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Estilos da Clínica, 2003, Vol. VIII, n o 15, 34-47 34 Dossiê ATENDER, CUIDAR E PREVENIR: A CRECHE, A EDUCAÇÃO E A PSICANÁLISE Rosa Maria Marini Mariotto Professora supervisora do curso de Psicologia da PUC-PR, psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Curitiba, doutoranda em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento pelo IP-USP. O interesse pelo tema surgiu para nós quando assumimos, a partir de 2002, a condição de supervisora de estágio em Psicologia Educacional do curso de Psicologia da PUC-PR nas creches man- tidas por essa instituição. E estas creches já conta- vam com o serviço dos estagiários de 5º ano do curso de Psicologia desde o início dos anos 90. O objetivo do estágio é, portanto, duplo: ao mesmo tempo em que abre espaço para a constru- Este artigo procura esta- belecer uma interlocução entre a psicanálise e a edu- cação no contexto da cre- che, a partir da experiên- cia de supervisão acadêmi- ca e pesquisa. Tomando como eixo central a trilo- gia Atender-Cuidar-Pre- venir, busca refletir sobre o ato educativo na pers- pectiva psicanalítica no que se refere à educação infantil. Creche; educação; psi- canálise; cuidado e pre- venção TO ASSIST, TAKE CARE AND PREVENT: THE DAY CARE, THE EDU- CATION AND THE PSYCHOANALYSIS This article tries to establish a dialogue between the psycho- analysis and the education in the context of the day care, starting from an experience of academic supervision and re- search. Taking as central axis the significant trilogy Assist- Take care-Prevent, it searches to contemplate on the educati- onal act in the psychoanalytic perspective in what refers to the infantile education. Day care; educational act; psychoanalysis; prevention “Atender, qualquer um pode atender, dar uma olhadinha. Cuidar também, porque você não precisa de curso. Mas a diferença é cuidar bem ou mal. Para cuidar bem, você tem que educar junto” (educadora do berçário da Creche Cajuru, PUC-PR)

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Estilos da Clínica, 2003, Vol. VIII, no 15, 34-4734

Dossiê

ATENDER, CUIDAR EPREVENIR: A

CRECHE, AEDUCAÇÃO E APSICANÁLISE

Rosa Maria Marini Mariotto

Professora supervisora do curso de Psicologia daPUC-PR, psicanalista, membro da Associação

Psicanalítica de Curitiba, doutoranda em PsicologiaEscolar e do Desenvolvimento pelo IP-USP.

O interesse pelo tema surgiu para nósquando assumimos, a partir de 2002, a condição desupervisora de estágio em Psicologia Educacionaldo curso de Psicologia da PUC-PR nas creches man-tidas por essa instituição. E estas creches já conta-vam com o serviço dos estagiários de 5º ano docurso de Psicologia desde o início dos anos 90.

O objetivo do estágio é, portanto, duplo: aomesmo tempo em que abre espaço para a constru-

Este artigo procura esta-belecer uma interlocuçãoentre a psicanálise e a edu-cação no contexto da cre-che, a partir da experiên-cia de supervisão acadêmi-ca e pesquisa. Tomandocomo eixo central a trilo-gia Atender-Cuidar-Pre-venir, busca refletir sobreo ato educativo na pers-pectiva psicanalítica noque se refere à educaçãoinfantil.Creche; educação; psi-canálise; cuidado e pre-venção

TO ASSIST, TAKE CAREAND PREVENT: THEDAY CARE, THE EDU-CATION AND THEPSYCHOANALYSISThis article tries to establisha dialogue between the psycho-analysis and the education inthe context of the day care,starting from an experience ofacademic supervision and re-search. Taking as central axisthe significant trilogy Assist-Take care-Prevent, it searchesto contemplate on the educati-onal act in the psychoanalyticperspective in what refers tothe infantile education.Day care; educationalact; psychoanalysis;prevention

“Atender, qualquer um pode atender,dar uma olhadinha. Cuidar também,

porque você não precisa de curso. Mas adiferença é cuidar bem ou mal. Para

cuidar bem, você tem que educar junto”(educadora do berçário da Creche Cajuru,

PUC-PR)

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ção do profissional psicólogo no ambiente educacional, oferece àinstituição o trabalho possível da psicologia nessa área de atuação,por meio de ações junto à equipe dos educadores, às crianças e aospais.

Além disso, a psicanálise comparece como eixo teórico quesustenta o ato profissional nas frentes citadas, exigindo do “psi”um redimensionamento não apenas nesse fazer profissional, mastambém na forma de introduzir essa proposta na atuação da equi-pe da instituição.

Mas é a partir de nosso trabalho que uma aposta foi lançada:a de que a relação entre psicanálise e educação pudesse renderbons frutos também no ambiente da creche. Há um vasto e con-sistente material sobre a interlocução entre psicanálise e educação,que se desdobra nos trabalhos sobre dificuldades de aprendiza-gem, escolarização de crianças com distúrbios globais do desen-volvimento, inclusão, etc. No entanto, é mais escassa a produçãobibliográfica que opere a intersecção entre psicanálise e creche.

Parece haver dois aspectos que contribuem diretamente paradespertar o interesse sobre o tema. O primeiro, mais ligado àquestão da educação, refere-se ao fato de que, com a nova LDB(9394/96), a creche passa a ter cada vez mais um estatuto educa-cional, e não mais puramente assistencial, marca registrada de seusurgimento, mas que, justamente por isso, não desapareceu. Comessa nova legislação, a educação infantil passa a integrar a educa-ção básica e a pertencer às ações educativas das políticas educaci-onais definidas pela União, estados e municípios, tendo entre seusprincípios a tentativa de integrar as funções de cuidar e educar. Todasessas instituições estão atualmente atravessando um momento deintensa transformação interna para poderem se adequar a essasnovas diretrizes. Mudanças que alcançam não apenas os aspectosmetodológico-curriculares, mas que exigem do profissional quedisso se ocupa uma reflexão sobre sua função e sobre o lugarque ocupa nesse sistema institucional. Portanto, a creche tem cadavez mais se aproximado da educação. É digno de realce, portan-to, que a mudança de nomeação atesta também o lugar que sesupõe ocupar esta instituição, e a intenção que se lhe atribui, assimcomo a transferência ocorrida com a educação infantil, em quede oportunidade ela passa a ser obrigação do Estado.

O segundo, mais pelo lado da psicanálise, mostra o claro ecrescente interesse pelo trabalho com bebês não só no âmbito clí-nico, mas também no que se refere à detecção e prevenção deriscos psíquicos precoces, aplicados também à saúde pública, con-forme pesquisas do Grupo Nacional de Pesquisa (GNP), em par-ceria com o Ministério da Saúde.

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É nesse sentido que o espaço da creche tem-se aberto paraum possível trabalho atravessado pela psicanálise, na medida emque, ao se ocupar de crianças pequenas – que variam de 4 meses a6 anos –, temos nos confrontado com a interrogação sobre suaspossíveis funções: cuidar, atender, prevenir e educar. Cada umadelas convocando este lugar institucional de uma forma diferente,em que o exercício do profissional que ali trabalha também semodifica. É sobre o que pretendemos refletir a seguir, acentuandoo foco central de nossa abordagem no trabalho desenvolvido comcrianças de até 2 anos1.

A CRECHE E O ATENDENTE: A QUE ATENDE?

De origem francesa, a palavra “crèche” significa “manjedoura”,denominação dada aos abrigos para bebês necessitados que come-çavam a surgir na França no século XVIII. Com caráter basicamentecustodial e assistencial, a creche guardava os lactentes para que suasmães pudessem trabalhar. As chamadas gardeuses d’enfants retiravamdas ruas as crianças que, famintas, perambulavam sem rumo enquan-to suas mães trabalhavam nas fábricas até 18 horas por dia. SegundoRizzo, este foi o objetivo inicial da creche, que somava-se a um ou-tro: “Resguardar dos olhos da sociedade um segundo estorvo queeram os filhos de uniões ilegítimas” (1984, p. 19).

Em função, portanto, das mudanças sociais e econômicas emque se fazia urgente aumentar a renda familiar, às vezes garantindosozinha seu sustento, a mulher foi chamada ao mercado de traba-lho. Impunha-se aí uma necessidade, a de ter onde deixar seus fi-lhos. Sendo assim, é possível concordarmos com Cataldi (1992),que afirma não terem as creches surgido para atender às necessida-des básicas da criança, mas em resposta à necessidade da mulherde colaborar mais efetivamente na economia industrial capitalista.

Outro aspecto que se destaca no surgimento das creches éaquele, apontado por Rizzo (1984), de que, com a industrialização– que se fortalece no século XIX –, começam a surgir os centrosurbanos, diminuindo, pouco a pouco, os espaços e reduzindo asfamílias, que passam a se organizar como conjunto, simplesmente,de pai, mãe e filhos. Portanto, com a diminuição dos espaços urba-nos e a falta de avós ou tias para cuidar das crianças, a crecheaparece resolvendo a questão de “onde” e “com quem”.

Observamos, então, que os cuidados e a educação da criançapequena “desfamiliariza-se”, atribuindo-se essas funções a estra-nhos.

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No Brasil das primeiras décadasdo século XX, as creches surgiram oucomo benefício concedido aos ope-rários por empresários forçados pe-los movimentos de classe – e que ti-nham como intenção velada a idéiade que, “mais satisfeitas, as mães ope-rárias produzem melhor” (Oliveira etal., 1992, p. 20) –, ou como trabalhofilantrópico e/ou religioso. A parti-cipação do Estado na oferta e fisca-lização dessas insitituições era nula.

Desde meados da década de 60,submetido ao regime militar, o Bra-sil assiste à emergência de movimen-tos populares que reivindicavam ofornecimento de serviços sociais ur-banos mínimos para a sobrevivênciada população, entre estes, o movi-mento por creches, que caracterizouo aumento do número desses equi-pamentos como forma de provimen-to contra a carestia. Aí o poder pú-blico foi pressionado a atender ascamadas populares no suprimento desuas necessidades mínimas. Machadoconfirma que somente a partir dadécada de 70 é que ocorreu o ciclode expansão de creches, “inclusivecom revisão de seu significado origi-nário de reivindicações e propostasde movimentos feministas” (1997, p.16). A mesma autora observa que, apartir daí, as creches passaram a apoi-ar-se numa visão de assistência com-pensatória às crianças, que vinham, emsua maioria, de classes sociais desfa-vorecidas, enfatizando o aspectomédico-nutricional.

Foi somente com a promulga-ção da nova Constituição, em 1988,que a creche passou a ser um direitoda criança, uma opção da família eum dever do Estado, vinculando-se

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à área da educação. Com isto, pro-postas pedagógicas foram elabora-das na tentativa de uma melhor es-truturação desse espaço educacional,permitindo a superação de seu cará-ter puramente assistencialista. Sendoassim, passou-se a definir a funçãoda creche como “educativa, voltadapara os aspectos cognitivos, emoci-onais e sociais da criança, enquantocontexto de desenvolvimento para acriança pequena” (Oliveira et al., 1992,p. 49).

Mesmo assim, concordamoscom Langer quando afirma que ain-da hoje as creches têm um lugar am-bíguo no sistema de ensino, já queseus interesses continuam voltadosmais para a mãe que trabalha do quepara as necessidades da criança, reco-nhecendo também os efeitos disso noeducador. “A socialização da criançapequena em creche atendeu à neces-sidade dos tempos atuais. No Brasiltem acompanhado os acertos e de-sacertos da política educacional dopaís, tornando difícil o reconheci-mento desse atendimento como umespaço genuinamente educativo. Con-fundindo-se no assistencialismo quemarcou seu surgimento, ainda hoje oseducadores de creche precisam ela-borar as contradições daí decorren-tes” (1992, p. 123). Como exemplo,citamos os comentários de duas cui-dadoras de berçário que, ao seremindagadas sobre para que serve umacreche, afirmam, ambas, que é paraajudar a mãe, já que sem ela a mãenão poderia trabalhar; “isto (a cre-che) é uma bênção para as mães”,afirma uma delas.

Desse modo, abre-se a discus-são em torno dos educadores de cre-

che e sua função junto à criança.Questões estas que não apenas sur-gem em decorrência dos arranjospolíticos que afetam o funcionamen-to das creches, mas também alcan-çam o lugar que o educador ocupana relação estabelecida com as crian-ças que atende, por se tratar basica-mente de um atendimento à peque-na criança. O educador de creche, quese dedica a cuidar de crianças de 0 a2 anos, invariavelmente se confrontacom o impasse de “ser ou não sermãe” destas crianças. Claro está quesua função educativa não é a únicapor ele desempenhada. Atestamosisso ao recolher a seguinte afirmaçãode Rizzo: “A creche existe para exer-cer pela mãe, embora não assumindoseu lugar, as atividades tipicamentematernais junto ao seu filho, prestan-do-lhe assistência integral, cuidandoda sua segurança física e emocional”(1984, p. 22).

Portanto, com o aparecimentodas creches, o lar ou o ambiente fa-miliar deixa de ser o único contextotradicional de desenvolvimento dacriança, transferindo-se também aoeducador a responsabilidade deacompanhar este processo. Já não émais apenas um profissional queobjetiva o cumprimento eficiente desuas funções instrumentais. A elecabe um outro lugar e, portanto,uma outra função, que o ultrapassa,e que opera à sua revelia. Assim sen-do, a tarefa do atendente – princi-palmente aquele de pequenas crian-ças – exige deste um “algo a mais”impossível de ser entendido ouaprendido cognitivamente.

Retornando a partir daqui aotema que anima este artigo, observa-

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mos que o trabalho desenvolvido pelo atendente da creche con-densa uma série de questões que tangenciam a problemática dosefeitos de sua intervenção – no sentido da necessidade e do desejo– no processo de construção dos pequeninos a quem atende. Aten-dendo-se às crianças neste contexto, a que desejo se atende? Basea-do em que suporte teórico e metodológico esse trabalho se apóia?

Oliveira et al. (1992) reconhecem que o trabalho exercido nacreche depende de como é apreendida a questão do desenvolvi-mento, em que a função e a forma pela qual o educador desempe-nha seu trabalho sustentam-se numa particular compreensão dodesenvolvimento da criança. Em seu estudo, argumenta que exis-tem três concepções de desenvolvimento fundamentando tradicio-nalmente o trabalho em creche. A primeira, inatista, que reconheceo desenvolvimento “como o desenrolar de um novelo no qual jáestão inscritas as características genéticas do indivíduo” (p. 27). Nestaperspectiva, o educador seria apenas o “jardineiro” responsável porcuidar e fazer brotar as pequenas sementes. Já na teoria ambientalis-ta, o meio assume inteira responsabilidade em modelar, corrigir eestimular o desenvolvimento da criança, função esta intermediadapelo professor.

A terceira proposta, denominada interacionista, defende umareciprocidade de influências, argumentando que o desenvolvimen-to se constrói na e pela interação da criança com outras pessoas, e oeducador da creche também se insere nesta rede de relações, namedida em que oferece significados e interpretações conscientesdo mundo a esse pequeno ser.

Ao tentarmos construir uma proposta de discussão sobre aquestão da articulação entre educação e psicanálise e sua inserçãonas instituições que atendem a pequena criança, estamos apostandoem uma nova possibilidade de compreender o processo de subje-tivação e também de acompanhar o desenvolvimento de crianças de 0a 2 anos no ambiente de creche em que se inclua o atendente decreche enquanto ser de linguagem e, portanto, de desejo. Isto é,supondo que um sujeito se constitua a partir de sua inserção na epela linguagem, através de um outro que com seu desejo vai mar-cando-o na qualidade de significante.

Com essa nova possibilidade, alargamos ainda mais as funçõesda creche. Se tradicionalmente ela se configura como lugar onde seoferecem 1) os cuidados básicos, 2) um ambiente estimulador parao desenvolvimento cognitivo e psicomotor e 3) um lugar de trocasafetivas, deve-se localizar a creche também enquanto elemento sim-bólico no devir psíquico da criança. Idéia esta que confere à institui-ção um lugar instituinte. Sobre isso Carvalho reconhece que a cre-che é “representante do campo do Outro, universo simbólico da

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linguagem e da cultura, elemento fundamental para o advento daconstituição subjetiva” (2001, p. 108). Assim, a creche passa a atuarnão apenas nas frentes pedagógica, social, de saúde e psicológica,mas também na subjetiva. Atuação que se faz representar pelo aten-dente, que, no interior desta concepção, (re)assume seu lugar deeducador na medida em que se posiciona enquanto agente do atoeducativo a partir de seu desejo.

Sendo assim, o ponto de interesse neste trabalho não pode sermais a já desgastada discussão sobre se a creche deve ser umaobrigação ou um direito, ou se ela é um mal necessário ou umbenefício. Não nos cabe proferir este juízo de valor. Mas a questãodeve partir do seguinte ponto: uma vez que esta instituição partici-pa dos tempos precoces de subjetivação da criança, é preciso in-terrogar-se sobre que elementos passam agora a operar esse pro-cesso constituinte e que efeitos são produzidos a partir disso. Háum universo de possibilidades que se apresentam à criança numacreche, e devemos nos perguntar: quais as conseqüências psíquicasdo que lhe é apresentado e como esta apresentação ficará inscrita,como se fará representar e existir? Que traços permanecem nacriança vindos de quem a constituiu? Que série de atos a atravessa?

No ponto em que nos encontramos em nosso trabalho, al-guns elementos de reflexão se destacam.

O FUROR PEDAGÓGICO

Lajonquière (2001) afirma que há uma indagação sobre a es-cola e a infância, localizando esta relação como paradoxal, na me-dida em que atualmente a escola convoca seus alunos – crianças –a responder de um lugar que ainda não ocupam, o de adulto, pro-duzindo, portanto, discursos adulterados e “adultizantes”.

É possível na creche transferir esse paradoxo afirmando quelá também não há lugar para a infância? Esta idéia acaba sendoreforçada pela nova LDB (1996), que determina que a educaçãoinfantil será oferecida tanto em pré-escolas – para crianças de 4 a 6anos – quanto por creches – para crianças com até 3 anos de idade–, em que “os programas, mesmo os de creches, deverão ter fun-ção eminentemente educativa, à qual se integram as ações de cuida-do com a alimentação e a saúde”, segundo as normas para a edu-cação infantil no estado do Paraná (001/99). Seguindo o docu-mento, cabe à creche responder por três frentes de ação: a peda-gógica, a social e a de saúde. Nestes três aspectos, destaca-se prin-cipalmente o acento na relação necessária entre educador e edu-

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cando, para que se alcancem efetiva-mente os objetivos propostos. Se, porum lado, é possível observar umavanço no que se refere às atribui-ções dessa instituição, ultrapassandoo caráter assistencialista, por outro, noentanto, ainda permanece obscuro olugar dado à subjetividade, seja da cri-ança, seja de quem dela se ocupa. Oque preocupa é que a educação e oato educativo passem a ser entendi-dos apenas a partir de um “furor pe-dagógico”, que começa a se instituirnos denominados “centros de edu-cação infantil” – instituições que man-têm, simultaneamente, o atendimen-to a crianças de 0 a 3 anos em crechee de 4 a 6 anos em pré-escola, comose dá no caso em estudo. Numa con-versa com uma educadora respon-sável pelo berçário, esta afirmava quea maior função da creche “é ensinaras crianças. Elas não vêm aqui parabrincar, elas aprendem muito aqui”.Conforme documento já citado (001/99), a educação infantil deve basear-se em determinados princípios, entreos quais estão a garantia de espaço parao jogo e o brinquedo e a oportunida-de de acesso ao conhecimento elabo-rado. O que surpreende é o fato deque a “aquisição de estruturas opera-tórias de pensamento” (LDB, 1996,p. 17) não supõe como instrumento obrincar e/ou o jogo. A este aspecto,atribui-se a construção das emoções eformação do caráter. Abolir o brin-car em nome do ensinar é impedir acriança de aprender, já que, para al-cançar o tempo da compreensão cog-nitiva, é necessário que haja o momen-to do registro, das primeiras inscrições,que se realiza fundamentalmente pelobrincar.

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Torna-se ainda mais preocupante esse aspecto no tocante aosbem pequenos, portanto, aos infans. Se uma educação dita primor-dial que chegue a um “bom” resultado é aquela que inclui o ser nodiscurso, permitindo-lhe o usufruto da palavra, esta educação cabetambém à creche fazer operar. Junto com os pais e/ou a família,torna-se parceira nesta empreitada humanizadora dos pequeninos,em que estes, seja em casa ou na creche, passam a ocupar um lugarna história, sujeitos a ela. Significa então passar uma nova “demão”de tinta sobre a fronteira que separa o educativo do pedagógico,reafirmando não só suas diferenças, mas demarcando o lugar decada campo. Fazer do educativo o fim e do pedagógico apenasum meio talvez ajude o dito educador a elucidar seu lugar junto aseus pequenos pupilos2.

Se concordamos com Lajonquière (2001) em que educar étransmitir marcas simbólicas – inventar metáforas que possibilitemao pequeno sujeito usufruir de um lugar a partir do qual possa selançar às empresas impossíveis do sujeito –, conferimos ao brincarseu estatuto não só constituinte, mas também educativo no sentidoem que é por meio de seu exercício que o infans poderá marcar seulugar na linguagem como autor de si mesmo.

CUIDAR, EDUCAR, PREVENIR

Já se sabe que a educação exige e opera o recalque, e que umdos alvos principais – e talvez primordial – deste na criança é ocorpo. Sendo assim, a atenção dispensada na primeira infância aoscuidados do corpo é intensa. É preciso educar o corpo, cuidandodele. Segundo o RCNEI (1998), “educar significa propiciar situa-ções de cuidado, brincadeiras e aprendizagens de forma integradae que possam contribuir para o desenvolvimento das capacidadesinfantis de relação interpessoal, de ser e estar com os outros emuma atitude básica de aceitação, respeito e confiança, e o acesso,pelas crianças, aos conhecimentos mais amplos da realidade sociale cultural. O desenvolvimento integral depende tanto dos cuida-dos relacionais que envolvem a dimensão afetiva e dos cuidadoscom os aspectos biológicos do corpo, como a qualidade da ali-mentação e os cuidados com a saúde, quanto da forma comoesses cuidados são oferecidos e das oportunidades de acesso aconhecimentos variados”. Aqui se revela que a educação infantilcumpre com duas funções indispensáveis e indissociáveis aos olhosdo Estado: educar e cuidar, e sua proposta pedagógica deve ga-rantir a articulação entre estas duas ações. Carvalho (2001) tam-bém acrescenta ao cuidar a idéia de preocupação. Para ela, a pre-

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ocupação com aquele que é cuida-do requer que se ocupe dele comantecipação. Neste sentido, cuidar deum bebê é antecipá-lo num funcio-namento que por sua vez deverá sereducado.

Se entendermos que cuidar re-fere-se a uma idéia de guarda e pro-teção, admite-se que cuidar de umcorpo é protegê-lo e guardá-lo, masdo quê? Da pulsão. Um corpo bemeducado é aquele que regula seus rit-mos de acordo com aquele que seocupa dele. Na creche, é preciso or-ganizar-se para sentir fome na horadas refeições e sono na hora da ses-ta. Portanto, um corpo bem cuidadoé aquele que ordena-se nesta novaordem, em que o espaço para o im-pulso é tomado como mal-educado.É o caso da pequena B., que mordeseus coleguinhas e até mesmo os adul-tos. Segundo a diretora de creche eda própria educadora, isso é “puramaldade”. Bergès & Balbo (2001)afirmam que o corpo é “o próprioteatro do desconhecimento”, apon-tando para o fato de que, à medidaque esse corpo vai sendo tomado pelapulsão, um saber aí vai se instalando,mas que vai sendo “obstaculizadosem cessar pelo discurso do outro [...]que se vê confrontado com sua pró-pria verdade sobre a relação sexual”(pp. 18-9).

Essa regulação dos ritmos – fun-damental na constituição – está de-terminada pela atendente quando acriança permanece boa parte de seudia na creche. Mas isso que ela cum-pre está referido a uma instância quea ultrapassa? Ou seja, há um Outroque opera o funcionamento de ou-tro? É fundamental que a creche pos-

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sa ser tomada pela atendente comoreferencial, no sentido de, na sua re-lação com a criança, ser instituída dafunção de Grande Outro.

Reconhecer a creche como umlugar de cuidados, antecipação e edu-cação nos leva a intoduzir a questãoda prevenção e, mais precisamente,a sua articulação com a psicanálise ea educação infantil. Seguindo umaidéia de Almeida (1998), é prudenteabordar esse conceito desde sua eti-mologia, que opera no sentido de“vir antes, tomar a dianteira”. A au-tora lembra com propriedade oquanto a prevenção está a serviço dasideologias dominantes que atraves-sam cada cultura e que justamentesustentam e determinam as modali-dades de intervenção preventiva exis-tentes nas áreas de educação e saúdenas sociedades. Neste sentido, o ter-mo prevenção “toma a dianteira”,antecipando um modelo de cidadãodesejado, conforme – ou conforma-do – os ideais do Estado. Almeidatambém examina o conceito de saú-de mental, apresentando alguns ele-mentos importantes na reflexão so-bre este tema, em que basicamentea saúde é tomada como um pro-cesso que, embora esteja intimamen-te ligado à subjetividade de cada um,é afetado pelos determinantes soci-oculturais. Ao relembrar Mal-estar nacivilização, texto de 1930, a autoraacentua que para Freud as condiçõesbásicas de saúde mental verificam-se nas capacidades subjetivas deamar e trabalhar. E que submeter-se ao processo civilizatório implicadeixar-se cindir pela renúncia às vi-gências pulsionais, operação estaexercida pelo recalque.

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Assim vamos nos aproximando da questão da função da edu-cação infantil na promoção da saúde mental. Há aqui, portanto,um paradoxo, que se acentua ainda mais se nos referimos à questãoda creche e dos bebês e crianças pequenas. Entender que o atoeducativo anuncia a renúncia às pulsões, exigindo que corpo e su-jeito submetam-se ao princípio que a realidade impõe, supõe umsujeito já ativo em seu funcionamento pulsional. Ao pensarmosnum bebê – tomando esta condição como aquela que atesta umtempo em que a operação lógica vigente é a construção de seucircuito pulsional e, portanto, num tempo de alienação – integradona creche, que assume cada vez mais o caráter educativo, o risco éque deste pequenino seja exigido renunciar àquilo que nem bemainda se estabeleceu. Ou seja, a idéia de saúde mental ligada à pre-venção no âmbito da creche precisa supor justamente os dois tem-pos em jogo: o da alienação e o da separação. Fazendo referênciaà afirmação de Aragão (1994), de que “a educação não deveria darà criança a impressão de que todos os impulsos são perigosos” (p.38), é preciso entender que às vezes o que é perigoso para um bebêé não estar submetido aos impulsos.

O que seria então o ato educativo relativo a um bebê?Segundo Freud, o processo de humanização que permite o

ingresso da criança na cultura, tomando lugar em relação à Lei, aoscódigos e aos discursos que a organizam, é função da educação.Humanizar, portanto, é antes de mais nada marcar o sujeito com osignificante, operação esta que abre espaço para a desbiologizaçãodo corpo e seu amarramento à pulsão.

Educar o bebê nesse sentido também aponta para uma re-núncia, já que o estabelecimento do circuito pulsional faz cair oobjeto, constituindo-se numa perda. É, porém, uma operação deoutra ordem. Aqui ao que se renuncia é o real do corpo, e não acrença imaginária de um corpo fálico. A operação de subversãoacionada pelo significante que faz da necessidade uma atividadepulsional inaugura, portanto, o sujeito, já que o arranca de um realirredutível ao simbólico a que ele se reduz. Pode-se afirmar entãoque, quando o outro cuida de um corpo, o faz atendendo umsujeito (do desejo), que se localiza tanto do lado da criança quantode seu cuidador. Estaria aí o germe do ato educativo?

Portanto, propor que a creche seja não apenas um lugar decuidados instrumentais, mas que se reconheça nisso o dispositivode transmissão de saberes, afirmando sua vocação educativa – maisdo que pedagógica –, é localizar também sua responsabilidade notrabalho de prevenção. Termo este que não pode e não deve imis-cuir-se no de (psico)profilaxia, já que este arrasta consigo a idéia deassepsia nos cuidados, antecipação excessiva no atendimento e efi-

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cácia total na educação3. Tarefa quevai exigir da equipe não apenas umolhar diferenciado sobre a criança emconstituição, mas também uma aber-tura para fazer de sua prática umainterrogação permanente, capaz deprovocar uma mudança de posiçãojunto à criança que é atendida, cuida-da e educada.

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Ministério da Educação e do Desporto.Rizzo, G. (1984). Creche: Organização, montagem e funcionamento, Rio de Janeiro, RJ:

Francisco Alves.

NOTAS

1 Por se tratar de um estágio supervisionado, contamos, em nossas reflexões, coma indispensável colaboração de nossas estagiárias, sem as quais este trabalho nãoteria sido construído. A elas, nossos sinceros agradecimentos.2 Sobre esse assunto, Lajonquière, em seu artigo “Sigmund Freud, a educação eas crianças” (2002), vai mais além, ao conceder às práticas pedagógicas atuaisum caráter de fundamentalismo psiconatural, abolindo assim a possibilidade deo desejo ser reconhecido e tornando a práxis educativa em uma mera práticapedagógica.3 Atualmente a profilaxia tem-se articulado ao conceito de qualidade total,idéia (ou ideologia) que cada vez mais tem-se infiltrado no affaire pedagógicodas escolas.

Aceito em setembro/2003.Recebido em julho/2003.