a produção do conhecimento científico

40
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA Departamento de Pós-Graduação em Sociologia Disciplina Obrigatória: Metodologia - Turma A A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO: um debate paradigmático e metodológico Simone Lisniowski 1

Upload: api-3746965

Post on 07-Jun-2015

15.920 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

(por Simone Aparecida Lisniowski em 14/08/2007)

TRANSCRIPT

Page 1: A Produção Do Conhecimento Científico

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Departamento de Pós-Graduação em Sociologia

Disciplina Obrigatória: Metodologia - Turma A

A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICOA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO:

um debate paradigmático e metodológico

Simone Lisniowski

Brasília

Maio/2006

1

Page 2: A Produção Do Conhecimento Científico

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Departamento de Pós-Graduação em Sociologia

Disciplina Obrigatória: Metodologia da Pesquisa

A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICOA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO:

um debate paradigmático e metodológico

Simone Lisniowski

Trabalho apresentado como avaliação parcial da disciplina “Metodologia da Pesquisa”,

ofertada no primeiro semestre de 2006, turma A,ministrada pelo Prof. Dr. Pedro Demo.

Brasília

Maio/2006

2

Page 3: A Produção Do Conhecimento Científico

SUMÁRIO

Introdução.................................................................................................................................04

1. Abordando o nascimento do conhecimento científico..........................................................06

2. Críticas ao positivismo e a separação entre ciências naturais/exatas e humanas.................10

3. Uma outra direção para pensar o conhecimento científico: a diversidade paradigmática..16

4. A diversidade paradigmática como perspectiva para pensar o conhecimento científico......19

Conclusão..................................................................................................................................22

Referencias Bibliográficas........................................................................................................24

3

Page 4: A Produção Do Conhecimento Científico

A produção do conhecimento científico: um debate paradigmático e metodológico

Simone Lisniowski

“Na linguagem, na religião, na arte e na ciência, o homem não pode fazer mais do que construir seu

próprio universo – um universo simbólico que lhe permite entender e interpretar, articular e

organizar, sintetizar e universalizar sua experiência humana” (Cassirer, 2005, p.359)

Introdução

Há pouco mais de trezentos anos a ciência moderna sistematizou procedimentos,

métodos e técnicas para analisar, definir, explicar e intervir. Seus primeiros modelos nasceram

do conhecimento desenvolvido pela física e pela matemática. Posteriormente, as ciências

humanas buscaram legitimação científica utilizando outros recursos metodológicos e teóricos.

Mas nem sempre lutaram por este estatuto científico, embora nunca tenham se abdicado de

um método e de uma fundamentação teórica consistente.

Podemos perceber na acadêmica que grande parte da comunidade científica

compartilha uma insatisfação com esta transposição paradigmática, das ciências naturais para

as ciências humanas, pois compreende que as ciências humanas se diferenciam quanto ao

objeto do conhecimento e os métodos de investigação. Os problemas, métodos, técnicas e

soluções propostos pela ciência positivista têm sido severamente questionados, e estas críticas

originaram diferentes concepções de ciência e de modelos paradigmáticos. Pedro Demo

(1995) cita as diferentes abordagens presentes nas ciências humanas, como a empirista, a

positivista, a dialética, a estruturalista, a sistêmica, a funcionalista, além das metodologias

alternativas.

Em virtude desta diversidade de abordagens possíveis para debater o conhecimento

cietífico escolhi aquelas que se apresentaram na minha trajetória acadêmica como

representantes de pensamentos controversos e que impactam em diferentes formas de produzir

conhecimento. Portanto, procuro apresentar neste artigo algumas idéias em relação às

diferentes formas de produção do conhecimento científico e seus efeitos na sociedade, assim

como as relações do pesquisador com a realidade, determinadas pelos paradigmas.

Atualmente a mídia, importante meio na produção de sentidos na sociedade, se utiliza da

ciência para garantir índices de audiência. Porém, os assuntos que mais dão audiência são

ligados à falta de racionalidade, são ilusões, portanto não se investe em um debate crítico nas

mídias e sim em verdades feitichizadas e vendidas no mercado em forma de medicações,

produtos, técnicas e instrumentos, todos envoltos em um pretenso conhecimento científico.

4

Page 5: A Produção Do Conhecimento Científico

Criticamos o uso exacerbado de suas verdades, quando são repetidas e validadas

indiscriminadamente, mas também se encontra afirmações de verdade sem argumentação,

sem validação e sem espaço para o questionamento dentro do espaço acadêmico, envolto a

vaidades e lutas de poder.

As ilusões trabalham contra o desenvolvimento da ciência. Os valores culturais

construídos em torno de seu discurso reforça a concepção de que ciência significa verdade.

Aparentemente gostamos de acreditar que alguém pode nos dar uma verdade, uma certeza,

para nossa tranquilidade, para aplacar nossa angústia diante de um destino incerto, precisamos

de certezas, as dúvidas nos angustiam. Talvez por este motivo as ciências que ainda se

afirmam em verdades absolutas gozam de maior reconhecimento social.

A questão neste artigo se concentra na busca de definir ‘conhecimento científico’ e

apresentar um debate acerca da ciência e sua problematização atual, concentrando-se no

problema do conhecimento para as ciências humanas. A fim de ordenar uma reflexão partirei

de uma breve exposição do pensamento positivista em torno da produção do conhecimento

científico baseado no método lógico-matemático, a seguir apresentar a crítica fenomenológica

da relação restrita imposta pelo positivismo do homem com a natureza, incluindo a

mundaneidade e a existência, e aspectos reflexivos do paradigma marxista acerca da

generalização teórica de Marx, e finalmente o paradigma pós-moderno, crítico da

racionalidade, dos estatutos de verdade e do poder. Este último paradigma, parece que oferece

duas tendências opostas: no sentido de negar todos os paradigmas e entender a realidade como

irracional, ou no sentido de aceitar a multiplicidade da realidade e de interpretações, dando

espaço para os diferentes paradigmas. Acredito que é importante refletir sobre estas

proposições, para que se compreenda seus limites e potencialidades.

O artigo busca articular as idéias entre os paradigmas mas não deve ser interpretado

como uma evolução pois a interação entre os paradigmas é muito mais complexa, e suas

escolhas dependem de contextos sociais e históricos, temporais e espaciais.

5

Page 6: A Produção Do Conhecimento Científico

1. Abordando o nascimento do conhecimento científico

No processo de produção do conhecimento estão envolvidos dois principais fatores: o

sujeito cognoscente e o objeto a ser conhecido. Até o século XVII a filosofia se concentrava

na busca da verdade e de conhecer o objeto, somente com Descartes a as ciências humanas se

voltaram para explicar como se dá o processo de produção do conhecimento. Thomas Kuhn

acredita que na ciência se representa uma visão de mundo, e que ao se expressar em uma

teoria os cientistas se utilizam de todo conhecimento acumulado para resolver problemas,

lacunas ou para refutar certas teses. Portanto, o movimento da ciência é tanto de condensação

quanto de fragmentação.

Ao contrário da ciência moderna, os mitos gregos não tinham como objetivo

alcançar a verdade, não tratavam de causa e efeito, mas isto incomodava os pensados da

época. Foi somente com a filosofia grega que começaram as buscas de uma superação dos

mitos, que para eles representavam ilusões. Portanto a filosofia grega busca uma base com a

razão e pela razão, para separa o mito da realidade. A filosofia “teria surgido a partir do

estranhamento do homem frente ao mundo, um estranhamento que misturava medo e

admiração, observação, curiosidade e sentimento de distanciamento para com o mundo e,

afinal, busca de sentido e felicidade no bem viver” (Ghiraldelli, 2001, p.26). A filosofia

colocou a questão: “O que é realidade?” e a partir daí se diferenciou do mito por inferir uma

dicotomia entre o real e o não real. E chegou à conclusão que o real é a natureza, a essência,

o imutável. Aqui começa a se delinear uma nova perspectiva do homem, é preciso que o

homem esteja em contato com sua essência para viver o mundo real e não com a mitologia,

pois viveria apenas de ilusões. Logo começaram as diferenças de concepção sobre a busca

desta verdade, com diferentes visões de mundo e de homem.

Enquanto os sofistas acreditavam que tudo era fruto de convenções e que não

existia natureza, os phýsis buscavam o fundamento natural para o mundo, semelhante aos

positivistas e cientistas modernos. A idéia eleática é que a realidade é um estrutura lógica e

até lingüística, e neste caso o ser é idêntico a si mesmo, o ser não se transforma. Esta

concepção está muito presente na metafísica pois uma coisa é pensar o mundo na sua

mutabilidade, outra é pensá-lo na sua essencialidade, na sua racionalmente.

Parmênides afirmava que a realidade obedece à lógica do pensamento e Heráclito

dizia que somente a mudança é real. Platão tenta dar uma solução a esta disputa e formou um

campo de saber que engloba várias dualidades, dizendo que Heráclito estava certo em relação

ao mundo sensível (aquele que percebemos através dos sentidos) e que Parmênides estava

6

Page 7: A Produção Do Conhecimento Científico

certo em relação ao mundo supra-sensível (o mundo da identidade, da permanência e da

verdade). O mundo real é o mundo sensível, mas o mundo ideal é o mundo das essências e é o

verdadeiro real. Para Platão esta é a relação entre o original e a cópia, e é através da dialética

que a filosofia poderia distinguir o real do não-real.

Para Aristóteles este mundo ‘das sombras’ do Platão é o mundo real e as mutações

e multiplicidades seriam a essência deste mundo. A ciência que alcançaria a verdade seria a

física. Mas ele admitia que a física dependia da filosofia primeira, de uma metafísica, “capaz

de distinguir que aquilo que a física pesquisa é algo real e verdadeiro – um fundamento”

(Ghiraldelli, 2001, p.33).

Aristóteles foi buscar suas conclusões no mundo sensível, a metafísica deveria

buscar “a essência do mundo natural e de nós mesmos no próprio mundo natural e de nós

mesmos, e não em outro mundo, o mundo das coisas puras de Platão” (Ghiraldelli, 2001,

p.33). A essência estaria nas próprias coisas, na experiência, e não em outro mundo, no

mundo das idéias.

Aristóteles admitiu diferentes essências para diferentes seres, o divino seria o

ideal, imutável, o homem e o mundo são mutáveis e estão separados do divino. Cada ciência

teria seu objeto e elas estariam unificadas pela filosofia. Este desenvolvimento do que é

essência ele chamou de ‘estudo do Ser enquanto Ser’, denominado posteriormente de

ontologia ou metafísica.

Mas, ao contrário do que defendia Aristóteles, o século XVII foi marcado pela

crença de que a filosofia dependia do avanço da física e da matemática para acessar o real, e

não que a matemática e a física dependiam de uma filosofia primeira.

A física é pensada como independente da filosofia, independente de uma moral,

como se não comportasse uma concepção de homem e de mundo, mas fosse a concepção que

comportasse a realidade, a verdade absoluta.

A física moderna descobre relações entre objetos totalmente quantificáveis. A

natureza é estruturada matematicamente, e esta descoberta apaixonou filósofos e físicos nos

séculos XVII e XVIII. E para conhecer e usar o mesmo método era preciso saber como

executar esse processo, e a preocupação não é mais com o objeto, mas com o método, é real

aquilo que um método lógico-matemático é capaz de captar.

Os antigos tentavam separar e distinguir a verdade do mito para responder à

pergunta: “o que é real?”. Já os modernos tinham em mente outra pergunta: “como é possível

o conhecimento (do real) ?” E assim iniciaram o processo de ‘subjetivação do mundo’ na

busca de um método adequado à ciência.

7

Page 8: A Produção Do Conhecimento Científico

Antes o existente era algo que estava apresentado e a verdade deveria ser

desvelada, na modernidade entende-se o existente como o que é representado e é garantido

pela certeza, pelo ‘sentimento de evidência’. A pergunta moderna faz surgir algo entre o real e

o conhecimento: a subjetividade.

A ciência passa a se ocupar com os objetos considerando sua aparência como

provisória e portanto, o dever da ciência, sua ética, era encontrar a essência imutável da

realidade. Assim, Ghiraldelli (2001, p.39) nos apresenta uma síntese do processo de produção

do conhecimento na modernidade:

o existente como representação é atividade (como descoberta ou como criação) do sujeito, a verdade como certeza é um aval dado pelo sujeito a certos enunciados ou pensamentos. Mundo e verdade passaram, então, a ser subjetivados – passaram a ser objetos (do conhecimento) enquanto postos pelo sujeito.

As ciências se voltaram para a montagem de modelos de subjetividade, pois

quanto melhor for apresentada a relação sujeito-objeto melhor se forneceria uma explicação

sobre o conhecimento e seus fundamentos.

No século XVIII, os estudos físicos e naturais influiam na visão de mundo da

filosofia e foi a física de Galileu que influenciou o pensamento de Descartes. A filosofia de

Galileu era de que o mundo real estava dividido em virtudes primárias e secundárias. As

qualidades primárias eram absolutas e quantificáveis enquanto que as secundárias eram

subjetivas, relativas, que estão em nós e não nas coisas, assim tudo que nossos cincos sentidos

percebem pertencem aos cinco sentidos e não às coisas. As características sensíveis estão na

psique e não no mundo real, no mundo natural. E a ciência que desejasse estudar o mundo

como ele realmente era deveria tratar das quantidades e não das qualidades. Esta premisa

acompanha o pensamento científico pois representa sua racionalidade.

Para Descartes o universo das qualidades sensíveis são na verdade qualidades

puramente subjetivas, ou seja, não são reais. Entre nós e o mundo real, objetivo, tem uma

barreira, os sentidos do homem. Nós não temos a experiência do mundo, nós temos

experiência de nossas próprias representações. O corpo humano lida somente com qualidades

e consequentemente não é da ordem do real. Para que o homem tenha acesso ao real ele

precisa utilizar um método que ofereça dados quantificáveis, matemáticos. Somente o

raciocínio lógico-matemático levaria ao conhecimento científico. Outras formas de

pensamento são ilusórias.

O conhecimento científico, para a ciência positivista, não é a representação que os

sentidos têm da realidade, pois esta representação vai sendo construída na interação entre

sujeito e objeto. Como o objeto da ciência é a essência, o mundo é na verdade um conjunto de

8

Page 9: A Produção Do Conhecimento Científico

partículas em movimento, portanto o conhecimento científico está nestas qualidades

quantificáveis e não na aparência dos objetos e nas experiências do sujeito.

Para o positivismo, sentir, imaginar, emocionar-se, também são formas de pensar,

mas de todas as formas de pensar a lógica é a única que pode produzir conhecimento

científico, as outras formas acessam somente a aparência dos objetos. O pensamento

positivista conferiu ao pensamento científico o estatuto epistemológico de verdade,

estimulando uma classificação hierárquica entre os diferentes tipos de conhecimentos.

Para Descartes, o pensamento é um evento interno e que não é essencial da

matéria, que é um mero meio, instrumento. O pensar é um ato espiritual, este sim tem acesso à

essência da matéria e à verdade, e não o corpo, que também é aparência. Portanto o

conhecimento científico vem de Deus, fonte de toda verdade. Esta era a crença no século de

Descarte e que permanece na sua filosofia.

A experiência em si é uma experiência de imagem e produzir conhecimento é ter

acesso ao absoluto, e não se tem acesso ao absoluto através dos sentidos. Se o homem fosse

apenas sensibilidade, apenas o corpo, ele não teria nenhum acesso à verdade. Algum acesso só

é possível porque o homem tem o inteligível, deus não o fez apenas corpo, deu-lhe a alma.

Assim, a ciência positivista defende que alguns pensamentos, baseados em um método

matemático, podem ser testemunhos do mundo e da verdade, outros são falsos, são frutos da

representação do mundo e não do inteligível.

O conhecimento científico que se constrói na ciência cartesiana está longe da

concepção de conhecimento nas ciências humanas. Os positivistas queriam criar uma ciência

a partir da lógica, a verdade é o entendimento lógico-matemático, e as sensações são atos

perceptivos, os objetos são partículas em movimento, o modo absoluto, verdadeiro. E o que

dá movimento é o conhecimento essencial da matéria, e ela é de uma outra natureza (diferente

dos sentidos), é da ordem do inteligível, por isso todo conhecimento científico deve seguir o

método lógico-matemático.

Mas qual é a garantia de que seguindo a matemática se produz conhecimento

científico? A única maneira que nos foi apresentada por Descartes foi Deus. Ele é o garantidor

de que há em nós algo que corresponde a algo fora de nós.

9

Page 10: A Produção Do Conhecimento Científico

2. Críticas ao positivismo e a separação entre ciências naturais/exatas e humanas

Até que a própria ciência trouxe uma evidência que fez a primeira lacuna no

pensamento moderno: o homem antes de racional era animal. Darwin fez o que Freud chamou

de segunda ferida narcísica: a constatação que a origem do homem é animal e não semente do

absoluto. A primeira ferida tinha sido a descoberta de Copérnico de que a Terra não era o

centro do Universo.

Por isso a morte de Deus declarada por Nietzsche é a declaração do fim de um

paradigma. Assim, se Deus morre, morre muita coisa com ele, morre a ciência positivista, e

com ela, morre também a possibilidade de uma verdade absoluta. Deus é o fundamento da

razão e do conhecimento científico, se ele morre a concepção de verdade tem que mudar,

assim como a concepção de mundo e de sujeito.

Descartes apenas expressa o pensamento da sua época, sua decodificação atende a

uma exigência que veio das ciências naturais. De forma alguma um pensador naquela época

faria uma filosofia que não se harmonizasse com a física. A ciência exata constrói um outro

universo não captável pelos sentidos, a água é H2O, são moléculas, na verdade isso nós não

conhecemos pela experiência. O conhecimento científico revela a essência da coisa.

Mas quando o fenomenólogo começa a decodificar o sujeito como este estando em

relação direta com o mundo, o sujeito deixa de ser um contingente de um saber que vem de

Deus. Há na ciência cartesiana uma tomada da consciência tal como são as coisas, o mesmo

paradigma para se conhecer os objetos é utilizada para se conhecer o sujeito, a consciência. O

método científico cartesiano trabalha com o homem natural, mas as ciências humanas

questionam essa concepção de mundo, de homem e de método.

A observação, a experiência e o ser em si para Descartes estão impossibilitados de

se relacionar. Este projeto científico de eficácia e utilidade acarretou a concepção de sujeito-

objeto que serviu de base para a racionalidade moderna onde o conhecimento “é menos um

saber (no sentido de que quem conhece é sábio) e mais a posse da tecnologia e da técnica”

(Heidegger, 1984 In Ghiraldelli, 2001, p.40). A partir daí surgiram diferentes correntes que se

contrapõem ao modelo cartesiano e que exigem um trabalho de redefinição do processo de

produção do conhecimento.

Para Stein (2001, p.22) “a condição humana sempre aponta para além de si mesma,

porque ela mantém a exigência contínua de abertura. Omite-se o fato de que, precisamente, a

busca do ilimitado é afirmação do limite, de que a necessidade do horizonte infinito é uma

imposição da radical finitude” A filosofia cartesiana compreendia a finitude como aspecto

10

Page 11: A Produção Do Conhecimento Científico

negativo na produção do conhecimento, mas para Heidegger é a própria condição de finitude

que possibilita ao homem pensar, interrogar, compreender.

Para ilustrar como as posições em busca do conhecimento podem ser contrárias,

para Rousseau o sentimento de certeza era garantido pela ‘sinceridade do coração’, que é

expresso da seguinte forma:

Tendo em mim o amor à verdade como filosofia, e como método único uma regra fácil e simples que me dispensa da vã sutileza dos argumentos, volto com esta regra ao exame dos conhecimentos que me interessam, resolvido a admitir como evidentes todos aos que na sinceridade do coração, não puder recusar meu assentimento, como verdadeiros todos os que me parecem ter uma ligação necessária com os primeiros, e deixar todos os outros na incerteza, sem os rejeitar nem admitir, e sem me atormentar com os esclarecer desde que não me levem a nada de útil na prática (Rousseau, 1979, p.303-304 In Ghiraldelli, 2001, p.44).

Ou seja, a verdade é avaliada por uma pessoa, uma subjetividade que é a consciência

moral, organizada à base dos sentimentos e que é um mundo interior. Este argumento de

Rousseau levanta a questão da ética na ciência, pois o bem está ligado à verdade.

Posteriormene, Kant afirmou que a razão (ciência) está a serviço do conhecimento científico

a fim de distinguir o verdadeiro do falso, a razão prática (ética) serve ao julgamento, isto é, à

distinção entre o certo e o errado. Ambas funcionam de modo lógico e o limite lógico da

razão prática se resume da seguinte forma: “age sempre de uma maneira tal que você possa

erigir a máxima da tua ação em lei universal”. Kant inclui a questão ética na construção da

verdade pela ciência. Porém, constrói uma concepção de verdade apoiada em um princípio

moral universal, impossível na experiência humana, ambígua e multifacetada. Seria possível

universalizar os diferentes paradigmas? Mesmo quando teoriacamente pressupomos a

aceitação de todos, quando se pressupõem que pesar de todas as diferençashá uma

concordância no relativismo da ciência, este pressuposto exclui, por si só, a ciência

positivista, que busca uma verdade absoluta. Para a ciência positivista as leis que regem a

natureza e o sujeito são as leis matemáticas, vindas de Deus e buscar esta verdade é a ética do

sujeito cartesiano.

Para a fenomenologia, a ciência positivista é uma falsificação de nossa percepção

do mundo, a aparência sensível é a apreensão da própria coisa. Esta teoria é uma crítica da

tradição científica positivista, e também tenta construir uma nova teoria da experiência, onde

a produção do conhecimento se dá na relação do sujeito com o mundo, e portanto, uma outra

concepção de verdade. Para a fenomenologia é preciso captar o homem na sua expressão

banal, é preciso escrever o mundo na sua mundaneidade.

11

Page 12: A Produção Do Conhecimento Científico

A consciência de Descartes é coisa, ele usa o paradigma do objeto para pensar o

sujeito, um contingente que tem conteúdos (conhecimento científico), e estes conteúdos vêm

de Deus. Para a fenomenologia, a consciência é a relação direta com o mundo, é preciso

considerar que o homem não é sujeito e depois veio ao mundo, ele não é um contingente, ele é

“ser no mundo”, e ao “estar no mundo” ele é capaz de produzir conhecimento. Ele está

inteiramente tomado pelo mundo, ele não é mais interior, não é uma substância oposta a uma

outra substância.

Para a fenomenologia não é possível ter representação do mundo sem ter acesso ao

mundo. A idéia de intencionalidade está vinculada a um papel ativo da consciência, do

sujeito, do mundo e da experiência. Para a fenomenologia o ser humano está

permanentemente para fora de si, está no mundo. A experiência tem que ser primeiro sensível

para depois ser científica, a linguagem científica vai estar estruturada na experiência. O que é

esta intencionalidade? Nasce da necessidade de romper com o dualismo corpo e essência. Os

sentidos dão acesso ao mundo, e com eles se constrói o mundo, onde perceber é um

movimento permanente que dá sentido ao mundo. E apreendemos o mundo sempre de um

lugar, porque nós participamos da construção do mundo. É o ser humano que compõe o

mundo e o organiza diante de si, interpreta e produz conhecimento científico. O esquema

positivista é apenas um dos lugares subjetivos possíveis de apreensão da realidade, mas que

não pode ser universalizado. A teoria fenomenológica vai abrir o leque e diferenciar ciências

naturais de ciências humanas. A questão mudou do conhecimento da natureza para a

compreensão do mundo, e nesta relação a interssubjetividade é incluída, o que não acontecia

com o sujeito cognoscente, que sozinho refletia sobre um mundo abstrato.

Para a fenomenologia, o campo não pode ser confunfido com a soma das partes, como

é a proposta metodológica lógico-matemática. A parte é sempre parte total, é sempre um

aspecto dentro de um horizonte. Toda apreensão é relacionante, não é só sensibilidade,

envolve também entendimento. Para Hussel trata-se de explicar e descrever o vivido. Trata-se

de vivenciar, explicar, descobrir, descrever a vivência tal como ela é vivida, pois o ser

humano se constitui o tempo todo. O vivido é inserido no tempo. Não se separa o sujeito do

objeto, a idéia dos fenomenólogos é romper com a interioridade, a maneira como uma pessoa

organiza o mundo é ela própria, é a maneira como ela é. A linguagem da ciência é uma entre

muitas linguagens. Para Heidegger não há verdades eternas, mas “essa ‘limitação’ não

significa, tampouco, uma diminuição do ser-verdadeiro dessas ‘verdades’” (Apud Stein 2001,

p.30).

12

Page 13: A Produção Do Conhecimento Científico

A ciência é invenção, ela constitui objetos, cria objetos, é um processo de experiência

e pensamento. Em Descartes o objeto é idêntico a si mesmo. Merleau-Ponty diz que não

existe só ciência, que há outro lado, o lado da subjetividade. Heidegger nos faz perceber que a

produção do conhecimento é um processo dinâmico, de alguém que se percebe na existência e

a objetificação só é possível quando a existência é negada.

No método cartesiano o sujeito é deixado de fora do conhecimento do mundo, não

há um sujeito que diz, o que existe é a enunciação que vem de Deus, e com ela um

conhecimento pretenso universal. Segundo Dussel (2001, p.523), este método “pode ter um

critério de inteligibilidade, mas nunca poderá ter um critério de verdade” que se refere à

realidade concreta de um sujeito concreto e mortal. Ou seja, o pesquisador ao produzir

conhecimento científico se relaciona com a natureza, com o mundo, com a sociedade, os

grupos, o outro, e a produção do conhecimento deve ser contextualizada, no espaço e no

tempo.

No século XIX há a constituição das ciências humanas a partir do século XIX, e com a

diversidade surge a querela dos métodos, de um lado a insuficiência do método das ciências

naturais para explicar o fenômeno humano, por outro, é este método que dá estatuto de

cientificidade a um conhecimento. A perspectiva objetivista não vai além do fato para se

manter científica. O mito positivista é insuficiente para explicar certos fenômenos do século

XIX, ocorrendo uma espécie de ruptura entre as ciências naturais e as ciências humanas. A

ciência positivista objetificou o sujeito, não o percebe como diferente de outros objetos das

ciências naturais.

Marx tratou disso quando fez sua crítica social em relação ao trabalhador como objeto,

a exploração da mais-valia como ação validada pela técnica ‘científica’. O cientificismo fez

do homem um objeto a serviço da técnica.

Para Marx o mercado tem uma capacidade de transformar tudo em coisificação, o

grande sujeito do capitalismo é o Senhor Capital. O conceito de trabalho em Marx é o

conceito de liberdade, de realização, mas sob o capital o trabalho se transforma em

mercadoria, o trabalho é alienado quando está submetido à divisão do trabalho. E para

analisar como acontece este processo, Marx introduziu a idéia de ideologia, de ‘falsa

consciência’, o “homem age como falso sujeito, pois não é de fato senhor de seus

pensamentos nem responsável único pelos seus atos.” (Ghiraldelli, 2001, p.52) Portanto, para

conhecer sua realidade o homem precisa conhecer o modo de organização de seu trabalho e da

sociedade e precisa estar consciente dos determinantes sociais.

13

Page 14: A Produção Do Conhecimento Científico

Para ele, “o capitalismo em geral e o mercado em particular produzem os

fenômenos de reificação da consciência e do feitichismo da mercadoria, o que torna o homem

alienado e incapaz de autodeterminação” (Ghiraldelli, 2001, p.52-53), e esta capacidade de se

auto-esclarecer também é ideológica.

Esta forma de organização social, por sua vez, possibilitou a contribuição

inventiva daqueles que se voltaram às especialidades, gerando uma alta capacidade de

inserção de outras inovações que tem modificado continuamente as relações de trabalho,

alienando ainda mais o trabalhador. A busca por especializações criou abismos entre as

ciências, e ironicamente, dificultou a inovação, tão importante para o crescimento ecônomico.

A necessidade de inovação para garantir o crescimento econômico (mais produtividade, maior

consumo) envolveu a ciência em uma corrida para o desenvolvimento de inovações sem

criticidade. Ela abstrai os sujeitos e usa o modelo das ciências naturais para analisar o ser

humano, que é social e subjetivo. Mas este conhecimento é apenas técnico e serve à

dominação, o conhecimento da realidade social depende da autonomia do sujeito em relação

aos determinantes sociais, só é possível produzir conhecimento superando a ideologia

dominante.

Na sociedade capitalista, a ciência positivista e tecnicista é valorizada porque

apresenta os indivíduos como ‘objetos’ no processo de produção, e as práticas atuais tem

como objetivo discipliná-los e aliená-los para produzir as riquezas e garantir o crescimento

econômico, que ideologicamente levaria o desenvolvimento e a riqueza para todos. Para Marx

o sujeito está submetido à ideologia e somente ao estar consciente dela é que poderá se

revoltar e assumir seu lugar de sujeito diante da história.

O conhecimento científico voltou-se para o aprimoramento técnico no capitalismo,

e as técnicas foram orientadas pelo avanço filosófico e cientifico, mas também pela luta de

classes, que conduziram

a uma seleção de técnicas aplicadas na produção entre outras técnicas possíveis. Finalmente, na fase atual do capitalismo a pesquisa tecnológica é planificada, orientada e explicitamente dirigida para os objetivos que se propõem as camadas dominantes da sociedade.... [por isso] a ampliação contínua da gama de possibilidades técnicas e a ação permanente da sociedade sobre seus métodos de trabalho, de comunicação, de guerra,etc. refuta definitivamente a idéia da autonomia do fator técnico e torna absolutamente explícita a relação recíproca, o retorno circular ininterrupto dos métodos de produção à organização social e ao conteúdo total da cultura (Castoriadis, 2000, p.32).

14

Page 15: A Produção Do Conhecimento Científico

A consciência humana prática, qua é um agente transformador e construída

historicamente, estaria anexada à uma consciência reflexiva teórica, aquela materializa

mudanças no mundo material, modificando as condutas e relações dos homens. As grandes

idéias pertencem à prática histórica (como as técnicas) e devenvolvem o conhecimento

científico, da realidade social. Mas é um idealismo quando Marx tenta transformar esta

análise em uma abstração, reduzindo o conjunto da realidade histórica a um único fator. Se as

idéias são técnicas e fazem a historia avançar, então, ou elas são o próprio motor da historia

ou são apenas um dos elementos retirados de um todo social mais complexo. E Castoriadis

compreende que as idéias são elementos de um todo muito mais complexo, incluindo a idéia

da determinação econômica da sociedade. Ou seja, “os fatos técnicos não são só idéias ´em

atraso` (significações que foram encarnadas), eles são também idéias ´em avanço` (significam

ativamente tudo o que ´resulta´ deles, e conferem um sentido determinado a tudo que os

cerca)” (Castoriadis, 2000, p.34,35).

Se fazemos a afirmação de que as forças produtivas determinam as relações de

produção (e assim, as relações jurídicas, religiosas, políticas, etc.), estamos dizendo que há no

ser humano uma motivação econômica, ou seja, desde sempre o homem quer o crescimento

de sua produção e do consumo. Mas isto é negar que os valores humanos são criações sociais,

é absurdo querer fundamentar a historia da humanidade num instinto de conservação, numa

necessidade, é mais verdade é que o homem vai além de suas necessidades. Falar de

necessidades econômicas é falar da historia do capitalismo e não da historia da humanidade.

Para Castoriadis, o estatuto de conhecimento científico ao marxismo é valido, exceto na sua

afirmação de universalidade.

15

Page 16: A Produção Do Conhecimento Científico

3. Uma outra direção para pensar o conhecimento científico: a diversidade paradigmática

Coloco aqui Foucault como representante do movimento denominado pós-moderno

por criticar a crença na consciência e na subjetividade. Para ele, a fenomenologia, o

positivismo e o marxismo tentaram responder quem é o sujeito que vive, trabalha e fala.

Nestas concepções, o

homem passa a ter uma vida concreta em meio à natureza e aos outros animais, passa a falar uma língua que veio do fundo de uma cultura e passa a ser aquele que produz objetos pelo seu trabalho. Esse ser temporal, finito, poderá, a partir dessas formas empíricas, conhecer que essas são as condições de seu saber e ao mesmo tempo de seu ser homem” (Araújo, 2000, p.102).

Estes paradigmas entendem que o empírico é o transcendental, tomaram aquilo que o

homem faz por aquilo que ele é em si mesmo.

Também Nietzsche se opõem ao conceito de consciência na psicanálise e no

marxismo, pois a noção de consciência "esteve intimamente associada, e até mesmo,

identificada ao que vem a ser o próprio pensamento" (Barbosa, 2000, p.31).

Outro autor que questiona o modo de pensar de Marx, Freud e seus seguidores é

Derrida (1975 ) , para quem o pensamento filosófico no ocidente tem categorizado os

fenômenos de forma diferencial ou oposicionalmente, não tendo utilizado a forma de oposição

para diferenciar um fenômeno do outro. A tradição do pensamento ocidental privilegiou,

além disso, um fenômeno em detrimento do outro atribuindo um valor central à um, e um

valor periférico ao outro. Considerou um como sendo superior (primário e originador) e o

outro inferior (secundário e derivativo) – ou, como diz Derrida, meramente suplementar. E foi

o que acontecer com o conhecimento científico que ganhou estatuto de verdade enquanto

outros discursos e práticas são considerados menores e superficiais, quando não são

totalmente rechaçados.

Foucault busca fazer uma arquegenealogia do sujeito em certas práticas,

há as práticas objetivadoras que permitem pensá-lo através de ciências cujo objeto é o indivíduo normatizável [o normal é ser racional, objetivo e científico]; há as práticas discursivas que desempenham o papel de produtoras epistêmicas [há um discurso adequado] e há as práticas subjetivadoras pelas quais o sujeito pode pensar-se enquanto sujeito [seguindo determinado método é possível alcançar a verdade, o conhecimento científico] (Araújo, 2000, p.87).

Foucault não pretende mais encontrar uma metafísica do sujeito, sua proposta é

desconstruí-la pois elas o mantém submetido ao seu próprio poder. Foucault propõe um

sujeito que tem como tarefa “inventar e construir o que ele deve ser” (Foucault, “Deux essais

sur le sujet el lê pouvoir” In Michel Foucault: Un parcours philosophique, entrevista com

16

Page 17: A Produção Do Conhecimento Científico

Dreyfus e Rabinow, Gallimard, Paris, 1984, p.308. IN Souza, 2000, p.135-136). A proposta

de produção do conhecimento não busca mais estatuto científico, mais um estatuto de

criticidade, de desconstrução das verdades instituídas. Críticas como estas têm provocado

abalos nos fundamentos da ciência e na sua estrutura conceitual, bem como têm fragilizado o

sistema de legitimações da ciência.

Ao analisar o poder do discurso, Foucault (1999, p.7) fala que o importante é "ver

historicamente como se produzem efeitos de verdade no interior de discursos que não são em

si nem verdadeiros nem falsos". Para Foucault "a verdade não existe fora do poder ou sem o

poder (...) A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele

produz efeitos regulamentados de poder.”

Para Foucault cada época tem suas próprias práticas disciplinares afim de constituir as

verdades (científicas ou não) necessárias à reprodução das relações de poder. Ele está

preocupado com a forma como nos constituímos enquanto sujeitos de nosso saber, que

exercem e sofrem relações de poder julgando moralmente as ações. Em cada espaço de poder

institucionalizado existem mecanismos de intensificação das relações de poder. E assim que a

ciência se institucionalizou ela também se utilizou de mecanismos de poder para se afirmar

como valor social, afirmação que buscou validade no conhecimento científico, que quanto

mais absoluto e pretensamente possuidor de uma verdade, mais tenta exercer sua dominação.

Para Foucault, as práticas que definem o homem são as mesmas que podem ser

modificadas por ele e portanto não tem a menor validade enquanto definidoras de seu ser

homem. Mas a sua capacidade criadora não é reconhecida em sua potência pois ele acredita

que a ciência sabe dizer quem ele é, ele crê no saber dos especialistas, filósofos e cientistas,

ele crê na técnica e na verdade promulgada pela ciência. Aquilo mesmo que o define é o que o

condiciona, o homem trabalha mas o fruto de seu trabalho não lhe pertence; ele fala e torna

viva as palavras, mas elas obedecem a regras socioculturais rígidas; ele está vivo, encarnado

em seu corpo, mas está cercado pela morte, num passado e futuro.

Foucault questiona como esses elementos podem ser a essência do homem se

dependem de aspectos históricos e sociais. Foucault faz a crítica da sujeição e da subjetivação,

a sociedade cria indivíduos que se acreditam sujeitos autônomos, mas que se sujeitam ao

poder e ao saber. Para este autor o conhecimento científico pretende manter este estatuto para

garantir um lugar de poder. É uma verdade que funda novamente outras formas de sujeição.

Todas as sociedade produzem mecanismos de poder que são sustentados pela produção de

verdades, e o mesmo acontece com o conhecimento científico. Foucault introduz o conceito

de poder como questão central, com a idéia do discurso como uma formação regulativa e

17

Page 18: A Produção Do Conhecimento Científico

regulada, “determinada pelas (e constitutiva das) relações de poder que permeiam o domínio

social” (McNay, 1994, p.87 IN Hall, 2000, p.21). E o conhecimento produzido por Foucault,

embora critique o poder investido à ciência e à verdade, busca um reconhecimento de seu

estatuto de verdade, fundado nos conceitos de poder e discurso.

Foucault aborda uma crítica ao sujeito predominante na ciência, daquele que passou

por um processo de subjetivação disciplinada pois a ciência coloca no centro um sujeito

uniforme, e todos devem se submeter aos lugares impostos pela lógica das convenções, pelos

lugares já enunciados. Ao criticar a ciência, Foucault critica a dominação dos sujeitos e a

reprodução desta dominação pelos lugares de saber e de poder estabelecidos pela ciência e

seus representantes e aposta na liberdade individual do cientista de combinar uma diversidade

de análises e desconstruir os estatutos de verdade da ciência.

18

Page 19: A Produção Do Conhecimento Científico

4. A diversidade paradigmática como perspectiva para pensar o conhecimento científico

A partir de autores como Foucault, Nietzsche, Derrida etre outros, e suas críticas à

racionalidade e aos discursos de poder historicamente construído, é possível construir novas

relações, novas identidades, segundo uma ética, em meio a tantas que se constróem e se

cristalizam, se desconstroem e re-significam, numa tentativa de satisfazer objetivos

individuais e/ou coletivos.

No espaço acadêmico apresentam-se possibilidades de pesquisa diferenciadas, como a

prática cada vez maior da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade, de uma fluidez de

fronteiras, entre os paradigmas e entre as áreas de estudo, que desorganiza os domínios

hierarquizados estabelecidos anteriormente pela Filosofia da Ciência. Uma expressão mais

ousada desta mistura são as aproximações realizadas por Capra (1983) entre a física quântica

moderna ao misticismo oriental.

A heterogeneidade paradigmática na contemporaneidade abriga uma diversidade de

saberes e práticas que estão dispersos em todas as áreas, desde os avanços da física quantica

até as tradições orientais e antigas e a combinação com novos paradigmas das ciências

humanas. Portanto, as questões paradigmáticas e de produção do conhecimento, que antes se

limitavam à ciência e ao conhecimento científico, se manifestam em várias áreas do

conhecimento, como a economia, a política, a educação, a psicologia, a estética, a religião e

os cuidados com o corpo e a mente. Estas mudanças refletem uma crise na ciência, que passou

a ser criticada por ter estabelecido e mantido posições de poder a capitalistas, políticos,

militares e se distanciou cada vez mais dos valores que a originaram, a busca pela verdade e

pelo desenvolvimento do homem e da sociedade. E esta proposta contamporânea exige cada

vez mais um debate ético em torno da produção científica.

O conhecimento científico deixa de ser compreendido como a busca do bem e da

verdade, baseado na razão em direção ao progresso, para ser analisado como uma prática

social e portanto sujeita a determinantes culturais, sociais, economicos e da história individual

do pesquisador. E assim começa uma busca por identificar as relações entre a tessitura social

e a produção de conhecimentos (Mulkay, 1979). A Sociologia do Conhecimento começa a

investigar as atitudes e comportamentos efetivos dos cientistas, revelando a existência de uma

rede complexa de relações sociais que envolve tanto a comunidade científica como a

sociedade. A sociologia passa a investigar como são construídos os interesses, como são

realizadas as negociações sociais, as mediações culturais, as interpretações e as ideologias no

meio científico (Mulkay, 1979).

19

Page 20: A Produção Do Conhecimento Científico

A análise sociológica da produção do conhecimento científico apresenta uma

variedade de relações sociais que não são descritas nas metodologias e nas teorias,

evidenciando como o conhecimento científico é socialmente construído, e a idéia do cientista

como um sujeito onisciente e neutro se modificou para um sujeito motivado por determinantes

históricos e sociais.

Ao mesmo tempo que fragiliza a ciência, este movimento de crise busca a criação de

novos paradigmas para explicar a realidade. Estes novos paradigmas buscam a inclusão de

uma análise histórica e a inclusão de outras racionalidades. Na época medieval a ciência fez

uma quebra paradigmática com a religião. Na época medieval havia um contexto diferente,

segundo Prigogine e Stengers (1984, p. 41) havia

ressonâncias entre discursos científicos e teológicos. Hoje podemos falar de uma outra ressonância, entre as ciências e a dominação 'laica' do mundo industrializado, reforçada pela afinidade que se conhece entre o exercício dessa dominação e a prática compartilhada e muda da ciência.

A ordem social capitalista e baseada na ciência difere da ordem social medieval e

exige outros critérios e categorias de análise, as quais o paradigma científico cartesiano não

responde. Assim, a própria produção do conhecimento científico deve ser contextualizada, em

uma realidade histórico-social que exige criticidade para que se produzam novos elementos de

análise e não somente a reprodução de velhos paradigmas que servem atualmente à

dominação e à alienação e de verdades absolutas que limitam a produção de novos

conhecimentos. Estes novos paradigmas também exigem modelos, metodologias, concepções,

fundamentos, que tendem à universalidade, mesmo considerando sua impossibilidade.

A inclusão de outras racionalidade, e a retirada do cientista como único responsável

pela produção da ciência, inclui na produção do conhecimento científico outros saberes, como

a intuição, o bom senso, a sabedoria (Demo, 1995) e outros sujeitos sociais, como os

trabalhadores, os movimentos sociais, os loucos, pois

(...) devemos aprender (...) a respeitar as outras abordagens intelectuais, quer sejam as tradicionais, dos marinheiros e camponeses, quer as criadas pelas outras ciências. Devemos aprender a não mais julgar a população dos saberes, das práticas, das culturas produzidas pelas sociedades humanas, mas a cruzá-los, a estabelecer entre eles comunicações inéditas (...) (Prigogine & Stengers, 1984, p.225).

Segundo Guatarri (1987, p.165 In Dorea & Segurado, 2000)

há muitas maneiras de abordar esse ‘avesso’ da racionalidade humana. Pode-se negar o problema ou reduzí-lo ao domínio da lógica habitual, da normalidade e da boa adaptação social (...).Dessa perspectiva, nada

20

Page 21: A Produção Do Conhecimento Científico

mais resta qe tentar corrigir as falhas, de modo a retornar às normas dominantes. Inversamente, pode-se considerar que esses comportamentos dependem de uma lógica diferente, que deve ser estruturada como tal. Em vez de abandoná-los à sua irracionalidade aparente, vamos então tratá-los como uma espécie de matéria-prima, como espécie de mineral de que se pode extrair elementos essenciais à vida da humanidade, especialmente à sua vida de desejo e às suas potencialidades criativas.

Para Cassirer (2005;359) ciência parte do pressuposto que a realidade/a natureza são

compreensíveis. A ciência depende de uma ação construtiva para produzir conhecimento

científico e estas “espontaneidade e criatividade são o próprio centro de todas as atividades

humanas”.

Foucault afirma que os discursos, e aqui podemos incluir o conhecimento científico,

constróem posições-de-sujeito no interior do discurso. Mas esta crítica não revela as razões

que fazem os indivíduos ocuparem certas posições-de-sujeito e não outras. Ou seja, a posição-

de-sujeito é uma categoria a priori, e determina o sujeito. Embora a ideologia seja falsa, ou

seja, o reconhecimento não é ‘verdadeiro’, este falso reconhecimento tem “funcionado como

o significante da condensação das subjetividades no indivíduo” (Hall, 2000, p.121), e,

portanto não pode ser simplesmente descartada, seu adjetivo de ‘falsa’ não anula seu efeito.

Se o sujeito escolhe determinado lugar para ocupar, deve existir uma motivação para

tal escolha. O argumento de Foucault é de que o sujeito é assujeitado pelos determinantes

sociais e históricos, enfim, ele não escolhe ocupar este ou aquele lugar. Mas esta questão nos

faz pensar se a produção do conhecimento científico está apenas na submissão a certos

pressupostos. Há alguma característica humana que o impulsiona a buscar responder suas

questões, afirmar-se em posições de poder não explica-se por si só, porque o sujeito busca se

afirmar? Há um desejo que o impulsiona a produzir conhecimento ou ele está fadado a

reproduzir relações de poder e articlações discursivas determinadas socialmente e

culturalmente?

Na análise do discurso, Foucault coloca o perigo da interdição institucional que, dando

um lugar especial ao discurso, ritualizando-o, se coloca na função de atribuir poder ao

discurso, ao invés de reconhecer o valor de todo discurso como a fala de um sujeito, já que

'tudo' não é dito ou interpretado.

Porém, acredito que este sujeito expressa, além de uma combinação de determinantes

sociais e históricos, o seu desejo. No sentido de buscar um lugar social para realizar uma

construção imaginária, na busca de uma realização individual.

21

Page 22: A Produção Do Conhecimento Científico

Conclusão

Uma das características da produção do conhecimento científico, apontadas por

François Jacob (Dorea & Segurado, 2000), é sua imprevisibilidade, que “sempre busca o

novo, não revela na sua oigem qual será o percurso fixo da pesquisa e muito menos seu

destino final. A trajetória da pesquisa é múltipla e complexa. São as desterritorializações que

tornam a ciência e a própria história da humanidade tão instigantes”

Em relação às ciências sociais Fábio Reis (1997) afirma que

não podemos abrir mão de um modelo de ciência social decididamente comprometido com o rigor analítico e de vocação teórica e nomológica, empenhado na obtenção de um conhecimento passível de ser formulado em termos genéricos e eventualmente articulado em sistemas abstratos.

O autor afirma também que é necessário “fortalecer a qualidade de treinamento

teórico-metodológico, em termos que valorizem o modelo analítico e sistemático do trabalho

científico”. Expondo assim algumas características necessárias para que o conhecimento

científico possa ser produzido e contribua para o amadurecimento da pesquisa cientifica nas

ciências sociais no Brasil.

As diferenças paradigmáticas são caracterizadas por uma diversidade na produção de

conhecimento científico. E ao produzir conhecimento o “cientista age com base no princípio

de que até nos casos mais complicados acabará conseguindo encontrar um simbolismo

adequado que lhe permita descrever suas observações em uma linguagem universal e de

compreensão geral” (Cassirer, 2005, p.357). Estas tentativas de universalidade muitas vezes

se expressam quando se ignora que cada paradigma possui pressupostos que permitiram a ele

pensar a realidade. Por exemplo, a base natural e lógico-matemática de Descartes, o

fundamento existencial do sujeito heiddegeriano, a base econômica do paradigma marxista,

dos determinantes culturais de Foucault, da sexualidade para a psicanálise, etc.

Porém, é preciso estar atento às especificidades de cada área e de cada paradigma, pois

pode estar interpretando um se utilizando de outro e anulando conceitos e categorias sem

considerá-las realmente. O que se coloca em questão na atualidade é a busca de um estatuto

de universalidade e de verdade ao conhecimento científico, que foi inicialmente produzido em

diferentes áreas e paradigmas. Ao mesmo tempo que buscamos expressar diferentes

conhecimentos acerca da realidade, o próprio uso da linguagem limita sua expressão pois ela

objetifica o pensamento e a experiência ao torná-la explícita, como se o limite do

conhecimento cietífico fosse imposto também pela linguagem. Por outro lado, nos diferentes

22

Page 23: A Produção Do Conhecimento Científico

discursos pode-se, além de reproduzir relações de poder, questionar, desconstruir, reconstruir,

desobstruir e interpretar os diferentes discursos como instrumento de construção de novas

relações, novas identidades, e novos conhecimentos.

23

Page 24: A Produção Do Conhecimento Científico

Referencias Bibliográficas

ARAÚJO, Inês L. Foucault e a crítica do sujeito. Curitiba: Editora da UFPR, 2000.

BARBOSA, Marcelo Giglio. Crítica ao conceito de consciência no pensamento de Nietzsche. São Paulo: Beca Produções Culturais, 2000.

CAPRA, F. O tao da Física. Um paralelo entre a Física moderna e o misticismo oriental. São Paulo: Cultrix, 1993.

CASSIRER, E. Ensaios sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

CASTORIADIS, Cornelius. A Ascensão da Insignificância. Lisboa: Editora Bizancio, 1998.

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 7ª edição. São Paulo: Editora Ática, 1998.

DEMO, Pedro. Conhecimento moderno – sobre Ética e intervenção do conhecimento. 3a ed., Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1997.

DEMO, P. Metodologia Científica em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas, 1995.

DERRIDA, Jacques, Posições. Semiologia e materialismo, Lisboa, Plátano Editora, 1975.

DUSSEL, Enrique. A “questão do sujeito”: Emergência de novos sujeitos sócio-históricos In Ética da Libertação: na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Editora Vozes, 2001.

FOUCAULT, Michael. A ordem do discurso. Coleção Leituras Filosóficas, 6a ed., São Paulo: Edições Loyola, 2000.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 14a ed., Rio de Janeiro: Edições GRAAL Ltda., 1999.

GHIRALDELLI Jr., Paulo. Neopragmatismo, Escola de Frankfurt e Marxismo. Editora DP&A: São Paulo, 2001.

HALL, S. Quem precisa da identidade? IN SILVA, Tomaz T. da. (org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito. Coleção Os Pensadores, 1989, p.275-301.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Sobre a Fenomenologia da Linguagem In: Textos Selecionados São Paulo: Nova Cultura, Coleção Os Pensadores, 1989, p. 77-88.

MULKAY, M. Science and the Sociology of Knowledge. London: George Allen & Unwin, 1979.

24

Page 25: A Produção Do Conhecimento Científico

OGILVIE, B. Lacan: a formação do conceito de sujeito. Coleção Transmissão da Psicanálise 3, Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2ª edição, 1991

PECHEUX, Michel. O discurso – estrutura ou acontecimento. 2a ed., Campinas, SP: Pontes, 1997.

PRIGOGINE, I. & STENGERS, I., A Nova Aliança . Brasília: Universidade de Brasília, 1984.SANTOS, B. S. Metodologia e Hermenêutica II IN: Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989.

SOUZA, Sandra C. de. A Problematização: o sujeito, o objeto. In A Ética de Michel Foucault: a verdade, o sujeito e a experiência. Belém: Cejup, 2000.

STEIN, Ernildo Diferença e Metafísica: ensaios sobre a desconstrução. Porto Alegre: Editora EDIPUCRS, 2000.

STEIN, E. Introdução – A Questão do ser e a verdade IN: Compreensão e Finitude: estrutura e movimento da interrogação heideggeriana. Ijuí: Ed. Unijuí, 2001.

25