damatta,roberto relativizando fabula tres racas

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  • 8/12/2019 DaMatta,Roberto Relativizando Fabula Tres Racas

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    ROBERTO D M TT,t

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    R L TIVIZANDOUMA INTRODUO ANTROPOLOGIA SOCIAL

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    FIgrupo num ce t 'papel dos Ob': o penod~ .de tempo, tendem a rninimizar otrajetria ~. tos matenaIs que o grupo cristaliza em suapelo qual' f jetos que concretizam sua histria e o modocomo esta~ e pode se perpetuar enquanto coletividade. Da,tudo indica os ve~do, a importncia dos dois conceitos que,das coletivid e~pnmem aspectos fundamentais da vida socialeSPecificidad a es humanas e nos ajudam a perceber suae Vlor- ; 2 :cr4:

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    sobre as razes que motivam as relaes profundas entrecredos cientficos supostamente eruditos e divorciados darealidade social e as ideologias vasadas na experincia con-creta do dia-a-dia. Observo, ento, nesta parte, como o nossosistema hierarquizado est plenamente de acordo com os de-terminismos que acabam por apresentar o todo como algoconcreto, fornecendo um lugar para cada coisa e colocando,complementarmente, cada coisa em seu lugar. Mas precisocomear do comeo.E o comeo aqui a perspectiva de senso comum rela-tivamente Antropologia. Tomando tal posio como pontode partida, assinalo minha convico segundo a qual sempremenor do que supomos a famosa distncia que deve separaras teorias eruditas (ou cientficas) da ideologia e valoresdifundidos pelo corpo social, idias que, como sabemos, for-mam o que podemos denominar de ideologia abrangenteporque esto disseminadas por todas as camadas, permeandoos seus espaos sociais. Por tudo isso, gostaria de comearrememorando uma experincia social corriqueira para o pro-fissional de Antropologia.Quando algum descobre que somos antroplogos ._-.-e os amigos, observo, dizem isso pronunciando a palavra comose ela fosse uma frmula, posto que , na maioria das vezes,desconhecida, supondo uma atividade misteriosa - a primei-ra pergunta sempre dirigida ao nosso trabalho com ossos,crnios, tmulos e esqueletos fsseis. Outra indagao fre-qente pode igualmente surgir no conjunto de perguntassobre as raas formadoras do Brasil, com todas aquelasindagaes j conhecidas desde o tempo da escola primria,mas que misteriosamente persistem no nosso cenrio ideol-gico, perguntas que dizem respeito a uma confirmao cien-tfica da preguia do ndio, melancolia do negro e acupidez e estupidez do branco lusitano, degredado e de-gradado. Tais seriam ainda hoje os fatores responsveis,nesta viso to errnea quanto popular, pelo nosso atrasoeconmico-social, por nossa indigncia cultural e da nossanecessidade de autoritarismo poltico, fator corretivo bsiconeste universo social que, entregue a si mesmo, s poderiadegenerar-se. Ouvindo tais opinies tantas vezes, eu sempreme pergunto se o racismo do famoso Conde de Cobineau estrealmente morto

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    A resposta de que somos antroplogos SOClalS(ou cul-turais) e que estamos interessados no estudo da vida socialdos grupos humanos ou, como o meu caso, em ndios deverdade, faz o interlocutor calar-se ou ento provoca o enter-ro do assunto com o comentrio de que os ndios esto sendodestrudos e perdendo suas terras. Mas a essa altura temosuma conversa sria, aproximando o leigo de certos problemaspolticos e econmicos atuais, questes das quais ele dese-ja ardentemente fugir, o que conduz decepo final de queo antroplogo socia:l mais um desses especialistas em pro- ~blemas contemporneos. No aquele senhor grisalho e de zroupas cqui que com seus culos finos e capacete de explora- ~ ~dor, descobre esqueletos datados de trs mil anos antes de Cris-g UJto em algum lugar do mundo, provavelmente no Antigo Egito. ~Do mesmo modo, ele no tambm o sagaz contador de ~ ~casos, capaz de alinhavar historietas de negros escravos, t lendas de ndios idealizados ou episdios histricos de damas, ~duques e prncipes portugueses, na nossa graciosa fbula das u..trs raas.Disto tudo, fica a imagem do antroplogo social comoum medidor de crnios, um confirmador de teorias sobre asraas humanas ou um arquelogo clssico, romanticamenteperdido nas misteriosas discusses das crenas iniciticasegpcias, arena privilegiada onde se encontram todas asnossas crenas na reencarnao, no Carma indiano e nascuras mgicas. Traos que se ligam s nossas mesas do altoespiritismo kardecista, aos terreiros poeirentos de Umbandae s teorias cientficas da Parapsicologia. E tudo isso,como sabemos bem, faz parte do mundo ideolgico brasilei-ro dominante, generalizado e abrangente,

    Ou seja, nos nossos valores, o lugar do antroplogo sempre junto Biologia (medindo caveiras ou discutindoraas) ou com a Arqueologia Pr-Histrica, perdido na ma-drugada dos tempos. Ora estamos na Histria do Brasilvista, a meu ver, pelo seu prisma mais reacionrio: comouma histria de raas e no de homens; ora estamos forado mundo conhecido: no Antigo Egito, na velha Grcia oujunto com os homens das cavernas. Em todo o caso, observonovamente, sempre com o conhecimento social sendo redu-zido a algo natural como raas, miscigenao e traosbiologicamente dados que tais raas seriam portadoras. Na

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    melhor das hipteses, estaramos tratando da pr-histria, ouseja: de um tempo situado antes do mundo social, no seulimiar. Um tempo que marca justamente o surgimento dasociedade, da cultura e da histria. Essa , numa penada, aposio onde somos sempre colocados.O fato social (e ideolgico) fundamental, que precisa serdiscutido e denunciado, que, na conscincia social brasilei-ra, o antroplogo surge na sua verso acabada de cientistanatural. Como tal, tem suas unidades de estudo bem deter-minadas: so as raas. E o fio que deve conduzir o seupensamento: o plano de evoluo destas raas. Tem tambmo domnio no qual se faz o drama brasileiro: o modo peloqual tais raas entram em relao para criar um povoambguo no seu carter. Nesta viso de mundo e de cincianada h que os homens e os grupos aos quais pertenam

    possam realizar concretamente. Tudo uma questo de tem-po biolgico, nunca de tempo social e historicamente deter-minado. Assim, o tempo biolgico tem suas razes que otempo dos homens concretos e histricos desconhece, de nadavalendo qualquer rebelio contra ele. Como um cientista na-tural desumanizado o antroplogo social fica, nesta postura,preso e sujeito ao estudo das coisas dadas, jamais daquiloque realizado pelo homem em sociedade. Sua estria,assim, sempre corre o risco de ser ordenadamente pessimistae indisfaradamente elitista, embora surja mascarada emtantos livros como um grito de libertao. De fato, no uma narrativa de possibilidades e alternativas, atitude quesempre faz nascer o otimismo, mas de derrotas e fechamen-tos, num universo onde a vontade e o espao para a espe-rana muito reduzido.

    Mas nem sempre o antroplogo surge na conscincia po-pular como cientista natural preocupado com medidas deossos e com a biologia do homem como espcie animal. Eletambm surge como uma espcie de economista, produzin-do um discurso onde conceitos bsicos como modo de pro-duo, sobre-trabalho, unidade produtiva, ete. so re-levantes, num conjunto quase sempre mais preocupado coma forma do que com a substncia mesma destas relaesque os conceitos implicam diretamente. Questes tais como:de que modo se desenvolve o capitalismo no Brasil; como sedo concretamente as relaes de produo e trabalho entre61

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    ns' como todo esse edifcio percebido pelos que nele estoenvolvidos e muitas outras so raramente realizadas. Respon-der a essas questes seria fundamental para perceber aquiloque Marx denominou de ter das relaes sociais; ou seja:os valores e as motivaes que - como cultura e ideologia- emolduram e do sentido s prprias relaes sociais e deproduo. Deste modo, quando deixamos de perceber quandoas idias passam a ser atores em certas situaes sociais,seja porque atuam para desencadear a ao, seja para im-pedir certas condutas, deixamos de penetrar no mundo so-cial propriamente dito e, assim fazendo, corremos o riscode cair na postura terico-formal e, com ela, no plano abstra-to das determinaes. Sejam as de carter biolgico, sejam asde carter econmicoque hoje tendem a substituir essas deter-minaes mais antigas, fornecendo o quadro que permiteencontrar novamente uma totalidade abrangente e superiorque tudo submete e explica, enquanto esconde as possibili-dades de resgatar o humano dentro do social, j que elejamais pode ser contido em leis, frmulas, regras oudeterminaes, a menos que o jogo das foras sociais assimo deseje. O ponto destas reflexes fundamental e terei queretom-lo mais adiante, sob pena de ser acusado de super-ficialidade ou ignorncia. Agora, porm, preciso prosseguirna especulao do sentido psicolgico da nossa fbula dastrs raas e de suas implicaes para uma antropologia bra-sileira que se deseja realmente libertadora.Tomemos esse plano como ponto focal de nossas inda-gaes. Essa fbula importante porque, entre outras coisas,ela permite juntar as pontas do popular e do elaborado (ouerudito), essas duas pontas de nossa cultura. Ela tambmpermite especular, por outro lado, sobre as relaes entre ovivido (que freqentemente o que chamamos de popular e oque nele est contido) e o concebido (o erudito ou o cien-tfico - aquilo que impe a distncia e as intermediaes).

    impressionante tambm observar a profundidade hist-rica desta fbula das trs raas. Que os trs elementos sociais- branco, negro e indgena - tenham sido importantes entrens bvio,constituindo-se sua afirmativa ou descoberta quaseque numa banalidade emprica, claro que foram Mas huma distncia significativa entre a presena emprica doselementos e seu uso como recursos ideolgicos na construo

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    da identidade social, como foi o caso brasileiro. Mas, devolembrar, no foi o caso norte-americano, mexicano e demuitos outros pases da Amrica do Sul e Central, onde -sabemos bem - branco colonizador, ndio e negro formavamelementos visveis empircamente. Mas em muitas outras so-ciedades, como, por exemplo, nos Estados Unidos, o recortesocial da realidade empiricamente dada foi inteiramente di-verso, com negros e ndios sendo situados nos plos infe-riores de uma espcie de linha social perpendicular, a qualsempre situava os brancos acima. Naquele pas, como temdemonstrado sistematicamente muitos especialistas, no hescalas entre elementos tnicos: ou voc ndio ou negroou no O sistema no admite gradaes que possam prem risco aqueles que tm o pleno direito igualdade. Emoutras palavras, nos Estados Unidos no temos um trin-gulo de raas e me parece sumamente importante considerarcomo esse tringulo foi mantido como um dado fundamen-tal na compreenso do Brasil pelos brasileiros. E mais, comoessa triangulao tnica, pela qual se arma geometricamentea fbula das trs raas, tornou-se uma ideologia dominan-te, abrangente, capaz de permear a viso do povo, dos inte-lectuais, dos polticos e dos acadmicos de esquerda e de di-reita, uns e outros gritando pela mestiagem e se utilizandodo branco, do negro e do ndio como as unidades b-sicas atravs das quais se realiza a explorao ou a reden-o das massas.

    O que parece ter ocorrido no caso brasileiro foi umajuno ideolgica bsica entre um sistema hierarquizado real,concreto e historicamente dado e a sua legitimao ideol-gica num plano muito profundo. Observo que as hierarquiassociais do antigo regime, isto , o regime anterior Re-voluo Francesa, eram ideologicamente fundadas nas leisde Deus e da Igreja. Era o fato de Deus ter armado umapirmide social com os nobres l em cima e com o Impe-rador e o Papa legitimando seus poderes no plano temporale espiritual que respondia s questes neste sistema. Nocaso brasileiro, a justificativa fundada na Igreja e num Ca-tolicismo formalista, que chegou aqui com a colonizao por-tuguesa, foi o que deu direito explorao da terra e escra-vizao de ndios e negros. No nosso caso, tal legitimaoestava fundada numa poderosa juno de interesses religio-63

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    sos, polticos e comerciais, numa ligadura que era ao mesmotempo moral, econmica, poltica e social e que tendia amexer-se como uma totalidade. No temos companhias par-ticulares explorando a terra com o olho apenas na atividadeprodutiva e com leis individualizadas, semi-independentes daCoroa, como aconteceu nos Estados Unidos. Mas, ao contrrio,era a Coroa portuguesa que, legitimada pela religio, pelapoltica e pelos seus interesses econmicos, explorava sobe-ranamente o nosso territrio com sua gente, fauna e flora.O jogo poltico estava submetido ao comercial - mas atum certo ponto, pois no fundo era bsico que o Rei tivessetodo o controle moral sobre os empreendimentos coloniais etal controle moral era o motor que impulsionava a cons-cincia da colonizao portuguesa, estando motivado pela re-ligio e pela poltica civilizatria. Em outras palavras, asatividades comerciais logo dominavam o mundo colonial por-tugus e estavam por trs de sua arrancada colonizadora,mas o suporte consciente deste empreendimento era a f eo imprio. Era na religio que Portugal encontrava a mol-dura atravs da qual podia justificar o seu movimentoexpansionsta.

    Tais favores, que podem ser lidos com o vagar que me-recem na obra de Raymundo Faoro (1975) e de VitorinoMagalhes Godinho (1971), entre outros, fortaleceram aquio sistema vigente em Portugal, realizando um perfeito trans-plante de ideologias de classificao social, tcnicas jurdicase administrativas de modo a tornar a colnia exatamenteigual em estrutura Metrpole. Deste modo, em que peseas especulaes sobre nossa formao social (tingida, comodesejam os nossos idelogos, pelo sangue negro e indgena),o fato social crtico e socialmente significativo que eraPortugal quem nos dominava, abrangia e totalizava. Emoutras palavras, a Colnia brasileira nunca foi um campopara experincias sociais ou polticas inovadoras, onde se pu-dessem implementar a fundo diferenas radicais e individua-lidades. Muito pelo contrrio, apesar das diferenas regio-nais, de clima, de desenvolvimento econmico e experinciapoltica, todo o nosso territrio foi sempre fortemente cen-tralizado e governado por meio de decretos e leis uni ver-salizantes, ditadas na sede do Governo. Nosso modo deexpresso como sociedade, como uma totalidade socialmente

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    gnificativa e diferenciada, sempre foi por meio de leis alta-ente generalizadoras, dentro do formalismo jurdico que pedra de toque das sociedades hierarquizadas modernas.m outras palavras, o nosso sistema colonial estava fun-do numa hierarquia moderna, sistema cujos ps eram omrcio mundial, os braos eram as leis e uma administra-ocolonial baseada numa larga experincia mundial, o corpoa uma sociedade ideologicamente muito bem estruturadaternamente, com seus estados sociais, e a cabea era oei. Alis, vale a pena abrir um parntesis para mostrarmoas hierarquias sociais se davam em Portugal, sobretudorque temos uma imagem de Portugal como um pas ima-nrio, atrasado, onde no existe uma sociedade. Na rea-ade, porm, a sociedade portuguesa poca da colonizaoBrasil um todo social altamente hierarquizado, comuitas camadas ou estados sociais diferenciados e comple-entares. To hierarquizada que at as formas nominais deatamento, isto , o modo de uma pessoa se dirigir a outra,tavam reguladas em lei desde 1597 e foram reguladas no-mente em lei de 1739. Como nos diz Magalhes Godinho,roibia-se no s dar o tratamento, como mesmo aceit-lo,pessoas a que no era devido. Ou seja, a igualdade est

    gorosamente proibida. E continua Godinho: o alvar dede janeiro de 1739 reserva a Excelncia aos Grandes,nto eclesisticos como seculares, ao Senado de Lisboa edamas do Pao; a Senhoria pertence aos bispos e cnegos,s viscondes e bares, aos gentis-homens de Cmara e moosdalgos do Pao, abaixo, h s direito a Vossa Merc (Go-nho, 1971: 73). Tais formas de tratamento altamente re-ladas do-nos uma idia dos estados sociais de umrpo social altamente complexo, sociedade onde as pessoasscrevem-se imediatamente em categorias que as distinguemlonome, pela forma de tratamento, pelo traj e e pelas penasque esto sujeitas (cf. Godinho, 1971: 74). E continuaossoAutor, agora especificando as divises internas de Por-gal: na Crnica de D. Joo I enumeram-se quatro esta-os do reino: prelados, fidalgos, letrados, cidados - abaixoos cidados, ou povo no sentido poltico (homens bons), hgrande massa, sem representao em cortes. O Rei, quandodirige s categorias sociais-jurdicas, escreve por ordem:zes e oficiais ( a categoria dos letrados), fidalgos, cava-

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    leiros, escudeiros, homens bons e, por derradeiro, o povo(Godinho, 1971: 74-75). Do mesmo modo, h uma ordemrgida de aparecimento nos rituais ou cerimoniais, onde emprimeiro lugar surgem os prelados (que emolduram e to-talizam a festividade ligitimando a ocasio perante a ordemDivina), depois os grandes senhores de ttulo que so se-guidos de outros fidalgos que, por sua vez, antecedem oscidados e o povo em ltimo lugar. A cada uma dessas ca-tegorias sociais correspondem direitos e deveres bem marca-dos, inclusive direitos de terem punio diferenciada paraseus crimes. Nesta sociedade, cujo modelo nos familiar,ningum mesmo igual perante a lei 3Temos em Portugal uma sociedade complexa, ou melhor,complicada. Sua economia mercantilista e portanto moder-na. Estava fundada num mercado e em trocas comerciais.Mas toda ela era controlada por leis e decretos que rigida-mente impediam que o econmico se estabelecesse comoatividade dominante. No dizer de Godinho, tnhamos em Por-tugal um Estado mercantil - com uma economia modernaoperando em escala mundial, mas sem as suas instituiesconcomitantes: uma burguesia comercial com individualida-de e interesses prprios (cf. Godinho, 1971: 93). Ao con-trrio, em Portugal havia um sistema onde imperava o mer-cantilismo, mas sem uma mentalidade burguesa, isto , semuma classe comercial com idias igualitrias, individualistase acreditando no poder definidor total do mercado e do di-nheiro. Temos, pois, uma sociedade singular neste Portugalmoderno. Um sistema onde as hierarquias tradicionais somantidas, o todo sempre prevalece (na forma da Coroa, doCatolicismo, da Igreja e do Rei) sobre as partes, e o pr-prio Rei que o principal capitalista. Se o Rei no con-trola totalmente o comrcio, ele - por outro lado - tam-bm no deixa que o grupo que tem nesta atividade suaprincipal meta desenvolva um plano de valores a ela ade-quado. Deste modo, o comerciante portugus em vez de ope-

    3. Elaborei este mesmo ponto, embora partindo de outros domlnios sociais Quandoanalisei a expresso braaleira, V oc sabe com Quem est falando? . no meuCarnavais Malandros e Heris Rio: Zahar, 1979. Neste contexto, vale recordar quePortugal conhecia muito bem a instituio da escravido negra e moura, como o provauma citao de Clenardo, referida por Wilson Martins na sua monumental Hietriada. Inteligncia Brasileira. ~ conveniente citar o texto em pauta: Os escravos pululam,diz Clenardo, por toda a parte. Todo o servio feito por negros e mouros cativos.Portugal est a abarrotar com essa raa de gente. Estou Quase a crer que s6 emLisboa h mais escravos e escravas do Que portugueses livres de condio... (cf.

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    te religiosos, coesos e determinados, como foi o caso daAmrica do Norte, ela tambm no se constituiu numa em-presa algo sem alvo, ou mtodo. 4 impossvel demarcar com preciso as origens do credo

    racial brasileiro, mas possvel assinalar seu carter pro-fundamente hierarquizado, como uma ideologia destinada asubstituir a rigidez hierrquica que aqui se mantinha desdeo descobrimento, quando nossas estruturas sociais comea-ram a se abalar a partir das guerras de Independncia. Omovimento de Independncia provocou toda uma reorienta-o dos sistemas de hierarquia vigentes no Brasil, fazendocom que a estrutura de poder tivesse como ponto final aCorte do Rio de Janeiro, em vez de se prolongar para oalm-mar, na direo de Lisboa, ponto do qual, anteriormen-te, partiam todas as ordens e todos os favores. Mesmo con-siderando que nossa Independncia foi obra dos estratos do-minantes e no um movimento de baixo para cima, notendo por isso mesmo o mrito de ser uma alavanca paratransformaes sociais mais profundas, ela foi bsica na me-dida em que apresentou elite nacional e local a necessi-dade de criar suas prprias ideologias e mecanismos de ra-cionalizao para as diferenas internas do pas. De fato, impossvel separar e tornar-se independente, sem a con-seqente busca de uma identidade - vale dizer, de umabusca no sentido de justificar, racionalizar e legitimar dife-renas internas. Se antes a elite podia colocar todo o pesodos erros e das injustias sobre o Rei e a Coroa Portuguesaem Lisboa, a partir da Independncia, esse peso tinha queser carregado aqui mesmo, pela camada superior das hierar-quias sociais. Onde foi nossa elite buscar tal ideologia?Creio que ela veio na forma da fbula das trs raas eno racismo brasileira, uma ideologia que permite con-ciliar uma srie de impulsos contraditrios de nossa socie-dade, sem que se crie um plano para sua transformaoprofunda. Neste sentido, vale a pena observar, com ThomasSkidmore (1976), que o marco histrico das doutrinas ra-ciais brasileiras o perodo que antecede a Proclamao daRepblica e a Abolio da Escravatura, momento de crisenacional profunda, quando se abalam as hierarquias sociais.

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    4. Neste sentido, recomendo fortemente a leitura de Boxer, 1969, e de Schwartz,

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    A crise que deveria ter chegado com a Independncia que,de fato, ela acabou adiando, mas que se realizou afinal noMovimento Abolicionista e da Proclamao da Repblica,esses dois momentos crticos, parte e parcela de um s dramasocial altamente contraditrio j que a Abolio progressi-va e aberta - propugnando pela igualdade e transformao.das hierarquias; ao passo que a Repblica um desfechofechado e reacionrio, destinado a manter o poder dos donosde terra, conforme revela, entre outros, Richard Graham 1979 .O fato de a Abolio se constituir num movimento con-creto uma terrvel ameaa ao edifcio econmico e socialdo pas. Deste modo, se a ideologia catlica e o formalismojurdico que veio com Portugal no eram mais suficientespara sustentar o sistema hierrquico, era preciso uma novaideologia. Essa ideologia, ao lado das cadeias de relaes so-ciais dadas pela patronagem e que se mantiveram aparen-temente intactas, foi dada com o racismo. Mas precisonotar como essa ideologia surgiu de modo complexo, no bojode dois impulsos contraditrios tpicos alis das grandescrises de abertura social. Um deles, caracterizado pelo pro-jeto reacionrio de manter o status quo libertando o escra-vo juridicamente, mas deixando-o sem condies de libertar-se social e cientificamente; o outro muito diferente: trata-se de perceber como o racismo foi uma motivao poderosapara investigar a realidade brasileira. Pode-se, pois, dizerque a fbula das trs raas se constitui na mais poderosafora cultural do Brasil, permitindo pensar o pas, integraridealmente sua sociedade e individualizar sua cultura. Essafbula hoje tem a fora e o estatuto de uma ideologia do-minante: um sistema totalzado de idias que interpenetraa maioria dos domnios explicativos da cultura. Durantemuitos anos forneceu e ainda hoje fornece, o mito das trsraas, as bases de um projeto poltico e social para o bra-sileiro (atravs da tese do branqueamento como alvo a serbuscado) ; permite ao homem comum, ao sbio e ao idelogoconceber uma sociedade altamente dividida por hierarquiza-es como uma totalidade integrada por laos humanosdados com o sexo e os atributos raciais complementares;e, finalmente, essa fbula que possibilita visualizar nossaSociedade como algo singular - especificidade que nos

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    presenteada pelo encontro harmonioso das trs raas. Seno plano social e poltico o Brasil rasgado por hierarqui-zaes e motivaes conflituosas, o mito das trs raas unea sociedade num plano biolgico e natural, domnio uni-trio, prolongado nos ritos de Umbanda, na cordialidade, nocarnaval, na comida, na beleza da mulher (e da mulata) ena msica ...Mas preciso falar um pouco sobre as fontes eruditasdeste racismo brasileiro. Sabemos que ele nasceu na EUropano sculo XVIII, na crise da Revoluo Francesa, mas s veiodominar o cenrio intelectual europeu no sculo seguinte, naforma das teorias evolucionistas cientificamente respeitadas.No sculo XVIII, sua apresentao carecia de fora ideol-gica, pois era apenas - de acordo com Hannah Arendt(1976: capo 2) - uma doutrina que trabalhava uma histriaherica do povo francs, numa concepo segundo a qual osnobres formavam uma parcela aliengena forte e, assim, des-tinada pelo nascimento e origem ao poder. No sculo XIX,entretanto, o racismo aparece na sua forma acabada, comoum instrumento do imperialismo e como uma justificativanatural para a supremacia dos povos da Europa Ocidentalsobre o resto do mundo. Foi esse tipo de racismo que aelite intelectual brasileira bebeu sofregamente, tomando-ocomo doutrina explicativa acabada para a realidade queexistia no pas. Do mesmo modo que ocorre ainda hoj e, as teo-rias racistas produzidas por norte-americanos como Agassiz :ou por europeus como Buckle, Gobineau e Couty, para ficar-mos com os que foram os mais influentes no Brasil, so ampla-mente adotadas, tendo-se grande preocupao - como revelaSkidmore (1976: capo 2) - com as idias daqueles estu-diosos, como Buckle, Gobneau e Agassz que fizeram refe-rncias expressas ao Brasil. Nelas, obviamente, nosso futurosurgia como altamente duvidoso, j que a sociedade brasi-leira se caracterizava por se constituir numa arena de con-j unes raciais entre negros, brancos e ndios, unies queeram totalmente condenadas. Assim dizia, por exemplo, oConde de Gobineau que levaria menos de duzentos anos ...o fim dos descendentes de Costa-Cabral (Brasil) e dos emi-grantes que os seguiram (cf. Skidmore, 1976: 46). Ou seja,

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    o indesejado e hbrido do cruzamento de brancos, negrosndios, tomados por esses cientistas como espcies dife-s. Apesar da diversidade das teorias racistas espo-adas pelos vrios especialistas, eles partiam de pressupostosimples; simplicidade, alis, que se constitua, como j cha-ei ateno, numa da mais poderosas razes de seu atrativontelectual e poltico. Mas quais eram esses pressupostos?

    Um deles o de que cada raa ocupa um certo lugara histria da humanidade. No importa aqui considerar seproposio tinha um ponto de partida segundo o qual todass raas saram de um mesmo tronco comum ou de AdoEva (como foi de fato teorizado nos sculos XVI e XVII)u se elas haviam sido criadas de modo diferenciado desdecomeo, o fato que, tanto na hiptese monogenista quantoa poligenista, elas eram tomadas como espcies altamenteiferenciadas, seja no tempo, seja no espao, ou em ambass dimenses. Da a ilao de que as diferenas entre asociedades e naes expressavam as posies biolgicas di-renciadas de cada uma numa escala evolutiva, Louis Agassiz,or exemplo, que foi provavelmente o maior dos poligenistasos Estados Unidos, no hesitava em situar a raa brancaomo superior e, aps sua famosa visita ao Brasil, escrever

    m seu livro o que seria uma opinio discutidssima sobrenossa sociedade. Dizia o clebre zologo de Harvard : Queualquer um que duvida dos males desta mistura de raas,se inclina, por mal entendida filantropia, a botar abaixodas as barreiras que as separam, venha ao Brasil. Nooder negar a deteriorao decorrente do amlgama deas, mais geral aqui do que em qualquer outro pas doundo, e que vai apagando rapidamente as melhores qua-dades do branco, do negro e do ndio, deixando um tipodefinido, hbrido, deficiente em energia fsica e mentalcitado por Skidmore, 1976: 47-48). Como se observa, oiagnstico no muito diferente do de Gobineau.

    Um outro ponto tambm essencial nas doutrinas racistaso determinismo. Isso significa que as diferenciaes bio-icas so vistas como tipos acabados e que cada tipo estterminado em seu comportamento e mentalidade pelos fa-res intrnsecos ao seu componente biolgico. Gobineau ela-orou bem esse ponto, valendo a pena reproduzir aqui ou esquema das raas humanas, pois para esse autor h

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    uma perfeita equao entre traos biolgicos, psicolgicos eposio histrica. Uma espcie de totemismo s avessas. Eiso esquema racial de Gobineau, tirado do seu A DiversidadeMoral e Intelectual das Raas:RkAS HUMANAS

    Negra Amarela BrancaIntelecto Dbil Medocre VigorosoPropenses Muito fortes Moderadas FortesanimaisManifestaes Parcialmente Comparativamente Altamentemorais latentes desenvolvidas cultivadas

    e acordo com Gobineau, 1856: 95,

    1.1 IOI-z4:OOuJ96)0: wOzuU1.1.J.o esquema pe a nu no s a questo da diversidade,como tambm a concepo da superioridade das chamadasraas brancas, trao que a histria confirmava amplamen-te na teoria de Gobineau. Alm disso, cada raa tem umadeterminada tendncia, havendo na base uma equao entreRAA = CULTURA = NAO = TRIBO. Deste modo,os fencios eram mercadores; os gregos, professores dasfuturas geraes e os romanos, modeladores de governo eleis. Acrescenta ainda Gobineau, explictando um pouco maissua viso determinista: Estes poderes e os instintos ouaspiraes que surgem deles nunca mudam enquanto a raapermanece pura. Eles progridem e se desenvolvem, mas nuncaalteram sua natureza (1856: 76). Estamos diante de umverdadeiro cdigo natural e diante de realidades que jamaispodem mudar pelo ato puro e simples da vontade. Ao con-trrio, nesta perspectiva, as qualidades positivas e negativasso dadas de uma vez por todas - sendo depois o destinoda raa atualizado numa mera questo de combinaes.Se as propenses animais so fortes e no contrabalan-adas por manifestaes morais, a raa estaria conde-nada a ter uma vida coletiva deficiente e desorganizada.

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    lDo mesmo modo e pela mesma lgica, quando as propen-sidades animais so fortes e o intelecto vigoroso, comoocorre com as raas brancas, o resultado uma grandeexpanso do sentido moral, com uma complexa e variadaorganizao poltica emergindo cf. Gobineau, 1856: 96).Neste modelo, cuja simplicidade, deterrninismo e pobre-za nos faz hoje imaginar como foi possyel lev-lo a srioh menos de cem anos atrs, as civilizaes decaam, arrui-navam-se, eram conquistadas, no se desenvolviam ou sim-plesmente desapareciam porque sua histria racial conduziaa misturas infelizes dos traos contidos em cada unidaderacial. Da, certamente, a fantstica preocupao do Condede Gobineau com o Brasil, onde ele serviu como Embaixador.Diante de uma realidade fsica de mulatos, cafusos e ma-melucos, diante de uma sociedade altamente variada em ter-mos de cor, Gobineau no teve outra alternativa senoexpressar seu pessimismo diante do futuro do pas j que,pelas suas teorias, aqui o branco estava perdendo suas qua-lidades para o ndio e, sobretudo, para a raa negra.Com o imenso prestgio que circunda tudo o que vemde fora, sobretudo da Europa e dos Estados Unidos, estateoria que gerou o arianismo e permitiu relacionar a Bio-logia e a Histria com a moralidade foi logo aceita noBrasil. De fato, nada mais fcil para servir de modelocientfico a nossa realidade, dando-lhe uma forma totalza-da e acabada, do que essa sntese arianista, nascida dasidias de Gobineau. Mas isso no ocorreu ao acaso, ou poruma percepo emprica da experincia histrica brasileira. claro, como indica Skidmore 1976), que a experincia his-trica bsica para a adoo das teses racistas, mas ameu ver essa experincia no tudo.Existem, como estou procurando mostrar, fatores maisprofundos relacionados formao social, cultural e hist-rica do Brasil que permitem especular sobre a adoo e apermanncia do racismo como ideologia e como tema dereflexo cientfica, de Slvio Romero at os nossos dias. Con-sideremos sumariamente tais fatores:O primeiro ponto a ser considerado que nem todas asformas de determinismo foram aceitas para discusso nomeio social, poltico e cultural brasileiro. Em outras palavras,a discusso das teses do determinismo geogrfico so cer-

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    tamente menos estudadas e debatidas do que as oferecidaspelos determinismos raciais, segundo os quais a unidadedeterminativa dos fatos sociais e polticos, o. agente de cau-salidade no o. solo, a chuva, o. clima, a temperatura ou oregime dos rios, mas fatores biolgicos internos. A prefe-rncia indica claramente a relao profunda existente entreo meio. social brasileiro. e as doutrinas racistas de gente comoCobineau, Lapouge, Inginieros, Couty e outros. Existe, pois;uma relao profunda, socialmente determinada, entre asdoutrinas racistas de tipo histrico. (chamadas de arianis-tas ) , em seu apelo. explicativo para uma sociedade concre-tamente dividida em segmentos, cujo. poder e prestgio. dife-rencial e hierarquizado correspondia, grosso modo, a dife-renas de tipos fsicos e origens sociais.O segundo. que o. racismo. la Oobineau tinha o.mritode inaugurar uma reflexo sobre a dinmica das raas,abrindo. a discusso. das dinmicas sociais. Podia-se, comisso, deixar de louvar os tipos puros (sobretudo. o. brancoariano ), passando para a especulao. dos resultados doscruzamentos entre as raas. Isso. correspondia situaohistrica e social do Brasil, onde a escravido estava conti-da num sistema poltico antiindividualista e antiigualitrio ;um sistema totalizante e abrangente, dominado por umamodalidade muito bem articulada e antiga de formalismojurdico. - legado da colonizao portuguesa. O fato determos constitudo at o. final do sculo. passado uma socie-dade de nobres, com uma ideologia aristocrtica e antiigua-litria; dominada pela tica do familismo, da patronageme das relaes pessoais, tudo isso emoldurado. por um siste-ma jurdico formalista e totalizante, que sempre privilegiao todo e no as partes (os indivduos e os casos concretos),deu s nossas relaes sociais um carter especial. Fez, porexemplo, que o regime de escravido fosse aceito como algonormal pela maior parte dos membros de nossas elites,tornando-se um sistema universal pelo. fim do. sculo XIX.Em outras palavras, a escravido. brasileira no. foi um fen-meno. social regional, altamente localizado, como ocorreu como.SEstados Unidos, mas - pelo contrrio - tornou-se uma

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    cravos em sua populao. Em 1819, segundo uma estimativaoficial, nenhuma regio tinha menos de 27% de escravos napopulao total (cf. Skidmore, 1976: 59). E isso no po-deria ser de outro modo, dado que o sistema era governadopor meio de uma estrutura poltica autoritria, centralizante,onde o poltico e a moralidade sempre controlavam e demar-cavam de cima os impulsos econmicos.Em outras palavras, numa sociedade fortemente hierar-quizada, onde as pessoas se ligam entre si e essas ligaesso consideradas como fundamentais (valendo mais, na ver-dade, do que as leis universalizantes que governam as insti-tuies e as coisas), as relaes entre senhores e escravospodiam se realizar com muito mais intimidade, confiana econsiderao. Aqui, o senhor no se sente ameaado ou cul-pado por estar submetendo um outro homem ao trabalhoescravo, mas, muito pelo contrrio, ele v o negro como seucomplemento natural, como um outro que se dedica ao tra-balho duro, mas complementar as suas prprias atividadesque so as do esprito. Assim a lgica do sistema de rela-es sociais no Brasil a de que pode haver intimidadeentre senhores e escravos, superiores e inferiores, porque oundo est realmente hierarquizado, tal e qual o cu dagreja Catlica, tambm repartido e totalizado em esferas,rculos, planos, todos povoados por anjos, arcanjos, queru-bins, santos de vrios mritos etc., sendo tudo consolidadoa Santssima Trindade, todo e parte ao mesmo tempo; igual-ade e hierarquia dados simultaneamente. O ponto crticode todo o nosso sistema a sua profunda desigualdade.Ningum igual entre si ou perante a lei; nem senhores(diferenciados pelo sangue, nome, dinheiro, ttulos, proprie-dades, educao, relaes pessoais passveis de manipulaoetc.), nem os escravos, criados ou subalternos, igualmente

    diferenciados entre si por meio de vrios critrios. Esse ,arece-me, um ponto-chave em sistemas hierarquizantes, pois,quando se estabelecem distines para baixo, admite-se, pelaesma lgica, uma diferenciao para cima. Todo o univer-o social, ento, acaba pagando o preo da sua extremadadesigualdade, colocando tudo em gradaes.Neste sistema, no h necessidade de segregar o mestio,o mulato, o ndio e o negro, porque as hierarquias asse-guram a superioridade do branco como grupo dominante. A75

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    intimidade, a considerao, o favor e a confiana, podemse desenvolver como traos e valores associados hierarquiaindiscutvel que emoldura a sociedade e nunca - como supsFreyre - como um elemento do carter nacional portugus.Tal e qual na ndia, as camadas diferenciadas da sociedade- as castas - so vistas como rigorosamente complemen-tares. Aqui no Brasil, o nosso racismo forneceu os elemen-tos de uma viso semelhante, colocado no tringulo das raasquando situa o branco, o negro e o ndio como formadoresde um novo padro racial. Branco, porm, diferente dosarianos europeus ou americanos do norte: algo tipicamen-te brasileiro, singular e forte como o samba e o carnaval.A falta de segregao parece ser, pois, um elemento rela-cionado de perto presena de patronagem, intimidade econsiderao. Numa palavra, a ausncia de valores iguali-trios. Num meio social como o nosso, onde cada coisa temum lugar demarcado e, como corolrio, - cada lugar temsua coisa, ndios e negros tm uma posio demarcada numsistema de relaes sociais concretas, sistema que orien-tado de modo vertical: para cima e para baixo, nunca paraos lados. um sistema assim que engendra os laos de pa-tronagem, permitindo conciliar num plano profundo posiesindividuais e pessoais, com uma totalidade francamente di-rigida e fortemente hierarquizada. Em sociedades assim cons-titudas, situaes de discriminao (ou de segregao) stendem a ocorrer quando o elemento no conhecido social-mente; isto , quando a pessoa em considerao no tem eno mantm relaes sociais com pessoa alguma naquele meio.A discriminao no algo que se dirige apenas ao diferente,mas ao estranho, ao indivduo desgarrado, desconhecido esolitrio: ao estrangeiro - o que, numa palavra, no estintegrado na rede de relaes pessoais altamente estrutu-radas que, por definio, no pode deixar nada de fora:nem propriedade nem emoo nem relao. claro que, nossistemas herarquizados, pessoas de cor sofrem discriminaocom mais freqncia, mas no se pode esquecer que pessoaspobres e at mesmo visitantes ilustres podem ser discrimi-nados pela simples razo de no terem nenhuma associaofirme com algum da sociedade local. O maior crime entrens, ou melhor: no seio de um sistema hierarquizado, no

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    II

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    e assim inferiorizar, mas em no ter relaes SOCIaIS. Umavez que tais relaes so estabelecidas, todos ficam dentrode um sistema totalizante e sempre por meio dele que asdiferenas entre os grupos so resolvidas.Mas o que ocorre em sistemas igualitrios e individua-lizados, onde as hierarquias que sustentam o poder do todosobre as partes foram rompidas?Ao responder a essa questo, chegamos ao centro dadiferena entre o racismo brasileiro e norte-americano,bem como ao cerne das diferenciaes raciais doutrinrias.Sabemos que nos Estados Unidos e na Europa o mestioera visto como pea indesejvel do sistema de relaes ra-ciais. De fato, o foco das teorias era a especulao sobre a

    inferioridade bsica do mestio, elemento hbrido, e dota-do de todas as qualidades negativas daquilo que se chamavade sub-raas. Numa palavra, todo o problema era que,muito embora se pudesse tomar as raas como tendo qua-lidades positivas, colocando a raa branca como inques-tionavelmente superior, o que no se podia realizar era amistura ou o cruzamento entre elas. Aqui, a doutrinaracista deixa transparecer dois pontos muito importantes quea anlise sociolgica no deve deixar passar: um deles que as raas humanas, embora situadas em escalas de atra-so e progresso, tinham qualidades. Seriam at mesmo dignasde admirao, caso no fossem jamais colocadas lado a lado.O outro, a condenao fundamental de suas relaes. Omal no est nas diferenas entre as raas, diz o racismoarianista, mas nas suas relaes. Aqui temos, obviamente, oponto-chave dos racismos arianistas, sobretudo na sua mo-dalidade americana. E o que isso nos diz do ponto de vistasociolgico? Diz-nos claramente que o problema considerarcada raa em si, mas nunca estudar suas relaes. E nssabemos que as relaes denunciam estruturas de poder di-ferenciadas e hierarquizadas em sistemas fundados num credoigualitrio explcito. A elaborao do racismo cientficonorte-americano correspondia muito de perto realidade so-cial daquele pas, onde o credo iguaitrio, o individualismoe o ideal da igualdade perante a lei criavam obstculos insu-perveis para unies entre pretos e brancos em outros pla-nos que no fosse o do trabalho. O fato, ento, de o mu-lato ser to desprezvel no credo racial americano, a ponto

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    dele no ter ali uma posiao socialmente reconhecida, postoque classificado como negro, tem suas razes, como de-monstrou Myrdal (1944), na existncia concreta de um credoigualitrio e individualista e no peso social deste credo dentrodo meio social norte-americano. 5Realmente, aps o movimento abolicionista, a massa denegros livres tornou-se um problema social serssimo nosEstados Unidos. Diferentemente do Brasil, onde havia vriascategorias de negros com posies sociais diferenciadas nosistema (negros escravos recentes, negros escravos antigos,negros escravos mais longe ou mais perto das casas-grandes,negros livres h muito tempo, negros livres recentemente,crianas livres filhas de escravos etc.) , naquele pas, a com-binao do homem livre com o negro era muito mais rarae foi conseqncia de uma sangrenta guerra civil. Como,ento, manter o credo segundo o qual todos so iguais pe-rante a lei, se existem ex-escravos competindo com brancospobres, sobretudo num Sul derrotado? Em outras palavras,como encontrar um lugar para negros, ex-escravos, num sis-tema que situava (e ainda situa) o indivduo e a igual-dade como a principal razo de sua existncia social? Aqui,a nica resposta possvel a discriminao violenta, na for-ma de segregao que, diferentemente do caso brasileiro (ede outros pases com contingente negro e predominncia deestruturas sociais hierarquizantes) , assumiu caracteristica-mente a forma clara e inequvoca de segregao legal, fun-dada em leis. Assumida portanto com todas as letras e emtoda a sua integridade, a segregao racial deixa de serum paradoxo historicamente dado no sistema norte-america-no. Ela de fato pode ser explicada como um modo concretoe coerente de uma sociedade individualista resolver o pro-blema da desigualdade e de sua manuteno num sistemaonde um credo igualitrio tem importncia social deter-minativa.A expresso deste fato sociolgico concreto no plano eru-dito das doutrinaes cientficas foi a doutrina racial quedesencorajava o mulato como tipo fsico e categoria sociallegitimamente reconhecida, tornando assim impossvel solidi-ficar as redes de relaes pessoais efetivamente existentes

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    entre brancos e negros no Sul, o que certamente poderiadar seqncia s estruturas hierarquizadas ali existentes,mas que foram destrudas fora pela Guerra Civil queveio estabelecer a hegemonia do credo igualitrio e indivi-dualista por todo o sistema americano como um plano jur-dica e poltico socialmente bsico. Esta forma de racismoque nega ou coloca o tipo mestio como indesejvel surgetambm como uma soluo cientfica para um paradoxosocial que situava brancos e negros em posies realmentediferenciadas, e um credo nacional fortemente igualitrio noplano poltico- j ur dico.Creio que so tais fatores que explicam, no caso norte-americano, o horror dos tericos de tais doutrinas dianteda realidade brasileira, repleta de gradaes e de tipos ra-ciais intermedirios. Sociologicamente falando, a reao quesurge revestida pelo idioma biolgico, dizendo que o Brasilno tinha futuro porque era um pas de mestios e demulatos, de sub-raas hbridas e fracas, pode ser inter-pretada como um modo de rejeitar a hierarquia que permite,sem ameaar as elites dominantes, todo o tipo de encontroe de intimidades entre pretos, ndios e brancos. Tal traono , como gostaria que fosse gente como Freyre e outros,uma caracterstica cultural portuguesa, seno um modo deenfrentar os dilemas do trabalho escravo num sistema alta-mente hierarquizado, onde cada homem tem um lugar deter-minado e onde a igualdade no existe. Se o negro e o brancopodiam interagir livremente no Brasil, na casa-grande e nasenzala, no era porque o nosso modo de colonizar foi essen-cialmente mais aberto ou humanitrio, mas simplesmenteporque aqui o branco e o negro tinham um lugar certo esem ambigidades dentro de uma totalidade hierarquizadamuito bem estabeleci da.Tal fato, entre outros, deu ao racismo brasileiro umaforma especial, com o foco no centro do sistema. Deste modo,enquanto a leitura americana condenava a mistura de raas,optando por uma soluo radical, contida na diviso entrebrancos e negros, aqui no Brasil a preocupao e a conse-qente teorizao foi realizada em cima do mestio e domulato, ou seja: nos espaos intermedirios e interstcios doque percebamos como sendo o nosso sistema racial. Nospontos onde cada tipo racial puro encontrava o outro e

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    criava um elemento ambguo, com supostas caractersticasdos dois. Foi com tal preocupao, correspondente nossamaneira de resolver os problemas colocados concretamentepor nossa sociedade, que nasceram os racismos de Slvio Ro-mero e Nina Rodrigues, doutrnadores fundamentais e pa-radigrnticos do nosso mundo intelectual. Pois se eles con-sideravam que o branco ariano era indiscutivelmente supe-rior ao negro e ao ndio, nem por causa disso deixaram deconsiderar o caso brasileiro como constitudo de um tringuloracial. Enquanto, pois, o credo racista norte-americano situaas raas como sendo realidades individuais, isoladas e quecorrem de modo paralelo, jamais devendo se encontrar, noBrasil elas esto frente a frente, de modo complementar,como os pontos de um tringulo. Num esquema:

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    o esquema tambm torna clara aquela outra distinoessencial, j indicada por Oracy Nogueira (1954), num tra-balho clssico. Enquanto o esquema do preconceito racialamericano de origem, o brasileiro de marca. Ou sej a:o sistema americano no admite gradaes e tem uma formade aplicao axiomtica: uma vez que se tenha algum san-gue negro (e isso determinado culturalmente), no se podemudar jamais de posio. Pode-se ser tratado idealmentecomo um igual perante a lei, mas a diferena do sanguepermanecer para sempre. J no nosso sistema, o ponto-chave a admisso de gradaes e nuanas. A raa (oua cor da pele, o tipo de cabelos, de lbios, do prprio corpocomo um todo etc.) no o elemento exclusivo na classi-ficao social da pessoa. Existem outros critrios que podemnuanar e modificar essa classificao pelas caractersticasfsicas (que so definidas culturalmente). Assim, por exem-plo, o dinheiro ou o poder poltico permitem classificar umpreto como mulato ou at mesmo como branco. Como se opeso de um elemento (como o poder econmico) pudesse apa-gar o outro fator. Temos, pois, no Brasil, sistemas mltiplosde classificao social (cf. tambm Da Matta, 1979: capo IV) ;ao passo que nos Estados Unidos h uma tendncia ntida-para a classificao nica, tipo ou tudo ou nada, diretae dualista, tendncia que me parece estar em clara corre-lao com o individualismo, o igualitarismo e, obviamente- como mostrou Weber - com a tica protestante (cf.Weber, 1967).

    Mas o ponto importante que desejo enfatizar aqui que esses tipos de preconceito racial so inteiramente coe-rentes com as ideologias dominantes de cada uma dessas so-ciedades, estando diretamente correlacionados com as formasescolhidas historicamente de recorte da realidade social.Deste modo, os racismos americano e europeu, que partem deuma realidade social mais igualitria, temem a miscigena-o porque com ela podem colocar em dvida sua homoge-neidade social e poltica, segundo a antiga noo de que aidia de um povo contm em si o postulado bsico da iden-tidade e homogeneidade fsica. J entre ns, o racismo euro-peu e americano penetra a cena intelectual, mas trans-formado por meio de um cenrio hierarquizado e antiiguali-trio. Aqui ele se orienta para os interstcios do sistema,

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    local onde vivem e convivem muitas categorias SOCiaISnter-,medirias, perfazendo uma totalidade triangulada. preci-samente isso, a meu ver, que permite integrar as raasnum esquema altamente coerente e abrangente, formando desuas diferenas e hierarquias uma totalidade integrada. Poroutro lado, essa integrao permite at hoje discutir e per-ceber a acentuada misria dos negros e ndios, sem per-ceber suas diferenciaes especficas e, sobretudo, sem co-locar em risco a posio de superioridade poltica e socialdos brancos.No nosso esquema, portanto, o branco est sempre uni-do e em cima, enquanto que o negro e o ndio formam asduas pernas da nossa sociedade, estando sempre embaixo esendo sistematicamente abrangidos (ou emoldurados) pelobranco. O prprio tringulo sugere suas interaes, nestateoria brasileira que reduz as diferenas concretas (sociais,polticas e econmicas) em descontinuidades abstratas emraas com uma definio semibiolgica. Por isso sabemosque o tringulo inicial pode gerar outros, agora constitudode tipos intermedirios, os resultados das misturas ra-ciais dos tipos puros. Assim:

    Branco

    Negro - ~----------~----~ ndio

    Mulato ~ + ~ -y Mameluco

    Cafuso

    Sempre temos, como se observa no esquema, a possibi-lidade de formar tringulos. Vale dizer: de sempre intermediar conciliar e tornar sincrticas as posies polares dosistema, pela criao de tipos intersticiais, mediadores destas

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    triangulares (ou sej a: em trs e nunca. em dois, o que con-duziria ao dualismo exclusivista) so parte de sua prprialgica social, pois por meio da mediao que se pode efe-tivamente propor o adiamento do conflito e do confronto.Assim, o uso, ou melhor: a inveno do mulato como umavlvula de escape (cf. Degler, 1976), o sistema de precon-ceito racial de marca (em oposio ao de origem), comocolocou Nogueira; e as intimidades e redes de relaes pes-soais entre negros e brancos (como coloca Gilberto Freyre),so todas funes de um sistema abrangente de classificaosocial fundado na hierarquia. Um sistema de fato profunda-mente antiigualitrio, baseado na lgica do um lugar paracada coisa, cada coisa em seu lugar, que faz parte de nossaherana portuguesa, mas que nunca foi realmente sacudidopor nossas transformaes sociais. De fato, um sistema tointernalizado que, entre ns, passa despercebido.Nesta sociedade h em todos os nveis essa recorrentepreocupao com a intermediao e com o sincretismo, nasntese que vem - cedo ou tarde - impedir a luta abertaou o conflito pela percepo nua e crua dos mecanismos deexplorao social e poltica. O nosso racismo, ento, especulousobre o mestio, impedindo o confronto do negro (ou dondio) com o branco colonizador ou explorador de modo di-reto. Com ele, deslocamos a nfase e a realidade: situamos,na biologia e na raa, relaes que eram puramente pol-

    ticas e econmicas. Essa , a meu ver, a mistificao quepermitiu o nosso racismo, o que explica a sua reproduoat hoje como uma ideologia cientfica ou popular. Do mes-mo modo, no campo poltico e social, tambm sintetizamos(ou conciliamos) sistematicamente as posies polares eantagnicas. Deste modo tivemos uma monarquia absolutistaquando deveramos proclamar a repblica, fomos governadospor um monarca liberal diante de uma elite reacionria econservadora, temos uma burguesia que deseja se aliar como Estado, desde que este defenda seus lucros. E, no camporeligioso, conseguimos criar religies intersticiais, como aUmbanda, religies sincrticas, isto , fundadas em ele-mentos compostos e tirados de outros credos, tudo isso nestejogo de ideologias que se nutrem do ambguo e da concilia-o abrangente que evita a todo o custo 0 conflito e oconfronto.

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    Vemos, assim, que, entre ns, o racismo no foi suma doutrina racionalizadora da supremacia poltica e eco-nmica do branco europeu, e nem poderia ter sido destemodo. Aqui, o racismo, como outras ideologias importadasforam modificadas, e nesta modificao obedeceram ao poderdas foras que constituam nossa totalidade social. Como asociedade era hierarquizada, foi relativamente fcil refletirsobre as categorias intermedirias, intersticiais, ponto bsi-co em sistemas onde existem gradaes e se est semprebuscando um lugar para cada coisa, de modo que cadacoisa fique em seu lugar. Foi isso que efetivamente ocorreue, neste quadro ideolgico-poltico geral, permitiu utilizar anoo de raa de modo intensivo e extensivo.

    A noo de raa e o racismo brasileira tem umvalor socialmente significativo at hoje - sobretudo entreas camadas mdias de nossa populao - porque o nossotipo de doutrinao racial uma variante da europia. Entrens, o conceito passou a ser, como o sistema que o abriga,totalizante. De modo que para ns raa igual a etnia ecultura. claro que essa uma elaborao cultural, ideo-lgica, no tendo valor cientfico. Do ponto de vista biol-gico, a raa uma variao gentica e adaptativa de umamesma espcie. Mas na conceituao social elaborada noBrasil, raa algo que se confunde com etnia e assim tem.uma dada natureza. Essa colocao, por seu turno, permiteescapulir ainda hoje de problemas muito mais complicados,como o de ter que discutir o nosso racismo como umaideologia racial s avessas, antiideolgica, que se nega a siprpria, mas que uma imagem de espelho do racismo euro-peu e americano. S que aqui situamos questes relativasaos pontos intermedirios do sistema triangulado pelas trsraas, ao mesmo tempo em que fazemos um elogio claroe aberto da mulataria (sobretudo no seu ngulo feminino)e ao mestio. No por outra razo que continuamos a vero estudo da Antropologia Social como dentro de um planotraado no sculo XIX, no estudo das raas; e o antroplogocomo o grande eugenista que ir, pela mistura apropriadado branco, do negro, do ndio e de todos os tipos intermedi-rios, criar finalmente um tipo brasileiro. Tipo que serexoticamente moreno, mas obviamente abrangido pela raa

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    loca delirantemente Gilberto Freyre nas suas modernas for-mulaes do problema. 6No preciso dizer novamente - pois esse foi o pontodesta longa digresso - que tudo isso socialmente signi-ficativo e que toda essa discusso de raas uma questo

    de ideologias e valores. Em outras palavras, dos modos pelosquais ns recortamos nossa realidade interna para ns mes-mos. Foi neste recorte que recriamos a hierarquia que formao nosso esqueleto social e foi nele que abrimos mo de estu-dar as relaes entre as raas, preferindo sempre o estu-do das raas em si mesmas. Isso tem atrasado nossa per-cepo de ns mesmos como uma sociedade definitivamentedotada de estrutura social singular e cultura especfica. Por-que, colocando tudo em termos de raas e nunca discutindosuas relaes, reificamos um esquema onde o biolgico se con-funde com o social e o cultural, permitindo assim realizaruma permanente miopia em relao nossa possibilidade deautoconhecimento. Num mundo social determinado por moti-vaes biolgicas, desconhecidas de nossas conscincias, poucoou quase nada h para se fazer em termos de libertao eesperana de dias melhores. Mas, como vimos, toda essa dou-trina ideologia social. Agora que a conhecemos, podemosretomar o caminho do estudo antropolgico como devotadoao entendimento do social e o social o histrico. Por issomesmo, pode ser modificado e aberto ao sol do futuro e daesperana.

    6. E a seu lado Darcy Ribeiro, cuia concepo de sociedade no fundo padece destamesma viso. Assim, para ele, as configuraes scio-culturais se reduzem a povose esses povos a matrizes tnicas . Tais matrizes tnicas , porm. nada mais sodo Que um nome novo para o velho e batido conceito de raa , na melhor tradi.ode Gobineau, Slvio Romero e Nina Rodrigues. Conforme coloca Ribeiro, numa passagemcritica, onde procura expor a tese dos povos testemunhos, pOVOS transplantados .uPOV09 emergentes e uPOV08 novos: Os povos-novos. or-iundos da conjuno, de-culturao e caldeamento de matrizes tnicas muito dispares, como a indigena, aafricana e a europia (cf. Ribeiro. 1972: 12). Observe o uso das expresses biol-gicas, matrizes , caldeamento e o termo dispares, a trair a idia - muito clara.no ensaio citado - de que o branco de fato superior ao ndio e ao negro. Notetambm a outra noo bsica (e evidentemente errada, mas muito velha entre ns)de que se pode realmente falar em raas europias. africanas ou indgenas como