alexandre morais - redução maioridade penal

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ÍNDICE 02 01 INTRODUÇÃO BREVE DESCRITIVO DOS ARTIGOS PREFÁCIO CRIANÇA E ADOLECENTE. PRIORIDADE ABSOLUTA, DE FATO E DE DIREITO. 03 SUAS OBRAS TÊM QUE CONTINUAR. CELINA BEATRIZ MENDES DE ALMEIDA E LUIZ FERNANDO MENDES DE ALMEIDA 04 A LUTA PELOS DIREITOS HUMANOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO BRASIL: A EXPERIÊNCIA DA ANCED. MARGARIDA MARQUES 05 QUASE DE VERDADE: DIREITOS HUMANOS E ECA, 18 ANOS DEPOIS. ALEXANDRE MORAIS DA ROSA E ANA CHRISTINA BRITO LOPES 06 DIREITOS HUMANOS NO SÉCULO XXI: AS ALGEMAS E OS SONHOS. SERGIO VERANI 07 O 60º ANIVERSÁRIO DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS. VANESSA OLIVEIRA BATISTA 08 20 DE NOVEMBRO: ALÉM DE ZUMBI, TEMOS UM OUTRO A COMEMORAR. RICARDO DE PAIVA E SOUZA 09 SITUAÇÃO DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA NO BRASIL DE HOJE: INSEGURANÇA SOCIAL. POBREZA, DESIGUALDADES E TERRITORIALIDADE. WANDERLINO NOGUEIRA NETO 10 NÃO-CRIMINALIZAÇÃO & IMPUNIDADE. SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS HUMANOS. WANDERLINO NOGUEIRA NETO 11 18 ANOS DO ECA; 19 ANOS DA CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA; 20 ANOS DA CONSTITUIÇÃO; 20 ANOS DO CEDECA-DOM LUCIANO MENDES; 60 ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS E 120 ANOS DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA. LIGIA COSTA LEITE 12 OS 120 ANOS DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO. GILDA ALVES BATISTA 13 DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO E NUTRIÇÃO SUSTENTÁVEL. LEONARDO FELIPE DE OLIVEIRA RIBAS 14 A DEMOCRACIA NO ORÇAMENTO PÚBLICO THIAGO MARQUES 15 A PRODUÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS PERIGOSOS: A QUEM INTERESSA? CECÍLIA M. B. COIMBRA MARIA LÍVIA DO NASCIMENTO 16 PROMESSAS QUEBRADAS. IRENE KHAN 17 UM ENCONTRO COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES QUE ESTÃO NAS RUAS – RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA INSTITUCIONAL. MÔNICA DE ALKMIM MOREIRA NUNES 18 A REFORMA DAS PRISÕES, A LEI DO VENTRE LIVRE E A EMERGÊNCIA DA QUESTÃO DO “MENOR ABANDONADO”. ESTHER MARIA DE MAGALHÃES ARANTES 19 BREVES NOTAS SOBRE A INCONSTITUCIONALIDADE DA MEDIDA DE INTERNAÇÃO. RAFAEL CAETANO BORGES

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Page 1: Alexandre Morais - redução maioridade penal

ÍND

ICE

0201

INTRODUÇÃOBREVE DESCRITIVO DOS ARTIGOS

PREFÁCIOCRIANÇA E ADOLECENTE. PRIORIDADE ABSOLUTA,DE FATO E DE DIREITO.

03SUAS OBRAS TÊM QUE CONTINUAR.CELINA BEATRIZ MENDES DE ALMEIDA E LUIZ FERNANDOMENDES DE ALMEIDA

04A LUTA PELOS DIREITOS HUMANOS DE CRIANÇASE ADOLESCENTES NO BRASIL: A EXPERIÊNCIA DA ANCED.MARGARIDA MARQUES

05QUASE DE VERDADE: DIREITOS HUMANOS E ECA, 18 ANOS DEPOIS.ALEXANDRE MORAIS DA ROSAE ANA CHRISTINA BRITO LOPES

06DIREITOS HUMANOS NO SÉCULO XXI:AS ALGEMAS E OS SONHOS.SERGIO VERANI

07O 60º ANIVERSÁRIO DA DECLARAÇÃOUNIVERSAL DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS.VANESSA OLIVEIRA BATISTA

0820 DE NOVEMBRO: ALÉM DE ZUMBI,TEMOS UM OUTRO A COMEMORAR.RICARDO DE PAIVA E SOUZA

09SITUAÇÃO DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA NO BRASIL DE HOJE:INSEGURANÇA SOCIAL. POBREZA, DESIGUALDADES E TERRITORIALIDADE.WANDERLINO NOGUEIRA NETO

10NÃO-CRIMINALIZAÇÃO & IMPUNIDADE.SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS HUMANOS.WANDERLINO NOGUEIRA NETO

1118 ANOS DO ECA; 19 ANOS DA CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA; 20 ANOS DA CONSTITUIÇÃO; 20 ANOS DO CEDECA-DOM LUCIANO MENDES; 60 ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS E 120 ANOS DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA.LIGIA COSTA LEITE

12OS 120 ANOS DA ABOLIÇÃODA ESCRAVIDÃO.GILDA ALVES BATISTA

13DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃOE NUTRIÇÃO SUSTENTÁVEL.LEONARDO FELIPE DE OLIVEIRA RIBAS

14A DEMOCRACIA NOORÇAMENTO PÚBLICOTHIAGO MARQUES

15A PRODUÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS PERIGOSOS: A QUEM INTERESSA?CECÍLIA M. B. COIMBRAMARIA LÍVIA DO NASCIMENTO

16PROMESSASQUEBRADAS.IRENE KHAN

17UM ENCONTRO COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES QUE ESTÃONAS RUAS – RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA INSTITUCIONAL.MÔNICA DE ALKMIM MOREIRA NUNES

18A REFORMA DAS PRISÕES, A LEI DO VENTRE LIVREE A EMERGÊNCIA DA QUESTÃO DO “MENOR ABANDONADO”.ESTHER MARIA DE MAGALHÃES ARANTES

19BREVES NOTAS SOBRE A INCONSTITUCIONALIDADEDA MEDIDA DE INTERNAÇÃO.RAFAEL CAETANO BORGES

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Page 3: Alexandre Morais - redução maioridade penal

PREF

ÁCI

O Criança e adolescente. Prioridade absoluta, de fato e de direito.

Esta publicação resulta do esforço em socializar refl exões sobre os direitos humanos de todas e todos, e de uma

tentativa de sistematização que permita questionar, confrontar a nossa própria prática, superando o ativismo.

É igualmente um “diálogo entre saberes: uma articulação criadora entre o saber cotidiano e os conhecimentos

teóricos, que se alimentam mutuamente”.1

No ano de 2007, companheiras e companheiros atuantes em diversas áreas de conhecimento contribuíram com

preciosas refl exões sobre as consequências perigosas de uma eventual redução da maioridade penal no Brasil.

Essa adesão possibilitou o lançamento da publicação intitulada “A redução da maioridade penal vai resolver

o problema da violência?”

Neste ano de 2009 celebram-se os 16 anos da Conferência de Viena (1993), os 21 anos da Constituição da

República, os 61 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), os 41 anos da ratifi cação brasileira

à Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1968), os 19 anos

do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), 20 anos da Convenção Internacional pelos Direitos das Crianças

(1989), dentre outros aniversários, como os 121 anos da dita abolição da escravidão (1988).

Em 2009 comemoramos também os 15 anos da ANCED – Associação Nacional dos Centros de Defesa da

Criança e do Adolescente, os 25 anos da Associação Benefi cente São Martinho (1984) e os 21 anos do CEDECA

D. Luciano Mendes de Almeida (1988).

Estas são conquistas signifi cativas no contexto da luta pela efetivação dos direitos humanos, pois são marcos que

simbolizam admiráveis avanços na compreensão da necessidade do respeito à dignidade do ser humano.

Do ponto de vista legal, o sistema de garantias avançou muito, porém ainda resta um grande abismo entre

o disposto pela norma e a realidade concreta experimentada por milhares de crianças e adolescentes.

Persiste arraigada no imaginário social uma ideia distorcida sobre os direitos humanos de crianças e adolescentes,

sendo comum a reprodução de jargões do tipo: “lá vem o pessoal do direitos humanos”, “crianças e adolescentes

só têm direitos, não têm deveres”, “criança agora pode fazer tudo, o estatuto permite”, ou “depois do estatuto,

os pais e professores perderam o controle sobre as crianças”, “o estatuto é uma lei de primeiro mundo” e ainda,

“direitos humanos só defende bandido” ou “direitos humanos para humanos direitos”.

Lembramos também do fenômeno da criminalização da pobreza e dos movimentos sociais e das constantes

represálias e ameaças que os defensores de direitos humanos ainda sofrem em seu cotidiano.

Ao senso comum, o termo “direitos humanos” parece representar “um lugar”, “um grupo de pessoas”, “o pessoal

dos direitos humanos”, que só aparece em situações muito restritas e que não é reconhecido como parte integrante

da sociedade e da prática cotidiana de luta pela garantia da dignidade da vida.

Todas e todos são titulares dos direitos humanos e, portanto, responsáveis por sua promoção. Os exemplos

de atuação nesse sentido são inúmeros: o médico no atendimento humanitário ao paciente, os agentes de

segurança pública no cumprimento estrito da lei e na relação com as comunidades, a professora na relação

respeitosa com seus alunos e colegas, as organizações sociais, pastorais, grupos de proteção do meio ambiente

e do desenvolvimento sustentável, o poder público na elaboração dos orçamentos e políticas públicas, pais

na relação afetuosa com seus fi lhos e as próprias crianças e adolescentes ao vivenciarem experiências concretas

de respeito aos direitos humanos.

Com esse espírito, renovamos nosso convite aos parceiros e parceiras, e a aceitação foi imediata. As refl exões

feitas por articulistas de diversas áreas do conhecimento apresentadas nesta publicação perpassam as mais

diversas vertentes dos direitos humanos.

“A cidadania é o direito a ter direitos, pois a igualdade em dignidade e direitos dos seres

humanos não é um dado. É um construído da convivência coletiva, que requer o acesso

ao espaço público. É este acesso ao espaço público que permite a construção de um

mundo comum através do processo de asserção dos direitos humanos.”

(Hannah Arendt)

1 HOLLIDAY, Oscar Jara. Para Sistematizar Experiências. P.44

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BREVE APRESENTAÇÃODOS ARTIGOS.

Iniciamos a publicação com o artigo “Suas Obras têm que continuar” produzido por Celina Mendes de Almeida

com a colaboração de Luiz Fernando Mendes de Almeida, sobrinha-neta e irmão de Dom Luciano Mendes

de Almeida, relatando a obra construída pelo bispo ao longo de uma vida de desprendimento material, dedicada

às crianças mais necessitadas e desassistidas.

O exemplo de vida de D. Luciano Mendes de Almeida continua sendo uma importante inspiração para o nosso

trabalho, principalmente nos momentos de desânimo diante das grandes difi culdades enfrentadas na área social.

Numa contextualização sob os aspectos e dimensões estruturais de resistência à defesa de direitos humanos

predominante na nossa sociedade, representação social da infância e da adolescência, e o papel do Estado Brasileiro,

Margarida Marques contribui com importantes considerações sobre os 15 anos de atuação e consolidação da

Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente – ANCED, como referência de coalizão

pela defesa jurídicosocial de crianças e adolescentes em nível nacional, regional e internacional.

“Quase de Verdade” é um artigo de Alexandre da Rosa e Ana Christina Lopes que aborda os avanços

e desafi os do Estatuto da Criança e do Adolescente, marcado pelo princípio da prioridade absoluta, que

apesar de ser constitucional, ainda é sistematicamente desrespeitado em todas as regiões brasileiras,

especialmente devido a difi culdade que os atores jurídicos ainda têm para compreender o grande giro

na cultura dos direitos humanos representado pelo ECA.

“Pensar os direitos humanos no século XXI signifi ca pensar as formas de luta contra o Capital, contra a produção

dos seus valores ideológicos e da sua organização social, que limitam e restringem a própria vida”, é dentro dessa

lógica que Sérgio Verani, com muita lucidez e sensibilidade compartilha uma lição de justiça vivenciada na sua

infância e nos relata a análise de Machado de Assis sobre a lei de 28 de setembro de 1871, apelidada de Lei do

Ventre Livre. Por fi m, apresenta um exemplo da prática judicial do século XXI. Entre “as algemas e os sonhos”,

Verani nos proporciona refl exões políticas sobre o compromisso do Estado com a concretização das políticas

públicas e sobre as difi culdades na efetivação dos direitos humanos.

Na sequência, Vanessa Oliveira aborda as etapas históricas dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos

Humanos. Parte da etapa de elaboração do documento, passando pela fase da Convenção Internacional e por

fi m, trata da fase ainda não concluída: a criação de instrumentos adequados para assegurar a observância dos

direitos e o respeito a dignidade humana.

Ricardo de Paiva e Souza nos apresenta importantes refl exões sobre a Convenção sobre os Direitos da Criança

(CDC), adotada por unanimidade pelas Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989, documento que enuncia um

amplo conjunto de direitos fundamentais – os direitos civis e políticos, e também os direitos econômicos, sociais

e culturais – de todas as crianças, bem como as respectivas disposições para que sejam aplicados.

A CDC não é apenas uma declaração de princípios gerais; quando ratifi cada, representa um vínculo jurídico para os

Estados que a ela aderem, os quais devem adequar às normas de Direito interno às da Convenção, para a promoção e

proteção efi caz dos direitos e liberdades nela consagrados. Este tratado internacional é um importante instrumento legal

devido ao seu caráter universal e também pelo fato de ter sido ratifi cado pela quase totalidade dos Estados do mundo.

Wanderlino Nogueira Neto nos contempla com dois artigos inéditos. No primeiro, aborda as possibilidades

da sociedade civil organizada em promover análises da situação da infância e adolescência no Brasil, a fi m de

aperfeiçoar a elaboração, coordenação e execução de políticas públicas garantidoras dos direitos humanos e do

acesso à justiça. O texto apresenta dados de fontes ofi ciais e de organizações sociais brasileiras e internacionais. Por

fi m, trata do conceito de “coesão social”, com foco no sentido de pertencimento e de valorização da identidade.

No artigo “Não-criminalização & Impunidade. Sistema de Garantia de Direitos Humanos”, apresentado durante

o III Congresso Mundial contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, o autor apresenta importantes

e atuais refl exões sobre a promoção e proteção dos direitos sexuais e reprodutivos de crianças e/ou adolescentes.

Reconhece os direitos sexuais como direitos fundamentais do ser humano, como preliminar a ser assegurada

e a criminalização (ou não) do explorado sexual, com uma das possíveis respostas do Estado à violação dos

direitos sexuais de crianças e adolescentes.

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Page 5: Alexandre Morais - redução maioridade penal

Com uma refi nada análise, Lígia Leite reconhece que apesar do Brasil ser signatário de diversos marcos legais nacionais e internacionais,

não há muito que se comemorar, uma vez que chegamos em 2009 “sem ver os resultados globais de inclusão de toda a população brasileira

em um projeto de nação e de futuro.” Lígia resgata a trajetória das políticas públicas sociais para a infância no Brasil com seus avanços

e retrocessos. No texto marcado por críticas, destaca que “o Estatuto da Criança e do Adolescente, que nasce com 30 anos de atraso,

já que o golpe de 1964 interrompeu o processo de resgate da dívida sócioeducacional iniciada com a LDB em 1961 e com 50 anos

de atraso das Convenções internacionais das quais o Brasil é signatário”.

Com o texto “os 120 anos da Abolição da Escravidão” Gilda Alves Batista contribui com a refl exão sobre o sentido desse fato, analisando

dois conceitos importantes, que marcam a história dos afrobrasileiros: raça e democracia racial. Fundamentando-se em renomados

autores, compara as relações raciais de outros países com o Brasil.

O artigo de Leonardo Ribas é sobre o “direito humano à alimentação e nutrição sustentável” que, para o autor, é a base dos direitos

humanos e da cidadania. Leonardo aponta que “a solução para o problema da fome e da exclusão social passa por uma nova ordem social,

econômica e política que tenha como objetivo estratégico atingir o desenvolvimento sustentável.” O autor ressalta ainda a necessidade

de mecanismos que garantam o controle da cidadania sobre o Estado e da participação popular, pois sem estas os governos difi cilmente

escaparão da prisão da burocracia e dos laços da corrupção.

Nessa conjuntura, Thiago Marques contribui com considerações sobre “A Democracia no Orçamento Público”, cujo cerne está em buscar

o planejamento que satisfaça as prioridades estabelecidas pelas políticas públicas de acordo com as disponibilidades de recursos.

No artigo “A produção de crianças e jovens perigosos: a quem interessa?”, as psicólogas Cecília Coimbra e Maria Lívia do Nascimento

apresentam algumas produções de subjetividade, ocorridas em especial no Brasil do séc. XX, que tem caracterizado a população infanto-

juvenil subalternizada como perigosa, violenta, criminosa e não humana. São também analisados alguns efeitos de práticas que associam

essas características à pobreza.

“Promessas Quebradas” é uma introdução ao Relatório Anual da Anistia Internacional de 2008. O documento cita casos de violações

decorrentes da ação e omissão das grandes potências ao longo dos últimos 60 anos. Também são abordados os exemplos de liderança

construtiva de algumas nações, os desafi os para alcançar as Metas de Desenvolvimento do Milênio e a movimentação popular no sentido

de exigir a renovação do compromisso dos líderes com a defesa e promoção dos direitos humanos em nível global.

“Um encontro com crianças e adolescentes que estão na rua” é a exposição de Monica de Alkmim sobre sua experiência como pedagoga

diante da dura realidade de meninos e meninas que vivem nas ruas do Rio de Janeiro. Para a autora, a sociedade não deve achar natural a

moradia nas ruas; a existência de crianças vivendo nessa situação não é um momento histórico ou um problema específi co de uma classe

social ou econômica, uma vez que as “conseqüências de uma sociedade que tem como base a desigualdade e a dominação de um ser

humano por outro seu igual vividas diariamente pelo povo brasileiro.”

No texto “A reforma das prisões, a Lei do Ventre Livre e a emergência da questão do ‘menor abandonado”, Esther Arantes partilha

refl exões sobre a história das políticas para a infância no Brasil. O trabalho de intensa pesquisa, desenvolvido por Esther nos últimos

20 anos, ajuda a entender como o processo histórico do dito ‘sistema de proteção da infância’ deixou marcas profundas na infância

empobrecida brasileira, gerando refl exos em futuras gerações.

O texto destaca a necessidade de uma refl exão profunda sobre a “proteção integral” prevista na Convenção dos Direitos da Criança (ONU,

1989), incorporada na Constituição Federal e regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, cujos princípios básicos reconhecem

crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, pessoas em condição peculiar de desenvolvimento e prioridades absolutas.

No instigante artigo “Breves notas sobre a inconstitucionalidade da medida de internação” Rafael Caetano Borges apresenta uma análise

crítica da permanente afronta ao texto constitucional no tocante à realização plena dos direitos da criança e do adolescente, dentre os quais

a inimputabilidade e todos os desdobramentos dela advindos – notadamente a proibição de submetê-los a penas privativas de liberdade.

O texto refl ete a contradição entre as fi nalidades pedagógicas e a privação de liberdade (internação) previstas no E.C.A., juntamente

com elementos colhidos do dia a dia da realidade nacional. O autor exemplifi ca por meio dos relatórios de violações de direitos humanos

produzidos pela Human Rights Watch e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em parceria com o Conselho Federal de Psicologia (CFP),

que demonstram a desumanização dos adolescentes encarcerados, retratando absoluto desprezo do Estado brasileiro pelo Estatuto da

Criança e do Adolescente, e o resultado da total ausência de políticas públicas nesta área.

EQUIPE CEDECA - CENTRO DE DEFESADOM LUCIANO MENDES DE ALMEIDA.

Page 6: Alexandre Morais - redução maioridade penal

8

Desde o falecimento do meu tio Luciano, há dois anos, passei

a ouvir muitas pessoas relatarem em vários testemunhos como ele

era uma pessoa santa.

Nós da família tínhamos o privilégio de conviver mais de perto

com ele, e constatarmos como ele era realmente uma pessoa

maravilhosa. Foram muitas as suas realizações, mas só aos poucos

fui entendendo porque ele era realmente especial. Infelizmente, só

fui conhecer algumas das inúmeras obras que ele cuidava, ou foi

a fonte de inspiração, depois de seu falecimento.

Quando era pequena lembro que fui uma vez a Mariana para visitá-lo

com meus pais, depois só retornei por ocasião do seu velório.

Nesta última visita a emoção foi muito forte, pois a cidade inteira

pranteava aquele que para eles era um santo, e eu me sensibilizei

com todas essas manifestações.

Recentemente, numa visita ao Centro de Defesa

dos Direitos da Criança e do Adolescente

- CEDECA, descobri por acaso que essa

organização possui o nome do meu tio Luciano

Mendes de Almeida. Esse centro é um braço

da obra São Martinho fundada pelos padres

carmelitas e completou vinte anos em novembro

de 2008.

Meu tio Luciano, que era arcebispo de Mariana,

foi secretário geral da CNBB por oito anos

e depois presidente por mais oito anos. No início de seu secretariado

na CNBB, foi responsável pela criação da pastoral do menor, que

era uma das suas principais metas. A criança pobre e desnutrida

era uma de suas grandes preocupações. Foi o responsável pela

criação de inúmeras obras de apoio à criança e ao adolescente,

não só escolares e profi ssionalizantes, mas também abrigos para

acolher meninos e meninas que iam chegando nesses centros

e ali encontravam o que lhes faltava e muitas vezes nunca

tinham recebido.

Lembro do meu tio dizendo que vários nunca tinham visto uma

escova de dente, pois não tinham alguém que lhes dessem

noções de higiene, carinho ou atenção – pequenos detalhes que

só conheceram quando tomaram contato com essa instituição.

Dom Luciano tinha uma expressão no olhar e um sorriso quando

estava no meio desses meninos que transmitia, além da segurança,

o amor que em muitos casos era desconhecido desses menores.

A semente plantada por ele, fruto da Pastoral do Menor, cresceu

e em muitos lugares já é uma árvore frondosa. Em Mariana, sede

de seu arcebispado, uma de suas obras se chama justamente

“A Figueira”. Ele nos explicava que tinha esse nome porque é

uma árvore com muitos galhos, cada um sendo uma ramifi cação

dessa assistência ao menor. A Figueira se dedica prioritariamente

àqueles que têm defi ciências físicas, principalmente locomotoras.

Durante o espaço de tempo que fi cam na Figueira, além de

alimentação recebem acompanhamento de monitores, assistentes

sociais e em alguns casos de médicos que procuram melhorar o

dia a dia deles, chegando a reverter a doença de que são vítimas

por falta de atendimento adequado. O custeio para manutenção

dessa obra, e de outras que ele fundou em Mariana, são obtidas

por doações resultantes de visitas que meu tio fazia àqueles

que ele sabia que podiam ajudar, e com a conscientização dos

paroquianos de Mariana e dos outros municípios abrangidos por

sua arquidiocese.

Hoje tenho notícias de que essas obras continuam, mas sofrem

com a falta de auxílio fi nanceiro essencial

para manter acesa a chama de esperança

dessas ações tão importantes para

a erradicação da miséria e da fome que

impedem o bem comum, tão necessário

à justiça social do nosso Brasil.

Nunca vou me esquecer das suas últimas

palavras, que pronunciou meu avô, antes

de ser sedado no hospital: “Não abandone

meus pobres”. Acho que isso demonstra

claramente como sua vida foi marcada

por uma entrega total e absoluta aos mais necessitados e um

desprendimento material que, espero, sirvam de exemplo e

possam atingir cada vez mais pessoas, inspirando os outros

a olharem mais para as crianças que necessitam principalmente

do amor e carinho de todos nós. O CEDECA e outras obras

são uma prova real da dedicação do meu tio Luciano para com

os pobres e os desassistidos.

Lamento só ter visitado essa obra depois que meu tio faleceu.

Meu convívio com ele não foi tão grande como eu gostaria, pois

os poucos momentos em que nós podíamos estar juntos eram

na ocasião do Natal ou quando ele vinha para celebrar algum ato

religioso. Hoje ele não está mais entre nós e as ocasiões em que

pude usufruir de sua companhia fi carão na minha lembrança e irão

nortear a minha vida familiar e profi ssional.

SUAS OBRAS TÊM QUE CONTINUAR.

* CELINA BEATRIZ MENDES DE ALMEIDASobrinha-neta de D. Luciano Mendes de Almeida

** LUIZ FERNANDO MENDES DE ALMEIDAIrmão de D. Luciano Mendes de Almeida

CELINA BEATRIZ MENDES DE ALMEIDA*LUIZ FERNANDO MENDES DE ALMEIDA**

“Dom Luciano tinhauma expressão no olhare um sorriso quando estava no meio desses meninos que transmitia, além da segurança,o amor que em muitos casos era desconhecido desses adolecentes.”

Page 7: Alexandre Morais - redução maioridade penal

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Introdução

Este artigo traz uma refl exão sobre os 14 anos da Anced - Associação

Nacional dos Centros de Defesa, posto na perspectiva do que

signifi ca ser uma organização de direitos humanos. Em absoluto,

aprofunda questões conceituais ou históricas, vivenciadas ao longo

desses 14 anos, simplesmente porque a articulista se reconhece

entre os mais novos na história desta organização e por saber que

a riqueza da sua experiência, formada por homens e mulheres

espalhados por este país, é mais profunda, mais complexa e mais

diversa do que seria capaz de traduzir aqui.

O que se pretendeu foi oferecer uma refl exão sobre os 14 anos

da Anced, inserida nos debates sobre os 18 anos do Estatuto da

Criança e do Adolescente, dos 20 anos da Constituição Federal

de 1988 e dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos

Humanos, situando-a nesta trajetória.

Considerando que toda essa riqueza foi possível

pela capacidade que a Anced tem encontrado,

ao logo desses anos, de conciliar a tarefa de

ser uma articulação acional e impulsionar

as ações locais desenvolvidas por cada Centro

de Defesa fi liado.

Fundada em 1994, a Anced reunia, em 2008,

trinta e seis Centros de Defesa fi liados. Sua

fundação dá continuidade a uma articulação

anterior, denominada Rede Nacional de Centros de Defesa, a

rede de Centros de Defesa, com o objetivo de fazer avançar na

organicidade e na atuação local e nacional.

Ao completar 14 anos, a Anced vem consolidando suas

refl exões/elaborações, tanto em relação ao seu papel como

ator político com um papel específi co a ser desempenhado,

qual seja o de uma organização de defesa jurídicosocial

de direitos infantojuvenis de expressão nacional, como também

o de ser um espaço de articulação de Centros de Defesa

espalhados por todo o país. Em qualquer desses papéis,

a Anced se reconhece como parte do movimento de infância.

A melhor maneira de falar da Anced é situando essa caminhada

nos processos que foram desenvolvidos nos últimos anos de luta

pela efetivação dos direitos humanos, pois não há como descolar

sua história desse processo.

1. Um rápido olhar acerca do contexto da luta por direitos

humanos no Brasil

No momento em que Anced se constituiu como associação

nacional, nós contávamos com quatro anos de aprovação do

Estatuto da Criança e do Adolescente. Hoje, comemoramos

18 anos do ECA. Falar desta organização implica reconhecê-la

parte desta história.

A mudança do paradigma jurídicopolítico que reconhece crianças

como sujeitos de direitos é fruto de um amplo processo de luta

social dos anos 70/80, no qual as próprias crianças e adolescentes

fi zeram-se movimento. No Brasil, este movimento, que foi

internacional, coincidiu com nossa redemocratização e resultou

na adoção da CDC - Convenção Internacional dos Direitos das

Crianças e dos Adolescentes.

Apesar dos avanços, fruto da luta realizada pelos movimentos

sociais, da mobilização e da pressão política, não podemos

deixar de reconhecer que os últimos anos têm sido um tempo

de resistência e afi rmação das conquistas,

marcado pelo esforço coletivo de fazer valer

na prática aquilo que fomos capazes de impor

como marco legal, e inclusive tornou-se

referência em outros países. É por isso que,

mais do que contar sobre os 14 anos de

existência da Anced, é necessário traçar esta

trajetória respaldada por uma refl exão do

que representa a luta em defesa de direitos

humanos no Brasil, mais precisamente do

que signifi ca a luta em defesa de direitos

humanos de crianças e adolescentes.

Ao fazermos esta contextualização, levamos em conta os seguintes

aspectos/dimensões:

1. As razões estruturais e históricas de resistência à luta em defesa

de direitos humanos;

2. A representação social da infância e da adolescência,

predominante na nossa sociedade;

3. O desafi o de atuação no plano institucional;

4. O papel do Estado brasileiro, não necessariamente nesta

ordem.

Não podemos descolar a análise da nossa construção histórica,

pois somos um país formado a partir de uma história de opressão

e resistência, de conquista e escravização da população nativa

quase dizimada e da população africana trafi cada. Esta realidade

vai marcar as relações de poder em nosso país. E esse poder

baseia-se no lugar que se ocupa na sociedade, marcado pela

relação colonizados x colonizadores, senhores x escravos, patrões

x empregados, ricos x pobres.

Isso marca nossa realidade atual. A pobreza no país, embora tenha

A LUTA PELOS DIREITOS HUMANOS DE CRIANÇAS EADOLESCENTES NO BRASIL: A EXPERIÊNCIA DA ANCED.

MARGARIDA MARQUES*

“Ao completar 14 anos, a Anced vem consolidando suas refl exões/elaborações, tanto em relação ao seu papel como ator político com um papel específi co a ser desempenhado, qual seja o de uma organização de defesa jurídicosocial de direitos infantojuvenis de expressão nacional, como também o de ser um espaço de articulação de Centros de Defesa espalhados por todo o país.”

Page 8: Alexandre Morais - redução maioridade penal

10

se reduzido nos últimos dez anos, continua a afetar com muito mais

intensidade as crianças e os adolescentes. Consideram-se pobres,

para fi ns da presente análise, as pessoas que viviam com rendimento

mensal familiar de até ½ salário mínimo per capita. Em 2007,

a PNAD revelou que 30% dos brasileiros viviam com esse patamar

de rendimentos. No caso das crianças e adolescentes de 0 a

17 anos de idade, a proporção de pobres era bem mais alta,

46%. Chama mais atenção ainda o percentual de 19,6% que

vivia com rendimento mensal familiar de até � de salário mínimo.

Em contrapartida, apenas 1,7% desse segmento da população

vivia com rendimento mensal familiar de mais de cinco salários

mínimos.

A distribuição da riqueza no Brasil caracteriza-se por extremas

desigualdades regionais, que também se refl etem na situação

das crianças e adolescentes. O Nordeste é a região que

reconhecidamente apresenta o maior percentual de pessoas

pobres (51,6% da população total). Quando se destaca apenas

a população jovem da região (de 0 a 17 anos de idade),

o percentual de pobres é maior ainda (68,1%). Destes, 36,9%

viviam com somente até ¼ de salário mínimo de rendimento

mensal familiar. Entre as crianças menores de 6 anos de idade, do

Nordeste, o percentual das que viviam com até � de salário mínimo

de rendimento mensal familiar é ainda mais expressivo: 39,3%.

Os dados da PNAD 2007 mostram que, quanto mais nova

a criança, maior a probabilidade de estar em situação mais

vulnerável qualquer que seja a região do país (Síntese de Indicadores

Sociais 2008, IBGE).

Já no debate sobre direitos, esta relação torna-se mais marcante,

a ponto de pôr em questão que alguns setores da sociedade

sequer tenham algum direito e da ausência/violação de direitos ser

naturalizada. Essa ausência de direitos, alicerçada pela ausência

de Estado, forma um Brasil à parte, um Brasil informal, um Brasil

que não conta e que não pode ser levado em conta.

Como na história não há linearidade, por mais que tenhamos

avançado na luta social, ainda não superamos todos esses

arquétipos e eles são retomados dia a dia, quando enfrentamos

as violações de direitos. Porque no Brasil, em princípio, a lei não

tem a força que tem em outras culturas. Gerando os simbolismos,

como por exemplo: “lei não é para os pobres”, “Cadeia não é para

os ricos”, “No Brasil, a lei existe para não ser cumprida”. Marilena

Chauí nos dá uma indicação da complexidade da nossa formação

histórica quando analisa os obstáculos à democracia brasileira.

Buscando nossa formação histórica a partir desses elementos,

ela aponta:

“Estamos, portanto, diante de duas séries de obstáculos à

democracia social, no Brasil: aquela decorrente da estrutura

autoritária da sociedade brasileira – que bloqueia a participação e

a criação de direitos – e aquela decorrente das novas ideologias

– que reforçam a despolitização provocada, de um lado, pela

fragmentação e dispersão das classes populares (sob os efeitos

da economia neoliberal sobre a divisão e organização sociais

do trabalho) e, de outro, pelo encolhimento do espaço público

e alargamento do espaço privado pela ação das três ideologias

contemporâneas, que reforma a ação privatizadora do Estado

neoliberal.” (Marilena Chauí – Considerações sobre a democracia

e alguns dos obstáculos à sua concretização).

A análise do papel desempenhado pelo Estado brasileiro é outro

aspecto importante a ser analisado. Este, ao longo da história,

esteve a serviço dos projetos das elites, em detrimento da efetivação

de direitos das maiorias sociais que, por sua vez, são as que

pagam o maior preço das consequências dos projetos econômicos

desenvolvidos. Exemplo disso é a atual crise do capitalismo

de dimensões econômica, social e ambiental. A preocupação

central do Estado é a de socorrer as instituições fi nanceiras.

Neste contexto de violência estrutural e negação de dignidade,

a representação da infância brasileira transita desde a completa

invisibilidade dos primeiros séculos da colonização, passando

pelas ideologias higienistas, menoristas, à resistência criativa dos

movimentos sociais de meninos e meninas na década de 80, que

inaugura um novo paradigma quanto aos direitos de crianças

e adolescentes e seu reconhecimento como atores sociais, sujeitos

de direitos. Neste novo paradigma, a sociedade adultocêntrica

é questionada e avançamos em garantias legais de direitos para

esse segmento social

Entretanto, estes avanços não signifi caram a superação das

representações socialmente construídas sobre a infância

e adolescência, em particular da infância e adolescência pobre,

e esta representação tem consequência sobre a política pública

e sobre a defesa de direitos humanos deste segmento. Ainda

convive, na sociedade, o olhar do passado, profundamente

impregnado, nas falas, nos gestos, no descaso da sociedade

e do Estado com a efetivação de seus direitos e com a condição

de silêncio e invisibilidade que a nossa história e cultura impôs

a crianças e adolescentes.

Nesse espaço, não poderemos fazer uma refl exão mais demorada

sobre o tema, mas é importante que tenhamos em conta que

a história da criança e do adolescente brasileiro foi construída

em uma sociedade adultocêntrica, patriarcal, escravista, onde

estão presentes as questões étnico-raciais, de gênero e classe

social e onde se construíram representações que posteriormente

geraram inter-relação entre conceitos, tais como: adolescência

e delinquência, pobreza e criminalidade, criança e tutela, políticas

públicas e repressão.

É certo que essas representações incluem hoje os interesses de

uma sociedade baseada na mercadoria e, portanto, no consumo,

e nesta condição crianças e adolescentes são alvo prioritário.

Lidamos, portanto, com uma contradição entre as representações

socialmente construídas da infância e adolescência e o novo

paradigma. Ângela Pinheiro nos aponta que “a representação social

inovadora da criança e do adolescente como sujeito de direito,

afi rmadas no texto da CF/88 parece estar em rota de coalizão com

marcas históricas arraigadas da cultura política brasileira, e que

a repressão, fundada no autoritarismo e na dominação, tem lugar

especial no trato público e no pensamento social concernentes

à criança e ao adolescente” (Criança e do Adolescente: Porque

o abismo entre a lei e a realidade).

Ao invés de superarmos a violência contra criança e adolescente,

vemos crescer as violações, seja porque a perspectiva de poder

Page 9: Alexandre Morais - redução maioridade penal

11

adulto crianças se mantêm, alimentando o silêncio e a invisibilidade,

seja por conta das desigualdades sociais que afetam, sobretudo,

as crianças e adolescentes, tornando-os mais vulneráveis

e constituindo novos campos de violação de direitos, tais como

a comunicação de massa, a indústria cultural, a publicidade,

a criminalização...

Um elemento fi nal, neste breve cenário, diz respeito aos novos

espaços de atuação dos movimentos sociais. Além de novos

debates, a década de 1980 nos trouxe aprendizados que foram

sistematizados em propostas de construção de novos espaços de

intervenção, introduzindo o debate sobre controle social, cogestão,

participação paritária entre sociedade e poder público, espaços

defi nidores de políticas. Foram criados os conselhos de direitos,

fundos da infância e adolescência, realizadas conferências, entre

outras novas possibilidades de atuação.

Hoje, faz-se necessária uma avaliação do que tem representado

para o movimento esse nível de atuação mais institucionalizado,

repensando em que medida ele tem representado participação

real e em que medida tem funcionado como regulador ou

legitimador do Estado. São questões não tão novas, mas que

precisamos enfrentar e que também incluem o movimento

de direitos humanos.

2. A situação da infância e adolescência e o papel das

organizações de direitos humanos

A prioridade absoluta, defi nida tanto na CF/88 (art. 227) quanto no

Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 04), não tem garantido

a implementação de políticas públicas que revertam o quadro de

desigualdade e violações de direitos, colocando-se, junto com

o enfrentamento dos problemas estruturais, uma prioridade de

intervenção.

A Anced, no ano de 2007, por ocasião do Dia de Discussão Geral

da Comissão dos Direitos da Criança da ONU, quando foi discutido

o investimento na infância e adolescência, apresentou uma análise

das conseqüências desse modelo de desenvolvimento e da

falta de investimento desse modelo econômico para a infância

brasileira: somando-se os investimentos em 2006 nas áreas de

saúde, assistência social, trabalho, educação, cultura, direitos da

cidadania, habitação, saneamento, organização agrária e gestão

ambiental, calcula-se o montante de aproximadamente R$ 108

bilhões, ou seja, somando o gasto com todas essas áreas sociais,

ela representa somente 40% do gasto total com a dívida pública.

(segundo documento apresentado pela Anced para debate geral

com a ONU, em 2007).

Já em documento recente de análise da PLOA (Projeto de Lei

Orçamentária) para 2009, do Governo Federal, o Inesc confi rma

esta perspectiva quando aponta que tem havido uma redução dos

investimentos na área social: “O PLOA 2009 propõe a redução

do crédito orçamentário dos programas de combate ao trabalho

infantil (Peti) e exploração sexual de crianças e adolescentes”.

O programa de erradicação do trabalho infantil tem 348,7 milhões

como previsão para 2009, o que representa uma redução de

8,62% se comparado ao crédito orçamentário que o Peti recebeu

do congresso em 2008.

Esses elementos, que demonstram o quanto o discurso não

tem se confi rmado pela prática, revelam o longo caminho a ser

percorrido pelo movimento de infância. Em outras palavras:

como país, não temos desenvolvido políticas de enfrentamento

a questões estruturais.

A infância e adolescência brasileira, sobretudo a que está

entre a população mais pobre, tem sofrido mais fortemente as

conseqüências deste modelo. O trabalho infantil não foi erradicado,

pelo contrário, aumenta e conta com a naturalização e aceitação

junto à sociedade.

O número de adolescentes que atualmente encontram-se em

regime de internação é de 15 mil em todo o país, revelando que

o encarceramento tem sido a medida mais utilizada para lidar com

o adolescente em confl ito com a lei, indicando a incapacidade

da sociedade, da família e do poder público em lidar com esta

problemática. Deste modo, transformam os adolescentes nos

culpados pela violência e utilizam-se deste argumento para

o recrudescimento do discurso e de propostas favoráveis

à redução da idade penal e à ampliação de medidas repressoras

e institucionalizadoras de modo geral.

A violência contra criança e adolescente somente toma visibilidade

quando adquire interesse e dimensão midiática. Na prática, segue

sendo silenciosa, cotidiana e, na maioria das vezes, solitária.

Dá-se no plano doméstico e institucional.

3. Uma experiência: a Anced

É dentro deste cenário que a Anced se constitui e vem se fi rmando

como uma associação nacional, reunindo diferentes experiências.

Nesta condição híbrida, sendo uma associação e, ao mesmo

tempo, uma coalizão, a Anced lida com o desafi o de ser um

espaço de articulação, mas também de debates e de elaboração

teórica. De desenvolvimento de experiências locais, algumas

bastante inéditas, e expressão nacional e internacional, de um

conceito de atuação como uma organização de direitos humanos

de crianças e adolescentes. É associação de Centros de Defesa,

mas é também movimento social.

O plano trienal 2004-2006 trazia na sua apresentação a seguinte

síntese sobre a criação da Anced: “Com essa institucionalização

passou-se a contar com uma nova instância de abrangência

nacional de intervenção que, sem substituir a atuação de

cada um dos Centros em seus respectivos locais, os fortalece

e potencializa. A existência da Anced viabiliza também, do ponto

de vista estratégico, as representações desses Centros junto aos

demais atores nacionais de proteção e defesa de direitos.” (plano

trienal 2004-2006).

É no convívio e a partir dessa complexidade interna que a Anced

vem, ao longo destes 14 anos, agregando sua contribuição ao

movimento de infância. Entre essas contribuições, podemos citar

as discussões que viriam a se constituir posteriormente na idéia

do Sistema de Garantia de Direitos. Sobre esta construção teórica,

nos fala Margarita Bosh: “Com a fundação da Anced, em 1994,

se cristaliza, dissemina e divulga a refl exão iniciada à época da

Rede Nacional dos Centros de Defesa sobre a necessidade e o

Page 10: Alexandre Morais - redução maioridade penal

12

formato de um ‘Sistema de Garantia de Direitos’ que contemple

três eixos fundamentais: Promoção, Defesa e Controle Social, e o

mesmo passa a ser objeto de estudo, capacitação e estratégia dos

Centros de Defesa e de outros atores sociais e governamentais.”

Naquele momento, estavam em discussão as instâncias que

deveriam ser responsáveis pela garantia dos direitos. Fazia-

se necessário desenvolver ações governamentais e não-

governamentais para a efetiva implementação desses direitos, seja

mediante o reordenamento de algumas instâncias governamentais

e não-governamentais, seja pela criação de outras.

A fundação da Anced veio, pois, fortalecer esse debate e contribuir

para o avanço na elaboração de uma proposta de Sistema de

Garantia de Direitos que contemplasse os três eixos fundamentais:

promoção, defesa e controle social dos direitos de crianças

e adolescentes.

Qual o papel de uma organização de defesa dos direitos infanto-

juvenis? Qual a abrangência da defesa de direitos humanos e como

vincular nossa prática de defesa à construção de uma ruptura

societária? À medida que a Anced levanta estes questionamentos

para si, tem também procurado avançar na elaboração de refl exões

que possam ser incorporadas à sua prática e ao movimento de

infância.

Essas questões dilemáticas têm acompanhando a Anced/Centros

de Defesa e têm servido como ponto de partida para as defi nições

orientadoras de sua ação/intervenção. É claro que 18 anos depois

da aprovação do ECA e 14 anos depois da criação da Anced, ainda

seguimos buscando respostas a estes e outros questionamentos.

Entre eles, está a necessidade de uma avaliação de nossa

intervenção no plano institucional, como já indicado anteriormente

neste artigo.

As estratégias de ação e debate

Entre as estratégias desenvolvidas pela Anced, na sua atuação e no

sentido de aprofundar os debates em torno de questões-chaves,

podemos destacar a criação de grupos de trabalho temáticos,

os GTs, nomeadamente o GT de enfrentamento à violência

sexual, o GT de combate à impunidade, o GT Ato Infracional,

o GT Orçamento Criança e o GT de monitoramento da Convenção

dos Direitos da Criança. Também tem procurado criar espaços

alternativos de troca de experiências entre os Centros. Outra

contribuição da Anced foi a construção do relatório alternativo da

sociedade civil sobre a implementação da Convenção Internacional

dos Direitos da Criança, em 2004. Em 2008, o relatório estava

outra vez em construção, em diálogo com importantes segmentos

da sociedade civil organizada, com destaque para participação de

crianças e adolescentes que, neste relatório, serão agregados de

forma efetiva e não colocados apenas como grupos focais.

Alicerçado nas experiências desenvolvidas pelos Centros de

Defesa, o debate sobre justiça juvenil aponta confl itos e buscas

comuns. O posicionamento apresentado pela Anced no encontro

do DNI (Defensa de Los Niños Internacional), em novembro

de 2007, procura ser uma referência para este debate quando

afi rma que “deve-se lutar pela minimização do direito penal e pela

ampliação da aplicação dos direitos humanos como fundamento

em normalização internacional e constitucional”.

E ainda: “A opção prática dos direitos humanos. Fazer cumprir

estes instrumentos é o ponto de certeza que se tem na Anced.”

É nesse espírito que se deu a participação da Anced na audiência

regional da Comissão de Direitos Humanos da Organização dos

Estados Americanos, que discutiu a situação de adolescente

em privação de liberdade no Brasil, Uruguai, Paraguai, Argentina

e Chile. A Anced tem priorizado a participação em articulações

nacionais e internacionais, onde possa ser uma voz de denúncia

e debate da situação da infância. Sendo assim, a Anced fi liou-

se ao DCI/DNI em 2006, tornando-se sessão Brasil desta

organização internacional. Ao mesmo tempo, tem participado

em outros espaços de debate e articulação como, por exemplo,

a Redlamyc (Red latinoamericana e Caribenha dos direitos

de crianças e adolescente).

Alguns temas têm tido prioridade de intervenção da Anced,

refl etindo por sua vez a atuação dos Centros de Defesa, como

por exemplo, violência sexual contra crianças e adolescentes,

erradicação do trabalho infantil, monitoramento do orçamento

público, violência contra criança e adolescente.

A relação entre o local e o nacional fortalece a ação da Anced,

ao mesmo tempo em que possibilita a troca, o intercâmbio e o

aprendizado, não somente entre os Centros de Defesa, mas entre

diferentes atores nacionais e internacionais.

É, portanto, embasada na refl exão deste contexto de luta dos

direitos humanos no Brasil e na situação da infância, que a Anced

se posiciona na sociedade, referendando este posicionamento na

carta pública aprovada na sua última assembléia nacional: “Assim,

reafi rmamos nosso compromisso com o projeto éticopolítico

de uma sociedade justa, democrática e sustentável, pelo que

continuaremos a fazer do engajamento militante, da postura crítica

e independente frente a todos os governos e da proteção jurídico-

social de direitos humanos nossas ferramentas de projeção de um

mundo de homens e mulheres iguais em todas as suas gerações.”

(Assembléia Nacional da Anced – junho de 2008)

Page 11: Alexandre Morais - redução maioridade penal

13

Fontes consultadas:

Chauí, Marilena – Considerações sobre a democracia e alguns

obstáculos à sua concretização

Pinheiro, Ângela – Crianças e adolescente no Brasil – Porque o

abismo entre lei e realidade. Editora UFC

Orçamento, direitos e desigualdades – Um olhar sobre a proposta

orçamentária 2009 –

Inesc- Outubro 2008

Documentos da Anced:

- Refl exões sobre as práticas da defesa jurídico-social por entidades

da sociedade civil – centros de defesa – Texto produzido por

Margarita Bosh

- Justiça juvenil: A visão da Anced sobre seus conceitos e práticas

em uma perspectiva dos direitos humanos. São Paulo. 2007

- Plano Trienal 2008-2010

- Plano trienal 2004-2006

- Orçamento e participação: uma contribuição brasileira –

Documento apresentado pela Anced ao Dia de discussão geral

da ONU-2007

* MARGARIDA MARQUESGraduada em Comunicação Social, especialista em Arte e Educação, faz parteda Coordenação Colegiada da Anced e da Coordenação do Cedeca - Ceará.

Page 12: Alexandre Morais - redução maioridade penal

14

Dois mil e oito foi fadado a grandes comemorações voltadas para os

direitos humanitários: primeiro os 60 anos da Declaração Universal

dos Direitos Humanos da ONU, depois os 20 anos da Constituição

da Republica que, de tão comprometida com os direitos

fundamentais, fi cou conhecida como Constituição Cidadã. Mas

o grande destaque comemorativo para os “heróis da resistência”2

, sem sombra de dúvidas, é o mais que emblemático “aniversário

dos 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente”.

É possível dizer que, nos três documentos comemorados, é tudo

“quase de verdade”... Mas aqui cabe-nos apenas refl etir sobre os

dezoito anos do Estatuto e daí a propriedade do uso do título de

história infantojuvenil de Clarice sobre o cachorro Ulisses, que late

uma “história que até parece de mentira e até parece de verdade”.

Foi a inspiração para falar do que no mundo real acontece com

o aniversário do Estatuto que, ao ser lido e colocado em confronto

com a realidade, também parece ora de mentira

ora de verdade, talvez situado no meio termo de

realidades singulares neste imenso país, muito

decorrente de decisões individuais de aplicação

efetiva do ECA.

Após grande luta pela redemocratização do País,

eleita a Assembléia Nacional Constituinte, foi

conquistado o artigo 227 da CR, fruto de grande

mobilização social de segmentos diversos

da sociedade envolvida e preocupada em

transformar as vidas de crianças e adolescentes.

Talvez, nenhum dos princípios seja mais “quase de verdade”.

O objetivo do Poder Legislativo era de que fosse possível reverter

a dívida histórica com um atendimento marcado pela caridade e

assistencialismo em detrimento da promoção de direitos humanos

para a infância e juventude, que fazia com que o público infanto-

juvenil fosse alvo da atenção apenas no viés abandono-delinquência,

objeto de ações repressivas e controladoras em sua maioria.

A urgente transformação de crianças e adolescentes em sujeitos

(e não mais objetos) de direito, tinha que ter uma força tal que

impedisse o esquecimento pelo mundo adulto das necessidades

básicas e fundamentais de pessoas em desenvolvimento, e foi

escolhida a expressão que pudesse destacar a importância

das providências z serem urgentemente praticadas: “prioridade

absoluta” para as ações pertinentes à garantia e defesa dos

direitos fundamentais elencados constitucionalmente: dois anos

após, ratifi ca-se o artigo constitucional na Lei 8069/90 – Estatuto

da Criança e do Adolescente.

Alessandro Baratta (1998)3 anteviu a luta que seria travada: a reforma

legal teria força sufi ciente para mudar a cultura? Seria possível

trocar a lógica perversa da prática das políticas de repressão e

emergenciais pelas políticas públicas básicas? O que temos hoje?

Hoje, com toda segurança, podemos afi rmar que ele teve

discernimento e clarividência sufi cientes para prever o grande

desafi o de concretizar a transmutação de crianças e adolescentes

de objetos em sujeitos. Transformar as políticas públicas

de emergenciais e repressivas em básicas, com ênfase no

desenvolvimento de programas voltados para as necessidades

comuns ao público-alvo, porque sabia que as prénoções que

antecipam o sentido eram (e continuam, ainda) permeadas por um

totalitarismo antidemocrático decorrente da “ignorância funcional”

dos atores jurídicos, especialmente magistrados e promotores de

justiça, os quais não conseguem compreender o giro copernicano

avivado pelo ECA e a cultura dos Direitos Humanos.

E, de novo, a pergunta: o que temos hoje?

Em todos os segmentos da sociedade,

indícios de vivermos uma “ilegalidade ofi cial”,

diante da inobservância das leis: a prioridade

absoluta, apesar de princípio constitucional,

toma o perfi l de “fi cção jurídica”, bem como

muitos dos direitos humanos de crianças

e adolescentes inscritos no ordenamento

jurídico especial, transformando esta

área do direito em um verdadeiro

“conto de fadas” que, parafraseando o

famoso conto infantil, poderia se chamar

“O ECA no País das Maravilhas”. Esta poderia ser uma das

traduções do que se passa, embora o “Quase verdade” de Clarice

forneça um signifi cante mais adequado ao que pretendemos ou,

ainda, muitos outros títulos de histórias infanto-juvenis, no Direito

do Sítio do Pica-Pau Amarelo...

Quando refl etimos sobre os avanços e desafi os do Estatuto,

marcado pelo princípio constitucional da prioridade absoluta, não

devemos deixar de lado a dimensão do problema ao se fazer um

balanço e perceber que avanços existiram, mas que ainda estão

aquém, graças à violação ao princípio, que é nacional, e não regional,

estadual ou municipal, mas direcionador da Democracia!

Mais uma vez, pensemos: o que temos hoje, em maior ou menor

escala, em grande parte dos Municípios e Estados brasileiros?

- A não observância do artigo 4º do ECA, alíneas “d” e “e” não sendo priorizadas pelas políticas públicas na área e recursos nos orçamentos;

- Uma proliferação de ONGs para tentar diminuir o abismo entre o que a política de atendimento prevê como direito a

ser efetivado e o que temos como políticas públicas;

QUASE DE VERDADE: DIREITOS HUMANOSE ECA, 18 ANOS DEPOIS.1

1 O Título “Quase de Verdade” foi inspirado no livro de literatura infanto-juvenil de Clarice Lispector, autora muito admirada pelos autores deste texto que, assim, ao mesmo tempo que usam tomam emprestado o título para desenvolver o tema por possibilitar provocar uma refl exão crítica por parte dos leitores, ainda possibilita uma justa homenagem à autora que tanto admiram e de quem são leitores vorazes.

2 Expressão escolhida para tentar defi nir aqueles que se dedicam a lutar pelos direitos humanos, apesar das críticas sempre sofridas que os rotulam, muitas vezes, como meros “defensores de bandidos”.3 Criminólogo italiano, já falecido, considerado o grande ícone da Criminologia Crítica.

ALEXANDRE MORAIS DA ROSA*ANA CHRISTINA BRITO LOPES**

“Quando refl etimos sobre os avanços e desafi os do Estatuto, marcado pelo princípio constitucional da prioridade absoluta, não devemos deixar de lado a dimensão do problema ao se fazer um balanço e perceber que avanços existiram, mas que ainda estão aquém, graças à violação ao princípio, que é nacional, e não regional, estadual ou municipal, mas direcionador da Democracia!”

Page 13: Alexandre Morais - redução maioridade penal

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4 Baratta, Alessandro. In Difíceis Ganhos Fáceis: Drogas e Juventude Pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia: Freitas Bastos, 1998, pg.20

- Adolescentes envolvidos com a prática de atos infracionais

ainda em delegacias para adultos, ou em unidades

de internação inadequadas e contrárias aos preceitos

indicados pelos estudiosos com maior probabilidade

de mudar a orientação deles para uma vida consoante

às condutas socialmente aceitáveis;

- Difi culdade em ter acesso à Justiça graças à inexistência de

Defensoria Pública em alguns Estados e, assim, à Defesa

Técnica obrigatória a que têm direito quando envolvidos,

por exemplo, com a prática de um ato infracional;

- Conselhos Tutelares que, muitas vezes, independente

da região em que se encontram, estão longe do que foi

idealizado pelo ECA. Conselheiros despreparados para

cumprir com a difícil missão de zelar pelos direitos de

crianças e adolescentes simplesmente porque, em alguns

casos, nem sequer leram o Estatuto antes de se elegerem

e não podem garantir o que desconhecem;

- Processo de eleição de Conselheiros Tutelares (quando

existem) completamente “viciado” pelas mesmas mazelas

das eleições para cargos políticos de vereadores, prefeitos,

deputados... (ex.: compra de votos);

- Conselhos de Direitos que ainda não têm clareza sobre

quais são suas reais atribuições: controlar ações em todos

os níveis e deliberar políticas públicas para a infância

e juventude e, ainda, incorrendo no perigo de inverter

a lógica do que é prioridade absoluta por ações, tais como:

. Plenárias e Comissões que se transformam em

“reunião de adultos” defendendo seus interesses

institucionais ou dos órgãos que representam (se

governamentais), fi cando em último plano a vez

e voz dos sujeitos que deram causa a todos estarem

ali reunidos quinzenal ou mensalmente;

. Conferências (Municipais, Estaduais e Nacional) que

roubam os olhares e a atenção de todos durante

o ano de suas realizações, com disputas acirradas

e muita discussão sobre os que poderão participar

das mesmas. Os temas escolhidos para serem

debatidos, exaustivamente, muitas vezes não

revertem nas políticas públicas que deveriam ser

deliberadas, com base nas sínteses registradas nos

Anais das Conferências pelos Conselhos;

. Uma sociedade que, muitas vezes, “desorganizada”

e desarticulada por interesses “confusos”, diversos

dos que deveriam nortear as ações dos Conselheiros,

desperdiça a conquista da mesma sociedade civil,

quando mobilizada e organizada, em participar da

deliberação de políticas públicas pelos Conselhos de

Direitos e adiando a vitória destes espaços contra-

hegemônicos vitais para a transformação e efetivação

dos direitos humanos de crianças e adolescentes.

- Um universo de explorações, muitas vezes iniciada pelas

mãos dos familiares (prática histórica e mundial), com

viés mercantilista, seja da mão-de-obra, seja do corpo

da criança e do adolescente. Crianças e adolescentes

transformados em mercadoria de troca ou objeto de lucro

(prostituição infantil, meninos vendidos como jogadores

de futebol para o exterior, trabalho no lixo, nos canaviais,

no tráfi co etc.);

- Universidades cujos cursos de graduação em Direito não

contemplam em suas grades curriculares a obrigatoriedade

do ensino do direito da criança e do adolescente, muitas

vezes, nem como opção livre e acarretando, como

conseqüências:

a) Futuros operadores de direito que se transformarão

em profi ssionais de carreira pública, como

promotores, defensores públicos e juízes, que irão

operar o sistema de garantia de direitos sem sequer

conhecerem o texto básico legal (Estatuto), que não

é o sufi ciente para trabalhar com as questões do

universo infanto-juvenil, que exige conhecimentos

interdisciplinares (psicologia, pedagogia, medicina,

serviço social...);

b) Baixa capacidade de compreensão do ECA

por magistrados e promotores, reiterando-se

o espetáculo das derrapagens totalitárias, de gente

que confunde proteção integral com sua opinião

pessoal e tranforma o ECA num instrumento de

opressão, especialmente porque assiste a “banda

passar falando coisas de amor” e se acovarda diante

de um Poder Público que se omite reiteradamente;

c) Despreparo técnico de advogados para trabalhar

na defesa da parcela mais vulnerável da sociedade,

afastando a concretização da ampla defesa

e difi cultando o sucesso na garantia do direito

a ser defendido. Temos centenas de advogados nas

áreas cível, família, tributária, penal, trabalhista, mas

um número ínfi mo de profi ssionais que conhecem

e podem advogar no âmbito infanto-juvenil, com

todas as especifi cidades nos seus procedimentos

e que, quando resolvem atuar, acabam colocando

em risco a defesa adequada daqueles por quem

estão atuando.

Este novo direito apresenta uma grande demanda de profi ssionais

que possam operacionalizar e tirar do papel as conquistas da

reforma legislativa. A Constituição da República de 1988, 20 anos

atrás, ordenou que todos fossem responsáveis pelos direitos

fundamentais de crianças e adolescentes: a família, a sociedade

e o Estado. Não se pode tolerar, assim, gente que rasteja no

campo da infância e juventude, negando-se a cumprir o caráter

emancipatório do ECA.

É hora de nova mobilização social, a exemplo do ocorrido na

década de 80. Que 2008 seja um marco: a retomada, não mais

para conquistar uma lei preponderantemente comprometida

com os direitos humanos, mas pela efetivação desta, como já

disse Norberto Bobbio. Alessandro Baratta, do alto do seu olhar

visionário, indicou a difícil luta para a concretização do projeto

de uma sociedade mais igualitária e mais justa necessária para

a aplicação do novo direito da infância e da adolescência: “(...)

o caminho hoje no Brasil e em todo o mundo do capitalismo real

é o das lutas pacífi cas e tenazes, para se assegurar e impor que

a Constituição e a lei sejam aplicadas em todas as áreas. Revolução

social signifi ca sinergia de todas as lutas pela defesa e plena

realização dos direitos sancionados pelas leis, pelas constituições,

pelas convenções internacionais, (...) Hoje, utopia concreta

é a legalidade constitucional (...)”4

Page 14: Alexandre Morais - redução maioridade penal

16

Dez anos já haviam sido transcorridos da promulgação da

Constituição da República à época em que ele escreveu estas

palavras. Agora, vinte anos depois, é possível dizer, com toda

segurança: ter a melhor lei nacional para crianças e adolescentes,

ter uma Carta Magna que ordena a prioridade absoluta para

a garantia e efetivação destes direitos, não é (foi) uma condição

sufi ciente em todos estes anos para transformar a realidade,

embora necessária.

No mundo do “faz-de-conta”, até utopia é diferente: o desejo

é de alcançar a legalidade material que só foi alcançada até certo

ponto. Há que se admitir que, felizmente, nem tudo se perdeu.

Muitas conquistas existiram com base na lei predominantemente

comprometida com a garantia dos direitos humanos de crianças

e adolescentes, graças a um pequeno, porém perseverante,

número de guerreiros pró-direitos de crianças e adolescentes.

O que nos move a continuar na luta e, por exemplo, escrever este

artigo, é o desejo de termos uma sociedade na qual tenhamos

leis que, quando lidas para os que ainda as desconhecem,

não provoquem comentários jocosos e piadas quanto à sua

veracidade.

Queremos uma sociedade na qual o “faz-de-conta”, o “lúdico”,

exista só nas brincadeiras e na literatura infantil, como a de

Clarice, mas que, em especial, no que diz respeito ao consagrado

e festejado “princípio da prioridade absoluta” – no que concerne

à preferência na formulação e na execução das políticas sociais

públicas e destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas

relacionadas com a proteção à infância e à juventude – seja tudo

de “verdade verdadeira”. Se para a consagrada autora, a verdade

só é como tal no mundo de quem gosta de inventar, sejamos

mais criativos que os que vêm sendo vitoriosos na arte de criar

estratégias para continuar perpetuando o status quo de objetos,

característico de crianças e adolescentes no Código de Menores,

que insiste em se manter em vigor em vários aspectos, mesmo

18 anos depois de ter sido revogado, principalmente na cabeça de

gente com uma cultura jurídica mofada! Sem contar os “menoristas

enrustidos”...

“Inventemos” mais e mais maneiras de criar mecanismos para

superar a criatividade inspirada em uma lógica perversa dos que

inventam para perpetuar a cultura de desprezo e exploração dos

mais frágeis e vulneráveis. Talvez, com Clarice, possamos entender

o caráter e a função de uma “quase verdade” na construção da

cidadania infanto-juvenil, porque desde 1988 nem todos viveram

felizes para sempre...

*ALEXANDRE MORAIS DA ROSAJuiz de Direito da Infância e Juventude de Joinville (SC), Doutor em Direito (UFPR)e Professor do Programa de Mestrado/Doutorado da UNIVALI-SC.

**ANA CHRISTINA BRITO LOPESSecretária da Comissão da Criança e do Adolescente da OAB/PR, Mestre em Ciências Penais,Professora da PUCPR e Coordenadora do Curso de EspecializaçãoPanorama Interdisciplinar do Direito da Criança e do Adolescente da PUCPR.

Page 15: Alexandre Morais - redução maioridade penal

17

No ano de 2008 registraram-se algumas datas signifi cativas

para a garantia dos Direitos Humanos: 120 anos da Abolição da

Escravatura, 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente,

20 anos da Constituição Federal, 60 anos da Declaração Universal

dos Direitos Humanos.

Entretanto, o início deste jovem século XXI caracteriza-se,

globalizadamente, por uma aprofundada concentração privada

das riquezas, por uma intensifi cação da segregação social, pela

fragmentação dos interesses públicos/coletivos e dos movimentos

comunitários, por uma exacerbação da desigualdade social e do

sofrimento humano.

O Capital, hegemônico e soberano, conseguiu,

nesta sua fase histórica, desenvolver, como

nunca antes, o seu incontrolável impulso para

a morte e para a destruição do humano.

Pensar os Direitos Humanos no século XXI

signifi ca pensar as formas de luta contra

o Capital, contra a produção dos seus valores

ideológicos e da sua organização social, que

limitam e restringem a própria vida.

A História ajuda a pensar.

Criança, fi z o curso primário no Grupo Escolar Ribeiro de Almeida,

em Nova Friburgo. As crianças da cidade, todas as crianças – as

pobres, as menos pobres, as fi lhas dos operários das fábricas, as

fi lhas da classe média e da burguesia –, todas as crianças estudavam

no Grupo Escolar, escola pública de alta qualidade (minha mãe era

professora do Grupo e meu pai era Promotor de Justiça da cidade).

Criava-se um vínculo social entre as diferentes crianças – estudavam

juntas, brincavam juntas, jogavam futebol na rua. Estabelecia-se

uma forte ligação comunitária e afetiva.

Pensar os Direitos Humanos é também pensar a memória, não

deixar que o esquecimento prevaleça. Por isso, lembro-me de

duas professoras do Grupo Escolar.

Dona Maria José Braga era um grande exemplo de competência,

de seriedade, de dignidade, de respeito por todas as pessoas.

Comentava-se, porém, quase cochichando, que ela e o marido...

eram comunistas...

Naquela época, início dos anos 50, o comunismo era considerado

o “mal do século”, comunista comia criancinha, era um ser bárbaro

e desumano.

Mas o exemplo humano da professora Maria José me intrigava,

ela era a contestação viva daquela fraudulenta propaganda

anticomunista. E comecei a pensar e a descobrir como as belas

mentiras eram inventadas pela ideologia do Capital. Se Dona Maria

José era uma pessoa assim, integralmente humana, o comunismo,

então, não podia ser identifi cado como alguma coisa desumana,

cruel e desprezível, muito pelo contrário.

A outra professora lembrada é Dona Arésia Winiwarter, Diretora do

Grupo Escolar.

Era um dia de jogos esportivos, eu participava do campeonato de

corrida, e cheguei em primeiro lugar junto

com outro menino, negro e pobre, da minha

sala. O prêmio seria um estojo, daqueles de

madeira, puxava-se a tampa e havia vários

espaços separados, para lápis, borracha,

apontador etc.

A Diretora anunciou que faria um sorteio,

colocou dois papeizinhos numa sacolinha

e sorteou o nome do menino negro e pobre.

Fiquei um pouco desolado, desconfi ei do

sorteio, e Dona Arésia veio me consolar:

não fi ca triste não, você já tem um estojo bonito, eu sorteei o seu

amigo porque ele não tem nenhum e nem pode comprar...

A minha primeira sensação foi sentir-me injustiçado com o sorteio

dirigido. Hoje, acho que Dona Arésia, Diretora da escola pública,

deu uma grande lição de Justiça. A Diretora era o Estado intervindo

para favorecer o mais desfavorecido, era o reconhecimento de

que o menino negro e pobre poderia ter o direito e a alegria de

ganhar um estojo, premiado pelo seu mérito.

Não éramos, eu e meu amigo, iguais perante a lei naquele momento;

ele tinha mais direito ao estojo do que eu. O desempate seria pelo

acaso do sorteio. E a Diretora, intervindo no acaso, tornou-o justo

e humanizado.

A lição de Dona Arésia produz também uma séria refl exão política,

sobre o compromisso do Estado com a concretização das políticas

públicas. Cada vez mais, obediente ao projeto político neoliberal,

o Estado afasta-se e ausenta-se da sua responsabilidade

pelas políticas públicas, delegando e repassando esse dever

constitucional aos setores privados.

DIREITOS HUMANOS NO SÉCULO XXI:AS ALGEMAS E OS SONHOS.

SERGIO VERANI*

“Lutar pelos Direitos Humanos é,

também, exigir que o Estado não se

privatize, transformando o próprio serviço

público em mais uma mercadoria;

lutar pelos Direitos Humanos é, também,

exigir que o Estado exerça o seu

compromisso constitucional para

a garantia da cidadania, da dignidade

da pessoa humana, da erradicação

da pobreza, da marginalização

e das desigualdades sociais.”

“Segue-se a segunda etapa, a invenção de nova vida – o apenas

a construção da nova realidade social na qual nossos sonhos utópicos

serão realizados, mas a (re)construção desses próprios sonhos.”

(Slavoj Zizek)

Page 16: Alexandre Morais - redução maioridade penal

18

A coisa pública vai deixando de ser pública, torna-se uma coisa

privada.

Lutar pelos Direitos Humanos é, também, exigir que o Estado não

se privatize, transformando o próprio serviço público em mais uma

mercadoria; lutar pelos Direitos Humanos é, também, exigir que

o Estado exerça o seu compromisso constitucional para a garantia

da cidadania, da dignidade da pessoa humana, da erradicação da

pobreza, da marginalização e das desigualdades sociais.

O Estado não pode tornar-se um mero espectador do acaso, mas

deve intervir no acaso, como fez Dona Arésia, para a construção

dos Direitos Humanos.

Uma lembrança histórica, a respeito da Abolição da Escravatura,

ajuda a compreender a necessidade dessa intervenção no acaso

e nas relações privadas.

O historiador Sidney Chalhoub, no seu livro “Machado de Assis,

Historiador” (Companhia das Letras S.P., 2007) – 2008 também

foi a data dos 100 anos da morte de Machado –, faz uma longa

pesquisa sobre “Escravidão e Cidadania: a experiência histórica

de 1871”. Trata-se de uma análise sobre a lei de 28 de setembro

de 1871, apelidada Lei do Ventre Livre.

Chalhoub mostra que, durante a discussão do projeto de lei:

“O debate, portanto, consistia em saber se o poder

público deveria ou não intervir no domínio privado dos

senhores sobre seus escravos.”

Uma corrente sustentava que “o Estado tinha de submeter

o poder privado dos senhores ao domínio da lei; não havia

alternativa para obter a emancipação dos escravos.” De outro

lado, o pensamento mais conservador “recusava-se a debater

a questão da emancipação; ao invés disso, parecia empenhado

em aperfeiçoar a escravidão, em torná-la mais ‘humana’, como

se dizia”. Era “a fi na fl or da resistência escravocrata”: “o partido

conservador sempre esteve convencido da necessidade de deixar

que o problema da emancipação se resolvesse por si, por uma

transformação lenta e pela revolução social dos costumes”.

A escravidão, segundo os conservadores, seria naturalmente

extinta, com a evolução do desenvolvimento social, desnecessária

a intervenção do Estado na relação privada/doméstica entre os

senhores e seus escravos...

Sidney Chalhoub observa que Machado de Assis, no conto

“Mariana”:

“Parece sugerir que não havia saída para o problema

da escravidão por dentro das relações instituídas entre

senhores e escravos. A mensagem inescapável do

conto é a necessidade de o poder público submeter

o poder privado dos senhores ao domínio da lei. Era

preciso intervir nas relações entre senhores e escravos

e promover a superação da instituição da escravidão,

enfrentando decididamente os interesses sociais e

econômicos que ainda a sustentavam.”

Ao mesmo tempo, Chalhoub analisa os pareceres do funcionário

público Machado de Assis, à época chefe da seção do Ministério

da Agricultura encarregada de acompanhar a aplicação da Lei do

Ventre Livre.

O regulamento da lei determinava que “os escravos que não forem

dados à matrícula por culpa ou omissão dos senhores serão

considerados libertos, salvo aos mesmos senhores o meio de

provar, em ação ordinária, o domínio que têm sobre eles, e não ter

havido culpa ou omissão sua na falta da matrícula.”

Surgiram divergências quanto ao cabimento, ou não, da

apelação “ex offi cio”, nas hipóteses de decisões contrárias à

liberdade. E o funcionário público Machado de Assis orientava

o seu parecer sempre no sentido de garantir a liberdade:

“Outrossim, convém não esquecer o espírito da

lei. Cautelosa, equitativa, correta, em relação à

propriedade dos senhores, ela é, não obstante, uma

lei de liberdade, cujo interesse ampara em todas as

partes e disposições. É ocioso apontar o que está no

ânimo de quantos a tem folheado; desde o direito e

facilidades da alforria até a disposição máxima, sua

alma e fundamento, a Lei de 28 de Setembro quis,

primeiro de tudo, proclamar, promover e resguardar

o interesse da liberdade. Sendo este o espírito da

lei, é para mim manifesto que num caso como o do

art. 19 do regulamento, em que, como fi cou dito, o

objeto superior e essencial é a liberdade do escravo,

não podia o legislador consentir que esta perecesse

sem aplicar em seu favor a preciosa garantia indicada

no art. 7º da lei”. (refere-se ao recurso ex offi cio).

Este parecer é de 21 de julho de 1876.

Conclui Sidney Chalhoub:

“Machado de Assis foi de longe o autor do parecer mais

politizado e incisivo da série. Seu discurso lembra os de

advogados abolicionistas que encontrei tantas vezes

nas ações de liberdade estudadas para a elaboração

de Visões da liberdade.”

Lembre-se que Machado de Assis não tinha formação jurídica,

era um escritor, mas sabia compreender “o espírito da lei”, sabia

que “a Lei de 28 de Setembro quis, primeiro de tudo, proclamar,

promover e resguardar o interesse da liberdade”.

Um retorno, agora, à prática judicial do século XXI.

Alguns juízes das Varas da Infância e Juventude fazem uma

interpretação violadora dos princípios e normas do Estatuto da

Criança e do Adolescente.

Aplica-se a medida de internação ao ato infracional análogo ao

crime do art. 33, da lei 11.343/06 – tráfi co de entorpecentes –,

com a injurídica justifi cativa de que há “violência e grave ameaça

à sociedade inerentes ao tráfi co”. E, para “proteger o adolescente

infrator, estimulando-o a abandonar a prática de atos infracionais”,

é preciso afastá-lo “do convívio que lhe é prejudicial”, impondo-se

Page 17: Alexandre Morais - redução maioridade penal

19

“a conscientização através da imposição de limites mais rígidos”.

Estas são expressões de uma sentença da Vara da Infância e

Juventude de São Gonçalo, aplicando ao adolescente Diego, de

15 anos, a internação, “sendo inefi ciente a aplicação de qualquer

outra medida sócio-educativa”,

Na audiência de julgamento, realizada em 03.09.08, a Defensora

Pública requer que “sejam retiradas as algemas do adolescente,

diante do entendimento do S.T.F., em 07.08.08, de que o uso de

algemas só deve ser adotado em casos excepcionalíssimos”.

A Juíza decide:

“Derradeiramente quanto a alegação defensiva em

relação a manutenção de algemas nos representados,

vale esclarecer que cabe ao Magistrado com equilíbrio

e bom senso, caso a caso, verifi car se reputa

necessário ou não a manutenção das mesmas para

regularidade do julgamento, não havendo que se falar

em violação do princípio da presunção de inocência

ou que tal circunstância possa infl uenciar na sentença,

tratando-se inclusive, de norma de segurança diante

da possibilidade do risco de fuga, já que os agentes

do DEGASE não possuem armas e neste ato, há

presença de familiares e ausência de qualquer policial

militar. Diante do exposto, mantenho o uso de algemas

durante as audiências neste juízo.”

No Habeas Corpus 6990/08, julgado em 13.11.08, a 5ª Câmara

Criminal do TJRJ concedeu a ordem para que o Paciente

permaneça em liberdade assistida até o julgamento do recurso

de apelação.

Mas o adolescente Diego já cumprira internação desde o dia 20

de julho, ainda algemado na audiência.

E já existia a Súmula Vinculante nº 11, do Supremo Tribunal

Federal:

“Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência

e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade

física própria ou alheia, por parte do preso ou de

terceiros, justifi cada a excepcionalidade por escrito,

sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal

do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão

ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da

responsabilidade civil do Estado.”

Os juízes podiam, de vez em quando, ler Machado de Assis, e tentar

aprender a garantir a liberdade, e não a repressão desmedida.

As conquistas históricas este ano registradas não se esgotam em

si mesmas.

O fi lósofo Slavoj Zizek, na apresentação de “MAO – sobre a

prática e a contradição” (Zahar, 2008, tradução de José Maurício

Gradel), insiste na necessidade da invenção de uma nova vida

como sonho revolucionário: “não apenas a construção da nova

realidade social na qual nossos sonhos utópicos de emancipação

serão realizados, mas a reconstrução desses próprios sonhos”;

e reinventar seus próprios modos de sonhar, mudar os próprios

sonhos, para que os sonhos não permaneçam estagnados, para

não regressar à velha realidade.

Para não nos tornarmos testemunhas do próprio fracasso em

livrar-se do passado.

São tantos os passados que não passaram, são tantos os

passados que permanecem no presente, a impedir a efetivação

dos Direitos Humanos.

Muitas ainda são as algemas, nas suas várias formas.

Muitos ainda precisam ser os sonhos.

*SÉRGIO VERANIDesembargador Presidente da 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça

do Rio de Janeiro, Professor da UERJ e Presidente do Fórum Permanentedos Direitos Humanos da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.

Page 18: Alexandre Morais - redução maioridade penal

20

Em função da comemoração dos 60 anos da Declaração

Universal dos Direitos Humanos em 10 de dezembro de 2008,

minha intenção é “rascunhar” sobre o histórico deste importante

instrumento jurídico, que teve início na sessão de 16 de fevereiro

de 1946 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, em

que fi cou decidido que uma Comissão de Direitos Humanos, a ser

criada, deveria desenvolver seus trabalhos em três etapas.

Na primeira etapa, a Comissão deveria elaborar uma declaração

de direitos humanos, atendendo ao disposto no artigo 55 da Carta

das Nações Unidas. Na segunda, deveria produzir um documento

que vinculasse mais que uma “mera declaração”, ou seja, deveria

fazer uma convenção ou tratado internacional. Por fi m, a Comissão

se encarregaria de criar instrumentos adequados para assegurar

o respeito aos direitos humanos, tratando dos “casos de violação”.

Em 18 de junho de 1947 fi cou pronto o projeto de

uma Declaração Universal de Direitos Humanos,

aprovada em 10 de dezembro de 1948. Esse texto

era fruto dos trabalhos da Comissão Consultiva dos

Direitos Humanos, criada em Paris em 1947 pelo

governo francês, sob proposta de René Cassin.

Presidida por este último, essa comissão, da qual

viria a nascer a Comissão Nacional Consultiva dos

Direitos Humanos, era essencialmente composta

de juristas e diplomatas, estando encarregada de

preparar as instruções destinadas à delegação

francesa nas Nações Unidas, a qual era dirigida

pelo mesmo René Cassin.

Natural, portanto, que a Declaração retomasse os ideais da

Revolução Francesa, sendo considerada o símbolo da formação,

no nível universal, dos valores supremos da igualdade, da

liberdade, da fraternidade entre os homens, exatamente como

redigido em seu artigo I. Transformar esses ideais em direitos seria

missão progressiva no âmbito nacional, resultado de um esforço

sistemático de educação em direitos humanos.

Membro do Conselho de Estado da França, Cassin era considerado

um “utopista pragmático” e, ao assumir a missão de participar da

redação da Declaração, acrescentava a essa tarefa não apenas suas

qualidades como jurista1, mas também sua prática como defensor de

direitos humanos, já que, desde a ascensão do nazismo e fascismo

na Europa, escrevera diversos ensaios acerca da necessidade de

construção da paz e de proteção aos direitos humanos.

Ao chegar a Nova Iorque, em 1946, representando a França na

Comissão de Direitos Humanos, presidida por Eleanor Roosevelt,

esta o saudou como militante apaixonado e “criador do direito”,

pedindo-lhe que assumisse a vice-presidência da Comissão

e redigisse, com assessoria da Secretaria das Nações Unidas,

um anteprojeto de Declaração. Foi então elaborado um texto com

45 artigos, apresentado à Comissão em junho de 1947, que serviu

de base para a discussão, até que se adotou a versão defi nitiva.

Surpreendentemente, ao se comparar o texto fi nal com o esboço

original, o primeiro é, em muito aspectos, mais audacioso que

o último, especialmente quando trata da universalidade dos direitos

humanos. Sente-se especialmente a infl uência da França e de

René Cassin, autor da referência a “direitos diretamente universais”,

que só podem ser garantidos por uma instância supranacional.

Seu maior legado, porém, foi fazer com que se admitisse que os

direitos econômicos, sociais e culturais deveriam ser considerados

direitos fundamentais, ligados de forma indissolúvel aos direitos

civis e políticos.

Assim como Cassin, Eleanor Rossevelt

infl uenciou imensamente a redação da

Declaração Universal. Extremamente culta,

a primeira dama dos Estados Unidos

conseguiu introduzir princípios em favor da

igualdade de gênero durante os trabalhos,

além de dar ao texto poder concreto

e clareza, devido ao seu espírito de síntese

e senso das realidades.

A ideia de que a Declaração se intitulasse

“Universal” foi de Cassin, que insistiu

por substituir a palavra original “Internacional”. Sua intenção

era associar a Declaração ao conceito fundador da Carta das

Nações Unidas, que se iniciava com a frase: “Nós, Povos das

Nações Unidas...”, redação posteriormente rechaçada pelos

países no início da Guerra Fria, que temiam perder sua soberania

com tal afi rmação2.

O ponto mais discutido da Declaração era a sensibilidade dos

países membros da ONU diante da não ingerência em assuntos

internos, base do sistema das Nações Unidas. O problema

é que não se podia, ao mesmo tempo, falar em universalidade

de direitos humanos e deixar sua proteção sob a tutela de

países soberanos que, a exemplo a Alemanha nazista, poderiam

a qualquer momento, fazer o que bem entendessem.

Criada em meio ao assombro do fi nal da 2ª Grande Guerra, a

Declaração Universal dos Direitos Humanos, embora aprovada

por unanimidade (mas com a abstenção dos países comunistas

– União Soviética, Ucrânia e Rússia Branca, Tchecoslováquia,

Polônia e Iugoslávia – e da Arábia Saudita e África do Sul) não

convencia a todos os membros da ONU.

O 60º ANIVERSÁRIO DA DECLARAÇÃO UNIVERSALDE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS.

VANESSA OLIVEIRA BATISTA*

“O ponto mais discutido da Declaração

era a sensibilidade dos países membros

da ONU diante da não ingerência em

assuntos internos, base do sistema das

Nações Unidas. O problema é que não

se podia, ao mesmo tempo, falar em

universalidade de direitos humanos e

deixar sua proteção sob a tutela de países

soberanos que, a exemplo a Alemanha

nazista, poderiam a qualquer momento,

fazer o que bem entendessem.”

1 Ele fora o mentor da lei sobre os direitos à reparação para as vítimas da Primeira Guerra Mundial e, em 1940, o redator dos Acordos Churchill-de Gaulle, que deviam dar uma base jurídica e internacional à França livre.2 Para detalhes históricos conferir AGI, Marc, René Cassin, père de la Déclaration universelle des droits de l’Homme, Perrin, Paris, 1998.

Page 19: Alexandre Morais - redução maioridade penal

21

A Declaração Universal é, tecnicamente, uma recomendação

da Assembléia Geral das Nações Unidas aos seus membros,

conforme o artigo 10 da Carta da ONU. De fato, o jurista Hans

Kelsen, mais conhecido dos estudantes de Direito por sua obra na

área de fi losofi a jurídica, se manifestou sobre o projeto de 1947. Ele

trata da natureza jurídica da Declaração, dizendo que o pretendido

não é codifi car o Direito Internacional, e sim formular normas

jurídicas dotadas de força vinculante no âmbito internacional. Ele

considerava que, ao adotar uma Declaração Universal de Direitos

Humanos, a Assembléia Geral poderia tão somente recomendar

aos Estados membros da ONU a observância dos princípios nela

contidos, reconhecendo tanto a legalidade da norma internacional,

como a força condutora dos direitos consagrados no texto.

Kelsen esclarece que os princípios de direito internacional podem

– e devem – ser formulados apenas em termos de deveres. Ele

discordava da Comissão, afi rmando que os deveres precedem

os direitos, sendo a concepção formulada pelos redatores da

Declaração falaciosa, posto que fundada no Direito Natural3.

Diante desta posição, parte da doutrina sustenta que o documento

não tem força vinculante. Tal entendimento, no entanto, peca

pelo formalismo, pois atualmente se reconhece, por toda parte,

que a vigência dos direitos humanos é independente de sua

declaração em constituições, leis e tratados internacionais, pelo

fato de que são exigíveis diante do respeito à dignidade humana,

exigível com o consentimento ou não dos poderes estabelecidos.

Embora a doutrina jurídica contemporânea distinga os direitos

fundamentais como aqueles consagrados pelos Estados em

regras constitucionais escritas, reconhece-se, igualmente, que

o direito internacional é, além dos tratados e convenções, formado

também pelos costumes internacionais e princípios gerais do

direito, como declarado no Estatuto da Corte Internacional de

Justiça (art. 38). Em suma, a Declaração de 1948 defi ne direitos

que correspondem, na sua integralidade, aos costumes e princípios

jurídicos internacionais, que são exigências básicas do respeito

à dignidade humana.

Apenas em 1966, porém, foram aprovados os pactos sobre direitos

civis e políticos, e sobre direitos econômicos, sociais e culturais,

previstos na segunda etapa. Neste interstício foram aprovadas

várias outras convenções sobre direitos humanos. Infelizmente,

a terceira etapa, em que deveriam ser criados os mecanismos

para assegurar a observância dos direitos, ainda não foi concluída.

O que há neste âmbito é a possibilidade de instauração de um

processo de reclamações junto ao Conselho de Direitos Humanos

das Nações Unidas, criado em 2006, em substituição à Comissão

de Direitos Humanos, além do Tribunal Penal Internacional, criado

para julgar casos de genocído e crimes contra a Humanidade em

1998, que entrou em vigor em julho de 2002.

No discurso de encaminhamento à votação da Declaração

Universal dos Direitos Humanos, na Assembléia Plenário da ONU,

em Paris, em 10 de dezembro de 1948, Austregésilo de Athayde,

representante da Delegação do Brasil, afi rmou que não estávamos

diante de um documento sem defeitos, mas que “a perfeição não

está sempre ao alcance dos homens e é de nossa natureza que

tudo o que é humano seja igualmente perfectível”4.

A Declaração Universal é o ápice de um processo ético, iniciado com

a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução

Francesa. É um documento que levou ao reconhecimento da

igualdade como essência do ser humano, fundamental para

o respeito à dignidade humana, fonte de todos os valores, sem

distinção de raça, sexo, língua, religião, opinião, origem nacional

ou social, ou qualquer outra diferença (artigo II). A parcela de

humanidade contida na Declaração se constitui na verdadeira

universalidade do texto das Nações Unidas5.

3 KELSEN, Hans. The draft declaration on rights and duties of States, The Americana Journal of International Law, v.44; n. 259 (1950).4 Austregésilo de Athayde, discurso na ONU em 1948, na ocasião da aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em : www.DHnet/athayde.htm/discurso

5 Para mais detalhes sobre o impacto da DUDH, conferir COMPARATO, Fábio K., A Declaração Universal dos Direitos Humanos 1948, disponível em www.dhnet.org

*VANESSA OLIVEIRA BATISTAMestre e Doutora em Direito, Professora Adjunta da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ.

Page 20: Alexandre Morais - redução maioridade penal

22

Sessenta e cinco anos. Esse foi o tempo para que quase todas

as nações do mundo entendessem que os Estados deveriam ser

os principais garantidores dos direitos das crianças.

Em 1989, consolidava-se uma discussão que teve seu início nas

primeiras duas décadas do século 20, quando a Organização

Internacional do Trabalho adota convenções que buscavam

erradicar ou regulamentar o trabalho infantil. Pouco tempo depois,

em 1924, é a vez da Liga das Nações – que mais tarde daria

lugar à Organização das Nações Unidas – adotar a Declaração de

Genebra dos Direitos da Criança. Declaração esta que originaria

a Declaração Universal dos Direitos da Criança, promulgada

pela ONU em 1954, a qual, por sua vez, foi o embrião da atual

Convenção Sobre os Direitos da Criança - CDC, adotada e aberta

para assinatura e ratifi cação dos Estados Partes no dia 20 de

novembro daquele ano de 1989.

Os 65 anos aqui citados representam

exatamente o tempo entre a adoção da

Declaração de Genebra e a da Convenção

das Nações Unidas. Um tempo de maturação

de idéias. O tempo necessário para que

se entendesse a criança não como um

objeto de direito que deveria receber uma

proteção especial, mas, sim, como um

sujeito de direitos, de fato – permitam-me o

trocadilho. Um tempo para consolidar lutas

e abrir novas frentes de batalha.

Longe de dar a certeza da garantia de todos os direitos da

criança, a CDC abriu espaços para que pessoas, organizações,

e até mesmo governos, pudessem ter um mecanismo de mediação

e/ou negociação o qual permitisse assegurar uma condição

mínima de vida para as crianças enquanto cidadãs, em seus

países e também fora deles.

Sobre esse aspecto, permito-me citar dois procuradores do

Estado de São Paulo que assim se pronunciam sobre a CDC:

“Em meio a confl itos regionais e mundiais, frutos de

disputas políticas, religiosas e econômicas, na maioria

das vezes travadas por interesses de grupos restritos,

emerge a esperança e a luta de inúmeros cidadãos,

em todo o mundo, pela busca de uma vida mais

harmônica aos povos da Terra.

Esta luta política e ideológica pela humanidade

enseja a criação de instrumentos jurídicos nacionais

e internacionais de proteção dos Direitos Humanos

e, dentre estes, aqueles dirigidos à proteção da

infância e da juventude (...).

A Convenção sobre os Direitos da Criança representa

um passo adiante na história da humanidade,

assim como a inscrição dos direitos fundamentais

na Constituição brasileira e o Estatuto da Criança

e do Adolescente representam um grande avanço

do sistema jurídico nacional.” (ALBERNAZ JUNIOR

e FERREIRA, s/d)

Mas não foi fácil chegar a acordos. A idéia de uma convenção que

enaltecesse a necessidade de garantia dos direitos das crianças

surgiu em 1978, tendo sido apresentada pela Polônia. 1979

seria o ano internacional da Criança e pretendia-se que naquele

ano a CDC estivesse terminada e promulgada. No entanto,

foram 10 anos para que fi nalmente o documento fosse adotado

e ofi cialmente aberto para as ratifi cações. Vale lembrar que até

os dias de hoje nem todos os países, Estados

Partes das Nações Unidas, ratifi caram a

Convenção. Estados Unidos da América e

Somália ainda não reconhecem a CDC.

Um dos problemas apontados para a demora

era a alegação de que o documento

apresentado pela Polônia tratava-se de uma

mera reformulação dos direitos já defendidos

na Declaração de 1959. Era preciso, então,

ir mais além. Ampliar a gama de direitos

e defi ni-los de maneira que não

restassem dúvidas. Outrossim, era preciso criar um órgão

que pudesse zelar pelo cumprimento dos compromissos

acordados entre os Estados Partes, elaborando recomendações

baseadas em relatórios ofi ciais de cada governo e também

da sociedade civil.

Assim, hoje temos uma Convenção composta por um Preâmbulo

e 54 artigos. Nela se estabelece o Comitê dos Direitos da Criança,

“a fi m de examinar os progressos realizados no cumprimento das

obrigações contraídas pelos Estados Partes” (CDC, art. 43).

“O Comitê dos Direitos da Criança, como a maior

parte dos Comitês semelhantes, estará constituído

por especialistas escolhidos pela capacidade pessoal

pelos Estados Partes na Convenção. Diferentemente

de outros comitês, o dos Direitos da Criança não possui

competência alguma para conhecer de denúncias

de casos específi cos de violações dos direitos

reconhecidos pela Convenção. A função essencial do

Comitê consiste na análise dos relatórios dos Estados

Partes sobre ‘as medidas que tenham adotado com

vistas a tornar efetivos os direitos reconhecidos na

20 DE NOVEMBRO: ALÉM DE ZUMBI,TEMOS UM OUTRO A COMEMORAR.

RICARDO DE PAIVA E SOUZA*

“Com a criação do Estatuto, entretanto,

a CDC perde espaço político e jurídico

no Brasil. Poucas são as organizações

brasileiras que se dizem trabalhar pelos

direitos das crianças que conhecem

a Convenção de fato, que estão

familiarizadas com seus princípios

e sabem como seus mecanismos

de monitoramento funcionam. E se

perguntamos o porquê, a resposta

é sempre: “temos o estatuto”.”

Page 21: Alexandre Morais - redução maioridade penal

23

convenção e sobre os progressos alcançados no

desempenho desses direitos’ (art. 44), assim como

as circunstâncias e as difi culdades, caso existam,

que afetem o grau de cumprimento» das obrigações

consagradas na Convenção.” (O’DONNELL, s/d)

Para garantir a efi cácia do Comitê, os Estados Partes se

comprometem a apresentar um relatório sobre o cumprimento de

suas obrigações para com as crianças a cada cinco anos, sendo

que o primeiro relatório deveria ter sido entregue dois anos após

a promulgação ou ratifi cação da CDC.

Infelizmente, o compromisso dos Estados Partes nem sempre

se traduz em respostas concretas. Brasil, por exemplo, só

apresentou até hoje um relatório ofi cial e um paralelo. O segundo

está em vias de apresentação e ainda devemos outros três.

Os princípios

A CDC abrange uma ampla gama de direitos. O Comitê dos Direitos

da Criança, entretanto, identifi cou quatro desses direitos como

sendo princípios gerais que devem ser levados em conta para

a aplicação de qualquer artigo da CDC, e em quaisquer situações

que envolvam crianças. Preferi aqui reproduzir o conteúdo de um

manual da Aliança Internacional Save the Children, cuja fundadora,

Eglantyne Jebb, foi a autora da Declaração de Genebra, de 1924.

Esses princípios gerais são:

Não discriminação (artigo 2)

1. Os Estados Partes comprometem-se a respeitar e a garantir os

direitos previstos na presente Convenção a todas as crianças que

se encontrem sujeitas à sua jurisdição, sem discriminação alguma,

independentemente de qualquer consideração de raça, cor, sexo,

língua, religião, opinião política ou outra da criança, de seus pais ou

representantes legais, ou da sua origem nacional, étnica ou social,

fortuna, incapacidade, nascimento ou de qualquer outra situação.

O princípio por trás disso é o de que todos os direitos valem

para todas as crianças, sem exceção. O próprio Estado tem

a obrigação de pôr em prática os meios para garantir que as

crianças sejam protegidas de qualquer forma de discriminação

e devem empreender ações afi rmativas para promover tais direitos.

O interesse superior da criança (artigo 3)

1. Todas as decisões relativas a crianças, adotadas por instituições

públicas ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades

administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em

conta o interesse superior da criança.

O princípio do agir para o “interesse superior da criança” diz respeito

a qualquer processo decisório que envolva meninos ou meninas,

incluindo a movimentação e a alocação de recursos. O “interesse

superior da criança” normalmente não é a única preocupação

quando são tomadas decisões que afetam as crianças, mas

eles devem estar entre os primeiros aspectos a serem levados

em consideração, e devem ter um peso grande – primacialmente

- em relação aos interesses dos adultos. É fundamental que

aqueles que estejam encarregados de tomar decisões levem

em consideração os anseios e a visão de mundo da criança no

momento de determinar quais seriam os interesses das mesmas.

Direitos à vida, à sobrevivência e ao desenvolvimento (artigo 6)

1. Os Estados Partes reconhecem à criança o direito inerente

à vida.

2. Os Estados Partes asseguram na máxima medida possível

a sobrevivência e o desenvolvimento da criança.

Esse artigo estabelece o princípio de que as crianças têm direito

à vida, e afi rma que toda criança tem direitos aos bens e condições

que permitirão que ela desenvolva ao máximo seu potencial

e desempenhe seu papel numa sociedade pacífi ca e tolerante.

O direito de ser ouvida (artigo 12)1

1. Os Estados Partes garantem à criança com capacidade de

discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre

as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em

consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade

e maturidade.

Meninas e meninos têm o direito de serem ouvidos com relação

a todas as decisões que lhes digam respeito, e o artigo 12 atribui

essa obrigação aos governos para garantir que as opiniões de

meninas e meninos sejam solicitadas e consideradas. Esse artigo

faz parte de uma gama mais ampla de “direitos à participação” da

criança, que normalmente são defi nidos nos artigos 12, juntamente

com os artigos: 13 (liberdade de expressão); 14 (liberdade de

pensamento, consciência e religião); 15 (liberdade de associação);

16 (proteção da vida privada); 17 (informação apropriada).

Na CDC, as crianças são reconhecidas como atores sociais, tanto

em relação ao seu próprio desenvolvimento, como em relação

ao desenvolvimento da sociedade em que vivem.

Protocolos Falcultativos

São dois os Protocolos Facultativos que complementam a CDC

e ambos foram adotados em 2000. Eles tratam de:

1. Envolvimento de crianças em confl itos armados

Este Protocolo em seus primeiros artigos diz:

Artigo 1°

Os Estados Partes devem adotar todas as medidas possíveis para

assegurar que os membros das suas forças armadas que não atingiram

a idade de 18 anos não participam diretamente nas hostilidades.

Artigo 2°

Os Estados Partes devem assegurar que as pessoas que não

atingiram a idade de 18 anos não são alvo de um recrutamento

obrigatório nas suas forças armadas.

A intenção é manter as crianças – na defi nição da CDC, todos

com menos de 18 anos – fora da condição de agente armado em

qualquer confl ito armado.

2. Venda de criança, prostituição e pornografi a infantis

Assim começam os preâmbulos deste protocolo: Considerando

1 Também apresentado como Princípio da Participação

Page 22: Alexandre Morais - redução maioridade penal

24

que, para melhor realizar os objetivos da Convenção sobre

os Direitos da Criança e a aplicação das suas disposições,

especialmente dos artigos 1º, 11º, 21 º, 32 º, 33 º, 34 º, 35 º e 36 º,

seria adequado alargar as medidas que os Estados Partes devem

adotar a fi m de garantir a proteção da criança contra a venda de

crianças, prostituição e pornografi a infantis.

E assim está redatado seu primeiro artigo: Os Estados Partes

deverão proibir a venda de crianças, a prostituição infantil

e a pornografi a infantil, conforme disposto no presente Protocolo.

A implementação da CDC

Os Estados que ratifi caram a CDC devem obrigação legal

à mesma, e assumiram o compromisso de tomar todas as

medidas legais, orçamentárias, administrativas, entre outras, a fi m

de implementá-la, o que inclui disponibilizar o máximo de recursos.

Alguns Estados, porém, fi zeram reservas e/ou declarações

relacionadas ao modo como a CDC deve ser interpretada ou

à não-aplicação de alguns artigos. Essas reservas e declarações

não devem entrar em confl ito com o espírito da CDC. O Comitê

insiste que os Estados as retirem2.

É preciso entender que os Estados são os principais responsáveis

pela garantia dos direitos na CDC. O Estado tem a responsabilidade

de criar legislação, conjunto de políticas e de fornecer recursos,

de forma a garantir que os direitos da criança sejam exercidos.

A CDC considera pais, famílias e comunidades como os principais

responsáveis pelo cuidado das crianças, protetores e guias –

eles têm responsabilidades para com as crianças e, por vezes,

a legislação nacional transforma essas responsabilidades em

obrigações legais e morais. A comunidade internacional tem

obrigações relacionadas ao apoio a Estados através da cooperação

e da ajuda internacional como e quando solicitadas.

E no Brasil ...

Ratifi cada no Brasil em 24 de setembro de 1990, a CDC é – como

deveria ser – a base para o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Nossa lei nacional que tem como função garantir os direitos

de nossas crianças.

Com a criação do Estatuto, entretanto, a CDC perde espaço

político e jurídico no Brasil. Poucas são as organizações brasileiras

que se dizem trabalhar pelos direitos das crianças que conhecem

a Convenção de fato, que estão familiarizadas com seus princípios

e sabem como seus mecanismos de monitoramento funcionam.

E se perguntamos o porquê, a resposta é sempre: “temos

o estatuto”.

O que às vezes se esquece é que o próprio Estatuto necessita

de proteção. Sem a Convenção o Estatuto estaria à mercê

dos arroubos e interesses políticos. A Convenção dá o suporte

internacional e fornece as estratégias de controle social que

necessitamos para cobrar de nossos poderes constituídos

o compromisso acordado globalmente entre 192 dos 194 países

que integram as Nações Unidas.

O Brasil ratifi cou a CDC e todos os protocolos facultativos a ela e,

portanto, tem o dever de cumpri-los. O Estatuto sem a CDC não

seria ruim, mas estaria mais vulnerável.

Referências Bibliográfi cas

- ALBERNAZ JUNIOR, Victor Hugo e FERREIRA, Paulo Roberto

Vaz. Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível na

Internet no endereço http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/

bibliotecavirtual/direitos/tratado11.htm. Acesso em 25/10/2008

- O’DONNELL, Daniel. La convención sobre los derechos del

niño: estructura y contenido. Disponível na Internet no endereço

http://www.iin.oea.org/sim/cad/sim/pdf/mod1/Texto%202.pdf.

Acesso em 23/10/2008

- ALIANÇA SAVE THE CHILDREN. Programação baseada nos

direitos da criança: como enfocar os direitos na programação

– manual para os membros da Aliança Internacional Save the

Children. Save the Children Suécia: 2ª edição, Lima, 2005

2 Uma lista das reserves e declarações (e de algumas objeções às mesmas) pode ser encontrada em: http://www.unhchr.ch/html/menu2/6/crc/treaties/declare-crc.htm

*PAULO RICARDO DE PAIVA E SOUZAPernambucano, Sociólogo, Mestre em Comunicação, Doutorando em Psicossociologia,

Assessor Regional do Programa para América Latina e Caribe de Save The Children Suécianos temas de Violência Armada e Emergências.

Page 23: Alexandre Morais - redução maioridade penal

25

1 Constituição federal – art.204, II2 E os demais conselhos paritários de formulação de políticas setoriais e controle externo, nos seus específi cos campos de atuação..

3 Nos termos da Resolução 113 do CONANDA, enquanto dimensão da garantia dos direitos humanos4 E igual tempo da ratifi cação da Convenção pelos Direitos da Criança pelo Brasil e 20 anos de promulgação da Constituição Federal, ambas normas de hierarquia superior ao Estatuto citado.

5 E os conselhos homólogos setoriais, no seu âmbito específi co da operacionalização de determinada política pública (saúde, assistência social, educação etc.)6 Como, por exemplo, fazem com regularidade e competência o Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF, em nível mundial e nacional e a Fundação ABRINQ, em nível municipal.

RESUMO: Com o presente texto, pretendeu-se testar as

possibilidades da sociedade civil organizada em promover análises

da situação da infância e adolescência no Brasil. Pretendeu-se

comprovar que análises desse tipo servem para embasar

diagnósticos imprescindíveis ao aperfeiçoamento da formulação,

coordenação e execução de políticas públicas e do acesso à Justiça.

Tais análises igualmente são preciosas igualmente para a elaboração

de relatórios de monitoramento e avaliação das ações públicas,

garantidoras de direitos humanos, exatamente no momento em

que uma ampla coalizão de expressões organizativas da sociedade

civil brasileira – capitaneada pela Associação Nacional dos Centros

de Defesa da Criança e do Adolescente (Seção Brasil da Defensa

de los Niños Internacional) / ANCED-DNI - elabora o chamado

“relatório alternativo” a ser apresentado ao Comitê dos Direitos da

Criança (ONU), em Genebra, após a apresentação de novo relatório

do Estado brasileiro, de responsabilidade do seu Governo.

No texto, para essa análise, foram coletados

e analisados dados a respeito da situação

nacional, tanto a partir de fontes ofi ciais (PNUD,

OEI, IBGE, IPEA, INEP/MEC, por exemplo),

quanto a partir de levantamentos, pesquisas e

estudos mais localizados, de responsabilidade

de organizações sociais (Relatório sobre o

Programa Prefeito Amigo da Criança 2005-

08 / Fundação ABRINQ, por exemplo). Como

parâmetros para a avaliação dessa realidade

social e políticoinstitucional, no texto foram

eleitos alguns instrumentos normativos internacionais para esse

fi m: a Constituição Federal, a Convenção sobre os Direitos da

Criança, o Estatuto da Criança e do Adolescente, os Comentários,

Orientações & Recomendações do Comitê dos Direitos da Criança

do ACDH- ONU ao Governo do Brasil. E também, para esse mesmo

fi m, foram eleitos alguns documentos de instâncias públicas

não-institucionais como o Fórum Ibero-Americano de ONG pela

Infância (REDLAMYC e DNI). Ao fi nal, na tentativa de se construir

um determinado cenário mais favorável, para a promoção dos

direitos humanos de todos os cidadãos (e especialmente do

segmento infanto-adolescente), aqui se desenvolve, como

estratégico, o conceito de “coesão social” (CEPAL), com seu foco

no sentido de pertença e de valorização da identidade.

Palavras-chaves: Análise de situação. Controle sócioinstitucional.

Insegurança social. Pobreza. Desigualdades. Parâmetros para

a avaliação. Normativa de promoção e proteção de direitos

humanos. Coesão Social.

Análises de situação e controle das ações públicas

O sentido mais radical e a missão última da atuação das organizações

representativas da população1 e dos conselhos dos direitos da criança

e do adolescente2 estão no controle externo sobre as ações públicas.

Mais precisamente, seu papel no acompanhamento, monitoramento

e avaliação das ações públicas, em favor da promoção dos direitos

humanos3 da infância e da adolescência e em oposição a todas as

formas discriminatórias, exploratórias e violentas contra esses direitos.

No exercício dessa função de controle, mesmo dezoito anos depois

da vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente4, os conselhos

dos direitos da criança e do adolescente5 ainda têm muito a dizer...

e pouco dizem, ainda! Desviam-se, muitas vezes, pelo país afora, do

seu cerne, quando se trata da realização dos direitos do seu público-

destinatário. Contudo, não apenas os conselhos citados têm essa

legitimidade social, política e jurídica para exercer a função de controle

externo. Esse é igualmente o papel essencial da sociedade civil

organizada, a ser exercido por uma ampla gama de atores sociais.

As expressões organizativas da sociedade, no

país, nos tempos atuais – em face da sua crise

de identidade e dos seus agravados problemas

de sobrevivência fi nanceira – muitas vezes têm

colocado como secundário esse seu papel de

controle externo social difuso sobre as ações

do Estado, caindo numa armadilha que as

fazem parceiras do fracasso do Estado-Mínimo

neo-liberal e dependentes do Governo.

É preciso se devolver aos movimentos sociais

e à suas expressões organizativas seu

papel de controle, fomentando o trabalho de acompanhamento,

monitoramento, avaliação e de proposição. No caso da Associação

Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente

– Seção Brasil da “Defensa de Niños Internacional” – ANCED/

DNI, constata-se que há um reconhecido esforço no sentido do

fortalecimento dessa linha técnica e política, enquanto organização

da sociedade civil, mostrando que, além dos mecanismos de

controle interno institucional do Estado (controladorias, auditorias,

corregedorias, ouvidorias, ministério público, parlamento, tribunais

de contas etc. etc.), as organizações sociais podem e devem

instituir mecanismos próprios e autônomos (mas, sinérgicos) de

controle externo das ações públicas. E para tanto não podem

prescindir de bem elaboradas análises da situação da infância/

adolescência no Brasil6, embasadoras disso tudo.

A moldura do contexto nacional, na qual se deve inserir

a paisagem da situação da infância/adolescência

Para que se possa melhor entender a situação da criança e do

adolescente, em nível nacional, é preciso partir-se dos dados

e informações, agregados e somados, referentes ao Brasil, como

um todo. Para isso, deve-se buscar compor uma moldura, uma

SITUAÇÃO DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA NO BRASIL DE HOJE: INSEGURANÇA SOCIAL, POBREZA, DESIGUALDADES E TERRITORIALIDADE.

WANDERLINO NOGUEIRA NETO*

“No exercício dessa função de

controle, mesmo dezoito anos depois

da vigência do Estatuto da Criança e

do Adolescente4, os conselhos dos

direitos da criança e do adolescente

ainda têm muito a dizer... e pouco

dizem, ainda! Desviam-se, muitas

vezes, pelo país afora, do seu cerne,

quando se trata da realização dos

direitos do seu público-destinatário.”

Page 24: Alexandre Morais - redução maioridade penal

26

visão totalizante, na qual se buscassem paradigmas de comparação

com o coletado em nível local, através de levantamentos outros

com dados desagregados. E, nessa totalização da análise, alguns

fatores e tendências nacionais surgem de maneira bem clara,

ajudando a melhor se entender os dados municipais, que deve

ser nosso foco primordial, pois no território estão as crianças, os

adolescentes e suas famílias, em concreto. Nessa visita aos dados

e informações totalizados, dois fatores tendenciais se destacam:

a pobreza e as desigualdades de todos os tipos (econômicas,

políticas, sócias e jurídicas), a marcarem o contexto social

e político-institucional brasileiro com o estigma da “insegurança

social” (CASTEL7 / ZAMORA8). Como sinal emblemático de que

o combate à pobreza e às desigualdades deve ser a tônica para

o enfrentamento prioritário para o Estado brasileiro, em seus três

níveis e, em especial, no nível municipal – não foi à toa que o Comitê

para os Direitos da Criança do Alto Comissariado para os Direitos

Humanos (ONU / Genebra)9 “tomou nota com preocupação”,

como um fator que muito prejudica a implementação da CDC no

Brasil em níveis desejáveis, a ocorrência dessas desigualdades,

em seu documento de orientações e recomendações ao Governo

do Brasil, em outubro de 2004, solicitando imediatas providências

no prazo de quatro anos: (...) Item 12. “O comitê toma nota, com

extrema preocupação, das dramáticas desigualdades baseadas

em raça, classe social, gênero e localidade geográfi ca que

difi cultam signifi cativamente o progresso para a realização plena

dos direitos consagrados na Convenção” (grifei).

Pobreza e desigualdade, como focos para a análise

de situação

Tanto no tocante às ações das políticas públicas minimamente nas

áreas da saúde, educação, assistência social, segurança pública,

dos direitos humanos e do planejamento, quanto no tocante às

ações para acesso à Justiça, os processos de levantamento

e análise de dados e informações passam a ter mais sentido

e mais efetividade se colocamos todos eles confrontados com

específi cos dados e informações a respeito dos altos níveis de

desigualdade social, econômica, cultural e jurídica, que marcam

essas ações públicas de garantia de direitos10 infanto-adolescentes

e ao escandaloso desrespeito à diversidade e à pluralidade, no

Brasil. Quadro esse que se desvela com mais clareza, quando se

analisa a situação das políticas públicas e do acesso à Justiça no

âmbito do território dos municípios, isto é, num espaço político

mais próximo de quem depende dessas ações públicas, de quem

mais sofre pela ausência de ações do Poder Público ou pela falta

de efi ciência, efi cácia e efetividade na operacionalização dessas

ações públicas.

Com mais de 183 milhões de pessoas, o Brasil é o quinto país mais

populoso do mundo e a 10ª economia. Mas, igualmente, é um dos

países mais desiguais da Terra, ocupando a 92ª distribuição do PIB per

capita e a 69ª posição no ranking do IDH - Índice de Desenvolvimento

Humano. Dados do PNUD (Programa das Nações Unidas para o

Desenvolvimento) informam que o País é o 10º mais desigual numa

lista com 126 países e territórios, à frente apenas de Colômbia, Bolívia,

Haiti e cinco países da África Subsaariana11 . Além disso, em apenas

oito países os 10% mais ricos da população se apropriam de uma

fatia da renda nacional maior que a dos ricos brasileiros. No Brasil,

eles fi cam com 45,8% da renda, menos que no Chile (47%), Colômbia

(46,9), Haiti (47,7), Lesoto (48,3%), Botsuana (56,6%), Suazilândia

(50,2%), Namíbia (64,5%) e República Centro-Africana (47,7%). Os

pobres brasileiros detêm apenas 0,8% da renda, fatia superior à dos

pobres de Colômbia, El Salvador e Botsuana (0,7%), Paraguai (0,6%),

e Namíbia, Serra Leoa e Lesoto (0,5%). A comparação entre os 20%

mais ricos e os 20% mais pobres mostra que, no Brasil, a fatia da

renda obtida pelo quinto mais rico da população (62,1%) é quase 24

vezes maior do que a fatia de renda do quinto mais pobre (2,6%).

Pobreza

Preliminarmente, é de se reconhecer que a pobreza é o maior sinal

dessa desigualdade, dessa falta de equidade. Ela é a primeira

grande violação de direitos fundamentais e o maior filtro

obstaculizador para o acesso com sucesso às políticas públicas

e à Justiça, nos municípios, principalmente, vez que os mecanismos

de proteção social em todas as políticas sociais básicas, na ponta

do atendimento público, são incapazes de garantir direitos aos

milhões de crianças e famílias em situação de vulnerabilidade

econômica. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografi a

e Estatística - IBGE, em quase metade (48,9%) das famílias

brasileiras há crianças e adolescentes com até 14 anos de idade.

Basta assinalar que o percentual de famílias consideradas pobres

(com rendimento mensal per capita de até � salário mínimo)

é de 25,1% em relação ao total das famílias no País, mas chega

a 40,4% entre as famílias com crianças de 0 a 14 anos. Quando

se consideram apenas as famílias com crianças na faixa de 0 a 6

anos, o percentual é ainda mais alto: 45,4%”12 , ou seja, as famílias

com fi lhos nesta faixa etária são mais pobres.

Desigualdades por localidade geográfi ca

Contudo, além da pobreza, a desigualdade tem outras dimensões,

outras condicionantes e limitações para a ação pública. De nada

adianta falar-se em redução da mortalidade infantil, da evasão

escolar no país, se não se dissecar esses dados para se constatar

que essa redução ocorre por exemplo em níveis maiores em

municípios da Região Sul, que os dados referentes ao aumento da

mortalidade por morte violenta (homicídio, por exemplo) referem-

se muito mais a municípios da Região Nordeste e que a Região

Norte tem os piores índices no implemento das políticas públicas

e no acesso à Justiça. A desigualdade tem diferentes dimensões

regionais, geográfi cas. Os dados abaixo demonstram a enorme

diferença entre as cinco macro-regiões brasileiras (Norte, Nordeste,

Sul, Sudeste e Centro-Oeste). Como exemplo, tome-se a diferença

do percentual de famílias com crianças e adolescentes de até

14 anos que vivem em situação de pobreza no Sul (26,5%) e no

Nordeste (63,1%), ou seja, além de ser nacionalmente desigual,

o Brasil tem disparidades regionais que chegam a quase 40 pontos

percentuais.

Localização geográfi ca Até ½ SM Mais de ½ a 1 Mais de 5

Brasil (geral) 40,4 28,6 2,2

Norte 49,3 27,6 1,1

Nordeste 63,1 20,6 1,0

Sudeste 28,1 32,7 3,0

Sul 26,5 32,2 2,5

Centro Oeste 34,4 32,2 3,2

7 CASTEL, R. (1998) As metamorfoses da questão social uma crônica do salário. Petrópolis. Vozes.8 ZAMORA, M.H. (2005) A lógica, os embates e os segredos: uma experiência de curso de capacitação com educadores in Para além das grades de ferro – elementos para a transformação do sistema socioeducativo. Rio de Janeiro. Edições PUC-RJ e Loyola.9 Criado nos termos do art. 43 da CDC10 Garantia de direitos = promoção e defesa (proteção) de direitos e controle dessa garantia de direitos – Resolução 113-CONANDA.11 Relatório de 2006 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). 12 Síntese de Indicadores Sociais 2007. IBGE. Rio de Janeiro. 2007

Page 25: Alexandre Morais - redução maioridade penal

27

Desigualdade e outros fatores

A mesma coisa se diga que a exploração e a violência têm raça/

cor e etnia no Brasil, atingindo de maneira massiva e sistemática

a população indígena e afro-descendente. E mais, igualmente, assim

atingindo os defi cientes, o segmento LGBTT, crianças, adolescentes

e jovens, idosos e mulheres. Essas são varáveis importantíssimas na

análise desses dados e informações, igualmente. Ai de quem nasce

pobre, ribeirinho amazônico, mulher, adolescente, afro-descendente,

lésbica, defi ciente físico, por exemplo, nos municípios deste Brasil.

A desigualdade tem como condicionante o fator cor/raça. Em 2005,

o Relatório de Desenvolvimento Humano do Brasil (PNUD) focou

as desigualdades étnico-raciais. De acordo com este documento,

“se brancos e negros formassem um país à parte, a distância entre

eles seria de 61 posições”. A população branca teria IDH alto (0,814)

e fi caria na 44ª posição no ranking mundial – semelhante à da Costa

Rica e superior à da Croácia. Já a população negra (pretos e pardos)

teria IDH médio (0,703) e fi caria em 105º lugar, equivalente ao de El

Salvador e pior que o do Paraguai”13. No Brasil, a despesa média

mensal familiar das famílias onde a pessoa de referência se declarou

branca (R$2.262,24) chega a quase o dobro das que se declararam

negras (cerca de R$1.230,00), em uma inconteste demonstração

da inter-seccionalidade de raça e classe social14. Ao todo são

9,5 milhões de crianças de até três anos fora das creches

e 2,2 milhões entre quatro e seis anos que não estão na pré-escola;

do total de crianças de quatro a seis anos fora da escola 58%

são negras, o que corresponde a 1,3 milhão de crianças.

Desigualdades e saúde pública: mortalidade infantil

No cômputo geral, consegue-se fazer uma avaliação positiva da

situação geral da infância e adolescência no país, demonstrando que

está havendo uma redução signifi cativa da mortalidade infantil no

Brasil: “A observação sobre os números de municípios cujos dados

puderam ser aproveitados para a produção de indicadores neste

eixo reforça a difi culdade de extrairmos resultados conclusivos. No

entanto, foi possível verifi car que números signifi cativos de municípios

apresentaram evolução bastante favorável de alguns indicadores,

como uma redução média da mortalidade infantil de 20%, como

resultado do desenvolvimento de um conjunto relativamente

amplo de iniciativas, e obtiveram também redução na mortalidade

entre crianças e adolescentes de 10 a 19 anos. A maioria destes

municípios aplicou bem mais do que o percentual mínimo de 15%

de seus recursos próprios em saúde, revelando coerência na

destinação de recursos para viabilizarem as ações priorizadas neste

eixo” (Relatório do Programa Prefeito Amigo da Criança – Gestão

2005/08 – Fundação Abrinq). Todavia, as mesmas disparidades por

localidade geográfi ca (regionais) são facilmente encontradas em outro

indicador – mortalidade infantil para cada mil nascidos vivos. Apesar

das reduções signifi cativas conquistadas nos últimos cinquenta anos,

o Brasil ainda mantém desigualdades internas muito relevantes entre

suas regiões com diferenças de 20 pontos entre Sul e Nordeste.15

Mortalidade Infantil Por mil nascidos vivos - %o

Brasil (geral) 25,1

Norte 25,8

Nordeste 36,9

Sudeste 18,3

Sul 16,7

Centro Oeste 19,5

E mesmo os dados coletados, dentre 535 municípios com dados

coletados na implementação do Programa Prefeito Amigo da

Criança citado, reforçam essa visão de que especialmente as

desigualdades por localidade geográfi ca (regionais) distorcem

as avaliações totalizantes sobre a situação da mortalidade infantil

no Brasil: “A mortalidade infantil média dos 445 municípios que

responderam, nos três anos, foi de 15,1 óbitos por mil nascidos

vivos. A Coluna 2 mostra que não há uma diferença acentuada na

mortalidade infantil, segundo os grupos de municípios divididos

por porte. Estas médias variam mais quando desagregamos

os grupos pelas cinco regiões. Observa-se que os municípios

de porte MP da Região Norte apresentaram a menor taxa média,

de 9,1 óbitos por mil nascidos vivos; é preciso ressaltar que este

valor refere-se aos dados de apenas três municípios. O grupo

de municípios Médios do Nordeste apresentou a maior taxa média,

ou seja, de 20,6” (...) “O mesmo quadro apresenta, percentualmente,

a queda média da mortalidade infantil observada entre os anos

2005 e 2007. No conjunto, os municípios que enviaram o Mapa

II apresentaram uma redução da mortalidade infantil de 16,8

(óbitos por mil Nascidos Vivos) para 13,5. Portanto, uma redução

média bastante signifi cativa, de 19,6%. Mas, observa-se uma

variação acentuada entre os grupos de municípios divididos pelas

regiões, posto que três destes grupos apresentaram aumento da

mortalidade infantil no período. É preciso também muita cautela

na análise da evolução da mortalidade infantil, principalmente em

municípios de pequeno porte, podendo ocorrer variações não

diretamente dependentes dos serviços públicos” (...). (grifei).16

Desigualdade e educação (1): creches e pré-escolas

Registra o seguinte, o relatório do PPAC 2005-2008, sobre

o atendimento educacional a crianças e adolescentes nos

535 municípios (Mapa II) que forneceram dados a respeito:

“(...) na observação dos dados do PPAC sobre essa última

gestão municipal, percebe-se que ainda existem grandes défi cits

na atenção aos direitos de educação da população, sobretudo

no que diz respeito à educação infantil. Apesar de alguns

municípios terem obtidos resultados signifi cativos na cobertura

e nas condições de educação, a maioria dos governos realizou

uma gestão educacional muito modesta e de pouco impacto na

realidade do ensino público. Verifi ca-se isso no comportamento

dos municípios, de acordo com as médias dos grupos por região

(...), onde a evolução 2005 a 2007 foi pequena ou negativa. Além

disso, registre-se a quantidade considerável de municípios que

apresentaram mapas do PPAC sem informação para diversas

perguntas ou com informações muito distorcidas em relação

à realidade do município, como, por exemplo, um número de

crianças atendidas em determinado nível de ensino muito acima

do total de pessoas residentes e pertencentes àquela faixa etária.

(...)”. Todavia, quando se examina a situação nacional, levantada

em outras fontes, o quadro da desigualdade por localidade

geográfi ca se torna mais nítido. Para tanto, veja-se a situação na

área específi ca da educação infantil, onde, a partir da expansão

do ensino fundamental para nove anos (2006), a educação infantil

passou a atender crianças de zero a seis anos incompletos. Pelos

dados do MEC-INEP, verifi ca-se que a falta de acesso neste

nível educacional é um grande problema, no país, visto que dos

“23 milhões de meninos e meninas nessa faixa etária, menos da

metade frequenta creche e/ou pré-escola; dos 11 milhões de

13 Relatório de Desenvolvimento Humano Brasil 2005 — Racismo, pobreza e violência. PNUD Brasil. 2005. Brasília14 Os dados ofi ciais, recolhidos nas pesquisas do IBGE, adotam o conceito de auto-declaração, ou seja, o/a entrevistado/a declara se considera ser branco, preto ou pardo.

15 A tabela abaixo tomou como base os dados da Síntese de Indicadores Sociais 2007 (IBGE), elaborada a partir de dados de 200616 Relatório PPAC – 2005-2008 – pag.13

Page 26: Alexandre Morais - redução maioridade penal

28

crianças com menos de três anos, apenas 15,5% frequentam creches,

ao passo que 76%, aproximadamente sete milhões de crianças entre

quatro a seis anos estão matriculadas na pré-escola”. O quadro abaixo

da “evolução das matrículas em creches” registra quão desigual, em

termos de localidade geográfi ca (Regiões), ainda é o atendimento

desse direito social à educação nessa faixa etária: por exemplo, as

Regiões Norte e Centro-Oeste, como em outros quadros sempre

aparece como abaixo de todas as demais.

Regiões 2000 2002 2003 2005

Total Menos Total Menos Total Menos Total

de 4 anos de 4 anos de 4 anos

Brasil 916.864 549.048 1.152.511 712.301 1.237.558 755.371 1.414.343

Norte 47.026 23.501 57.881 27.886 60.431 28.358 67.392

Nordeste 239.800 120.136 302.381 157.798 310.645 161.219 342.954

Sudeste 418.304 273.162 507.937 340.852 571.351 370.147 658.816

Sul 156.539 98.367 213.105 142.184 221.922 149.974 247.447

Centro

Oeste 55.195 33.882 71.207 43.581 73.209 45.673 87.734

Fonte: MEC/INEP

O quadro seguinte sobre a evolução nas matrículas em pré-escolas

também refl ete a mesma situação de desigualdade por localidade

geográfi ca (Regiões):

Regiões 2000 2001 2002 2003 2005

Brasil 4.421.332 4.818.803 4.977.847 5.155.676 5.790.670

Norte 307.947 363.086 382.891 404.299 510.846

Nordeste 1.320.845 1.471.615 1.484.643 1.521.141 1.905.089

Sudeste 1.981.774 2.127.265 2.238.130 2.326.865 2.389.099

Sul 567.402 587.897 597.808 617.018 645.949

Centro Oeste 243.364 268.940 274.375 286.353 339.707

Fonte: MEC/INEP

Outro dado importante, colhido dos registros do MEP/INEP,

mostra como a evolução das matrículas em creches e pré-

escolas: “(...) entre 2005 e 2006, no que se refere à oferta de

vagas da educação infantil (com cerca de sete milhões de alunos),

foi registrado crescimento negativo de 2,6%” (...) no entanto,

as matrículas em creche, que em 2006 foram na ordem de

1,4 milhões, cresceram 1% em relação ao ano de 2005 (...), já

na pré-escola, com aproximadamente 5,6 milhões de matrículas,

houve um decréscimo de 3,5% em relação ao ano anterior, pela

migração dos alunos de seis anos para o primeiro ano do ensino

fundamental com a nova lei de expansão deste para nove anos”.

Todavia, o grande problema em relação ao acesso à educação

infantil está na natureza das instituições que oferecem este

serviço, que mostra o abandono da máquina estatal de relação

a esse tipo de equipamento, jogando para a esfera pública não-

governamental ou mesmo privada esse tipo de serviço, fazendo

com que os segmentos subalternizados da nossa população sinta

mais essa ausência do Estado-Governo. De acordo com os dados

do MEC/INEP, em 2004 “as creches particulares, comunitárias,

confessionais e fi lantrópicas correspondiam a quase metade

do total; na pré-escola, as instituições privadas correspondiam

à minoria de 25,8% ; até 2004 a rede pública atendia apenas

26,8% do total de crianças de zero a seis anos no país; somado

à rede privada, o percentual subia para 37,7%, até três anos, a

oferta abrangia apenas 11,7%, com apenas 6,1% estão na rede

pública”. Pelo que se observa mais dos dados do MEC/INEP,

a oferta de vagas em creche encontra-se, basicamente, em

escolas públicas municipais. Em 2006, “o sistema municipal de

ensino respondeu por 62,9% das matrículas e o sistema privado,

por 35,8%, ao passo que em 2005 esses percentuais eram de

60,9% e 37,8%, respectivamente” (Censo Escolar 2006 – MEC/

INEP). Mas esse descompasso entre creches públicas e privadas

mais se acentua, outra vez, em determinadas Regiões, onde essa

ausência do Estado é mais nítida que em outras, confi rmando

a tese de que as desigualdades por localidade geográfi ca são

condicionantes no desenvolvimento de políticas públicas, como se

pretende destacar no presente texto de análise. O quadro abaixo

isso revela o quanto sufi ciente:

Regiões 2000 2001 2003 2005

Público Privado Público Privado Público Privado Público Privado

Brasil 3.332.173 1.089.159 3.594.896 1.223.907 3.837.092 1.318.584 4.277.350 1.513.320

Norte 251.977 55.970 293.332 69.754 336.781 67.518 421.140 89.706

Nordeste 944.081 376.764 1.053.518 418.097 1.070.579 450.562 1.349543 555.546

Sudeste 1.535.257 446.517 1.629.623 497.642 1.773.145 553.720 1.790042 599.037

Sul 439.156 128.246 445.167 142.730 467.266 149.752 489.315 156.634

Centro Oeste 161.702 81.662 173.256 95.684 189.321 97.032 227.310 112.397

Fonte: MEC/INEP

Aprofundando-se mais a análise da situação da educação,

no país, emblematicamente com a análise da situação específi ca

da educação infantil, observa-se que o fator localidade geográfi ca

também é relevante, pois existe uma dicotomia entre as áreas

urbanas e rurais. Segundo o MEC/INEP: (...) “nas urbanas, 40%

das crianças de até seis anos freqüentam estabelecimentos de

ensino, ao passo que nas rurais este percentual é reduzido para

27%.” (...) “em 2006 das quase 35 mil creches funcionando no

Brasil, trinta mil encontravam-se nas áreas urbanas”. E quando

se analisam os dados nacionais sobre educação infantil, a partir

do indicador referente à pobreza (como forma mais aguda de

desigualdade como sustentado atrás neste texto), ela se sobreleva

de relação à aqui chamada desigualdade por localidade geográfi ca

e aprofunda essa desigualdade por Regiões e por área urbana

ou rural. Os dados nacionais (MEC/INEP) mostram que mesmo

com a expansão de matrículas na educação infantil, a demanda

continua latente e crescente, principalmente para os segmentos

mais pobres da população, justamente os que mais se benefi ciariam

do acesso à escola: (...) “a taxa de atendimento escolar na faixa

etária de zero a seis anos para famílias com renda per capita

acima de cinco salários mínimos é quase três vezes maior do

que para aquelas famílias sem qualquer rendimento; o resultado

desse processo é que nas classes mais ricas as crianças chegam

à 1ª série do ensino fundamental com uma já longa experiência

de escolarização, ao passo que nos segmentos mais pobres

esse será, muitas vezes, o primeiro contato da criança com

o mundo escolar”.

Desigualdade e educação (2): ensino fundamental

O relatório do PPAC (2005-2008) faz o seguinte registro sobre

a implementação da reforma no ensino fundamental, nos

municípios (os que deram conta do Mapa II): “Os municípios,

os estados e o Distrito Federal têm até 2010 para cumprirem

as diretrizes estabelecidas pela Lei 11.274/2006. Essa lei altera artigos

da LDB/1996, defi nindo o ensino fundamental com duração

Page 27: Alexandre Morais - redução maioridade penal

29

de 09 anos, com ingresso obrigatório de crianças a partir dos

6 anos de idade. Frente a essa determinação legal, nota-se que

um percentual elevado de municípios participantes do PPAC já

está adequado nessa nova estrutura do ensino fundamental.

Destacam-se os municípios de grande porte (G1) em todas

as regiões, com exceção do Sudeste. Além disso, as regiões Sul

e Centro-Oeste estão com, no mínimo, 90% de seus municípios

já adaptados no ensino de 9 anos. Por outro lado, o menor

percentual é apresentado pelos municípios de médio porte (M) da

região Norte, com menos da metade (43%) dos participantes do

PPAC já atuando com o ensino fundamental de 9 anos de duração”.

Ao mesmo tempo, em nível nacional, nos termos dos dados

totalizados e constantes dos relatórios do MEC/INEP, hoje temos

“uma taxa de matrícula de 98% do total de crianças brasileiras

na educação fundamental”; mas dados recentes afi rmam que

“a oferta ainda é insufi ciente para garantir a universalização do

ensino obrigatório no país e dois terços das crianças de 7 a 14

anos fora da escola são negras”. Além disso, nas regiões Norte

e Nordeste “apenas 38% das crianças terminam a educação

fundamental, ao passo que nas regiões mais desenvolvidas, no

Sul e Sudeste, esta taxa é de 70%.” – afi rmação essa que confi rma

a tese aqui sustentada de que as desigualdades regionais (fator

localidade geográfi ca) são marcantes na análise e avaliação dos

dados e informações sobre ensino fundamental, no Brasil, sem

discrepância, pois com os dados desagregados da amostra

dos 535 municípios que preencheram o Mapa II do relatório do

PPAC (gestão 2005-2008). Por fi m, prosseguindo nessa análise

comparativa entre os dados nacionais totalizados (fonte MEC/

INEP) e os dados desagregados municipais (fonte relatório 2005-

2008 PPAC), é mais de se registrar a infl uência das desigualdades

regionais ou por localidade geográfi ca no caso das evasões

escolares. Segundo o INEP, “cerca de 16% dos jovens que

terminam o ensino fundamental deixam de ingressar no ensino

médio; dos 60% que ingressam, apenas 47% o fazem antes dos

17 anos e menos da metade dos jovens do ensino médio concluirá

a educação básica antes de atingir a maioridade, quando muitos

deixam a escola para ingressar no mercado de trabalho”. Todavia,

a taxa de conclusão do ensino médio – segundo a mesma fonte

– “dobrou nas últimas décadas de 20% para mais de 40%”. Por

sua vez, a taxa de escolarização do ensino médio para jovens de

15 a 17 anos está em 46,2%. Informa mais o INEP que entre 2004

e 2005 observa-se que no ensino médio houve uma pequena

queda de 0,7 pontos percentuais relativos à taxa de abandono;

contudo, os dados gerais da mesma fonte revelaram um aumento

de 1,1 ponto percentual no índice de reprovação, que passou de

10,4% (2004) para 11,5% (2005). É interessante ressaltar o fato

de que, contrariando a ideia de que maior reprovação pode levar

ao maior abandono, os dados relativos ao ensino médio revelam

que “as regiões que apresentam as menores taxas de reprovação,

Norte (8,7%) e Nordeste (9%), correspondem aos maiores índices

de abandono: 20,8% e 21,1%”.

Desigualdade e violência

Outro resultado da combinação da desigualdade com a pobreza

é a violência. Mesmo reconhecendo-se que esses fatores não

são as únicas explicações para a violência massiva e sistemática

que acontece no Brasil, não se pode deixar de considerar tal

combinação como um alavancador dos índices de violência que

afl igem a população, causando a morte de milhares de pessoas

anualmente. De acordo com o Mapa da Violência 200617,

“é possível observar que, com uma taxa global de 27 homicídios

por 100 mil habitantes no ano 2004, o Brasil ainda se localiza

entre os países com as maiores taxas de homicídios entre os

84 países do mundo que o Whosis/OMS disponibilizou com as

correspondentes informações. Embora as taxas do Brasil sejam

menores que as da Colômbia e semelhantes às da Venezuela

e da Rússia, ainda assim continuam sendo extremamente elevadas

no contexto internacional.” De acordo com o Mapa da Violência

2006, “a taxa de homicídio da população negra é bem superior

à da população bran¬ca. Se na população branca a taxa em 2004

foi de 18,3 homicídios em 100 mil bran¬cos, na população negra

é de 31,7 em 100 mil negros. Isso signifi ca que a população negra

teve 73,1% de vítimas de homicídio a mais do que a população

branca. (...) Se no conjunto da população a vitimização de negros

já é severa, entre os jo¬vens o problema agrava-se ainda mais:

os índices de vitimização elevam-se para 85,3%. Isto é, a taxa de

homicídios dos jovens negros (64,7 em 100 mil) é 85,3% superior

à taxa dos jovens brancos (34,9 em 100 mil).” O mesmo estudo

confi rma que a violência tem um traço marcadamente de gênero,

pois “só 7,9% das vítimas dos homicídios acontecidos no país

durante o ano de 2004 pertencem ao sexo feminino. Entre os

jovens, essa proporção é ainda menor: 6,3%. E essas proporções

vêm se mantendo constantes nos últimos anos.” Registre-se,

contudo, que o problema é concentrado nas áreas periféricas

urbanas. Enquanto a taxa de homicídios de jovens no Brasil

chegou a 51,7 para cada 100mil habitantes no ano de 2004, em

Recife/PE este índice chegou aos estratosféricos 223,6, fazendo

daquela cidade a capital com o maior índice de homicídios de

jovens do Brasil18.

Desigualdade e confl ito com a lei

Mais uma conseqüência dessa combinação entre desigualdade

e pobreza, resultando em exclusão social, é o aumento do

encarceramento de adolescentes pobres, moradores das periferias

urbanas, quando da prática de atos infracionais: 57% dos atos

infracionais cometidos por estes adolescentes foram contra

o patrimônio, demonstrando que a pobreza e a desigualdade têm

alimentado o envolvimento destes adolescentes com tais atos.

O direito à defesa é, sem dúvida, um dos direitos mais violados dos

adolescentes em confl ito com a lei. Registros diversos dão conta

que muitos estão privados de liberdade sem nunca terem tido

acesso a um defensor, o que contraria os tratados internacionais de

direitos humanos, a Constituição Federal e o Estatuto da Criança

e do Adolescente. Pode-se concluir facilmente que os adolescentes

em confl ito com a lei, na sua ampla maioria pobres, não tendo

acesso nem condições de defesa, são submetidos a toda sorte de

arbitrariedades nos Sistema Nacional de Segurança Pública e no

Sistema de Justiça. Vale ressaltar o grande número de violações

(torturas, tratamento cruel, negligência e morte) registradas no

sistema de internação de adolescentes em confl ito com a lei

penal, muitas das quais já levadas ao Sistema Interamericano

de Proteção de Direitos Humanos, o que justifi ca, portanto, que

os investimentos nesta área são mais que urgentes. De acordo

com dados da Secretaria Especial de Direitos Humanos da

Presidência da República, o número de adolescentes em privação

de liberdade aumentou 325% entre 1996 e 2006. Contudo,

17 WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2006 – Os jovens do Brasil. OEI – Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, Ciência e Cultura. Brasília. 200618 WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2006 – Os jovens do Brasil. OEI – Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, Ciência e Cultura. Brasília. 2006

Page 28: Alexandre Morais - redução maioridade penal

30

segundo o Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil, publicado

em 2006 pelo Ministério da Justiça, em média, menos de 40% das

comarcas do país contam com o atendimento da população por

defensores públicos. Além disso, apenas 56% das Defensorias

Públicas mantêm plantões regulares nas unidades de internação

de adolescentes privados de liberdade19.

Desigualdades e orçamentação pública

No tocante aos dados sobre execução orçamentária dos Governos

Municipais colhidos através do Mapa II do PPAC, verifi ca-se que

“as informações sobre os gastos com saúde dos municípios foram

pouco aproveitadas, na medida em que em muitos casos foram

bastante diferentes dos dados informados ao SIOPS (Sistema de

Informações do Ministério da Saúde)” (...) “menos da metade dos

municípios que informaram ao PPAC sobre os gastos de 2007

tiveram dados próximos aos informados para o SIOPS” (..) “onze

municípios informaram apenas ao PPAC e não o SIOPS.(...)”.

O Quadro mostra os gastos médios com saúde em 2007, em Reais

(R$) por habitante, por grupo de municípios. Como referência,

informa-se que o gasto total com saúde atingiu R$ 268,00

enquanto o gasto médio com recursos próprios foi de R$ 168,00

por habitante. Dito isto, pode-se observar que os municípios

do grupo PP, de menor porte populacional, apresentam as médias

mais altas. Depois do grupo PP, os municípios do grupo G1, que em

sua maioria têm serviços de referência para os demais municípios

de suas regiões e/ou estados, apresentam os maiores gastos em

cada região. Lembra-se que o grupo G1 do Norte é composto por

apenas um município. É importante também observar que estamos

apresentando valores médios, mas que existem vários municípios

com gastos muito acima da média, como Madre de Deus (BA), com

gastos em saúde com recursos próprios de R$ 943,00, e Cubatão

(SP) com R$ 743,00. No extremo oposto, temos municípios como

Ilhéus (BA), com gastos por habitante com recursos próprios de

R$ 30,00, ou Bragança (PA) com R$ 34,00. Por sua vez, um elemento

importantíssimo, a mais, para a análise das diversas dimensões

das desigualdades, em nível nacional, é a execução orçamentária

do Governo Federal em relação à infância e adolescência, aqui

tomada como exemplo. Nesse campo, certas desigualdades outras

produzem discriminações e distorções políticas, que infl uenciam

essa execução orçamentária. Quando se trata, por exemplo,

do atendimento aos adolescentes em confl ito com a lei,

o preconceito de relação à pretensa marginalidade desse público

faz com que se justifi que a baixa prioridade dada a ele pelas

políticas públicas e o baixo nível de destinação de recursos para

esse atendimento – na linha do dito tradicional que propõe “serviço

marginal para público marginal”. O chamado perfi l do adolescente

em confl ito com a lei revela esse forte conteúdo seletivista, classista

e racista do sistema de responsabilização socioeducativa, no país,

na prática do dia-a-dia: pretos, pobres, semi-analfabetos etc. Essa

distorção se refl ete no modo como as políticas públicas tratam

a infracionalidade em si, o adolescente autor de ato infracional

e a execução das medidas socioeducativas (sanção). Uma situação

jurídica, meramente adjetiva, é tratada como situação social,

mais substantiva. Em verdade, o ato infracional, praticado por um

adolescente, só existe como conduta formalmente em confl ito

com a lei e a ser constituída pela via judicial de uma sentença de

um juiz, obedecido um determinado procedimento-processual.

Contudo, esse ato/conduta é classifi cado pelas políticas públicas,

em certos momentos, como uma situação de risco social,

que existe como conduta materialmente de exclusão social

e diagnosticada pela via administrativa de um encaminhamento

sócio-assistencial). Como exemplo desse tratamento discriminatório

na execução orçamentária, dados sistematizados pelo INESC20,

em outubro de 2007, revelaram que alguns programas estratégicos

para o atendimento ao adolescente autor de ato infracional

(socioeducandos) estavam com baixíssima execução. Vale ressaltar,

por exemplo, o grande número de violações (torturas, tratamento

cruel, negligência e morte) registradas no sistema de internação

de adolescentes em confl ito com a lei, muitas das quais já levadas

ao Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos,

o que justifi ca, portanto, que os investimentos nesta área são mais

que urgentes. Consta do citado estudo do INESC o seguinte: “(...)

o Programa de Atendimento Socioeducativo do Adolescente em

Confl ito com a Lei (SINASE), cuja dotação é de R$24 milhões teve

até setembro de 2007 uma execução não muito superior a 5,22%,

ou seja, R$1,28 milhão”.

O baixo nível de garantia do direito à participação de crianças

e adolescentes, como sinal emblemático de desigualdade

Aqui está o calcanhar de Aquiles na situação da infância

e adolescência (e juventude) no Brasil: o baixíssimo nível de

participação desse segmento nas políticas públicas no Brasil. A

garantia dessa participação como um direito fundamental e não

meramente como estratégia, como tática, como metodologia – como

insistimos em fazer no Brasil. Vislumbra-se apenas, aqui e ali, novas

possibilidades de se promover o desenvolvimento de um necessário

processo estratégico de empoderamento (empowerment) do próprio

publico infanto-adolescente (ainda muito pouco aprofundado no

Brasil, em comparação com outros países), para que eles participem,

mais e mais, proativamente e não reativamente, de estratégias de

mobilização social, de advocay e de monitoramento & avaliação.

O envolvimento do público infanto-adolescente no Brasil ainda é muito

tímido e exige um aprofundamento maior dessas possibilidades de

criação/aplicação de táticas e metodologias novas, que garantam tal

participação proativa21 de crianças e adolescentes no levantamento,

análise e avaliação de dados e informações. Esse pormenor da falta de

metodologias para empoderamento (e não meramente capacitações

e treinamentos!) de crianças e adolescentes, especialmente dos

jovens-adolescentes de 16 a 18 anos, no país, decorre muito do

quadro de desrespeito à diversidade e à pluralidade em nosso meio,

refl etindo o quadro de desigualdades (geração, gênero, raça-cor, etnia

etc.). Na verdade, essa “participação de crianças e adolescentes”,

entre nós, é vista muito mais como uma tática específi ca no bojo

de diversas estratégias de ação, ou apenas como metodologia

em determinadas atividades/serviços ou projetos/programas. Essa

participação é pouco vista como um direito fundamental, em si,

reconhecido pelos instrumentos normativos de garantia de direitos

humanos. Essas distorções na realização do direito à participação

de crianças e adolescentes decorre também muito da falta de

tradição de trabalho nessa linha, ou seja, da falta de maior ousadia

e radicalidade, nesse sentido, da legislação infraconstitucional

brasileira (no caso o Estatuto da Criança e do Adolescente22), da

incipiência e dos desvios de concepção e execução de muitas das

experiências dos chamados projetos de “protagonismo juvenil” em

desenvolvimento no país, fatores todos a merecerem críticas também

do Comitê dos Direitos da Criança da ONU (Genebra).

19 II Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil. Ministério da Justiça. Brasília. 200620 INESC – Instituto de Estudos Sócio-Econômicos – organização não-governamental – dados consultados no sítio web em 15/11/200721 CDC - “direito de ser ouvido e de ter sua opinião considerada”22 As normas-regras do Estatuto citado e de outras normas legais infra-constitucionais (Código Civil, Códigos de Processo Penal e Processo Civil etc.) não se adequaram de maneira sufi ciente ás normas-principiológicas hierarquicamente superiores da Constituição Federal e da Convenção sobre os Direitos da Criança.

Page 29: Alexandre Morais - redução maioridade penal

31

A normativa jurídica contrastando com a situação

O Brasil tem um marco normativo baseado no reconhecimento

da prevalência da dignidade humana, da liberdade, da igualdade

e da pluralidade – da prevalência dos Direitos Humanos. Mas, ele

é marcado por essa analisada acima fratura social que afasta regiões

geográfi cas, classes sociais, homens e mulheres, brancos e negros,

crianças, adolescentes e adultos (incluídos os jovens e idosos).

Apesar de ter ratifi cado todos os tratados internacionais de Direitos

Humanos, não consegue estabelecer políticas e recursos públicos

e assegurar o acesso democrático à Justiça como mecanismos

capazes de realizar os direitos por ele mesmo reconhecidos,

particularmente no âmbito do território dos municípios, em todo

o país. Desse modo só se pode falar realmente em efi ciência, efi cácia

e efetividade no desenvolvimento equânime de políticas públicas e no

acesso democrático à Justiça se isso resultar em redução nos níveis

de pobreza e de desigualdade e em aumento dos níveis de coesão

social (bem menos exclusão e muito mais pertencimento social)23.

Por melhores que sejam as cifras, de modo geral, se os dados

e informações correspondentes não resistirem a uma desagregação

para se verifi car em que medida os mais-desiguais se benefi ciam

ou não desses incrementos, com ações afi rmativas em seu favor,

verdadeiras discriminações positivas – no caso sob análise aqui,

privilégios legítimos e legais em favor da infância e adolescência;

fazendo com que seu superior interesse prevaleça acima de tudo

e todos, priorizando em termos absolutos esse seu atendimento

público, com resultados reais para o aumento dos níveis de coesão

social no país a partir preferencialmente dos municípios.

O controle sócioinstitucional das ações públicas de

promoção e defesa (proteção) de direitos

Para que se consiga frutos aproveitáveis desse choque

aparente entre realidade social e normativa, entre o “Brasil-Real”

e o “Brasil-Legal”, um sistema de controle das ações públicas

necessita ser implementado, onde se faça um acompanhamento,

monitoramento, avaliação e correção dessas ações, diminuindo

os níveis de fraturas entre os dois “Brasis”. Está no controle

social exercido diretamente pela sociedade civil organizada

e no controle institucional exercido principalmente pelos

conselhos dos direitos da criança e do adolescente e mais pelo

Parlamento, pelo Ministério Público, pelos tribunais de contas,

pelas corregedorias, auditorias, controladorias etc.

Exemplo de parâmetros para o controle das ações públicas:

as normas do Comitê da ONU para os Direitos da Criança,

por exemplo

Em nível internacional, a Convenção sobre os Direitos da

Criança, a exemplo de outros tratados internacionais de direitos

humanos, trouxe em seus artigos 43 e seguintes, os mecanismos

e procedimentos para o controle de sua efetivação jurídica

e implementação político-institucional. Criou um comitê, a princípio

formado com 10 membros e, a partir de 2003, com 18 membros,

“especialistas de reconhecida integridade moral e competência

nas áreas cobertas pela Convenção” (art.43, 2). Cabe ao Comitê

dos Direitos da Criança “examinar os progressos realizados

no cumprimento das obrigações contraídas pelos Estados partes

da Convenção” (art.43,1), o que é feito pelo exame periódico dos

relatórios ofi ciais e contribuições de agências especializadas em

direitos humanos. Após este exame, o Comitê faz considerações

e recomendações aos Estados Partes. Além disso, o Comitê

desempenha seu papel de controle da efetivação e implementação

da Convenção, realizando anualmente discussões gerais sobre

temas conjunturalmente relevantes e aprovando comentários

gerais. Os relatórios iniciais devem ser apresentados pelo Estado

Parte após dois anos da ratifi cação e, a partir de então, de cinco

em cinco anos. O Brasil deveria ter apresentado seu relatório

inicial em 1992, pois ratifi cou a Convenção em 1990. O segundo

relatório em 1997, o terceiro em 2002 e o quarto em 2007

Infelizmente, o Estado brasileiro permaneceu inadimplente com

este compromisso até 2003, data de envio do primeiro relatório.

Da mesma forma, os relatórios dos protocolos opcionais também

já deveriam ter sido enviados seguindo-se a norma do art.44 da

Convenção. Para facilitar o exame e debate sobre os relatórios,

o Comitê aprovou disposições gerais a serem seguidas pelos

Estados Partes na elaboração de relatórios, agrupando os temas

tratados pela Convenção24: Nos anos de 2003 e 2004, várias

organizações coligadas da sociedade civil brasileira, no exercício

de suas atribuições previstas na CDC e nos Regulamentos do

Comitê, decidiram apresentar um “relatório alternativo” sobre

a efetivação/implementação da Convenção em nosso país.

Ao fi nal do seu processo de monitoramento, o Comitê editou

seus “Comentários e Recomendações fi nais.” A partir daí cabia

à sociedade civil organizada no Brasil, em especial (incluindo-

se privilegiadamente aí a ANCED, como liderança da Coalizão

Brasil de ONGs para o Comitê de Genebra), continuar a difundir

os instrumentos internacionais de direitos humanos relativos

à infância, consolidar a utilização de seus mecanismos e fi scalizar

a implementação dos citados “comentários e recomendações”

do Comitê ao nosso país, reunindo informações para um possível

segundo relatório alternativo e para elaboração de inúmeros outros

relatórios de análise da situação, de planifi cação, de agendamento

e pactuação. Quando se promove a utilização, como parâmetro

avaliativo e planifi cador, desse documento especifi co do Comitê

para os Direitos da Criança das Nações Unidas, não se trata

de preferir utilizar exclusivamente um instrumento ou outro:

Constituição Federal, Convenção sobre os Direitos da Criança

ou Estatuto da Criança e do Adolescente. Ao contrário, todos

os instrumentos normativos são complementares e devem ser

utilizados, inclusive este emanado do Comitê. Imprescindível é

que os princípios explicitados por estes instrumentos normativos

todos sejam efetivados, tomados em conta em nossos trabalhos

de análise e planejamento, por exemplo. ROSENO explica,

a respeito: “O fundamento do direito não é o instrumento

normativo, mas o conteúdo de justiça que deve estar contido na

norma, seja ela nacional ou internacional. Por isso, defendemos

a complementaridade e articulação entre os sistemas nacional,

regional e internacional de proteção dos direitos humanos. Mais

importante que a norma é a prevalência do princípio da dignidade

do ser humano criança que deve estar reconhecido na norma”25 .

Outros parâmetros para o controle das ações públicas:

compromissos políticos de instâncias públicas não-

institucionais

Os participantes do IV Fórum Ibero-Americano de ONG pela

Infância, representando as organizações não governamentais

23 Ver adiante item III – “Parâmetros (...)”24 Esse tipo de classifi cação é de muita importância na elaboração de relatórios outros sobre garantia de direitos da criança e do adolescente, no Brasil e deveria ser levada em conta, nem que seja em caráter suplementar: a) Medidas gerais

de implementação (arts. 4º, 42 e 44.6); (b) Defi nição de criança (art. 1º); (c) Princípios gerais (arts. 2º, 3º, 6º e 12); (d) Direitos Civis e liberdades (arts. 7º, 8º, 13-7 e 37a); (e) Ambiente familiar e cuidado alternativo (arts. 5º, 18.1, 18.2, 9º, 10, 27.4, 20, 21, 11, 19, 39 e 25); (f) Saúde básica e bem-estar (arts. 6º.2, 23, 24, 26, 18.3, 27.1, 27.2 e 27.3); (g) Educação, lazer e cultura (arts. 28, 29 e 31); (h) Medidas especiais de proteção.

25 ROSENO, Renato in “Introdução ao Relatório Alternativo da Coligação da Sociedade Civil Brasileira ao Comitê para os Direitos da Criança”. 2005. São Paulo. Edição ANCED

Page 30: Alexandre Morais - redução maioridade penal

32

dos países ibero-americanos (incluindo-se mais a Espanha

e Portugal), preliminarmente, reconheceram em maio de 2007, em

Villarica, Chile, que as políticas públicas em favor da infância e da

adolescência, formuladas e executadas em seus países, deveriam

ser fi rmadas em “processos de planejamento participativo

e democrático, a meio e longo prazo, para permitir a consolidação

de processos sociais estáveis e duradouros, em matéria de garantia

permanente de direitos de crianças e adolescentes, a partir de

uma perspectiva integral”. Isso supõe – segundo a declaração

fi nal – mais uma reforma estrutural e funcional da institucionalidade

pública dentro dos Estados e uma gestão de resultados e de

impactos, centrada na pessoa da criança e do adolescente, como

sujeitos de direitos, tendo a busca da “coesão social”, como escopo

fi nal. Levando-se em conta o que consta desse documento do

IV Fórum Ibero-Americano, pode-se construir alguns indicadores

que permitam garantir maior efi ciência e efi cácia e igualmente

maior efetividade, para o enfrentamento da exclusão, da pobreza

e das desigualdades, através do desenvolvimento equânime de

políticas públicas e do acesso democrático à Justiça, em nosso

país, a partir dos seus municípios. Os compromissos assumidos

na declaração fi nal desse Fórum devem ser considerados quando

da elaboração de agendas, pactos, compromissos entre nós no

Brasil, especialmente as expressões organizativas da sociedade civil

que fi rmamos esse documento ibero-americano. Do documento

fi nal desse evento foram destacados os seguintes pontos que

se transformam em parâmetros para a análise da situação social

e político-institucional, neste texto registrada e comentada,

e para a construção de compromissos no sentido do enfretamento

da pobreza, da desigualdade e da exclusão que dessa análise

emerge e no sentido de elevação dos níveis de inclusão e de

pertencimento social (coesão social):

A) Marco normativo predominante – O documento

inicialmente chama a nossa atenção, de modo particular,

para a necessidade de se garantir mais centralidade na

Convenção sobre os Direitos da Criança e não apenas no

Estatuto da Criança e do Adolescente26, considerando-se

que no Brasil, por força da Emenda Constitucional nº 45,

esse tratado internacional, depois de ratifi cado, passou

a ter status de norma constitucional, hierarquicamente

superior a normas infraconstitucionais27. Nesse ponto

se chama mais a atenção para o caráter principiológico

de certas normas da CDC, a permitir que os gestores

públicos e os julgadores interpretem, por exemplo,

todas as normas-regras do Estatuto citado e de outras

leis ordinárias (LOAS, LOS, LDB etc.), a partir dessas

normas-princípios da CDC, tendo-as como chaves

hermenêuticas, como, por exemplo, os princípios da

integralidade do desenvolvimento, da não-discriminação,

do superior interesse, da proteção especial em casos de

violações de direitos.

B) Investimentos públicos – Comprometeram-se todas

as ONGs ibero-americanas, nessa declaração fi nal,

em priorizar a discussão e a luta pelo crescimento das

inversões públicas em favor da infância e adolescência,

fazendo a devida conexão entre política econômica

e políticas sociais, vez que não se poderá ter boas políticas

sociais sem políticas econômicas mais justas

C) Processos e espaços públicos de participação

democrática & em especial de participação proativa

de crianças e adolescentes: Insta-se nesse documento,

a todos nós no Brasil, no sentido da valorização de

espaços participativos, como os nossos conselhos dos

direitos da criança e do adolescente. Todavia acrescenta-

se, além do mais, compromissos de envolvermos,

nesses processos e espaços públicos participativos

e permanentes, crianças e adolescentes, coisa que

no Brasil temos difi culdades em fazê-lo.

D) Municipalização – Há um compromisso outro em favor

da municipalização das políticas públicas: isto é, (...)

“ se deben crear políticas públicas locales que acerquen

más el Estado a los espacios de la vida cotidiana de los

niños, las niñas y los adolescentes”.

E) Sistema Nacional de Garantia de Direitos – Os

participantes do IV Fórum constataram a necessidade de se

reconhecer a existência em nossos países de um sistema

de garantia de direitos em favor de crianças e adolescentes,

fortalecendo-o, dotando-o de mecanismos orçamentários

e jurídicos para garantir sua efetividade em favor do seu

público-destinatário, sem se esquecer de se contemplar

nesse compromisso o papel do Sistema Judicial: (...) “que

realicen las reformas presupuestarias y jurídicas necesarias

para dotar a los Sistemas Nacionales de Protección de

los Derechos de los mecanismos necesarios para que

los mismos puedan ser demandados por niñas, niños

y adolescentes. En este sentido es necesario adecuar

los procedimientos judiciales y administrativos para que

niñas, niños y adolescentes vulnerados en sus derechos,

al igual que sus familiares o testigos, tengan un mejor

acceso a la justicia (...)”.

F) Dados e informações – Assumiu-se, também, para

toda a Ibero-América, o compromisso de criarmos um

sistema de gerenciamento de dados e informações mais

aperfeiçoado e com capacidade de desagregações

necessárias, a respeito da infância e adolescência e que

permita o monitoramento e a exigibilidade de direitos.

Coesão social

A situação da infância e adolescência no Brasil está marcada por

profundas fraturas provocadas pela insegurança social, isto é, pela

pobreza e pelas desigualdades várias (com destaque aqui para

a desigualdade por localidade geográfi ca). A normativa internacional

e nacional nos aponta para a necessidade de atendermos

necessidades e desejos desse público, no marco dos Direitos

Humanos, fazendo prevalecer os princípios gerais dos Direitos

Fundamentais. E por sua vez, o fortalecimento do controle social

e institucional sobre essas ações aqui se elegeu como mecanismo

privilegiado para garantir a defl agração de um processo de

transformação social dessa situação de iniquidade, a partir desses

paradigmas emancipatórios dos Direitos Humanos. Mas qual

nossa meta, nosso horizonte, nossa utopia histórica e verossímil?

Dir-se-ia aqui: a busca da coesão social em níveis crescentes!

O conceito de “coesão social”28 surge ante a necessidade de

se encarar os sérios problemas que, apesar de alguns avanços

alcançados nos últimos anos, ainda perduram na América Latina,

no Brasil: altos níveis de pobreza e uma extrema desigualdade,

que resultam nas diversas formas de discriminações, abandonos,

explorações, violências e exclusão social (em “insegurança

26 Enquanto “normativa nacional de adequação à CDC”.27 ECA, LOAS, LOS, LDB etc.28 CEPAL

Page 31: Alexandre Morais - redução maioridade penal

33

social”), como se viu atrás neste texto. Pobreza e desigualdade

que atingem ainda mais agudamente os segmentos da população

que foram reduzidos a “minorias políticas”, isto é, os mais atingidos

por esses diversos processos de opressão de responsabilidade

dos grupos hegemônicos dominantes (sócio-político-econômico-

jurídico-culturais). Os atores sociais que poderiam ser chamados

a construir espaços e mecanismos de interação positiva e de

superação dessa situação de pobreza e desigualdade não contam

com espaços e mecanismos de cooperação e de comunicação,

baseados em princípios éticos que não dão sustentação a esse

quadro de iniquidade, de pobreza e desigualdade. As razões

desses desencontros são múltiplas, mas se destaca entre elas

o débil nível de coesão social, vez que o problema transcende

à mera satisfação de necessidades materiais. Para superar isso,

há que se reconhecer a relevância dos valores democráticos

no desenvolvimento de políticas públicas que fortaleçam essa

coesão social e no acesso à Justiça igualmente fortalecendo

a coesão social. Mas além dessa relevância ética em razão da

equidade, isso também é relevante para testemunhar a solidez

do Estado Democrático de Direito, da ordem social democrática

e da governabilidade. A coesão social é mais um desejo político,

uma utopia a se realizar no futuro a partir de esforços no presente,

fortemente condicionadora do desenvolvimento humano

sustentado, como um seu elemento obstaculizador ou facilitador.

Trata-se de criar sinergias positivas entre crescimento econômico

e equidade social, através da promoção e defesa (proteção) de

direitos fundamentais e do fortalecimento de uma democracia real,

inclusiva e participativa. Assim sendo, necessário se torna celebrar

um verdadeiro compromisso de coesão social, entre gestores

e outros agentes públicos que integram os atores sociais do sistema

de garantia dos direitos da infância e adolescência (especialmente,

os que atuam em nível municipal), o que permitiria construir

uma agenda mínima em torno desse objetivo, disponibilizando

os recursos econômicos, políticos e institucionais viáveis,

ao máximo de seus esforços.

*WANDERLINO NOGUEIRA NETOProcurador de Justiça (aposentado) do Ministério Público do Estado da Bahia e membro do Grupo Temático de Monitoramento da Convenção sobre os Direitos da Criança da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente – ANCED / Seção Brasil da Red de Defensa de los Niños y Niñas Internacional - DNI), pelo CEDECA Interlagos (SP). Foi Procurador Geral de Justiça e Diretor Geral do Tribunal de Justiça da Bahia, Professor de Direito Internacional Público da Universidade Federal da Bahia – UFBA, Secretário Nacionaldo Fórum DCA, Presidente da Associação do Ministério Público da Bahia e Consultor Especial para o UNICEF(Brasil, Angola, Cabo Verde e Paraguai).

Page 32: Alexandre Morais - redução maioridade penal

34

Nota: O presente texto foi apresentado no III Congresso Mundial

contra a Exploração Sexual de Crianças, realizado no Rio de

Janeiro, em novembro de 2008, promovido pelo Unicef, Childhood

(Fundação WCF – Suécia), ECPAT, Comitê dos Direitos da Criança

da ONU, NGO Group for the CDC e Governo Brasileiro. Essa fala do

Autor integrou o Painel 2 sobre “Marco Legal e Responsabilização”

e versava sobre esse enfoque específi co da “impunidade, não-

criminalização e sistema de garantia de direitos humanos”, como

programado. Igualmente, foi apresentado no mesmo período no

I Congresso Brasileiro contra a Exploração Sexual de Crianças e

Adolescentes, realizado simultaneamente.

SÍNTESE: O reconhecimento dos direitos sexuais, como

direitos fundamentais da pessoa humana, como preliminar a

ser assegurada. A criminalização (ou não) do explorador sexual,

como uma das possíveis respostas do Estado à violação dos

direitos sexuais de crianças e adolescentes. A

impunidade como tendência, na realidade atual

– uma questão estrutural e/ou conjuntural?

Deslegitimação do Direito Penal, nos tempos

atuais. Novas alternativas. A responsabilidade

do Estado, de modo sistêmico, pela promoção

& proteção de direitos humanos da criança

e do adolescente, incluindo-se os seus direitos

sexuais. A institucionalização de um sistema

de garantia de direitos humanos infanto-

adolescente, na América Latina (exemplos do

Brasil e do Paraguai), como alternativa na busca

de novas alternativas.

Contexto: direitos sexuais como direitos fundamentais da

pessoa humana

Para o pleno exercício dos direitos sexuais e reprodutivos,

fundados na dignidade de sua condição humana, todos os

homens e todas as mulheres e cada um deles e delas devem

ser tratados com respeito a sua liberdade, a sua autonomia

e a sua autodeterminação, para que possam exercer o seu direito

de desfrutar de uma vida sexual plena, que seja satisfatória,

saudável, segura, sem discriminações, sem coerção e sem

violência. Para tanto, todos os recursos científi cos, políticos

e jurídicos, no âmbito público e privado, devem ser garantidos

e disponibilizados para que todos os homens e todas as mulheres

efetivamente exercitem seus direitos sexuais e reprodutivos.

Por sua vez, o pleno exercício dos direitos sexuais e reprodutivos

implica no reconhecimento e na garantia minimamente dos

seguintes direitos:

• O direito à igualdade e a uma vida livre de toda forma de

discriminação, inclusive no que diz respeito à vida sexual

e reprodutiva, para que a todas as mulheres e todos os

homens seja garantida a necessária e efi caz proteção em

face de qualquer violência, abuso ou exploração sexual,

tortura ou intolerância por orientação sexual;

• O direito à informação e à educação, incluindo informação

sobre sexualidade que promova a liberdade de decisão

e igualdade de gênero, garanta o acesso à informação

completa sobre os benefícios, riscos e efetividade de

todos os métodos de regulação da fertilidade e prevenção

de doenças, possibilitando, assim, decisões com base em

um consentimento livre e informado;

• O direito à liberdade de pensamento, para que homens

e mulheres não sejam submetidos a interpretações

restritivas de ideologias religiosas, crenças, fi losofi as

e costumes, instrumentalizadas para controlar

a sexualidade, para estabelecer pauta de

conduta moral no âmbito da sexualidade

e para limitar o exercício de quaisquer direitos

nas áreas da saúde sexual e reprodutiva;

• O direito à privacidade, para que

todos os serviços de atenção à

saúde sexual e reprodutiva garantam

a confi dencialidade.

Pelo que se observa na raiz de tudo que se

possa dizer e fazer, para todos e para todas, deve estar a questão

da dignidade humana, da liberdade e do direito. Necessita-se do

reconhecimento e garantia de direitos sexuais que pressuponham

a pluralidade e a diversidade, levando nosso discurso teórico

e nossa prática a passarem pela questão preliminar da “tolerância

e respeito” com a diversidade e com a liberdade, de cada um.

Necessita-se, pois de um Direito emancipador e não meramente

regulador. Em resumo, a sexualidade humana pressupõe liberdade,

diversidade, respeito e tolerância. E a livre expressão dessa

sexualidade deve ser reconhecida e garantida como um direito

fundamental, da pessoa humana - indisponível e exigível.

Mas, que tem essa questão da sexualidade de todas as cidadãs

e de todos os cidadãos com este evento, já que nosso enfoque

neste III Congresso Mundial se concentra sobre crianças

e adolescentes? A pergunta tem realmente sentido, vez que, em

nossas refl exões e ações, tradicionalmente o reconhecimento dos

direitos sexuais de crianças e adolescentes discrepa de certa forma

de tudo isso dito até agora; como se aquilo apresentado atrás só

valesse para os direitos sexuais dos adultos. Enquanto isso os

direitos sexuais de crianças e adolescentes continuam marcados

pela excepcionalidade e pela ideia de tutela e dominação, não

NÃO-CRIMINALIZAÇÃO & IMPUNIDADE. SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS HUMANOS.i

WANDERLINO NOGUEIRA NETO*

“Necessita-se, pois de um Direito emancipador e não meramente regulador. Em resumo, a sexualidade humana pressupõe liberdade, diversidade, respeito e tolerância. E a livre expressão dessa sexualidade deve ser reconhecida e garantida como um direito fundamental, da pessoa humana - indisponível e exigível.”

i O presente texto foi apresentado no III Congresso Mundial contra a Exploração Sexual de Crianças, realizado no Rio de Janeiro, em novembro de 2008, promovido pelo UNICEF, Childhood (Fundação WCF – Suécia), ECPAT, Comitê dos Direitos da Criança da ONU, NGO Group for the CDC e Governo Brasileiro. Essa fala do Autor integrou o Painel 2 sobre “Marco Legal e Responsabilização” e versava sobre esse enfoque específi co da “impunidade, não-criminalização e sistema de garantia de direitos humanos”, como programado. Igualmente, foi apresentado no mesmo período no I Congresso Brasileiro contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, realizado simultaneamente.

Page 33: Alexandre Morais - redução maioridade penal

35

lhes reconhecendo os adultos medianamente, esses seus

direitos sexuais, como Direitos Humanos que são. Essa condição

de ser-histórico, de sujeito de direitos, não tem tido efeitos práticos

no campo da sexualidade, onde as discussões e intervenções

públicas ainda continuam hegemonicamente adultocêntricas.

Com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança,

crianças e adolescentes tiveram explicitada sua condição de titulares

dos direitos enunciados naquela Convenção e explicitada mais

a obrigação dos Estados-Partes de assegurarem a aplicação desses

direitos a cada criança e adolescente, sujeitos a sua jurisdição (CDC-

art. 2-1). Nesses termos, são cidadãos livres como os adultos, mas

com o exercício dessas liberdades condicionado a certos fatores

e condições, isto é, com sua capacidade do exercício de quaisquer

dos seus direitos, limitados estritamente pela lei. A CDC, por exemplo,

reconhece o direito de livre expressão de opiniões de crianças

e adolescentes e a consequente obrigação dos Estados-Partes de

levarem em consideração essa opinião; mas condiciona o exercício

desse direito de participação a sua “capacidade de formular seus

próprios juízos” e ao seu grau de “maturidade” (art.12-1 – CDC).

Assim, a proteção integral a esse direito à sexualidade de crianças

e adolescentes deve ser considerada como uma proteção ao

seu direito à vida, competindo aos Estados-Partes assegurarem

ao máximo a “sobrevivência e o desenvolvimento da criança”

(CDC – art.6 -1-2) e adotarem medidas apropriadas para “protegê-

las contra todas as formas de abuso e exploração sexual” (CDC

– art.34 – 1). Considerando-se assim que os direitos sexuais de

crianças e adolescentes têm o seu exercício limitado pelo seu grau

de desenvolvimento bio-psico-social, há que se colocar, mesmo

assim, essa sexualidade como um direito e regulá-la de maneira

emancipatória e não meramente repressora. Isso porque a criança

e o adolescente, para efeito da garantia dos seus direitos

fundamentais, não deixam de serem cidadãos. Para se assegurar

a liberdade de consentir, no campo sexual, de qualquer criança

ou adolescente (no campo das variadas expressões possíveis de sua

sexualidade, para além da restrita genitalidade), o Estado e o Direito

devem proteger esses cidadãos dos “vícios de consentimentos”,

isto é, das formas violentas, fraudulentas, enganosas, indutoras

e exploratórias de consecução do seu consentimento, por

outrem. As expressões diversifi cadas da sexualidade da criança

e do adolescente, que teimamos em reduzir a uma mera sexualidade

genital, só podem ter limites na norma jurídica, no Direito.

E nunca limitadas pelo arbítrio do magistrado e do gestor público,

por exemplo, e pelos nossos preconceitos morais e sociais,

religiosos, culturais.

Essa intervenção estatal nesse campo da sexualidade só será legítima

– ética e socialmente – para garantia do direito correspondente,

para sua proteção de relação a abusos contra o direito e para a

responsabilização dos violadores, abusadores e exploradores. Em

favor, pois, da sua liberdade e da sua dignidade, da sua vida e da

sua saúde: nunca em prol dos “bons costumes”, da “moral pública”,

como estúpida e anacronicamente prevê a legislação penal de vários

países (inclusive a brasileira, em reforma), contrariando os novos

paradigmas ético-jurídicos, que garantem a igualdade de direitos de

mulheres, crianças e adolescentes – as maiores vítimas dessa visão

machista, adultocêntrica e conservadora da legislação penal, que

impera em boa parte dos nossos países.

Em resumo, os marcos legais nacionais, no Mundo, a respeito

dos direitos sexuais infanto-adolescentes, particularmente no

campo da legislação penal, deverão merecer uma profunda e

ampla revisão, sempre que se colocar a proteção legal dos

direitos sexuais de crianças e adolescentes e o combate contra as

diversas formas de abusos e explorações sexuais, na perspectiva

dos Direitos Humanos, como posto na normativa internacional

vigente à qual esses marcos legais nacionais deverão

urgentemente se adequar de maneira verdadeiramente radical,

sem reservas que atinjam os princípios básicos dessa normativa

internacional. E em decorrência disso, é preciso que se faça

com que o superior interesse de crianças e adolescentes

prevaleça sempre, considerando-se, porém, o respeito e

a consideração a sua opinião, no grau de sua maturidade,

como balizador da defi nição desse superior interesse, pois

não deve fi car ao arbítrio das agências públicas e dos seus

agentes defi nirem o que corresponde ou não a esse interesse

maior da criança e do adolescente, sem que se garanta esse

direito à participação ativa de crianças e adolescentes. Não

foi à toa, que na Reunião Preparatória para o III Congresso

Mundial contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescente,

realizada em Buenos Aires, crianças, adolescentes e jovens ali

reunidos assim declaram: “Nosotros, adolescentes y jóvenes

de América Latina – basados en las necesidades e inquietudes

de todos los adolescentes y jóvenes de América Latina en

cuanto a su escaza participación dentro de los procesos en

contra de la explotación sexual comercial de niños, niñas y

adolescentes – declaramos que (….)”. E aí eles fi zeram um

precioso reconhecimento: “Entienda-se la participación activa

y efectiva de niños, niñas, adolescentes y jóvenes, generadora

de impacto y cambios, como un derecho fundamental que

nos compete a todos y en defensa de los derechos

fundamentales de niños, niñas, adolescentes y jóvenes y en

especial el derecho a la protección ante la explotación

sexual comercial, hemos coincidido en afi rmar los siguientes

puntos como claves para el desarrollo por un cambio

efectivo y real (..)”

É preciso que se faça uma mudança estratégica na ordem das

nossas duas táticas e metodologias de atuação tradicional:

• Preliminarmente, importante se torna promover direitos

sexuais, na forma do que foi dito até agora, isso signifi ca

que em primeiro lugar privilegiemos práticas e discursos

justifi cadores mais afi rmativos;

• Consequentemente, se torna importante proteger esses

direitos sexuais e defendê-los contra todas as formas

de negação, de violação ou ameaça a esses direitos

sexuais e, com um discurso. uma prática de redução

de dano, complementando esse anterior discurso

e prática positivos, necessário se torna que combatamos

toda a sorte de violências, explorações, discriminações,

negligências, opressão.

Estrategicamente isso tem muito sentido, pois recoloca

no centro das nossas atenções a própria criança, o próprio

adolescente, enquanto pessoa e titular de direitos humanos,

em favor de quem se quer combater as formas diversas

de exploração sexual e não tanto o agressor sexual, em

caráter individual.

Page 34: Alexandre Morais - redução maioridade penal

36

A criminalização como uma das possíveis respostas do

estado à violação dos direitos sexuais. A impunidade funcional

e a estrutural

Mas aqui, neste enfoque, se vai tratar inicialmente das possibilidades

de enfrentamento dessas inúmeras formas de violações dos

direitos sexuais infanto-adolescente e dos obstáculos que surgem

nesse processo. Especialmente aqui irá focar-se num desses

obstáculos: a chamada impunidade dos agressores sexuais ou,

mais especifi camente ainda, dos exploradores sexuais e clientes,

no seu processo de responsabilização, através da criminalização

deles pelo Estado. Em outro painel neste Congresso Mundial,

a promoção dos direitos sexuais através das políticas públicas

terá seu devido espaço. Apontada a impunidade no processo de

criminalização como um sério desafi o a ser enfrentados por todos

nós, o Mundo necessita construir estratégias para vencer esse

obstáculo que nos desafi a e esboçar saídas tais como:

A) Abertura de um leque maior de campos e níveis de

responsabilização desses agressores sexuais, para além da

responsabilização pela criminalização, sem prejuízo desta;

B) Colocação da responsabilização individual desses

agressores sexuais, no campo maior da responsabilização

ampliada estatal e social (accountability);

C) Inserção dessas duas formas de responsabilização sócio-

estatal e individual, dentro de um sistema integrador

de normativas e mecanismos de garantia de direitos

humanos.

A partir disso, enfrentemos essa questão da responsabilização, da

criminalização e da impunidade, conhecendo melhor a situação

posta de relação à garantia dos Direitos Humanos de crianças

e adolescentes:

A) Em primeiro lugar, a expressão tão usada de

“responsabilização de abusadores e exploradores

sexuais”, no sentido restrito de sua criminalização-

penalização, deve merecer uma revisitação do seu

conceito e da sua aplicação, para se colocar a expressão

“responsabilização”, ampla e primeiramente no seu

sentido próprio, no campo do Direito Internacional dos

Direitos Humanos: ou seja, o Estado igualmente precisa

ser responsabilizado (“accountability/responsibility”),

tanto pela promoção dos direitos sexuais de crianças

e adolescentes através de políticas públicas intersetoriais

realmente efetivas, quanto pela proteção legal desses

direitos, através do sancionamento (amplo!), dos

abusadores e exploradores sexuais. O Estado é chamado

a dar uma resposta, (“answerability”) à qual está obrigado

e pela qual é responsável, diante da ordem interna

e mundial, diante das situações de explorações sexuais.

E se obriga mais a cobrar, derivadamente, respostas dos

agressores sexuais e a responsabilizá-los, por sua vez.

O Estado precisa ser chamado a se responsabilizar pela

garantia dos direitos sexuais de crianças e adolescentes

e a combater todas as formas de violações desses direitos.

É chamado a reconhecer suas obrigações e ele se expõe,

se arrisca a sofrer sancionamentos morais, econômicos,

políticos – desde o mero “envergonhamento público”

diante da comunidade internacional (e comunidade

nacional, por que não!?), com a leitura dos relatórios,

onde sejam apontados por algumas formas de violações

de direitos sexuais ou diretamente ou de acumpliciamento

com outras formas sem suas providências devidas. Até

outras sanções, restrições, embargos, mais gravosos.

B) A partir dessa sua originária e preliminar responsabilização,

o Estado criminaliza-penaliza esses agressores sexuais,

como uma das formas derivadas de responsabilização

jurídica possível dos referidos agressores sexuais, através

de suas agências judiciais e policiais. Contudo, há que

se reconhecer que essa criminalização-penalização do

agressor sexual (explorador/cliente) não é a única resposta

do Estado ao “ato injusto” desse agressor sexual. E talvez

nem sempre a mais efetiva, efi caz e efi ciente, diante da cada

vez mais desmascarada “deslegitimação do direito penal”,

por sua manifesta seletividade classista, racista, machista

etc. E por sua baixa efetividade, de relação à prevenção e

repressão ao crime, as estatísticas mostram o baixo poder

intimidatório da sanção penal, no mundo moderno.

Quando da Consulta Nacional Preparatória para o III Congresso

Mundial contra a Exploração de Crianças e Adolescentes, realizada

em Brasília, no mês de outubro de 2008, em síntese diziam

os participantes, a respeito dessa matéria: “É preciso dar um

breque nesse discurso que faz a multicitada ‘responsabilização’

ser confundida exclusivamente com criminalização / penalização,

provocando a ‘volúpia punitiva’ de muitos de nós. A indignação

da sociedade é importante, no entanto é preciso construir outros

parâmetros na forma desta sociedade reagir, superando a égide

pura e simples da justiça penal, punitiva e coercitiva, acrescentando

a perspectiva multidisciplinar para garantir a proteção integral.

Existe ainda a necessidade de requalifi car a noção de vítima,

recuperando as dimensões de sujeito e de sua integralidade.

Para tanto se fazem necessárias soluções sistêmicas e alternativas

para todos os envolvidos”.

Em oposição franca a esse posicionamento ímpar, colhido da

Reunião Preparatória citada, constata-se ainda, na média da

opinião pública, uma forte defesa monocórdica da criminalização-

penalização dos agressores sexuais e o repúdio passional

a sua impunidade. E esse entendimento médio parte da ideia

de que o sistema penal, em si mesmo, é “legitimo e efi caz”

e de que a impunidade ocorrente é disfuncional, a ser combatida

com leis penais mais draconianas e uma justiça mais efetiva em

produzir condenações. E que, portanto, a impunidade nasce

apenas de fatores conjunturais, em nossos países, isto é, ou da

insufi ciência da regulação legal ou do mau funcionamento das

agências judiciais ou de ambas. E, isso vencido, se conseguiria

quebrar o chamado “ciclo perverso da impunidade”, no caso da

exploração sexual de crianças e adolescentes. Mas, será mesmo

que o sistema penal, especialmente no tocante à criminalização-

penalização individualmente dos exploradores sexuais de

crianças e adolescentes, depende apenas do aperfeiçoamento

das leis penais e do sistema de Justiça Penal? Primeiro, para

dar conta dessa complexidade de fatores, torna-se importante

aprofundarmos nossas leituras e refl exões a respeito do que, hoje,

no Mundo se chama de “processo de deslegitimação do sistema

penal-penitenciário”: Eugênio Raul Zaffaroni e Emilio Garcia

Mendes (Buenos Aires), Nilo Batista e Carlos Nicodemos (Rio de

Janeiro), Elias Carranza (São José da Costa Rica), Alessandro

Barata (Saarbrucken), Rosa Del Olmo (Caracas), Lola Anyar de

Page 35: Alexandre Morais - redução maioridade penal

37

Castro (Maracaibo), Louk Husman (Roterdão), Manuel de Rivacoba

y Rivacoba (Córdoba), Eduardo Novoa Monreal (Santiago), Antonio

Beristein (São Sebastião – País Basco). Atualmente esses autores

e outros tantos põem em duvida décadas e décadas de segurança

na resposta penal tradicional, enquanto alguns outros juristas

penalistas clássicos procuram o aperfeiçoamento funcionalista

e conjuntural dessa resposta penal e o combate à impunidade

dentro desse panorama também conjuntural e funcionalista:

culpam as leis vigentes e os agentes judiciais e policiais, pela baixa

efetividade da resposta penal, sem reconhecer esse fenômeno da

deslegitimação do sistema penal, em si. Contudo, sem sucesso,

estes últimos, quando se analisa mais profundamente a situação

da prevenção e repressão aos delitos e a partir dela tenta-se

construir cenários mais favoráveis à efi ciência e efi cácia dessa

resposta penal, que cada vez mais surge como uma “infl ição de

dor sem sentido”, ou seja, “penas carentes de racionalidade” – no

dizer de Eugênio Zaffaroni.

Mas nesse caso, como nos posicionaríamos no tocante

ao enfrentamento dos crimes de exploração sexual desse

segmento, mais especifi camente? Abolindo-se de imediato

e completamente a resposta penal aos agressores sexuais?

Eliminando-se as leis penais a respeito? Extinguindo-se essas

agencias judiciais? Óbvio que não! Seria uma insensatez, no

estágio atual da sociedade humana. Mas, necessitamos encontrar

uma resposta alternativa e estratégica que dê novas respostas

do Estado à exploração sexual de crianças e adolescentes,

modernizando-se o processo de responsabilização jurídica desse

tipo de agressor sexual, de logo se a distinguindo, por exemplo,

do abuso sexual, que tem uma conotação mais individualista

que a exploração sexual. Preliminarmente, há que se partir dessa

desconstrução da resposta penal, como a única, a salvífi ca,

a mais poderosa, a mais legítima. E assim, constaremos nesse

desvelar imprescindível da deslegitimidade da resposta penal:

todos os sistemas penais apresentam características estruturais

de seu exercício de poder, que desconstroem como ideológicos

e falseantes o discurso jurídico-penal tradicional retributivista.

E por constituírem essas características marcas intrínsecas de sua

essência, não podem elas ser eliminadas, sem a supressão dos

próprios sistemas penais.

Essas não são características conjunturais e sim estruturais do

exercício de poder de todos os sistemas penais:

A) A sua seletividade perversa e ideológica,

B) A reprodução interna no próprio sistema penal repressor

da violência praticada pelo criminoso contra ele próprio,

C) A criação de novas e melhores condições para

a reincidência,

D) A corrupção intrínseca e institucionalizada do próprio

sistema penal-penitenciário e

E) A destruição das relações comunitárias, por exemplo.

A possibilidade desse tipo de resposta penal e de sistema penal

serem substituídos por um Direito Penal de Garantia, um Direito

Penal Mínimo e uma Justiça com resultados restaurativos pode

ser no momento uma estratégia, um caminho que leve a garantir

uma mais efi ciente e legítima resposta estatal ao fenômeno dos

delitos (no caso nosso aqui, dos crimes sexuais contra crianças

e adolescentes) – uma resposta estatal que neutralize (ou mascare

pelo menos...), ao máximo, essas características essenciais

da resposta penal retributivista. Se atuarmos na perspectiva

dos Direitos Humanos – ao mesmo tempo em que se pune

o delinquente, também se o reconhece como pessoa humana,

com direitos fundamentais, com respeito mínimo a sua dignidade.

A demonização do delinquente sexual só serve ao modelo de

sociedade e de Estado fi rmado na vingança, na “volúpia punitiva”

alienadora da população e na reprodução da violência, em um ciclo

macabro e inacabável. E negatória inclusive do marco dos Direitos

Humanos. Contudo, denunciar simplesmente esse discurso

jurídico penal como falseante, ideológico e deslegitimado, sem

buscar alternativas com capacidade de alteridade, nos faz correr

o risco também de privar-nos do único instrumento disponível para

a defesa dos direitos humanos de alguns segmentos sociais, mais

susceptíveis de serem alcançados pela malha seletista do sistema

penal. Para a defesa dos “suspeitos”, dos presumidamente

criminosos, mesmo que depois inocentados das falsas denúncias.

Ação seletiva, ideológico-fascista e controladora higienista

baseada em pseudocientífi cos critérios, ou perfi s inconsistentes

de natureza psicológica ou psiquiátrica, que buscam ver em todos

os criminosos sexuais contra crianças e adolescentes, por tudo,

“pedófi los”, de maneira generalizadora e alienadora, ignorando de

má-fé ou por ignorância, o sentido mórbido-compulsivo e perverso

dessa parafi lia. Desse modo, submeter-se a ação criminalizadora

do Estado a normas processuais e a uma agência judicial

é melhor que deixá-la fora desse sistema, dessas normas, dessas

agências, isto é, entregue só às outras agências estatais, onde

a violência seletiva seria maior e descontrolada. Isso porque

o poder seletivo do sistema penal elege alguns candidatos

preferenciais à criminalização, mesmo no caso dos exploradores

sexuais de crianças e adolescentes, e desencadeia o processo

de sua criminalização, submete-os a esse processo sob direção

e controle da agência judicial que pode autorizar o prosseguimento

da ação criminalização já desencadeada pelo sistema de segurança

pública e, por fi m, a privação da liberdade de tal “selecionado” pelo

sistema penal. A seleção é feita em função da pessoa, o candidato

é escolhido a partir de um estereótipo – pobres, negros, indígenas,

jovens, desempregados, por exemplo. Por sua vez, fi ca difícil serem

“selecionados”, nesse processo de criminalização-penalização,

os integrantes da elite econômica, política, cultural de nossos

países: por exemplo, vice-governadores, prefeitos, parlamentares,

juízes, empresários, sacerdotes, policiais.

E essa seletividade classista e racista tem raízes históricas,

no Brasil, por exemplo. No período Colonial, no Brasil, no

regime das Capitanias Hereditárias, o poder de condenar

à morte pessoas despidas de qualidade superior, sem apelo, foi

conferido a Governadores e Ouvidores de diversas Capitanias,

paulatinamente, com a criação de Juntas de Justiça. O objetivo

era acabar com a dita “impunidade” que, se dizia, grassava,

à época. A Carta Régia que concedeu esta jurisdição às

autoridades da Capitania de Minas Gerais, em 1731, por exemplo,

justifi cou a medida pelos “muitos e continuados delitos que se

estão fazendo [...] por bastardos, carijós, mulatos e negros”

porque “não viam o exemplo de serem enforcados”. Outro traço

revelador da impunidade decorre do tratamento diferenciado dos

segmentos sociais, no Império do Brasil, o que seria percebido

por outro viajante, Johann Jakob von Tschudi, que, interessado

no estado das Colônias Suíças, no Brasil, visitou o país na década

Page 36: Alexandre Morais - redução maioridade penal

38

de 1860. Escreve ele: “(...) quantas vezes aconteceu no Brasil

que um homem rico e infl uente tivesse sentado no banco dos

réus a fi m de se justifi car de seus crimes?” Os exemplos dessa

seletividade igualmente estão manifestos, atualmente, quando se

analisa as consequências das diversas Comissões Parlamentares

de Inquérito sobre Abuso e Exploração Sexual, realizadas,

no Brasil, por exemplo, pelo Congresso Nacional e pelas

Assembleias Legislativas dos Estados-Federados, ali se constata

a tendência à impunidade dos poderosos quando apontados

como agressores sexuais.

Não são apenas meros problemas conjunturais, defeitos produzidos

pela falta de um perfeito aparato legal e pela má funcionalidade

do sistema penal, em países subdesenvolvidos como o nosso,

a serem superados com o mero aperfeiçoamento das leis penais

e das agências judiciais e de segurança, num espírito puramente

positivista legal e equipamentalista e patrimonialista no nível

administrativo-institucional. É uma questão estrutural, igualmente.

Ao lado dessa impunidade conjuntural real também contra a qual

devemos lutar igualmente, há que se reconhecer também uma

impunidade estrutural, que diz respeito ao que se chamou antes

de “deslegitimação do sistema penal” tradicional, meramente

retributivista. Além da criminalização-penalização do agressor

sexual, importa que se aprofundem mais as possibilidades

de responsabilização judicial de natureza civil, administrativa,

disciplinar, política desse explorador/cliente sexual, somada às

possibilidades de responsabilização meta-judiciais e de restauração

pela mediação e outras de atendimento público, por exemplo, no

campo da saúde mental. E além do mais, igualmente, nesses

casos de violência sexual, se deve assegurar um efi ciente e efi caz

monitoramento e avaliação (= controle), tanto das intervenções

judiciais (“acesso à justiça”), quanto desse atendimento direto

pelas políticas públicas, administrativamente, pelos órgãos de

controle externo competentes.

Sistema de garantia de direitos humanos de crianças e

adolescentes no Brasil e no Paraguai, exemplifi cativamente

Todos os nossos países necessitam institucionalizar uma maneira

sistêmico-holística que consiga fazer com que, tanto a promoção

preliminar dos direitos sexuais de crianças e adolescentes, quanto

a proteção desses direitos (via responsabilização), sejam encaradas

de maneira multidisciplinar, multissetorial, multiprofissional

e multicultural. A multissetorialidade (ou intersetorialidade, quando

possível!) sozinha não consegue dar conta, sem preliminarmente

essa multidisciplinaridade no enfoque. O enfrentamento de

questões como a da exploração sexual infanto-adolescente, pelos

Sistemas de Políticas Públicas (educação, saúde, assistência

social, cultura, segurança pública etc.) e pelo Sistema de Justiça

(varas judiciais, promotorias de justiça, defensorias públicas

e outras procuraturas sociais, equipes técnicas judiciais) há que ser

posto amplamente numa “ambiência sistêmica”, isto é, no seio de

uma concertação sistêmica pela promoção e proteção dos seus

Direitos Humanos. Ou pelo menos, minimamente, no ambiente de

um “sistema de garantia de direitos”, a ser institucionalizado em

nossos países, como mais conveniente for.

Esse tem sido o esforço, nos tempos atuais, por exemplo, da

Organização das Nações Unidas - ONU e de suas agências

e organismos, como o Unicef, a OIT, a Unesco, a OMS.

E, para tanto em nível global, regional e nacional, essa “ambiência

sistêmica” tem ganhado reforço na explicitação de seu desenho,

na potencialização de suas instâncias de poder e serviço,

chegando a bons níveis de institucionalização. Por exemplo, mais

que um “sistema organizacional”, na verdade, o Sistema ONU de

Promoção e Proteção de Direitos Humanos tem se conformado

a esse modo de pensar e agir sistêmico, explicitando-se como

espaço público estratégico de articulação e de integração de

variados instrumentos normativos e de outros tantos mecanismos

de exigibilidade de direitos humanos, de modo complementar,

tanto para os povos em geral, como especifi camente para

o público infanto-adolescente (e para outros grupos vulnerabilizados).

O espaço emblemático na ONU onde essas ideias e práticas mais

se sobrelevam tem sido o Comitê dos Direitos da Criança do Alto

Comissariado para os Direitos Humanos, ao exercer seu papel

importante de controle internacional sobre as ações dos Estados-

Partes da CDC de promoção e proteção dos direitos fundamentais

da pessoa humana com menos de 18 anos – isto é, crianças

e adolescentes.

Nesse mesmo sentido antes exposto, por exemplo, caminha

o Brasil, com a construção e formulação do seu chamado “Sistema

de Garantia dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes”

e com a sua paulatina institucionalização, por força da Resolução

nº 113/2006, editada pelo Conselho Nacional dos Direitos

da Criança e do Adolescente - Conanda. Trata-se mais de ato

normativo regulador a partir de uma interpretação extensiva da

legislação nacional vigente e de uma transposição dos modelos

internacional e regional (interamericano). Esse sistema holístico

estratégico nasce muito mais diretamente do espírito da Convenção

do que propriamente da lei nacional que aprovou o Estatuto da

Criança e do Adolescente.

Para tornar mais visível esse sistema estratégico de promoção

e proteção de direitos humanos de crianças e adolescentes no

Brasil, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente

- Conanda, órgão público paritário entre governo e sociedade

civil, em sua Resolução nº 113/2006 instituiu parâmetros para

a institucionalização desse Sistema de Garantia de Direitos, onde

ele é defi nido assim: “O Sistema de Garantia dos Direitos Humanos

da Criança e do Adolescente constitui-se na articulação e integração

das instâncias públicas governamentais e da sociedade civil, na

aplicação de instrumentos normativos e no funcionamento dos

mecanismos de promoção, defesa e controle para a efetivação

dos direitos humanos da criança e do adolescente, nos níveis

Federal, Estadual, Distrital e Municipal. Esse Sistema articular-

se-á com todos os sistemas nacionais de operacionalização

de políticas públicas, especialmente nas áreas da saúde, educação,

assistência social, trabalho, segurança pública, planejamento,

orçamentária, relações exteriores e promoção da igualdade

e valorização da diversidade”.

De maneira muito mais explícita, posteriormente, o Paraguai, em

seu próprio “Código de la Niñez y La Adolescencia” (lei nº 1680/2001),

instituiu um “Sistema Nacional de Protección y Promoción Integral

de los Derechos de La Niñez y Adolescencia” (artigo 37), muito

próximo do modelo brasileiro, porém mais sistematizado no texto

da própria lei nacional de adequação à Convenção sobre os Direitos

Page 37: Alexandre Morais - redução maioridade penal

39

da Criança. E lá está no citado Código, a se reconhecer esse Sistema

como “(...) competente para preparar y supervisar la ejecución

de la política nacional destinada a garantizar la plena vigência

de los derechos del niño e del adolescente (...)”. E estabelece mais

o Código paraguaio que esse Sistema é integrado em especial

por três instâncias mais protagônicas, em seu seio: a “Secretaria

Nacional de la Niñez y la Adolescencia”, o “Consejo Nacional de

la Niñez y Adolescencia” (mais os “Consejos Departamentales

y Municipales”) e as “Consejerias Muncipales por los Derechos Del

Niño, Niña y Adolescente” - Codeni. De se destacar no modelo

paraguaio, como grande avanço, a previsão legal da presença,

compondo esses conselhos, de “organizaciones de niños” dos

Departamentos e dos Municípios.

Diante destas constatações, principalmente no campo da

sexualidade infanto-adolescente, falar-se hoje em direitos humanos

de criança e adolescentes tem um sentido mais profundo do que

se imagina, pois ao se acentuar a vinculação desse segmento

da população aos instrumentos normativos e aos mecanismos,

internacionais e nacionais, de promoção e proteção de direitos

humanos. Signifi ca afastar-se a tentação de desvincular

o movimento de luta pela emancipação de crianças e adolescentes,

de relação ao movimento maior pela emancipação dos cidadãos,

especialmente dos “dominados e subalternizados”: empobrecidos,

mulheres, negros, sem-terra, sem-teto, homossexuais, transexuais,

índios, defi cientes, soropositivos, prostituídos, marginalizados,

delinquentes etc. Quando se fala em direitos humanos geracionais

(crianças, adolescentes, jovens e idosos) se quer acentuar

a substantividade dessa condição, isto é, acentuar a essencialidade

humana de crianças e adolescentes, ancorada nos princípios da

dignidade, da liberdade e do direito. E se quer – além do mais –

que, à essa luta pelo respeito a sua essencialidade humana, se alie

também a luta pelo reconhecimento, respeito e potencialização

da sua identidade geracional. Desse modo, importante torna-se

colocar as situações de vulnerabilidade, de risco, de exclusão,

de marginalização, de confl ito com as normas, como meras

adjetivações circunstanciais, conjunturais e não essenciais.

Mesmo reconhecendo que “crianças, vivendo sob condições

excepcionalmente difíceis” necessitam de “consideração especial”

(CDC – Preâmbulo), a essencialidade delas como pessoas

humanas vem em primeiro lugar, com o reconhecimento da

“dignidade inerente e dos direitos iguais de todos os membros

da família humana” (CDC – in ibidem). “Todos os membros da

família humana”, sem excluir, portanto, crianças e adolescentes

dessa essencialidade. Esse lócus dos direitos humanos traz uma

resignifi cação da criança e do adolescente como ser-autônomo,

em processo de emancipação e de potencialização do seu

desenvolvimento, como co-sujeitos no processo de proteção

integral a suas necessidades, a seus interesses e a seus desejos,

vistos como direitos seus exigíveis e como responsabilidade do

Estado e da sociedade.

Indicações

Para se enfrentar a questão da impunidade estrutural

e conjuntural nos processos de responsabilização derivada dos

agressores sexuais de crianças e adolescentes, especialmente de

criminalização-penalização, aqui são apresentadas as seguintes

indicações, fi rmadas no pensamento da Anced e da ABMP:

A) Redefi nição dos atuais marcos normativos nacionais,

em todo o mundo, para que sejam mais explicitamente

fundados nos paradigmas dos direitos humanos,

visando a revisão da estruturação das ações públicas de

proteção legal (defesa) dos direitos sexuais de crianças

e adolescentes, de responsabilização socio-estatal e de

responsabilização individual ampla do explorador sexual,

sem prejuízo da sua estrita criminalização-penalização;

B) Aprofundamento, em consequência, da adequação

normativa penal aos instrumentos normativos

internacionais, sem ressalvas que desvirtuem o espírito

dessa normativa, ampliando sempre e sempre a

ratifi cação de novos instrumentos de direito internacional

que tenham essa base jus-humanitária;

C) Aprofundamento da redefi nição e explicitação do lugar

social da criança e adolescente na sociedade, com

provisões que garantam sua participação de maneira

ativa e impactante nas decisões políticas, com o devido

respeito a sua opinião e consideração dessa opinião,

em conta o seu grau de maturidade, considerando-

se desse modo mais seu direito a uma sexualidade

saudável sem invasões indevidas, com respeito mais

à diversidade sexual;

D) Fortalecimento dos níveis de coordenação e controle

dos sistemas de promoção e proteção (garantia) de

direitos humanos infanto-adolescentes (SGD), autônoma

e conjuminadamente, sem concorrências, suprindo

lacunas institucionais e programáticas;

E) Reconhecimento e construção de uma maior diversidade

dos meios procedimentais de defesa de direitos de crianças

e adolescentes em situação de violência sexual, como

a busca de resultados restaurativos e outras formas mais

amigáveis de atuação jurídico-judicial e extra-judiciais.

E, por fi m, no trato específi co da questão da responsabilização,

no tocante à garantia dos direitos sexuais infanto-adolescentes

e à criminalização dos agressores sexuais individualmente,

importante que se leve em conta as seguintes considerações:

A) Em primeiro lugar, a expressão tão usada de

“responsabilização de abusadores e exploradores

sexuais”, no sentido restrito de sua criminalização-

penalização, deve merecer uma revisitação do seu

conceito e da sua aplicação, para se colocar a expressão

“responsabilização”, ampla e primeiramente no seu

sentido próprio, no campo do Direito Internacional dos

Direitos Humanos: ou seja, o Estado igualmente precisa

ser responsabilizado (“accountability/responsibility”),

tanto pela promoção dos direitos sexuais de crianças

e adolescentes através de políticas públicas intersetoriais

realmente efetivas, quanto pela proteção legal desses

direitos, através do sancionamento (amplo!), dos

abusadores e exploradores sexuais.

B) O Estado é chamado a dar uma resposta, (“answerability”)

à qual está obrigado e pela qual é responsável, diante

da ordem interna e mundial, diante das situações

de explorações sexuais. E se obriga mais a cobrar,

derivadamente, respostas dos agressores sexuais

e a responsabilizá-los, por sua vez. O Estado precisa ser

chamado a se responsabilizar pela garantia dos direitos

Page 38: Alexandre Morais - redução maioridade penal

40

sexuais de crianças e adolescentes e a combater todas

as formas de violações desses direitos. É chamado

a reconhecer suas obrigações e ele se expõe e se arrisca

a sofrer sancionamentos morais, econômicos, políticos

- desde o mero “envergonhamento público” diante da

comunidade internacional (e comunidade nacional, por

que não!?), com a leitura dos relatórios, onde sejam

apontados por algumas formas de violações de direitos

sexuais ou diretamente ou de acumpliciamento com

outras formas sem suas providências devidas. Até outras

sanções, restrições, embargos, mais gravosos.

C) A partir dessa sua originária e preliminar responsabilização,

o Estado criminaliza-penaliza esses agressores sexuais,

como uma das formas derivadas de responsabilização

jurídica possível dos referidos agressores sexuais, através

de suas agências judiciais e policiais. Contudo, há que

se reconhecer que essa criminalização-penalização do

agressor sexual (explorador/cliente) não é a única resposta

do Estado ao “ato injusto” desse agressor sexual. E talvez

nem sempre a mais efetiva, efi caz e efi ciente, diante da

cada vez mais desmascarada “deslegitimação do direito

penal”, por sua manifesta seletividade classista, racista,

machista etc. E por sua baixa efetividade, de relação

à prevenção e repressão ao crime, as estatísticas

mostram o baixo poder intimidatório da sanção penal,

no mundo moderno.

Há que se ousar, inovar, aprofundar, criar nova ordem mundial.

E, como diz o nosso cantor Caetano Veloso, é preciso reconhecer:

“Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem,

apenas sei de diversas harmonias bonitas, possíveis – sem juízo

fi nal”. E por isso eu digo, com ele, com todos vocês, construindo

essas novas harmonias possíveis: “....alguma coisa está fora da

ordem, fora da ordem mundial...”.

*WANDERLINO NOGUEIRA NETOProcurador de Justiça (aposentado) do Ministério Público da Bahia e membro da Anced- Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente– DNI - Defensa de los Niños Internacional / Seção Brasil - Grupo Temático de Monitoramento da Convenção sobre os Direitos da Criança.

Page 39: Alexandre Morais - redução maioridade penal

41

Apesar do Brasil ser signatário da Carta das Nações Unidas de 1945

e da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, 2008

foi um ano para se entristecer, já que completamos importantes

marcos como a maioridade legal do ECA e da Convenção sobre

os Direitos da Criança, 20 anos da Constituição Democrática do

Brasil e da criação do importante Centro de Defesa dos Direitos da

Crianças e dos Adolescentes - CEDECA-Dom Luciano Mendes,

sem ver resultados globais de inclusão de toda a população

brasileira em um projeto de nação e de futuro.

Os direitos humanos no Brasil têm sempre vindo a reboque de

pressões internacionais, como foi o caso da abolição. Fomos

o último país do mundo a libertar os escravos, no século XIX, e os

herdeiros de escravos e negros, 120 anos depois, ainda são vistos

como perigosos e com tendência à criminalidade. A Lei Áurea,

em 1888, foi uma lei seca, com apenas dois artigos:

Art. 1°: É declarada extinta desde a data desta

lei a escravidão no Brasil.

Art. 2°: Revogam-se as disposições em

contrário.

Manda, portanto, a todas as autoridades,

a quem o conhecimento e execução da referida

Lei pertencer, que a cumpram, e façam cumprir

e guardar tão inteiramente como nela se contém.

Mas outras providências não foram tomadas,

como aconteceu nos Estados Unidos, que defi niu, após a abolição,

que cada família ganharia um lote de terra para construir sua casa

e plantar, e obrigava os estados a oportunizar escola elementar

para todas as crianças. No Brasil, os ex-escravos fi caram sem

opções e ofertas sociais e educacionais.

A República, proclamada um ano e meio depois, alardeou que iria

instituir uma nova ordem social, baseada em princípios de cidadania

e da igualdade de todos os brasileiros, tirando o Brasil do atraso

da Monarquia. Muitos discursos foram feitos, muitas propostas

apresentadas, mas nenhum deles efetivou direitos sociais para

todos, sem distinção étnica ou religiosa (Leite, 2005).

É bem verdade que houve algumas iniciativas de integração,

esparsas, nesses mais de 100 anos. Uma delas foi com Arthur

Ramos, um etnopsiquiatra (denominação inexistente na época),

que criou no Instituto de Pesquisas Educacionais da Cidade

do Rio de Janeiro (então Distrito Federal), uma seção de

Ortofrenia e Higiene Mental na escola primária, onde analisava

os comportamentos dos alunos de escolas públicas na década

de 1930 e afi rmava que essas “crianças problemas” eram fruto

da própria “civilização e sociedade” brasileiras. Este psiquiatra,

estudioso das culturas e das raças, rejeitava totalmente a chamada

“inferioridade dos negros e sua incapacidade para civilização”,

pensamento comum na época. Para ele a chamada “mentalidade

primitiva” que, segundo as teorias evolucionistas, estaria articulada

com os cultos fetichistas e superstição existentes no sincretismo

religioso do Brasil, registrava-se nas “classes pobres” de qualquer

sociedade. Para o autor, os conceitos de primitivo e arcaico seriam

“puramente psicológicos”, sem relação com a inferioridade racial

(Abreu, in Leite et al, 2008).

A proposta para a Higiene Mental para as escolas, conduzida por

Ramos, era estudar os fatores socioculturais que condicionavam

o comportamentos dessas crianças. Entre as infl uências mais amplas

do meio social, listava os problemas psicológicos que precisavam

ser investigados: “os círculos da família”, os hábitos familiares,

os passeios e a vida matrimonial, os moldes emocionais,

sentimentais e as atitudes em relação

à criança, todos eles responsáveis

pelos seus desajustes psicossociais.

Os adultos, em sua perspectiva, modelavam

a personalidade e o caráter das crianças,

pequenos seres que não eram compreendidos

(Abreu, op.cit.: 135).

Trinta anos se passaram para que houvesse

nova investida governamental a favor das

crianças e adolescentes. No ano de 1961

começam a se confi gurar os direitos sociais

dos “menores” como dever do Estado, seguindo as obrigações

expressas nas convenções internacionais, de 1945 e 48. Isto

ocorre quando a primeira Lei Nacional de Diretrizes e Bases da

Educação – lei que fi cou 13 anos sendo discutida no Congresso

Nacional – é sancionada pelo governo do Presidente João

Goulart. Esta lei defi nia a obrigatoriedade do poder público em

oferecer escola elementar gratuita e laica para as crianças entre

7 e 14 anos, em todo território nacional, explicitando o propósito

de democratização do ensino básico e elementar. O processo da

educação passaria a se basear nos princípios de justiça, dando

a todas as crianças e adolescentes brasileiros, independente

de classe social e etnia cultural, o acesso ao mundo letrado,

dentro dos princípios da igualdade de direitos. Até essa data havia

poucas escolas públicas para educar toda a população brasileira,

e os mestiços, negros e demais descentes da miscigenação

brasileira tinham raras opções para estudo, especialmente o ensino

profi ssionalizante que formaria trabalhadores para o capitalismo

que se vislumbrava a partir do governo JK.

As palavras do defensor da LDB, então deputado Anísio Teixeira,

o qual lutava pela lei desde a década de 1930, descrevem

o sentimento de justiça social do momento:

18 ANOS DO ECA; 19 ANOS DA CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA;20 ANOS DA CONSTITUIÇÃO; 20 ANOS DO CEDECA-DOM LUCIANO MENDES;

60 ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS E 120 ANOS DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA.

LIGIA COSTA LEITE*

“Enfi m, em 1988 a nova Constituição brasileira incorpora, no artigo 227, os direitos constitucionais das crianças e adolescentes brasileiros, colocando-os como alvo de prioridade nacional. Com base neste artigo foi elaborado o Estatuto da Criança e do Adolescente, que nasce com 30 anos de atraso, já que o golpe de 1964 interrompeu o processo de resgate da dívida socioeducacional iniciado com a LDB em 1961 e com 50 anos de atraso das convenções internacionais das quais o Brasil é signatário.”

Page 40: Alexandre Morais - redução maioridade penal

42

Não se pode dizer que a LDB, ora aprovada pelo Congresso,

seja uma lei à altura das circunstâncias em que se acha o país

em sua evolução para constituir-se grande nação moderna

que todos esperamos. Se isto não é, não deixa, por outro

lado, de ser um retrato das perplexidades e contradições

em que nos lança esse próprio desenvolvimento do Brasil.

Afi nal, é na escola que se trava a última batalha contra

as resistências de um país à mudança. (Teixeira, 1962).

Infelizmente, esses novos tempos são interrompidos em 1964,

apenas três anos depois, com as diretrizes da Lei de Segurança

Nacional, quando os direitos de cidadania são abolidos para quase

todos os brasileiros. Para os chamados “menores”, o marco dessa

época é a Funabem, fundada em 1965 para substituir o antigo

Serviço de Assistência ao Menor (SAM). Apesar de um nome

politicamente correto – Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor

–, que anunciava intenções de proporcionar uma política de bem-

estar aos fi lhos da pobreza, a Funabem não mudou as técnicas

utilizadas nos internatos anteriores e os olhos da repressão se

voltaram para abafar vozes diferentes e tirar de cena todos os que

ameaçassem o regime então implantado. Isto porque uma escola

pública, gratuita e laica poderia promover uma educação crítica

e, na interação com o professor, construir a escolaridade singular

para cada aluno, articulando sua cultura com a cultura letrada.

Tudo isso seria um risco ao regime que se implantava.

Ao contrário do caminho que o Brasil vinha trilhando antes de 1964,

o retrocesso social foi enorme, o que fi ca claro pela base doutrinária

da política para os “menores” surgida em pós-64 e intensifi cada

na década de 1970. Esta, por determinações impostas, tratou de

classifi car jovens em razão de sua suposta ou possível “situação

irregular”, o que signifi cou subjugá-los a um juiz que aplicaria, de

acordo com seu juízo, medidas preventivas e terapêuticas. Essas

medidas nada mais eram recolhimento e confi namento deles

em instituições fechadas, sem prazo e condições defi nidas para

o suposto tratamento, que os colocasse em “situação regular”

para o modelo de país previsto. Todo processo de julgamento

era feito sem que o menor pobre tivesse direito de defesa,

o que não acontecia para os jovens das outras classes sociais.

Entendiam as autoridades que uma política correcional, repressiva

e, simultaneamente, assistencialista dentro de internatos,

poderia dar conta de sanear a doença social da pobreza

e do abandono social.

A base legal para isto foi a lei nº 4513/64, que veio a ser o fundamento

do Código de Menores, lei nº 6.697, de 1979, introduzindo

a prisão cautelar – inexistente no Código Penal Brasileiro, mas que

podia ser utilizada sem dó e piedade para os menores de idade

que estivessem nas ruas ou fossem denunciados, mesmo sem

provas, por qualquer “cidadão de direito” (art. 94). Os internatos,

na prática, se restringiram à função de aprisionar os jovens, não

importando o método ali desenvolvido.

Toda essa política social implantada a partir de 1964, intensifi cada

em 1968, culminando com o Código de Menores, baseava-se no

velho mito do Brasil grande e generoso, onde “em se plantando

tudo dá”, mito este que entrou no imaginário social e justifi cava

a pobreza pelas características individuais do povo brasileiro, entre

elas, a “indolência”, que gera a “incapacidade” de o povo “civilizar-se”.

Mito este desmentido em 1930 por Arthur Ramos, mas ainda existente

no Brasil de 2008.

Dentre os pressupostos do período militar estava a ideologia

de que “o trabalho cura” e a meta de salvação nacional deveria

ser instituída. Assim, outra Lei de Diretrizes e Bases para Educação

foi sancionada em 1971, abolindo quase todos direitos obtidos

e a liberdade de ensino existente pela Lei de 1961. Essa nova

lei cria uma educação continuada com o ensino profi ssionalizante

no segundo grau e um suplemento – vale dizer de segunda

categoria – para os mais pobres, defasados em série/idade, que foi

o ensino supletivo e o Mobral. Alegavam na exposição de motivos

que esses últimos teriam a duração de uma década, pois seria

como uma ponte entre o passado e o futuro industrial do país.

A meta era em dez anos alfabetizar e recuperar os estudos

dos brasileiros. Mas, também, podemos dizer que esse

discurso tinha o intuito de abafar as críticas internacionais sobre

o enorme analfabetismo existente no período, que beirava a 60%

da população.

A política social dos militares para os fi lhos da pobreza era racista

e excludente. Começava pelo internamento em instituições

fechadas mantidas pela Funabem e Febem’s, onde recebiam uma

educação para subserviência, sem possibilidades de crescimento

profi ssional, sobrevivência e mesmo prazer (Leite, 1998). Não

havia a intenção de incluí-los na industrialização crescente, até

porque a escolaridade não atendia aos requisitos desta demanda.

Esse pensamento retrógrado, arraigado no imaginário social,

permaneceu – até hoje permanece – em alguns dos que se julgavam

luminares do direito do menor e que encontraram campo fértil para

infl uir nas diretrizes dessas instituições, a partir de 1964.

Outra forma de resolver o problema da existência de crianças

pobres e sem oportunidades, fi m da década de 1960, foi a ideia

de “evitar” o seu nascimento e futuros problemas sociais,

ainda dentro do pensamento da eugenia, que vive adormecido

e desmemoriado no inconsciente nacional. Falava-se em

planejamento familiar, mas o implantado foi um grande programa

de controle da natalidade, com laqueamento de trompas de milhares

de mulheres – jovens muitas delas – com equipes interdisciplinares

de saúde, vindas especialmente dos Estados Unidos. Como

não lembrar no navio Hope que aporta no nordeste em 1968,

área de grande efervescência social e de tradição de militância

popular desde as ligas camponesas lideradas por Francisco Julião

ou da educação popular de Paulo Freire e Moacir de Goes,

então cassados e exilados. Controlar a natalidade de pobres era

controlar o país.

Uma terceira, por assim dizer, política social mais signifi cativa

para aqueles já nascidos e chegados à adolescência foi a do

extermínio. Aqueles considerados excedentes das políticas, e que

ameaçavam o mundo da ordem, estavam destinados a enfrentarem

por si as milícias paralelas que promoviam o extermínio puro

e simples deles. Isso porque os formuladores das políticas sociais,

impotentes por não saber como conter jovens rebeldes e arredios

aos recolhimentos que eram feitos nas ruas, fecham os olhos para

esta prática. Como não lembrar do Mão Branca que assustava

todos os jovens no Rio de Janeiro.

Enfi m, em 1988 a nova Constituição brasileira incorpora, no artigo

Page 41: Alexandre Morais - redução maioridade penal

43

227, os direitos constitucionais das crianças e adolescentes

brasileiros, colocando-os como alvo de prioridade nacional.

Com base neste artigo foi elaborado o Estatuto da Criança

e do Adolescente, que nasce com 30 anos de atraso, já que

o golpe de 1964 interrompeu o processo de resgate da dívida

socioeducacional iniciado com a LDB em 1961 e com 50 anos

de atraso das convenções internacionais das quais o Brasil

é signatário.

Todos sabemos que as leis servem para balizar a conduta dos

cidadãos de um país, dar oportunidades iguais a todos, mas,

no caso do Brasil, quanto mais democráticas e menos elitistas

forem essas leis, menos serão cumpridas ou, quando o são,

acabam escapando em aspectos fundamentais. Sabemos

também que não se faz política sem vontade e dinheiro, no entanto

os recursos que eram aplicados nas antigas Funabem e LBA

não foram alocados para promover as medidas sócio-educativas

determinadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

É importante frisar que em vários artigos do ECA, a criança

e o adolescente são defi nidos em sua condição peculiar de seres

em desenvolvimento não apenas no aspecto físico, mas sobretudo

no psíquico, e por isto têm de ser foco de proteção, pois estão

expostos às infl uências do mundo em que vivem, tanto na ordem

social, econômica, como familiar e comunitária.

O professor Antônio Carlos Gomes da Costa apresenta um

comentário ao artigo 6º do Estatuto, com importante esclarecimento

para aqueles que possam ter dúvidas quando ao espírito legal na

defi nição do desenvolvimento infanto-juvenil:

A afi rmação da criança e do adolescente como pessoas

em condição peculiar de desenvolvimento não pode ser

defi nida apenas a partir de que a criança não sabe, não tem

condições e não é capaz. Cada fase do desenvolvimento

deve ser reconhecida como revestida de singularidade

e de completude relativa, ou seja, a criança e o adolescente

são seres inacabados, a caminho de uma plenitude

a ser consumada na idade adulta, enquanto portadora de

responsabilidades pessoais, civis e produtivas plenas. Cada

etapa é, à sua maneira, um período de plenitude que deve

ser compreendida e acatada pelo mundo adulto, ou seja, pela

família, pela sociedade e pelo Estado (Cury, 2005: 39).

Desenvolvimento sadio implica em qualidade de vida, dignidade da

pessoa humana, em direitos preservados e exercidos pelo Estado

e demais segmentos da sociedade. No entanto, nem todos os

homens públicos e legisladores se preocupam com esses direitos

individuais da criança e do adolescente e eventualmente acabam

“esquecendo” de incluí-los em outras leis, portarias e normas de

assistência. Este é o caso da lei nº 10.216/2001, conhecida como

da reforma da atenção psiquiátrica, que “esqueceu” de legislar

sobre a criança e o adolescente. Este aspecto acabou sendo

relegado às portarias posteriores que contemplam apenas aqueles

com transtornos mentais graves ou incapacitantes, omitindo as

especifi cidades dos demais jovens que vivem riscos psicossociais

e precisam de suporte à sua saúde mental.

Como afi rma Moraes e Mecler (2008):

O atendimento às crianças e adolescentes, na área de saúde

mental, não vem apresentando sintonia ou respeito às normas

legais e o legislador brasileiro não tem observado os novos

parâmetros sobre direitos humanos, em especial o respeito

à preservação do superior interesse da criança e do

adolescente, e não oferecido soluções consentâneas com

a singularidade das pessoas que se acham em fase de

desenvolvimento e representam camada social altamente

vulnerável diante das desventuras sociais e políticas de nosso

país, razão pela qual devemos acolher iniciativas que façam

valer a doutrina da proteção integral a elas. (in Leite et al: 30)

Fica evidente que as instituições destinadas a esconder os

menores, as escolas que nem conseguiram alfabetizá-los e todas

as demais propostas que não conseguiram reprimir a juventude,

nem adestrá-la para servir passivamente a ordem vigente,

fracassaram. Da mesma forma, fracassou a intenção de eliminar

da memória brasileira a existência desse grupo social, pois ele

permanece presente em seus herdeiros, fi lhos e netos. E para

defi nir memória coletiva uso o verbete Memória, da Enciclopédia

Einaudi, escrito pelo historiador francês Jacques Le Goff (1984):

A memória coletiva foi posta em jogo de forma importante

na luta das forças sociais pelo poder. Tornar-se senhores

da memória e do esquecimento é uma das grandes

preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que

dominaram e dominam as sociedades. Os esquecimentos

e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos

de manipulação da memória coletiva. (p.13)

Portanto, resgatar a história que gerou a pesada carga de violência

social, que atinge a todos sem exceção, pobres e ricos, velhos e

jovens nos dias de hoje, é procurar mudar esta realidade, é superar

o silêncio de políticas sociais, que tentaram abafar a existência

de uma juventude sem direitos, a qual acabou se impondo pela

simples presença nas ruas, nos crimes que pratica, nas reações

agressivas que têm diante da violência silenciosa que os atinge,

mais que a todos nós.

Os 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente têm que

festejados com seu cumprimento em todos os seus aspectos, sem

exceção, entendendo que as grandes controvérsias em relação a

esta lei giram em torno da possibilidade do Brasil vir a ser uma

democracia em sua plenitude. A tentativa de manipular a memória

coletiva, felizmente, não atingiu a todos e não há como negar que

o Brasil precisa pagar esta histórica dívida social.

Referências:

- Abreu Martha. “Velhos conceitos e novos debates: ‘crianças

negras’ e ‘crianças problemas’ no pensamento de Nina Rodrigues

e Artur Ramos”. In Leite, L.C.; Leite, M.E.D.; Botelho, A.P. (org.)

Juventude, desafi liação e violência. Rio de Janeiro: Contra Capa

Livraria, 2008.

- Cury, M., Amaral e Silva, A.F., Mendez, E.G. (coordenadores).

Estatuto da Criança e do Adolescente – Comentários jurídicos

e sociais. SP: Malheiros Ed. 2005, 8.ª edição.

- Le Goff, Jacques. “Memória”. in Enciclopédia Einaudi. vol 1,

Memória e História. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda,

Page 42: Alexandre Morais - redução maioridade penal

44

1984. p. 13.

- Leite, Ligia Costa. A razão dos invencíveis – Meninos de rua

e o rompimento da ordem. Rio de Janeiro: Editora UFRJ-IPUB‚

1998.

- ________. Meninos de Rua: a infância excluída do Brasil. São

Paulo: Editora Saraiva/Atual, 2005. 4a. revista e ampliada.

- Leite, L.C.; Leite, M.E.D.; Botelho, A.P. (org.)Juventude,

desafi liação e violência. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria,

2008.

- Moraes, Talvane M. de; Mecler, Kátia. “O estatuto da criança e

do adolescente e a lei da reforma da atenção psiquiátrica: um

ensaio comparativo” In Leite, L.C.; Leite, M.E.D.; Botelho, A.P.

(org.)Juventude, desafi liação e violência. Rio de Janeiro: Contra

Capa Livraria, 2008.

- Teixeira, Anísio. Comentário à Lei das diretrizes e Bases

aprovada em 1961. Diário de Pernambuco, 13-04-1962

*LIGIA COSTA LEITEProfessora do Instituto de Psiquiatria da UFRJ.

Page 43: Alexandre Morais - redução maioridade penal

45

Em 2008, o Brasil comemorou os 120 anos da Abolição da

Escravidão. Não há como deixar de refl etir sobre o sentido

deste fato sem analisar dois conceitos importantes, que marcam

a história dos afrobrasileiros.

O primeiro conceito é o de raça. Este conceito é relativamente

recente, a primeira classifi cação dos homens em raças foi publicada

em “Nouvelle division de la terre par les différents espèces ou races

qui l’habitent” (“Nova divisão da terra pelas diferentes espécies ou

raças que a habitam”), de François Bernier, de 1684, que utiliza

o termo para classifi car a diversidade humana em grupos fi sicamente

diferentes. Séculos depois ressurge na Europa quando, em 1859,

Charles Darwin publica o livro “A Origem das Espécies”. A partir

de estudos realizados em plantas e animais, Darwin desenvolveu

a teoria da seleção natural, segundo a qual na natureza sobrevivem

e dominam as espécies fortes. Nesse sentido existiriam, portanto,

espécies fortes e fracas.

Autores como Joseph-Auguste de Gobineau,

Richard Wagner e Houston Stewart Chamberlain

utilizam a teoria de Charles Darwin para explicar a

sociedade humana (VERARDO, 2006). Concluem

que alguns grupos humanos são fortes e outros

fracos. Os fortes herdariam certos aspectos

que os tornavam superiores e os autorizavam

a comandar e explorar os outros. Os fracos teriam

características que os deixavam “naturalmente”

inferiores e, portanto, “predestinados” a serem

comandados.

As diferenças de tipo físico passaram então a ser utilizadas

para classifi car os seres humanos. Assim basicamente nasceu

a fórmula do racismo, ou seja: humanos de pele escura seriam de

raça inferior; e os humanos de pela clara, de raça superior.

Com base nessas ideias, em 1908 Francisco Dalton, funda, em

Londres, a Sociedade de Educação Eugênica, com o propósito de

defender a manutenção da pureza das raças, a chamada eugenia.

Para ele, era necessário que a raça branca se mantivesse pura,

evitando a mistura das raças.

No Brasil, em 1929, é realizado no Rio de Janeiro o 1º Congresso

Brasileiro de Eugenia. A proposta veio propagar a corrente

eugênica a partir dos modelos americano e inglês atribuindo-se

ao saneamento, à higiene e ao ensino as melhores opções para

superação das mazelas vividas pela sociedade brasileira.

Esses pensamentos foram disseminados mundialmente e tiveram

muitos seguidores, dentre os quais destacamos Adolf Hitler, que,

em 1934, publicou “Minha Luta”, formulado de ideias racistas

e, como consequência, o extermínio de milhões de judeus

na segunda guerra mundial. Aí, o conceito ‘raça’ fortemente

estabeleceu-se a uma conotação biológica (MAGGIE, 2001).

No entanto, podemos verifi car que na sociedade brasileira

o conceito ganha uma nova conotação, sofre uma re-signifi cação,

e é empregado como forma de distinção social. Guimarães (2005),

em suas considerações a respeito do tema, assinala que:

“ As hierarquias sociais podem ser justifi cadas

e racionalizadas, por conseguinte, de diferentes modos,

fazendo, todas, apelo à ordem natural. (...) presumida,

portanto, pode ter uma justifi cativa teológica (origem divina);

científi ca (endodeterminada); ou cultural (necessidade

histórica – como no caso de evolucionismos que justifi cam

a subordinação de uma sociedade humana por outra). Em

todos os casos, quando essa ordem natural

delimita as distâncias sociais, assiste-se

a sistemas de hierarquizações rígidos e

inescapáveis.” (GUIMARÃES, 2005, p. 30)

O mesmo autor avalia que “a defi nição de

racismo que me parece correta terá, portanto,

de ser derivada de uma doutrina racialista, isto

é, de uma teoria das ‘raças’”. (GUIMARÃES,

2005, P. 32). Dando continuidade à refl exão,

o autor comenta ainda que:

“ Sem dúvida, pode-se usar o termo ‘racismo’ como

metáfora para designar qualquer tipo de essencialismo ou

naturalização que resultem em práticas de discriminação

social. Tal uso é, contudo, frouxo quando a idéia de ‘raça’

encontra-se empiricamente ausente e apenas empresta um

sentido fi gurativo ao discurso discriminatório. Penso que

seria mais correto designar tais práticas discriminatórias

por termos específi cos como ‘etnicismo’, etc. A referência à

raça, porque se encontra subsumida em outras diferenças,

funciona apenas como imagem de diferença irredutível.”

(GUIMARÃES, 2005, p. 34)

Segundo Guimarães (2005), “se não for a raça”, a que atribuir as

discriminações que somente se tornaram inteligíveis pela ideia de

“raça”? (p. 25)

Outro autor que tem produzido refl exões sobre o tema, D’Adesky

(2001) chama atenção para o fato de que:

“ A existência da noção de raça biológica e a evidência da

raça simbólica, ou seja, da raça socialmente percebida

e interpretada. Quaisquer que sejam as variações de

sentido do termo ‘raça’, a desconstrução científi ca da raça

OS 120 ANOS DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO.GILDA ALVES BATISTA*

“As diferenças de tipo físico

passaram então a ser utilizadas

para classifi car os seres

humanos. Assim basicamente

nasceu a fórmula do racismo,

ou seja: humanos de pele escura

seriam de raça inferior;

e os humanos de pela clara,

de raça superior.”

Page 44: Alexandre Morais - redução maioridade penal

46

biológica não fez desaparecerem as percepções comuns

fundadas na aparência física, e em primeiro lugar na cor

da pele. Culturalmente codifi cadas essas percepções

conduzem o homem comum a classifi car os indivíduos

que encontra segundo suas características visíveis e não

de acordo com o conhecimento genético. Esse hiato

entre raça biológica e a caracterização social fundada na

aparência física constitui um problema e um desafi o para

o anti-racismo”. (D’ADESKY, 2001, p. 01).

De fato, com base nesta perspectiva da existência da raça,

mesmo que o termo não seja pronunciado, as distinções entre

os vários tipos de racismo só poderão ser estabelecidas a partir

de uma análise histórica para se verifi car como os outros termos

específi cos tornaram-se metáforas para serem designados por

“raça” e vice-versa.

Após a segunda guerra mundial, alguns teóricos passaram

a denominar “raça” tendo o fenótipo como algo que ganha

importância social por intermédio de crenças, valores e atitudes.

Desse modo, onde não havia a presença de marcas fenotípicas,

a denominação passava a ser etnia.

Este termo é utilizado para descrever um determinado grupo de

um dado contexto social e que conserva certa solidariedade,

experiências compartilhadas e por terem origem e interesses

comuns. O grupo étnico é, portanto, um fenômeno cultural de

onde se originam percepções e experiências de vida.

Entretanto, no nosso ponto de vista, o aspecto central que

constituiria o pano de fundo desses estudos seria responder

a velha questão: existe discriminação racial no Brasil?

Para tanto, faz-se necessário pensar sobre a identidade da nação

brasileira, raça, cor etc. Gilberto Freyre, um dos nossos mais

importantes intelectuais, deteve-se também sobre estas mesmas

questões. Nascido em Pernambuco em 1900, complementou

seus estudos nos Estados Unidos da América, inicialmente

na Universidade Baylor, no Texas (em 1919), ocasião em que

realizou viagens até o extremo sul deste país, fi cando horrorizado

com a violência e brutalidade da segregação. Infl uenciado

por esta experiência seguiu para Nova Iorque, onde estudou

Ciências Sociais na Universidade de Columbia (em 1921). Neste

momento, os debates acerca das formações nacionais eram

acionados pelos resultados sociais e políticos consequentes

da primeira guerra mundial.

Freyre buscou desenvolver a afi rmação de que, no Brasil, essa

situação de segregação e violência não existia. Do encontro com

a hostilidade americana construiu uma visão do passado brasileiro

e, nesta perspectiva, do presente e do futuro, lançou o conceito

do Brasil como uma nação cordial à diversidade racial, fornecendo

uma alternativa para o mundo (Casa-Grande & Senzala, 1933).

Para avaliar o papel que este autor desempenhou, foi nesta

década (30) que se iniciou o processo de institucionalização

da sociologia no Brasil, destacando-se a criação dos cursos

universitários de ciências sociais na Escola de Sociologia e Política

da Universidade de São Paulo; a criação da cadeira de sociologia

nos cursos secundários, resultado da nova política educacional;

multiplicação das coleções de livros de debate sobre problemas

brasileiros, principalmente as Coleções Brasiliana, Coleção Azul

e Documentos Brasileiros e o surgimento de jovens escritores

nos compêndios de sociologia. Suas ideias sobre uma ligação

indissociável entre raça e cultura vieram a se explicitar no “mito

da democracia racial”. Talvez, para melhor compreender suas

teses de formação da sociedade brasileira, seja importante ver

o contexto da época, o momento em que ocorria a transição entre

o modelo de análise baseado em pontos de vista sobre o social,

para a análise sistemática da sociedade.

O Mito da Democracia Racial

Outro conceito fundamental diz respeito à democracia racial. Esta

expressão tem sua formulação também a partir da obra “Casa-

Grande & Senzala”. O autor assinala que o tipo de relação entre

senhor (Casa-Grande) e o escravo (Senzala) teria favorecido uma

democracia, já que os fi lhos da relação entre senhor e escrava

tornavam-se herdeiros de parte do patrimônio destes senhores,

recebendo, desta forma, um reconhecimento social inacessível

à população negra que se encontrava na condição de escravizada.

As críticas à ideia de democracia racial, no entanto, mostram que

a mistura de raças serviu para esconder a profunda injustiça social

aos negros, mulatos e indígenas. Ao situar no plano biológico uma

questão profundamente social, econômica e política, deixou-se de

lado a problemática básica – a falta de igualdade. A sociedade não

se reconhece como reprodutora do sistema de hierarquização,

que, neste caso, é pensada como sendo uma herança histórica

da colonização portuguesa.

Refl etindo sobre a formulação do que veio a ser denominado mito

da democracia racial, Hasenbalg (1979) afi rma que,

“ Os princípios mais importantes da ideologia da democracia

racial são a ausência de preconceito e discriminação

racial no Brasil e, consequentemente, a existência de

oportunidades econômicas e sociais iguais para brancos

e negros. De fato, mais do que uma simples questão

de crença, esses princípios assumiram o caráter de

mandamentos...” (HASENBALG, 1979, p.242)

Florestan Fernandes (1978), autor de muitos estudos, analisando

as relações raciais na sociedade brasileira, aborda o tema

da democracia racial e revela os sentidos subjacentes a esta

formulação:

“ O mito em questão teve alguma utilidade prática, mesmo

no momento em que emergia historicamente. Ao que

parece, tal utilidade evidencia-se em três planos distintos.

Primeiro, generalizou um estado de espírito farisaico, que

permitia atribuir à incapacidade ou à irresponsabilidade

do ‘negro’ os dramas humanos da ‘população de cor’

da cidade, com o que eles atestavam como índices

insofi smáveis de desigualdade econômica, social e política

na ordenação das relações raciais. Segundo, isentou

o ‘branco’ de qualquer obrigação, responsabilidade

ou solidariedades morais, de alcance social e de natureza

Page 45: Alexandre Morais - redução maioridade penal

47

coletiva, perante os efeitos sociopáticos da espoliação

abolicionista e da deterioração progressiva da situação

sócio-econômica do negro e do mulato. Terceiro,

revitalizou a técnica de focalizar e avaliar as relações

entre “negros” e “brancos” através de exterioridades

ou aparências dos ajustamentos raciais, forjando uma

consciência falsa da realidade racial brasileira. (...)

Em consequência, ela também concorreu para difundir

e generalizar a consciência falsa da realidade racial,

suscitando todo um elenco de convicções etnocêntricas;

1º) a ideia de que o ‘negro’ não tem problemas no

Brasil; 2º) a ideia de que, pela própria índole do Povo

brasileiro, não existem distinções raciais entre nós; 3º)

a ideia de que as oportunidades de acumulação de

riqueza, de prestígio social e de poder foram indistinta

e igualmente acessíveis a todos, durante a expansão

urbana e industrial da cidade de São Paulo; 4º) a ideia

de que o ‘preto está satisfeito’ com sua condição social

e estilo de vida em São Paulo; 5º) a ideia de que

não existe, nunca existiu, nem existirá outro problema

de justiça social com referência ao ‘negro’...”

(FERNANDES, 1978, p. 256)

Florestan Fernandes entendia que o racismo, no Brasil, estava

associado ao desequilíbrio das estruturas sociais. Avaliava que

o preconceito racial existia no país porque, no período escravista,

a estrutura social estava organizada em castas e, após o fi m da

escravização, a estrutura se reorganiza em classes sociais, não

assegurando aos negros livres uma verdadeira integração na

sociedade brasileira.

Analisando os estudos de Florestan Fernandes e trazendo luz

à discussão sobre o tema em questão, Guimarães (2005)

conclui que,

“ No caso particular de Florestan Fernandes, além disso,

a democracia racial brasileira jamais seria decorrência de

um ethos, seja de uma realidade empírica de miscigenação

ou de ausência de regras de pertença grupal. Ao contrário,

para ele, a democracia racial seria o resultado da ordem

social competitiva e do modo racional-burocrático

de dominação, próprios do capitalismo burguês que

prescindia de formas de discriminação ou coerção

extramercantis ou econômicas. Tratava-se, portanto, de

uma propriedade do sistema social mais que atributo de

indivíduo ou grupos. Era mais um Ideal, uma meta, que

uma realidade.” (p.84)

Para Guimarães (2005), a postura de Florestan Fernandes foi

partilhada também por outros intelectuais, tais como Costa Pinto

e Guerreiro Ramos, assim como pelo Movimento Negro. Destaca,

“ ...a postura agressiva de anti-racialismo e de afi rmação

de um Brasil mestiço, por parte de Gilberto Freyre, José

Lins do Rego, Jorge Amado, Rachel de Queiroz e outros

escritores, encontravam alguma simpatia por parte do

movimento negro quando, e apenas quando, tal visão

de Brasil colidia com aquela, nutrida por escritores

e intelectuais de São Paulo, do Brasil como um país

branco, e da democracia racial como fruto de um

ethos cordial, não necessariamente miscigenado.”

(GUIMARÃES, 2005 p. 87)

Paixão (2006) em sua abordagem sobre raça e desenvolvimento

social considera que,

“ Classifi car a democracia racial como mito implica

dizer que a visão ideológica de uma escravidão benigna

e de uma sociedade harmoniosa do ponto de vista

do contato inter-racial não corresponde à realidade

dos fatos sociais e históricos. Ou seja, no passado,

ao contrário de um modelo de escravidão suave,

teríamos tido um sistema escravista extremamente

perverso, violento e rude sobre os escravizados.

A miscigenação, tão produzida mediante o gozo

não confraternizante dos senhores brancos sobre

mulheres indígenas e negras indefesas, difi cilmente

logrando sair do terreno estritamente físico no sentido

da conformação de relações efetivamente estáveis.

No presente, a imagem idílica de um paraíso racial

se contradizia com uma sociedade na qual aos negros

e negras não havia espaço nos postos de trabalho

maiôs bem remunerados e prestigiados, aos níveis

de escolaridade mais avançados (pelo contrário, na

maioria das vezes, nem sequer o ensino elementar

era garantido para esse contingente) e aos demais

mecanismos de mobilidade social ascendente, como

o acesso ao crédito produtivo, à terra e à proteção

legal contra ações abusivas perpetrados pelos órgãos

de segurança pública. Em suma, no interior de uma

sociedade na qual os padrões de hierarquização

raciais permaneciam razoavelmente rígidos, a

pacifi cação de nosso quadro de relacionamentos

étnicos e raciais era garantida (...) pelo fato dos

negros saberem de antemão qual era o seu lugar”

(PAXÃO, 2006, p.48)

Apesar dos esforços do Movimento Negro em denunciar que

o “mito da democracia racial” esconde de fato uma negação de

que existe uma dimensão especifi camente racial na desigualdade

social brasileira, esta ideologia continua viva e não perdeu seu

poder de sedução na sociedade brasileira. Quais seriam as causas

que manteria ainda vivo este “mito”? D’Adesky (2001) enumera

três razões. A primeira reside no fato de que a...

“’ Democracia racial’ coloca em primeiro plano um

ideal futuro de igualdade para todos e, ao mesmo

tempo, tem o poder de ocultar a realidade presente

de desigualdades raciais colocando em evidência a

mestiçagem real da população. Ele remete, assim,

à ideia do claro-escuro ou da ambiguidade racial,

termo frequentemente utilizado nos últimos anos

para justifi car a difi culdade de saber quem é negro

no Brasil, no quadro da seleção de candidatos aos

exames vestibulares das universidades que adotaram

o sistema de cotas.” (D’ADESKY,2001, p. 5)

A segunda razão, conforme o autor,

Page 46: Alexandre Morais - redução maioridade penal

48

“ Trata-se, de um lado, da difi culdade de falar abertamente

das desigualdades raciais no Brasil e, ao mesmo tempo,

da extrema difi culdade do movimento negro ter acesso

a mídia. Sem o qual a sua luta ou defesa de suas ideias

se vêem limitadas do ponto de vista do grande público.

(...) falar de racismo no Brasil era tabu (...) alguns

acreditavam mesmo que o racismo e a discriminação

racial não ocorriam no Brasil e que insistir nesses temas

representava uma importação de um problema particular

dos Estados Unidos”. (p. 05)

A terceira e última razão estaria no...

“ (...) fato de que a ideologia da democracia racial continua

a ter não apenas seus adeptos, mas também defensores

entre os intelectuais e acadêmicos brasileiros. Esses

últimos são denominados de ‘neofreyreanos’, em

referência à atualização que promovem do pensamento

de Gilberto Freyre e à vontade de preservar a expressão

democracia racial neste início de século XXI.” (p. 6)

Entretanto, seria necessário considerar que existem outras

posições com relação a esta temática. Autores como Fry e Maggie

(2002) e Souza (2002) consideram que o “mito da democracia

racial” pode representar um valor, um elemento da identidade

nacional brasileira e uma meta a ser alcançada.

No entanto, acreditamos que o “mito da democracia racial”

ajudou a forjar a ideia de que as relações raciais no Brasil se dão

de formas mais harmoniosas, se compararmos a de outros países,

encobrindo uma verdade fundamental: a de que foram negadas

à população negra direitos e oportunidades iguais (HASENBALG,

1979) (HENRIQUES, 2001). Desse modo, consideramos

que devemos continuar lutando para que os direitos que

foram conquistados se ampliem, e possamos efetivamente ter

o que comemorar.

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Page 47: Alexandre Morais - redução maioridade penal

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*GILDA ALVES BATISTAPedagoga e Mestre em Educação pela PUC-Rio, Professora Substituta da Universidadedo Estado do Rio de Janeiro - Faculdade de Educação da Baixada Fluminense.

Page 48: Alexandre Morais - redução maioridade penal

50

A fome de milhares de seres humanos não é uma responsabilidade

de Deus, mas um problema ético e um insulto à dignidade

humana. Uma questão de matriz econômica e de solução política.

Uma questão que não afeta somente a cidadania das pessoas,

mas a soberania das Nações. A fome é, em suma, uma questão

de Estado.

O Brasil pode e deve vencer a fome e a exclusão social. Fome

e miséria não rimam com democracia. A partilha do alimento

é uma profi ssão de fé na igualdade de natureza e de direitos.

A fome de uma criança ou a exclusão de qualquer pessoa é uma

negação da nossa própria dignidade como ser humano. Nenhuma

criança nasce para morrer criança.

Não podemos fi car sentados e esperar que o futuro traga a solução.

Cada ser humano é chamado à vida em um tempo concreto.

Enquanto caminhamos e respiramos na face

da Terra, necessitamos de meios adequados

para crescer e atingir a maturidade e assim

poder participar da história de nossa própria

comunidade. Por esta razão, qualquer meta

presente ou futura, por mais importante que

o seja, deve ser confrontada com os sofrimentos

das crianças, dos jovens, das mulheres

e homens que experimentam frustração e as

consequências da fome e da marginalização.

Nenhum argumento pode justifi car a negação

da liberdade humana, da paz e da felicidade às pessoas que estão

vivendo hoje! Elas não podem ser objeto do sarcasmo da promessa

de que seus fi lhos terão dias melhores. A solução para o problema

da fome e da exclusão social passa por uma nova ordem social,

econômica e política que tenha como objetivo estratégico atingir

o desenvolvimento humano sustentável. Em verdade, uma nova

civilização deve surgir comprometida com a promoção da vida

com dignidade e esperança para toda a família humana.

O direito humano à alimentação e nutrição sustentável é a base dos

direitos humanos e da cidadania, fortalece a participação social na

gestão da Res. Pública, a viabilização econômica dos assentos

da reforma agrária e da agricultura familiar, a melhoria quantitativa

e qualitativa do abastecimento alimentar local, o acesso a uma

alimentação adequada através de justa distribuição e geração

de trabalho e renda, a redução da desnutrição e da mortalidade

materna e infantil e, afi nal, a promoção de práticas alimentares

e hábitos de vida saudáveis.

Como eixo do desenvolvimento humano sustentável, a Política de

Segurança Alimentar e Nutricional não atinge seus objetivos como

sendo mais um programa ou Secretaria de Assistência Social.

Trata-se de uma opção política prioritária nas ações da sociedade

que perpasse todas as esferas de ação do poder público para

garantir a todas as pessoas acesso e gozo dos frutos da terra

e do trabalho humano.

A partir de nossos municípios ou, melhor ainda, de nossa

própria rua, com a participação ativa das populações excluídas,

mediante ações concertadas entre sociedade civil, empresariado

e organismos governamentais, encontraremos soluções que

atendam às exigências da realidade e à cidadania de nosso

povo. Não nos faltam recursos técnicos e fi nanceiros, humano ou

materiais. Precisamos de mecanismos que garantam o controle da

cidadania sobre o Estado, os serviços públicos e o mercado. Sem

parcerias com o governo e sem recursos públicos, a sociedade

não consegue realizar o que é fundamental para sua vida. Por

outro lado, sem a participação do povo, os governos difi cilmente

atendem às necessidades e aos direitos

da cidadania e escapam da prisão da

burocracia ou dos laços da corrupção.

Comer é direito humano básico que jamais

pode sofrer qualquer restrição. A criança

e o idoso não produzem, mas têm direito

de assentar-se à mesa da fraternidade e

participar do banquete da vida. Todos temos

direito à nutrição e, consequentemente,

ao alimento adequado às necessidades

pessoais e culturais. O direito ao alimento

não se reduz, pois, a uma ração que garanta subsistência.

Ninguém se desenvolve sem o pão de cada dia, sem um ninho e a

companhia de gente amiga e acolhedora em volta de uma mesa.

O Direito Humano à Alimentação e Nutrição Sustentável:

um desafi o

O ano de 2008 foi muito simbólico em nosso país no que tange

a promoção do direito humano à alimentação. Celebramos o

centenário do nascimento de Josué de Castro: médico, geógrafo,

deputado, embaixador do Brasil junto a Organização das Nações

Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO/ONU). Foi ele quem

denunciou que a fome não se justifi ca por fatores ligados à natureza

ou à vontade de Deus. A fome é uma mazela humana cujas causas

são associadas à injustiça social. Josué foi o primeiro a fazer um

mapa da fome. Em seu livro Geopolítica da Fome (1946), denuncia

que precisaríamos ter bases sólidas para a reversão do quadro da

fome no país caso quiséssemos declarar que somos efetivamente

um país livre e justo.

Passados cerca de sessenta anos, assistimos nos últimos meses

o debate acerca de uma crise estrutural na organização dos

DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃOE NUTRIÇÃO SUSTENTÁVEL.

LEONARDO FELIPE DE OLIVEIRA RIBAS*

“A solução para o problema da fome

e da exclusão social passa por uma

nova ordem social, econômica e

política que tenha como objetivo

estratégico atingir o desenvolvimento

humano sustentável. Em verdade,

uma nova civilização deve surgir

comprometida com a promoção da

vida com dignidade e esperança

para toda a família humana.”

Page 49: Alexandre Morais - redução maioridade penal

51

Estados e do sistema econômico em cujo centro se encontra

o principal determinante do direito elementar à vida, que é o acesso

aos alimentos. O avanço desta crise, suas causas, impactos

e possíveis respostas tem sido alvo de debates, inclusive, entre

os Chefes de Estado hodiernamente.

Um dado grave e pouco destacado é o despreparo político-

institucional da grande maioria dos países para enfrentar a presente

crise. Devemos assistir à reconstrução de um padrão de regulação

nacional no campo alimentar entre os países com capacidade

para tanto. Embora pouco provável, seria importante se esta

conjuntura estimulasse a revisão do tipo de multilateralismo e de

regulação comercial patrocinados pela Organização Mundial do

Comércio (OMC) entre outros atores econômicos supranacionais.

Requerem-se formas de cooperação e apoio técnico aos países

mais fragilizados para além da doação de víveres.

A crise do sistema agroalimentar está inserida no contexto da

busca pelo crescimento econômico, tendo como um dos possíveis

fundamentos a política de agroenergia. Os países desenvolvidos,

especialmente, vêm buscando alternativas energéticas renováveis,

de menor custo e maior diversidade de matérias-primas, de modo

a diminuir a sua dependência em relação ao petróleo, bem como a

implementar medidas ambientais. As fontes de energia oriundas de

biomassa ganham crescente importância no cenário internacional.

Diante deste cenário, vem aumentando signifi cativamente

a demanda por agrocombustíveis no mundo.

As redes solidárias ligadas ao movimento de agro-ecologia têm

denunciado que este investimento no modelo que privilegia

fi nanceiramente o agronegócio voltado para a política energética

e para o mercado de commodities pode comprometer o modelo

que alimenta o abastecimento e se orienta pelos princípios de

sustentabilidade.

Neste contexto parece-nos que o emponderamento de atores

populares e sociais, através do resgate da cultura de promoção

e defesa dos direitos humanos, é algo fundamental e estratégico.

Enquanto reivindicação moral, os direitos humanos nascem

quando podem e devem nascer. Os direitos humanos não são

um dado, mas um constructo, uma intervenção humana, em

constante processo de construção e reconstrução. Como os

direitos humanos são fruto de um contexto histórico, parece-nos

residir exatamente aqui o nosso desafi o: como implementar

a justiciabilidade e a exigibilidade dos direitos humanos,

especialmente do Direito Humano à Alimentação, em uma

conjuntura onde o mesmo encontra-se ameaçado pelo paradigma

do crescimento econômico em que aquele direito (vinculado

ao paradigma do desenvolvimento sustentável) é colocado

em segundo plano nas políticas públicas?

Entendemos que esta pergunta pode ser respondida mediante

o enfrentamento dos presentes desafi os, a serem abordados,

na implementação do direito à alimentação na ordem

contemporânea:

1) Consolidação e fortalecimento do processo de afi rmação da

visão integral e indivisível dos direitos humanos, mediante

a conjugação do direito à alimentação com os demais

direitos civis e políticos com os direitos econômicos, sociais

e culturais;

2) Incorporação do enfoque de gênero, raça e etnia na concepção

do direito à alimentação, e criar políticas específi cas para a

tutela de grupos socialmente vulneráveis;

3) Otimização da justiciabilidade e a acionabilidade do direito à

alimentação e dos demais direitos econômicos, sociais e

culturais;

4) Incorporação da pauta social de direitos humanos na agenda

das instituições fi nanceiras internacionais, das organizações

regionais econômicas e do setor privado;

5) Fortalecimento da responsabilidade do Estado na implementação

do direito à alimentação e dos direitos econômicos, sociais

e culturais e do direito à inclusão social, bem como no

reconhecimento da pobreza como violação de direitos

humanos;

6) Fortalecimento do Estado de Direito e a construção da paz nas

esferas global, regional e local, mediante uma cultura de direitos

humanos.

O atual governo federal investe na política agro-energética

pautada no paradigma do crescimento econômico como possível

saída para o processo de consolidação política da soberania

do Estado brasileiro no cenário global. O governo acredita que

com o crescimento econômico foi superado o problema da fome

(insegurança alimentar) e, com isso, deixa de investir na política de

segurança alimentar e nutricional sustentável como instrumento

de consolidação da soberania do Estado e, por conseguinte,

dos seus cidadãos. A questão que nos persegue é: há como

promover a soberania cidadã negando o seu acesso à alimentação

e nutrição?

Nossa preocupação como militantes pelo direito à alimentação

é colaborar com os atores sociais na consolidação de uma

política, com base na promoção dos direitos humanos, que tenha

como paradigma o desenvolvimento sustentável. Neste sentido,

cremos que devemos nos apropriar dos possíveis instrumentos

normativo-jurídicos, políticas públicas e medidas judiciais já

existentes. O objetivo é trazer os direitos e garantias consagrados

e normatizados para o plano da efi cácia e da realização prática,

tentando fazer com que as aspirações emanadas nas declarações,

tratados, convenções e leis sejam gozadas pelas pessoas que

sofrem violações desses direitos. Com isto, poderemos colaborar

para que os atores sociais possam fazer com que os direitos

individuais e políticos, que sejam agraciados por esse processo

de constitucionalização, passem de aspirações e orientações

a serem seguidas segundo a conveniência dos governantes, para

o plano de direito exigível. Saindo, portanto, do plano moral para

o plano da justiciabilidade e exigibilidade.

O reconhecimento dos direitos econômicos, sociais e culturais,

como direitos fundamentais, só veio no século XX, ainda que sob

a forte resistência dos denominados juristas liberais. Segundo

os mesmos, pela própria característica dos direitos econômicos,

sociais e culturais, seria impossível uma proteção jurisdicional para

esses direitos. A separação dos direitos humanos em primeira

e segunda gerações, levando em conta o seu desenvolvimento

e afi rmação, tem levado à cristalização do pensamento liberal

de que os direitos individuais, também chamados de direitos

civis e políticos, estão devidamente resguardados por

Page 50: Alexandre Morais - redução maioridade penal

52

instrumentos de exigibilidade e justiciabilidade, em detrimento

da segunda categoria. Não se pode admitir um tratamento

quase hierárquico entre os direitos humanos, apesar de

os mesmos serem estudados e dispostos diversas vezes de

forma separada.1

A exigibilidade do direito à alimentação não pode ser visibilizada

e aplicada apenas através dos diferentes instrumentos jurídico-

normativos existentes no mundo e no país. Não é somente através

destes que se alcança o escopo da efetividade dos direitos humanos.

Os instrumentos jurídico-normativos precisam ser utilizados como

uma forma de obrigação para a atuação concreta do Poder Público.

Pressão no sentido de fazer com que o Estado defi na políticas

públicas em direção ao cumprimento das obrigações assumidas

quando da adoção de um tratado internacional ou da elaboração

de leis, principalmente as de cunho social.

Os direitos estabelecidos devem obrigar o Estado a garantir

as condições materiais para a obtenção da cidadania e da

dignidade da pessoa humana, mormente, o mínimo existencial.

Quando se fala em direito, não se restringe à possibilidade

de acesso ao judiciário para propor ações judiciais. O controle

do cidadão rumo à exigibilidade e concretização dos direitos

humanos vai além disso. Outros mecanismos existem e devem ser

aperfeiçoados para se atingir tal objetivo, entre eles estão aqueles de

participação direta ou indireta dos cidadãos, tais como: a iniciativa

popular, o orçamento participativo, o referendo e, principalmente,

os conselhos de direitos e de políticas públicas.

Como se nota, existem sistemas e instrumentos de naturezas

diversas para promoção e garantia dos direitos humanos.

Fundamental é a apropriação desses mecanismos, para que as

pessoas possam se valer dos direitos listados em tantos tratados

e leis, e perceber que as normas internacionais e nacionais não

representam apenas retórica e engodo. Este é o grande desafi o

de toda Lei. Conseguir tirar as intenções e princípios do papel

e fazer com que eles sejam uma realidade no dia-a-dia daqueles

que têm sede de direitos e de dignidade humana.

Os diplomas legais

O primeiro grande marco jurídico para os direitos humanos no pós-

guerra foi a consolidação da Declaração Universal dos Direitos

Humanos (1948). Consoante a dicção do artigo 25, preleciona

a Declaração: que toda pessoa tem direito a um nível de vida

adequado que lhe assegure, assim como à sua família, saúde

e bem-estar, inclusive alimentação (...). A Declaração preocupa-se

com a tutela do bem jurídico maior que é a vida, mas salienta que

o acesso à alimentação é condição fundamental para que aquela

seja vivida de forma adequada.

Na mesma esteira, a Carta das Nações Unidas, em seu artigo

55, declara que todos os governos signatários adotariam

as medidas necessárias para a realização dos propósitos

consignados naquele instrumento. Um outro marco é o Pacto

Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,

de 1966. Somente vinte e cinco anos depois, em 1991, é que

o Brasil tornou-se signatário deste tratado internacional.

Temos que recordar que na década de sessenta vivíamos

exatamente o contexto da repressão dos direitos. Somente

três anos após a promulgação da nossa Carta Magna é que

o Brasil reconhece estes direitos. São os direitos ligados ao

princípio da igualdade, emanado na Revolução Francesa.

Os primeiros são os civis e políticos, emanados do princípio

da liberdade.

Outro marco jurídico internacional no campo da promoção do

direito à alimentação são as diretrizes voluntárias da FAO. Esta

é uma Declaração da Cúpula Mundial da Alimentação que, em

Roma, no ano de 2002, estabeleceu metas e compromissos dos

governos para a superação da fome e da miséria no mundo. Caso

apreciemos com atenção, veremos que os objetivos do milênio

estão associados à superação das causas e consequências da

fome no mundo.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

trouxe um contributo para os direitos humanos quando consagrou

no art. 5º, §3º, através da Emenda Constitucional nº 45/2004,

que, “in verbis”: os tratados e convenções internacionais sobre

direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do

Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos

votos dos respectivos membros, serão equivalentes às

emendas constitucionais. Vale recordar que o Brasil é signatário

de três diplomas internacionais na esfera dos direitos humanos

que prelecionam o direito humano de se alimentar. Neste

sentido, adquire o direito à alimentação o status de um

direito constitucional. Vale lembrar que, não obstante não

aparecer textualmente como direito fundamental do art. 5º

da Carta Magna, ele lá está garantido pelo §3º do artigo. O

rol de direitos previsto no caput deste artigo é exemplifi cativo

e não taxativo.

Um grande avanço no que tange à consolidação de um sistema

jurídico para a promoção do direito à alimentação no Brasil foi

a promulgação da Lei 11.346, de 15 de setembro de 2006. O

referido diploma legal cria o sistema de segurança alimentar e

nutricional e consagra o instituto do direito humano à alimentação

adequada. Assim está disposto no art. 2º da referida Lei:

A alimentação adequada é direito fundamental do ser

humano, inerente à dignidade da pessoa humana e

indispensável à realização dos direitos consagrados na

Constituição Federal, devendo o poder público adotar as

políticas e ações que se façam necessárias para promover e

garantir a segurança alimentar e nutricional da população.

Faz-se mister salientar que a Lei deve ser sempre a expressão

de um clamor de um povo que, na busca pela sua soberania,

estabelece princípios e diretrizes para que a sua cidadania seja

efetivada. Neste sentido, longo é também o caminho para fazer

com que estes direitos sejam implementados pelo Estado, com

a participação das famílias, dos governos e da sociedade como

um todo. Este processo se dá através também das garantias

de uma ampla participação no planejamento, organização,

controle e monitoramento das políticas públicas que materializam

os direitos.

1 Cf. PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. Rio de Janeiro: Saraiva, 9ª edição, 2008.

Page 51: Alexandre Morais - redução maioridade penal

53

Conclusão

Desde os primórdios a humanidade vê no pão o arquétipo da vida.

O alimento é sacramento de um processo cósmico de renovação

e perpetuação da vida. Não é a toa que os alimentos são

o fundamento sacramental da presença do divino nas mais variadas

tradições religiosas. Na visão do profeta Isaías, chegará o dia em

que já não haverá ali criancinhas que vivam apenas alguns dias,

nem velho que não complete a sua idade; com efeito, o menino

morrerá com cem anos (Is. 65,20). Salienta também o profeta que

brilha a luz aquele que parte e reparte o seu pão.

O sentido último da existência da sociedade é a construção do

processo de integração e simbiose entre todos os seres. Nosso

desejo como cidadão e operador do Direito é que a sociedade

possa garantir este direito humano primeiro e básico que é a

alimentação. Mais ainda que o alimento, alimentar-se é sentar-se

junto à mesa em condições de igualdade e celebrar juntos nossa

natureza comum de sermos um-com-o-outro (κοινονια) e um-para-

o-outro (διακονια).

* LEONARDO FELIPE DE OLIVEIRA RIBASBacharel em Filosofi a e em Teologia, advogado militante na área de direitos humanos, Mestre e Professorde Teologia Sistemático-Pastoral e Consultor Técnico do Instituto Harpia Harpyia, agência de promoçãoe defesa do direito humano à alimentação.

Page 52: Alexandre Morais - redução maioridade penal

54

A democracia no orçamento público

Completados 20 anos da atual Constituição, o debate acerca

da democracia ganha força na sociedade civil. Cresce cada vez

mais a discussão sobre formas de participação ativa cidadã no

processo governamental. Sob essa ótica o entendimento do

orçamento público é primordial.

Não há dúvida de que as políticas públicas estão no orçamento.

Qualquer dispêndio público feito tanto pelo poder legislativo,

judiciário e executivo (principalmente), deve ser antecipado neste

instrumento. Deve-se frisar que o orçamento não é dinheiro e sim

autorização de gastos e estimativa de receitas, ou seja, expressão

monetária de um planejamento.

Pode-se considerar que o orçamento pessoal, familiar ou de

empresas não se diferencia muito daquele utilizado na esfera pública.

O cerne é o mesmo, buscar um planejamento que satisfaça nossas

necessidades (prioridades) de acordo com nossas disponibilidades.

A publicização para o acompanhamento de como estão sendo

utilizados os recursos públicos, seja para saúde, educação, obras,

emendas parlamentares ao orçamento dentre outros, permite que

o cidadão participe ativamente nas decisões políticas e interaja

com o poder executivo e legislativo.

Orçamento público não deve ser tratado como um “bicho de sete

cabeças” ou como uma peça de fi cção. Por ser um instrumento

chave na administração pública, ocorre que muitos governantes

difi cultam seu entendimento.

O orçamento evoluiu ao longo da história para um conceito de

Orçamento-Programa, segundo o qual esse instrumento não

é apenas um mero documento de previsão da arrecadação

e autorização do gasto, mas um documento legal que contém

programas e ações vinculados a um processo de planejamento

público, com objetivos e metas. Dessa forma, a participação

cidadã no acompanhamento orçamentário se torna cada vez

mais fundamental.

Breve histórico do orçamento público

nas constituições

O marco do orçamento público se dá na

Inglaterra em 1217 pelo Rei João Sem

Terra, com a famosa Magna Carta. Nela,

o principal aspecto orçamentário

é identifi cado com a instituição dos tributos.

Outra função importante estabelecida foi

a avaliação e o acompanhamento dos

gastos públicos antes arbitrados pelo Rei – essa função permanece

como missão principal dos parlamentos.

O orçamento inglês delineou a natureza técnica e jurídica desse

instrumento, e difundiu a instituição orçamentária para outros

países, como na França após a revolução de 1789. Em todo

o decorrer do século XIX, o orçamento público foi sendo

aperfeiçoado e valorizado como instrumento básico da política

econômica e fi nanceira do estado.

A multiplicidade orçamentária nos aspectos político, jurídico,

contábil, econômico, fi nanceiro e administrativo, impõe

a importância desse instrumento.

A partir da década de 1930, com a doutrina Keynesiana,

o orçamento público passou a ser sistematicamente utilizado como

instrumento da política fi scal do governo (Jesse, 1971). Visava

estabilização ou a ampliação dos níveis da atividade econômica.

No Brasil, as primeiras Constituições Federais de 1824 e 1891 não

trataram diretamente da questão orçamentária, deixando para as

leis ordinárias – ditadas pela autoridade – o encargo de regular

A DEMOCRACIA NO ORÇAMENTO PÚBLICO.THIAGO MARQUES*

“Pode-se considerar que o

orçamento pessoal, familiar ou

de empresas não se diferencia

muito daquele utilizado na esfera

pública. O cerne é o mesmo,

buscar um planejamento que

satisfaça nossas necessidades

(prioridades) de acordo com

nossas disponibilidades.”

“A democracia social exige a participação do cidadão nas decisões do

governo nos seus três estágios – municipal, estadual e federal. Esta

participação vai além do voto, dever e direito básico do eleitor, e abrange

não só a fiscalização dos atos dos eleitos mas também a discussão

da política administrativa adotada pelos que eventualmente encontram-se

no poder.

O importante, o indispensável é lembrar que todo o poder emana do povo

e em seu nome será exercido. Quando um governo age em áreas cruciais,

como a das privatizações de empresas estatais, vendendo patrimônio do

povo, sem consulta prévia aos verdadeiros donos, está traindo a confiança

do eleitorado, incluindo aí as forças da oposição.

Também na elaboração dos orçamentos públicos – e em especial os

municipais – o eleitorado deve ter voz ativa, discutindo, analisando e

fiscalizando a sua execução. Sem essa ativa participação, a democracia

passa a ser um mero jogo eleitoral, onde disputas paroquiais influem

negativamente nos verdadeiros interesses da coletividade.

Um orçamento participativo é um orçamento

democrático. Sem a participação do povo,

do contribuinte, do eleitor, o dinheiro público

será aplicado segundo critérios que nem

sempre representam as melhores soluções

para os problemas da comunidade. Participar

é tão importante quanto votar. E é com

a participação ativa que se constrói a verdadeira

democracia social.”

Barbosa Lima Sobrinho1

“Só a participação cidadã é capaz de mudar o país!”

Betinho

1 Prefácio à cartilha “De Olho no Orçamento”. Fórum Popular do Orçamento 2° ed. Rio de Janeiro, 2002.

Page 53: Alexandre Morais - redução maioridade penal

55

o assunto. A evolução e o desenvolvimento da técnica orçamentária

são recentes, a partir de 1936.

Em 1936, importantes inovações foram introduzidas na proposta

orçamentária que propôs modifi cações na técnica orçamentária e

sugeriu a criação de um órgão especializado, incumbido de tratar

os problemas orçamentários do governo federal e subordinado ao

Ministério da Fazenda. As inovações foram:

- Aumento de fi delidade em termos numéricos do programa

de trabalho;

- Maior atenção às perspectivas da receita;

- Expedientes de audiências entre a equipe do órgão central

e os representantes das unidades administrativas; e

- Coligação e sistematização de todos os elementos

necessários à constituição de uma base idônea para

cálculo das estimativas dos recursos, erigindo método

de previsão das rendas públicas como instrumento

fundamental de sua atuação.

A Constituição de 1946, denominada “planejamentista”, explicita a

criação de planos setoriais e regionais, com refl exos no orçamento,

ao estabelecer vinculações com a receita. A experiência brasileira

na elaboração de Planos Globais até 1964 caracterizou-se por

contemplar somente os elementos de despesa com ausência

de uma programação de objetivos, metas e recursos reais,

intensifi cando a desvinculação dos Planos e dos Orçamentos.

Em 1964 é criado o cargo de Ministro Extraordinário do

Planejamento e Coordenação Econômica, ocupado por Celso

Furtado, com a atribuição de dirigir e coordenar a revisão do plano

nacional de desenvolvimento econômico; coordenar e harmonizar,

em planos gerais, regionais e setoriais, os programas e projetos

elaborados por órgãos públicos; e coordenar a elaboração

e a execução do Orçamento Geral da União e dos orçamentos dos

órgãos e entidades subvencionadas pela União, harmonizando-

os com o plano nacional de desenvolvimento econômico. Neste

período é criada a lei que traçou os princípios orçamentários

no Brasil e que ainda hoje é a principal diretriz para a elaboração

dos orçamentos da União, Estados e Municípios, a Lei Federal

nº. 4.320/64.2

Com a Constituição Federal de 1988, o sistema orçamentário

passou a ser regulado por três leis:

i) a Lei do Plano Plurianual (PPA): O PPA é a lei que defi ne

as prioridades do Governo pelo período de 4 (quatro)

anos. O projeto de lei do PPA deve ser enviado pelo

Poder Executivo ao Poder Legislativo até o dia 31 de

agosto do primeiro ano de seu mandato (4 meses antes

do encerramento da sessão legislativa). De acordo com

a Constituição Federal, o PPA deve conter “as diretrizes,

objetivos e metas da administração pública federal

para as despesas de capital e outras delas decorrentes

e para as relativas aos programas de duração continuada”

(art. 165 §1°);

ii) a Lei de Diretrizes Orçamentária (LDO): A LDO é a lei

anterior à lei orçamentária, que defi ne as metas

e prioridades em termos de programas a executar pelo

Governo. O projeto de lei da LDO deve ser enviado pelo

Poder Executivo ao Legislativo até o dia 15 de abril

de cada ano (8 meses e meio antes do encerramento

da sessão legislativa). De acordo com a Constituição

Federal, a LDO estabelece as metas e prioridades para

o exercício fi nanceiro subsequente, orienta a elaboração

do Orçamento (Lei Orçamentária Anual), dispõe sobre

alterações na legislação tributária e estabelece a política

de aplicação das agências fi nanceiras de fomento; e

iii) a Lei Orçamentária Anual (LOA): A Lei Orçamentária Anual

disciplina todos os programas e ações de governo no

exercício. Nenhuma despesa pública pode ser executada

sem estar consignada no Orçamento. A Constituição

determina que o Orçamento deve ser votado e aprovado

até o fi nal de cada Legislatura. Depois de aprovado,

o projeto é sancionado e publicado pelo Poder Executivo,

transformando-se na Lei Orçamentária Anual. A LOA

estima as receitas e autoriza as despesas do Governo

de acordo com a previsão de arrecadação.

Estas três leis compõem o processo de tramitação do orçamento

de qualquer ente da federação. Assim, o planejamento das ações

governamentais sob a forma orçamentária (receitas e despesas),

ambos servindo como instrumento para a realização de uma

gestão fi scal responsável, no sentido de se alcançar estabilidade

econômica e desenvolvimento sustentável, constituem o cerne do

Orçamento Público.

A experiência demonstra ao longo dos últimos anos a preocupação

em fortalecer a vinculação existente entre planejamento

e orçamento. Ao contrário do que ocorria em períodos de alta

infl ação, hoje é possível planejar e autorizar dotações para

a realização de ações voltadas à concretização efi ciente de políticas

públicas de bem-estar, ou seja, é a programação orçamentária

voltada não só para o controle de gastos, mas também para

a avaliação de resultados.

Princípios e estrutura do Orçamento

A Constituição de 1988 defi ne, na seção II do capítulo II do título

VI, todo o processo orçamentário. Não obstante, além do Direito

Constitucional, existe o Direito Financeiro como complemento ao

Orçamento Público. Este último é representado pela Lei Federal

nº 4.320 de 1964, que estatui normas gerais aplicáveis a todas as

esferas da Administração Pública.

Como exemplo, podemos tentar defi nir de forma didática que

o Orçamento Público é relacionado: 1º Elaboração - Constituição

Federal; 2º Estrutura - Lei 4.320; e recentemente, 3º Limites

- Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). É evidente que há uma

inter-relação de ambos na dinâmica orçamentária.

A Lei Complementar nº 101/2000 - Lei de Responsabilidade

na Gestão Fiscal foi concretizada como fruto de uma política

neoliberal inserida no processo mundial de ajustes fi scais das

economias, que se intensifi cou a partir da década de 80 na América

Latina, após a ocorrência de crises de fi nanciamento externo e de

difi culdades encontradas pelos países para saldarem suas dívidas.

No 1º artigo, o objetivo da LRF fi ca evidenciado: “A responsabilidade

2 Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Históricos das atividades orçamentárias. Disponível em: http://www.planejamento.gov.br

Page 54: Alexandre Morais - redução maioridade penal

56

na gestão fi scal pressupõe a ação planejada e transparente, em

que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o

equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas

de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites...”.

Assim, a LRF impõe um modo limitador e controlador das fi nanças

públicas.

Os princípios orçamentários são:

“ A Lei do Orçamento conterá a discriminação da receita

e despesa de forma a evidenciar a política econômica

fi nanceira e o programa de trabalho do Governo, obede-

cidos os princípios de unidade, universalidade e anuali-

dade.” (art. 2).

Primeiro, o princípio da Unidade: só existe um Orçamento para

cada ente federativo (no Brasil, existe um Orçamento para a União,

um para cada Estado e um para cada Município). Cada ente

deve possuir o seu Orçamento, fundamentado em uma política

orçamentária e estruturado uniformemente. Não há múltiplos

orçamentos em uma mesma esfera. O fato do Orçamento

Geral da União possuir três peças, como o Orçamento Fiscal,

o Orçamento da Seguridade Social e o Orçamento de Investimento,

não representa afronta ao princípio da unidade, pois o Orçamento

é único, válido para os três Poderes. O que há é apenas volumes

diferentes segundo áreas de atuação do Governo.

Segundo, Universalidade: o orçamento deve conter todas

as receitas e despesas dos poderes, fundos, órgãos e entidades

da administração direta e indireta, ou seja, nenhuma instituição

pública que receba recursos orçamentários ou gerencie recursos

federais pode fi car de fora.

E, por fi m, o princípio da Anualidade: o orçamento cobre um

período limitado. No Brasil, este período corresponde ao ano ou

exercício fi nanceiro, de 01 de janeiro a 31 de dezembro. O período

estabelece um limite de tempo para as estimativas de receita

e fi xação da despesa, ou seja, o orçamento deve se realizar no

exercício que corresponde ao próprio ano fi scal.

A principal estrutura do orçamento criada pela Lei 4.320 é a

classifi cação das Receitas e Despesas por Categorias Econômicas,

especifi cando o que é Corrente e o que é Capital.

As Receitas Correntes são oriundas principalmente de tributos,

contribuições, patrimônios, atividades agropecuárias, atividades

industriais, de serviços e outras, e constituem a maior parte das

receitas totais. Receitas de Capital são auferidas principalmente

da realização de recursos fi nanceiros oriundos da constituição

de dívidas e outros.

As Despesas Correntes são as chamadas de custeio, incluindo

despesas com pessoal, materiais, contratação de terceiros

e outros, e representam o maior dispêndio dos orçamentos dos

entes. Despesas de Capital são os investimentos em equipamentos

e infra-estrutura.

Na LOA as receitas são estimativas realizadas pelo governo, por

isso elas podem ser maiores ou menores do que foram inicialmente

previstas. A dinâmica é simples, se a economia crescer durante

o ano mais do que se esperava, a arrecadação com os impostos

tende a aumentar. O movimento inverso também pode ocorrer.

O conceito de Orçamento-Programa abordado anteriormente

é a base da Lei Orçamentária Anual, devendo existir integração

entre a LOA de cada período, com a LDO e o Plano Plurianual.

O programa é o elemento básico da estrutura do Orçamento-Programa,

pois é com a sua utilização que os esforços e ações de governo são

organizados para o alcance de uma situação futura almejada.

O principal critério de classifi cação da despesa pública utilizado

para elaboração do Orçamento-Programa é a classifi cação por

Programas de Trabalho, cuja fi nalidade básica é demonstrar as

realizações do governo, ou seja, o resultado fi nal de seu trabalho

em prol da sociedade.

Uma das especifi cações mais importantes, que permite identifi car

se determinado Programa de Trabalho pertence à determinada

área (Educação, Saúde e outros), independentemente da estrutura

institucional, é expresso na Portaria Federal nº 42 de 1999, que

atualiza a Lei 4.320 na discriminação das despesas por Funções

e Subfunções e dá outras providências.

Entende-se como Função o maior nível de agregação das diversas

áreas de despesa que competem ao setor público. A Subfunção

representa uma partição da função, visando a agregar determinado

subconjunto de despesa do setor público.

É importante frisar que as subfunções poderão ser combinadas

com funções diferentes daquelas a que estejam vinculadas.

Essa classifi cação foi realizada com objetivo de dar mais clareza

ao orçamento e assim identifi car no detalhe o que se vai fazer,

ou o que se deveria fazer, proporcionando a oportunidade de

discussão diante a população.

A participação popular se faz necessária também na elaboração

do orçamento, pouco se discute o Orçamento Público, o que

acaba por “transformar” o OP em “Orçamento de Poucos”.

Conclusões

Os avanços do processo democrático no Brasil misturam de modo

complexo, funcional e territorialmente, importantes características

democráticas e autoritárias, ou seja, é um Estado democrático

esquizofrênico. É um estado no qual os componentes de

legalidade democrática e, portanto, de publicidade e cidadania,

desaparecem nas fronteiras das várias regiões e relações étnicas

e de classe. (O’DONNELL, 1993)

A ausência de mecanismos que estimulem e permitam

a participação ativa e consciente dos cidadãos no acompanhamento

e avaliação das políticas públicas e de seus governantes faz com

que aumente o ceticismo político da população, ocorra falta de

transparência governamental e consequentemente efetivação

das práticas corruptas dos administradores públicos, assim

a necessidade de renovação do Estado e de suas instituições

torna-se primordial.

Page 55: Alexandre Morais - redução maioridade penal

57

A sinergia entre o Poder Executivo e Legislativo na elaboração

de políticas públicas obedece a uma lógica centralizada, sem

contestações e pouco transparente, sendo oposto ao conceito

de regimes inclusivos e amplamente aberto à contestação pública

(DAHL, 1971).

Mecanismos de inclusão política e contestação pública se fazem

necessários. A participação e o controle social no monitoramento

e avaliação das políticas públicas, seja no orçamento ou nas

diversas leis encaminhadas e fomentadas pelo Legislativo, é de

grande importância.

Governos hierárquicos, centralistas, clientelistas e autoritários

controlados pelas elites locais que orientam seguindo interesses

de cunho privado a gestão da administração pública ainda fazem

parte da política brasileira.

Para enfrentar esta realidade conservadora, as experiências

apontam para a reforma das instituições, promoção da

transparência e do controle social, descentralização da gestão

e participação cidadã.

Sob essa ótica, a garantia dos direitos constitucionais de

participação dos cidadãos será efetivamente exercida.

Referencias bibliográfi cas

- BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Fed-

erativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

- ________. Lei de Responsabilidade Fiscal. Lei Complementar

nº 101 de 4 de maio de 2000. Estabelece normas de fi nanças

públicas voltadas para a responsabilidade fi scal e dá outras

providências. Diário Ofi cial, ano CXXXVIII, nº. 86, p. 1-11, 2000.

- BURKHEAD, Jesse. Orçamento Público. 1ª ed. Rio de Janeiro:

Guanabara: FGV, 1971.

- DAHL, R. A. Poliarquia. Participação e Oposição. São Paulo:

Edusp, 1997

- FÓRUM POPULAR DO ORÇAMENTO. Cartilha “De Olho no

Orçamento”. 2° ed. Rio de Janeiro, 2002

- MACHADO JR, J. Teixeira, REIS, Heraldo da Costa. A Lei 4320

comentada. 30ª ed. Rio de Janeiro: IBAM, 2001.

- O´DONNELL, G. Sobre o Estado, a democratização e alguns

problemas conceituais. Novos Estudos Cebrap, n. 36, 1993.

- SANTOS, Boaventura de Sousa. 2002. Democratizar a De-

mocracia - os caminhos da democracia participativa. (Rio de

Janeiro. Civilização Brasileira.).

Sites:

Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Históricos

das atividades orçamentárias. Disponível em: <http://www.

planejamento.gov.br>.

*THIAGO MARQUESEconomista e Consultor do Fórum Popular do Orçamento do Rio de Janeiro (FPORJ).

Page 56: Alexandre Morais - redução maioridade penal

58

“São perigosos,

São tão preguiçosos

ruins demais.

Fingem que gemem nas macas,

que sangram nas facas,

que morrem.

Tem televisão

qualquer barracão

da escória desse país.

Com que direito,

pedem os leitos

limpos dos meus guris?”

(Jorge Simas/Paulo Cesar Feital)

No ano em que se comemorou a chamada maioridade do

Estatuto da Criança e do Adolescente, os 60 anos da Declaração

Universal dos Direitos Humanos e os 120 anos

da Abolição da Escravatura, dentre outras

datas de nossa história, fomos convocadas

a pensar/problematizar algumas características

atribuídas a crianças e jovens pobres como

se esses aspectos fi zessem parte de suas

naturezas, tornando-se, assim, inquestionáveis.

Para tal apontaremos algumas produções de

subjetividades1 ocorridas, em especial no Brasil,

durante o século XX que têm caracterizado

a população infanto-juvenil subalternizada como

perigosa, violenta, criminosa e não humana.

A seguir, discutiremos alguns efeitos forjados hoje em

nosso mundo globalizado pelas práticas que têm associado

periculosidade, violência, criminalidade e não humanidade

à situação de pobreza. Alguns desses efeitos podem ser expressos,

por exemplo, pelo aumento dos extermínios de crianças e jovens

pobres, ocorridos cotidianamente, pelo signifi cativo número de

crianças abrigadas, de jovens cumprindo medidas de reclusão,

dentre alguns outros aspectos que serão aqui assinalados.

Majoritariamente, na sociedade capitalista, a criança e o jovem

têm sido construídos como seres em formação, em crescimento,

em desenvolvimento, em evolução. De acordo com esse

pensamento, essas fases da vida carregariam certas marcas,

afi rmadas como naturezas. Algumas práticas baseadas nos

conhecimentos hegemônicos da Medicina e da Biologia fazem

associações entre mudanças corporais e determinadas etapas

do desenvolvimento psíquico, afi rmando formas específi cas de

estar no mundo. Esse modo biomédico de se pensar a infância

e a adolescência como um todo universal e homogêneo tem

construído modos naturalizados de vida. Com relação, por exemplo,

ao jovem afi rma-se que determinadas mudanças hormonais,

glandulares e físicas, encontradas nessa fase, são responsáveis

por certas características psicológico-existenciais que seriam

próprias da juventude. Descrevem, assim, suas atitudes,

comportamentos e formas de estar no mundo como manifestações

dessas características, percebidas como uma essência

e, portanto, como imutáveis. Dessa maneira, “qualidades”

e “defeitos” considerados típicos do jovem como entusiasmo,

vigor, impulsividade, rebeldia, agressividade, alegria, introspecção,

timidez, dentre outros, passam a ser sinônimo daquilo que

é próprio de sua natureza.

No que se refere à infância, da mesma forma, lhe são atribuídas

algumas características tidas como típicas desse momento

do desenvolvimento. Tanto na família como na escola, tal

fase é naturalmente percebida como a que exige cuidados,

acompanhamento constante, apontando para a dependência,

a imaturidade e a incapacidade para tomar decisões.

Ao lado dessas caracterizações tidas como

universais e científi cas, no que se refere às

crianças e jovens pobres, outras são adicionadas:

a violência e a criminalidade. Com isso vai se

confi gurando para os fi lhos da pobreza duas

classifi cações: a infância em perigo – aquela que

ainda não delinquiu, mas que pode vir a fazê-lo

e, por isso, deve ser tutelada – e a juventude

perigosa – aquela percebida como delinquente

e, portanto, ameaçadora para a manutenção

da ordem social.

Como tais articulações foram sendo produzidas e fortalecidas?

Articulando pobreza, periculosidade, criminalidade2

Há anos trabalhando com algumas ferramentas propostas por

Michel Foucault (1988), entendemos, como ele, que seja importante

pensar a emergência do capitalismo industrial – que esse autor

chamou de sociedade disciplinar – quando as elites passam a se

preocupar não somente com as infrações cometidas pelo sujeito,

mas também com aquelas que poderão vir a acontecer. Este é o

dispositivo da periculosidade, que emerge na Europa no século

XIX, e que fará com que o controle não se exerça apenas sobre o

que se é, o que se fez, mas principalmente sobre o que se poderá

vir a ser, sobre o que se poderá vir a fazer, sobre as virtualidades

dos sujeitos.

Em nosso país, que traz como herança mais de trezentos anos

de escravidão, considerada à época como fato natural, o controle

das virtualidades exercerá um papel fundamental na constituição

de nossas percepções e subjetividades sobre a pobreza.

Para tal, muito têm contribuído algumas teorias consideradas

A PRODUÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS PERIGOSOS:A QUEM INTERESSA?

CECÍLIA M. B. COIMBRA*MARIA LÍVIA DO NASCIMENTO**

“Portanto, esses chamados direitos

humanos – princípios burgueses –

não podem ser estendidos a todos e

caracterizados como universais, pois

em uma sociedade onde a liberdade

é uma quimera, a desigualdade e

a competitividade são as regras

do bom viver, uma existência livre,

igualitária e fraterna não tem lugar.”

1 No conceito de subjetividade dominante ou hegemônica, “... a produção de subjetividade constitui matéria-prima de toda e qualquer produção . As forças sociais que administram o capitalismo hoje entendem que a produção de subjetividade talvez seja mais importante que qualquer outro tipo de produção, mais essencial até que o petróleo e as energias, visto produzirem esquemas dominantes de percepção do mundo”. (Guattari e Rolnik, 1988, p. 40).

2 Algumas análises apresentadas neste item podem ser encontradas em Coimbra (1998) e Coimbra e Nascimento (2003).

Page 57: Alexandre Morais - redução maioridade penal

59

científi cas como as racistas e eugênicas, que emergem também

no século XIX, na Europa, condenando as misturas raciais

e caracterizando-as como indesejáveis, produtoras de

enfermidades, de doenças físicas e morais (imbecilidades,

idiotias, retardos, defi ciências em geral, indolência, dentre outras).

É interessante notarmos que, naquele mesmo período, ocorreram,

também na Europa, movimentos que propugnaram e infl uenciaram

as propostas de abolição da escravatura negra nas Américas.

Ou seja, ao mesmo tempo em que emerge a fi gura do trabalhador

livre – segundo os interesses econômicos vinculados ao

capitalismo liberal da época – produz-se uma essência para esse

mesmo trabalhador. Defi nindo-se formas consideradas corretas

e verdadeiras de ser e de existir, forjam-se subjetividades sobre

a pobreza e sobre o pobre; diz-se o que são e o que deverão ser.

Segundo a lógica do capitalismo liberal, os trabalhadores livres têm

liberdade para oferecer e vender sua força de trabalho no mercado,

desde que se mantenham no seu devido lugar, desde que não

participem dessas misturas indesejáveis, mantendo-se dentro das

normas vigentes, desde que, portanto, respeitem as regras impostas

por uma sociedade de classes. Sociedade essa que, paradoxalmente,

a partir de certos princípios defendidos por uma elite que ascende ao

poder, propugna em seus discursos que os direitos humanos, políticos,

econômicos, sociais e culturais são direitos de todos, produzindo-os,

assim, como direitos universais através de suas famosas palavras de

ordem: liberdade, igualdade e fraternidade.

Entendemos – como nos apontou Karl Marx – que a formação

da riqueza, a acumulação do capital produz, também, o seu

contrário, a miséria. Pela ótica do capitalismo esta passa

a ser naturalmente percebida como advinda da ociosidade, da

indolência e dos vícios inerentes aos pobres. Portanto, esses

chamados direitos humanos – princípios burgueses – não podem

ser estendidos a todos e caracterizados como universais, pois em

uma sociedade onde a liberdade é uma quimera, a desigualdade

e a competitividade são as regras do bom viver, uma existência

livre, igualitária e fraterna não tem lugar.

Ainda no século XIX, na Europa, pari passu às teorias racistas

e ao movimento eugênico e lhes servindo de base, temos a obra

de Morel (1857), o “Tratado das Degenerescências”, onde aparece

o termo “classes perigosas”, defi nido da seguinte maneira:

(...) no seio dessa sociedade tão civilizada existem “verdadeiras

variedades” (...) que não possuem nem a inteligência do dever,

nem o sentimento da moralidade dos atos, e cujo espírito não

é suscetível de ser esclarecido ou mesmo consolado por

qualquer ideia de ordem religiosa. Qualquer uma destas

variedades foi designada sob o justo título de classes

perigosas (...) constituindo para a sociedade um estado de

perigo permanente. (Apud Lobo, 1997, p. 55)

Vários outros autores tentam contribuir na busca de bases

científi cas para essas teorias. Já desde o início do século XIX,

populariza-se entre os cientistas a Antropometria, medição de

ossos, crânio e cérebro que, por meio de comparações, busca

provar a inferioridade de determinados segmentos sociais. Ficam

famosas, inclusive entre os educadores da época, as teses de

Paul Broca (1824-1880) e Cesare Lombroso (1835-1909). Este

último, com sua Antropologia Criminal, defende ser possível

distinguir, por intermédio de certas características anatômicas,

os criminosos natos e os perigosos sociais. A teoria das disposições

inatas para a criminalidade, defendida por Lombroso, ainda tem

muitos defensores entre nós (Waldhelm, 1998). Por exemplo,

durante o período da ditadura militar em nosso país, em 1974, em

duas cidades satélites de Brasília, DF (Ceilândia e Taguatinga), por

“ordens superiores”, em duas pré-escolas públicas, crianças – em

sua maioria fi lhos de migrantes nordestinos – são colocadas em

fi la para terem seus crânios e faces medidos. Posteriormente, são

enviados à direção e aos professores dos referidos estabelecimentos

laudos que descrevem as características emocionais e intelectuais

dessas crianças.

É curioso observar que propostas deste tipo estão sempre se

atualizando. Em 2007, pesquisadores da PUC/RS e da UFRGS

propuseram um projeto para examinar o cérebro de jovens

infratores, com o objetivo de investigar as bases biológicas da

violência dos que cometeram atos delituosos. O grupo se propõe

a fazer um mapeamento cerebral por ressonância magnética

para tentar entender as manifestações físicas do problema da

delinqüência juvenil.

Fora tais “devaneios cientifi cistas”, temos defi nições mais

grosseiras que, cotidianamente, afi rmam a existência de “bandidos

de nascença, os que já nasceram para o crime e vão praticá-lo de

qualquer maneira” (Benevides, 1983, p. 56). Por exemplo, para

o delegado paulista Sérgio Paranhos Fleury – conhecido por sua

participação em torturas a presos políticos durante a ditadura –

“bandido era visto como um fenômeno da natureza”. Dizia ele:

“ (...) você cria cachorro? Numa ninhada de cachorro vai ter

sempre o cachorrinho que é mau caráter, que é briguento

e vai ter outro que se porta bem. O marginal é aquele

cachorrinho que é mau caráter, indisciplinado, que não

adianta educar.” (Apud Benevides, 1983, p. 57)

Essas teorias racistas e eugênicas são realimentadas pela obra

de Charles Darwin, “A origem das Espécies” (1859). Conceitos

como “prole malsã”, “herança degenerativa”, “degenerescência da

espécie”, “taras hereditárias”, “inferiorização da prole”, “procriação

defeituosa”, “raça pura”, “embranquecimento”, “aperfeiçoamento

da espécie humana”, “purifi cação” são comuns nos tratados de

Medicina, Psiquiatria, Antropologia e Direito do fi nal do século XIX

e início do século XX que pregam, seguindo o modelo da eugenia,

a esterilização dos chamados degenerados como profi laxia para

os males sociais.

Renato Kehl, médico ligado ao movimento eugênico no Brasil, no

início do século XX, defendia a esterilização

“(...) dos parasitas, indigentes, criminosos, doentes que

nada fazem, que vegetam nas prisões, hospitais, asilos; dos

que perambulam pelas ruas vivendo da caridade pública,

dos amorais, dos loucos que enchem os hospitais; da mole

de gente absolutamente inútil que vive do jogo, do vício,

da libertinagem, do roubo e das trapaças (...)” (Apud Lobo,

1997, p. 147-148).

Page 58: Alexandre Morais - redução maioridade penal

60

Ou seja, deveria ser esterilizada toda a população pobre brasileira

que não estivesse inserida no mercado de trabalho capitalista,

todos aqueles que não fossem corpos úteis e dóceis para

o mercado.

Coroando e seguindo as pegadas de todas essas teorias

encontramos, no Brasil, ainda no mesmo período, o movimento

higienista que, extrapolando o meio médico, penetra em toda

a sociedade brasileira, aliando-se a alguns especialistas como

pedagogos, arquitetos/urbanistas e juristas, dentre outros. Tal

movimento, formado por muitos psiquiatras e juristas da elite

brasileira e expoentes da ciência à época como Franco da Rocha,

Nina Ribeiro, Silvio Romero e Henrique Roxo, atinge seu apogeu

nos anos de 1920, quando da criação da Liga Brasileira de Higiene

Mental pelo médico Gustavo Riedel. Suas bases estão nas teorias

racistas, no darwinismo social e na eugenia, pregando também

o aperfeiçoamento da raça e colocando-se abertamente contra

negros e mestiços, a maior parte da população pobre brasileira.

Esta elite científi ca está convencida de sua “missão patriótica” na

construção de uma “Nação moderna” e suas propostas baseiam-

se em medidas que devem promover o “saneamento moral” do

país. A “degradação moral” é especialmente associada à pobreza

e percebida como uma epidemia que se deve tentar evitar.

Portanto, para erigir uma Nação, os higienistas afi rmam que toda

a sociedade deve participar dessa “cruzada saneadora

e civilizatória” contra o mal que se encontra no seio da pobreza.

Tal movimento irá atravessar os mais diferentes setores da

sociedade, redefi nindo os papéis que devem desempenhar em um

regime capitalista a família, a criança, o jovem, a mulher, a cidade e

os segmentos pobres. A Medicina passa a ordenar o modelo ideal

de família nuclear burguesa. Detentores da ciência, os médicos

tomam para si a tutela das famílias, indicando e orientando como

todos devem comportar-se, morar, comer, dormir, trabalhar, viver

e morrer.

O higienismo, aliado aos ideais eugênicos e à teoria da

degenerescência de Morel, concebe que os vícios e as virtudes

são, em grande parte, originários dos ascendentes. Afi rma que

aqueles advindos de “boas famílias” teriam naturalmente pendores

para a virtude. Ao contrário, aqueles que traziam “má herança”,

leia-se os pobres, seriam portadores de degenerescências. Dessa

forma, justifi ca-se uma série de medidas contra a pobreza, que

passa a ser percebida e tratada como possuidora de uma “moral

duvidosa” transmitida hereditariamente.

Rizzini (1997) discute a produção dos “pobres dignos” e dos

“viciosos”, segundo uma escala de moralidade, e afi rma que

para cada um deles serão utilizadas estratégias diferentes. Aos

“pobres dignos”, aqueles que trabalham, que mantêm a “família

unida” e “observam os costumes religiosos” é necessário

o fortalecimento dos valores morais, pois pertencem a uma classe

“mais vulnerável aos vícios e às doenças”. Seus fi lhos devem ser

afastados dos ambientes perniciosos, como as ruas e até mesmo

de suas próprias casas. Com base em tais crenças, durante toda

a vigência dos Códigos de Menores (1927 e 1979), crianças

e jovens foram afastados de suas famílias com a justifi cativa de

que era preferível a internação a seus lares pobres, tidos como

perniciosos. Atualmente, com o ECA, não é mais justifi cável retirar

o poder familiar por pobreza, mas é possível fazê-lo alegando-

se negligência, abandono ou maus-tratos. Nascimento, Cunha

e Domith (2008) ao construírem um debate que estabelece

relações entre as práticas de desqualifi cação da família pobre

e o processo de criminalização e penalização da pobreza, indagam:

“Diz o Estatuto que não mais se pode destituir o poder familiar

por pobreza, mas não são os pobres, agora qualifi cados como

negligentes, descuidados, violentos, que continuam a perder

a guarda dos fi lhos?”

Já os pobres considerados “viciosos”, por sua vez, por não

pertencerem ao mundo do trabalho – uma das mais nobres virtudes

enaltecidas pelo capitalismo – são portadores de delinquência,

são libertinos, maus pais e vadios. Representam um “perigo

social” que deve ser erradicado. Daí a necessidade de medidas

coercitivas, principalmente para essa parcela da população,

pois são criminosos em potencial. Assim, embora a parcela

dos “ociosos” seja a mais visada por seu “potencial destruidor

e contaminador”, a periculosidade também está presente entre

os “pobres dignos”, pois por sua natureza – a pobreza – também

correm os riscos das doenças.

A partir desse mapeamento dos pobres, surge uma grande

preocupação com a infância e a juventude que, em um futuro

próximo, poderão compor as “classes perigosas”: as crianças

e os jovens “em perigo”, aqueles que deverão ter suas virtualidades

sob controle permanente.

O conjunto dessas teorias estabelece/fortalece a relação entre

vadiagem/ociosidade/indolência e pobreza, bem como entre

pobreza e periculosidade/violência/criminalidade. Mesmo autores

mais críticos, ao longo dos anos, têm caído nesta armadilha de

mecanicamente vincular pobreza e violência, a partir de estudos

baseados nas condições estruturais da divisão da sociedade em

classes sociais e no antagonismo e na violência resultantes dessa

divisão.

Não é por acaso que, da aliança entre médicos e juristas da época,

surge em 1927 a primeira lei brasileira específi ca para a infância

e adolescência, o primeiro Código de Menores. Data daí a utilização

do termo “menor”, não mais para menores de idade de quaisquer

classes sociais, mas para um determinado segmento: o pobre.

Esta marca, presente nas subjetividades dos brasileiros, se impõe

até hoje, mesmo quando, em 1990, o Estatuto da Criança e do

Adolescente (ECA) retira o conceito de “menor” de seu texto legal.

Infância e juventude, crianças e adolescentes, são as designações

que deverão ser utilizadas em substituição à categoria “menor”.

Essa produção de infâncias e juventudes desiguais foi se

constituindo, ao longo de todo o século XX, através da massiva

prática de internação de crianças e jovens pobres, em especial

após a emergência do Juizado de Menores, em 1923, criado para

solucionar o problema da “infância e juventude desassistidas”. Tal

política de internação se fortalece, sobretudo, nos dois períodos

ditatoriais brasileiros, com a criação de órgãos como o Serviço

de Assistência ao Menor (SAM), implantado em 1941 durante

o Estado Novo, e a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor

(Funabem), que surge em 1964 durante o período da ditadura militar.

Page 59: Alexandre Morais - redução maioridade penal

61

Estabelecimentos denominados, à época da vigência dos Códigos

de Menores, de “depósitos”, dizendo-se destinados ao “regime

educativo” e com a fi nalidade de “prevenção ou preservação”. Em

realidade, são locais onde crianças e jovens pobres sofrem toda

sorte de maus-tratos. Se trouxermos esta análise para o presente,

mesmo após o ECA, podemos dizer que a prática da violência

nos internatos não é uma característica do passado. Hoje, em

pleno século XXI, tal situação de exclusão pouco mudou e o que

vemos nesses estabelecimentos é um quadro de superlotação, de

falta de equipamentos e de funcionários, de constantes torturas

e violações.

Voltando ao século XX e à vigência dos Códigos de Menores,

percebemos naquela época uma forte preocupação com

a disciplinarização das crianças pobres, com a necessidade de

colocar em ordem os “desviados” ou aqueles que poderiam vir

a ser. Para estes, o espaço jurídico prevê a reeducação,

a internação e a preparação para o trabalho. No conjunto dessas

medidas, chamadas de proteção, o Estado vai construindo um

modelo do que diz ser assistência à pobreza. Assim,

Sob égide do Juiz, os menores não eram “julgados”, mas

“tutelados”; não eram “condenados”, mas sim “protegidos”

e não eram “presos”, mas “internados”. Visando assegurar

sua assistência e proteção, o Juiz os encaminhava aos

estabelecimentos (...) onde deveriam fi car internados

pelo tempo por ele determinado. A internação nestes

estabelecimentos, mais que a educação e recuperação dos

menores, privava-os da liberdade, afastando-os do convívio

das ruas, encaradas como espaço pernicioso. (...) Outra

preocupação que se fazia presente naquela época, e que se

verifi ca até os dias de hoje, era a tendência de se oferecer

ofícios profi ssionalizantes em ofi cinas, que preparam para o

trabalho, mas em funções socialmente desvalorizadas e de

baixa remuneração (...) (Bulcão, 2001, p. 60)

Em nosso país, desde o início do século XX, diferentes dispositivos

sociais vêm produzindo subjetividades em que o “emprego fi xo”

e a “família organizada” tornam-se padrões de reconhecimento,

aceitação, legitimação sociais e direito à vida. Ao fugir a esses

territórios modelares entra-se para a enorme legião dos “perigosos”,

daqueles que são olhados com desconfi ança, evitados, afastados,

enclausurados e, mesmo, exterminados.

Sabemos que a situação da pobreza vem se agravando, com base

nas políticas noeliberais, nas quais o trabalho inexiste e as políticas

públicas são totalmente inefi cazes e a punição se faz cada vez

mais frequente, a partir do fortalecimento do Estado penal e de

subjetividades policialesco-punitivas.

Se no capitalismo liberal as crianças e os jovens pobres foram

recolhidos em espaços fechados para serem disciplinados

e normatizados na expectativa de que fossem transformados em

cidadãos honestos, trabalhadores exemplares e bons pais de família;

hoje, no neoliberalismo, não são mais necessários ao mercado, são

supérfl uos, suas vidas de nada valem, daí o extermínio.

Importante assinalarmos que, com o neoliberalismo, vem se

implantando um modelo de sociedade chamada por alguns de

“sociedade de acumulação fl exível de capital” (Harvey, 1993), ou

“sociedade do espetáculo” (Debord, 1997) e mesmo de “sociedade

de controle” (Deleuze, 1992), que vem se mesclando com o que

Foucault (1986) denominou de biopoder. De um modo geral,

essa “nova era” caracteriza-se, em especial, na Europa, após

a Segunda Guerra Mundial, pelas diferentes formas de controle

ao ar livre que vêm se misturando às disciplinas que operam em

sistemas fechados como família, escola, fábrica, hospital, prisão.

No contemporâneo, o marketing, os meios de comunicação de

massa e todos esses processos de subjetivação passam também

a ser instrumentos de controle social, especialmente através da

produção de modos de ser, viver e existir.

Entretanto, essas duas formas de funcionamento social, disciplinar

e de controle, vêm coexistindo simultaneamente. Para a pobreza há

um caminho já delineado; por isso, não é por acaso o alto índice de

crianças e jovens pobres exterminados. Para os que conseguem

sobreviver, estão previstos diferentes tipos de enclausuramento.

Muitos jovens pobres maiores de 18 anos encontram-se nas

prisões, as chamadas prisões da miséria, segundo o sociólogo

Loic Wacquant (2001). Há, também, inúmeros casos de “privação

de liberdade” aplicada para os que têm entre 12 e 18 anos. Já

para as crianças pobres, menores de 12 anos, restam os abrigos;

estabelecimentos desaparelhados em termos materiais e de

pessoal, que se encontram em mãos de entidades fi lantrópicas

e caritativas, onde são cotidianas as situações de violência.

Em nosso país, a partir de meados dos anos 1980, com

a gradativa implantação de medidas neoliberais – globalização do

mercado, Estado penal, fl exibilização do trabalho, desestatização

da economia, competitividade, livre comércio e privatização –

temos uma massiva produção de insegurança, medo, pânico,

articulados midiaticamente ao crescimento do desemprego, da

exclusão, da pobreza e da miséria.

Nesse dantesco quadro, crianças e jovens quando escapam do

extermínio, são os “excluídos por excelência” (Forrester,1997),

pois sequer conseguem chegar ao mercado de trabalho formal.

Sua atuação em redes ilegais como o circuito do narcotráfi co,

do crime organizado, dos sequestros, dentre outros vem sendo

tecida como única forma de sobrevivência e se prolifera, cada

vez mais, como práticas de trabalho à medida que aumenta

a apartação social.

A exclusão e a alienação de crianças e jovens pobres, pelo

envolvimento com a ilegalidade, têm produzido fortes marcas em

suas existências: os que conseguem sobreviver aos extermínios,

certamente não escapam do recolhimento em abrigos e internatos.

O ECA – seus avanços e limites

Até 1990, os profi ssionais que trabalhavam na área dos direitos da

criança e do adolescente tinham suas atuações apoiadas no Código

de Menores de 1927 e em sua posterior reformulação, ocorrida em

1979. Enquanto o primeiro se baseava no princípio do menor como

sinônimo de carente, pobre e criminoso em potencial, a mudança

de 1979 se pautou no princípio da “situação irregular”. Essas

duas legislações seguiram uma lógica que colocava no terreno

da imoralidade, da anormalidade e mesmo da patologia os modos

Page 60: Alexandre Morais - redução maioridade penal

62

de vida das famílias pobres, justifi cando, assim, a necessidade

do Estado tomar para si a tarefa de proteger crianças e jovens

cujas famílias eram consideradas fora das normas. Ou seja, os

textos das duas leis defendiam que existiam formas melhores

e, portanto, ideais dos pobres educarem, cuidarem e protegerem

seus fi lhos. Com base nisso, ao longo de todo o século XX,

justifi cavam-se as propostas de retirada do pátrio poder devido

à condição de pobreza, incentivavam-se as adoções de crianças

pobres, internavam-se os chamados abandonados, dentre outras

práticas de exclusão. É interessante notar que os princípios que

regiam os dois códigos sofreram infl uência direta do higienismo,

aliado às teorias racistas, eugênicas, da degenerescência

e da evolução das espécies, que marcaram os momentos de

emergência dessas leis.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, que nasce no bojo

dos novos movimentos sociais emergentes nos anos de 1980,

afi rma a criança e o jovem de qualquer segmento social como

sujeitos de direitos. Em contraposição aos Códigos de Menores,

preconiza a lógica da “proteção integral”, retirando o princípio

da “situação irregular”, desfazendo a separação entre “menor”

e criança, recusando a prática da internação como primeiro

e principal recurso das medidas chamadas de assistência

à infância e à adolescência.

É inegável a importância trazida pelo ECA no que se refere ao

reordenamento jurídico vinculado à área da infância e da juventude

e à proteção dos direitos e garantias para estes segmentos da

população. É fundamental sua defesa no sentido de torná-lo uma

realidade, pois mesmo após 18 anos de existência, ainda são

mantidas práticas menoristas e atos de violência, de desrespeito

e de abuso que fazem parte do cotidiano dos estabelecimentos

onde são aplicadas as chamadas medidas protetivas e sócio-

educativas preconizadas por esta nova legislação.

Entretanto, considerar a criança e o jovem enquanto sujeitos

de direitos afi rmados como universais não faria parte de uma

proposta liberal? Uma proposta de igualar juventudes e infâncias

desiguais, mas que são entendidas como possuidoras de

essências diferentes? Tal lógica é formulada a partir de princípios

considerados científi cos que vêm historicamente caracterizando

as crianças e os jovens dentro de modelos dominantes, onde

eles são vistos como seres em formação, em crescimento, em

desenvolvimento.

Entendemos, portanto, que, apesar do avanço que o ECA

signifi ca para a política de proteção a crianças e jovens brasileiros,

a lógica de igualar infâncias e juventudes tão desiguais em termos

sócio-econômicos, culturais e históricos faz parte dos princípios

e modelos defendidos pelo liberalismo. Ou seja, é uma tentativa

de igualar em cima de valores burgueses modos de vida que

continuam desiguais e que tendem, no neoliberalismo, a se tornar

cada vez mais distantes entre si.

Algumas conclusões de um campo ainda em aberto

Talvez alguns outros caminhos possam ser trilhados se nos

detivermos sobre a importância e a função que as práticas sociais

têm em nosso mundo, como já foi assinalado por Foucault (1988).

Questionando o pensamento, ainda hoje dominante no Ocidente –

que entende objetos, saberes e sujeitos como tendo uma essência,

uma natureza que lhes seria própria – este fi lósofo propõe uma

outra forma de entender o mundo. São as práticas sociais que

fazem aparecer os diferentes objetos, saberes e sujeitos. Partindo

dessa lógica é possível avaliar como nossas práticas cotidianas,

por menores e mais invisíveis que sejam, constituem-se em

poderosos instrumentos de reprodução e/ou criação, produzindo

os mais surpreendentes efeitos.

As formações profi ssionais em geral nos têm ensinado a caminhar

sempre guiados por modelos que irão indicando o que devemos

fazer e como devemos fazer. Entretanto, o para que fazemos

nunca é mencionado. Ao contrário, essas formações nos fazem

acreditar na neutralidade e objetividade de nossas atuações. Não

percebemos como nossas práticas têm forjado/fortalecido a todo

o momento os modelos de bom cidadão, bom pai, bom marido,

bom fi lho, bom aluno etc., aceitos como universais e verdadeiros,

pois baseados em formulações consideradas científi cas.

Se consideramos os objetos, sujeitos e saberes como produções

históricas, datadas e advindas das práticas sociais; se aceitamos

que os “especialismos” técnico-científi cos que fortalecem

a divisão social do trabalho no mundo capitalista têm tido, dentre

outras funções, a de produzir verdades vistas como absolutas

e universais e a desqualifi cação de muitos outros saberes que

se encontram no mundo; se entendemos como importante em

nossas práticas cotidianas a análise de nossas implicações,

assinalando o que nos atravessa, nos constitui e nos produz,

e o que constituímos e produzimos com essas mesmas práticas,

poderemos pensar, inventar e criar outras formas de atuar, de ser

profi ssional-militante.

Especialmente nesses tempos neoliberais – em que a globalização

e todos os seus corolários, mais do que uma versão do modo de

produção capitalista atual, é uma forma efi caz de defi nir modelos

de ser, de estar e de existir em um mundo dito fl exível e pós-

moderno, baseado nas profundas desigualdades das relações

sociais – o trabalho daqueles que atuam na área da criança

e da juventude reveste-se de enorme importância. Entender que

os discursos/ações do capital, muitas vezes microscópicos,

invisíveis e apresentados como desinteressados, pois percebidos

como naturais, têm poderosos efeitos: excluem, estigmatizam

e tentam destruir a pobreza, notadamente sua infância e juventude.

Há de se estar atento e perceber que, apesar das políticas ofi ciais

e ofi ciosas, existe por parte dos segmentos subalternizados, em

especial de seus jovens, resistências e lutas. Eles teimam em

continuar existindo, apesar de tudo; suas resistências se fazem

cotidianamente, muitas vezes percebidas como fragmentadas,

fora dos padrões reconhecidos como organizados e até mesmo

como condutas anti-sociais, delituosas e, por isso, “perigosas”.

Por outro lado, crianças e jovens, através de diferentes ações,

vêm afi rmando outras formas de funcionamento e de organização

que fogem aos pré estabelecidos. Essa população pobre

e marginalizada cria e inventa outros mecanismos de sobrevivência

e de luta, resistindo teimosamente às exclusões e destruições

que vivenciam diariamente em seu cotidiano e conseguindo,

Page 61: Alexandre Morais - redução maioridade penal

63

algumas vezes, escapar ao destino traçado pela lógica do capital

e entendido como inexorável e imutável.

Sem pretender racionalmente fazer revoluções, mudar o presente

e preparar o futuro, muitos desses movimentos de resistência,

sem dúvida, produzem revoluções moleculares, forjam mudanças

micropolíticas em seus atores e nos cenários onde atuam,

afi rmam e apontam para novos caminhos, criações, invenções.

É verdade que foram e continuam sendo ignorados pela história

ofi cial, pelos chamados intelectuais, pelos grandes meios de

comunicação. Apesar desse competente apagamento ofi cial vêm

ocorrendo várias e diferentes experiências empreendidas por

crianças e jovens em seus cotidianos, que confi guram práticas de

resistência, expressas através da música, de outras artes, de micro-

organizações coletivas, de redes de solidariedade. O importante é

percebê-las, ver que existem, fortalecê-las, nos aliarmos a elas.

“(...)aprendi que se depende sempre

de tanta muita diferente gente

toda pessoa sempre é as marcas

das lições diárias de outras tantas pessoas.

E é tão bonito quando a gente entende

que a gente é tanta gente

onde quer que a gente vá

É tão bonito quando a gente sente

que nunca está sozinho

por mais que pense estar.

É tão bonito quando a gente pisa fi rme

nessas linhas que estão

nas palmas de nossas mãos.

É tão bonito quando a gente vai à vida

nos caminhos onde bate

bem mais forte o coração.”

(Gonzaguinha)

Referências bibliográfi cas

- BENEVIDES, M.V. Violência, povo e política. São Paulo:

Brasiliense/CEDEC, 1983.

- BULCÃO, I. Investigando as práticas do juizado de menores

de 1927 a 1979. Dissertação de Mestrado, Departamento de

Psicologia UFF, Niterói/RJ, 2001.

- COIMBRA, C. M. B. Guardiães da ordem: uma viagem pelas

práticas psi no Brasil do milagre, Rio de Janeiro: Ofi cina do Autor,

1995.

- COIMBRA, C. M. B. Operação Rio: o mito das classes perigosas.

Niterói: Intertexto, Rio de Janeiro: Ofi cina do Autor, 2001.

- COIMBRA, C. M. B.e NASCIMENTO, M. L. Jovens pobres: o

mito da periculosidade in Fraga e Iulianelli (orgs.) Jovens em

tempo real Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

- DEBORD, G. A Sociedade do espetáculo, Rio de Janeiro:

Contraponto, 1997.

- DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34,1992.

- FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis:

Vozes, 1986.

- FOUCAULT, M A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro:

Nau, 1996.

- FORRESTER, V. O horror econômico. São Paulo: UNESP, 1997.

- HARVEY, D. A Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola. 1993.

- LOBO, L.F. Os infames da história: a instituição das defi ciências

no brasil. Tese de Doutorado, PUC, Rio de Janeiro,1997.

- NASCIMENTO, M. L., CUNHA, F. L. e VICENTE, L. M. D. A

desqualifi cação da família pobre como prática de criminalização da

pobreza. In: Revista de Psicologia e Política, v. 7, no. 14, 2007.

- RIZZINI, I. O séculoperdido: raízes históricas das políticas

públicas para a infância no Brasil. Rio de Janeiro: Santa Úrsula/

Amais, 1997.

- WACQUANT, L. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 2001.

- WALDHELM, M.C.V. Produção sócio-política do corpo nos livros

didáticos de ciências editados nas décadas de 60 a 90. Dissertação

de Mestrado, Faculdade de Educação UFF, Niterói, 1998.

Discografi a

- Gonzaguinha, Caminhos do coração in Caminhos do coração,

M-Odeon, 1982.

- Simas. J. e Feital, P.C., O Clero in Carta ao Rei, Produção

independente, sem data.

* CECILIA MARIA BOUÇAS COIMBRADoutora em Psicologia, Professora do Departamento de Psicologia/UFF, fundadora

e atual Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ** MARIA LÍVIA DO NASCIMENTO

Doutora em Psicologia, Professora do Departamento de Psicologia/UFF

Page 62: Alexandre Morais - redução maioridade penal

64

Os líderes mundiais devem se desculpar por não terem cumprido

a promessa de justiça e de igualdade que fi zeram com a Declaração

Universal dos Direitos Humanos (DUDH), adotada há 60 anos.

Nessas seis décadas, muitos governos se mostraram mais

interessados em abusar do poder ou em perseguir seus próprios

interesses políticos do que em respeitar os direitos de quem

representam.

Isso não signifi ca negar os progressos que foram feitos no

desenvolvimento de normas, sistemas e instituições de direitos

humanos, em nível internacional, regional e nacional. Em diversos

lugares do mundo, muita coisa melhorou por causa dessas

normas e princípios. O número de países que hoje oferecem

proteção legal e constitucional para os direitos humanos é maior

do que nunca. Apenas uma pequena porção de países negaria

abertamente à comunidade internacional o direito de examinar

sua situação de direitos humanos. Em 2007,

completou-se um ano de funcionamento pleno

do Conselho de Direitos Humanos da ONU,

através do qual todos os Estados-membros

das Nações Unidas concordaram em debater

publicamente seu desempenho em questões

de direitos humanos.

Apesar de todos os eventos positivos,

a realidade, porém, é que a injustiça,

a desigualdade e a impunidade continuam

sendo alguns dos aspectos mais marcantes

do mundo de hoje.

Em 1948, em uma atitude de extrema liderança, os líderes mundiais

se reuniram para adotar a Declaração Universal dos Direitos

Humanos. Os Estados-membros de uma Organização das Nações

Unidas que recém ensaiava os primeiros passos demonstraram ter

grande visão e coragem quando depositaram sua confi ança em

valores globais. Eles tinham pleno conhecimento dos horrores da

II Guerra Mundial e tinham consciência da realidade sombria que

viria com a Guerra Fria. Sua visão não se limitava apenas ao que

acontecia na Europa. 1948 foi também o ano em que a Birmânia

ganhou sua independência, que Mahatma Gandhi foi assassinado

e que as leis de apartheid passaram a ser introduzidas na África

do Sul. Grande parte do mundo ainda se encontrava sob o jugo

do colonialismo.

Os redatores da DUDH agiram com a convicção de que somente

um sistema multilateral de valores globais, baseado em igualdade,

justiça e no Estado de direito, poderia fazer frente aos desafi os

que estavam por vir. Em um verdadeiro exercício de liderança,

eles resistiram às pressões de campos políticos que se opunham.

Rejeitaram qualquer hierarquia entre o direito à liberdade de

expressão e o direito à educação; entre o direito de não ser

torturado e o direito à segurança social. Eles reconheceram que

a universalidade dos direitos humanos – todas as pessoas nascem

livres e iguais – e sua indivisibilidade – todos os direitos, sejam

eles econômicos, sociais, civis, políticos ou culturais, devem

ser realizados com o mesmo empenho – são a base de nossa

segurança coletiva e de nossa humanidade comum.

Nos anos seguintes, a liderança visionária deu lugar a interesses

políticos estreitos. Os direitos humanos se transformaram em

um jogo excludente entre as duas “superpotências” envolvidas

em uma luta ideológica e geopolítica para estabelecer sua

supremacia. Enquanto um dos lados negava os direitos civis

e políticos, o outro rebaixava os direitos econômicos e sociais.

Ao invés de favorecer a dignidade e o bem estar das pessoas, os

direitos humanos eram usados como instrumento para promover

objetivos estratégicos. Os países que recém

haviam conquistado sua independência

e que se encontravam em meio à disputa

entre as potências, ou lutaram pela

democracia e pelo Estado de direito, ou

abandonaram-nos de vez para adotarem

diversas formas de autoritarismo.

A esperança sobre os direitos humanos

aumentou com o fi m da Guerra Fria,

mas foi frustrada por uma explosão de

confl itos étnicos e pela implosão de vários

Estados, desencadeando uma série de emergências humanitárias,

marcadas por abusos de direitos humanos perversos em grande

escala. Enquanto isso, a corrupção, os governos medíocres e a

impunidade generalizada para as violações de direitos humanos

reinavam absolutos em muitas partes do mundo.

Ao entrarmos no século XXI, os ataques terroristas de 11 de

setembro transformaram o debate de direitos humanos, mais

uma vez, em uma questão desagregadora e destrutiva entre

“ocidentais” e “não-ocidentais”, restringindo liberdades,

alimentando suspeitas, medo, discriminação e preconceitos, tanto

entre governos quanto entre populações.

As forças da globalização econômica trouxeram novas promessas,

mas também novos desafi os. Apesar de os líderes mundiais

alegarem ter-se comprometido com a erradicação da pobreza, em

sua grande maioria, ignoraram os abusos de direitos humanos que

provocam e que aprofundam a pobreza. A promessa da Declaração

Universal dos Direitos Humanos continuou a existir só no papel.

Hoje, olhando para trás, o que mais surpreende é a unidade

de propósitos demonstrada pelos Estados-membros da ONU

“Apesar de os líderes mundiais

alegarem ter-se comprometido

com a erradicação da pobreza, em

sua grande maioria, ignoraram os

abusos de direitos humanos que

provocam e que aprofundam a

pobreza. A promessa da Declaração

Universal dos Direitos Humanos

continuou a existir só no papel.”

1 Introdução ao Relatório Anual 2008 da Anistia Internacional.

PROMESSAS QUEBRADAS.1

IRENE KHAN*

Page 63: Alexandre Morais - redução maioridade penal

65

àquela época, quando adotaram a DUDH por absoluto consenso.

Agora, frente a inúmeras e urgentes crises de direitos humanos,

não há, entre os líderes mundiais, uma visão compartilhada sobre

como lidar com os desafi os contemporâneos de direitos humanos

em um mundo que está cada vez mais ameaçado, inseguro

e desigual.

O cenário político, hoje, é muito diferente do que era 60 anos atrás.

Existem muito mais países hoje do que em 1948. Algumas ex-colônias

estão entrando no jogo global lado a lado com seus antigos senhores

coloniais. Pode-se esperar que as potências novas e as antigas se

unam, como fi zeram seus predecessores em 1948, para reafi rmar

seu compromisso com os direitos humanos? A julgar por 2007,

o quadro não é nada promissor. E quanto às novas lideranças

e às pressões da sociedade civil, farão alguma diferença neste ano

de aniversário?

Um histórico desanimador

Na condição de país mais poderoso do globo, os Estados Unidos

estabelecem os parâmetros para o comportamento dos governos

em todo o mundo. Com um obscurecimento legal impressionante,

o governo dos EUA prosseguiu em seus esforços para enfraquecer

a proibição absoluta da tortura e de outros maus-tratos.

Autoridades de alto escalão recusaram-se a denunciar a infame

prática de asfi xia na “prancha d’água” (waterboarding).

O presidente dos EUA autorizou que a CIA prosseguisse com as

detenções e com os interrogatórios secretos, mesmo que isso

consista no crime internacional de desaparecimento forçado.

Centenas de prisioneiros em Guantánamo e em Bagram, além

de milhares no Iraque, continuaram a ser detidos sem acusação

nem julgamento. Muitos deles estão há mais de seis anos nessa

condição. O governo dos EUA não só fracassou em tratar da

impunidade de suas forças no Iraque, como ainda foi na direção

contrária, concedendo imunidade à empresa de segurança privada

Blackwater durante as investigações sobre as mortes de civis

iraquianos em setembro de 2007. Essas ações não contribuíram

em nada para fazer avançar a luta contra o terrorismo, mas fi zeram

muito para prejudicar o prestígio e a infl uência dos Estados Unidos

no estrangeiro.

A vacuidade dos pedidos por democracia e por liberdade no

exterior, feitos pelo governo dos EUA, fi cou evidenciada através de

seu constante apoio ao Presidente Musharraf, quando o governo

paquistanês prendia milhares de advogados, de jornalistas,

de defensores de direitos humanos e de ativistas políticos que

clamavam por democracia, por um Estado de direito e por

independência do Judiciário no Paquistão. Enquanto o Presidente

Musharraf ilegalmente impunha um estado de emergência,

destituía o presidente do Supremo Tribunal e lotava os tribunais

superiores com juízes mais obedientes, o governo estadunidense

justifi cava o apoio que lhe dava alegando tratar-se de um aliado

“indispensável” na “guerra ao terror”. A insegurança crescente

nas cidades e nas regiões de fronteira do Paquistão, porém,

indicam que, longe de conter a violência extremista, as políticas

repressoras do Presidente Musharraf, incluindo desaparecimentos

forçados e detenções arbitrárias, têm fomentado as desavenças

e contribuído para estimular sentimentos antiocidentais, lançando

as sementes de uma maior instabilidade na sub-região. Embora

os EUA continuem a acolher o Presidente Musharraf, o povo

paquistanês manifestou o quanto repudia suas políticas.

O mundo precisa que os Estados Unidos estejam verdadeiramente

engajados e comprometidos com a causa dos direitos humanos,

tanto em seu território quanto no exterior. Em novembro de 2008,

a população dos EUA elegeu um novo presidente. Para que

o país tenha autoridade moral como defensor dos direitos humanos,

o novo governo deverá fechar a prisão de Guantánamo e julgar

os detentos em tribunais federais comuns ou, então, soltá-los.

Deverá revogar a Lei de Comissões Militares e assegurar o respeito

pelo direito internacional humanitário e pelos direitos humanos em

todas as suas operações militares e de segurança. Deverá proibir

as provas obtidas mediante coerção e denunciar todas as formas

de tortura e de outros maus-tratos, quaisquer que sejam suas

fi nalidades. O novo governo deverá estabelecer uma estratégia

viável para a paz e a segurança internacionais. Deverá abandonar

o apoio a líderes autoritários e investir em instituições democráticas,

no Estado de direito e nos direitos humanos, o que possibilitará

uma segurança duradoura. Deverá, ainda, estar preparado para

acabar com o isolamento dos EUA no sistema internacional de

direitos humanos e para engajar-se de maneira construtiva com

o Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Se o governo dos Estados Unidos tem se destacado recentemente

por afrontar o direito internacional, os governos da Europa têm

demonstrado uma propensão à aplicação de dois pesos e duas

medidas. A União Européia (UE) pretende ser “uma união de

valores, unida pelo respeito ao Estado de direito, moldada por

normas comuns e pelo consenso, comprometida com a tolerância,

a democracia e os direitos humanos”. Contudo, em 2007, surgiram

novas evidências de que diversos Estados-membros da União

Européia voltaram-se para o lado oposto e foram coniventes com

a CIA no sequestro, na detenção secreta e na transferência ilegal

de prisioneiros para países em que foram torturados ou sofreram

maus-tratos. Apesar dos repetidos apelos do Conselho da Europa,

nenhum governo investigou completamente esses delitos, nem

deixou claro o que aconteceu ou adotou medidas adequadas

para impedir uma futura utilização do território europeu para

transferências extrajudiciais e detenções secretas.

Ao contrário, alguns governos europeus procuraram enfraquecer

uma decisão da Corte Européia de Direitos Humanos, de 1996,

proibindo o repatriamento de suspeitos para países em que

poderiam sofrer tortura. A Corte se pronunciou com relação

a um dos dois casos que ainda aguardavam decisão em 2007,

reafi rmando a proibição absoluta da tortura e de outras formas de

maus-tratos.

Enquanto muitos reclamam por causa dos excessos regulatórios

da UE, ninguém se incomoda com a falta de regulação em matéria

de direitos humanos no âmbito interno da União. A verdade é que

a União Européia não consegue cobrar de seus Estados-membros

responsabilidade por questões de direitos humanos externas ao

arcabouço legal da UE. A Agência dos Direitos Fundamentais da

União Européia, criada em 2007, recebeu um mandato tão limitado

que não lhe permitia exigir qualquer prestação de contas. Embora

a UE estabeleça parâmetros de direitos humanos elevados para os

Page 64: Alexandre Morais - redução maioridade penal

66

países que pretendem aderir ao bloco (e o faz com razão), uma vez

que esses países são admitidos, eles podem violar as normas da UE,

tendo que prestar pouca ou nenhuma satisfação à organização.

Poderão os Estados-membros da UE pedir que a China ou

a Rússia respeitem os direitos humanos quando eles mesmos são

cúmplices com a tortura? Poderá a UE pedir que outros países –

muito mais pobres – mantenham suas fronteiras abertas quando

seus próprios Estados-membros estão restringindo os direitos dos

refugiados e dos requerentes de asilo? Poderá a União Européia

pregar a tolerância no exterior quando fracassa em enfrentar

a discriminação contra ciganos, muçulmanos e outras minorias

que vivem dentro de seu próprio território?

O ano de 2008, tanto para os EUA quanto para a UE, foi um período

de importantes transições políticas. O Tratado de Lisboa, assinado

pelos governos da União Européia em dezembro de 2007, exige

que novos compromissos institucionais sejam engendrados por

seus Estados-membros. Em alguns dos Estados-membros mais

importantes, eleições e outros acontecimentos políticos fi zeram

ou farão emergir novas lideranças políticas. Eventos como esses

oferecem oportunidades para iniciativas de direitos humanos tanto

no âmbito da UE quanto em nível global.

Quando os Estados Unidos e a União Européia causam danos

a sua reputação em matéria de direitos humanos, sua habilidade

para infl uenciar os outros diminui. Um dos exemplos mais visíveis

da esterilidade que infundiram aos direitos humanos foi o caso de

Mianmar, em 2007. A junta militar do país reprimiu com violência

as manifestações pacífi cas organizadas por monges, invadiu

e fechou monastérios, confi scou e destruiu propriedade, espancou,

prendeu e atirou nos manifestantes, hostilizou e tomou como

reféns seus amigos e seus familiares.

Os EUA e a UE condenaram essas ações em termos bastante fortes

e intensifi caram seus embargos comerciais e de armamentos;

porém, isso não teve, praticamente, qualquer efeito concreto

sobre a situação de direitos humanos. Milhares de pessoas

continuaram a ser detidas em Mianmar, entre as quais ao menos

700 prisioneiros de consciência, sendo a mais proeminente entre

eles a ganhadora do prêmio Nobel da Paz, Aung San Suu Kyi, que

passou 12 dos últimos 18 anos sob prisão domiciliar.

Do mesmo modo que em Mianmar, também em Darfur os governos

ocidentais praticamente não exerceram qualquer infl uência sobre

a situação de direitos humanos. Embora a indignação e as amplas

mobilizações da opinião pública internacional tenham gravado

o nome de Darfur na consciência mundial, para o sofrimento das

pessoas, isso não fez quase nenhuma diferença. Os assassinatos,

os estupros e a violência prosseguiram implacavelmente e, se

é que algo aconteceu, o confl ito tornou-se ainda mais complexo

e uma solução política tornou-se ainda mais remota. Apesar de

uma série de resoluções do Conselho de Segurança da ONU,

o posicionamento de forças híbridas da União Africana e da ONU

na região ainda não havia acontecido integralmente.

Potências emergentes

Tanto com relação a Mianmar quanto a Darfur, o mundo voltou-

se não para os Estados Unidos, mas para a China, como o país

com a infl uência política e econômica necessária para fazer

as coisas acontecerem – e não sem razão. A China é o maior

parceiro comercial do Sudão e o segundo maior de Mianmar.

A Anistia Internacional, através de suas pesquisas, mostrou que

armamentos chineses estão sendo transferidos para Darfur em

desafi o ao embargo de armas imposto pela ONU. Há muito tempo

que a China justifi ca seu apoio a governos abusivos, tais como

os do Sudão, de Mianmar e do Zimbábue, defi nindo os direitos

humanos como sendo um assunto interno de Estados soberanos

e não como uma questão de sua política internacional de modo

que convenha aos interesses políticos e comerciais chineses.

A posição da China, porém, não é imutável nem intratável. Em

2007, o país votou a favor do destacamento de uma força de

manutenção da paz híbrida para Darfur, pressionou Mianmar

a aceitar a visita do enviado especial da ONU, e diminuiu o apoio

aberto que dava ao Presidente Mugabe, do Zimbábue. Os mesmos

fatores que, no passado, motivaram a China a estabelecer relações

com regimes repressores, podem muito bem ser a razão para as

mudanças observadas hoje em suas políticas para esses países:

a necessidade de fontes confi áveis de energia e de outros recursos

naturais. A Anistia Internacional e outras organizações de direitos

humanos, há muito tempo, têm argumentado que países com má

reputação em matéria de direitos humanos não criam um ambiente

propício para os negócios – negócios precisam de estabilidade,

e é isso que os direitos humanos propiciam. É possível que

também a China esteja começando a reconhecer que apoiar

regimes instáveis com má reputação em direitos humanos não faz

sentido para os negócios e que, se o país quiser proteger seus

bens e seus cidadãos no exterior, deverá apoiar valores globais

que criem estabilidade política a longo prazo.

Entretanto, mesmo com essas mudanças em sua diplomacia,

a China ainda tem um longo caminho a percorrer. O país continua

sendo, desde 2004, o maior fornecedor de armas para o Sudão.

Em janeiro de 2007, a China votou contra uma resolução do

Conselho de Segurança da ONU que condenava as práticas de

direitos humanos de Mianmar. Além disso, o país ainda terá de

cumprir as promessas de direitos humanos que fez antes das

Olimpíadas de Pequim.

Algumas reformas na aplicação da pena de morte e o relaxamento

nas regras para a imprensa estrangeira, observados em 2007,

foram obscurecidos pela repressão aos ativistas de direitos

humanos e à imprensa dentro da China, e também pela ampliação

do escopo da “reeducação pelo trabalho” (uma forma de detenção

sem acusação ou julgamento), como parte de um esforço para

“limpar” Pequim antes das Olimpíadas.

No período que antecedeu os Jogos Olímpicos, o espaço para

melhoras na situação de direitos humanos da China foi reduzido, ao

passo que os confrontos aumentaram. Assim que baixar a poeira

das Olimpíadas, a comunidade internacional precisará desenvolver

uma estratégia efi caz para levar o debate de direitos humanos

com a China a um plano mais produtivo e mais progressivo.

O governo chinês, de sua parte, deverá reconhecer que

a liderança global traz consigo responsabilidades e expectativas,

e que um jogador global, se quiser ser digno de crédito, não

Page 65: Alexandre Morais - redução maioridade penal

67

poderá ignorar os valores e princípios que formam a identidade

coletiva da comunidade internacional.

E a Rússia, como se sai em termos de liderança de direitos

humanos? Uma Rússia cheia de autoconfi ança e afl uente com

os rendimentos do petróleo tem reprimido as opiniões políticas

divergentes, exercido pressão sobre os jornalistas independentes

e introduzido controles para refrear as ONGs. Em 2007,

manifestações pacífi cas foram dispersadas com o uso da força,

enquanto advogados, defensores de direitos humanos e jornalistas

eram ameaçados e atacados. O sistema judicial permaneceu

vulnerável a pressões do Executivo. A corrupção arraigada

comprometeu o Estado de direito e a confi ança da população

no sistema legal. Na Chechênia, a impunidade praticamente não

tinha limites, fazendo com que as vítimas tivessem de recorrer

à Corte Européia de Direitos Humanos, em Estrassburgo, para

conseguir justiça.

Será que, a partir de 2008, o novo presidente russo, Dimitry

Medvedev, dará um tratamento diferente às questões de direitos

humanos? Faria muito bem dar uma olhada ao redor do mundo

para aprender a lição de que estabilidade política duradoura e

prosperidade econômica só podem ser construídas em sociedade

abertas em que os Estados prestem contas de seus atos.

Se os membros permanentes do Conselho de Segurança da

ONU fi zeram pouco para promover os direitos humanos e muito

para enfraquecê-los, que tipo de liderança podemos esperar de

potências emergentes como a África do Sul, o Brasil e a Índia?

Como uma democracia liberal de bases bem estabelecidas, com

forte tradição legal em questões de direitos humanos e com um

Judiciário independente, a Índia conta com o potencial para ser

um bom modelo. No Conselho de Direitos Humanos da ONU,

o país teve uma atuação positiva. A Índia pode ser creditada

ainda por ter ajudado a aproximar os principais partidos e os

insurgentes maoístas no Nepal, acabando com um prolongado

confl ito armado que provocou abusos de direitos humanos de

enormes proporções. Contudo, em matéria de direitos humanos,

a Índia ainda precisa ser mais enérgica em sua implementação

doméstica e mais franca ao exercer sua liderança internacional.

Em Mianmar, enquanto a junta militar investia com violência

contra as manifestações pacífi cas realizadas por monges e por

outros manifestantes, o governo indiano continuou com suas

negociações sobre extração de petróleo. Em Nandigram, Bengala

Ocidental, comunidades rurais foram atacadas e tiveram seus

integrantes feridos e mortos, com cumplicidade da polícia, quando

protestaram contra o estabelecimento de uma zona econômica

especial para a indústria.

O papel da África do Sul na NEPAD (Nova Parceria para

o Desenvolvimento da África) – que enfatiza questões de boa

governança – traz esperanças de que os líderes africanos

assumirão a responsabilidade por resolver os problemas africanos,

inclusive com relação aos direitos humanos. O governo da África

do Sul, porém, tem hesitado em se pronunciar sobre os abusos de

direitos humanos no Zimbábue. Os direitos humanos são aplicáveis

universalmente para todos – e nenhum país sabe disso melhor

do que a África do Sul. Poucos países têm uma responsabilidade

moral de promover esses valores universais, onde quer que

estejam sendo violados, maior que a da África do Sul.

Países como Brasil e México têm sido fi rmes tanto na promoção

dos direitos humanos em nível internacional quanto em seu apoio

à engrenagem de direitos humanos da ONU. No entanto, a menos

que a distância entre suas políticas no plano internacional e seu

desempenho no âmbito doméstico seja diminuída, sua credibilidade

como defensores dos direitos humanos será contestada.

Direitos humanos não são valores ocidentais – na verdade, os

governos ocidentais têm mostrado tanto desdém pelos direitos

humanos quanto qualquer outro governo. Eles são valores universais

e, como tais, suas perspectivas de sucesso estão interligadas

à liderança das Nações Unidas. Embora o Conselho de Segurança

da ONU tenha permanecido imobilizado em questões de direitos

humanos por causa dos interesses divergentes de seus membros

permanentes, em 2007 a Assembléia Geral da ONU demonstrou

seu potencial de liderança ao adotar uma resolução pedindo uma

moratória universal da pena de morte. É exatamente esse tipo de

orientação que o mundo precisa das Nações Unidas: Estados

que inspirem uns aos outros a aprimorarem seu desempenho, ao

invés de se nivelarem por baixo. Isso é o melhor que a ONU pode

oferecer. Terá o Conselho de Direitos Humanos da ONU esse

tipo de liderança em 2008 quando adotar o sistema de Revisão

Periódica Universal?

Em setembro de 2007, em uma demonstração de liderança corajosa

e impressionante, frente à oposição de Estados extremamente

poderosos, 143 dos Estados-membros da Assembléia Geral da

ONU votaram a favor da adoção da Declaração sobre os Direitos

dos Povos Indígenas, encerrando duas décadas de discussões.

Dois meses depois de a Austrália ter votado contra a Declaração,

o governo recém eleito do primeiro-ministro Kevin Rudd apresentou

um pedido formal de desculpas pelas leis e pelas políticas de

sucessivos governos que “infl igiram profunda afl ição, sofrimento

e prejuízo” à população indígena aborígine.

Construindo uma nova unidade de propósitos

Enquanto a ordem geopolítica passa por mudanças tectônicas,

as antigas potências estão renegando os direitos humanos, ao

passo que os novos líderes ainda não emergiram ou se mostram

ambivalentes com relação a esses direitos. Neste cenário, qual

é o futuro dos direitos humanos?

O caminho pela frente tem muitas pedras. Confl itos

entranhados – altamente visíveis no Oriente Médio, no Iraque

e no Afeganistão e esquecidos em lugares como o Sri Lanka

e a Somália, para citar apenas alguns – provocam sacrifícios

humanos enormes. Os líderes mundiais ou se atrapalham

nas suas tentativas de encontrar saídas para situações como

a do Iraque ou do Afeganistão, ou não têm a vontade política para

encontrá-las, como no caso de Israel e dos Territórios Palestinos

Ocupados. Este confl ito tão prolongado tem sido especialmente

marcado pelo fracasso de uma liderança internacional coletiva (na

forma de um quarteto constituído pelos Estados Unidos, pela União

Européia, pela Rússia e pela ONU) em lidar com a impunidade

e com a injustiça.

Page 66: Alexandre Morais - redução maioridade penal

68

Quando os mercados oscilam e os ricos usam sua posição

e infl uência indevidas para mitigar suas perdas, os interesses dos

mais pobres e dos mais vulneráveis perigam ser esquecidos. Um

grande número de empresas, com o apoio tácito de governos que

se recusam a investigá-las ou a regulá-las efetivamente, continua

a escapar da responsabilidade por seu envolvimento em abusos

e violações de direitos humanos.

Há muita retórica sobre erradicar a pobreza e pouca vontade

política para agir. Pelo menos dois bilhões de integrantes de nossa

comunidade humana continuam a viver na pobreza, lutando para

conseguir água potável, comida e moradia. Embora as mudanças

climáticas afetem todos nós, os mais pobres serão os mais

prejudicados, pois perderão suas terras, seus alimentos e seus

meios de vida. Julho de 2007 marca o ponto medial do cronograma

estabelecido pela ONU para alcançar as Metas de Desenvolvimento

do Milênio. Apesar de nada perfeitas, a realização dessas metas

signifi caria um bom caminho andado na direção de melhorar, até

2015, a saúde, as condições de vida e a educação de grande parte

das populações do mundo em desenvolvimento. O mundo, porém,

não está no rumo certo para alcançar a maioria dessas metas

mínimas e, infelizmente, os direitos humanos não estão sendo

levados em conta nesse processo. Evidentemente, uma mudança

de foco e novas iniciativas são mais do que necessárias.

E a liderança para erradicar a violência baseada em gênero, onde

está? Em quase todas as regiões do mundo, mulheres e meninas

sofrem com os níveis elevados de violência sexual. Na região

de Darfur, destroçada pela guerra, os estupros e a impunidade

ainda persistem. Nos EUA, muitas sobreviventes de estupro de

comunidades indígenas carentes e marginalizadas não conseguem

obter justiça nem proteção efetiva por parte das autoridades

federais ou das tribais. Os líderes devem estar mais atentos a fazer

com que os direitos de mulheres e meninas sejam realidade.

Todos esses são desafi os globais com uma dimensão humana.

Por isso, exigem uma resposta global. Os direitos humanos

reconhecidos internacionalmente oferecem a melhor estrutura

para essa resposta, pois representam um consenso global com

relação aos limites aceitáveis e aos problemas inaceitáveis das

políticas e das práticas governamentais.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos é hoje um modelo

tão apropriado para uma liderança iluminada quanto o era em

1948. Os governos, portanto, devem renovar seu compromisso

com os direitos humanos.

Populações inquietas, indignadas e desiludidas não permanecerão

silenciosas se o abismo que existe entre suas demandas por

igualdade e liberdade e a resposta dos governos a essas demandas

aumentar a cada dia. O descontentamento popular com a alta

acentuada no preço do arroz em Bangladesh, os distúrbios

causados no Egito pelo preço do pão, a violência pós-eleitoral

no Quênia e as manifestações que ocorreram na China por causa

de despejos e de questões ambientais não são apenas exemplos

da preocupação popular com temas sociais e econômicos. São

sinais da ebulição de um caldeirão de protestos dos movimentos

populares, infl amado pela traição de seus governos às promessas

que fi zeram de justiça e de igualdade.

De um modo praticamente inimaginável em 1948, existe hoje um

movimento global de cidadãos exigindo que seus líderes renovem

seu compromisso com a defesa e a promoção dos direitos

humanos. Advogados em ternos pretos no Paquistão, monges

com trajes alaranjados em Mianmar, os 43,7 milhões de pessoas

no mundo que, em 17 de outubro de 2007, exigiram uma ação

contra a pobreza, são fortes sinais, emitidos nesse ano passado,

de que uma cidadania global está determinada a defender os

direitos humanos e a cobrar de seus líderes responsabilidade pelo

que fazem.

Em um povoado do norte de Bangladesh, um grupo de mulheres

senta sobre esteiras de bambu, em um local poeirento no centro

da aldeia. Elas participam de um programa de formação legal.

A maioria delas, mal sabe ler ou escrever. Elas ouvem com

atenção o professor que, auxiliado por cartazes com esquemas e

fi guras, ensina sobre uma lei que proíbe o casamento de crianças

e que requer da mulher uma manifestação de consentimento com

o casamento. Essas mulheres acabaram de receber fi nanciamentos

por meio de um projeto de microcrédito operado por uma importante

ONG de desenvolvimento rural de Bangladesh (Bangladesh Rural

Advancement Committee). Uma das mulheres adquiriu uma vaca

e espera conseguir uma renda extra vendendo leite. Outra planeja

comprar uma máquina de costura e abrir uma pequena confecção

própria. O que ela espera dessa aula? “Quero saber mais sobre os

meus direitos”, diz ela. “Não quero que minhas fi lhas sofram o que

eu sofri; por isso, tenho que aprender a proteger os meus direitos

e também os delas.” Pode-se ver nos seus olhos um brilho de

determinação que, por todo o mundo, está nos olhos de milhões

de pessoas como ela.

Neste aniversário dos 60 anos da DUDH, o poder que têm as

pessoas de criar esperanças e de produzir mudanças está tão

vivo quanto nunca. Uma consciência de direitos humanos está

envolvendo o planeta.

Os líderes mundiais se arriscam por ignorá-la.

Anistia Internacional, em solidariedade a todos os defensores de

direitos humanos do mundo no 60º aniversário da Declaração

Universal dos Direitos Humanos.

* IRENE KHANSecretaria Geral da Anistia Internacional

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69

“A criança é o princípio sem fi m, o fi m da criança é o princípio do

fi m. Quando uma sociedade deixa matar as crianças é porque

começou seu suicídio como sociedade. Quando não as ama

é porque deixou de se reconhecer como humanidade.

Se não vejo na criança uma criança, é porque alguém a violentou

antes e o que vejo é o que sobrou de tudo o que lhe foi tirado.

Mas essa que vejo na rua sem pai, sem mãe, sem casa, cama

e comida; essa que vive a solidão das noites sem gente por

perto, é um grito, é um espanto.

Diante dela, o mundo deveria parar para começar um novo

encontro, porque a criança é o princípio sem fi m e o seu fi m

é o fi m de todos nós.”

Herbert de Souza (Betinho)

Quando há mais ou menos 3.000 anos atrás

o homem passou a viver em grupo, estava em

busca da proteção que a reunião de iguais poderia

lhe dar, proteção contra animais selvagens

e contra aspectos geográfi cos e climáticos.

Porém viver em grupo não é apenas uma união

entre semelhantes. Estas mesmas pessoas

que inicialmente parecem iguais se

comparadas às feras que os ameaçam,

não resolvem seus confl itos de forma linear

e precisam de regras e/ou normas de

condutas para que possam viver em paz e harmonia. Na busca

desta estrutura ideal começam a existir os primeiros grupos

sociais e conseqüentemente nossas primeiras sociedades

organizadas.

Com a evolução das relações econômicas o que era delineado

como pertinente para os primeiros indivíduos não mais satisfaz os

atores que desempenham papeis fundamentais nestas primeiras

estruturas sociais. O que antes era apenas busca de proteção

à vida e qualidade deste viver, passa a ser também proteção

a propriedades e bens acumulados por aqueles que aparentemente

vivem em harmonia.

Para a preservação deste conjunto de interesses, inúmeras vezes

confl ituosos, faz-se necessária a criação de regras e leis que

controlem a participação na sociedade, é preciso que os papéis

sejam bem defi nidos e respeitados, com direitos e deveres claros

para todos aqueles que pretendem viver hegemonicamente

nestes grupos sociais. Como já foi dito anteriormente, quando

está em jogo à proteção à vida ou a sua qualidade todo indivíduo

pode e deve ser tratado de forma igualitária, porém quando se

trata de proteção às propriedades a situação se inverte, pois

a possibilidade de aquisição desses bens nunca se dá de forma

igual, principalmente com a estrutura econômica predominante no

mundo ocidental. Portanto o controle destes grupos sociais não

pode se dar apenas por uma legislação que em princípio prevê

igualdade entre pares. Segundo Gramsci “A burguesia mantêm

o controle sobre toda a sociedade não apenas através da coerção

política ou econômica, porém também pela cooptação ideológica,

por meio de uma cultura hegemônica na qual os valores

e interesses particulares da burguesia se tornam o senso comum”.

Nesta estrutura, ainda segundo o autor, é preciso que o “senso

comum”, entendido como uma construção mental imposta por

um grupo dominante torne natural a existência de privilégios

e a dominação de um indivíduo ou grupo por outro.

As consequências de uma sociedade que têm como base a

desigualdade e a dominação de um ser humano por outro seu

igual, são vividas diariamente pelo povo

brasileiro. Nesse contexto, deparamo-nos

com a violência e a desesperança que

geram a busca de soluções que cada vez

mais segregam e distanciam aqueles que

inicialmente buscavam proteção ao viver

em grupos.

O que hoje confi gura a sociedade brasileira

está longe de oferecer proteção à maioria

de sua população, segundo pesquisa

realizada pelo Centro de Políticas Sociais

da Fundação Getúlio Vargas divulgado em abril de 2006, intitulado

“Mapa do Fim da Fome II”. Conforme seus resultados, o Brasil

possui 56 milhões de pessoas vivendo na indigência com renda

inferior a R$ 79,00 por mês. A situação é mais alarmante, pois

cerca de 45% dos miseráveis brasileiros têm 15 ou menos anos

de idade.

Este grupo é o objeto de nosso estudo e prática, são estas as

crianças e adolescentes que têm seus direitos básicos restringidos

antes mesmo de nascerem. A luta pelo reconhecimento dos direitos

fundamentais de crianças e adolescentes enquanto “pessoa

em condição peculiar de desenvolvimento” passa pela garantia

de promoção e proteção através de instrumentos normativos

e políticas públicas de atendimento.

Contamos, hoje com uma legislação que lhes garante Proteção

Integral e Direitos Fundamentais através do Estatuto da Criança

e do Adolescente lei federal 8.069/901[2], porém o que está

previsto em lei não corresponde à prática, carecemos de políticas

e dotação orçamentária para execução da lei. A existência de

crianças e adolescentes em situação de rua na cidade do Rio de

Janeiro é a prova visual disto.

UM ENCONTRO COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES QUE ESTÃONAS RUAS – RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA INSTITUCIONAL.

MÔNICA DE ALKMIM MOREIRA NUNES*

“A luta pelo reconhecimento

dos direitos fundamentais de

crianças e adolescentes enquanto

“pessoa em condição peculiar

de desenvolvimento” passa

pela garantia de promoção e

proteção através de instrumentos

normativos e políticas públicas

de atendimento.”

1[2]Estatuto da Criança e do Adolescente lei federal 8.069/90-Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fi m de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.

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70

É preciso que além das leis e normas de convivência a sociedade

não se acostume e ache natural a moradia nas ruas, não porque

de alguma forma isso incomoda aos moradores dos prédios

e comerciantes adjacentes, nem porque sentimos pena ou

medo, o que acarretaria numa busca por soluções higienistas

e repressoras, mas principalmente por entendermos que

a existência de crianças e adolescentes vivendo em situação de

rua não é um momento histórico ou um problema específi co de

uma classe social e econômica, do qual somente somos atingidos

por seus efeitos e conseqüências. A grande questão que se coloca

aqui é a importância de admitirmos nossa co-responsabilidade,

ou seja, o fato de que essa é uma situação produzida por

todos nós que compomos a sociedade em que vivemos.

Em outras palavras: somos “vítimas” daquilo que contribuímos

para produzir, mesmo que seja por nossa omissão enquanto

sujeitos políticos.

É urgente entendermos que a situação de extrema vulnerabilidade

social, não acesso ou ausência de direitos de uma camada tão

expressiva em números e características de nossa sociedade,

não é problema dos outros, mas antes sim uma conseqüência

natural desta estrutura econômico social a qual reproduzimos

sem questionar de países economicamente bem sucedidos.

Apenas com este entendimento poderemos buscar soluções

que realmente atendam a todos, não apenas aqueles que estão

dormindo pelas calçadas, mas também aqueles não mais passam

por essas mesmas áreas por medo uns dos outros.

É preciso perceber a ida para as ruas como parte de um

problema maior que não envolve somente aqueles que sofrem

as conseqüências desta sociedade produtora de tantas

desesperanças. Quando nos propomos a trabalhar com este

público, não queremos, com isso, nos limitar a busca de soluções

individuais que resolvam apenas o problema daquele que está na

rua. Queremos, através destas crianças e adolescentes, promover

uma indignação social que não fi que aguardando promessas de

um futuro melhor, que ajam, transformem e reivindiquem seus

espaços de igualdade de direitos.

Partimos da defi nição de que criança e adolescente em situação

de rua é todo aquele que vive permanentemente nas ruas ou que,

mesmo possuindo referência familiar têm nas ruas atividades

de subsistência ou referências afetivas que o leve a pernoites

contínuos.

O trabalho que a Associação Benefi cente São Martinho realiza com

crianças e adolescente em situação de rua há 25 anos passou

por um longo processo transformador de postura ideológica e

conseqüentemente de análise metodológica.

A história da instituição se confunde e entrelaça com a história

da sociedade civil organizada no município do Rio de Janeiro.

Quando em 1984 um grupo de voluntários, sensibilizado com a

situação em que viviam dezenas de crianças e adolescentes que

perambulavam pela Praça Tiradentes e Estação Rodoviária passa

a estar diariamente com este público, deu-se início ao trabalho de

abordagem nas ruas da cidade. Ainda sob um olhar assistencialista,

os voluntários se disponibilizavam a oferecer comida, materiais

de higiene e roupas para os meninos que lá estavam. Após seis

anos de trabalho sistemático de abordagens, em 1990 este grupo

voluntário, já constituído na Associação Benefi cente São Martinho,

ganha um espaço para realização de atividades sócio educativas

no coração da Lapa. Sob os arcos o prédio conhecido com

Centro Sócio Educativo passa a ser uma referência do trabalho

com crianças e adolescentes em situação de rua, tanto para

a sociedade política, como para a sociedade civil. É neste contexto

que a equipe, já constituída por profi ssionais, revê e repensa sua

prática. Como nos diz Cornelius Castoriadis (1982) “Chamamos

de práxis este fazer no qual o outro ou os outros são visados

como seres autônomos e considerados como o agente essencial

do desenvolvimento de sua própria autonomia... a autonomia do

outro ou dos outros é, ao mesmo tempo, o fi m e o meio.”

No 2º semestre de 2004, buscando uma postura menos

assistencialista e mais emancipadora, o projeto Ao Encontro

dos Meninos em Situação de Rua reformula sua estrutura

metodológica objetivando um posicionamento crítico de

crianças e adolescentes em situação de risco social nas ruas

buscando a transformação da ordem social. Não podemos

mais ver este menino com um “indivíduo carente” que inicia sua

história quando passa a ter contato com a Instituição, ele tem

um processo anterior, que faz parte de um contexto familiar e

comunitário com inúmeras possibilidades futuras.

Sendo assim, tornou-se necessário que o educador social,

compreendesse as estruturas sociais dos atendidos (familiar,

sócio-econômica, e política do país), suas fragilidades (narcotráfi co,

violência nas suas diversas formas de manifestação e a miséria),

suas estratégias de sobrevivência e a dinâmica do grupo e do

entorno, visto que esses fatores estimulam a ida para as ruas,

é este profi ssional que através das abordagens estabelece uma

relação de confi ança e troca com crianças e adolescentes que

estão no centro e zona sul do Rio de Janeiro.

A metodologia utilizada nas abordagens se inspira em alguns

autores e teóricos da sociologia, antropologia e pedagogia.

Um de nossos mais importantes inspiradores é Paulo Freire com

sua crença de “que há uma relação indissociável entre a educação

e a política... A autêntica educação é política. A prática educativa,

a formação humana, implica opções, rupturas e decisões

a favor de algum sonho.” Nesse sentido, o projeto investe na

consciência crítica dos atendidos. É preciso que nós refl itamos sobre

questões como cidadania, direitos e deveres, responsabilidade

individual, familiar e governamental. É fundamental, sobretudo,

que essas crianças e adolescentes voltem a sonhar, a desejar,

a investir em um futuro promissor, como qualquer criança

faz. Nas atividades realizadas nas ruas os educadores não

pretendem levar respostas ou posturas ideais, se questionam

e questionam junto com os meninos essas categorias que

impõem idéias e ideais preconcebidos. O educador é um

fomentador, mediador e participante destes debates, não se

coloca à margem da discussão e muito menos como observador.

Ele é parte desta organização social e busca soluções que

reestruture e não adapte os ditos “marginalizados”. As estratégias

utilizadas para promover esses momentos de discussões

são: arte-educação, com leituras de livros, jornais e criação

de estórias; esporte dando ênfase nos jogos coletivos e a cultura

incluindo música e capoeira.

Page 69: Alexandre Morais - redução maioridade penal

71

Contudo observamos que as comunidades que abrigam em suas

calçadas crianças e adolescentes se sentem incomodadas com

a situação e esperam que o problema seja resolvido. Porém,

é no momento da solução que elas se dividem: enquanto

alguns desejam, apenas, deixar de ver as crianças ali, outros se

preocupam com o motivo que as levaram a esta situação e o que

pode ser feito para que elas tenham qualidade de vida o que será,

certamente, em outro lugar.

Com o primeiro grupo é preciso realizar um trabalho de

conscientização que não pode se basear, apenas, no discurso

já tão desgastado pela ausência de solução. É preciso mostrar-

lhes as habilidades e competências que essas crianças

e adolescentes têm quando estimuladas. Uma alternativa é realizar

o que chamamos “abordagem coletiva”. Nesse espaço, a equipe

vai para as ruas (coordenadora, assistente social, psicóloga,

pedagoga, médico, dentista e enfermeira) é um momento onde

realizamos apresentação de capoeira, música, desenhos e peça

de teatro, com a participação de todos.

É preenchido, também pela equipe um formulário chamado

de marco zero, onde é anotada a percepção das relações, hostis

ou não, dos atores sociais do entorno com relação às crianças

e adolescentes em situação de rua. É muito importante que

possamos levar a refl exão sobre a situação de moradia nas

ruas para aqueles que moram nas calçadas e para os que moram

nos prédios.

Quando esta refl exão leva aos meninos um desejo de mudança

de sua situação eles realizam, com a equipe técnica, atendimento

psicossocial iniciando o processo de saída das ruas e conseqüentes

busca dos direitos que lhes foram negados como retirada de

documentos, retorno à escola e ao convívio familiar e comunitário.

Muitas vezes esse processo é bastante difícil, pois os problemas

que os levaram a ir para rua permanecem em suas comunidades

de origem: faltam de vagas nas escolas, emprego, violência

familiar e envolvimento com o tráfi co. Para isso a articulação

com programas governamentais existentes e instituições não

governamentais que atuam nessas áreas é fundamental.

A vida na rua hoje, não difere muito dos 24 anos passados de

atendimento da São Martinho. É uma realidade difícil em que

precisamos enfrentar a violência explícita e física da polícia e do

governo com ausência de políticas voltadas para garantia dos

direitos básicos previstos na lei e também enfrentar a sociedade

com sua violência implícita de olhares de medo e negação da sua

parcela de responsabilidade neste quadro geral de vivência nas

ruas ou pelas ruas.

A busca de soluções por parte destes grupos que realmente

poderiam criar caminhos dignos de vida comunitária se dá sempre

através da repressão dos mecanismos de segurança. E hoje com

acúmulo de “forças majoritárias clandestinas”, o crescimento da

atuação das milícias nas comunidades do Rio de Janeiro é um

exemplo desta força.

Acreditar que a solução para problemas de segurança não passa

pelas esferas governamentais, é um descrédito da organização

da própria sociedade. Se aqueles que nos representam ofi cial

e legalmente não respondem a contento nossos anseios e para

isso delegamos a grupos que se utilizam das mesmas armas

que aqueles que nos agridem, estamos assim instituindo o caos

público e regredindo ao estado primitivo da lei do mais forte e “do

olho por olho dente por dente”.

Dentro desta nova desordem pública os mais atingidos são aqueles

que não podem pagar por essa fugaz sensação de segurança

e que historicamente já vivenciam a ausência de direitos básicos,

também pagos por quem pode como educação e saúde de

qualidade, moradia e a também desejada segurança.

É esse o público com o qual a São Martinho trabalha por não

acreditar em uma estrutura social que identifi ca crianças

e adolescentes como um caso de polícia.

Referências Bibliográfi cas:

– Castoriadis, Cornelius. A Instituição imaginária da sociedade,

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982

– Costa, A.C.G. e outros.Brasil criança urgente. Belo Horizonte:

Columbus Cultural, 1993

– Freire, Paulo. Educação como prática da Liberdade, Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1983

– Graciani, Maria Stela S. Pedagogia social de rua. São Paulo:

Cortez, Instituto Paulo Freire, 2001

– Gramisci, A. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 199-2002,v2

– Pereira, Pedro. Proteção dos Direitos Humanos-dilemas e

desafi os para a cidadania de criança e adolescentes no contexto

da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro, 2006

– Pizá, Graça & Barbosa, Gabriela F. coordenação. A violência

silenciosa do incesto, Rio de Janeiro: Clinica Psicanalítica da

Violência, 2004

– Rizzini, I. Vidas nas Ruas– crianças e adolescentes nas

ruas:trajetórias inevitáveis? Rio de Janeiro:PUC

– Sousa, Dario – pesquisa. Perfi s e trajetórias de crianças e

adolescentes que vivem nas ruas da zona sul carioca e Barra da

Tijuca. Rio de Janeiro: UERJ, 2007

*MÔNICA DE ALKMIM MOREIRA NUNESPedagoga, Pós-Graduada em Filosofi a da Educação, Coordenadora do Projeto Ao Encontro dos Meninos em

Situação de Rua da Associação Benefi cente São Martinho no período de 2004 a 2008.

Page 70: Alexandre Morais - redução maioridade penal

72

Durante os primeiros séculos da colonização portuguesa, a prática

em relação à criança indígena era a de separá-la de sua família

para moldá-la aos costumes ditos civilizados e cristãos, e em

relação à criança negra era a de sua incorporação como força de

trabalho escrava, tão logo atingisse a idade dos sete anos. Quanto

à assistência, limitava-se ao recolhimento de expostos e órfãos

em instituições caritativas. Não existia, àquela época, “a criança”,

pensada como categoria genérica, em relação à qual se pudesse

deduzir algum direito universal, pois não existia o pressuposto da

igualdade entre as pessoas, sendo a sociedade colonial construída

justamente na relação desigual senhor/escravo2.

O que existiam eram categorias diferenciadas de crianças

como os “fi lhos de família”, os “meninos da terra”, os “fi lhos dos

escravos”, os “órfãos”, os “expostos”, os “desvalidos”; ou ainda,

os “pardinhos”, os “cabrinhas”, os “negrinhos”.

Os “fi lhos legítimos de legítimo matrimônio

cristão” não colocavam problemas à ordem

social, pois que, justamente, encontravam-se

sob o controle do “pai de família”, que tinha

poderes quase ilimitados. Da mesma forma,

os meninos da “terra”, contidos nos colégios

jesuítas e os “negrinhos”, propriedades

do senhor, encontravam-se controlados

socialmente através destas relações de posse

e assujeitamento. Os “expostos” e os “órfãos”,

embora sem o suporte familiar, encontravam

nos estabelecimentos mantidos pela caridade, como as Casas da

Roda e os Recolhimentos das Órfãs, o seu guardião legal.

Naquela época, as categorias que colocavam problemas à ordem

social eram as gentes sem eira nem beira – os “mendigos”, os

“viciosos”, os “vadios” – fenômeno tão bem descrito por Laura

de Mello e Sousa no livro “Os desclassifi cados do ouro”. Essa

gente desclassifi cada não tinha como se inserir na estrutura dual

da sociedade colonial. Não eram escravos propriamente, porque

não haviam sido comprados e também não eram senhores, não

podendo ocupar posições na estrutura burocrática e administrativa

da Colônia. Existiam como uma espécie de “mão de obra de

reserva escrava”, temidos como sendo “a pior raça de gente”, mas

ao mesmo tempo reserva útil, objeto de recrutamentos forçados

sempre que o Estado necessitasse de milícias para o combate

aos quilombolas e aos índios, ou para a construção de estradas,

prisões e demais edifi cações e serviços3.

O problema modifi ca-se inteiramente quando os escravos,

a partir da Lei do Ventre Livre (1871) e da Abolição da Escravatura

(1888), adquirem a condição de livres e, portanto, de “fi lhos”

e “pais de família”, sem, contudo, adquirirem as condições materiais

para o exercício pleno da cidadania. Foi quando crianças pobres

passaram a ser encontradas nas ruas brincando, trabalhando,

pedindo esmolas ou eventualmente cometendo pequenos furtos.

Não se querendo reconhecê-las como tendo os mesmos direitos

e status dos “fi lhos de família”, situação tradicionalmente reservada

apenas aos bem nascidos socialmente, mas ao mesmo tempo não

se podendo acusá-las de “criminosas”, por não haverem cometido

infração alguma às leis penais, o que teria permitido recolhê-las

aos estabelecimentos carcerários, um novo arranjo tutelar terá

que ser inventado a partir da identifi cação destas crianças pobres

como “menores abandonados” e potencialmente “perigosos”,

ou seja, “órfãos de pais vivos” e “futuros criminosos”. Caberia

então ao Estado, neste novo arranjo, assisti-los caritativamente

como aos órfãos e expostos e, ao mesmo tempo, corrigi-los

e regenerá-los como aos condenados, só que preventivamente e

com a justifi cativa de sua proteção.

Assim e retrospectivamente, até os

anos 1870, nenhuma problematização

ou inquietação em relação a menores

ditos abandonados é encontrada nos

documentos ofi ciais do Império4. O que traz

preocupação, por um lado, é a situação

dos órfãos e dos expostos, objetos

da assistência caritativa, e por outro,

a situação dos menores nas

prisões, quando sujeitos às leis

penais. “Menor”, como aparece nos documentos,

é apenas uma variável de identifi cação nas estatísticas policiais,

que separavam os presos e os réus entre homens e mulheres, livres

e cativos, nacionais e estrangeiros, casados e solteiros, maiores

e menores de idade. Quando muito, os documentos lembravam

que os condenados menores de idade não deveriam fi car presos

juntos com os condenados maiores de idade, da mesma forma que

as mulheres deveriam estar em prisões distintas dos homens.

A categoria “menor abandonado” só emergirá no Brasil no bojo

da discussão sobre a reforma das prisões e após a Lei do Ventre

Livre e não, como se poderia supor a princípio, pelo viés da

caridade. Os estabelecimentos caritativos, à época, não se

preocupavam com os menores condenados, dedicando-se

apenas aos órfãos e expostos. Essas categorias de crianças,

inclusive, são tratadas em Relatórios Ministeriais distintos:

as estatísticas e considerações sobre os órfãos, expostos

e desvalidos são apresentadas nos Relatórios do Ministério

do Império sob a rubrica “instituições de caridade”, e as

considerações sobre os menores de idade sujeitos à lei

penal, nos Relatórios do Ministério da Justiça, sob a rubrica

“polícia” ou “prisões”5. Órfãos e expostos apenas são tratados nos

A REFORMA DAS PRISÕES, A LEI DO VENTRE LIVRE E A EMERGÊNCIA DA QUESTÃO DO “MENOR ABANDONADO”.1

ESTHER MARIA DE MAGALHÃES ARANTES*

“A Proteção Integral, de que trata

o Estatuto, se organiza em torno

de três fundamentos ou princípios

básicos, sem os quais não existe

tal Proteção Integral: crianças

e adolescentes são sujeitos de

direitos, são pessoas em condição

peculiar de desenvolvimento,

são prioridades absolutas.”

1 Para a confecção deste texto utilizou-se de material que já vem sendo pesquisado há 20 anos, em diferentes arquivos, como parte de um projeto sobre a História da Assistência à Infância no Brasil. Alguns destes achados de pesquisa já estão disponíveis em publicações diversas, conforme indicação bibliográfi ca nas Notas.2 Um dos objetivos da catequização dos povos indígenas foi justamente o de salvá-los de um suposto estado de inferioridade humana, civilizatória e espiritual: povos “sem Rei, Lei e Fé”. O “próximo” não era, portanto, qualquer outro humano, mas um súdito do Rei de Portugal e um cristão temente a Deus. 3 Ver: Direitos Humanos: um retrato das unidades de internação de adolescentes em confl ito com a lei. Conselho Federal de Psicologia – 3ª Edição Especial para a VII Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, 2007.4 Exceção é feira ao Decreto N. 1.331-A, de 17 de fevereiro de 1854, estabelecendo casas de asilos para os meninos encontrados em estado de pobreza. No entanto, apenas em 1875, justamente após a Lei do Ventre Livre, foi inaugurado no Rio de Janeiro o Asilo de Meninos Desvalidos.

Page 71: Alexandre Morais - redução maioridade penal

73

Relatórios do Ministério da Justiça quando vítimas: o órfão, quando

sua educação for negligenciada ou sua herança mal administrada

ou surrupiada pelo tutor, e o exposto, quando encontrado na via

pública, sujeito às intempéries do tempo, morto ou podendo vir

a falecer, ou quando jogados ao mar forem devolvidos às praias.

O que se constata, ao longo de todo o Império, é uma preocupação

constante com as mudanças na legislação penal e com a reforma

do sistema carcerário que deveria advir como consequência

dessas mudanças, uma vez que a penalidade mais comum passa

a ser a privação da liberdade e não mais as penas de morte,

degredo e galés. Ao mesmo tempo em que se elogia o progresso

civilizatório que as novas leis representam, equiparando-se

o Brasil aos países do primeiro mundo, tais leis são constantemente

combatidas, na medida em que se acredita que elas atrapalham

o trabalho da polícia, servindo mais para proteger os malfeitores

que os cidadãos honrados, além de que, com as prisões

superlotadas, pela primeira vez depara-se o Estado com uma

massa carcerária a ser administrada, passando as prisões

a serem defi nidas como “escolas do crime”.

É neste contexto - em que se discute a situação das prisões

e a criação de um sistema penitenciário em virtude das novas leis

penais e do processo, onde o acusado adquire o direito de se

defender e impetrar recursos, e a pena deixa de ter o caráter de

vingança e adquire a função de regeneração, e apenas após as leis

abolicionistas, quando cresce o número de pessoas pobres vivendo

e trabalhando nas ruas das grandes cidades - que a justifi cativa

para a apreensão da criança pobre será formulada, defi nindo-a

como “abandonada”, passando a ser voz comum a idéia de que

deveriam ser encaminhadas às “instituições preventivas”.

A difi culdade de se administrar a questão prisional passa

a decorrer diretamente do “problema do menor”, o que servirá

como justifi cativa “científi ca” para que os “menores criminosos”,

mas não sujeitos à lei penal por não terem agido com discernimento

e os menores que nenhum crime haviam cometido mas eram

considerados “mendigos”, “ociosos” e “vadios” pudessem ser

encaminhados às escolas correcionais e de reforma mediante

a suspensão ou destituição do pátrio poder, ou a pedido dos

próprios pais, por serem os fi lhos considerados “desobedientes”

ou “incorrigíveis”, ou a pedido da mãe viúva, por se sentir incapaz

de sustentar os fi lhos ou de proteger a honra da fi lha. Ao serem

recolhidos nas ruas pela polícia e levados à presença do Juiz de

Órfãos para receberem “destino”, a grande maioria destes menores

foi encaminhada ao trabalho, mediante soldada.

Recebendo como “destino” o trabalho em casas de família,

fábricas ou fazendas, ou encaminhados às escolas de aprendizes

de Guerra ou Marinha, sofrendo muitas vezes abusos de todas as

espécies, constituía este aprendizado do trabalho uma modalidade

de “servidão das crianças” ou “sequestro da infância pobre” em

tempo de pós-abolição e mão-de-obra escassa - só lhes restando

a alternativa da fuga do cativeiro, o que muitos realizaram, sendo

recapturados e novamente evadidos. Outros foram devolvidos ao

Juiz, por “não aprenderem o trabalho” ou por não aprenderem

a “disciplina do trabalho”, por apresentarem alguma doença

ou incapacidade, por terem sido acusados de furto ou de maus

hábitos, por terem sido defl oradas, porque não mais desejavam

o trabalho ou aquele trabalho. Alguns outros tiveram fi lhos, que

foram colocados na Casa dos Expostos. Outros ainda foram

enviados para o Hospício Nacional dos Alienados, ou faleceram.

A República, longe de mudar o foco desta discussão e reverter

este processo, o aprofundou, buscando instituir uma legislação

específi ca para os ditos menores, visando, sobretudo, o controle

daqueles considerados “moralmente abandonados”. Assim,

o Código Penal de 1890, apenas um ano após a Proclamação da

República (1889), regulamentou a idade da imputabilidade penal

em nove anos, permitindo o envio de crianças e adolescentes para

as casas de detenção. Ao não abolir, mas apenas regulamentar

a idade para o trabalho infantil, a República também permitiu que

crianças e adolescentes fi cassem fora da escola regular.

Construiu-se, desta forma, sobre a base da regulamentação

da idade penal e da regulamentação do trabalho infantil, da

possibilidade de destituição do pátrio poder em relação a

alguns menores e da internação dos mesmos menores em

estabelecimentos correcionais e de reforma, um sistema dual no

atendimento às crianças, uma vez que, enquanto o Código Civil

de 1916 tratava dos “fi lhos de família”, o Código de Menores de

19276 tratava dos menores “abandonados” ou “delinquentes”,

entre os quais: “expostos”, “mendigos”, “vadios”, “viciosos”

e “libertinos”.

Embora não se possam estabelecer apenas rupturas entre estes

dois modelos de assistência – coexistindo muitas vezes o mesmo

propósito de controle social e o mesmo método de confi namento

- podemos afi rmar, no entanto, que o sistema caritativo, de

natureza religiosa e asilar, ocupava-se basicamente da pobreza,

motivado principalmente pelo dever de salvação das almas. Já

a fi lantropia dita esclarecida, de natureza cientifi cista e favorável

a uma assistência estatal, tendeu sempre a uma gestão técnica

dos problemas sociais, ordenando os desvios a partir de um

modelo de normalidade que defi nia a criança pobre quase

sempre como “carente”, “anormal”, “defi ciente”, “perigosa”

ou “delinquente”.

Tal a abrangência deste sistema dito de proteção à infância que,

praticamente, cobria todo o universo de crianças e adolescentes

pobres, pois que à existência do “menor” correspondia uma

suposta família “desestruturada” - por oposição ao modelo

burguês de família tomado como norma - à qual a criança pobre

sempre escapava: seja porque não tinha família (“abandonada”

ou “órfã”); porque a família não podia assumir funções de

proteção (“carente”); porque não podia controlar os excessos

da criança (“conduta anti-social”); porque os comportamentos

e envolvimentos da criança ou do adolescente colocavam em

risco sua segurança, da família ou de terceiros (“infratora”); seja

porque a criança era dita portadora de algum desvio ou doença

com a qual a família não podia ou sabia lidar (“defi ciente”,

“doente mental”, com “desvios de conduta”); seja ainda porque,

necessitando contribuir para a renda familiar, fazia da rua local

de moradia e trabalho (meninos e meninas “de rua”); ou ainda

porque, sem um ofício e expulsa/evadida da escola ou fugitiva

do lar, caminhava ociosa pelas ruas, à cata de um qualquer

expediente (“perambulante”)7.

No entanto, em que pese o artifício de transformar pobreza em

5 Esta situação se modifi cará na República, quando as atribuições do Ministério do Império forem repassadas ao Ministério da Justiça, unifi cando as duas pastas.6 Decreto Nº 17943-A, de 12 de outubro de 1927 – Consolida as leis de assistência e proteção a menores (Código de Menores de 1927).7 Ver: ARANTES, Esther Maria M.. Rostos de Crianças no Brasil. In: A Arte de Governar Crianças. RIZZINI, Irene e PILOTTI, Francisco (organizadores). Rio de Janeiro: Instituto Interamericano Del Niño; Editora Universitária Santa Úrsula; AMAIS Livraria e Editora, 1995.

Page 72: Alexandre Morais - redução maioridade penal

74

abandono, o problema da assistência à infância permaneceu

sempre por ser devidamente equacionado, na medida em que ao

defi nir este abandono de maneira abrangente a legislação fazia

com que a rede de atendimento tivesse por objetivo abarcar todos

os efeitos da pobreza, subsumindo funções de abrigo, casa,

escola, hospital e prisão. Se isto, por um lado, sempre permitiu

a seus agentes um poder muito grande sobre os menores pobres

e suas famílias, por outro, tal empreitada sempre esbarrou não

apenas nos minguados recursos disponíveis para a assistência

como também em difi culdades de natureza ética e política,

e mesmo jurídica. Aquilo que se tornava visível pela atuação

técnica como “desestruturação familiar” (crianças nas ruas ou

separadas em diferentes lares e internatos; mães solteiras ou

distantes geografi camente de seus companheiros; pais ou mães

desempregados ou internados em hospitais gerais, psiquiátricos

ou encarcerados em presídios; pais mortos ou desaparecidos;

crianças pequenas cuidadas por irmãos apenas um pouco mais

velhos; etc.) era, na grande maioria das vezes, a própria condição

de existência e sobrevivência das famílias pobres no Brasil.

Desta forma, o que se encontrava em jogo na assistência à infância

no Brasil, ao longo de quase todo o século XX, não era a noção

científi ca (ou supostamente científi ca) de criança e nem mesmo

o seu correlato jurídico menor de idade, mas a constituição de

uma dupla infância ou de um duplo estatuto de menoridade

(a criança e o menor) - forjados em relações de exploração

e violência existentes na sociedade, mas sempre em nome de

sua proteção.

Foi para romper com esta lógica e com estas práticas que

os movimentos sociais e demais organizações da chamada

sociedade civil, no bojo da mobilização pelo fi m da Ditadura Militar

e pela democratização do Brasil, iniciaram ampla mobilização

em torno dos direitos humanos e de cidadania dos diferentes

grupos marginalizados da população brasileira, entre os quais

os chamados “menores”. À medida que se pode efetivamente

questionar o modelo de assistência até então vigente, tornou-se

possível a emergência de novas proposições. Na redação do artigo

227 da Constituição Federal de 1988, o Brasil adotou não apenas

a Declaração Universal dos Direitos da Criança, como também

o pré-texto da Convenção destes mesmos direitos, que, naquela

data, ainda não havia sido apresentado à Assembléia Geral das

Nações Unidas. Ao assim proceder, aboliu o Código de Menores

de 1979 e, em seu lugar, em 13 de julho de 1990, promulgou

o Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei Federal 8.069, que

dispõe sobre a Proteção Integral à criança e ao adolescente,

conforme seu Art. 1º.

A Proteção Integral, de que trata o Estatuto, se organiza em

torno de três fundamentos ou princípios básicos, sem os quais

não existe tal Proteção Integral: crianças e adolescentes são

sujeitos de direitos, são pessoas em condição peculiar de

desenvolvimento, são prioridades absolutas. É condição para

esta Proteção Integral que estes três princípios venham juntos e

nunca separados, não se devendo opor, por exemplo, “proteção

especial” e “responsabilização”, no caso do adolescente autor

de ato infracional, bem como não se devendo opor “sujeito de

direitos” e “pessoa em condição peculiar de desenvolvimento”,

particularmente em situações de vulnerabilidade, quando, mais do

que nunca, estes princípios devem vir juntos8.

Este é o desafi o posto para todos nós: o de entendermos

o caráter ético, jurídico, político e social do Estatuto da Criança

e do Adolescente, uma vez que esta Lei assegura à criança

e ao adolescente a condição de sujeito de direitos sem abolir

a sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Não se

trata, evidentemente, de infantilizar as crianças e os adolescentes

e de reduzi-los à condição de objeto que por tanto tempo lhes

foi imposta, numa retomada do chamado “menorismo”, mas

apenas de assegurar, ao mesmo tempo e no mesmo movimento,

a condição da criança e do adolescente como sujeito de direitos,

pessoa em desenvolvimento e prioridade absoluta.

Dado este caráter inovador e único do Estatuto da Criança e do

Adolescente, sua aprovação gerou intenso otimismo nos militantes

de Direitos Humanos, depositando-se grande esperança nos

Conselhos de Direitos e Tutelares, principalmente pelo princípio da

participação popular, também estabelecido no Estatuto.

Decorridos 18 anos de sua aprovação, no entanto, forçoso

reconhecer que as mudanças até agora obtidas não têm

correspondido aos sonhos e esperanças de todos aqueles que

lutaram para que a Doutrina da Proteção Integral fosse incorporada

ao ordenamento jurídico brasileiro. Em nome do equilíbrio fi scal e do

cumprimento de metas pactuadas com organismos internacionais,

a partir da década de 1990, o Brasil diminuiu consideravelmente

os gastos com as políticas sociais básicas, inviabilizando, na

prática, o cumprimento da Constituição e do Estatuto. A crise que

se instalou, a partir daí, combinou desemprego, desesperança

e violência, onde os jovens pobres do sexo masculino tem sido as

maiores vítimas, sendo que grande parte das mortes nesta faixa

etária acontece por motivação externa: acidentes e assassinatos9.

Há que se ressaltar, no Rio de Janeiro, a letalidade dos confrontos

a partir da chamada “guerra às drogas”, sendo que também os

presídios e unidades do sistema sócio-educativo encontram-se

organizados pela lógica das “facções”.

Nesta conjuntura, onde faltam recursos para a garantia dos

direitos sociais ou onde tais recursos não são priorizados frente às

exigências de controle fi scal, cresce o número de pessoas favoráveis

a um endurecimento da legislação e do rebaixamento da idade

penal, divulgando-se insistentemente, como causa do aumento da

violência, uma suposta impunidade proporcionada pelo Estatuto,

cuja única fi nalidade seria a de “proteger bandidos” – criando na

população uma indiferença face ao trágico destino de milhares

de jovens pobres, tanto dos que são executados sumariamente

quanto dos que se encontram privados de liberdade.

Quanto a esses argumentos, talvez a história possa ainda nos

ajudar. Interessado em estabelecer as bases da Assistência

Pública, o Ministro da Justiça e Negócios Interiores J. J. Seabra

incumbiu, em 1905, o então secretário da Escola Correcional

Quinze de Novembro, Franco Vaz, posteriormente seu Diretor, de

estudar o assunto e apresentar a tal respeito um trabalho, no prazo

de seis meses. Franco Vaz apresentou um longo relatório intitulado

“A infância abandonada”, dividido em duas partes: a primeira

trata do que denomina “abandono material”, na qual estuda

a mortalidade infantil, suas causas e remédios; na segunda, trata

8 Ver: Nogueira Neto, Wanderlino. Direitos Humanos. In: Justiça Juvenil sob o marco da proteção integral. Caderno de textos. São Paulo: ABMP, 2008.9 Vide Mapa da Violência.

Page 73: Alexandre Morais - redução maioridade penal

75

do “abandono moral”, onde se ocupa das crianças consideradas

vadias, delinqüentes, viciosas que “enchem, dia a dia, as cadeias

e os sítios lúgubres”.

Para confeccionar o seu Relatório10, Franco Vaz visitou os

diversos estabelecimentos onde havia crianças e jovens no Rio

de Janeiro. Em visita à Casa de Detenção, constatou a presença

de 18 menores com idade entre 10 e 18 anos, cujos motivos da

detenção foram: ter atirado uma pedra num comerciante que

o agredira, ter sido apanhado perambulando ou dormindo na rua

à espera de trabalho, estar à noite em companhia de uma mulher

em um bar, estar perdido e confuso mentalmente sem saber

o caminho de volta para casa ou ainda ser encontrado nas

ruas vendendo jornais.

Se dizendo profundamente magoado com a situação daqueles

“pobres irresponsáveis”, mas assinalando não ser possível banir

a miséria da face da terra, nem democratizar a democracia, nem

abolir as diferenças sociais ou mesmo propor a escola pública

para todos, propõe então que sejam tomadas medidas enérgicas

contra a desordem familiar, o jogo, o alcoolismo, a prostituição,

e também que fossem autorizadas medidas mais duras como

processo rápido e sumário, supressão da fi ança, reclusão em

colônias correcionais e prisão celular para nacionais e deportação

para estrangeiros, propondo, ainda, que a penalidade para os

menores passasse a ser indeterminada, para que pudessem

permanecer nos estabelecimentos correcionais pelo tempo que

fosse preciso para sua regeneração. Propôs, fi nalmente, que

o Estado assumisse a tutela de todos os menores moralmente

abandonados, anulando, se necessário fosse, o poder paterno; e

que a criança, quando encaminhada pela autoridade à Detenção,

deveria ser colocada inicialmente em regime celular, sendo a cela

um remédio efi caz contra o desregramento infantil, preparando o

organismo da criança para receber os efeitos benéfi cos da escola

de reforma e preservação.

Não se lembrou Franco Vaz, no entanto, de abrir as portas da

cadeia, pois os meninos nenhum crime haviam cometido.

10 Sobre Franco Vaz, consultar a importante Dissertação de Mestrado de Maria de Fátima Bastos Menezes Migliari, intitulada “Infância e adolescência pobres no Brasil. Análise social da ideologia”. Defendida no Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, em novembro de 1993.

* ESTHER MARIA DE MAGALHÃES ARANTESProfessora da UERJ e PUC-Rio.

Page 74: Alexandre Morais - redução maioridade penal

76

Ainda hoje há quem acredite que o Estatuto da Criança e do

Adolescente possui um caráter exclusivamente socioeducativo.

Se nem mesmo a teoria dá amparo à falácia, o que se dizer da

prática? Sob o manto de boas intenções manifestas e ao arrepio

da Constituição da República de 1988 a nossa juventude pobre

é vítima do poder punitivo estatal ofi cial desde os doze anos de

idade. A despeito dessa realidade, que salta aos olhos até do

observador mais desatento e insensível, a mídia hegemônica

e todo senso comum que a acompanha seguem por aí maldizendo

a inimputabilidade dos menores de idade e as intenções

supostamente protetivas da lei nº 8.069/90.

Não se pode negar, todavia, que é o próprio Estatuto da Criança e do

Adolescente o ponto de partida desta incompreensão. Ao anunciar,

por exemplo, em seu artigo 100, que “na aplicação das medidas

levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-

se aquelas que visem ao fortalecimento dos

vínculos familiares e comunitários” a legislação

especial não foi sistemática e tampouco coerente.

Isto porque fez incluir dentre as medidas

socioeducativas do capítulo IV a internação, “que

constitui medida privativa de liberdade” (artigo

121). A contraditória atribuição de fi nalidades

pedagógicas ao encarceramento conduziu parte

da doutrina a conclusões equivocadas:

“ as medidas socioeducativas não podem

ser encaradas como penas, dada a

preponderância de seu aspecto e fi nalidade pedagógica.

Desta feita, devem ter sua aplicação condicionada às

necessidades pedagógicas e voltada ao fortalecimento dos

vínculos familiares e comunitários do adolescente”1;

“ Os métodos para tratamento e orientação tutelares são

pedagógicos, psicológicos e psiquiátricos, visando,

sobretudo, à integração da criança e do adolescente em

sua própria família e na comunidade local”2.

Ao mesmo passo que se dá ênfase ao inexistente caráter

socioeducativo das medidas deixa-se de reconhecer a natureza

eminentemente sancionatória e retributiva da privação da liberdade

juvenil. Como nenhum outro instrumento de controle social, logrou

muito êxito o Estatuto ao atribuir às suas sanções “uma função

positiva de melhoramento do próprio infrator”3. Esta profi ssão de

fé nas teorias da prevenção especial positiva está bem explícita

no artigo 121, § 2º da lei nº 8.069/90, cujo conteúdo ressalva

que a medida de internação “não comporta prazo determinado,

devendo sua manutenção ser reavaliada, mediante decisão

fundamentada, no máximo a cada seis meses”. Em sendo

a privação da liberdade um bem para o adolescente infrator, que

pela pedagogia da segregação se livrará de todos os males que

o afl ige, é compreensível e até desejável que sua medida seja

aquela necessária para realizar os inúmeros benefícios a que se

propõe. Se, diversamente de seus congêneres, o poder punitivo

empregado contra a juventude cumpre as funções positivas

declaradas nas bases teórica e legislativa que lhe dá sustentação,

melhor que o deixemos livres das amarras constitucionais.

A bem da verdade, não tem outra serventia a repetição do credo

ressocializante senão a de ocultar “a natureza dolorosa da pena

e chega mesmo a negar-lhe o próprio nome, substituído por

sanções ou medidas”4. Negar que a pena, concretamente e em

sua forma de privação de liberdade, seja também sanção típica do

direito menorista pode redundar em prejuízos para o adolescente,

que por esta razão não tem para si resguardado todos os direitos

atinentes a sua condição de sentenciado. E em que pese não

ostente os títulos que a legislação reserva aos maiores de idade

– réu, acusado e criminoso – os espaços

onde a Justiça da Infância e da Juventude

deposita sua clientela guardam notável

semelhança com as penitenciárias e casas

de custódia do país.

Havendo ainda quem duvide disso, convida-

se para uma leitura breve de trechos dos

relatórios que em 2004 e em março de

2006 produziram, respectivamente, a

Human Rights Watch e o Conselho Federal

de Psicologia em parceria com a OAB.

O primeiro, cujo objeto de análise se restringiu aos centros de

detenção juvenil da cidade do Rio de Janeiro e um de Belford

Roxo, oferece resumo contundente daquilo que estas unidades

representam:

“Os centros de detenção juvenil do Rio de Janeiro estão

superlotados, são imundos e violentos e não conseguem

garantir, em praticamente nenhum aspecto, a proteção dos

direitos humanos dos jovens (...)

Além dos espancamentos e dos freqüentes abusos verbais,

os jovens em muitos destes centros de detenção são

trancafi ados em suas celas por períodos de uma a duas

semanas como punição pelos delitos considerados graves

(...). Esta determinação é feita exclusivamente a critério dos

monitores: não há nenhuma audiência, nenhum direito de

recurso e, aparentemente, nenhuma orientação que os

monitores devem seguir para aplicar a punição. (...)

Os centros de detenção juvenil do estado não atendem aos

requisitos básicos de saúde e higiene. Os jovens às vezes

usam as mesmas roupas durante três semanas antes de

serem lavadas (...). À noite, têm que defecar e urinar em

BREVES NOTAS SOBRE A INCONSTITUCIONALIDADEDA MEDIDA DE INTERNAÇÃO.

RAFAEL CAETANO BORGES*

“E as similitudes entreos diversos relatórios estaduais que, ao fi nal, deram origemà publicação conjunta do CFP e da OAB, jamais poderiamser lidas comomera coincidência.”

1 Melfi , Renata Ceschin, O adolescente infrator e a Imputabilidade Penal, Rio de Janeiro, Lumen Iuris, 2008, p. 143.2 Liberati, Wilson Donizeti, Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, São Paulo, Helvética, 1995, p. 80 apud Melfi , Renata Ceschin, O adolescente infrator e a Imputabilidade Penal, Rio de Janeiro, Lumen Iuris, 2008, p. 143.3 Zaffaroni, Eugênio Raul, Batista, Nilo, Alaglia, Alejandro, Slokar, Alejandro, Direito Penal Brasileiro, v. I, Rio de Janeiro, Revan, 2003, p. 125.4 Op. cit., p. 126.

Page 75: Alexandre Morais - redução maioridade penal

77

sacos de plástico porque os monitores não o deixam sair

das celas para ir ao banheiro”5.

Patético que dentre as recomendações encaminhadas ao governo

do Estado tenha sido incluída a de “providenciar sabão para os

jovens, bem como oportunidades adequadas de se banharem”6.

Diante de violações tão fl agrantes a direitos e garantias

fundamentais previstas na Constituição da República de 1988

(v.g: artigo 5º, inc. XLVII, “e”, inc. XLIX) e em inúmeros documentos

internacionais7 – os quais, internalizados pelo direito pátrio (art.

5º, inc. LXXVIII, § 3º), são equivalentes a emendas constitucionais

– soam risíveis certos direitos que o legislador infraconstitucional

elencou no artigo 124 do Estatuto:

XI – receber escolarização e profi ssionalização;

XII – realizar atividades culturais, esportivas e de lazer;

XIII – ter acesso aos meios de comunicação social.

Se nem mesmo padrões mínimos de higiene e salubridade são

garantidos nas unidades de segregação fl uminenses, por onde entram

a pedagogia e a ressocialização? Relatos colhidos pela Human Rights

Watch chegam a dar conta do uso de pasta de dentes para fi ns

alimentares: “Eles comem pasta de dente. Estão com fome. Comem

porque estão com fome”8. A precariedade dos estabelecimentos é tão

evidente que “supostamente alguns jovens alegam ser adultos para

evitar a detenção dentro do sistema juvenil”9. Quando descobertos,

“dizem que é melhor estar no sistema penitenciário do Estado,

envolvido, nas últimas semanas, em denúncias de torturas, morte

e corrupção, do que fi car internado nos institutos do Departamento

Geral de Ações Sócio-Educativas (Degase)”10.

Adotando sistemática distinta, o relatório que produziram

conjuntamente o Conselho Federal de Psicologia e a OAB foi feito

a partir de “incursões simultâneas aos centros de internação de

praticamente todas as unidades da federação”11. A apresentação

do documento, ao apontar a “signifi cativa constatação de que

o ideal sócioeducativo do regime persiste, de fato, ainda como

ideal”12 não se deixa seduzir pelas promessas irrealizáveis do

Estatuto, cujas letras desejaram conciliar privação de liberdade

à panacéia ressocializante. De plano, recomenda que “não deveria

ser economizado esforço para abolir, na medida do possível,

a prisão de jovens”13; no ensejo, reclama da pedagogia e da

psicologia a “desafi adora tarefa de desenhar possibilidades de

intervenção, para casos complexos e resistentes, que possam

prescindir do confi namento como condição necessária de

efetivação”14.

No Estado do Rio de Janeiro a inspeção foi realizada no Instituto

Padre Severino, na Ilha do Governador. A circunstância de as

constatações do relatório mais recente, ainda que relativamente

a apenas uma unidade, pouco discreparem daquelas que a Human

Rigths Watch apresentou há quase quatro anos atrás sugere que a

desumanização dos adolescentes encarcerados seja um objetivo

permanentemente perseguido pelas políticas do Estado:

“Os alojamentos são inadequados, com características de

cela; o ambiente tem pouca ventilação, é quente, pequeno,

alguns exalando mau cheiro.

Foi relatado por adolescentes que estes só saem das ‘celas’

15 minutos por dia e que, às vezes, nem saem. (...)

Um adolescente mostrou sinais de traumatismo toráxico

e afi rmou ter sido efeito de espancamento; outros relataram

ter sofrido tapas, socos e castigos. Reclamam que, às vezes,

a troca de roupas é feita de dez em dez dias”15.

E as similitudes entre os diversos relatórios estaduais que, ao fi nal, deram

origem à publicação conjunta do CFP e da OAB, jamais poderiam

ser lidas como mera coincidência. Retratam o absoluto desprezo

do Estado brasileiro pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e o

resultado da ausência total de políticas públicas na área. Registram-se,

apenas como exemplos, as observações mais representativas:

“A FEBEM – SP é um sistema prisional, pautado pelas

práticas de tortura, negligência e humilhação no trato com

os adolescentes sob a responsabilidade do Estado. (...)

O ambiente é de intensa violência, que atinge os internos

e funcionários, física e psicologicamente, com ausência da

responsabilidade do Estado pela custódia dos adolescentes.

Foi possível observar e entrar em contato com adolescentes

que sofreram castigos físicos e estavam aprisionados em

celas”. (Complexo do Tatuapé, São Paulo/SP)16;

“Os alojamentos são inadequados e precários, construídos

em forma de prisão, ou presídio para adultos, havendo clara

superlotação em cada cela (...)

Denúncia grave de um caso de necessidade de emergência

não atendida: um adolescente baleado, na véspera, estava

sem atendimento adequado, em uma cela superlotada”.

(Centro de Internação de Adolescentes Santa Therezinha,

Belo Horizonte/MG)17;

“Os alojamentos assemelham-se a celas, fora do padrão

internacional exigido pela ONU. Condições de ventilação

e higiene precárias, sendo que estes jovens são obrigados,

no período da noite, a fazer suas necessidades em sacos

plásticos ou garrafas”. (Centro Educacional São Lucas,

São José/SC)18;

“Todos os alojamentos se assemelham a celas, com condições

precárias de higiene e cuidado. São poucos os colchões

disponíveis (...). Os banheiros não possuem condições

mínimas de higiene, não possuindo vasos sanitários nem

portas divisórias separando a latrina do local destinado

ao banho”. (Centro Sócio-educativo Dagmar Feitosa,

Manaus/AM)19;

“Na ala 2, a primeira a ser visitada, constatou-se a total falta

de asseio. Os quartos na realidade são celas, local destinado

ao isolamento dos internos, onde se encontravam 16

adolescentes, que reclamaram de violência física praticada

por policiais do Batalhão de Choque da PM, chamado pela

direção da Unidade”. (Centro de Atendimento ao Menor,

Aracaju/SE)20.

Torna especialmente grave os relatos produzidos, prova cabal de

inadmissível descumprimento da lei nº 8.069/90, o limite etário de

imputabilidade fi xado na Constituição da República de 1988 (artigo

228). Trata-se de relatos feitos a partir de inspeções a unidades

5 Human Rights Watch, Brasil, “Verdadeiras Masmorras”, Detenção Juvenil no Estado do Rio de Janeiro, p. 1. –– 6 Human... p. 10. –– 7 Dentre as normas internacionais ratifi cadas mais pertinentes, destacam-se: Convenção sobre os Direitos da Criança e do Adolescente; Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. –– 8 Human..., p. 48. –– 9 Human..., p. 42. –– 10 Human..., p. 43. –– 11 Conselho Federal de Psicologia e Ordem dos Advogados do Brasil, Direitos Humanos, um retrato das unidades de internação de adolescentes em confl ito com a lei. –– 12 Direitos Humanos..., p. 7. –– 13 Direitos Humanos..., p. 9. –– 14 Idem. –– 15 Direitos Humanos..., p. 26. –– 16 Direitos Humanos..., p. 24. –– 17 Direitos Humanos..., p. 29. –– 18 Direitos Humanos..., p. 43. –– 19 Diretos Humanos..., p. 54. –– 20 Direitos Humanos..., p. 104.

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de internação destinadas a privar da liberdade adolescentes em

confl ito com a lei. Portanto, espaços estatais que submetem

a penas privativas de liberdade pessoas presumidas pelo texto

constitucional como inimputáveis. E se é certo que a tais pessoas,

em razão de sua idade, não se pode imputar a prática de

condutas criminosas, não deveria ser menos certo que também

não pudessem se sujeitar à pena de prisão

No ordenamento jurídico-penal brasileiro a pena, gênero do

qual a privação da liberdade é espécie, é sanção reservada

a sujeitos ativos imputáveis. Reserva-se a mais coercitiva das

medidas àquele que “dotado de certa dose de autodeterminação

e de compreensão (imputabilidade) que o tornava apto a frear,

reprimir, ou desviar sua vontade, ou o impulso que o impelia

para o fi m ilícito (possibilidade de outra conduta) e que, apesar

disso, consciente e voluntariamente (dolo), ou com negligência,

imprudência ou imperícia (culpa stricto sensu), desencadeou

o fato punível”21. Pois bem, por força do que o próprio legislador

constituinte originário estabeleceu na Constituição da República

de 1988, este juízo de reprovação – pressuposto para aplicação

da pena – não pode sequer ser realizado quando o sujeito ativo

de determinado ilícito é uma criança ou um adolescente.

Recai sobre eles presunção absoluta de inimputabilidade

e, sob quaisquer hipóteses, são tidos como incapazes de se

autodeterminar e, portanto, compreender o caráter lícito/ilícito

de suas atitudes.

Entendida como o conjunto de condições pessoais de sanidade

e maturidade que dão ao agente a capacidade de lhe ser

juridicamente imputada a prática de um ato punível, no Brasil

a imputabilidade não alcança os menores de idade. Outrossim,

também não alcança aqueles que, “por doença mental ou

desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo

da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender

o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse

entendimento” (artigo 26, caput, Código Penal). No ponto, foi mais

preciso o legislador. Isentou de pena, expressamente, o agente

que ostentar tais condições. E em sendo ambos inimputáveis

– o menor e o débil mental – não há dúvida que a isenção

de pena prevista no dispositivo aproveita ao primeiro tanto quanto

ao segundo.

A aparente perplexidade sugerida por um sistema que preconiza

a inimputabilidade e, simultaneamente, medidas privativas de

liberdade para menores infratores não passou despercebida

por Fragoso:

“Diz a lei que os menores de 18 anos são inimputáveis,

fi cando sujeitos às normas estabelecidas na legislação

especial (art. 27, CP; e art. 228, CF). Em realidade, a questão

não é de imputabilidade, ou seja, de capacidade de culpa.

Os menores estão fora do direito penal e não podem ser

autores de fatos puníveis”22.

Parece verdadeiro que, ao menos em tese, estejam os menores

fora do direito penal. Ocorre, porém, que foi a própria Constituição

da República de 1988 que, privando-os desse ramo do direito,

o fez a partir de considerações atinentes à sua imputabilidade.

Artigo 228 – São penalmente inimputáveis os menores de

dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.

E a sujeição dos menores à legislação especial não pode tornar

uma meia-verdade a inimputabilidade consagrada. Coloca-se

o adolescente sob o manto do Estatuto da Criança e do Adolescente

(legislação especial aplicável) considerando-se, desde logo,

tratar-se de pessoa inimputável. Sendo assim, sem capacidade

de culpa e evidentemente infenso às sanções típicas do direito

penal comum.

Transcendendo de toda a discussão acerca da questão humanitária,

padece de irracionalidade lógica o desejo de promover a contenção

de agentes incapazes de se autodeterminar pelas vias repressiva

e segregadora.

Já é um passo signifi cativo reconhecer-se que o Estatuto da

Criança e do Adolescente, a despeito de todas as previsões

protetivas que traz em seu bojo, sustenta a aplicação da

medida de internação como instrumento de promoção da

dignidade do jovem infrator. À notória contradição, tanto mais

quando se faz acompanhar por elementos colhidos no dia

a dia da realidade nacional, segue-se, quase que naturalmente,

saudáveis inquietações. Incompreende-se que se prossiga

atribuindo funções positivas, ainda que em plano ideal, a um

sistema comprovadamente cruel e perverso. E não se diga que

a questão é conjuntural ou localizada. Afi nal, como se viu, suas

falhas persistem sob quaisquer condições de tempo, espaço ou

circunstância política.

Apesar de afrontado, permanece o texto constitucional como

referência segura para a realização plena dos direitos da criança

e do adolescente, dentre os quais se inclui a inimputabilidade

e todos os desdobramentos dela advindos – notadamente

a proibição de os submeter a penas privativas de liberdade, pouco

importando se sob o falso pretexto de ressocializá-los ou reinseri-

los na sociedade.

21 Toledo, Francisco de Assis, O erro no direito penal, São Paulo, Saraiva, 1977, p. 8.22 Fragoso, Heleno Cláudio, Lições de Direito Penal, parte geral, Rio de Janeiro, Forense, 1993, p. 197.

*RAFAEL CAETANO BORGESAdvogado criminal graduado pela UERJ. Trabalha no escritório Nilo Batista & Advogados Associados.