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    UM LUGAR PARA CHAMAR DE MEU! QUALIDADE URBANA EAPREENSÃO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS NO IMAGINÁRIO

    AMAZÔNICOLucas Cândido (1) Ana Claúdia D. Cardoso (2) Luna Bibas (3)

    (1) Laboratório Cidades na Amazônia, FAU/UFPA, Brasil. Email: [email protected]

    (2) Laboratório Cidades na Amazônia, FAU/UFPA, Brasil. E-mail: [email protected]

    (3) Laboratório Cidades na Amazônia, FAU/UFPA, Brasil. E-mail: [email protected]

    Resumo : O presente texto recupera da literatura de desenho urbano conceitos de imagem dacidade, sentido, adequação e construção do lugar para discutir a relação entre sociedade e espaços públicos dentro do ambiente amazônico. Objetiva-se aqui, partindo da definição de qualidade urbana eda escala do indivíduo, ilustrar as consequências do padrão de expansão urbana observado na cidade deCanaã dos Carajás, escolhida como área de pesquisa, sobre a apreensão dos seus espaços públicos.Concluiu-se, após entrevistas realizadas com moradores da cidade, que o paradigma vigente tende aassumir a cidade como suporte para a exploração mineral em detrimento de outras funções necessáriasao bem-estar da população. A cidade teve crescimento extraordinário na presente década, com rápidaexpansão da mancha urbana e grande escassez de espaços públicos. Existem diferentes percepções dacidade entre pioneiros e novos migrantes, e a imposição de padrões homogeneizantes, que destroemelementos da paisagem e desconstroem a dimensão pública da cidade, a ponto de colocar em risco sua sobrevivência para além dos ciclos de mineração.

    Palavras-chave : espaços públicos; construção do lugar; cidades amazônicas; qualidade urbana.

    Abstract : This paper brings from urban design literature concepts like image of the city, sense, fitand perception of the place to discuss the relationship between society and public spaces within the Amazon environment. This work aims, through the definition of urban quality and from the individual scale, illustrate the consequences of urban sprawl pattern observed in the town of Canaã dos Carajás,

    chosen as area of study, on the apprehension of its public spaces. As a conclusion, after interviews withresidents of the city, we found out that the current paradigm tends to take the city as support for mineral

    exploration at the expense of other functions necessary to the welfare of the population. The city has hadtremendous growth in this decade, with rapid expansion of the urban area and a dearth of public spaces.There are different perceptions of the city between pioneers and new migrants, and the imposition ofhomogenizing patterns that destroy landscape elements and deconstruct the public dimension of the city,to the point of endangering their survival beyond the mining cycles

    Key-words : public spaces; attachment to place; Amazon cities; urban quality.

    1.  INTRODUÇÃO

    As mudanças que hoje ocorrem dentro do ambiente amazônico paraense carregam ainda fortes resquíciosdas intervenções feitas na região pelo Estado desenvolvimentista da década de 1960. A implantação degrandes projetos madeireiros, agropecuários e de exploração mineral, a expansão das redes de informaçãoe a introdução de um novo padrão de conexão baseado no modal rodoviário, alteraram fortemente adinâmica regional (BECKER, 1990), constituindo novos centros regionais, tais como Marabá e Santarém,assim como promovendo o crescimento extraordinário de pequenos núcleos como Canaã dos Carajás, que passaram a ser comandados pelo mercado global, em virtude da exploração de minério em seu território.

    O município de Canaã dos Carajás, localizado no sudeste paraense originou-se do desmembramento domunicípio vizinho, Parauapebas, em 1994. A ocupação do território canaãnense teve início ainda nadécada de 1970, mas foi somente com a implantação de um projeto de colonização agrícola na década de1980 que essa ocupação se intensificou. Apenas três anos após o início do projeto, o órgão responsável  –  

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    o Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins (GETAT)  –   foi extinto, deixando de atendercentenas de famílias já instaladas no local, que sem saída, se viram obrigadas a abandonar ou vender suasterras para produtores mais capitalizados.

    Após esse período, o município vivenciou outros ciclos econômicos (madeira, pecuária), mas a chegadados projetos de extração da mineradora Vale S.A. foi o estopim para o boom de crescimento pelo qualCanaã dos Carajás passa atualmente. O grande fluxo de investimentos destinado à implantação de novamina de ferro, em curto espaço de tempo, demandou mais de 20 mil trabalhadores homens, e atraiu outroscontingentes populacionais não absorvidos pela economia formal, que já formaram núcleos deinformalidade nas áreas ambientalmente vulneráveis da cidade. Além disso, a lógica especulativa domercado imobiliário impôs uma expansão precoce do perímetro e da mancha urbana, na busca de lucros pela conversão de terra rural em terra urbana, com decorrente ampliação da desigualdade social eintensificação de processos de degradação ambiental (BANDEIRA, 2014).O crescimento da cidade guiado por bases capitalistas tende a negligenciar a dimensão pública da cidadee a importância dos espaços públicos1 na produção do espaço urbano de Canaã dos Carajás. A tendência àtransformação da cidade em suporte às atividades de produção desconsidera as necessidades de

    segmentos da população, invisibiliza atores tradicionais e oblitera a escala humana. Na área urbana háevidência de insatisfação tanto em relação à quantidade como à qualidade desses espaços, evidenciandoum processo de “desenvolvimento urbano” que relega a relação entre sociedade e cidade a segundo plano.É objetivo deste texto, portanto, ilustrar aspectos do padrão de crescimento observado na cidade de Canaãdos Carajás e seus impactos na qualidade dos espaços públicos, a partir de uma abordagem qualitativa deinvestigação baseada em entrevistas e produção de mapas mentais por moradores ou grupos de moradorescom tempos distintos de vivência na cidade. A partir dos depoimentos obtidos foi possível construir um panorama acerca das relações que permeiam a vivência desse urbano e apresentar alternativas à repetiçãode padrões exógenos como único caminho de desenvolvimento possível, buscando-se assim contribuir para a discussão acerca das transformações em curso em cidades amazônicas.

    2.  A IMAGEM DA CIDADE E A QUALIDADE URBANA

    A qualidade urbana pode ser medida por meio de índices, dados oficiais ou elementos numéricos, e o éem grande parte das vezes, visto que a precisão deste tipo de informações seduz os planejadores, quetendem a priorizar quantidade sobre qualidade (LYNCH, 1980), e quando se entende a prevalência dovalor político2  dos espaços públicos ao seu valor funcional (disponibilidade, características,dimensionamento), é fácil compreender porque a efetividade prática (uso cotidiano) e a apropriaçãosentimental destes espaços parecem ser pontos invisíveis às práticas de gestão. Por esse motivo, estetrabalho assume qualidade urbana como “uma união entre a mente e o cenário envolvente” (LYNCH,1981:141), ou seja, algo que permeia o campo do imaginário, da cidade que habita a mente de seusmoradores, e que utilize a adequação comportamental e sentimental, ao invés de se utilizar de dados

    numéricos, como forma de distinguir um bom lugar.Para fins de entendimento deste artigo, é mister que se compreenda cidade não apenas como a formafísica do aglomerado populacional, mas também como essa configuração espacial se articula comconceitos e valores não espaciais. O fruto que emerge dessa interação é a imagem da cidade, o conjuntode percepções mentais do meio físico. Segundo Lynch (1980), esta imagem pode ser analisada a partir detrês componentes: i) identidade, entendida aqui como individualidade; ii) estrutura, que envolve a relaçãoestrutural ou espacial entre objeto e observador; e iii) significado, quer prático ou emocional, entre as partes envolvidas.A partir disso, consideramos aqui que existem ligações simbólicas entre o ambiente de uma pessoa e suascrenças essenciais, e que “a segurança e a profundidade destas associações simbólicas enriquecem a sua

    1 Neste texto são assumidos como “espaços públicos” quaisquer espaços de uso coletivo que tenham sofrido algumtipo de apropriação, extrapolando a definição jurídica.2 Entende-se aqui “valor político” como a utilização da provisão destes espaços como moeda de barganha dosgovernantes em benefício próprio para conseguir votos mais que atender efetivamente a população. 

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    vida” (LYNCH, 1981:137). Portanto, a apropriação mental do espaço é característica indispensável para aconcepção da ideia de bem-estar no imaginário urbano. A sobrevivência dos espaços públicos e, porconseguinte, das cidades, dependem, portanto, da manutenção destes três pontos apontados por Lynch, ou

    em outras palavras, de uma boa imagem da cidade.Posto isso, um bom lugar seria “aquele que, de algum modo adequado à pessoa e à cultura, conseguetornar essa pessoa consciente da sua comunidade” (LYNCH, 1981:137), ou seja, um espaço capaz deconstruir um senso de coletividade. Trata-se de uma relação simbiótica entre espaço e população: ao passo que o primeiro necessita de uma estrutura, ou de uma relação de usabilidade para se manterefetivamente funcional e ativo, a população também necessita de espaços públicos de qualidade (e aquirefere-se à qualidade projetual e executiva) para criar um senso de pertencimento, ou uma identidade,com estes espaços; o resultado dessa simbiose seria um espaço dotado de  significado tanto prático quantoemocional.A despeito disso, a subversão destes valores é materializada em quase todas as cidades brasileiras pormeio de projetos que, ainda carregados pelo caráter compartimentador do urbanismo do século passado,insistem na criação de espaços monovalentes, diminuindo a vitalidade do ambiente urbano e, por

    consequência, sua segurança, que depende sobretudo da intensidade de uso e da presença de pessoas nasruas (BORJA, 2003; JACOBS, 2011). A ausência de segurança urbana, por sua vez, converte estes locais,ainda que concebidos para uso público e coletivo, em espaços marginalizados, acelerando suadegradação, já que por falta de uso não existe uma demanda expressiva por manutenção por parte da população frente aos órgãos responsáveis, resultando, por fim, na morte destes lugares.Fala-se aqui, portanto, da perda da urbanidade, tida como “a qualificação vinculada à dinâmica dasexperiências conferidas às pessoas pelo uso que fazem do ambiente urbano público” (CASTELLO, 2007:29). Neste contexto, a qualidade urbana ultrapassa a simples qualidade tátil das infraestruturas da cidade para habitar o campo das ideias, das sensações e da capacidade de intercâmbio e comunicação dosespaços em oferecer pluralidade de usos. E ora, se temos o espaço público como um indicador dequalidade urbana e instrumento das políticas urbanísticas para se construir a cidade, menosprezar suaqualidade, sua beleza, sua adequação, aos gostos e aspirações dos diferentes setores da população ésimplesmente deixar de lado as pessoas e contribuir aos processos de exclusão (BORJA, 2003).Admite-se, então, a existência de um nível de ligação muito mais profundo, que ultrapassa a evidentecorrespondência física que se estabelece entre espaço e as pessoas, e que cria um sentido de lugar  para osespaços. Fala-se, portanto, da identidade de um lugar, que está intimamente ligada a identidade pessoal(LYNCH, 1981), e da capacidade que os indivíduos possuem de distinguir esses lugares dentro do espaço.Capacidade esta da qual frequentemente nem se é consciente, mas que qualifica o espaço à medida emque este adquire definição e significado, a partir do momento em que este passa a ser apercebido pela população por instigar experiências humanas através da apreensão de estímulos ambientais (TUAN, 2013;CASTELLO, 2007).A construção da ideia de lugar depende, por sua vez, da capacidade que a cidade tem de dialogar comseus habitantes, ou em outras palavras, da imagem desta cidade, materializada por meio dos seus diversos

    elementos: bairros, ruas, limites, marcos e cruzamentos (LYNCH, 1980), conforme será observado noestudo de caso realizado em Canaã dos Carajás. Busca-se ilustrar aqui a cidade lacônica, aquela semlugares de representação da sociedade e sem espaços de expressão popular coletiva, que tende à anomia efavorece processos de exclusão (BORJA, 2003); “a cidade sem estética não é ética” (ibid, 2013:28,tradução do autor). A percepção é o que suscita uma “reação sensual”, é o que estimula nossos sentidos ecria uma cidade desejável.Portanto, “fazer cidade é estabelecer um espaço de relações, é construir lugares significantes da vida emcomum” (BORJA, 2003:26, tradução do autor) e, por isso, é imperativo nesse momento em que ourbanismo contemporâneo parece render-se aos valores do capital, nos tempos dos arquitetos estrelas edos grandes projetos que se vendem através de elaborados renders  e maquetes eletrônicas, que o planejamento urbano fuja de receitas prontas e passe a olhar para a relação usuário-espaço como condição sine qua non para a boa gestão do processo de construção das cidades.

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    3.  A CRISE DOS ESPAÇOS PÚBLICOS: O CONTEXTO DE CANAÃ DOS CARAJÁS

    O século XX conduziu ao estopim da crise dos espaços públicos urbanos. Até a eclosão da Segunda

    Guerra Mundial, as cidades eram tidas apenas como locus de acumulação do capital e, por isso, processossociais e econômicos das comunidades e do indivíduo foram continuamente menosprezados (DEL RIO,1990). A partir de então a tarefa de reconstruir as cidades foi assumida pelo urbanismo contemporâneo,herdeiro do movimento modernista. As urgências sociais difundiram uma proposta urbanísticaextremamente funcional, que acabou exercendo papel mais fragmentador que integrador, e que, junto ao processo de compartimentação dos órgãos técnicos, findou por transformar os espaços públicos em merosespaços residuais (BORJA, 2003).A globalização, o fortalecimento da propriedade privada e a ocupação dos espaços de circulação pelosautomóveis aceleraram esse processo. E se, segundo Borja (2003), “o espaço público [...] é onde semanifesta, com maior força e maior frequência, a crise de ‘cidade’ e ‘urbanidade’. Portanto, é um pontosensível para atuar se se pretende impulsionar políticas de ‘fazer cidade na cidade’”  (2013:129, traduçãodo autor), as tentativas de salvá-lo reforçaram sua tendência a especialização excessiva, materializada em

    espaços segregados e monovalentes.Borja (2003) também observa que essas pressões sobre a cidade atual produzem um triplo processonegativo: dissolução, fragmentação e privatização. Primeiramente, a dissolução do tecido urbano peloespargimento de uma urbanização desigual e dispersa, assim como o enfraquecimento ou especializaçãodos centros. A fragmentação do tecido urbano e social por meio de diretrizes funcionalistas quecombinam a voracidade do capitalismo com a lógica setorial das administrações públicas, fomentando a produção de elementos dispersos e monovalentes. E, por fim, a privatização dos espaços urbanos,consubstanciado na formação de guetos e na substituição de ruas, praças e mercados (ibid, 2003).Tais processos se materializaram de forma mais evidente no contexto amazônico, onde a intensaurbanização sob a lógica industrial não foi acompanhada de investimentos e provisão de habitação einfraestrutura ou do aperfeiçoamento de estratégias de gestão urbanística. No âmbito do ambiente intra-urbano, isso se reflete a partir da constituição de dois polos nas cidades: um informal, historicamenteocupado pelas populações de baixa renda, onde as ações do poder público são pontuais ou insuficientes; eum polo formal, com espaços criados pelo mercado imobiliário, com bairros planejados, condomínios deluxo e loteamentos urbanizados.Se os espaços públicos “indicam a qualidade de vida das pessoas e a qualidade da cidadania   de seushabitantes” (BORJA, 2003: 135, tradução própria), observa-se que a qualidade das cidades não é tidacomo norte do processo de produção do espaço urbano em cidades amazônicas, e a exemplo da cidademoderna, que peca pela opacidade, impessoalidade e falta de proximidade (LYNCH, 1981), a cidade pós-moderna tem seus espaços de referência substituídos pelos espaços de consumo (BORJA, 2003).Perde-se, portanto, o sentido das cidades como lugar de apropriação coletiva, de relações comunitárias eespaço de convivências; rompem-se os elos afetivos com a cidade, que sobrevive quase queexclusivamente de vínculos funcionais com seus habitantes. E se nos grandes centros o desenvolvimento

    desse tipo de processo se faz nocivo, seu avanço sobre um ambiente de fronteira econômica como aAmazônia negligencia não somente processos sociais, mas também se reflete diretamente na degradaçãodo meio natural e na dependência econômica de uma única atividade.

    3.1  Percepções e vivências: a perspectiva da escala humana

    Segundo dados do Censo 2000 (IBGE), as pequenas e médias cidades amazônicas detêm 70% da população regional e isso se deve, em grande parte, ao padrão de dispersão que antecedeu a integração daAmazônia ao país e às políticas de desenvolvimento implantadas pelo Estado desenvolvimentista nadécada de 1960. A conformação do território do município de Canaã dos Carajás, objeto de estudo destetexto, é herdeira desse processo somado à recente exploração mineral.

    O município em questão se localiza no sudeste paraense (Figura 1) e conta, além da sede municipal, comseis vilas rurais e uma grande área contida na FLONA Carajás (Figura 2). A região, que desde a décadade 1970 está inserida na área do Projeto Grande Carajás, foi inicialmente local de produção de alimentos

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    (agricultura), depois atravessou um ciclo de pecuária, até que a partir dos anos 2000 se conformou comoárea de exploração mineral, inicialmente de cobre e mais recentemente da maior jazia de ferro a céuaberto do mundo.

    FIGURA 1 –  Localização do município. Fonte: pt.wikipedia.org

    FIGURA 2 –  Configuração das vilas rurais e projetos de mineração. Fonte: Diagonal Urbana. Adaptação: LucasCândido

    Os assentamentos rurais deram lugar à pecuária extensiva, viabilizada pela compra e posse ilegal de terrasabandonadas ou vendidas pelos assentados que não conseguiram sobreviver sem o auxílio público(BANDEIRA, 2014), iniciando um processo de concentração de terras que hoje se desdobra na grandeoferta de terra pelos proprietários fundiários e grileiros da região para loteamentos dentro e fora da sedemunicipal (Figura 3).

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    FIGURA 3 –  Mapa de evolução urbana.

    O presente texto explora o impacto desses processos socioeconômicos na vida cotidiana e no espaçofísico da cidade de Canaã dos Carajás, a fim de investigar a relação habitante-espaço, com foco nos

    modos de apreensão dos espaços públicos. Para isto, foram realizadas entrevistas com dezesseismoradores da cidade, com idades entre 12 e 55 anos, escolhidos por critério geográfico (local de moradia)e tempo de moradia na cidade. Dentre os entrevistados, nove residiam no bairro Centro, núcleo desurgimento da cidade, e os demais em diferentes porções da cidade. A entrevista se estruturou em trêsdiferentes seções e identificou três grupos populacionais diferentes.

    TABELA 1 –  Resumo da estrutura da entrevista.

    Estruturada

    Entrevista

    Seção01

    Coleta de dadosgerais dosentrevistados.

    Grupos deEntrevistados

    Grupo 01:Pioneiros

    Residem na cidade desde suafundação e viram todas as fases deseu crescimento.

    Seção02

    Perguntasrelativas à

     percepção doambienteurbano edesenho demapas mentais.

    Grupo 02: Novasfamílias migrantes

    Migraram em função do fluxo de

    investimentos na esperança deuma melhor qualidade de vida, e

     pretendem continuar residindo nacidade após o pico dos projetos.

    Seção03

    Quadro deidentificação defotos da cidade.

    Grupo 03:Trabalhadorestemporários

    Representam a populaçãoflutuante da cidade e pretendem semudar quando da estagnação dosinvestimentos.

    Elaboração: Lucas Cândido

    O primeiro fato que surpreende é que nenhum dos entrevistados era natural do município, confirmando

    que a fase de implantação do projeto de mineração apresenta forte poder de atração populacional para omunicípio. Outra constatação viabilizada pela consolidação dos dados da Seção 01 foi de que quanto mais

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    longo o tempo de vivência na cidade, maior era o senso de pertencimento e a percepção de Canaã dosCarajás como um lugar por parte do entrevistado.A percepção da cidade é frequentemente associada ao significado do seu nome; o primeiro ponto

    mencionado pela maioria dos entrevistados foi o potencial para melhorar oportunidades de vida. Osignificado bíblico da palavra Canaã dos Carajás foi repetidamente utilizado para resumir a ideia expressa pelo nome da cidade: “cidade de leite e mel”, “cidade abençoada”, “cidade prometida”, revelando queante o espaço físico, paira a idealização de um local próspero no imaginário do migrante.Tal paradigma foi extrapolado para a nomenclatura dos loteamentos: Vale dos Sonhos, Nova Canaã, Valeda Benção etc, que, frente a incapacidade do setor público em formalizar a setorização da cidade, foramassumidos historicamente como bairros, mesmo que em nada se assemelhem às porções mentalmente penetráveis da cidade, com continuidades temáticas, centralidade e conotações sociais adotadas naconceituação de bairros oferecida nos estudos de Lynch (1982). Como resultado, 87,50% dosentrevistados não souberam identificar os limites do bairro/loteamento em que moram.Essa problemática se apresenta como um desdobramento da lógica especulativa de expansão da cidade,que, capitaneada pelo setor privado, que resultou em uma malha urbana desconexa e descontínua, uma

    verdadeira colcha de retalhos, dificultando a articulação entre as diferentes porções da cidade e aformação de novas centralidades, criando, assim, espaços monovalentes que não contribuem para aconstrução de uma imagem coletiva do espaço urbano. A conformação da cidade nos moldes atuaisdificulta a leitura dos seus espaços, apesar da necessidade lógica de que as ruas de uma cidade sejam tantoidentificáveis como tenham continuidade (LYNCH, 1980).Esses diferentes processos contribuem para a problemática daquele que é o primeiro ponto de contatoentre pessoas e o espaço público: as ruas. O dimensionamento destes espaços não levou em consideraçãoos diferentes níveis de uso, concebendo-se espaços homogêneos e monótonos, marcados pela falta devitalidade. A má qualidade física das calçadas, a falta de acessibilidade, a ausência de arborizaçãoadequada e a inexistência de espaços de circulação para ciclistas (figuras 4, 5, 6 e 7) criou a ideia de ruascomo locais inseguros, coibindo a experiência da cidade pelo andar, e transformando-as em merosespaços de passagem de veículos motorizados. Essa dinâmica incentiva o uso destes veículos até para astarefas do cotidiano (ir à feira, comprar pão etc), dificultando ainda mais a leitura da imagem da cidade.

    FIGURAS 4, 5, 6 e 7 –  A ausência de infraestrutura física adequada dificulta a leitura da cidade. Fonte:Levantamento de campo, 2015.

     Neste sentido, quando indagados acerca dos principais pontos marcantes da cidade, 37,50% dosentrevistados apontaram o conjunto da Av. Weyne Cavalcante, principal via da cidade, como ponto dereferência mais relevante, e outros 31,25% afirmaram não possuir nenhum espaço público como pontoreferencial. Contrapondo-se ao número de entrevistados (68,75%) que utilizam espaços privados ou semi- privados –  escolas, supermercados, igrejas –  para distinguir as proximidades das suas residências, pode-seaferir que existe uma lacuna quantitativa e tipológica de espaços públicos para o atendimento mínimo dosdiferentes perfis populacionais. A síntese dos mapas mentais desenhados nas entrevistas (Imagem 3)ilustra perfeitamente essa situação.

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    FIGURA 8 –  Mapa síntese dos mapas mentais desenhados pela população. Fonte: Levantamento de campo, 2015.Elaboração: Lucas Cândido.

    Em verdade, a carência de espaços públicos de lazer foi um ponto indicado por 100% dos entrevistadosque, nas suas horas livres, permanecem em casa, frequentam bares ou restaurantes, viajam para sítios efazenda próprios ou até mesmo se deslocam até o município vizinho de Parauapebas em busca demelhores opções de lazer. Esses dados demonstram que as possibilidades existentes, como lagos e áreasverdes da cidade (figura 9), são invisibilizadas pela falta de infraestrutura de apoio e transporte público,mas também pelo subjugo das práticas tradicionais aos novos padrões de consumo capitalistas, expressos pela concepção de espaços privados e de consumo como locais de sociabilidade.

    FIGURA 9 –  Mapa de possibilidades paisagística existentes no perímetro urbano. Elaboração: autores.

    Os novos padrões de uso dos poucos espaços públicos existentes, como a Praça da Bíblia na Av. WeyneCavalcante, têm sofrido degradação em função do perfil dos novos migrantes (homens e jovens),transformando-se em local de prostituição e venda de drogas, aspectos que contribuíram para a expulsãodos demais segmentos da população que faziam uso destas áreas.Quando perguntado aos entrevistados em que tipo de contexto ele preferiria morar (cidade grande,

    subúrbio, cidade pequena, fazenda/área rural), 56,26% demonstraram interesse por cidades de pequeno porte e 31,25% mostraram preferência por áreas naturais, o que indica que o processo atual decrescimento urbano, baseado na conversão de solo rural em urbano e no esgarçamento do tecido da cidade

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    visando o lucro máximo, segue na contramão dessas expectativas. O resultado é uma cidade onde 40%das áreas atualmente loteadas encontram-se desocupados (figuras 10 e 11), realçando o aspectoespeculativo, e promovendo um distanciamento entre os anseios da população e o plano real, o que agrava

    a situação de passagem e a expectativa de migração para outros municípios após a conclusão do cicloeconômico atual.Tal efemeridade socioespacial é nociva para a apreensão dos espaços e constituição de uma noção delugar, visto que “lugar é qualquer objeto estável que   capta nossa atenção” (TUAN, 2013: 179). A permanência se constrói, então, como ideia importante dentro do processo de construção de espaçossignificativos, visto que o comportamento habitual pode valorizar as características de um local,consolidando expectativas de ação e reduzindo incertezas e conflitos, atuando como um componente da boa adequação (TUAN, 2013; LYNCH, 1981), questão que parece estar sendo sobreposta pelos interessesdo capital.

    FIGURAS 10 e 11 –  Relação perímetro urbano x mancha urbana e relação mancha urbana x áreas deocupação rarefeita. Elaboração: autores.

    Os dados coletados também ressaltam a existência de uma forte vinculação com o meio natural - principalmente no grupo de moradores pioneiros da cidade - que parece estar sendo obliterada pela gestãourbanística da cidade. A ineficiência no controle do uso e ocupação do solo favorece a superconcentraçãoda oferta de serviços e comércio, que por sua vez, influi diretamente na valorização dos imóveis eaumento dos aluguéis, contribuindo para a formação de assentamentos informais, historicamente posicionados em áreas de difícil acesso. Estas áreas são caracterizadas pela vulnerabilidade ambiental,tais como ocupação de morros e de áreas alagáveis, que contribuem para a degradação da natureza(figuras 11, 12 e 13), assim como para o enfraquecimento do senso de pertencimento desse segmento da população à cidade. Como resultado no plano físico, têm-se áreas com importante potencial paisagísticodentro do ambiente urbano invisibilizadas por práticas especulativas, dificilmente identificadas nasentrevistas, e normalmente associadas à pobreza e degradação, destituindo ainda mais a imagem dacidade de Canaã dos Carajás de valor afetivo.

    FIGURAS 11, 12 e 13 –  A degradação do meio ambiente decorrente da expansão excessiva da cidade. Fonte:

    Levantamento de campoo, 2015.

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    4.  CONCLUSÃO

    Embora o estudo de percepção ambiental realizado refira-se a um contexto diferenciado pela condição de

    fronteira de exploração de recursos naturais, e não contenha questões urbanísticas clássicas, dada aformação recente e dificuldade de gestão urbanística e ambiental local, agravadas pela forte pressãoespeculativa, o público para qual se intenta produzir cidades, as pessoas, permanece negligenciado, faceao protagonismo das práticas de apoio à produção e ampliação de lucro. Neste sentido, há inegável benefício em tentar se adaptar esse arcabouço de experiências e métodos exógenos à realidade amazônica,visto que podem ilustrar possibilidades de conciliação entre funções naturais e necessidades humanas,superando a visão de único caminho possível para o desenvolvimento das cidades. No panorama apresentado ao longo do presente trabalho, deixa claro que coexistem dentro da cidade deCanaã dos Carajás uma diversidade de expectativas a serem atendidas, materializadas através dosdiferentes atores que utilizam a cidade. Entretanto, a dinâmica especulativa que orienta o crescimentotende a acirrar as disputas territoriais e expelir sempre os mais fracos, ou segmentos vinculados às velhas práticas (agricultura, produção rural), com forte impacto sobre as formas de apreensão dos espaços

     públicos.Conclui-se, portanto, que as condições de habitação (no sentido amplo) e convivência não estão sendofavorecidas na cidade, e que a lógica de mercado tem construído uma cidade homogênea e monovalente,onde a função trabalho vem sendo priorizada e onde a própria essência do que deva ser uma cidade, umespaço de múltiplas funções e que se articula com seu entorno de maneira inclusiva, tem sido obliterada.O produto disto é a escassez e péssima qualidade dos espaços públicos, além do descaso com a questãoambiental, manifestada na ausência de áreas de lazer e invisibilização de seus potenciais paisagísticos. Talsituação compromete a apreensão da cidade como um lugar por meio de sua dimensão pública, de seusespaços de uso comum, em função da superficialidade do relacionamento da população com tais espaços,e negligência do valor afetivo, essencial para a sua sobrevivência.Por fim, entende-se que existe uma dificuldade de se construir uma noção efetiva de lugar em ambientessujeitos a grandes impactos socioambientais como é o caso de Canaã dos Carajás. É posto então, comodesafio ao poder público, um maior controle destes processos que tem subjugado a natureza e ascomunidades tradicionais e premiado a especulação e o ganho de poucos, com intuito de que a entrada denovos investimentos viabilize a produção de uma cidade de fato, mais justa e igualitária.

    5.  BIBLIOGRAFIA

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