antropological blues - roberto damatta

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REVOLU<;AO BURGUESA NO BRASIL Fl or e stan Fe rnande s (2. fL edi«;ao) P ra chegar A conceituacao clara e precisa do que seja a nossa "r evolucao bu rguesa", Flor estan Fer nandes remo nta ao p rocesso de formacao da economia e da sociedade nacional, desde os tempos em que se iniciou a colonizacao. Nao 0 faz, porern, senao para exercer melhor a critica da ordem nacional, a partir de suas estruturas, sub metid as a rigoro sa analise. Essa ang ulacao Ihe perm ite v er a s. s in gu la ri dad es b ra si lei ra s d os c on ce it os d e " re vo lu ca o b ur gu es a" , "b urgu esia" e " burg ues" , co nceito s estes que nao po dem ser ap licado s no Br asil com o simp les transp osicao acadernica, Cap ltu lo s como os que versam sobre 0 status c olo ni al , a s im pl ic ac oe s s oc ial s e econornicas da Independencia e a formacao da ordem social com petitiva estabelecem as con dicoes e i1 uminam os estagios do d ese nca de am en to h is t6 ri co da n os sa "revol uca o burg ues a", Alto niv el de interesse g anham igualmente as paginas dedicadas ao ex ar ne do s p roulemas da c ri se do poder b urg ue s no Br as il , c ri se mcnopolista. Desd obra-se essa analise na abord agern do mo delo autarquico-b urgu es de transforrnacao cap italista vig en te no Brasil, e d as contrad ico es sociais e politicas g eradas no interior da no va or dem. A SOCIOLOGIA NUMA ERA DE RE VO LU <;AO SOCI AL Florestan F ernand e s (2.f t ed., r eo rg . e ampl .) Este Iivro, que aparece sob organizacao relativamente diversa, c:m . su a s eg un da e di ca o, r eu ne e nsa io s v oI tad os p ar a 0 ti po de c on h e ci m en to que 0 sociologo deve criar quando se. procura atingir ~ . desenvolvimento de acordo com os requtsitos da democracia. Escntos numa epoca em que parecia pacifico que os principais palses da A me ri ca La ti n a, 0 B ra si l i nc lu si ve , p oss ui am c on di co es p ar a desencadear uma revolucao dernocratica "dentro da ordem", eles Iccalizam as tarefas r.raticas da Sociologia e a interacao dos papeis que 0 scci61ogo deve' desempenhar em sua dupla condicao de cientista e cidadiio. A pe sa r da s a pa re nc ia s , 0 livre nao perdeu sua atualidade. Suas principais ideias ai~d estao de !leo Q ue es t ra te gi a d e~ ~m ,? s s eg uir , nas condicoes brasil as, para 0 d es e nvo lv im en to da c ie nc ia ? o o ue r .r ec is a f 'a z 0 so ci olo go , e nq ua nt o ci en ti sta , p ar a c on ve rte r o ccnhecimento sociolo gico em urn conhecimento crftico, util ao "planejamentc dentro da liberd ade"? A realidade que exigia 0 debate dessas ideias nao desanareceu. Ao contra rio, ela se agravou, impcndo que retomernos, de modo ainda mais intenso, 0 debate interrompido. ZAHAR A cultura a service do progresso social EDITORES Edson de Oliverra Nunes (organizador) A Aventura SociolOgica Ob je ti vi dad e, Pa ixao , Improvise e Metoda na Pesquisa Social

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REVOLU<;AO BURGUESA NO BRASIL

Florestan Fernandes (2.fLedi«;ao)

Para chegar A conceituacao clara e precisa do que seja a nossa"r evolucao bu rguesa", Flor estan Fernandes remonta ao p rocesso deformacao da economia e da sociedade nacional, desde os temposem que se iniciou a colonizacao. Nao 0 faz, porern, senao paraexercer melhor a critica da ordem nacional, a partir de suasestruturas, submetid as a rigoro sa analise. Essa angulacao Ihe perm ite

ver as. s ingula ridades brasi lei ra s dos conce itos de "revolucao burguesa" ,"burguesia" e "burgues" , conceito s estes que nao podem ser ap licado sno Brasil como simp les transposicao acadern ica, Cap ltu lo s comoos que versam sobre 0 status colonial , a s impl icacoes soc ial s eeconornicas da Independencia e a formacao da ordem socialcompetitiva estabelecem as condicoes e i1uminam os estagios dodesencadeamento his t6ri co da nossa "revolucao burguesa",

Alto nivel de interesse ganham igualmente as paginas dedicadas aoexarne dos p roulemas da cri se do poder burgues no Bras il , c ri sedef lagrada pela passagem do capita li smo competi tivo ao capit al ismomcnopolista. Desdobra-se essa analise na abordagern do modeloautarquico-burgues de transfor rnacao cap italista vigen te no Brasil,e das contrad icoes sociais e politicas geradas no interior da nova ordem.

A SOCIOLOGIA NUMA ERA DEREVOLU<;AO SOCIAL

Florestan Fernandes (2.ft ed., reorg. e ampl.)

Este Iivro, que aparece sob organizacao relativamente diversa, c:m .sua segunda edicao, reune ensa ios voI tados para 0 tipo de conhecimentoque 0 sociologo deve criar quando se. procura atingir ~ .desenvolvimento de acordo com os requtsitos da democracia. Escntosnuma epoca em que parecia pacifico que os principais palses daAmerica Latina, 0 Brasi l inc lusive , possuiam condicoes paradesencadear uma revolucao dernocratica "dentro da ordem", elesIccalizam as tarefas r.raticas da Sociologia e a interacao dos papeisque 0 scci61ogo deve' desempenhar em sua dupla condicao decientista e cidadiio.

Apesar das aparencias, 0 livre nao perdeu sua atualidade. Suas

principais ideias ai~d estao de !leo Que estrategia de~~m,?s seguir,nas condicoes brasil as, para 0 desenvolvimento da ciencia?

o oue r .rec is a f 'az 0 sociologo, enquanto cienti sta , para converte ro ccnhecimento sociologico em urn conhecimento crftico, util ao"planejamentc dentro da liberdade"? A realidade que exigia 0 debatedessas ideias nao desanareceu. Ao contra rio, ela se agravou,impcndo que retomernos, de modo ainda mais intenso, 0 debateinterrompido.

ZAHAR

A cultura a service do progresso social

ED I TORES

Edson de O live rra Nunes(organizador)

A AventuraSociolOgica

Objetividade, Paixao, Improvise e

Metoda na Pesquisa Social

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1

o Oficio de Etnologo, ou como

"Anthropological Blues" *

Ter

ROBERTO DA. MA.TA

This glory, the sweetest, the true~

or rather the only true glory, awaitsyou, encompasses you already; youwill know all its brilliance on thatday of triumph and joy on which,returning to your country, welcomedamid our delight, you will arrive inour walls. loaded with the most pre-cious apoils, and bearers of happytidings of our brothers scattered inthe uttermost confines of the Universe.

Degerando="

lntrodw;iio

Em Etnologia, como nos "rites de passagem"; existem tres

fases (ou planos) fundamentais quando se trata rle discorrcr sohre

• Trabalho apresentado na Universidade de Brasilia, junto ao Departa-

mento de Ciencias Sociais, no Simposio sobre Trabalho-de-Campo, ali

realizado. Expresso meus agradecimcntos aos Profs. Roberto Cardoso de

Oliveira e Kenneth Taylor, que na epoca eram, respect ivamente, Chefe

do Departamento de Ciencias Sociais e Coordenador do Curso de Mes-

trado de Antropologia Social, pelo convite. Posteriormente, 0 texto Ioi

publicado no Museu Nacional como Comunicacao n.O I, Setembro, 19711.,

em edicao mimeografada. Desejo agradecer a Gilberto Velho, Luiz de

Castro Faria e Anthony Seeger pelas sugestoes e encorajarnento, quando

da preparacao das duas versoes deste trabalho.

** Joseph-Marie Degerando, The Observation of Savage Peoples (1800),

traduzido do frances por F.C.T. Moore, Berkeley e Los Angeles: Uni-

versity of California Press, 1969.

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24 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA A VERSAO QUAUTATrv A

.e.

as etapas de uma pesquisa, vista pelo prism a do seu cotidiano. A

primeira, .e aquela caracterizada pelo uso e ate abuso da cabeca,

quando ainda niio temos nenhum contato com os seres hurnanos

que, vi~endo em grupos, constituem-se nos nossos objetos de tra-

balho. E a fase ou plano que denomino de teorico-intelectual; mar-cada pelo divorcio entre 0 futuro pesquisador e a tribo, a classe

social, 0 mito, 0 grupo, a categoria cognitiva, 0 ritual, 0 hairro, 0

s~stema de ~~lac;oessociais e de parentesco, 0 modo de produciio, 0

sistema pOlItICOe todos os outros dominies, em sua lista infinda-

vel, que certamente fazem parte daquilo que se busca ver, enca-

rar, enxergar, perceber, estudar, classificar, interpretar, explicar,

etc. .. Mas esse divorcio - e e born que se diga isso claramente

- niio diz respeito somente Ii ignorancia do estudante. Ao contra-

rio, ele fala precisamente de urn excesso de conhecimento, mas de

urn conhecer que e teorico, universal e mediatizado niio pelo con-

creto e sobretudo pelo especifico, mas pelo abstrato e pelo nao

vivenciado. Pelos livros, ensaios e artigos: pelos outros.

. _N~ fase tecrico-intelectual; as aldeias sao diagramas,: os ma-

trimonios se resolvem em desenhos geornetrioos perfeitamente si-

metric os e equilibrados, a patronagem e a clientela politica apa-

re~em em ,reg:as o;-denadas, a propria espoliaei io passa a seguir

Ieis e os indios sao de papel, Nunca ou muito raramente se

p.ensa em coisas especificas, que dizem respeito Ii minha experien-

CIa, quando 0 conhecimento e permeabilizado por cheiros, cores,

dores e amores. Perdas, ansiedades e medos, todos esses intrusos

que os Iivros, sobretudo os famigerados "manuals" das Ciencias

Sociais teimam por ignorar.

Uma segunda fase, que vern depois dessa que acabo de apre-

sentar,. pode ser denominada de periodo priitico, Ela diz respeito,

essencialmente, a nossa antevespera de pesquisa. De fato, trata-se

daquela semana que todos cuja pesquisa implicou uma mudanea

drastica experirnentaram, quando a nossa preocupaejio muda subi-

tamente das teorias mais universais para os problemas mais

banalmente concrclos. A pergunla, entao, njio e mais sc 0 grupo X

tern ou nfio linhagens segmentadas, Ii moda dos Nuer, Tallensi ou

Tiv, ou se a tribo Y tern corridas de tora e metades cerimoniais

como os Kraho ou Apinaye, mas de planejar a quantidade de arroz

e remediosque deverei levar para 0 campo comigo.

?bservo que a oscilaciio do pendulo da existencia para tais

questoes - onde YOUdormir, comer, viver - niio e nada agra-

davel, Especiahnente quando 0 nosso treinamento tende a ser ex-

eessivamente verbal e teorico, ou quando somos socializados numa

cultura que nos ensina sistema'jcamente 0 conformismo, esse filhoDurante anos, a Antropologia Socia] esteve preocupada em

estabelecer com precisiio cada vez maior suas rotinas de pesquisa

da autoridade com a generalidade, a lei e a regra. No plano pru-

tico, portanto, ja nfio se trata de citar a experiencia de algum he-

roi-civilizador da disciplina, mas de colocar 0 problema fundamen-

tal na Antropologia, qual seja: 0 da especificidade e relatividade de

sua propria experiencia,

A fase final , a terceira, e a que chamo de pessoal ou existen

cial, Aqui, nfio ternos mais divisoes nitidas entre as. etapas db

nossa formacao cientifica ou academica, mas por uma especie de

prolongamento de tudo isso, uma certa visiio de conjunto que cer-

tamente deve coroar todo 0 nosso eslorco e trabalho. Deste modo,

enquanto 0 plano teorico-intelectual e medido pela competencia

academica e 0 plano pratico pela perturhaeao de uma realidade que

vai se tornando cada vez mais imediata, 0 plano existencial da

pesquisa em Etnologia fala mais das lic;oes que devo extrair do

meu proprio caso. E por causa disso que en a considero como es-

sencialmente globalizadora e integradora: ela deve sintetizar a bio-

grafia com a teoria, e a pratica do mundo com a do oficio.

Nesta etapa ou, antes, nesta dimensiio da pesquisa, eu nfio me

encontro mais dialogando com indios de papel, ou com diagramas

simetricos, mas com pessoas. Encontro-me numa aldeia concreta:

calorenta e distante de tudo que conheci . Ache-me fazendo face a

lamparinas e doenea, Vejo-me diante de gente de carne e osso.

Gente boa e antipatica, gente sabida e estupida, gente feia e bonita.

Estou, assim, submerso num mundo que se situava, e depois da pes-

quisa volta a se situar, entre a realidade e 0 Iivro,

E vivenciando esta fase que me dou conta (e niio sem susto)

que estou entre dois fogos: a minha cultura e uma outra, 0 meu

mundo e urn outro. De fato, tendo me preparado e me eoloeado

como tradutor de urn outro sistema para a minha propria lingua-

gem, eis que tenho que inieiar minha tarefa. E entiio verifieo, inti -

mamente satisfeito, que 0 meu oficio - voltado para 0 estudo dos

homens - e analogo Ii propria eaminhada das sociedades humanas:sempre na tenue linha divisoria que separa os animais na deterrni-

nnliuo da nnturcza c os douses quc, dizern os crcntes, forjam 0sen

proprio destino.

Neste trabalho, procuro desenvolver esta ultima dimensiio da

pesquisa em Etnologia. Fase que, para mim e talvez para outros,

foi tao importante,

I

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A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA26

ou- como e tambem ehamado 0 exercicio do oficio na sua pratica

mais imediata, do trabalho de campo. Nos cursos de Antropologia

os professores mencionavam sempre a necessidade absoluta da co-

leta de um bom mater ial, isto e, dados etnograficos que permitis-

sem um dialogo mais intenso e mais proficuo com as teorias co-

nhecidas, pois dai, certamente, nasceriam novas teorias - segundoa velha e, porque njio dizer, batida dialetica do Prof. Robert

Merton.

Desse esforco nasceram alguns livros - na America e fora

dela - ensinando a realizar melhor tais rotinas. Os dois mais fa-

mosos sao 0 notorio Notes and Queries in Anthropology, produzido

pelos ingleses e, diga-se de passagem, britanicamente produzido

com zelo missionario, colonial e vitoriano, e 0 niio menos famoso

Guia de Inoestigaci io de Dados Culturais, livro inspirado pelo Hu-

man Relations Area Files, sob a egide dos estudos "cross-culturais"

do Prof. George Peter Murdock.

Sao suas pec;as impressionantes, como sao impression antes as

monografias dos etnologos, livros que atualizam de modo, correto

e impecavel essas rotinas de "como comecei fazendo um mapa daaldeia, colhendo duramente as genealogias dos natives, assistindo

aos ritos funerarios, procurando delimitar 0 tamanho de cada

roca" e "terminei descobrindo um sistema de parentesco do tipo

Crow-Omaha, etc . .. ". Na realidade, livros que ensinam a fazer

pesquisa sao velhos na nossa disciplina, e pode-se mesmo dizer -

sem medo de incorrer em exagero - que eles nasceram com a sua

fundaeiio, ja que foi Henry Morgan, ele proprio, 0 primeiro a des-

cobrir a utilidade de tais rotinas, quando preparou uma serie de

questionarios de campo que foram enviados aos distantes missiona-

r ios e agentes diplomatieos norte-americanos para escrever 0 seu

superehissieo Systems of Consanguinity and Affinity of the Human

Family (1871)1. Tal tradieiio e obviamente necessaria e niio e

meu proposito aqui tentar denegri-la. Niio sou D. Quixote e reeo-

nheeo muito bem os frutos que dela nasceram e poderiio ainda

nascer. E mesmo se estivesse contra ela, 0 maximo que 0 born

sensa me permitiria acrescentar e que essas rotinas sao como urn

mal necessdrio.

Desejo, porem, neste trabalho, trazer a luz todo um "outro

lado" desta mesma tradic;ao oficial e explicitamente reconhecida

pelos antropologos, qual seja: os aspectos que aparecem nas ane-

dolas e nas reunifies de antropologia, nos coqueteis enos momen-

1 Republicado em 1970, Anthropological Publications: Oosterhout N.B.- Rolanda. Veja-se, em relacao ao que f'oi mencionadoacima, pp. viii eix do Pref acio e 0 Apendice a Parte I II, pp. 515 e ss.

27A VERSAO QUALlTATIVA

tos menos formais. Nas estorias que elaboram de modo tragicomico

um mal-entendido entre 0 pesquisador e 0 s~u ~elhor inf~r~ante,

de como foi duro chegar ate a aldeia, das diarreias, das dl£lCulda-

des de conseguir comida e - muito mais importante - de como

£oi dificil comer naquela aldeia do Brasil Central. ..,

Esses sao os chamados aspectos "romanticos" da disciplma,quando 0 pesquisador .se,v.e obriga~o a atuar ?O~O medico, .coz~-

nheiro contador de histories, mediador entre indios e funciona-

rios d~ FUNAI, viajante solitario e ate palhac;o, lanc;an~o mao

destes varies e insuspeitados papeis para poder bem reahzar. as

rotinas que infalivelmente aprendeu na escola graduad!. " I t c,U~lOS?

e significativo que tais aspectos sejam cunhados de ,anedot~cos

e, como ja disse, de "romanticos", desde que se esta consclen~e

_ e niio e preciso ser fllosofo para tanto - ~e ~ Antropol~gIa

Social e uma disciplina da comuta~ao e da mediacao. E com ISSO

quero simplesmente dizer que talvez mais do que qualquer outra

materia devotada ao estudo do Homem, a Antropologia e aquela

onde necessariamente se estabelece uma ponte entre dois universos

(ou subuniversos) de signi£ica~ao, e tal ponte ou mediaeiio e reali-

zada com urn minimo de aparato institucional ou de instrumen-

tos de mediaciio. Vale dizer, de modo artesanal e paciente, depen-

dendo essencialmente de humores, temperamentos, fobias e todos

os outros ingredientes das pessoas e do contat~ hun:ano., "

Se e possivel e permitido uma interpret~~ao, nao ha d~vlda

de que todo 0 anedotario referente as pesqUlsas de campo e um

modo muito pouco imaginativo de depositar num ~ad~ o~s~ur~ do

oficio os seus pontos talvez mais importantes e m~ls slgmflCahvos.

E uma maneira e - quem sabe? - um modo muito envergonhado

de nao assumir 0 lado humano e Ienomenologico da disciplina, com

um temor infanti l de revelar 0 quanta vai de subjetivo nas pesqui-

sas de campo, temor esse que e tanto maior quanta ~~is .voltado

esta 0 etnologo para uma idealiza~iio ~o rigor .nas dl;~lplIDas s~-

ciais. Numa palavra, e um modo de nao assumir 0 OflCIOde etno-logo integralmente, e 0 medo de sentir 0 que a Dra. Jean Carter

Lave denominou, com rara felicidade, nurna carta do campo, 0

anthropological blues.

II

,Por anthropological blues se quer cobrir. e descob~i~, de u~

, modo mais sistematico, os aspectos interpretahvos do Of~CIOde. e~n.o-

i logo. Trata-se de incorporar no campo mesmo das ro~mas oficiais,

. jli legitimadas como parte do treinamento do antropologo, aqueles

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28 A Buscx DA REAl_IDADE OBJETIVA

aspectos extraortliruirios, sempre prontos a emergir em todo 0 rela-

c ionamento humano. De fato, so se tern Antropologia Social quan-

do se tern de algum modo 0 exotieo, e 0 exotico depende invariavel-

mente da dis tanc ia social, e a distancia social tern como componen-

te a marginal idade (re lativa ou absoluta), e a marginalidade se ali-

menta de urn sentimento de segrega\!ao e a segrega\!aO implica

estar so e tudo desemboca - pari! comutar rapidamente essa longa

cadeia - na liminaridade e no estranhamento.

De tal modo que vestir a capa de etnologo e aprender a reali-

zar uma dupla tarefa que pode ser grosseiramente contida nas se-

guintes formulas: (a) translormar 0 exotico no familiar e/ou (h)

transformar 0 familiar em exotico, E, em ambos os casos, e neces-

saria a presenca dos dois termos (que represent am dois universos

de significacfio ] e, mais hasicamente , uma vivencia dos dois domi-

nios por urn mesmo sujeito disposto a situa-los e apanha-los, Numa

certa perspectiva, essas duas transformac;oes parecem seguir de per-

to os momentos criticos da lristoria da propria disc iplina . Assim e

que a primeira transformac;ao - do exotico em familiar _ corres-ponde ao movimento original da Antropologia quando os etnologos

conjugaram 0 seu esforeo na husca deliherada dos enigmas sociais

situados em universos de significac;ao sabidamente incompreendi-

dos pelos meios sociais do seu tempo. E foi assim que se reduziu e

transformou - para citar apenas urn caso classico - 0 kula ring

dos melanesios num sistema compreensivel de trocas, alimentadas

por praticas ritua is, politicas, juridicus, economicas e re ligiosas,

descoberta que veio, entre outras, permitir a criacao, por Marcel

Mauss, da nocfio hasilar de fato social total, desenvolvida logo aposas pesquisas de B. Malinowski."?

A segunda transformaefio parece corresponder ao momento

presente , quando a disciplina se volta para a nossa propria socieda-

de , num movimento semelhante a urn auto-exorcismo, pois ja niiose trata mais de depositar no selvagem africano ou melanesico 0

mundo de praticas primitivas que se deseja objetificar e inventariar,

mas de descobri-las em nos, nas nossas insti tuiefies, na nossa prati-

ea politica e religiosa. 0 problema e, enti io , 0 de tirar a capa de

membro de uma classe e de um grupo social especifico para poder

- como etnologo - estranhar alguma regra social familiar e as-

sim descobrir (ou recolocar, como fazem as crianeas quando per-

2 Permito-rne lembrar ao leiter que Malinowski publicou 0 seu Argon-auts of the Western Pacific ern 1922 e que a primeira edicao francesa doEssai sur Ie Don e de 1925.

A VERSAO QUALITATIVA 2 ' : )

guntam os "porques "] 0 exotico ~o que esta ?~trifi~a~o dentro de

nos pela reificaciio e pelos mecanismos de legltlma~a? .

Essas duas transformacdes fundamentais do OhClOde. etnologo

parecem guardar entre si uma estre ita re lacao ~e homologia. Como

o desenrolar de uma sonata, onde urn tema e apresentado clara-mente no seu inicio, desenvolvido rebuscadamente no seu curso~e,

finalmente , retomado no seu epilogo, No caso das transformacoes

antropologieas, os movimentos sempre conduzem a urn en~ontro.

Deste modo, a primeira transformacao leva ao encontro daquilo qU?

a cultura do pesquisador reveste inicial~ente .no envelo~e do hi-

zarro de tal maneira que a viagem do etnologo e como a via gem do

heroi classico, partida em tres momentos distintos e interdepend~n-

tes: a saida de sua sociedade, 0 encontro com 0 outro nos confms

" . f 1" ( 0do seu mundo social e, finalmente, 0 retorno triun a , com

coloca Degerando ] ao seu proprio grupo co~. os seus trofeus. ~e

fato, 0 etnologo e, na maioria dos casos, 0 ul timo agente da SOCle-

dade colonial ja que apos a rapina dos bens, da f~rc;a de,t .rabalh? e

da terra segue 0 pesquisador para completar 0 m~e~~rlO caniba-

listico: ele, portanto, busca as regras, ? S valores, . as Ide~as- numa

palavra , os imponderaveis da vida social qu~ Ioi colomzada. _

Na segunda transforrnaciio, a viagcm e _como a. do xama: um

movimento drastico onde, paradoxalmente, nao se sal do lugar. E,

de fa to, as viagens xamanisticas sao via~ens ,:erticais (para dentro

ou para cima) muito m~~s do q~? hO;lz~nta!s, ~omo aeontece ~a

via gem classic a dos herois homencos. E nao e por outra r~zao

que todos aqueles que realizam tais viagens para dentr~ e para erma

sao xamiis, curadores, profetas, santos e loucos; ou se)a, os que d.e

algum modo se dispuseram a chegar no fundo do poc;o d~ sua pro-

pria cultura. Como eonseqiiencia, a segunda transformaciio conduz

igualmente a urn encontro com 0outro e ao estranhament~.

As duas transformaeoes estiio, pois, intimamente relacionadas

e arsbas sujeitas a uma serie de residues, nunca sendo ~e~lmente

perfeitas. De fato, 0 exotico nunca pode passar a ser familIal'; e 0

familiar nunc a deixa de ser exotico.

Mas, deixando os paradoxos para os mais bern preparados,

essas transformaeoes indicam, num caso, um ponto de chegada (de

fato, quando 0 etnologo consegue se familiarizar com uma cultura

diferente da sua, ele adquire eompeteneia nesta cultura) e, no ou-

3 Estou usando as nocoes de reificacao e de legitirnacao como Bergere Luck mann no SI:U A Construciio Social da Realidade (Pctropolis:

Vozes, 1973). . . .. .4 Foi Peter Riviere de Oxford quem me sugenu esta Idem da viagernxamanistica.

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30 A Buscx DA REALIDADE OBJE1 'IVA

tro, 0 ponto de partida, ja que 0 iinico modo de estudar um ri tual

brasileiro e 0 de tomar tal rito como exotico, Isso significa que a

apreensiio no primeiro processo e realizada primordialmente por

uma via intelectual (a transformaeiio do exotico em familiar e rea-

Iizada fundamentalmente por meio de apreensfies cognitivas), ao

passo que, no segundo caso, e necessaria um desIigamento emocio-nal, ja que a familiaridade do costume nao foi obtida via mtelecto,

mas via coereiio socializadora e, assim, veio do estomago para a

cabeca. Em ambos os casos, porem, a media!;ao e realizada por urn

corpo de principios guias < . as chamadas teorias antropologicas ) e

conduzida num labirinto de confli tos dramaticos que servem como

pano de fundo para as anedotas antropologicas e para acentuar 0

toque romantico da nossa disciplina. Deste modo, se 0 meu insight

esta correto, e no processo de transformaciio mesmo que devemos

cuidar de buscar a def'inieiio cada vez mais precisa dos anthropolo-

gical blues.

Serra, entao, possivel iniciar a demarcaeao da area hasica do

anthropological blues como aquela do elemento que se insinua na

pratica etnologiea, mas que niio estava sendo esperado. Como um

blues, euja melodia ganha forea pela repetieiio das suas frases de

modo a cada vez mais se tornar perceptivel. Da mesma mane ira que

a tristeza e a saudade (tambem blues) se insinuam no processo do

trahalho de campo, causando surpresa ao etnologo. E quando elc

se pergunta, como fez Claude Levi-Strauss, "que viemos fazer aqui?

Com ({UC esperanea? Com ({ue rim'!" e, a partir desse memento,

pode ouvir claramente as intromissdes de urn rotineiro estudo de

Chopin, ficar por ele obsecado e se ahrir a terri vel descoberta

de que a viagem apenas despertava sua propria subjetividade: "Por

um singular paradoxo, diz Levi-Strauss, em lugar de me abrir a um

novo universo, minha vida aventurosa antes me restituia 0 antigo,

enquanto aquele que eu pretendera se dissolvia entre os meus dedos.

Quanto mais os homens e as paisagens a cuja conquista eu partira

perdiam, ao possui-los, a significaciio que eu deles esperava, maisessas imagens decepcionantes ainda que presentes eram substitui-

das por outras, postas em reserva por meu passado e as quais eu nao

dera nenhum valor quando ainda pertenciam Ii reaIidade que me

rodeava." (Tristes Tropicos, Sao Paulo: Anhembi, 1956, 402 ss.).

Seria possivel dizer que 0 elemento que se insinua no trabalho

de campo e 0 sentimento e a emoeao. Estes seriam, para parafrasear

Levi-Strauss, os hospedes niio convidados da situaeiio etnografica. E

tudo indica que tal intrusi io da subjetividade e da carga afetiva que

vem com ela, dentro da rotina intelectualizada da pesquisa antropo-

IOgica, e urn dado sistematico da situa!;ao. Sua manifestaeiio assu-

A VERSAO QUALITATIVA 31

me varras formas, indo da anedota infame contada pelo falecido

Evans-Pritchard, quando disse que estudando os Nuer pode-se fa-

cilmente adquirir sintomas de "Nuerosia'P, ate as reaeiies mais vis-

cerais, como aquelas de Levi-Strauss, Chagnon e Maybury-Lewis?

quando se referem Ii solidiio, Ii falta de privacidade e Ii sujeira dos

indios.Tais relatos parecem sugerir, dentre os muitos temas que ela-

boram, a fantastica surpresa do antropologo diante de um verda-

deiro assalto pelas emoeoes, Assim e que Chagnon descreve-eua

perplexidade diante da sujeira dos~Y anomano e, por ~s~omesmo,

do terrivel sentimento de penetraeao num mundo eaonco e sem

sentido de que foi acometido nos seus primeiros t ,e~pos de ,traba-

lho de campo. E Maybury-Lewis guarda para 0 ultimo ~aragraio

do seu livro a surpresa de se saber de algum modo envolvido e ca-

paz de envolver seu informante. Assim, e no ultimo instan~e do

seu relato que ficamos sabendo que Apowen - ao se despedir do

antropologo - tinha lagrimas nos olhos. E com~ se na esc~la ~a-

duada tivessem nos ensinado tudo: espere um sistema matrimonial

prescritivo, um sistema politico segmentado,. um~sistema ~?alist~,

etc., e jamais nos tivessem prevenido que a srtuaeao etnograflca nao

e realizada num vazio e que tanto la, quanto aqui, se pode ouvir os

anthropological blues!Mas junto a esses momentos cruciais (a chegada e 0 ultimo

dia), ha - dentre as imimeras situaeoes destacaveis - um outro

instante que ao menos para mim se configurou como critico: 0 mo-

mento da descoberta etnografica, Quando 0 etnologo consegue des-

cobrir 0 funcionamento de uma instituieao, compreende finalmente

a operaeiio de uma regra antes obscura. No caso da minha pesquisa,

no dia em que descobri como operava a regra da amizade formali-

zada entre os Apinaye, escrevi no meu diario em 18 de setembro

de 1970:

"Entao ali estava 0 segredo de uma relaeao social mui-

to importante (a relaeiio entre amigos formais), dada

por acaso, enquanto descobria outras coisas. Ele mos-

trava de modo iniludivel a fragilidade do meu traba-

lho e da minha capacidade de exercer 0 meu oficio cor-

s cr . Evans-Pritchard, The Nuer, Oxford: at the Clarendon Press.

1940 : 13.6 Para Levi-St rauss , vcja 0 jli citado Tristes Tropicos: para Chagnon eMaybury-Lewis confira, respectivamente, Yunomano: The Fierce People,

Nova York: Holt, Rinehart e Winston, 1968, e The Savage and The Inno-

cent, Boston: Beacon Press, 1965.

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A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

retamente. Por outro lado, ela revelava a contingencia

do oficio de etnologo, pois os dados, por assim dizer ,

caem do ceu como pingos de chuva. Cabe ao etnologo

nao so apara-los, como conduzi-los em enxurrada para

o oceano das teorias correntes. De modo muito nitidoverifiquei que uma cuItura e um informante sao como

cartolas de magico: tira-se alguma coisa (uma regra)

que faz sentido num dia; no outro, so conseguimos fi-

tas coloridas de baixo valor ...

Do mesmo modo que estava preocupado, pois havia

mandado dois ar tigos errados para publicaeao e tinha

que eorrigi-los imediatamente, fiquei tambem euforico.

Mas minha euforia ter ia que ser guardada para 0 meu

diario, pois njio havia ninguem na aldeia que comigo

pudesse compartilhar de minha descoberta. Foi assim

que escrevi uma carta para um amigo e visitei 0 encar-

regado do Posto no auge da euforia. Mas ele niio es-

tava absolutamente interessado no meu trabalho. E,

mesmo se estivesse, niio 0entenderia. Num dia, It noite,quando ele perguntou por que, afinal, estava eu ali estu-

dando indios, eu mesmo duvidei da minha resposta,

pois procurava dar sentido pratico a uma atividade

que, ao menos para mim, tem muito de artesanato, de

confusiio e e , assim, totalmente desligada de uma rea-

lidade instrumental.

E foi assim que tive que guardar segredo da minha

descoberta, E, a noite, depois do jantar na casa do en-

carregado, quando retornei a minha casa, la so pude di-

zer do meu feito a dois meninos Apinaye que vieram

para comer comigo algumas bolachas. Foi com eles e

com uma lua amarela que subiu muito tarde naquela

noite que eu compartilhei a minha solidao e 0 segredo da

minha mimiscula vitoria."

Esta passagem me parece instrutiva porque ela revela que, no

momenta mesmo que 0 intelecto avanca - na ocasiiio da descober-

ta - as emoefies estao igualmente presentes, ja que e preciso com-

partilhar 0 gosto da vitor ia e legitimar com os outros uma desco-

berta. Mas 0 etnologo, nesse momento esta s6 e, deste modo, terti

que guardar para si proprio 0 que foi capaz de desvendar .

E aqui se coloea novamente 0 paradoxo da situaeiio etnogni-

fica: para descobrir e preciso relacionar-se e, no momenta mesmo

da descoberta, 0 etnologo e remctido para 0 seu mundo e, deste

.J

A VERSAO QUALITATIVA 33

modo, isola-se novamente. 0 oposto ocorre com muita Ireqiiencia:

envolvido por urn chefe politico que deseja seus favores e sua opi-

niiio numa disputa, 0 etnologo tem que calar e isolar-se, Emocionado

pelo pedido de apoio e temeroso por sua participaefio num conflito,

ele se ve obrigado a chamar a razdo para neutralizar os seus senti-

mentos e, assim, continuar de fora. Da minha experiencia, guardo

com muito cuidado a Iembranca de uma destas situacfies e de outra.

muito rnais emocionante, quando urn indiozinho que era um misto

de secretar io, guia e filho adotivo, ofereceu-me um colar, Trans-

crevo novamente um longo trecho do meu diar io de 1970:

"Pengi entrou na minha casa com uma cabacinha presa

a uma linha de tucum. Estava na minha mesa remoen-

do dados e coisas. Olhei para ele com 0 desdern dos can-

sados e explorados, pois que diariamente e a todo 0 mo-

mento minha casa se enche de indios com colares para

trocas pelas minhas missangas. Cada uma dessas trocas

e um pesadelo para mim. Socializado numa cultura

onde a troca sempre implica uma tentativa de tiraro melhor partido do parceiro, eu sempre tenho uma re-

beldia contra 0 abuso das trocas propostas pelos Api-

naye: um colar velho e mal feito por um punhado sem-

pre crescente de missangas. Mas 0 meu oficio iem des-

ses logros, pois missangas nada valem para mim e, no

entanto, aqui estou zelando pelas minhas pC!J1WIl"~

bolas color idas como se fosse um guarda de urn hnnco,

Tenho chime delas, estou apegado ao seu valor .-- que

eu mesmo estabeleci. .. Os indios chegam, ofereccm os

colares, sabem que eles sao mal feitos, mas sabem que

eu yOU trocar. E assim fazemos as trocas. Sa o (Ic,e-

nas de colares por milhares de missangas. A te ·IU0 elas

acabem e a noticia corra por toda a aldeia. E, entiio, fi-

carei livre desse incomodo papel de comerciante. Te-

rei os colares e 0 trabalho cristalizado de quase todas

as mulheres Apinaye. E eles terao rnissaugas para ou-

tros colares.

Po is bern, a chegada de Pengy era sinal de mais uma

troca. Mas ele estendeu a mao rapidamente: - Esse epara 0 teu ikni (filho), para ele brincar ...

E, ato continuo, saiu de casa sem olhar para tras. 0

objeto estava nas minhas miios e a saida nipida do in-

diozinho niio me dava tempo para propor uma recom-

pensa. So pude pensar no gesto como uma gentileza,

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I

I

I ·1. . J J : II .J

34 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

mas ainda duvidei de tanta hondade. Pois eia niio exis-

te nesta sociedade onde os homens sao de mesmo va-

lor."7

Que 0 Ieitor niio deixe de observar 0 meu ultimo panigrafo.

Duvidei de tanta bondade porque tive que racionalizar imediata-

mente aquela dadiva, casu contra rio nao estar ia mais solitario. Mas

sera que 0 etnologo esta realmente sozinho?

Os manuais de pesquisa social quase sempre colocam 0 pro-

blema de modo a fazer crer que e precisamente esse 0 caso. Deste

modo, e 0 pesquisador aquele que deve se orientar para 0 grupo

estudado c lentar idcnrificar-se corn C1e.Nao se coloca a contrapnr-

tida deste mesmo processo: a identificaefio dos nativos com 0 siste-

ma que 0 pesquisador carrega com ele, urn sistema formado entre

o etnologo e aqueles nativos que consegue aliciar - pela simpatia,

amizade, dinheiro, presentes e Deus sabe rna is como! para que

lhe digam segredos, romp am com lealdades, fornecam-lhe lampejos

novos sobre a cultura e a sociedade em estudo.

Afinal, tudo e fundado na alteril idade em Antropologia: pois

s6 existe antrop6Iogo quando ha urn nativo transformado em in-

formante. E so ha dados quando ha urn processo de empatia cor-

rendo de lado a lado. E isso que permite ao informante con tar mais

urn mito, elaborar com novos dados uma relaei io social e discutir

os motivos de urn Iider polit ico de sua aldeia. Sao justamente esses

nativos (transformados em informantes e em etnologos ] que sal-

vam 0 pesquisador do marasmo do dia-a-d~a da aldeia: do nasce~ :

por-do-scl, do gado, da mandioca, do milho e das foss as sanita-

rias.

Tudo isso parece indicar que 0 etnologo nunc a esta so. Real-

mente. no meio de urn sistema de regras ainda exotico e que e seu

objeti~o tornar familiar, ele esui relucionudo - e. m:~i~ do lJue

nunca ligado - a sua propria eultura. E quando 0 familiar ~ome-

ea a se deseuhar na sua conseiencia, quando 0 trabalho tcrmma, 0

;ntropologo retorna com aqueles pedaeos de imagens e de pessoas

que eonheeeu meIhor do que ninguem, Mas situa~as ~ora do al-

eanee imediato do seu proprio mundo, elas apenas mstlg~m e tra-

zem a Iuz uma ligagao nostalgica, aquela dos anthropological blues.

? Para urn estudo da organizacao social desta sociedade, veja-se Rober-to Da Matta, Um Mundo Divitlido: A Estrutura Social dos Apinaye.

Petrooolis: Vozes, J 976.

A Vl:RSAO ~LJAUtAIl\A oJ_'

III

Mas 0 que se pode deduzir de todas essas oli servaefies e de to -

das essas impressfies que formam 0 processo que denominei an-

thropological blues?

Vma dedueao possivel, entre muitas outras, e a de que, em

Antropologia, e preeiso recuperar esse lado extraordinario das rela-

goes pesquisador/nativo. Se este C 0 ludo menos rotineiro e 0

mais dificil de ser apanhado da situacfio antropolrigiea, e certamen-

te porque ele se eonstitui no aspecto mais humano da nossa rotina.

E 0 que realmente permite eserever a boa etnografia. POl·que scm

ele, como coloca Geerlz, mnnipulando hnhilmcntc Hill cxciuplo do

filosofo illgles RyIe, nao se distingue urn piscar de 01h05 de uma pis-

cadela marota. E e isso, precisamente, que distingue a "de5cri~ao

densa" - tipicamente antropologica - da descricfio inversa, fo-

tografica ou mecanica, do viajante ou do missiomi rio." Mas para

distinguir 0 piscar mecanieo e fisiologico de uma piscadcla sutil e

comunieativa, e preciso sentir a marginalidade, a solidao e a sau-dade. E preciso cruzar os caminhos da empatia e cia humildade.

Essa descoberta da Antropologia Social como materia interpre-

tat iva segue, por outro Iado, uma tendencia da disciplina. TendeD-

cia que modernamente parece marcar sua passagem de uma cien-

cia natural da sociedade, como queriam os empiricistas ingleses c

amcricanos, para lima ciencia interpretativa, dcstinada antes de

tudo a confrontar subjetividades e delas tratar. De fato, neste pla-

no nfio seria exagero afirmar que a AntropoJogia e 11mmecanisme

dos mais importantes para deslocar nossa propria subjetividade. E

o problema, como assume Louis Dumont, entre outros, niio pare-

ce propriamente ser 0 de estudar as castas da India para conhece-

las integralmente, tarefa impossivel e que exigi r ia muito mais do

que 0 inteleeto, mas - isso sim ~ permitir dialo~ar com as for-

mas hierurqu icas qne convivemeon0500.

l~ a :lIll1lissuo - rouum-t ismo e anthropological blues aparte - de que 0 homem niio se en-

xerga sozinho. E que ele preeisa do outro como seu espelho e seu

guia.

6 Cf. Cli fford Geertz, The Int erpreta ti on of Cul tu res, Nova York; BasieBooks, 1973. [A ser publicado brevernente por Zahar Editores.]