artigo sobre bolivianos

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  1 Espaço e Cultura: modos como os imigrantes bolivianos  p r a t ica m a p a isa ge m , em São Paulo Vera Pallamin e Vladimir Bartalini 1  Introdução A presença dos imigrantes bolivianos em São Paulo tem sido alvo de interesse de vários estudos    sobretudo na última década - provenientes da antropologia, geografia, economia, dentre outros. A complexidade de fatores envolvidos neste fluxo migratório, de tendência crescente, abrange aspectos reciprocamente determinantes de ordem social, política, econômica, jurídica e até pessoal, os quais se multiplicam quando considerados à luz das mediações contrastantes entre a terra de origem desta imigração - nas condições atuais da Bolívia - e seu local de destino, a megametrópole  brasileira. O ponto de vista aqui tratado pauta-se pela relação entre espaço e cultura, considerada em algumas das principais formas de sociabilidade exercidas pelos  bolivianos em São Paulo, detendo-se em certas práticas espaciais e na maneira como estes  praticam a paisagem em seu viver nesta cidade. Entendemos a noção de ´  prática da paisagem´  como intimamente ligada àquela de prática do espaço (esta última, conforme os termos do filósofo Michel de Certeau), mas singularizando-se em ângulos relevantes, já que espaço e paisagem não são simétricos, nem exatamente equivalentes.  Nas formas aqui considerada s com que os bolivianos têm praticado a paisagem em terras paulistanas conjugam-se vetores de invisibilidade e celebração, precariedade e transitoriedade, identidade e indiferença, confinamento e exposição, externalizando-se espacialmente suas dificuldades sócio-culturais e as resultantes de sua articulação entre impedimentos e volição. . I. Principais lugares de assentamento A atual distribuição geográfica dos bolivianos na metrópole de São Paulo responde em grande parte pelo vínculo de suas atividades junto à vigorosa indústria local de confecção de artigos de vestuário e acessórios, estabelecendo-se nos lugares 1  Docentes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

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Espaço e Cultura:

modos como os imigrantes bolivianos praticam a paisagem, em São Paulo

Vera Pallamin e Vladimir Bartalini1 

Introdução

A presença dos imigrantes bolivianos em São Paulo tem sido alvo de interesse

de vários estudos  –  sobretudo na última década - provenientes da antropologia,

geografia, economia, dentre outros. A complexidade de fatores envolvidos neste fluxo

migratório, de tendência crescente, abrange aspectos reciprocamente determinantes de

ordem social, política, econômica, jurídica e até pessoal, os quais se multiplicamquando considerados à luz das mediações contrastantes entre a terra de origem desta

imigração - nas condições atuais da Bolívia - e seu local de destino, a megametrópole

brasileira.

O ponto de vista aqui tratado pauta-se pela relação entre espaço e cultura,

considerada em algumas das principais formas de sociabilidade exercidas pelos

bolivianos em São Paulo, detendo-se em certas práticas espaciais e na maneira como

estes praticam a paisagem em seu viver nesta cidade. Entendemos a noção de  ́prática

da paisagem´  como intimamente ligada àquela de prática do espaço (esta última,

conforme os termos do filósofo Michel de Certeau), mas singularizando-se em ângulos

relevantes, já que espaço e paisagem não são simétricos, nem exatamente equivalentes.

Nas formas aqui consideradas com que os bolivianos têm praticado a paisagem em

terras paulistanas conjugam-se vetores de invisibilidade e celebração, precariedade e

transitoriedade, identidade e indiferença, confinamento e exposição, externalizando-se

espacialmente suas dificuldades sócio-culturais e as resultantes de sua articulação entreimpedimentos e volição.

. I. Principais lugares de assentamento

A atual distribuição geográfica dos bolivianos na metrópole de São Paulo

responde em grande parte pelo vínculo de suas atividades junto à vigorosa indústria

local de confecção de artigos de vestuário e acessórios, estabelecendo-se nos lugares

1 Docentes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

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próximos a estes produtores. Tal ligação com este setor econômico estabeleceu-se,

sobretudo, a partir de meados de 1980, diferenciando-se notadamente das características

anteriores da migração boliviana para o país: iniciada na década de 1950, era composta

por pessoas de classe média e tendo os estudos por objetivo. Alguns também se

transferiram por motivos políticos, devido às turbulências internas sofridas pela Bolívia

nos anos 1960-70 (Silva, 2009). Nos últimos vinte e cinco anos, contudo, mudaram o

padrão e o fluxo desses imigrantes: são, predominantemente, pessoas de baixa renda e

escolaridade, sem qualificação profissional, e em número crescente, provenientes, em

grande parte, de La Paz e Cochabamba.2 Via de regra são movidos pela falta de

empregos e por dificuldades econômicas. Indivíduos ou famílias inteiras adentram o

território brasileiro, uns efetivamente sem documentos legais, e outros com visto de

turistas, permanecendo após seu prazo de validade.3 A viagem normalmente é tratada

por contatos prévios entre familiares ou conhecidos que já estão no país, e é

acompanhada por uma pessoa que os conduzirá ao local do futuro trabalho.

Atualmente, estima-se que 200.000 bolivianos residam na região metropolitana

paulistana, uma parte deles clandestinamente. De acordo com o geógrafo Sylvain

Sauchaud (2010), eles distribuem-se de modo desigual na malha urbana do município,

com concentrações mais acentuadas nos bairros do centro expandido da metrópole, tais

como Bom Retiro, Pari, Canindé, Mooca, Belenzinho, Cambuci e arredores, priorizando

as localidades associadas ou próximas às atividades produtivas da indústria de

confecção e comércio de roupas. Além destas áreas centrais, os bolivianos também têm

se instalado em bairros da zona leste (Penha, Itaquera, Guaianazes, Cidade Tiradentes e

Lajeado), da zona norte (Casa Verde, Vila Maria e Vila Guilherme), e em municípios

pertencentes à região metropolitana, como Guarulhos, Osasco, Diadema e Santo André.

Seguindo as trilhas da indústria da confecção pelo interior do estado de São Paulo, eles

também têm se dirigido às cidades de Bauru e Americana (Silva, 2009).Na região central da cidade, um dos bairros em que se concentram é o Brás: esta

tradicional vizinhança popular registra em sua história urbana, ao longo de todo o século

20, uma profunda ligação com fluxos de imigração. Na primeira metade do século, o

Brás foi marcado pela colônia italiana que ali se consolidou, associando-se à nova

2 Uma fração diminuta é composta por profissionais liberais  –  médicos, dentistas  –  e pessoas qualificadasprofissionalmente.

3 No ano de 2000, os indocumentados foram estimados em cerca de 50 mil pelo Consulado da Bolívia (Sauchaud,2010). 

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dinâmica econômica então sendo impulsionada em São Paulo com a transição da

economia agrária para a industrialização.

Naquele momento, do ponto de vista urbano, a presença e vivência dos italianos

no Brás foi caracterizada pelo fato de que, como grupo social, pode-se dizer que eles

´praticavam a paisagem´: impregnaram-na com seus hábitos culturais e religiosos, com

seu olhar e discursos, mudaram sua atmosfera local, suas referências simbólicas e

visuais. Exímios artesãos que eram, seus influxos se inscreveram na arquitetura, nas

fachadas, nos interiores das casas, dos sobrados, na paisagem urbana. Nas primeiras

décadas do século, destacaram-se por sua ação política no âmbito de reivindicações

trabalhistas, mobilizando inclusive vínculos com o anarquismo, que traziam da Europa.

Seu empenho inicial na busca por relações de trabalho acabara por estender-se a outras

esferas da vida urbana, chegando a configurar tradições culturais, que ainda hoje

mantêm seus registros na metrópole.

Quase um século depois, a dinâmica do Brás se alterou significativamente, tendo

se degradado a qualidade de seu espaço urbano. Antigas indústrias se mudaram dali ou

foram fechadas, vilas operárias foram desfuncionalizadas, em paralelo ao aumento de

cortiços em algumas áreas. Em sua malha, atualmente estima-se que cerca de 35.000

bolivianos  –  muitos clandestinos - ali moram e trabalham, o que equivale a 25% da

população imigrante do bairro (Sauchaud, 2010; Cymbalista; Xavier, 2009).

Entretanto, comparativamente à inscrição na paisagem urbana efetivada pelos

imigrantes italianos, observa-se nos bolivianos, ao longo dos vários anos de seu fluxo

migratório, uma enorme discrição em relação à sua presença no espaço urbano do

bairro. Pode-se dizer que, neste sentido, em sua vivência urbana praticam o espaço e a

paisagem com extrema cautela, aspecto que também se faz presente em outros de seus

lugares de assentamento.

O modo sociocultural como se dão estas práticas espaciais  –  nitidamentediferenciadas entre distintos grupos de imigrantes na cidade - não obedece a critérios

prévios. Além disso, articulam-se a aspectos históricos, lingüísticos, culturais, e mesmo

a dispositivos institucionais, legais e a pressões sociais que, no caso dos bolivianos, se

tornam inibidoras de sua sociabilidade urbana. As características dos seus atuais modos

de aparição social e ocupação espacial em São Paulo são emblemáticas das dimensões

tensas e muitas vezes contraditórias, envolvidas na ação de se praticar a paisagem

urbana, prática esta que, sendo multifacetada, diz respeito aos modos de presença e deinscrição social em suas dimensões materiais, simbólicas e visuais,

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II. Os Espaços da Vida Cotidiana

II.A. O espaço ‘privado’: a Oficina de Costura

Certas edificações no bairro do Brás mantêm, regularmente, suas janelas sempre

fechadas; tudo ali parece calmo, sem muito movimento. Chama a atenção, contudo, que

estes espaços permaneçam tanto tempo sem a devida aeração. Internamente, trata-se de

„oficinas de costura‟. Em pequenos ambientes, máquinas de costura e mesas de corte

dividem o espaço com bolivianos que trabalham assiduamente, até quatorze ou

dezesseis horas diariamente. O ritmo de sua atividade é ditado pelas encomendas feitas

pelo dono da oficina, e depende diretamente da produtividade de cada um. Recebem

valores irrisórios por peça feita, o que lhes exige dedicação constante e produção de

quantidade. Os recém-chegados que não puderam arcar com os custos da viagem

trabalharão alguns meses sem ganho algum, a fim de pagar esta dívida inicial.

Até há poucos anos, os donos de oficinas eram brasileiros, libaneses, judeus e

uma considerável parte de coreanos. Atualmente, registra-se um patente recuo no

interesse de coreanos neste posto, em prol da sua concentração mais na encomenda e

venda dos produtos. Alguns bolivianos estabelecidos há mais tempo na cidade passaram

a assumir este espaço, colaborando na arregimentação de seus conterrâneos para este

tipo de atividade.

Nestas oficinas de costura, o cotidiano é marcado por níveis acirrados de

exploração do trabalho e pelo confinamento. Os que estão em situação de

clandestinidade evitam circular pelas ruas e são submetidos a pressões para que não

mudem de local de trabalho, sob ameaça de denúncia de sua situação. Eles dependem de

seus empregadores para obterem acesso à casa, ao trabalho e, às vezes, até para o

alimento, pelo que chegam a labutar no limite de sua resistência. Nestes ambientes de

confinamento, a tuberculose surge com freqüência, e os hábitos de higiene são, não raro,censuráveis. Nesta produção, homens e mulheres trabalham, indistintamente. Os filhos

pequenos ficam por perto, por vezes no cômodo ao lado, porém sem a atenção dos pais,

que costuram continuamente. Há bolivianos que chegam a morar nas oficinas,

encerrando ainda mais seus corpos nestes espaços sem horizontes.

Nos últimos anos, a ação do Ministério Público do Trabalho, considerando

denúncias veiculadas pela mídia sobre este cerceamento semelhante à escravidão, tem

tido certa eficácia no combate a esta situação. Porém seu total desmantelamento, sendodependente de um quadro complexo de relações econômicas e sociais  –  as quais

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estendem-se às tensões políticas internas da Bolívia  –  é difícil de ser plenamente

efetivado. Fiscalizações e multas relativas à responsabilidade legal sobre os obreiros das

oficinas de costura foram decisivas para o distanciamento dos coreanos em relação ao

contato direto com estes. Enquanto contratantes, passaram a eximir-se de acusações,

repassando os encargos jurídicos sobre as condições dos empregados para os atuais

donos de oficinas.

O modo de gestão destas oficinas de costura, seus níveis acirrados de

produtividade, e as reprováveis relações de trabalho ali exercidas relacionam-se com o

chamado „trabalho flexível‟ e as ramificações do „trabalho precarizado‟ em que se

assenta. Em meio à “nova era de precarização estrutural do trabalho, implementada

sistemicamente desde os anos setenta, e no Brasil a partir dos anos noventa, tem-se

praticado diversos modos de desregulamentação das relações de trabalho, assim como a

expansão de subcontratações e de atividades „informais‟, nas quais se incluem várias

modalidades de terceirização (Antunes, 2008). Alastraram-se os espaços de

desestabilização empregatícia e de marginalização social, colocando-se grandes massas

de trabalhadores em uma zona incerta entre ocupação e não-ocupação, sem segurança

de continuidade em suas atividades, nem garantias trabalhistas.4 Em meio à ramificação

desta terceirização registra-se a ampliação do trabalho em domicílio em várias partes do

mundo, favorecida pela desconcentração produtiva e pelas tecnologias de comunicação

em rede.

A indústria têxtil integrou-se global e localmente a estas mudanças implantadas

na economia e no trabalho. Em São Paulo, o setor de confecção de roupas e acessórios

tem praticado de modo expansivo o trabalho precarizado, o qual responde em grande

parte pela sua alta dinâmica de capital. O emprego da mão de obra barata, porque

dissociada de direitos trabalhistas, deixou de ser exceção, favorecendo largamente a

ilegalidade. Neste setor econômico da metrópole utilizam-se frequentemente aterceirização e a subcontratação, assim como formas de produção em casa e o

recrutamento de „ajudantes‟ (temporários e facilmente dispensáveis), disseminando-se

uma malha anônima e informal de „produtores‟ de difícil cartografia urbana.

Os bolivianos penetraram nos poros desta rede silenciosamente, entremeando-se

nos espaços da economia informal que atuam no âmago deste setor produtivo. Em nome

4 No Brasil, de acordo com relato do sociólogo Ricardo Antunes, “quase 60% da população economicamente ativaencontra-se em situação próxima da informalidade”. Este sentido de „precarização‟, no país, implicou a expansão edesdobramento da vulnerabilidade a que, historicamente, as amplas massas populares têm sido submetidas quanto aoseu acesso aos requisitos básicos da cidadania (Antunes, 2008).

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de sua sobrevivência, e de sua família, cedem às duras condições de servilismo laboral,

favorecidas pela crescente massa de desempregados e pela concorrência. Se considerada

a questão de base que os impulsionou para fora de seu próprio país: “como viver?”, eles

respondem alienando-se, sem reservas, em desgastantes jornadas de trabalho e

afunilando seus destinos de modo desproporcional à sua vontade de se libertar de uma

situação original, sem muitas esperanças. Alguns, depois de anos de empenho árduo,

voltam para a Bolívia com pequenas parcelas de dinheiro; outros retornam

esporadicamente para uma visita aos familiares, enviando-lhes, porém, constantemente,

parte de sua remuneração; e há aqueles que não voltam mais.

No que se refere ao modo de habitabilidade dos bolivianos nas ruas das

vizinhanças destas oficinas de costura, pode-se dizer que é marcado, comumente, pela

invisibilidade.  Nestes arredores, eles praticamente não são vistos no dia-a-dia. Ou,

quando aparecem, o fazem de modo esporádico e sem demora. Nas adjacências em que

trabalham eles pouco praticam o espaço: pouco caminham pelas ruas, e não se fazem ali

presentes, nem evidentes. O filósofo Michel de Certeau em „A invenção do Cotidiano‟ 

(1988), faz uma analogia com o ato de caminhar, como sendo equivalente, para o

sistema urbano, ao que o discurso é para a linguagem; este enuncia um modo de

apropriação, tal qual aquele que fala se apropria da linguagem. Nestes termos, o

caminhar é compreendido como um espaço de expressão e manifestação. Em relação

aos bolivianos, considerando-se as circunstâncias acima descritas, observa-se o avesso

disso: nota-se sua omissão no espaço urbano próximo aos seus locais de serviço, sua

ausência na paisagem destes lugares. Eles não se apropriam desta paisagem nem nela se

manifestam, num silêncio em grande parte compreensível, quando tomado em suas

associações com a vulnerabilidade por eles vivenciada em suas relações legais e

laborais.

Nesta dimensão urbana em pauta, a ordem espacial lhes aparece menos como umcampo de possibilidades, e mais como uma arena de interdições, em que emudecem sua

interlocução, comunicação, e capacidade de enunciação. Neste âmbito específico nota-

se o fenômeno da privação do lugar, tanto interno quanto externo, e uma ausência da

prática da paisagem.

II.  Os espaços da vida cotidiana

II.B. A Praça

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A despeito destes constrangimentos, estes imigrantes, em São Paulo, tentam

reconstruir suas memórias e vínculos identitários com sua cultura e com as paisagens

interiorizadas que trazem de suas cidades de origem. Isto é patente na feira boliviana

realizada na Praça Kantuta5, no bairro operário do Pari, todos os domingos.6 Até 2001,

esta feira semanal ocorria na praça Padre Bento, no mesmo bairro. Embora poucas

quadras separem os dois endereços, esta praça se situa no coração do que é hoje um dos

mais importantes centros de confecção e comércio de roupas de São Paulo, enquanto a

Praça Kantuta possui uma localização periférica a este dinamismo. Esta transferência

despertou a atenção: inicialmente alegou-se a necessidade da mudança em função da

realização da tradicional festa das  Alasitas7 , no dia 24 de janeiro, que acarretaria

transtornos para os alunos de uma escola situada em frente à praça. Janeiro, contudo, é

um período de férias escolares em São Paulo. Também se afirmou ser a Praça Padre

Bento pequena para tais festividades e para o número crescente de barracas  – mas suas

dimensões são muito semelhantes àquelas da praça Kantuta.

A falácia destes argumentos é parte do conflito que foi se configurando entre os

moradores e comerciantes dos arredores da praça Padre Bento e os bolivianos, quanto

ao uso deste espaço público. Em grandes cidades, o estranhamento de habitantes locais

diante do “outro”, do “diferente” e a segregação espacial são fenômenos conhecidos.8

 No caso dos bolivianos, contudo, a conjunção de fatores dada pela sua desfavorecida

5 “A praça foi batizada de „Kantuta‟ –  o nome vem da flor que cresce no altiplano andino e que tem as cores verde,amarelo e vermelho, as mesmas da bandeira da Bolí via”. In: CPM Além Fronteiras. 70 anos Imigração Boliviana emSão Paulo 1957-2007, pg.33.

A administração da feira é feita pela Associação Gastronômica Cultural e Folclórica Boliviana "Padre Bento", sendosustentada pelos próprios feirantes e por empresas ligadas, sobretudo, ao transporte Bolívia-Brasil”. In:http://www.brasilbolivia.com/praca_kantuta_br.htm (acesso junho 2010).

6A praça é ladeada por galpões industriais, um prédio de habitação social e alguns edifícios institucionais, de usorestrito. As moradias encontram-se deterioradas, conformando uma atmosfera urbana algo desoladora.

7 “Segundo a tradição, 24 de janeiro é dia em que se homenageia a deidade chamada  Ekeko, ou deus da abundância.Miniaturas de objetos que simbolizam o que se deseja alcançar devem ser adquiridas antes do meio-dia e depoisdeverão ser levadas ao Yatire (sacerdote andino), para que esse realize o ritual da ch'alla, uma libação à Pachamama (Mãe Terra), pedindo a ela que torne o desejo, ali simbolizado na alasita, em realidade” (Silva, 2006).

8 Para os imigrantes, agregar-se espacialmente é uma forma de facilitar o desempenho das atividades mais comuns docotidiano, a sobrevivência (física e cultural) e a defesa diante do desconhecido ou do hostil. Do ponto de vistahistórico e cultural na relação de diferentes grupos de imigrantes com a metrópole paulistana, tanto a colônia deimigrantes japoneses quanto a de italianos integraram-se à vida urbana. As marcas de sua prática espacial napaisagem foram incorporadas e valorizadas pelos mais variados segmentos da população. Em ambos os casos, forambem sucedidas as manifestações no espaço público que sua concentração espacial ensejou: os bairros do Brás eBexiga firmaram-se como vizinhanças “dos italianos” (até meados do século 20) e a Liberdade como o bairro “dos  japoneses” (estes, até o presente, embora hoje partilhem com chineses e coreanos). Nestes bairros, italianos e  japoneses conseguiram se afirmar culturalmente e imprimir suas marcas na paisagem, inclusive em termosarquitetônicos.

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condição econômico-social, pela situação de clandestinidade de muitos deles, e pelo

fato de se instalarem em bairros já plenamente consolidados, contribuiu não só para

estigmatizá-los, como ainda para inibir sua presença no espaço público e na paisagem

urbana. Quando programada, como no caso da Praça Kantuta, esta consiste numa

expressão efêmera e circunscrita a um espaço desconectado dos bairros em que

trabalham e residem.

Praça Kantuta: feira dominical Imagens: Vera Pallamin

A feira boliviana na praça Kantuta reúne atividades ligadas ao comércio local, à

cultura gastronômica - com pratos e produtos típicos - assim como alguns pequenos

serviços de baixo custo. Os preços são módicos, uma vez que circula pouca renda entre

seus clientes usuais. No centro da praça há uma quadra de esportes e em uma de suas

laterais acosta-se um pequeno palanque do qual provêm, esporadicamente, músicas,

cantos ou mensagens em espanhol; em datas comemorativas ali se apresentam grupos

folclóricos. Tudo se passa numa atmosfera uniforme e branda. Na gestão da feira, a„Associação Padre Bento‟ cuida e controla para que o comércio seja feito

exclusivamente por bolivianos, inclusive quanto aos ambulantes que circulam

oferecendo produtos.

Enquanto modo de espacialização coletiva, esta feira reorganiza

temporariamente a paisagem do lugar, em função de uma apropriação cultural específica

desses imigrantes. Ali se dá o convívio mais demorado entre amigos ou conhecidos, o

encontro entre os jovens, o espaço da música ou do torneio, em que certa conjunçãoentre grupo e identidade se exterioriza e toma lugar. A „narrativa‟ que ali se desenrola

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semanalmente, transfigurando espacial e simbolicamente a praça e suas ruas de acesso,

torna visível um modo transitório dos bolivianos praticarem a paisagem na cidade.

Neste cenário organiza-se um plano homogêneo de reconhecimento social entre

os pares, assim como o contato direto entre feições e fisionomias nativas familiares,

conformando-se uma atmosfera de empatia entre seus freqüentadores habituais. Nestas

circunstâncias, ocorre uma tática espacial singular que integra este modo efêmero e

específico de praticarem a paisagem: trata-se da organização de uma longa linha dupla

de bolivianos, que se estende pelo centro de uma das ruas de acesso lateral à praça, e

que tem por finalidade a troca de contatos para postos de trabalho. Tudo ali é feito de

modo muito cauteloso. Nas laterais desta rua, simultaneamente, também podem ser

vistos pequenos grupos de três ou quatro bolivianos; não há crianças por perto. Todos

conversam muito baixo e, em sua discrição, pode-se notar que trocam entre si pequenos

filetes brancos de papel. Os cuidados que se tem com a circulação destes papelotes são

evidentes, sendo tratados como pequenas relíquias. Se porventura um deles cai no chão,

é recolhido imediatamente, sendo mantidos bem seguros nas mãos, ou então guardados.

Neles circulam endereços, nomes e / ou telefones, de contatos prováveis para a obtenção

de serviços ou de recolocações. Cabe notar que nesta espacialização assim configurada,

neste espaço público, a mútua identificação entre os interessados e a fácil percepção

visual entre os que são, ou não, bolivianos, gera no grupo um grau de confiabilidade e

êxito entre os presentes, suficiente para a sua manutenção e reiteração semanal. Para os

bolivianos que participam deste procedimento, é pela prática do espaço e por meio do

contato direto entre os conterrâneos que se dá a troca dessas informações que lhes são

centrais, transmitidas ao mesmo tempo em tom de sigilo e de ajuda mútua.

A conjunção entre práticas regradas e espontâneas marca a apropriação dos

bolivianos da Praça Kantuta. À luz do entrelaçamento de memória, coletividade e

espacialidade, que é fundante para a acepção de prática da paisagem, desponta, nestascircunstâncias, um grau de sua efetuação sob caráter efêmero, porém cíclico, repetitivo,

permitindo certa consolidação de um hábito cultural, ainda que sem deixar traços

materiais impregnados na paisagem local.

III. Espaços da Cultura Oficial, no Memorial da América Latina. 

Uma segunda perspectiva em que incide a questão entre memória, espaço ecultura para o coletivo dos bolivianos em São Paulo, porém sob a condição de maior

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controle institucional, refere-se à sua inserção no quadro de eventos oficiais realizados

no Memorial da América Latina, em contraste material com suas condições concretas de

vida urbana.

Este Memorial, inaugurado em 1989, com projeto do arquiteto Oscar Niemeyer e

concepção cultural do antropólogo Darcy Ribeiro, tem por finalidade “a divulgação e o

intercâmbio da cultura brasileira e latino-americana, e sua integração às atividades

intelectuais do Estado”, assim como a “promoção de eventos culturais e artísticos com a

participação de personalidades brasileiras e latino-americanas.9 

Fonte: Memorial da América Latina

Esta iniciativa governamental de “celebração e elogio das culturas nacionais da

América Latina”, com apelo à cultura popular destes países, surgiu no Brasil num

período de transição política: o Memorial foi inaugurado no mesmo ano em que se

9 Conforme decreto estadual 30233, de 08 de agosto de 1989, instituindo a Fundação Memorial da América Latina.Logo após sua abertura, o Memorial foi adjetivado como ´grandioso, caro e controverso´, tendo em vista que a obra,feita sem licitação, custara aos cofres públicos cerca de US$ 48 milhões, dez vezes mais do que o valor estimado In:Memorial da América Latina 18 anos In:http://64.233.163.132/search?q=cache:8tRxVU0XZzcJ:www.sampa.art.br/historia/memorial/18anos/+memorial+da+america+latina+e+qu%C3%A9rcia&cd=2&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br (acesso junho de 2010). 

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realizaram as eleições diretas para a presidência da república, após vinte e um anos de

regime militar (1964-1985) e uma eleição indireta. O clima ideológico do período era de

abertura política e de reconstrução nacional, validada na promulgação de uma nova

Constituição Federal, em 1988.

O otimismo daquele momento rebateu-se na escala dimensional do Memorial:

suas instalações ocupam uma área de 84.480m2, em que boa parte dos seus espaços

livres é destinada a uma Praça Cívica com capacidade para reunir cerca de 30.000

pessoas, raramente ocupada nestes termos. Seu projeto de arquitetura denota a cultura

como monumento, perfazendo-se de um conjunto de edifícios em concreto branco e

vedos em vidro negro, em meio a um imenso piso impermeável, sem áreas verdes. Sua

linguagem estética e espacial dialoga mais com outros projetos de arquitetura de

Niemeyer do que de fato e, propriamente, com o contexto urbano em que se insere.10 

Na Praça Cívica, o arquiteto desenhou uma escultura em concreto armado de

sete metros de altura, na forma de uma mão aberta. Em sua palma está delineado um

mapa em vermelho da América Latina, como uma (áspera) alegoria ao sangue

escorrendo das lutas envolvendo a autonomia do continente e à ideia de que a América

Latina, durante sua história, tem sido a região das “veias abertas” (Galeano, 1978). 11 Na

base desta escultura encontra-se gravado o ideário do Memorial: ”O sentimento da

unidade latino-americana é o limiar de um novo tempo. O esforço da organização para

eliminar a opressão dos poderosos e construir um destino maior e mais justo é o

compromisso solene de todos nós”. 

Em suas atividades culturais, sendo o Memorial um local oficial de recepção,

toda cessão de uso de seus espaços, inclusive em relação à Praça Cívica, passa

forçosamente pelos trâmites da política interna da Fundação. Não é de se esperar,

portanto, apropriações espontâneas, tampouco manifestações programadas pelos

10 O Memorial da América Latina foi implantado em terrenos anteriormente ocupados por instalações ferroviárias,circundados por galpões industriais, vários deles hoje desativados, e por residências modestas. Concomitantemente àsua construção e vizinho a ele implantou-se, ao redor da estação de trem ali existente, um terminal intermodal,congregando trem, metrô e linhas de ônibus urbanos, interurbanos, interestaduais e internacionais, estas últimasservindo às ligações rodoviárias com a Bolívia.As duas obras - o Memorial e o terminal de transportes - marcaram o início das mudanças urbanísticas do tradicionalbairro fabril da Barra Funda, no final da década de 1980. Hoje esta região é parte da chamada ´Operação UrbanaÁgua Branca´, que consiste num polêmico conjunto de intervenções e medidas coordenadas pela prefeitura emconjunto com empreendedores privados, visando a valorização ambiental e imobiliária da área. Quando lançada, em1995, a Operação Urbana Água Branca foi considerada a ´quinta explosão imobiliária da cidade de São Paulo.

11  Em „As Veias Abertas da América Latina‟ o escritor uruguaio Eduardo Galeano afirmou: “A história dosubdesenvolvimento da América Latina integra a história do desenvolvimento do capitalismo mundial. Nossa derrotaesteve sempre implícita na vitória alheia, nossa riqueza gerou sempre a nossa pobreza para alimentar a prosperidadedos outros: os impérios e seus agentes nativos” (Galeano, 1978:6).

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usuários que não tenham sido previamente aprovadas. Inserindo-se neste quadro, a

comunidade boliviana residente em São Paulo tem ali realizado, anualmente, desde

2005, eventos de caráter oficial, como a comemoração da data nacional da Bolívia, no

dia 08 de agosto, e encontros de caráter cívico e religioso, comumente organizados pela

Associação Cultural de Grupos e Conjuntos Folclóricos Bolívia-Brasil, que conta com o

apoio da igreja, na figura da Pastoral do Imigrante.

Nos últimos anos, os contatos oficiais entre Brasil e Bolívia intermediados pelo

Memorial estenderam-se para além destas prerrogativas iniciais e das atividades de

caráter cultural celebrativo. Por meio de um acordo firmado com o Consulado Geral da

Bolívia em São Paulo, o Centro de Recepção do Memorial12 passou a ser utilizado como

local para regularização da documentação de seus imigrantes.13 Além disso, durante as

eleições presidenciais na Bolívia no final de 2009, serviu também como local de

votação de todos os bolivianos que moram na capital, configurando-se como

significativa referência urbana para esta coletividade.

IV. Espaços nascentes: uma paisagem em formação

Diferenciando-se destes modos rarefeitos ou transitórios de prática da paisagem,

podem-se observar, recentemente, indícios de formação de um novo núcleo social de

agregação, em que a presença dos bolivianos assume novos termos: são alguns

pequenos negócios – restaurantes, lan house, cabeleireiros e vendinhas  – que têm sido

por eles administrados ou voltados à sua coletividade, e que vêm se concentrando todos

na Rua Coimbra, no bairro do Brás. Trata-se de uma rua tranqüila, de apenas cinco

quadras, e paralela à principal avenida do bairro. Suas construções não passam de dois

andares e só excepcionalmente encontram-se edifícios com quatro pavimentos.Caracteriza-se por residências (sobrados e vilas), comércio e serviços locais

(frequentemente ocupando o térreo ou o compartimento frontal das residências) e

indústrias, algumas delas desativadas.

12 Pequeno edifício cilíndrico situado na entrada do conjunto – n.2, na ilustração.13 Trata-se do „Programa de Documentação ao Cidadão Boliviano no Brasil‟, que tem ocorrido a cada ano, duranteum período de três meses, nesta localidade.

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Rua

Coimbra : Imagens: Vladimir Bartalini.

Ali é fácil notar o que tem sido chamada a “pequena Bolívia”, concentrada em

duas quadras. Nada é ostensivo; somente alguns elementos visuais se destacam na

paisagem, mas são suficientes para ali indicar a presença afirmativa dos bolivianos. Os

indícios consistem em anúncios fixados nas fachadas das construções, em toldos

retráteis ou em totens e banners dispostos na calçada;14 eles se sobressaem pela

excepcionalidade, uma vez que são os únicos da rua e escritos em espanhol. Além disso,

em alguns casos, verifica-se um acúmulo de pequenos anúncios num mesmo imóvel, o

que contribui para a formação deste embrião de uma paisagem urbana específica desta

coletividade. Quando das eleições presidenciais na Bolívia em 2009, um grande cartaz

de propaganda eleitoral marcou a identificação desta área. Essa atmosfera, em seu

conjunto tanto visual quanto de usuários, tem levado os bolivianos freqüentadores desta

rua a afirmarem: “Isto aqui virou um pedaço da Bolívia”.15 O ritmo desta rua se altera nos fins de semana pelo considerável número de

bolivianos que para ali têm se dirigido aos sábados e domingos, quando liberados das

longas jornadas de trabalho. Tem se mostrado como um espaço de encontro e de

afirmação social alternativo à feira da Praça Kantuta. Uma diferença, contudo, refere-se

ao fato de que sua presença neste lugar nasceu, pode-se dizer, mais naturalmente, sem

14 Desde 2007 está em vigor em São Paulo a “Lei da Cidade Limpa”, que controla a colocação, dimensões e o númerode anúncios indicativos ou publicitários expostos no espaço público. Como conseqüência houve uma sensível reduçãona quantidade de anúncios na cidade.15 Citado no jornal O Estado de São Paulo, Caderno Cidades / Metrópole, pg C5, em 23/11/2009. 

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apoio institucional e sem autorização prévia, mostrando-se como manifestação de uma

força vital que se exprime nas atividades cotidianas mais prosaicas.

A tranqüilidade que se observa na Rua Coimbra nos dias de semana é a de um

espaço familiar. Sobre este aspecto da familiaridade na paisagem, o filósofo Alain

Roger (1999) emprega um jogo de palavras na língua francesa, que é muito sugestivo e

se presta bem a indicar uma das suas mais importantes condições: o conforto de nos

reconhecermos na paisagem. Trata-se, ele diz, de se ler a palavra ´paysage´ (paisagem)

como a junção de “pays” (país, lugar), e “sage” (razoável, sensato, não belicoso). Este

sentido assemelha-se ao que se encontra nesta rua. A serenidade que marca a paisagem

deste “pedaço da Bolívia” contrasta fortemente com a agitação diurna das ruas das

confecções e das lojas de roupas com as quais os bolivianos mantêm laços de trabalho

fortemente alienado. Contrasta também com a desolação durante a semana, das ruas em

torno da Praça Kantuta. E contrasta ainda, com o ar solene e controlado dos espaços do

Memorial da América Latina e seus arredores. Na Rua Coimbra é possível travar uma

conversa descontraída com bolivianos. Nessas conversas, apesar deles se ressentirem da

violência urbana da grande metrópole  – por eles contraposta à maior tranqüilidade dos

seus locais de origem -, de se queixarem dos preconceitos e agressões a que estão

sujeitos em São Paulo, mostram-se mais abertos, passando a impressão de que ali,

naquela pequena vizinhança, sentem-se “mais à vontade, mais em casa”. 

IV. Considerações finais

Em São Paulo os bolivianos encontram-se em meio a uma sociedade

multicultural, em que se defrontam com marcadas clivagens sociais. As questões

referentes às suas relações de trabalho subordinam as demais ligadas aos seus hábitos

sociais e culturais, acarretando dinâmicas distintas nas relações de alteridade de suacoletividade, e no modo como exercem suas práticas espaciais e se inscrevem na

paisagem urbana. Por um lado, se considerados à luz de como se inserem na cadeia

produtiva da metrópole, tornam-se componentes indiferenciados, enquanto mão de obra

de baixíssimo custo, dissolvendo-se nas águas do sistema, sem resistência. Por outro

lado, se observada a dialética entre identidade e diferença, em que se apóia o

movimento de hibridação cultural, esta se mostra em distintas graduações nas práticas

que eles desenvolvem nos espaços urbanos. O caso da Rua Coimbra revela-se comouma „ paisagem liminar ’  da coletividade boliviana em São Paulo, que poderá, talvez, se

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adensar e se consolidar, conforme o andamento dos modos de reciprocidade social que

ali venham a ocorrer. Em seu estágio atual esboçam-se nesta rua os primeiros passos de

uma partilha cultural da paisagem, de caráter permanente, em que convivem registros

paulistanos e bolivianos. Há ali a demarcação de um âmbito de reconhecimento, em que

relações de alteridade boliviana se matizam sob referências sígnicas, lingüísticas e

visuais de ordem específica. O que ali se vê, em estado nascente, é a validação de uma

heterogeneidade sócio-espacial em que o existente desdobra-se em novas camadas de

sobreposição de signos e de práticas espaciais, os quais indiciam uma outra maneira dos

bolivianos praticarem a paisagem na metrópole, apenas em potência até então,

revalorizando sua intervenção na relação entre espaço e cultura.

Em seu conjunto de atuações, nota-se nos bolivianos em São Paulo, de maneira

exemplar e contextualizada, diferentes formas com que uma mesma coletividade pode

praticar a paisagem, que podem se dar de maneira efetiva e contínua, temporária e

esporádica, ou tornando-a praticamente inexistente. 

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