universo do futebol - roberto damatta

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  • 8/9/2019 Universo Do Futebol - Roberto DaMatta

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  • 8/9/2019 Universo Do Futebol - Roberto DaMatta

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    lilllïln$0mlurm$

    sPorte

    e

    Sociedade

    Brasileira

    Roberto

    DaMatta

    Luiz

    Felipe

    Baâta

    Nevcl

    Flores

    Simoni

    LahudGuedes

    Arno

    Vogel

    com

    uma

    introdução

    de

    Roberto

    DaMatta

    ËDIçÕES

    PINAKOIHEKE

    't982

    Rio de

    Janeiro

  • 8/9/2019 Universo Do Futebol - Roberto DaMatta

    4/118

    Esta

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    fonte.

    ReÍeÉncia

    Blbllográílca

    7_a6

    332(81

    )

    D111

    DaMATTA, RobeÍto e outros. Universo

    do

    Futebol: Esporte e

    Sociedade

    Brasileira

    Rio de Janeiro, Pinakotheke,

    1982.

    l5

    ilustraÇóes

    p.b.

    e

    10

    em cores.

    'L

    Sociologia-Brasil.

    2. Futebol-Socio-

    logia.

    3.

    Flores, Luiz

    F.

    B.

    N. 4. Guedes,

    Simoni

    Lahud. 5, Vogel,

    Arno. 6.

    ïitulo.

  • 8/9/2019 Universo Do Futebol - Roberto DaMatta

    5/118

    índice

    lntroduçáo,

    por

    Roberto

    Dâtvtatta

    13

    Esporte

    na

    Sociedade:

    Um

    Ensalo

    sobre

    o

    Fuiebol

    Brasileiro,

    por

    Roberto

    DaMatta

    19

    1.

    O

    Futebol

    como

    OPio

    do

    Povo

    21

    2.

    O

    Esporte

    na Sociedade

    e

    a

    Sociedade

    no

    Espoite:

    uma

    PersPectiva

    -23

    3.

    O

    Futebol

    em

    Diferentes

    Sociedades

    25

    4.

    As

    Dramatizações

    do

    Futebol

    30

    4.1

    A

    questáo

    do

    destino

    em

    oposigão

    à biograÍia

    30

    4.2 O

    prõble.m-a

    das

    regras

    universais

    em

    oposiçáo

    ao

    desejo

    de

    gruPos

    e

    indivíduos

    35

    5.

    Conclusões

    40

    6.

    BibliograÍia

    41

    Na Zona

    do

    Agrlâo.

    Algumer

    Mrnngonr

    iàcõogtcar

    odruroot,

    por

    Luiz

    Fellpe

    Baâta

    Nèves

    Flores

    43

    l.

    A ideologia da

    Permanâncla

    46

    1. lndivídìro,

    ascensão

    soclal,

    democracia

    2.

    Espago

    e

    temPo

    48

    3.

    lddológia

    política

    e

    Íutebol

    49

    4. Defesa

    e

    não'violência

    51

    ll.

    A

    ideologia

    da

    transÍormaçâo

    62

    lll.

    Comentários

    Íinais

    57

    Subúrbio:

    Celeiro

    de

    Craquer,

    por

    Simoni

    Lahud

    Guedes

    59

    '1.

    Qualificação dos entrevistados

    62

    2. Uma

    carreira

    frustrada

    63

    3.

    Primeira

    fase:

    o

    sonho

    63

    4. Segunda

    fase:

    a

    luta

    69

    5.

    Terceira

    fase:

    a

    brincadeira

    71

    6.

    Conclusâo

    74

    46

    u

    O

    Momento

    Feliz,

    Reílexões

    sobre

    o Futebol

    e o

    ethos nacional,

    Por Arno

    Vogel

    75

    1.

    O

    país

    do

    futebol

    77

    2.

    "The

    simplest

    game"

    79

    3.

    Gloria

    e

    agonia

    80

    4. Um

    lugar

    éntre

    as

    nações

    82

    5. Jornadas

    de

    gloria

    83

    6.

    A

    tragédia

    do

    Maracanã

    87

    7' Temobs

    amarqos

    91

    7.1 As

    formas-do

    luto

    92

    7.2

    O

    que

    a morte tem

    a

    ver com

    a

    vergonha

    92

    T.3Ahonraeamáscara

    95

    8.

    O

    momento

    feliz

    100

    8.1

    Tudo

    ou

    nada

    101

    8.2Garrae

    categoria

    ou

    A

    grande

    vitÓria

    102

    8.3

    Arte

    contra

    Íorça

    109

    8.4

    O

    maior

    Carnaval

    110

    9.

    Conclusoes

    112

    10.

    BibliograÍia

    114

    índica

    Onomástico

    117

    Crédltos

    e

    Agradecimentos

    123

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    6/118

    11

    Para

    todos

    os

    jogadores

    de

    futebol

    do

    Brasil,

    que

    nos

    Íizeram

    acreditar

    mais

    em

    nós

    mesmos'

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    14

    o

    nosso

    sucesso e estão conosco

    porque

    vestem

    nossa mesma

    camisa

    è companheiros

    que

    jogam contra

    nós. Temos, ainda,

    neste enorme

    campo

    de

    Íutebol

    da

    vida,

    figuras

    intocáveis

    a

    quem

    devemos obediência

    e

    respeito

    pois

    detêm

    o

    poder

    de

    Íazer

    cumprir

    um

    conjunto

    de

    regras

    impessoais

    que

    se aplicam

    a todos.

    E neste

    campo

    que

    jogamos,

    correndo

    às

    vezes demasiado

    por

    uma bola

    muito Íácil;

    ou

    perdemos

    boas

    jogadas,

    ou cometendo

    Íaltas

    que

    conduzem

    a um

    pênalti

    contra

    nós mesmos

    ou

    -

    e

    isso

    também ocorre

    -

    Íazendo gols

    de.

    placa, jogadas

    maravilhosas

    que, por

    sua classe

    e estilo,

    chegam até

    a espantar a

    nós mesmos...

    A metáfora

    poderia

    ser ampliada

    e discutida com

    mais rigor,

    caso

    não Íosse

    precisamente

    isso

    que

    todos

    nós

    pretendemos

    realizar

    neste livro,

    cada

    qual

    -

    evidentemente

    -

    seguindo

    suas

    intuiçóes

    e

    tomando

    materiais ligeiramente

    diÍerentes

    para

    demonstrar seus argumentos.

    Se há

    alguma

    "escola"

    ou estilo

    por

    trás

    do

    que

    se apresenta aqui, caberá ao

    leitor

    identificá-la,

    tal como

    Íazem

    os bons cronistas

    esportivos

    quando

    comentam uma

    partida

    do

    velho

    e bom esporte bretão. Não caberia

    a

    mim

    dizer

    nada

    sobre

    isso,

    exceto, talvez,

    que

    todos

    estamos profundamente insatisÍeitos

    com uma

    matriz

    de análise sociológica dominante,

    que

    é

    por

    demais

    economicista e

    que

    entende

    ser a vida social um

    jogo

    direto

    de

    Íorças

    racionais num mercado,

    jamais

    podendo

    ser

    vista como um drama Íutebolístico,

    onde

    homens

    lutam

    contra

    homens

    e todos

    com

    regras

    e torcidas

    que

    também imprimem ao espetáculo

    uma direção incontrolável.

    São

    precisamente

    Mas, só o exemplo

    acima bastaria

    para

    indicar

    as enormes

    possibilidades

    do

    Íutebol e do

    esporte como

    uma

    imensa

    tela

    onde

    a

    experiência

    humana

    pode

    ser

    vivida

    e,

    o

    que

    é

    melhor, recordada e

    mesmo revivida.

    Náo

    é,

    pois, por

    acaso

    que

    o

    Íutebol transcende o

    mero

    noticiário

    dos

    jornais

    e televisão, bem como

    os

    mais realistas

    s

    "politizados"

    comentários

    (o

    futebol, repete-se, é

    o

    ópio do

    povo...)

    para permitir

    uma

    série

    interminável de

    discussões

    riquíssimas

    sobre a

    ideologia

    ou

    concepçáo

    de

    mundo brasileira.

    Mais

    do

    que

    nossas

    ciências

    políticas,

    econômicas,

    Íilosóficas

    e sociais;

    mais

    do

    que

    a

    nossa

    arte

    e

    literatura;

    o

    futebol

    é

    que

    tem

    proporcionado

    a

    área

    privilegiada por

    onde

    passam

    os

    temas do

    nosso

    destino

    Íuturo

    enquanto

    jornada

    popular

    e esperançosa.

    Por

    que?

    Ora,

    porque

    é no Íuturo

    que

    se

    amplia o espaço de

    participação

    globalizador

    que

    jaz

    adormecido

    na nossa

    sociedade.

    E esse

    espaço não fala somente

    da

    massa

    anônima

    que

    não

    consegue sequer

    ver um

    prefeito,

    deputado ou

    juíz

    quando precisa;

    mas,

    sobretudo,

    de uma

    possibilidade

    simbólica básica.

    Pois no futebol

    (e

    nos

    eventos esportivos

    em

    geral),

    temos

    a oportunidade

    clara e concreta

    de

    passar

    de um código

    ideológico

    para

    um código

    visual,

    auditivo,

    táctil,

    corporal,

    e de odores,

    totalizando a

    própria

    experiência

    humana.

    Daí

    a importância

    de estudar os

    aspectos

    simbólicos,

    ideológicos

    e

    ritualísticos do

    futebol,

    tal

    como

    esse

    esporte

    é

    praticado

    no Brasil.

    Talvez

    agora

    possamos

    juntar

    os episódios

    que

    abrem esse texto com a

    metáÍora

    do

    jogo

    como

    a

    própria

    vida. Do

    mesmo

    modo

    que

    causa

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    15

    melhor

    e

    mais nobre

    em cada um

    de nós.

    Os

    amigos do

    filósoÍo

    choraram

    porque

    ele

    estava

    impossibilitado

    de

    cumprir

    as

    normas

    as

    mais

    triviais de civilidade

    com

    aquela

    facilidacie

    que

    elas

    requerem. Nós chor:amos

    vendo

    o

    nosso

    time seguir à

    risca

    as

    regras

    do

    jogo,

    estabelecendo

    honestamente

    um

    novo

    padrão

    de excelência,

    padrão que

    atualiza

    claramente um estilo

    nosso,

    que

    em outras

    esferas

    da

    vida

    não

    podíamos

    distinguir

    com

    tanta

    precisão

    e

    facilidade.

    O

    Íutebol,

    portanto,

    permite

    também

    descobrir a

    nossa

    "alma" e

    o

    nosso

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    16

    contém

    um

    conjunto

    de

    relações

    especíÍicas.

    O

    futebol,

    portanto,

    tem

    -

    como

    o

    carnaval,

    a

    umbanda,

    o

    jogo do

    bicho e a

    cachaça;

    tudo

    isso

    que

    o

    povo

    diz

    que

    ó sério

    no

    Brasii

    -

    seu

    poder

    e.

    seu

    próprio

    plano.

    Se

    ele

    é

    produto

    de

    uma civilizaçáo

    que

    tem

    no

    dinheiro,

    no

    poder

    e

    na

    mais'valia

    o

    seu

    eixo

    primordial,

    ele

    não

    pode

    ser

    transitivamente

    reduzido

    somente

    a

    isso.

    Da

    mesma

    Íorma

    que

    o

    amor

    náo se

    reduz

    ao

    sexo;

    ou

    a

    política

    ao

    mero

    uso

    e abuso

    da

    Íorça;

    ou

    a

    poesia

    ao

    uso

    das

    palavias. Há na atividade Íutebolística

    (como

    em

    tudo

    o

    mais

    que

    constitui

    a

    vida em

    sociedade)

    um

    "mistério".

    E esge

    "mistório"

    começa

    a ser

    desvendado

    quando

    nos

    ddmos

    conta

    que

    as

    coisas

    decolam

    e

    ganham

    asas.

    Assim,

    eu amo,

    mas

    o

    amor

    Íala

    por

    mim

    uma

    linguagem

    que

    é dele.

    No

    Íutebol

    também

    esse

    espaço

    próprio:

    o

    espaço

    do

    iogo,

    a esÍera

    sustentada

    e

    mantida

    pelas

    relaçóes

    complexas

    e

    Íascinantes

    que

    existem

    entre

    algo

    que

    à

    sociedade

    inventou

    (o jogo) como

    coisa;

    e o jogo

    como

    expressão

    dos

    problemas

    e

    preocupaçóes

    desta

    mesma sociedade.

    Freqüentemente'

    pensa-se

    que

    o

    estudo

    sociológico

    é

    um

    estudo

    simples

    e direto

    das

    relaçóes

    de causa

    e eÍeito

    entre

    a

    sociedade

    e a

    coisa

    que

    se

    deseja

    estudar.

    No

    caso

    em

    pauta,

    estudar

    o

    Íutebol

    seria

    simplesmente

    armar

    a

    equaçáo

    esporte

    e

    sociedade.

    Mas,

    como

    buscamos

    revelar

    aqui

    neste

    livro, há

    um

    outro

    lado de ver

    o

    problema,

    pois

    o

    jogo

    está

    na

    sociedde

    tanto

    quanto

    a

    sociedade

    no

    jogo.

    Ambos

    se

    expressam

    mutuamente,

    sendô

    que

    suas

    relaçóes

    muito

    complexas.

    Deste

    modo,

    pode-se

    dizer

    que

    cada

    sociedade

    tem

    o

    Íutebol

    que

    merece,

    pois

    ela

    o

    molda e

    projeta

    nele um

    conjunto

    de

    temas

    que

    lhe são

    básicos.

    No caso

    brasileiro,

    devo

    constatar

    junto

    com

    os cronistas

    esportivos

    Uma

    resposta

    cabal

    para

    todas

    essas

    questões

    é

    certamente

    impossível,

    e cada

    trabalho

    aqui

    representado

    tem

    plena consciência de

    suas

    limitaçóes.

    vários

    pontos

    que

    não

    foram

    elaborados

    e

    certamente

    muitos

    leitores

    ficaráo

    inÍelizes

    ao

    ver

    aquilo

    que

    tomam

    como

    Íundamental

    sem

    consideraçáo

    nestas

    páginas'

    Nossa

    resposta

    e

    nosso

    consolo

    para

    isso

    sáo

    duplos.

    Em

    primeiro lugar,

    sabemos

    que

    o

    Íenômeno

    é

    maior

    que

    nós.

    Em

    segundo

    lugar'

    gostaríamos de chamar

    a

    atenção

    que

    estamos

    fazendo aqui como

    se Íaz

    no próprio

    jogo.

    Ou seja:

    a

    busca

    de construir

    o futebol

    como

    objetivo

    de

    estudos

    sociológicos

    equivale

    alazer

    experimentos

    com

    certas

    regras.

    lsso

    cria

    um

    certo

    tipo

    de

    jogo,

    mas

    não

    impede outros

    jogos.

    Que

    o

    leitor crítico

    faça

    o

    seu

    e

    que

    seja

    Íeliz

    Tal como

    tem

    ocorrido

    com

    o

    meu

    trabalho

    (veja-se

    as

    críticas

    aos

    meus

    livros

    Carnavais,

    Malandros

    e

    Heróis

    e Universo

    do

    Garnaval),

    uma

    nítida

    consciência

    de

    que

    temas

    tais

    como

    esse sáo

    tabu dentro

    dàs sociologias

    oficiais

    que

    os

    têm sistematicamente

    abordado

    seja

    como

    "óPios

    do

    Povo"

    seja

    como

    (casos

    de

    polícia";

    seja,

    ainda,

    como

    (casos

    de

    idiotice

    popular

    aguda"

    (quer

    dizer:

    casos

    de

    mistificaçáo

    e alienação

    social),

    tudo

    isso

    para

    ser corrigido

    com

    a administraçáo

    da

    ideologia

    correta

    pelo

    gruPo

    aProPriado.

    É que

    as

    nossas elites,

    eu

    presumo, náo

    estão

    acostumadas

    a

    jogar.

    Ao

    contrário,

    elas

    od,eiam

    o

    jogo.

    Por

    que?

    Porque

    certamente

    o

    jogÒ

    significa

    basicamente

    ter

    de se

    submeter

    a

    regras

    qúe

    valem

    para

    todos.

    Realmente,

    o

    ponto

    crítico

    e

    o traço

    distintivo

    do

    jogo

    é

    a

    noçáo

    Íundamental

    das

    regras

    para

    todos

    e

    uma

    aceitaÇão

    da

    idéia

    de

    justiça (que

    legitima

    o

    perdedor e o

    ganhador)

    e

    individualidade

    Íamília

  • 8/9/2019 Universo Do Futebol - Roberto DaMatta

    11/118

    17

    humildemente

    a uma

    sociedade

    que

    tem

    logado

    muito

    mal

    pelas

    regras

    universais.

    Assim, em vez de

    jogo,

    temos em

    geral

    ritualizaçóes

    onde os

    poderosos

    sempre

    inventam

    novas

    regras e

    modificam

    drasticamente

    o

    jogo.

    Mas,

    o

    trágico

    disto

    tudo

    é

    que

    esse

    modelo

    anti-jogo

    e anti'universalista

    está

    na

    cabeça

    de

    quase

    todos,

    de

    modo

    que

    ter

    o

    poder

    significa,

    no

    Brasil,

    isso

    mesmo:

    possuir

    os

    recursos

    que

    permitem

    o

    uso

    da

    Íorça

    e, eventualmente,

    a

    prática

    do bem'estar

    social.

    Assim,

    não se

    joga

    no poder;

    mas toma-se

    posse

    do

    cargo.

    Vale dizer:

    do

    poder

    que

    emana

    do

    cargo.

    Uma

    explicação

    disto

    nos

    levaria

    muito

    mais

    longe

    que

    uma

    introdução

    poderia

    caminhar.

    Mas'

    vale a

    pena

    dizer

    simplesmente,

    esperando

    que

    o

    leitor

    interessado

    venha

    a

    consultar

    outros

    trabalhos

    meus, que

    o

    Brasil

    é

    uma

    sociedade

    dividida

    entre

    casa

    e

    rua;

    família

    e

    associaçóes'

    Tais universos

    operam

    segundo

    hierarquias

    e

    gradações

    (como

    ocorre

    com

    a

    casa

    € a

    Íamília,

    os amigos

    e

    os

    padrinhos,

    que

    estão

    sempre

    muito

    próximos

    ou

    muito

    longe);

    ou de

    acordo

    com

    regras

    universais.

    Somos,

    assim,

    atravessados

    por

    dois

    códigos.

    O da

    rua

    é

    moderno

    e

    baseado

    na

    idéia

    de

    mercado

    e

    de

    individualismo. O de

    casa

    está preso às

    regras

    dos

    pactos morais,

    onde

    cada

    qual

    é uma

    peça

    singular

    de uma

    teia de

    relaçóes'

    Na

    rua

    todos

    são

    teoricamente

    indivíduos;

    na

    casa

    todos

    são

    pessoas. O

    iogo

    social

    se

    passa

    numa

    espécie

    de

    luta. Quem

    tem

    uma

    casa

    importante

    ou

    um

    nome

    de

    Íamília

    pretende com

    isso

    englobar

    todo

    o

    universo

    social

    (donde a

    prática

    do

    "você

    sabe

    com

    quem

    está

    Íalando?").

    E

    quem

    .i:

    pessoas)

    e

    indivíduos

    ou

    cidadãos

    de

    segunda

    na rua

    (onde,

    sobre

    nós,

    paira

    empre

    uma

    suspeita). Temos,

    portanto, dois

    modelos

    de

    cidadania.

    Num

    deles

    tudo

    podemos; noutro

    nada

    esperamos.

    Até

    hoje

    tudo

    isso

    permaneceu

    implícito

    na

    nossa sociedade

    e

    jamais

    houve

    uma busca

    de aproximação

    entre

    esses

    dois

    codigos

    (ou

    éticas),

    que

    permanecem operando

    sem

    que

    um

    lado

    tome conhecimento

    do

    outro.

    Num sistema

    como

    esse,

    não se vive

    de

    modo

    algum

    numa sociedade

    cuias

    regras

    são

    universais.

    Muito

    pelo

    contrário,

    sabe-se

    pela

    propria

    prática

    social

    que

    tudo

    é

    proÍundamente

    n

    relativo

    e depende

    destas

    Íormas

    de

    deÍinições

    de

    cidadanias

    que podem variar

    de

    contexto

    para

    contexto

    e,

    sobretudo,

    de

    pessoa

    para

    pessoa'

    Pois

    bem,

    o

    que

    fica

    muito

    claro

    nos

    nossos

    ensaios

    é

    que

    o

    Íutebol

    é uma

    Íorma

    positiva

    de

    cidadania. Quero dizer:

    o Íutebol

    permite

    juntar

    o

    mundo

    da

    casa

    com

    o

    universo

    impessoal

    da

    rua.

    E,

    Íazendo

    isso,

    permite

    veicular

    as

    possibilidades de

    viver a

    sociedade

    brasileira

    como

    um

    grande

    jogo.

    Jogo

    onde

    todos

    têm

    de

    levar as

    regras

    a sério,

    sem

    poder

    modiÍicá-las'

    Assim,

    se

    na

    sociedade

    tradicional

    -

    onde

    os

    indivíduos

    náo

    existem

    por

    si

    mesmos

    e

    jamais

    sáo

    ouvidos

    enquanto

    indivÍduos

    -

    a

    vida

    social

    se

    institui

    como um

    ritual:

    contexto

    de ação

    onde

    a desigualdade

    e a

    diferença

    perante as

    leis

    são

    a

    norma

    vigente.

    A sociedade

    moderna

    institui,

    com

    o

    liberalismo

    positivo,

    a

    possibilidade

    de

    viver sua

    dinâmica

    como

    um

    jogo'

    No

    rito

    donos

    e

    pessoas

    que

    controlam

    e

    Íazem

    as

    regras.

    Mas,

    no

    jogo,

    todos

    passam

    pelo

    campo

    e

    ninguém

    pode modiÍicar

    as

    normas

    que

    sáo

    o

    que

    há de

    mais básico

    na

    sociedade'

    no

    meu

    trabalho,

  • 8/9/2019 Universo Do Futebol - Roberto DaMatta

    12/118

    18

    depois

    da

    vitória do

    meu

    time ou

    de

    minha

    seleção.

    Presumo

    também

    que

    esse

    ponto

    deve ser

    importante

    porque

    é

    por

    meio

    dele

    que

    podemos

    entender

    com

    precisáo

    a enormê

    popularidade

    de um

    jogo

    que

    veio

    de

    íora.

    Luiz

    Felipe

    Baêta

    Neves

    Flores,

    no

    seu errsaio

    neste

    livro, indica,

    entre

    outras

    coisas, como

    o

    Íutebol

    fascina

    o

    público

    pelo

    que

    veicula de

    igualdade e

    possibilidades

    de

    exercer

    escolhas

    -

    de exercitar

    a

    liberdade.

    lsso,

    num

    sistema

    onde

    tudo

    está

    pré-estabelecido

    para

    a

    grande maioria da

    população

    que

    tem de se

    submeter

    às

    leis

    universais

    e

    não tem

    nem

    nome de

    Íamília

    nem

    amigos

    "lá

    no alto",..

    Tudo

    isso,

    para

    ser

    mais

    preciso,

    que

    ceracteriza

    a cldadania

    plena:

    a

    vigência

    dos

    direitos

    no indivíduo,

    do

    indivíduo

    enquanto

    indivíduo.

    E

    não a simples'vigência

    de

    direitos

    enquanto se

    é

    uma

    pessoa

    relacionada

    a

    um

    grupo

    (seja

    esse

    grupo

    Íamília,

    vizinhança,

    partido

    ou

    corporaçáo

    civil,

    militar

    ou

    eclesiástica).

    Mas, o

    Íato diário

    de

    nossas

    vidas

    é

    que

    náo

    somos

    ouvidos

    quando

    Íalamos em

    nosso

    próprio

    nome

    (ou

    seja:

    como

    indivíduos),

    mas

    somos

    sempre

    ouvidos

    quando

    falamos

    em

    nome e

    por

    meio de uma causa,

    partido,

    Íamília ou corporação.

    Ou

    melhor:

    quando

    uma

    Íamília,

    partido

    ou

    ideologia

    Íala

    por

    nós

    Numa palavra, náo vivemos a sociedade

    como

    um

    jogo,

    exceto

    em algumas

    de suas esÍeras,

    e

    isso está

    na raiz do

    nosso dilema

    político

    e

    social.

    Se

    o

    futebol,

    como

    seus

    primos

    mais conspícuos,

    (o

    carnaval,

    a

    umbanda

    e o

    jogo

    do

    bicho)'

    permite

    uma

    forma

    de

    cidadania

    positiva,

    que

    o ensaio

    de Simoni

    Guedes

    estuda

    o

    Íenômeno

    do

    Íutebol,

    revelando

    como

    um

    grupo

    de operários

    suburbanos pode sonhar

    com

    essa

    possibilidade

    de

    bem

    viver,

    numa sociedade

    onde

    o

    viver com

    segurança,

    é

    permitido

    de

    modo

    gradual, lento

    e seguro,

    aos

    membros

    de

    certas

    familias, bairros

    e corporaçòes.

    Como

    fecho de

    todas essas

    idéias, Arno

    Vogel

    traça

    como o

    Íutebol tece

    uma

    teia e

    uma

    cadeia

    de episódios

    que

    ampliam

    essa

    cidadania

    positiva que

    nossa

    identidade nacional

    acaba por

    descobrir.

    E

    que

    o

    futebol

    e

    as conquistas

    das Copas

    do

    Mundo são

    pontos

    de

    referência

    para.a

    construção

    de uma

    história

    positiva

    do

    Brasil. Uma

    história

    que

    podemos

    contar

    para

    nós

    mesmos sem

    vergonha,

    ressentimentos

    ou

    mágoas.

    E isso, sabemos

    bem,

    é o

    que

    de

    mais Íundamental

    em

    todas as

    histórias.

    Finalmente, cabe agradecer aos

    meus amigos

    e companheiros

    de

    jornada

    profissional.

    Primeiramente,

    aos

    colaboradores

    deste

    livro,

    que querem

    comigo

    correr

    o

    risco de entrar

    numa

    área

    diÍícil

    e,

    mais

    que

    isso, inexplorada

    pelas

    sociologias

    acadêmicas

    e

    oÍiciais.

    Depois, aos

    meus amigos

    Carlos

    Roberto

    Maciel Levy,

    Max

    Perlingeiro

    e

    Luiz

    Fernando

    Marcondes

    que,

    junto

    com

    Elizabete

    Peixoto,

    sempre acreditam

    em

    mim

    e no

    meu trabalho.

    Jardim

    Ubá,

    maio de

    1982

  • 8/9/2019 Universo Do Futebol - Roberto DaMatta

    13/118

    Esporte

    na Sociedade:

    Um

    Ensaio

    sobre

    o

    Futebol

    Brasileiro

    (*)

    por

    Roberto

    DaMatta

    í*ì Versoes

    parciais

    deste

    trabalho

    foram apresentadas

    àm

    outubro

    de

    1979

    no lbero-American

    Studies

    Center

    da

    Universidade

    de

    Wisconsin-Madison

    e

    quero

    agradecer

    ao

    ProÍ.

    Thomas

    E. Skidmore

    pelo

    honroso

    óónvite

    e

    pelo

    encorajamento

    que

    me

    deu

    quando do

    seu

    prepaio. Uma

    outra

    versáo

    Íoi apresentada

    num

    colóbuiô

    realizado

    em

    12 de

    março

    de

    1980

    no

    Woodrow

    Wilson

    lnternational

    Center

    Íor Scholars'

    da

    Smithsonian

    lnstitution,

    em

    Washington,

    DC'

    em

    maio

    de

    1981'

  • 8/9/2019 Universo Do Futebol - Roberto DaMatta

    14/118

  • 8/9/2019 Universo Do Futebol - Roberto DaMatta

    15/118

    21

    f

    meu

    propósito

    neste

    trabalho

    revelar como

    l-

    uma

    certa

    modalidade esportiva, o Íootball

    association

    (doravante

    chamado

    Íutebol), é

    um

    veÍculo

    para

    uma série de

    dramatizações

    da

    sociedade brasileira.

    Em

    vez,

    portanto,

    de

    estudar

    o

    Íutebol

    em contraste

    com

    a

    sociedade,

    como

    é

    comum

    neste tipo de trabalho,

    analiso

    o

    futebol

    junto

    com

    a

    sociedade.

    E

    parte

    do

    meu

    entendimento

    que quando

    eu

    ganho

    uma

    certa compreensão

    sociológica

    do

    Íutebol

    praticado

    no

    Brasil,

    aumento

    simultaneamente

    minhas possibilidades

    de

    melhor interpretar

    a sociedade

    brasileira.

    Creio,

    por

    outro

    lado,

    que

    este enÍoque

    permite

    descobrir como

    uma certa atividade

    é

    apropriada

    diferenciadamente

    em

    sociedades

    diversas,

    ponto

    que

    me

    parece

    importante

    quando

    se trata

    de

    submeter

    ao crivo do

    estudo

    sociolÓgico

    uma

    instituição

    moderna marcada

    pelo

    cosmopolitismo, como

    é

    o

    caso

    do

    Íutebol.

    Uso

    dramatização

    inspirando-me

    na

    obra

    de

    Victor Turner e

    Max Gluckman

    (CÍ.

    Turner,

    1957, 1974; Gluckman,

    1958,

    1962), mas

    espero

    acrescentar

    a esta

    noção uma certa

    amplitude,

    pois

    que

    a

    utilizo como

    uma

    modalidade do

    ritual

    e

    de

    ritualização. Ou

    melhor,

    como

    um

    ingrediente

    básico

    do

    processo

    de

    ritualização

    (Cf.

    Da Matta,

    1973;

    1977;

    1979

    e

    1981).

    Entendo, pois, que

    sem drama não

    há rito e

    que

    o

    traço

    distintivo

    do

    dramatizar

    é

    chamar

    atenção

    para

    relaçóes, valores

    ou

    ideologias

    que,

    de outro

    modo,

    não

    poderiam

    estar

    devidamente

    isoladas

    das

    rotinas

    que

    Íormam

    o conjunto

    da

    vida

    diária

    (ou

    da

    "vida

    real",

    conforme

    classiÍica

    nossa

    ideologia dominante).

    Estudando

    o

    Íutebol e o esporte como

    um drama,

    pretendo

    analisar

    essas atividades

    como

    modos

    segundo a

    qual

    o

    rito

    (e

    o

    drama) seriam

    um

    determinado

    ângulo

    de

    onde

    uma

    dada

    populaçáo

    conta

    uma história de si

    mesrna

    para

    si

    própria.

    O

    Íutebol

    praticado,

    vivido,

    discutido e teorizado

    no

    Brasil

    seria um

    modo

    especíÍico,

    entre

    tantos

    outros,

    pelo qual

    a

    sociedade brasileira

    fala,

    apresenta-se,

    revela-se,

    deixando-se,

    portanto,

    descobrir.

    Apreciar

    sociologicamente a

    singularidade

    desta

    percepçáo

    e

    "leitura,'

    do sistema social

    brasileiro

    pelo

    Íutebol é

    um

    dos

    objetivos

    principais

    deste trabalho.

    1.

    O

    Futebol como Ópio

    do Povo

    Primeiramente,

    é

    preciso

    relativizar

    o

    modo

    típico

    de estudar o

    domínio do

    "esporte".

    Observo

    que quando

    estudamos o

    "esporte",

    sempre

    o

    Íazemos

    como

    se

    a esÍera

    do

    "esporte"

    estivesse numa relaçáo

    de

    oposiçáo com

    a

    sociedade.

    DaÍ a equaçáo

    esporte/sociedade

    como

    algo

    "natural".

    Sabemos

    que

    o

    binômio

    esporteisociedade

    laz

    parte

    de

    uma

    longa

    lista: natureza/sociedade,

    ritual/sociedade,

    polÍtica/sociedade,

    economia/sociedade,

    etc.

    Onde

    se

    indica

    uma

    clara

    relação de

    confronto,

    de

    determinação

    ou

    de

    reduçáo

    entre

    os

    elementos situados em

    contraste.

    De

    um

    lado

    temos uma

    entidade

    individualizada,

    a

    sociedade;

    e,

    do

    outro,

    temos uma outra entidade

    também

    individuatizaoa,

    e Íuncional

    entre

    um

    e

    sentimentos,

    níveis

    de

    proteínas,

    etc.

    A

    idéia

    é

    a

    de

    que

    se

    pode

    postular

    uma

    relaçáo

    instrumentalizada

    e

    Íuncional

    entre um e

    outro

    termo.

    Assim,

    o

    esporte

    Íaz

    alguma

    coisa

    para,

    com ou contÍa a

    sociedade,

    podendo

    ser um

    instrumento

    neutro, negativo

    ou

    positivo

    vis-à-vis

    o sistema

    social. No caso do

  • 8/9/2019 Universo Do Futebol - Roberto DaMatta

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    No

    nosso

    sistema,

    o

    trabalho

    é aquilo.que

    permite

    transÍormar

    a

    natureza

    e

    o

    proprlo

    ho."..

    E

    o

    instrumento privilegiado

    de

    entrar

    em

    contato

    com

    a

    verdadeira

    realidade'

    ô

    reat

    no seu

    estado

    mais

    puro

    (e

    mais

    duro)

    "stã

    intitatente

    relacionado

    ao

    trabalho

    na

    nássa

    iOeotogia

    social.

    Do

    mesmo

    modo'

    a

    guerra

    é

    uma

    atividãde

    que

    nos

    conduz

    à

    terra-de-ninguém,

    onda

    encontramos

    os

    "tutros".

    inimigos:

    os

    que

    não

    adotam

    os

    ";;;;

    costumes.

    -Dir-se-ia

    qu€ sem

    o

    trabalho

    lque

    nos

    mantém vivos)

    e

    o

    poder

    (que

    nos

    .Ããntem

    em

    ordem), náo

    poderia

    exis.tir

    sociedade.

    Estamos

    aqui'

    coníorme

    diz

    a

    noss"

    iUeofogia

    dominante,

    diante

    cle

    duas

    ãt"úìoà.

    irrãdutíveis'

    ambag

    ligadas

    à

    nossa

    ãàncãpçao

    daquilo

    que Ó

    o

    vrrdtdllrem-onie

    humano.

    Se,

    como

    gabemos

    deede

    a

    escola

    fritãtia,

    o

    .homem

    é

    um

    anlmal

    político"'

    ele

    é

    tambóm

    um

    animal

    que

    íol

    punldo

    com

    á

    iáár'oàìà

    Jo

    trabalho'

    E,

    quaee

    sempre'

    do

    iooãnó

    .omo

    íorma

    de

    exPloração'

    Mas,

    por

    contraste

    com

    o

    trabalho

    e o

    poder'

    as

    esieras

    do

    "esporte',

    da

    'art6"

    e

    da-"religiáo"

    localizam-se

    dentro

    da

    sociedade

    e

    estáo

    associadas

    a

    valores

    como

    o

    amor'

    a devoçáo

    à

    o

    divertimento

    (ou

    lazer)'

    Se

    o

    trabalho.

    ã ã

    gu"rt"

    nos

    situam

    diante

    dos

    nossos

    limites

    fo

    oít-

    como

    inimigo

    e

    a

    naturêza

    como

    Íonte

    àe

    realidade

    e

    racionalidade, pois

    o

    homem

    tem

    oue

    modificá-la

    pelo seu

    esforço)'

    a

    arte'

    o

    esporte

    e

    a

    teiigião

    são

    classiÍicados

    como

    atividades

    inconseqüentes

    ou

    marglnals'

    Ãiiuio"o".

    que fazem

    parte

    desta

    bateria

    de

    instrumentos

    destinados

    a

    nos

    mistiÍicar

    e

    desviar

    Jas

    "realidades"

    absolutas

    e

    inevitáveis

    do

    *trabalho"

    e

    da

    "luta

    pela sobrevivência"'

    t;,

    o

    esporte

    em

    oposiçáo

    à

    sociedade

    esta

    relacionado

    à

    própria

    concepçáo

    do

    esporte

    Olntro

    do

    nosso

    sistema

    de

    classiÍicação'

    Assim'

    se

    o

    trabalho

    é

    -

    como a Bíblia

    nos

    permite

    ãesconrir

    -

    a atividade

    Íundadora

    da

    própria

    sociedade,

    entáo

    a

    oposição

    entre

    trabalho

    e

    sociedade

    será

    praticamente

    impossível

    ou

    muito

    mais

    diÍícil

    de ser

    realizada'

    Mas'

    no

    caso

    do

    "esporte",

    a

    seParaÇão

    é

    muito

    m.ais

    visível'

    De

    Íato,

    trabalho

    e

    sociedade

    Íoram

    inventados

    no

    mesrno

    tempo,

    mas

    o

    esporte,

    como

    a

    religiosidade

    e

    as

    artes,

    Íoram

    atividades

    inventadas

    no

    nosso

    sistema'

    2.

    O

    Esporte

    na Sociedade

    e

    a

    Sociedade

    no

    EsPorte:

    Uma

    PersPectiva

    Se

    descartarmos

    a

    posiçáo

    que

    estabelece

    o

    contraste

    "esporte/sociedade"

    e

    diz

    que

    o

    "futebol

    é

    o

    ópio

    do

    povo",

    será

    preciso

    esclarecer

    um

    pouco mais

    a

    nossa

    perspectiva'

    Nela

    não se busca

    mais

    conÍirmar

    Íuncionalidades

    entre

    dois

    termos

    reiÍicados,

    colocados

    em

    confronto,

    mas

    Íocalizar

    abrangências,

    relaçóes

    é

    transÍormações.

    O esporte

    Íaz

    parte

    da

    sociedade,

    tanto

    quanto

    a

    sociedade

    também

    '

    Íaz

    parte do

    esporte.

    lmpossível

    compreender-se

    uma

    atividade

    (ou

    um

    plano

    de

    atividades)'

    iem

    referência

    à

    totalidade

    na

    qual

    está

    inserida'

    Esporte

    e

    sociedade

    são

    como

    as

    duas

    Íaces

    de

    uma mesma moeda

    e

    não como

    o

    telhado

    em

    relaçáo

    aos

    alicerces

    de

    uma

    casa'

    Suas

    reÍaçóes

    náo são

    de

    "estratiÍicação"'

    como

    disie

    Geerlz

    (1973: 46),

    mas

    relações

    expressivas,

    dramáticas,

    onde

    começo

    e

    fim se

    rebatem

    um

    no outro;

    onde

    as

    regras'

    como

    veremos

    mais adiante,

    transÍormam-se

    em

    atores'

    Pois

    a

    sociedade

    se

    revela

    tanto

    pelo

    trabalho

    quanto

    pelo

    esporte,

    religião,

    rituais

    e

    política'

    esÍeras

    é

    uma

    espécie

    de

    24

  • 8/9/2019 Universo Do Futebol - Roberto DaMatta

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    jogo

    básico

    para

    a

    sua

    própria percepção

    enquanto

    uma totalidade

    signiÍicativa.

    A

    tese

    do

    esporte

    como

    atividade derivativa

    deve

    ser substituída por

    uma perspectiva

    capaz de

    tomar o social como um

    fenômeno totâl e,

    ao

    mesmo tempo, especíÍico. Que

    náo

    precisa

    ser

    reduzido a

    nenhuma

    lngica prática,

    de

    tipo

    "Íêâ1"

    ou

    utilitário.

    O

    mundo não

    começou

    com os

    homens

    buscando comida e

    realizando

    guerras.

    O

    impulso

    primordial,

    se é

    que

    se

    pode

    realmente

    falar

    nisso, foi dado

    tanto

    pelo

    corpo

    quanto

    pelo espÍrito.

    Se me

    for

    permitido

    parafrasear Lévi-Strauss, diria

    que

    o

    primeiro

    dardo

    náo Íoi

    somente

    bom

    para

    matar,

    mas

    também

    para

    divertir,

    decorar

    e

    pensar.

    A

    pergunta

    básica, então,

    quando

    se

    adota

    esta

    nossa

    perspectiva,

    não

    está

    mais

    orientada

    para

    discernir

    "funções"

    e

    "utilidades"

    do esporte

    num dado

    sistema, mas para

    a

    descoberta

    das

    implicaçóes

    e conseqüâncias

    que

    este

    domínio

    do

    social

    que

    classiíicamos como

    "esportivo"

    permite

    vislumbrar.

    No

    Íundo,

    e dito de outro

    modo,

    o

    que

    se deseja é uma boa

    resposta

    para

    a seguinte

    pergunta: quando

    estamos

    vivenciando

    ou

    reÍletindo

    sobre essas atividades

    denominadas

    "esportivas",

    de

    que

    estamos,

    aÍinal de contas,

    Íalando?

    Ou

    seja,

    quando

    estamos

    implicados no

    universo

    do

    "esporte",

    que

    tipo de

    vivência

    a sociedade está abrindo

    e

    legitimando

    para

    nós

    e

    para

    ela

    própria

    como

    sistema?

    Que

    relaçoes

    podemos

    desÍrutar,

    renovar,

    estabelecer e esquecer

    neste

    domínio?

    Que emoções

    podemos

    sentir e

    que

    sentimentos

    devemos aÍastar

    quando

    estamos

    no

    campo

    do

    Íutebol ou

    assistimos

    a um

    jogo

    de tênis?

    que que

    roupagem

    é

    essa

    que

    a sociedade

    veste

    quando

    se

    maniÍesta

    totalizada

    por

    meio

    de sua

    d

    imensão

    esportiva?t1)

    Essas são algumas das

    questões que

    devemos

    responder

    quando

    pensamos

    no Íutebol

    do

    Brasil

    e

    no

    esporte em

    geral

    como uma atividade

    da sociedade e

    não

    como

    uma atividade

    em

    oposiçáo ou competiçáo com a sociedade.

    Enquanto

    uma atividade da sociedade, o esporte

    é a

    prôpria

    sociedade exprimindo-se

    por

    meio

    de

    uma certa

    perspectiva, regras,

    relaçóes,

    objetos,

    gestos,

    ideologias,

    etc.,

    permitindo,

    assim, abrir um espaço social determinado:

    o

    espaço

    do

    esporte e

    do

    "jogo,,.

    E assim,

    suponho,

    que

    uma

    produtiva

    sociologia

    do

    esporte

    pode

    ser

    praticada,

    sem os

    riscos das

    reificações

    e

    projeçóes

    rotineiras,

    quando

    o

    esporte

    é tratado

    como um epifenômeno

    ou

    atividade dispensável

    e

    secundária

    e

    a

    sociedade

    como

    uma

    realidadç individualizada

    e

    monolítica.

    (1)

    Pelo menos

    um

    jornalista

    foi

    sensível a esse

    modo

    de

    perceber

    o esporte: veja-se Henry Fairlie, 1977. Entre'os

    cientistas

    sociais, o trabalho

    de Stemme

    (1981),

    parece-me

    original

    nesta linha.

    Evon

    Vogt

    promete

    um estudo do esporte numa

    direçáo semelhante,

    que

    é tão ignorada

    em

    monograÍias

    recentes sobre

    o assunto como a de Guttman

    (1978).

    Na

    mesma

    perspectiva,

    vejam-se,

    ainda,

    os

    trabalhos

    de

    Arens

    (1975

    e

    1978)

    e

    o curioso

    livro

    de Novak

    (1976),

    que

    é uma

    versão

    norte-americana

    de uma autêntica

    fenomenologia

    do

    esporte,

    na mesma linha

    descoberta

    no

    jornalismo

    brasileiro e imortalizada

    em artigos de Nélson

    Rodrigues

    e-José

    Lins

    do

    Rego-.

    Para

    reflexões

    sobre

    o

    futebõl

  • 8/9/2019 Universo Do Futebol - Roberto DaMatta

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    Não deve,

    portanto,

    ser

    ao

    acaso

    que,

    em

    certos

    países,

    o

    Íutebol

    está associado

    a

    um

    sistema

    nacional

    de

    loteria.

    No

    caso específico

    do

    Brasil, a

    chamada

    "loteria

    esportiva",

    inteiramente

    relacionada ao

    Íutebol,

    permite

    alualizar

    todo um conjunto de

    valores

    associados ao sistema

    brasileiro da

    sorte

    e do

    azar,

    inclusive

    com

    o apelo

    mágico

    às entidades

    sobrenaturais

    das chamadas

    religiões

    AÍro-Brasileiras

    (como

    a

    Umbanda)

    e

    do

    Catolicismo

    popular.

    Há, assim,

    nesta

    associação

    do

    Íutebol com

    a

    loteria

    esportiva

    (que

    proporciona prêmios

    de

    milhares de

    dólares);

    vários jogos

    de

    íutebol

    que são

    "jogados,,

    em

    planos

    diÍerenciados,

    mas

    simultaneamente.

    Há, é claro,

    um

    jogo

    que

    se

    passa

    no

    campo,

    jogado

    pelos

    jogadores

    como

    atividade

    proÍissional

    e esportiva. Há um

    outro

    jogo

    que

    se

    passa

    na

    vlda real,

    jogado pela população

    brasileira,

    na

    sua constante

    busca

    de

    mudança

    para

    seu

    destino. E

    um

    terceiro

    jogo

    jogado

    no

    "outro

    mundo",

    onde entidades são chamadas

    para inÍluenciar no

    evento e, assim

    Íazendo,

    promover

    transÍormaçóes nas

    diÍerentes

    posiçoes

    sociais envolvidas

    e

    implicadas

    no

    evento

    esportivo. Ou

    melhor,

    num

    ovento

    total,

    que

    de esportivo

    ele só

    teria

    o

    nome

    e

    a origem.

    Talvez

    por

    tudo

    isso

    ó

    que

    o

    espectador

    do

    jogo

    no

    Brasil

    seja chamado de

    torcedor,

    isto

    é,

    alguém

    que

    torcê.

    A

    expressáo, derivada do verbo

    torcer,

    indica

    a

    idéia

    de

    revirar-se,

    retorcer-se,

    volver-se

    sobre

    si

    mesmo,

    como

    quem

    estivesse

    sendo

    submetido

    a

    um

    torneio Íísico ou

    tortura.

    Parece-me

    que

    chamar os espectadores

    de

    um

    jogo

    de Íutebol

    de torcedores

    é

    algo

    que

    pode

    ser

    completamente entendido

    quando

    se

    levam em conta

    todas

    essas

    importantes

    conotações sociais

    do

    esporte

    e

    do

    Íutebol

    no

    Brasil.

    Tudo isso

    revela

    como

    uma dada

    instituição,

    ingleses,

    pode

    ser diÍerencialmente apropriada

    e situada em termos de um sistema de

    relações

    específico.

    Neste

    sentido, o

    futebol

    praticado

    no

    Brasil

    deve

    ser

    visto

    não

    como

    um esporte

    (como

    uma atividade

    individualizada

    com

    conotações específicas),

    mas também

    como

    um

    jogo

    a serviço de todo um outro

    conjunto de

    valores

    e

    relações

    sociais.

    Deste modo, no

    caso brasileiro,

    o

    Íutebol

    poderia

    ser

    visto

    como

    uma

    instituição

    capaz

    de

    juntar

    muitas esferas

    da

    vida

    social,

    daí

    termos

    utilizado

    a

    noção

    de

    Mauss

    de

    "fato

    soc|al

    total-

    para

    poder

    compreender mais precisamente

    essa

    atividade.

    De fato, trata-se de estudar como

    o

    Íootball

    association dos

    ingleses

    passa

    a ser

    algo

    muito

    mais

    complexo

    no

    Brasil,

    transfo rmando-se

    em

    Íutebol.

    Além

    disso, é

    possÍvel que

    na

    lnglaterra

    (e

    nos

    Estados

    Unidos),

    o soccer

    esteja

    ligado

    a uma

    poderosa

    Íorma

    de

    coletivização.

    A

    interessante

    fórmula

    de

    Pickford,

    notando

    que,

    no Íutebol:

    (everybody gets

    something

    and

    nobody

    gets

    Carlos Oswald,

    "Estudo

    para

    proie.to

    de

    decoração

    da sede

    do Botaíogo Futebol

    Clube em

    General Severrano",

    década de

    20,

    carvão

    e

    graf

    ite

    sobre

    papel,

    55

    x 75,5cm,

    coleção

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    everything, and,

    Írom

    the

    polnt

    oí social

    psychology,

    essentially

    the

    somethlng

    which

    everybody

    gets

    is the

    comradeshlp oÍ

    everybody

    else"

    (Cf.

    PickÍord,

    1940:81), chama

    atenção

    precisamente para

    esse

    aspecto

    coletivo

    numa

    sociedade

    fortemente marcada

    pela

    ideologia

    individualista,

    o

    que,

    sem

    dúvida

    alguma,

    é um

    ponto

    interessante

    para

    ser

    observado.

    No

    universo social

    individualista

    da

    lnglaterra

    e dos

    Estados

    Unidos, o

    íutebol,

    em

    suas

    várias

    modalidades,

    bem

    poderia

    ser

    um

    mecanismo

    que permitiria

    orientar

    o sistema

    coletivamente,

    criando a

    camaradagem

    e

    o

    fair-play, traços

    essenciais

    na

    categorização

    anglo-saxônica do

    sport.

    Em

    outras

    palavras,

    na lnglaterra,

    o

    futebol

    é vivido

    como

    um sport

    e

    não

    como um

    jogo,

    como ocorre

    no Brasil,

    onde

    se distingue o

    jogar

    (to gamble)

    do

    brincar

    (to

    play).

    Brinca-se no

    Carnaval, como

    procurei

    mostrar

    em outros

    lugares

    (CÍ.

    Da

    Matta,

    1979

    e

    1981), mas

    joga-se

    Íutebol,

    e

    loga-rc

    num

    time de Íutebol,

    isto

    é

    pode-se praticar

    o

    Íutebol dentro

    de um

    time

    e

    também

    apostar

    na vitória

    de um dado time. Mas o

    verbo,

    como

    se

    nota,

    é

    mesmo

    verbo

    jogar,

    embora

    esteja

    sendo empregado em duas acepçóes

    bem diÍerentes.

    Paralelamente

    a essa diÍerenciação, sabemos

    que

    o Íutebol

    brasileiro

    se distingue

    do

    europeu

    pela

    sua

    improvisaçáo

    e

    individualidade

    dos

    jogadores

    que

    têm, caracteristicamente, um alto

    controle da bola. Deste

    modo,

    o íutebol

    é,

    na

    sociedade brasileira,

    uma fonte de

    individualizaçáo

    e

    possibilidade

    de expressão

    individual, muito mais

    do

    que

    um

    instrumento

    de coletivização

    ao

    nível

    pessoal

    ou das

    massas.

    Realmente, é

    pelo

    Íutebol

    praticado

    nas

    grandes

    t:

    lógica,

    é dentro de um time

    de

    futebol

    que

    um

    membro

    dessa

    massa

    anônima

    e

    desconhecida

    pode

    tornar-se uma estrela

    e

    assim

    ganhar

    o

    centro

    das atenções

    como

    pessoa,

    como uma

    personalidade

    singular,

    insubstituível

    e

    capaz

    de

    despertar atençóes

    (CÍ.

    Da

    Matta,

    1979:

    Cap.

    lV).

    Creio

    que

    é

    por possibilitar

    essa

    dialética

    de

    individualização

    e

    coletivizaçâo,

    que

    o

    Íutebol

    permite

    exprimir

    no

    caso brasileiro

    o

    importante

    conÍlito entre

    "destino"

    impessoal

    e vontade individual.

    Sendo assim, são

    muitos

    os

    jogos

    de futebol

    que,

    no Brasil,

    permitem

    sua

    "leitura"

    enquanto

    paradigmas

    de

    um

    combate

    entre as

    Íorças

    coletivas

    e

    impessoais

    (do

    destino) e as

    vontades

    individuais

    que

    buscam escapar do ciclo da

    derrota e da

    pobreza.

    Creio

    que

    esse

    é um

    importante

    dilema da

    sociedade brasileira

    que

    o

    jogo

    de

    Íutebol,

    ou

    melhor;

    que

    o Íutebol

    enquanto

    jogo

    permite

    colocar

    em

    foco

    como

    uma dramatização

    muito

    popular.

    Náo é,

    pois, por

    acaso

    que,

    no Brasil, apreciações

    sobre

    Íutebol sejam

    classificadas como discussÕes.

    No Brasil,

    discutir

    é

    Íalar

    de

    um

    certo

    tema de

    modo

    sério.

    É ter

    que

    tomar um

    partido

    e

    náo

    poder

    assumir

    uma atitude

    neutra

    quando

    se

    trata de

    um

    certo assunto.

    Assim,

    existem coisas, eventos

    e

    Íenômenos que

    podem ser discutidos.

    Entre

    eles, cito

    como

    dos

    mais característicos,

    política

    e

    Íutebol

    que,

    muito signiÍicativamente,'

    não são considerados

    assuntos

    gue

    possam

    ser

    apreciados

    por

    mulheres.

    De

    Íato,

    no Brasil

    Íala-se de

    dinheiro e

    de

    mulheres,

    mas

    se

    discute

    futebol e

    política.

    Tudo o

    que

    é

    sério

    e apaixona,

    é

    discutido

    e

    jamais

    falado. Futebol e

    política

    são

    domínios

    que,

    no Brasil,

    seguem

    juntos,

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    por

    leis impessoais. Do mesmo modo,

    em

    ambas

    as atividades é

    preciso

    saber

    jogar

    e uma tática

    deve

    ser

    desenvolvida

    para

    a conquista

    da

    vitória.

    Na

    política

    e

    no

    Íutebol, por outro

    lado,

    fatores imprevisíveis

    podem

    interÍerir,

    dando

    vitória

    para

    uma

    equipe ou um

    candidato obscuro,

    pois

    os

    resultados

    são

    insondáveis,

    dependendo

    de

    "sorte".

    Finalmente,

    em ambas as esÍeras,

    pode-se

    ascender

    socialmente,

    náo havendo

    um

    modo

    de

    prever

    com

    segurança

    uma relação

    direta

    (e

    racional)

    entre

    meios

    e

    fins.

    Futebol e política

    sáo domínios que,

    no

    Brasil,

    estão também

    unidos

    pelo

    Íato

    de

    que

    "chamam"

    seus adeptos e

    praticantes.

    E

    preciso, pois,

    ter

    "talento,,

    e/Ou

    "vOCaçãO"

    para

    entrar

    no

    Íutebol

    ou

    na

    politica.

    assim,

    expressóes

    que

    circulam

    livremente

    tanto

    no

    campo de Íutebol

    quanto

    no

    da

    política.

    Citarei

    uma delas,

    que creio

    ser

    bastante

    expressiva

    de tudo

    o

    que

    disse

    até agora.

    Trata-se

    da

    popularíssima

    expressão

    brasileira

    "ter

    (ou

    não

    ter)

    jogo

    de cintura",

    como uma

    forma

    de

    exprimir

    a

    Ílexibilidade

    e sensibilidade

    que

    se

    pode

    ter

    (ou

    não)

    para

    certas situaçoes

    sociais. Deste modo,

    (uma

    pessoa

    com

    jogo

    de

    cintura"

    (ou,

    (uma

    pessoa

    que

    tem

    jogo

    de

    cintura") é

    uma

    pessoa

    capaz de dobrar

    sem

    quebrar, deixando quê

    uma

    situação

    possa

    transÍormar-se

    Íavoravelmente

    para

    depois

    agir.

    Como

    um

    jogador

    de íutebol

    brasileiro

    ou um

    sambista,

    que

    "tem

    jogo

    de cintura",

    sabe

    movimentar

    o corpo na

    direção

    certa,

    provocando

    conÍusão

    e

    Íascínio

    nos

    seus

    adversários,

    criando

    harmonias

    insuspeitadas.

    E

    sabido

    no Brasil

    que

    o

    Íutebol

    nativo

    lsrn

    "jogo

    de

    cintura.;

    ou

    seja,

    malícia

    e

    malandragem,

    brasileiro,

    que

    exibe essa

    improvisação

    s

    "jogo

    de cintura", o

    Íutebol

    da Europa surge como

    uma

    variante "quadrada" e

    autoritária

    da

    prática

    do

    mesmo esporte.

    E

    evidente

    que, quando

    Íalamos

    de

    "jogo

    de cintura", estamos

    usando

    uma

    metáfora

    para

    a chamada

    "arte

    da

    malandragem.

    como

    forma

    básica de

    ser

    polÍtica

    e

    socialmente bem sucedido.

    Na malandragem,

    como

    no

    "jogo

    de cintura",

    estamos nos reÍerindo

    a

    um

    modo

    de deÍesa

    autenticamente

    brasileiro,

    que

    consiste

    em

    deixar a Íorça

    adversa passar,

    livrando-se

    dela com um simples

    -

    mas

    preciso

    -

    mover

    do

    corpo.

    Em vez

    de enÍrentar o adversário

    de

    frente,

    diretamente,

    é

    sempre

    preferÍvel

    livrar-se

    dele

    com um bom

    movimento

    de

    corpo,

    enganando-o

    de

    modo inapelável. O bom

    jogador

    de Íutebol

    e o

    político

    sagaz

    sabem

    que

    a

    regra

    de ouro do universo social

    brasileiro

    consiste

    precisamente

    em saber sarr-se bem.

    Em

    poder

    safar-se nas situações

    difíceis,

    fazendo isso

    com alta

    dose de dissimulação

    e

    elegância,

    de

    modo

    gue

    os outros

    venham

    1..'

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    a

    pensar

    que

    para

    o

    jogador

    tudo

    estava

    muito

    Íácil.

    De

    acordo

    com

    o

    que

    estudei

    em outro

    lugar

    (Cf.

    Da Matta,

    1979), a

    malandragem

    e o

    "jogo

    de

    cintura"

    são

    as

    artes

    que

    permitem

    transformar

    o

    geral

    em

    particular,

    pela

    dissimulaÇáo

    e uso

    em

    beneÍício

    próprio

    de

    alguma

    regra

    universal.

    Como

    o

    bom

    político,

    o

    malandro

    é

    aquele

    "jogador'

    capaz

    de

    transformar

    o

    infortúnio

    em sorte.

    São

    abundantes,

    então,

    as

    amostras

    de

    que

    os

    comentários

    sobre

    o

    Íutebol

    sáo

    sempre

    levados

    a

    sério

    no Brasil.

    Algumas

    dessas

    questoes

    têm

    um nítido caráter

    moral ou

    filosófico

    e

    dizem

    respeito

    não

    somente

    ao

    estado

    Íísico

    dos

    jogadores

    ou

    às

    condiçoes

    do campo

    e

    equipamento

    utilrzado,

    mas

    a

    problemas

    transcendentais,

    como

    a oposição

    entre

    o

    destino

    e a

    vontade

    individual;

    a

    divisáo

    e a

    luta

    entre

    a

    dedicação

    e

    o treinamento

    e a

    sorte.

    lsso

    tudo

    permite

    retomar

    um

    ponto

    assinalado,

    que

    o

    Íutebol

    é um objeto

    social

    complexo

    e

    que pode

    ser socialmente

    apropriado

    de

    vários

    modos

    em

    diferentes

    sociedades

    lsso

    permite

    que

    um

    mesmo

    sport

    seja

    uma

    diversão

    na América

    e

    um instrumento

    de

    comunicação

    social

    e de construção

    de

    identidade

    nacional

    em

    países

    como

    o

    Brasil.

    Num caso,

    o

    Íutebol

    é

    "Íun

    to

    watch,

    but

    not

    serious...".

    No outro,

    é

    um

    meio

    altamente

    significativo

    de

    veicular

    mensagens

    sobre

    o

    que

    é realmente

    ser

    brasileiro,

    sobre

    o sentido

    da

    vida,

    do

    destino

    e do

    papel

    da

    técnica

    no

    universo social.

    Tudo

    isso de

    modo

    direto,

    gráfico,

    literal, proÍundo e

    dramático.

    Pois

    o

    futebol

    não

    é um

    jogo

    de

    palavras,

    que

    se

    arma

    somente

    com

    a

    inteligência,

    mas um

    sistema

    de

    regras

    Íechadas,

    atualizado

    por

    meio

    de

    açóes e

    relações.

    Trata-se

    de

    um

    iogo

    onde

    sistematicamente

    estão

    em

    relação

    regras

    absolutas

    e

    homens

    em ação;

    inteligência

    e

    vontade,

    verdade

    e

    mistiÍicaçáo;

    técnica

    e

    necessidade

    de ação

    coletiva.

    O

    Íutebol

    brasileiro,

    deste

    modo,

    pode

    ser

    estudado

    como

    sendo

    capaz

    de

    provocar

    uma

    série

    de

    dramatizaçoes

    do

    mundo

    social.

    Um

    dos

    traços

    essenciais

    do

    drama

    é a

    sua

    capacidade

    de

    chamar atenção'

    revelar,

    representar

    e descobrir

    relações,

    valores

    e

    ideologias

    que

    podem

    estar

    em

    estado

    de

    latência

    ou

    de

    virtualidade

    num

    dado

    sistema

    social'

    Mas

    ficar

    somente

    preso

    ao

    que

    o

    ritual

    revela

    seria

    um

    engano.

    Porque

    o drama,

    precisamente

    por

    chamar

    atenção

    absoluta

    e,

    às

    vezes,

    exclusiva,

    para

    um

    certo

    conjunto

    de

    objetos

    ou

    relaçóes'

    dialeticamente

    esconde

    e

    mistifica

    um

    outro

    coniunto.

    Se

    o

    Íutebol

    traz

    à

    tona da

    consciência social valores como

    a

    lealdade

    absoluta

    a

    uma

    equiPe,

    a

    segmentação

    da sociedade

    em

    coletividades

    individualizadas

    e

    compactas;

    e uma

    idéia

    de

    tempo

    cÍclico;

    ele

    positivamente

    esconde

    os

    Íatos da

    vida diária

    que

    indicam

    como

    os

    clubes

    são

    compostos

    de

    pessoas

    socialmente

    distintas,

    não

    podendo

    jamais

    Íormar

    uma

    entidade

    permanente.

    Pois

    que

    a

    vida

    quotidiana

    divide ricos e

    pobres, doentes

    e

    sadios,

    dominantes

    e dominados.

    Se

    o

    Íutebol,

    portanto,

    nos

    mostra

    o

    mundo

    como

    uma

    realidade

    momentânea

    homogênea,

    é

    para

    esconder

    o

    heterogêneo.

    A

    pergunta

    que

    o

    Íutebol

    permite

    Íormular

    é uma

    pergunta relacional.

    Ela

    pode

    ser

    expressa

    mais

    ou

    menos

    assim:

    se somos

    todos

    tão

    diferentes'

    como

    é

    que

    no

    momento

    do

    jogo

    podemos

    estar

    todos

    tão

    juntos e

    unidos?

    Além

    disso,

    o

    ritual

    e

    as

    formas

    pelas

    quais

    ele

    regularmente

    atualiza

    concretamente

    como

    o

    jogo,

    o

    sport,

    o

    teatro,

    a

    terapia

    e

    os

    espetáculos

    em

    geral,

    são

    um

    momento

    claramente

    demarcado

    da

    vida em

    sociedade.

    Trata-se

    de

  • 8/9/2019 Universo Do Futebol - Roberto DaMatta

    24/118

    30

    uma

    região separada das rotinas

    do

    mundo

    diário,

    o

    que

    permite

    que

    tudo o

    que

    o

    drama

    situe

    seja

    circunscrito

    temporal e

    espacialmente.

    Essa

    demarcaçáo

    das

    açoes

    dramáticas

    Íaz

    com

    que

    se

    possam

    controlar

    as

    repercussões

    sociais

    que porventura

    venham

    a ocorrer

    dentro

    do espaço

    social

    onde

    o drama

    se

    realiza.

    Assim, aprendemos

    logo a separar

    a

    "vida

    real"

    da

    tragédia

    teatral ou

    da

    "história"

    contada

    na

    tela dos

    cinemas. A

    vantagem

    do

    íutebol

    é'

    certamente,

    a

    de

    poder

    veicular

    muitos

    problemas

    Íundamentais e,

    náo

    obstante,

    ser

    apenas

    um

    jogo

    e

    um esports.

    Talvez esteja

    aqui

    a

    signiÍicação

    central

    do lport

    na

    sociedade

    moderna.

    Tomemos

    duas

    dramatizaçóes

    básicas

    que

    o

    Íutebol

    permite

    Íazer

    no

    Brasil

    e

    passemos

    ao estudo

    de suas implicaçóes sociais

    e

    políticas

    mais

    importantes,

    4. As

    Dramatlzaçóct

    do

    Futcbol

    4.1. A

    questáo

    do dcetlno

    cm

    oposlçáo

    à biograÍia

    mencionei

    que

    uma

    das

    mais

    importantes

    dramatizaçóes

    que

    o

    Íutebol

    permite

    veicular

    na

    sociedade

    brasileira

    é a

    da oposição

    entre

    um sistema

    Íechado, dotado

    de

    regras

    fixas,

    e as

    possibilidades

    de

    modificar esse

    sistema

    por

    meio da

    vontade

    individual

    com

    o

    uso do

    esÍorço,

    do

    planejamento

    6 da

    técnica.

    No Íutebol do

    Brasil, entáo,

    proieta-se

    o

    drama

    do

    mundo do

    algo

    controlado

    em

    luta

    perene

    com a

    idéia

    de

    que

    o

    mundo

    é, ao contrário,

    desejos

    e

    necessidades

    específicas,

    que

    vivem

    neste

    mundo.

    Enquanto categoria

    social

    (ou

    cultural),

    portanto,

    a

    idéia de destino

    permite

    construir

    uma

    "ponte,'

    entre

    o

    plano

    individualizado

    das biografias,

    motivações,

    projetos

    e

    necessidades

    pessoais

    e as

    Íorças

    que

    naquele sistema

    são

    vistas como

    tendentes

    g

    "

    jogar"

    com

    cada biograÍia

    e com

    cada

    vontade.

    E

    pre.cisamente

    esse

    choque

    e essa

    luta,

    que

    a

    idéia

    de

    destino

    parece

    exprimir

    em

    certas

    sociedades

    onde

    existe

    uma

    desconfiança

    estrutural

    do

    sistema

    global

    de

    regras

    que

    somente

    o

    Estado ou

    o Governo

    controla.

    Creio

    que

    esse

    choque

    é um dos

    pontos

    críticos

    em sistemas

    sociais

    marcados

    por

    um

    individualismo

    náo radical,

    como aquele

    que

    parece

    caraclerizar

    as sociedades

    mais

    envolvidas

    com a

    ReÍorma

    Protestante e a

    Revoluçáo

    lndustrial.

    Em sistemas

    a

    meio

    caminho

    entre

    essas

    formab de

    individualismo

    e um

    universo social

    onde

    as

    relaçôes e

    as

    gradaçóes

    desempenham

    um

    papel

    Íundamental

    na ordenação social,

    a

    idéia

    parece

    ser

    uma

    categoria

    básica(3)

    Como

    o

    Íutebol

    é

    constituído

    de

    regras

    Íixas,

    esse drama

    surge

    claramente

    neste

    jogo.

    O

    que

    estou

    querendo

    dizer

    aqui

    é

    que

    o

    (3)

    A oposiçáo

    é o conflito entre

    rqgras

    impessoais e

    universais

    (válidas

    para

    todos

    os domínios

    e

    indivíduos

    de um

    sistema social)

    e

    a

    existência

    de

    éticas

    múltiplas

    em diferentes

    domínios

    de uma

    mesma

    sociedade,

    cada

    qual

    sendo

    específica

    daquele

    domínio ou

    daquela

  • 8/9/2019 Universo Do Futebol - Roberto DaMatta

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    32

  • 8/9/2019 Universo Do Futebol - Roberto DaMatta

    26/118

    uma sociedade

    que

    pretendeu

    escapar de

    sua

    posição

    de derrotada.

    Tal

    "golpe

    do

    destino"

    fez com que muitos

    brasileiros Íossem

    tomados

    de uma

    tremenda

    desilusão

    quanto

    a

    planos,

    motivaçóes,

    projetos

    detalhados, etc.

    De

    que

    valia tudo

    isso,

    perguntavam

    amargamente,

    se

    no Íinal

    eram derrotados

    e a boa-sorte

    não lhes

    sorria?

    Mas,

    as explicações

    não

    ficaram neste nível

    geral.

    Vários

    jornalistas,

    conforme

    revela

    o trabalho de Guedes

    (1977\,

    trataram de detalhar

    melhor

    essas

    Íorças

    do

    destino,

    identiÍicando-as nos

    Íatores

    raciais.

    A derrota,

    portanto,

    foi

    explicitamente alocada

    a

    nossa

    infeliz

    constituição

    racial

    e

    ao

    peso

    enorme

    que

    carregamos como uma sociedade

    formada

    por

    vários

    grupos

    inÍeriores

    como

    "índios'

    ê

  • 8/9/2019 Universo Do Futebol - Roberto DaMatta

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    Rubens

    Gerchman. "O

    Futebol

    (Os

    desaparecidos)

    (larg.

    sup.),

    caleÇão

    do

    arttsta,

    Rto

    de Janeiro.

    Umbanda,

    o destino

    ocupa

    um

    papel

    básico

    como

    categoria

    ordenadora

    e

    explicativa

    do

    sofrmento

    e do

    sucesso

    humanos.

    Náo deve

    então

    causar

    espanto

    essa

    1unçào

    entre

    Carnaval

    e

    futebol

    como

    instrumentos

    l9/0/1979,

    oleo

    sobre

    tela,

    a conduzir

    a

    sociedade

    para

    a

    derrota'

    ,,E

    o

    destino....

    falamos

    diante

    de

    situações

    onde

    não

    cabe

    mais

    nem

    a

    esPerança'

    Dentro

    deste

    quadro cultural

    onde o

    destino

    ocupa

    um

    lugar

    tão

    importante,

    pode-se

    do

    Tri-Campeonato

    1

    60

    (ah

    )

    r

    1

    60

    llarg

    rnt

    t

    x

    240cm

  • 8/9/2019 Universo Do Futebol - Roberto DaMatta

    28/118

    Íinalmente,

    experimentar

    a vitória

    contra

    essas

    forças impessoais

    que

    sempre a colocaram

    no fundo

    do

    poço.

    Simultaneamente

    com

    esse

    processo,

    veio

    uma

    redeÍiniçáo

    do valor

    da

    "raça",

    sobretudo da

    "raça

    negraD

    como

    fundamentalmente positiva. Creio que

    é

    desta

    posição

    que

    podemos

    entender

    o

    Íenômeno

    Pelé

    e

    o seu coroamento

    como

    "Rei

    do

    Futebol..

    Pois,

    se o

    negro, visto

    como

    inferior

    pelos

    racistas

    brasileiros,

    é

    o

    responsável

    pela

    derrota

    trágica

    de

    1950,

    o super-negro Pelé,

    com

    sua

    "arte"

    e sua

    "malandragem",

    é o

    responsável

    pela

    vitória

    do Brasil

    nos

    campeonatos mundiais

    subseqüentes. Por

    outro

    lado, essa valorizaçáo

    da

    "raça"

    veio

    acompanhada

    de

    uma explosão

    carnavalesca

    todas

    as

    vezes

    que

    a equipe

    do Brasil vencia

    e chegava mais

    próxima

    do tÍtulo.

    Assim,

    após cada

    jogo,

    multidóes

    iam

    para

    as

    ruas

    cantar

    em coro

    slogans

    grosseiros

    e depreciativos

    contra

    as equipes

    estrangeiras

    que

    haviam

    sido

    derrotadas.

    Era como

    se

    o

    mundo

    tivesse

    sido

    totalizado

    (ou

    encompassado)

    pelo

    Íutebol,

    de

    modo

    que

    o

    desempenho Íutebolístico

    servia

    de

    medida

    para

    tudo.

    Não

    se tratava mais

    de

    equipes

    de Íutebol,

    mas

    de sociedades

    cuja

    essência

    era

    medida

    pelo

    Íutebol.

    Daí,

    o

    carnaval

    cívico-nacionalista

    depois

    da

    vitória

    Íinal,

    contra a equipe italiana,

    com o

    povo

    cantando na rua

    a

    Íraqueza

    dos

    italianos

    e

    louvando

    o

    poder

    dos brasileiros.

    A vitória

    no

    Íutebol Íoi,

    assim,

    um

    "ritual

    de vingança"

    quando

    finalmente a sociedade

    brasileira

    experimentava

    a

    superação

    de um

    destino

    sempre

    percebido

    como

    negativo

    e inferior.

    E isso

    não é tudo,

    pois que,

    através do

    Íutebol,

    se

    pode

    realizar

    uma outra

    dramatizaçáo

    muito

    importante.

    Trata-se da

    reificação

    que

    o

    jogo

    permite, quando

    deixa

    que

    uma entidade abstrata

    (povoD

    determinado.

    Como

    uma

    equipe

    que

    sof

    re,

    vibra

    e

    vence

    adversários.

    Como um

    time

    que

    reage

    aos nossos

    incentivos

    positivos

    e

    negativos.

    Ora, num

    país

    onde a

    massa

    popular

    jamais

    tem

    voz

    e

    quando

    fala

    é

    através dos

    seus lÍderes,

    dentro das

    hier.aquizaçóes

    do

    poder,

    a

    experiência

    futebolística parece

    permitir

    uma real

    experiência

    de

    "horizontalização

    do

    poder", por

    meio

    da

    reiÍicação

    esportiva. Assim,

    o

    povo

    e

    Íala

    diretamente

    com

    o

    Brasil,

    sem

    precisar

    dos

    seus

    clássicos

    elementos intermediários,

    que,

    sistematicamente,

    totalizam

    o

    mundo.social

    brasileiro

    para

    ele, e em

    seu

    nome.

    E

    pelo

    Íutebol,

    então,

    que

    se

    permite

    à

    massa

    uma

    certa intimidade com

    os símbolos

    nacionais.

    E

    é só nos

    dias

    dos

    jogos

    da

    "seleção

    brasileira"

    que

    se

    pode

    observar

    o

    povo

    vestido

    com as

    cores da

    bandeira nacional,

    vivendo

    uma

    experiência

    concreta

    de

    "união

    nâcional,,(0)

    Nestes momentos

    de

    "carnaval

    cívico",

    criados

    pelo

    Íutebol,

    os

    sÍmbolos

    sagrados

    da

    pátria

    (que,

    no Brasil,

    são cercados

    de regras

    em termos

    do

    seu uso),

    deixam de

    ser

    propriedade

    das

    camadas dominantes

    e,

    sobretudo,

    fle

    "gsverne"

    e das

    .autoridades",

    para

    se disseminarem

    pelo

    meio

    da massa

    anônima,

    que

    com

    eles

    celebra

    uma relaçáo

    de Íranca

    e desinibida

    intimidade.

    Essa

    experiência

    de

    união

    e de totalização

    do

    país

    em

    algo concreto

    é uma

    poderosa

    dramalizaçáo

    que

    o futebol

    permite

    realizar

    e

    que

    por

    certo

    transcende os seus usos e

    abusos

    pelo

    governo.

    Pois

    tudo

    pode

    ser utilizado

    por

    um

    governo

    autoritário,

    mas

    as experiências

    da

    solidariedade

    e da

    vitória

    são

    -

    a

    meu

    ver

    -

    os

    (6)

    Veja-se,

    como documentário

    do

    que

    acabo de

    dizer,

    o exaltado

    artigo de

    Otto Lara

    Resende,

    intitulado

    .Brasil

    bola Brasil

    -

    Pelé

    pátria

    Pelé,,

    pubticado,

    quando

    da conquista

    do tricampeonato

    mundial

    de

    35

  • 8/9/2019 Universo Do Futebol - Roberto DaMatta

    29/118

    ingredientes

    básicos

    para

    movimentar

    qualquer

    transÍormaçâo

    real

    da sociedade, sobretudo

    numa

    sociedade

    onde

    9

    Povo

    é

    massa

    e,

    como tal, jamais

    pode se Íazer

    ouvir

    claramente.

    Longe, pois,

    de

    ver

    essa exPeriência

    futebolística

    corno

    o

    protótipo

    do

    material

    que

    governos

    autoritários

    podem

    mobilizar

    em proveito próprio,

    quero

    acentuar

    o

    lado

    positivo

    (ou

    liminar)

    da experiência com

    o

    Íutebol

    no

    seu sentido

    mais

    amplo e

    generoso,

    quando

    ela

    permite à

    massa

    destituída ter o

    sentimento

    de totalidade

    nacional,

    do valor

    do

    povo

    representado pelos seus ídolos

    e,

    mais

    importante

    que

    tudo

    isso,

    da

    vitória

    plena

    e

    rnerecida.

    4.2

    O

    problema

    das

    regras

    unlversale em

    oposiçáo

    ao

    deseio

    de

    grupos

    e

    lndlvlduos

    Grande parte

    das

    discussóes

    do

    Íutebol

    no

    Brasil

    é

    sobre o

    problema

    da aceitação

    (ou

    náo

    aceitação)

    das

    regras

    como

    um sistema

    imutável

    e fora de

    questão. Ou seja, das regras como

    um

    sistema que

    está

    realmente aclma do

    poder

    político,

    religioso,

    econômico,

    dos

    clubes

    e

    das

    equipes e,

    naturalmente,

    da

    vontade dos

    torcedores,

    sobretudo

    dos torcedores

    poderosos.

    Muito

    do

    que

    se

    discute,

    portanto,

    revolve

    em

    torno

    da aceitaçáo

    das

    regras do

    jogo

    como

    normas

    universais

    e das conseqüências

    disso

    quando

    sua aplicação

    é realizada de

    modo

    automático pelo

    "juiz"

    da

    partida.

    Deste modo,

    a

    questão

    do

    "espírito

    esportivo" ou

    "espírito

    olímpico"

    é fundamental

    neste tipo

    de

    dramatizaçáo.

    ConÍorme

    falamos

    no Brasil,

    os

    times

    "devem

    saber

    perder"

    e é certamente

    por

    causa

    disso

    que o

    juiz

    e os bandeirinhas

    são

    Íreqüentemente

    culpados

    pela

    derrota

    de

    um time,

    tendo que pagar as conseqüências

    dos seus

    erros.

    São,

    de

    Íato, legião,

    as

    agressóes a

    juizes

    e

    i..

    Mas,

    "saber

    perder"

    significa

    aceitar

    a

    igualdade

    como

    o axioma ou a condiçáo

    Íundamental

    do

    jogo.

    Princípio

    sem o

    qual

    a

    própria

    idéia

    de

    jogo

    torna-se impossível

    de

    ser

    pensada.

    Como indicou

    Lévi-Strauss,

    numa

    passagern

    muito

    justamente

    famosai no

    jogo

    a

    idéia

    básica

    é

    a

    noçáo

    de

    igualdade

    no início

    da

    atividade,

    quando

    começa

    a disputa.

    Mas, é exatamente

    essa

    igualdade inicial

    qúe

    deverá

    transformar-se

    no

    decorrer

    da

    partida,

    cedendo

    lugar a uma

    dissociação

    no

    Íinal

    (CÍ.

    Lévi-Strauss,

    1962:

    Cap.

    '1

    ).

    Mas é

    preciso

    observar

    que

    o

    jogo

    pode operar

    como

    uma instituição,

    caso

    ambos os

    partidos

    (e

    a sociedade

    em

    geral)

    estejam

    de acordo com a

    diÍerenciação

    Íinal

    em

    vitorioso e derrotado.

    A

    igualdade

    perante

    as

    mesmas regras universais

    é,

    assim,

    o

    ponto

    central

    da atividade

    que

    denominsmes

    "jego".

    No caso do

    ritual,

    as coisas

    parecem

    se

    passar

    de

    modo

    proÍundamente

    diverso.

    Aqui,

    o

    eÍiciente

    sabe

    muito

    mais

    das

    "regras"

    ou da

    "etiqueta"

    do

    sagrado

    do

    que

    seu

    cliente

    para

    quem

    ele

    pode

    estar operando

    o

    rito. Deste

    modo,

    a

    igualdade do

    jogo,

    em

    contraste com

    a

    desigualdade

    do ritual, é uma

    igualdade

    dos

    disputantes

    perante

    regras

    que,

    num

    caso

    operam

    universalmente, tendo de

    ser

    acatadas

    por

    todos, e,