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Considerações finais A partir da análise dos restos ósseos deste indivíduo foi possível aceder a vários momentos da sua vida, que teriam afetado o seu dia-a-dia, desde a alimentação à mobilidade. O esqueleto exibia lesões, quer patológicas, quer traumáticas, bastante graves. A possível paralisia facial unilateral teria um grande impacto na alimentação e bem-estar geral da pessoa. No caso do trauma observado, apesar de grave, a tíbia e a fíbula encontram-se completamente cicatrizadas. Apesar disso, o indivíduo teria dificuldades na locomoção, dada a assimetria entre os membros inferiores. É possível que, tendo em conta a gravidade das lesões, o indivíduo tenha necessitado do apoio de terceiros durante o seu dia-a-dia. Estudo paleopatológico de um indivíduo adulto feminino proveniente da Necrópole Medieval do Alto do Calvário (séc. XI-XIII) – Miranda do Corvo, Coimbra Dulce NEVES 1 ; Flávio SIMÕES 1, 2** ; Ana Maria SILVA 3 1 Mestrando(a) no Departamento de Ciências da Vida, Universidade de Coimbra, Portugal 2 Antropólogo da Câmara Municipal de Penela 3 Laboratório de Préhistória, CIAS, Universidade de Coimbra; UNIARQ, Universidade de Lisboa; CEF, Universidade de Coimbra ** [email protected] Referências bibliográficas: Egol KA, Koval KJ, Zuckerman JD. 2010. Handbook of fractures. 4ª edição. London, UK: Wolters Kluwer. Jain A, Suprabha BS, Rao A. 2016. Dental management of a child patient with facial palsy: a case report. Dental and Medical Problems 53: 430–434. Keyes PH, Rams TE. 2016. Dental calculus arrest of dental caries. Journal of oral biology 3 (1). PMID: 27446993 Weder VL, Galloway A. 2014. Broken bones: anthropological analysis of blunt force trauma. 2ª edição. Illinois (EUA): Charles C Thomas Publisher, Ltd. Molgado SB. 2008. Técnica para el análisis de las fracturas en restos ósseos. (Tese de Mestrado não publicada). Universidad Nacional Autónoma de México, México. Ortner DJ. 2003. Identification of pathological conditions in human skeletal remains. 2ª edição. London, UK: Academic Press. a) b) c) Fig. 1 – Distribuição das lesões orais do indivíduo [165]: a. Perda dentária; b. Cárie dentária; c. Tártaro; d. Desgaste dentário. Fig. 5 – Alterações articulares do indivíduo [165]: a. Extremidade da fíbula direita (vista lateral esquerda); b. Patelas (vista anterior); c. Calcâneos (vista superior); d. Talus (vista superior). a) b) c) d) Fig. 2 – Patologia oral do indivíduo [165]: a. Maxilar e mandíbula em vista lateral direita; b. Maxilar e mandíbula em vista lateral esquerda; c. Maxilar em vista frontal; d. Maxilar em vista inferior. Legenda: Vermelho – tártaro. Azul – Quisto periapical. Tabela 1. Métodos utilizados para cada parâmetro observado no indivíduo [165]. Parâmetro Método Índice de Conservação Anatómica (ICA) Garcia (2005) Diagnose sexual Ferembach et al. (1980); Bruzek (2002). Murail et al. (2005) Estimativa de idade à morte Suchey & Brooks (1984); Lovejoy et al. (1985); Iscan et al. (1984, 1985); Vicente (2012). Cárie dentária Lukacs (1989) Cálculo dentário Martin & Saller (1957) Desgaste dentário Smith (1984) Periodontite Kerr (1988) Patologia degenerativa Assis (2007) Introdução Nos anos de 2011/12 realizou-se a Sondagem A, junto à fachada Sudoeste da Torre Sineira, no âmbito do Programa de Reabilitação do Alto do Calvário, em Miranda do Corvo. Entre outros vestígios arqueológicos, foram identificadas 25 inumações primárias (séc. XI-XIII). O presente trabalho visa descrever e interpretar as lesões patológicas observadas no esqueleto [165] e possíveis consequências durante a vida do indivíduo. Materiais e Métodos O esqueleto em estudo [165] foi exumado da sepultura [137] durante a intervenção arqueológica (2011) realizada junto à fachada Sudoeste da Torre Sineira, no Alto do Calvário, Miranda do Corvo. O indivíduo estava inumado em decúbito dorsal numa sepultura em covacho e corresponde a um indivíduo do sexo feminino, com idade à morte entre 30 e 45 anos. A metodologia utilizada é apresentada na tabela 1. Foram seguidas as sugestões de Weder & Galloway (2014) para a análise do trauma. Resultados O esqueleto está em excelente estado de conservação, com um índice de conservação anatómica (ICA) de 89%. Foram observadas várias alterações no esqueleto, destacando-se as lesões orais e as lesões traumáticas. Esqueleto craniano: - Perda antemortem com remodelação alveolar de 18 dentes (13, 14, 15, 16, 18, 21, 23, 24, 25, 26, 34, 35, 36, 37, 38, 44, 46, 47) (fig. 1a), correspondente a 56,25% da dentição; - Lesões cariogénicas em 31,5% da dentição (8/14) (fig. 1b); - Periodontite generalizada; - Quisto periapical na zona dos dentes 21, 14, 15, 18; - Hipercimentose nos molares (17, 27, 28, 48); - Tártaro supragengival exuberante nos dentes 22, 27, 28, 31, 32, 33 e 34 (fig. 1c), encontrando-se os depósitos de tártaro individualizados por dente. Na dentição superior, estava presente nas superfícies bucal e oclusal. Na dentição inferior, estava presente nas superfícies bucal e lingual. Os depósitos são maiores no 2º quadrante; - Desgaste dentário acentuado, em particular na dentição anterior, correspondente a uma média de 2,7 de severidade (fig. 1d). Esqueleto pós-craniano: - Fratura antemortem consolidada na diáfise da tíbia direita, apresentando 2 segmentos sobrepostos e oblíquos, resultado da falta de alinhamento (fig.3). É compatível com uma fratura cominutiva (Weder & Galloway, 2014). A tíbia assume uma forma anormal com angulação, completamente cicatrizada. Há formação de osso, compacto, sem porosidade ou evidências de infeção. Encurtamento de 30 mm no comprimento máximo da tíbia direita (318mm) em relação à esquerda (348mm). - Fratura antemortem consolidada na parte proximal da diáfise da fíbula direita (fig.4), compatível com uma fratura em espiral (Weder & Galloway, 2014), com formação de calo ósseo, acentuado na parte posterior da zona de fratura, composto por osso compacto e sem sinais de infeção associada. Tal com a tíbia, a fíbula apresenta um desalinhamento, em particular da parte proximal. - Alterações articulares (ligeira osteoartrose) – porosidade e labiação – da zona pélvica e membro inferior direitos (fig.5), afetando as seguintes zonas: articulação sacro-ilíaca e coxo-femoral, patela, articulação tíbio-fibular distal, tíbio-társica e inter-társica. Discussão Apesar de ser comum encontrar esqueletos com cárie e tártaro, a presença de ambos na mesma dentição pode indicar 2 momentos distintos da vida da pessoa, uma vez que são formados em ambientes diferentes, a partir de processos bioquímicos distintos. Enquanto a formação de tártaro é um processo de mineralização, a cárie dentária forma-se a partir da desmineralização do tecido dentário (Keyes & Rams, 2016). De uma forma geral, as lesões são mais graves no lado esquerdo, nomeadamente a perda antemortem no 3º quadrante e o tártaro, no 2º. A presença de tártaro indiciam uma mastigação deficiente, ou inexistente, dado o tamanho dos depósitos e também, de certa forma o desgaste menos acentuado em relação ao resto da dentição. Estes fatores são comuns em casos de paralisia facial, que seria, neste caso, unilateral. A acumulação de tártaro em dentes próximos de glândulas salivares, como os molares, é algo bastante comum em casos de paralisia facial, uma vez que esta favorece a acumulação de placa dentária e saliva devido à falta de movimento muscular (Jain et al., 2016). As fraturas na tíbia são bastante comuns, dada a posição em que o osso se encontra, e, estão, por vezes associadas a fraturas na fíbula (Weder & Galloway, 2014; Egol et. al. 2010). Neste indivíduo, as fraturas terão sido produzidas no mesmo acontecimento, mas com atuação de diferentes forças, uma vez que a tíbia apresenta uma fratura de tipo diferente em relação à fíbula. A lesão da tíbia pode ter ocorrido na presença de um golpe direto, dada a angulação e o deslocamento (Molgado, 2008). Na fíbula, o tipo de fratura é compatível com a aplicação de uma força de torção. As alterações articulares na pélvis e membro inferior direito estão possivelmente relacionadas com o trauma, já que o encurtamento e o desalinhamento acentuado da tíbia terão dificultado a mobilidade do indivíduo, havendo um maior esforço nas articulações, sendo muito provável que claudicasse e poderia ainda usar algum instrumento auxiliar de marcha para deslocar-se.

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Considerações finais

A partir da análise dos restos ósseos deste indivíduo foi possível aceder a vários momentos da sua vida, que teriam afetado o seu dia-a-dia, desde a alimentação à mobilidade. O esqueletoexibia lesões, quer patológicas, quer traumáticas, bastante graves. A possível paralisia facial unilateral teria um grande impacto na alimentação e bem-estar geral da pessoa. No caso dotrauma observado, apesar de grave, a tíbia e a fíbula encontram-se completamente cicatrizadas. Apesar disso, o indivíduo teria dificuldades na locomoção, dada a assimetria entre osmembros inferiores. É possível que, tendo em conta a gravidade das lesões, o indivíduo tenha necessitado do apoio de terceiros durante o seu dia-a-dia.

Estudo paleopatológico de um indivíduo adulto feminino proveniente da Necrópole Medieval do Alto do Calvário (séc. XI-XIII) – Miranda do Corvo, Coimbra

Dulce NEVES1; Flávio SIMÕES1, 2**; Ana Maria SILVA3

1 Mestrando(a) no Departamento de Ciências da Vida, Universidade de Coimbra, Portugal2 Antropólogo da Câmara Municipal de Penela

3 Laboratório de Préhistória, CIAS, Universidade de Coimbra; UNIARQ, Universidade de Lisboa; CEF, Universidade de Coimbra

** [email protected]

Referências bibliográficas:Egol KA, Koval KJ, Zuckerman JD. 2010. Handbook of fractures. 4ª edição. London, UK: Wolters Kluwer.Jain A, Suprabha BS, Rao A. 2016. Dental management of a child patient with facial palsy: a case report. Dental and Medical Problems 53: 430–434.Keyes PH, Rams TE. 2016. Dental calculus arrest of dental caries. Journal of oral biology 3 (1). PMID: 27446993Weder VL, Galloway A. 2014. Broken bones: anthropological analysis of blunt force trauma. 2ª edição. Illinois (EUA): Charles C Thomas Publisher, Ltd.Molgado SB. 2008. Técnica para el análisis de las fracturas en restos ósseos. (Tese de Mestrado não publicada). Universidad Nacional Autónoma de México, México.Ortner DJ. 2003. Identification of pathological conditions in human skeletal remains. 2ª edição. London, UK: Academic Press.

a) b) c)

Fig. 1 – Distribuição das lesões orais doindivíduo [165]: a. Perda dentária; b. Cáriedentária; c. Tártaro; d. Desgaste dentário.

Fig. 5 – Alterações articulares do indivíduo [165]: a. Extremidade da fíbula direita (vista lateral esquerda); b. Patelas (vista anterior); c. Calcâneos (vista superior); d. Talus (vista superior).

a) b) c) d)

Fig. 2 – Patologia oral doindivíduo [165]: a. Maxilare mandíbula em vistalateral direita; b. Maxilar emandíbula em vista lateralesquerda; c. Maxilar emvista frontal; d. Maxilar emvista inferior.Legenda:Vermelho – tártaro.Azul – Quisto periapical.

Tabela 1. Métodos utilizados para cada parâmetro observado no indivíduo [165].

Parâmetro Método

Índice de Conservação Anatómica (ICA)

Garcia (2005)

Diagnose sexual Ferembach et al. (1980); Bruzek (2002). Murail et al. (2005)

Estimativa de idade à morte

Suchey & Brooks (1984); Lovejoy et al. (1985); Iscan et al. (1984, 1985); Vicente (2012).

Cárie dentária Lukacs (1989)

Cálculo dentário Martin & Saller (1957)

Desgaste dentário Smith (1984)

Periodontite Kerr (1988)

Patologia degenerativa Assis (2007)

IntroduçãoNos anos de 2011/12 realizou-se a Sondagem A, junto à fachada Sudoeste da TorreSineira, no âmbito do Programa de Reabilitação do Alto do Calvário, em Miranda doCorvo. Entre outros vestígios arqueológicos, foram identificadas 25 inumaçõesprimárias (séc. XI-XIII). O presente trabalho visa descrever e interpretar as lesõespatológicas observadas no esqueleto [165] e possíveis consequências durante a vida doindivíduo.

Materiais e MétodosO esqueleto em estudo [165] foi exumado da sepultura [137] durante aintervenção arqueológica (2011) realizada junto à fachada Sudoeste da Torre Sineira,no Alto do Calvário, Miranda do Corvo. O indivíduo estava inumado em decúbito dorsalnuma sepultura em covacho e corresponde a um indivíduo do sexo feminino, comidade à morte entre 30 e 45 anos. A metodologia utilizada é apresentada na tabela 1.Foram seguidas as sugestões de Weder & Galloway (2014) para a análise do trauma.

ResultadosO esqueleto está em excelente estado de conservação, com um índice de conservaçãoanatómica (ICA) de 89%. Foram observadas várias alterações no esqueleto,destacando-se as lesões orais e as lesões traumáticas.Esqueleto craniano:- Perda antemortem com remodelação alveolar de 18 dentes (13, 14, 15, 16, 18, 21, 23,24, 25, 26, 34, 35, 36, 37, 38, 44, 46, 47) (fig. 1a), correspondente a 56,25% dadentição;- Lesões cariogénicas em 31,5% da dentição (8/14) (fig. 1b);- Periodontite generalizada;- Quisto periapical na zona dos dentes 21, 14, 15, 18;- Hipercimentose nos molares (17, 27, 28, 48);- Tártaro supragengival exuberante nos dentes 22, 27, 28, 31, 32, 33 e 34 (fig. 1c),encontrando-se os depósitos de tártaro individualizados por dente. Na dentiçãosuperior, estava presente nas superfícies bucal e oclusal. Na dentição inferior, estavapresente nas superfícies bucal e lingual. Os depósitos são maiores no 2º quadrante;- Desgaste dentário acentuado, em particular na dentição anterior, correspondente auma média de 2,7 de severidade (fig. 1d).

Esqueleto pós-craniano:- Fratura antemortem consolidada na diáfise da tíbia direita, apresentando 2segmentos sobrepostos e oblíquos, resultado da falta de alinhamento (fig.3). Écompatível com uma fratura cominutiva (Weder & Galloway, 2014). A tíbia assumeuma forma anormal com angulação, completamente cicatrizada. Há formação de osso,compacto, sem porosidade ou evidências de infeção. Encurtamento de 30 mm nocomprimento máximo da tíbia direita (318mm) em relação à esquerda (348mm).- Fratura antemortem consolidada na parte proximal da diáfise da fíbula direita (fig.4),compatível com uma fratura em espiral (Weder & Galloway, 2014), com formação decalo ósseo, acentuado na parte posterior da zona de fratura, composto por ossocompacto e sem sinais de infeção associada. Tal com a tíbia, a fíbula apresenta umdesalinhamento, em particular da parte proximal.- Alterações articulares (ligeira osteoartrose) – porosidade e labiação – da zona pélvicae membro inferior direitos (fig.5), afetando as seguintes zonas: articulação sacro-ilíacae coxo-femoral, patela, articulação tíbio-fibular distal, tíbio-társica e inter-társica.

DiscussãoApesar de ser comum encontrar esqueletos com cárie e tártaro, a presença de ambosna mesma dentição pode indicar 2 momentos distintos da vida da pessoa, uma vezque são formados em ambientes diferentes, a partir de processos bioquímicosdistintos. Enquanto a formação de tártaro é um processo de mineralização, a cáriedentária forma-se a partir da desmineralização do tecido dentário (Keyes & Rams,2016). De uma forma geral, as lesões são mais graves no lado esquerdo,nomeadamente a perda antemortem no 3º quadrante e o tártaro, no 2º. A presençade tártaro indiciam uma mastigação deficiente, ou inexistente, dado o tamanho dosdepósitos e também, de certa forma o desgaste menos acentuado em relação ao restoda dentição. Estes fatores são comuns em casos de paralisia facial, que seria, nestecaso, unilateral. A acumulação de tártaro em dentes próximos de glândulas salivares,como os molares, é algo bastante comum em casos de paralisia facial, uma vez queesta favorece a acumulação de placa dentária e saliva devido à falta de movimentomuscular (Jain et al., 2016).As fraturas na tíbia são bastante comuns, dada a posição em que o osso se encontra,e, estão, por vezes associadas a fraturas na fíbula (Weder & Galloway, 2014; Egol et. al.2010). Neste indivíduo, as fraturas terão sido produzidas no mesmo acontecimento,mas com atuação de diferentes forças, uma vez que a tíbia apresenta uma fratura detipo diferente em relação à fíbula. A lesão da tíbia pode ter ocorrido na presença deum golpe direto, dada a angulação e o deslocamento (Molgado, 2008). Na fíbula, otipo de fratura é compatível com a aplicação de uma força de torção.As alterações articulares na pélvis e membro inferior direito estão possivelmenterelacionadas com o trauma, já que o encurtamento e o desalinhamento acentuado datíbia terão dificultado a mobilidade do indivíduo, havendo um maior esforço nasarticulações, sendo muito provável que claudicasse e poderia ainda usar alguminstrumento auxiliar de marcha para deslocar-se.