedilacirco o

funcionamento exterior do aparato natildeo o que nas personagens eacute desejo

do estratagema e disposiccedilatildeo para a vertigem da imagem

Sigamos passo a passo a narrativa ateacute o ponto que interessa

Vertigem tiacutetulo original eacute a palavra que condensa as ideacuteias-forccedila

do filme em sua tematiacutezaccedilatildeo do olhar e do ponto de vista A apresentaccedilatildeo

de Vertigo criaccedilatildeo de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em

close-up tratado como maacutescara enigmaacutetica imoacutevel Uma aproximaccedilatildeo

maior e um passeio da cacircmcra examinam essa maacutescara em seus detalhes

ateacute que isolado o olho ofereccedila os sinais de vida Os seus movimentos no

entanto natildeo criam uma ~xpressatildeo definida uma intcncionalidade do olhar

Preparam apenas o cenaacuterio ptra um movimentoem espiral na profundishy

dade Mergulho na inteacuteiioridaacutedc cujo fundo inatingiacutevel estaacute sempre em

recesso Aproximaccedilatildeo e recuo atraccedilatildeo e fuga a ambiguumlidade do movishy

mento da espiral ~ experiecircncia matriz de todo o filme cujo eixo eacute o

percurso de profissional do olhar detetive personificaccedilatildeo da

vertigem Logo na primeira sequumlecircncia define-se a questatildeo desse protagoshy

nista numa perseguiccedilatildeo telhados de Satildeo Francisco a vertigem de Scottie o faz responsaacuteveacutel pela morte de um

tentar ajudaacute-lo Sentimeriacuteto de cu1Da aposentadoria

52

lecida a disponibilidade total de a situaccedilatildeo-chave de Vertigo deseshy

nha-se quando ele atende ao chamado de Elster de escola que

no reencontro surpreende-o com o pedido para que sua mulher

Madeleine Elster mostra-se apreensivo com as manifestaccedilotildees de ausecircnshy

cia que ela apresenta com os periacuteodos de comportamento estranho em

que ela parece ser outra pessoa de que retoma sem lembranccedilas

O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma

proposto Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine pesquisa pela

recolhe dados essenciais Um primeiro quadro se compotildee a

ra que dela se apossa em seus transes eacute Cadota Valdez mulher que viveu

em San Francisco no seacuteculo XIX e que se suicidou em circunstacircncias meshy

lancoacutelicas Novamente com Elster Scottie relata as descobertas O marishy

do introduz novo dado Madeleine estaacute em perigo de vida pois descende

de Carlota outras mulheres da linhagem cometeram suiciacutedio e ela tem

agora a idade de Carlota ao morrer

Na primeiraacute seacuterie de passeios de Madeleine fase em que se compotildec

o quadro tivemos uma ostensiva duplicaccedilatildeo num primeiro plano Scortie

observa MadeJeine que natildeo reconhece sua presenccedila (ele estaacute fora do tershy

ritoacuterio dela) e se potildee disponiacutevel ao olhar movimentando-se como numa

cena num segundo plano ao longo do mesmo eixo a cacircmera observa

Scottie que Madeleine Satildeo duas uma dentro da outra que

natildeo se tocam Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele ambos enquadra~

dos por noacutes no lugar da cacircmera Madeleine nunca devolve o olhar a Scotshy

tie devolve o olhar agrave cacircmera (regra do filme claacutessico) Mas eacute

ambiacutegua essa passividade pois eacute o movimento dela que dirige o olhar

dele eacute a accedilatildeo de ambos que dirige o nosso olhar sempre na esteira do

acircngulo de de Scottie com quem partilhamos a ignoracircncia a

curiosidade a descoberta

Apoacutes a segunda conversa com Elster o tema do suiciacutedio engendra

uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria MadeleineCarlota

atira-se nas aacuteguas da baiacutea de San Francisco Scottie a resgata Permaneceshy

mos puro olhar ele passa ao plano da intervenccedilatildeo e do diaacutelogo Com os

dois juntos certa concretude o que em Scottie eacute jaacute sonho romacircnshy

53

tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do

filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs

do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e

terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM

sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a

lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute

coloca adiante dele na investigaccedilatildeo

A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy

satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela

que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e

com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy

gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave

de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre

alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se

e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos

da escada retido pela vertigem - e somos retidos

com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai

O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um

psicologicamente massacrado Elsshy

natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco

destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar

em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um

dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras

no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de

Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus

motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade

(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy

to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme

natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente

natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy

54

dos no quarto ficamos ao lado de

sem delongas que natildeo espera o final

Sozinha no quarto hesitante nervosa

assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy

a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy

para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade

para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy

blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez

de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao

topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o

mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre

Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou

resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda

para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas

posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy

ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema

bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia

apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do

suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo

de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy

dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as

imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()

prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a

loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy

lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy

leine-Carlota em a Scottic

O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse

mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy

vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade

e o de (a natildeo foi apenas para ele a

Urna leimra mais completa de Vertigo exishy

~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy

para o estratagema do as permanecem na

55

esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy

sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas

consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui

afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte

final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema

No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo

na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a

reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos

nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que

era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy

satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy

tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy

sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da

outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o

estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy

nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy

Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a

accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata

Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave

moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo

nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir

de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma

questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy

posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy

to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o

espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)

6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy

ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin

Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a

psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense

1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ

Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se

uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy

co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para

finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do

cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy

nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy

ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens

do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que

nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle

de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta

o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos

entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve

a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim

oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos

a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy

so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu

ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa

segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista

muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da

relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar

e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo

eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de

imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo

vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz

de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos

Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy

te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo

implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas

colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo

com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que

fora do campo torna visiacutevel

56 57

Page 13: Ismail Xavier Cinema Revelacaoengano

o da cacircmera e nenhum outro mais) O que eacute a fachada de preacutedio de estuacuteshy

dio senatildeo a duplicaccedilatildeo do mesmo princiacutepio da fachada de rua que sushy

gere o que natildeo eacute justamente quando observada de um certo acircngulo e disshy

tacircncia jaacute pressupostos em sua composiccedilatildeo O que eacute a ficccedilatildeo do cinema

senatildeo uma simulaccedilatildeo de mundo para o espectador identificado com o aparato

Vertigo (Um corpo que cai) O filme de Hitchcock realizado

em 1958 Ele eacute a trama da simulaccedilatildeo por excelecircncia como jaacute foi observashy

do pela criacutetica Trago um aspecto novo agrave consideraccedilatildeo o do espelhamenshy

to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e

o proacuteprio princiacutepio da narraccedilatildeo do filme Tal como em outras obras de

Hitchcltck o cinepa c1aacutessi~o aqui operagrave com eficiecircncia maacutexima e ao

mesmo tempo oferece a metaacutefora viva para o seu proacuteprio processo Inteshy

ressado nessa metaacutefora acentuo nesta anaacutelise a mecacircnica da simulaccedilacirco o

funcionamento exterior do aparato natildeo o que nas personagens eacute desejo

do estratagema e disposiccedilatildeo para a vertigem da imagem

Sigamos passo a passo a narrativa ateacute o ponto que interessa

Vertigem tiacutetulo original eacute a palavra que condensa as ideacuteias-forccedila

do filme em sua tematiacutezaccedilatildeo do olhar e do ponto de vista A apresentaccedilatildeo

de Vertigo criaccedilatildeo de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em

close-up tratado como maacutescara enigmaacutetica imoacutevel Uma aproximaccedilatildeo

maior e um passeio da cacircmcra examinam essa maacutescara em seus detalhes

ateacute que isolado o olho ofereccedila os sinais de vida Os seus movimentos no

entanto natildeo criam uma ~xpressatildeo definida uma intcncionalidade do olhar

Preparam apenas o cenaacuterio ptra um movimentoem espiral na profundishy

dade Mergulho na inteacuteiioridaacutedc cujo fundo inatingiacutevel estaacute sempre em

recesso Aproximaccedilatildeo e recuo atraccedilatildeo e fuga a ambiguumlidade do movishy

mento da espiral ~ experiecircncia matriz de todo o filme cujo eixo eacute o

percurso de profissional do olhar detetive personificaccedilatildeo da

vertigem Logo na primeira sequumlecircncia define-se a questatildeo desse protagoshy

nista numa perseguiccedilatildeo telhados de Satildeo Francisco a vertigem de Scottie o faz responsaacuteveacutel pela morte de um

tentar ajudaacute-lo Sentimeriacuteto de cu1Da aposentadoria

52

lecida a disponibilidade total de a situaccedilatildeo-chave de Vertigo deseshy

nha-se quando ele atende ao chamado de Elster de escola que

no reencontro surpreende-o com o pedido para que sua mulher

Madeleine Elster mostra-se apreensivo com as manifestaccedilotildees de ausecircnshy

cia que ela apresenta com os periacuteodos de comportamento estranho em

que ela parece ser outra pessoa de que retoma sem lembranccedilas

O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma

proposto Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine pesquisa pela

recolhe dados essenciais Um primeiro quadro se compotildee a

ra que dela se apossa em seus transes eacute Cadota Valdez mulher que viveu

em San Francisco no seacuteculo XIX e que se suicidou em circunstacircncias meshy

lancoacutelicas Novamente com Elster Scottie relata as descobertas O marishy

do introduz novo dado Madeleine estaacute em perigo de vida pois descende

de Carlota outras mulheres da linhagem cometeram suiciacutedio e ela tem

agora a idade de Carlota ao morrer

Na primeiraacute seacuterie de passeios de Madeleine fase em que se compotildec

o quadro tivemos uma ostensiva duplicaccedilatildeo num primeiro plano Scortie

observa MadeJeine que natildeo reconhece sua presenccedila (ele estaacute fora do tershy

ritoacuterio dela) e se potildee disponiacutevel ao olhar movimentando-se como numa

cena num segundo plano ao longo do mesmo eixo a cacircmera observa

Scottie que Madeleine Satildeo duas uma dentro da outra que

natildeo se tocam Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele ambos enquadra~

dos por noacutes no lugar da cacircmera Madeleine nunca devolve o olhar a Scotshy

tie devolve o olhar agrave cacircmera (regra do filme claacutessico) Mas eacute

ambiacutegua essa passividade pois eacute o movimento dela que dirige o olhar

dele eacute a accedilatildeo de ambos que dirige o nosso olhar sempre na esteira do

acircngulo de de Scottie com quem partilhamos a ignoracircncia a

curiosidade a descoberta

Apoacutes a segunda conversa com Elster o tema do suiciacutedio engendra

uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria MadeleineCarlota

atira-se nas aacuteguas da baiacutea de San Francisco Scottie a resgata Permaneceshy

mos puro olhar ele passa ao plano da intervenccedilatildeo e do diaacutelogo Com os

dois juntos certa concretude o que em Scottie eacute jaacute sonho romacircnshy

53

tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do

filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs

do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e

terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM

sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a

lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute

coloca adiante dele na investigaccedilatildeo

A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy

satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela

que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e

com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy

gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave

de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre

alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se

e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos

da escada retido pela vertigem - e somos retidos

com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai

O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um

psicologicamente massacrado Elsshy

natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco

destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar

em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um

dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras

no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de

Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus

motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade

(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy

to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme

natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente

natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy

54

dos no quarto ficamos ao lado de

sem delongas que natildeo espera o final

Sozinha no quarto hesitante nervosa

assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy

a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy

para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade

para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy

blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez

de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao

topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o

mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre

Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou

resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda

para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas

posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy

ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema

bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia

apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do

suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo

de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy

dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as

imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()

prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a

loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy

lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy

leine-Carlota em a Scottic

O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse

mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy

vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade

e o de (a natildeo foi apenas para ele a

Urna leimra mais completa de Vertigo exishy

~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy

para o estratagema do as permanecem na

55

esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy

sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas

consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui

afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte

final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema

No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo

na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a

reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos

nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que

era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy

satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy

tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy

sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da

outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o

estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy

nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy

Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a

accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata

Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave

moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo

nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir

de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma

questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy

posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy

to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o

espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)

6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy

ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin

Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a

psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense

1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ

Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se

uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy

co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para

finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do

cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy

nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy

ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens

do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que

nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle

de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta

o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos

entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve

a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim

oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos

a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy

so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu

ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa

segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista

muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da

relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar

e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo

eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de

imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo

vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz

de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos

Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy

te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo

implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas

colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo

com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que

fora do campo torna visiacutevel

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tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do

filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs

do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e

terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM

sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a

lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute

coloca adiante dele na investigaccedilatildeo

A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy

satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela

que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e

com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy

gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave

de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre

alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se

e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos

da escada retido pela vertigem - e somos retidos

com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai

O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um

psicologicamente massacrado Elsshy

natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco

destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar

em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um

dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras

no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de

Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus

motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade

(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy

to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme

natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente

natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy

54

dos no quarto ficamos ao lado de

sem delongas que natildeo espera o final

Sozinha no quarto hesitante nervosa

assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy

a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy

para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade

para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy

blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez

de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao

topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o

mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre

Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou

resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda

para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas

posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy

ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema

bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia

apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do

suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo

de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy

dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as

imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()

prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a

loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy

lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy

leine-Carlota em a Scottic

O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse

mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy

vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade

e o de (a natildeo foi apenas para ele a

Urna leimra mais completa de Vertigo exishy

~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy

para o estratagema do as permanecem na

55

esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy

sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas

consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui

afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte

final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema

No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo

na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a

reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos

nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que

era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy

satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy

tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy

sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da

outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o

estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy

nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy

Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a

accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata

Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave

moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo

nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir

de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma

questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy

posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy

to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o

espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)

6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy

ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin

Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a

psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense

1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ

Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se

uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy

co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para

finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do

cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy

nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy

ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens

do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que

nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle

de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta

o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos

entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve

a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim

oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos

a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy

so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu

ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa

segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista

muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da

relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar

e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo

eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de

imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo

vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz

de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos

Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy

te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo

implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas

colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo

com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que

fora do campo torna visiacutevel

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Page 15: Ismail Xavier Cinema Revelacaoengano

esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy

sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas

consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui

afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte

final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema

No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo

na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a

reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos

nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que

era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy

satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy

tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy

sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da

outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o

estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy

nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy

Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a

accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata

Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave

moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo

nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir

de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma

questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy

posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy

to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o

espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)

6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy

ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin

Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a

psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense

1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ

Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se

uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy

co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para

finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do

cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy

nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy

ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens

do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que

nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle

de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta

o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos

entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve

a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim

oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos

a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy

so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu

ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa

segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista

muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da

relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar

e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo

eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de

imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo

vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz

de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos

Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy

te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo

implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas

colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo

com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que

fora do campo torna visiacutevel

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