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Ano 1 | Nº 5 | Jul 2013 ISSN 2316-8102 A ONIPRESENÇA DO TEMPO NO LUGAR NA PERFORMANCE AUSTRALIANA QUE TEM POR BASE UM LOCAL por Gretel Taylor O presente ensaio visa discutir o uso do tempo na performance contemporânea do lugar na Austrália, essencialmente através de duas das obras recentes de Jill Orr, mas, também, através da apresentação da minha própria prática baseada num local. Estas obras representam, de forma não cronológica, vários aspectos do passado de um local como coexistentes com o presente de uma forma muito parecida ao sentido que os indígenas australianos têm do tempo como duradouro e onipresente (Stephen Muecke, Ancient and Modern, 2004). A aclamada praxis performática de Orr, desenvolvida ao longo de mais de 30 anos, deriva das Belas Artes, ao passo que a minha prática, relativamente emergente, se baseia na dança, pelo que não pretendo comparar o nosso trabalho de mais nenhuma forma que não seja discutir as nossas representações do tempo na performance. Partilhamos a convicção de que o reconhecimento da aboriginalidade inerente dos lugares australianos reveste-se de uma importância crucial para a prática artística australiana atual baseada num lugar e, por isso, procurámos incluir pessoas indígenas autóctones, bem como referências à história colonial nas nossas obras performáticas recentes. Contudo, em vez de construir narrativas históricas lineares, os diversos passados de um determinado lugar são entrelaçados na contextura do trabalho, criando uma oscilação entre as histórias aborígenes, colônias e outras, práticas contemporâneas neste local e a imediatidade do momento atuado. A artista performática australiana Jill Orr cria poderosas obras baseadas em imagens, nas quais se incluem performances físicas ao vivo, vídeo, fotografia, pintura e instalação. O trabalho da artista procura “a humanidade refletida em diferentes lugares e assuntos, com relevância pessoal e universal” (www.jillorr.com.au/CV.html consultado em 10/06/2008). As imagens, a solo, de Orr, nos anos 70 e 80 do séc. XX, usavam o seu corpo como o lugar e foram orientadas para revisões feministas do corpo, bem como temas ambientais (por exemplo, a famosa Bleeding Trees de 1979). Algumas das suas obras têm sido performances

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Ano 1 | Nº 5 | Jul 2013

ISSN 2316-8102

A ONIPRESENÇA DO TEMPO NO LUGAR NA PERFORMANCE

AUSTRALIANA QUE TEM POR BASE UM LOCAL por Gretel Taylor

O presente ensaio visa discutir o uso do tempo na performance contemporânea do

lugar na Austrália, essencialmente através de duas das obras recentes de Jill Orr, mas,

também, através da apresentação da minha própria prática baseada num local. Estas obras

representam, de forma não cronológica, vários aspectos do passado de um local como

coexistentes com o presente de uma forma muito parecida ao sentido que os indígenas

australianos têm do tempo como duradouro e onipresente (Stephen Muecke, Ancient and

Modern, 2004). A aclamada praxis performática de Orr, desenvolvida ao longo de mais de 30

anos, deriva das Belas Artes, ao passo que a minha prática, relativamente emergente, se baseia

na dança, pelo que não pretendo comparar o nosso trabalho de mais nenhuma forma que não

seja discutir as nossas representações do tempo na performance. Partilhamos a convicção de

que o reconhecimento da aboriginalidade inerente dos lugares australianos reveste-se de uma

importância crucial para a prática artística australiana atual baseada num lugar e, por isso,

procurámos incluir pessoas indígenas autóctones, bem como referências à história colonial

nas nossas obras performáticas recentes. Contudo, em vez de construir narrativas históricas

lineares, os diversos passados de um determinado lugar são entrelaçados na contextura do

trabalho, criando uma oscilação entre as histórias aborígenes, colônias e outras, práticas

contemporâneas neste local e a imediatidade do momento atuado.

A artista performática australiana Jill Orr cria poderosas obras baseadas em imagens,

nas quais se incluem performances físicas ao vivo, vídeo, fotografia, pintura e instalação. O

trabalho da artista procura “a humanidade refletida em diferentes lugares e assuntos, com

relevância pessoal e universal” (www.jillorr.com.au/CV.html consultado em 10/06/2008). As

imagens, a solo, de Orr, nos anos 70 e 80 do séc. XX, usavam o seu corpo como o lugar e

foram orientadas para revisões feministas do corpo, bem como temas ambientais (por

exemplo, a famosa Bleeding Trees de 1979). Algumas das suas obras têm sido performances

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duracionais, como The Sleep of Reason Produces Monsters-Goya (2002 e 2003), onde Orr

povoou um espaço de galeria e criou esculturas com uma tonelada de ossos ao longo de mais

de oito horas. Essa obra envolveu o tempo de forma particular, mas aqui abordarei as obras

recentes da artista que se centram num lugar e se referem à história. Tanto The Crossing

(Lock Island, Mildura, 2007) como From the Sea (Warrnambool, 2003-2004) revelam a

multiplicidade de relações culturais com o lugar, incluindo experiências aborígenes,

australianas brancas e da nova imigração. Atuei em esses ambos trabalhos, pelo que

testemunhei e contribuí para o próprio processo de execução. A reflexão sobre o papel do

tempo na obra de Orr deriva essencialmente dessas experiências na primeira pessoa e de uma

entrevista que fiz a Jill Orr em junho de 2009.

Tanto em The Crossing como em From the Sea, Jill convidou grupos indígenas e

outros membros ou grupos das comunidades locais, bem como artistas performáticos

profissionais representando várias culturas, para darem um contributo para a obra. Os grupos

indígenas, em particular, foram incentivados a executarem as suas danças, escolhidas por si,

nos seus próprios termos, no seu espaço. Jill entendeu ser esta a melhor forma de reconhecer a

história do povo indígena e a presença indígena contemporânea sem reiterar paradigmas

colonizadores mediante “dizer-lhes o que fazer ou ter alguém a tentar contar a história deste

povo por ele” (Orr, 29/06/2009). Deste modo, Orr convida os grupos aborígenes a

representarem-se a si mesmos, entendendo, simultaneamente, que o seu contributo faz parte

de uma obra mais abrangente. Atendendo a que nós (colonizadores) “ficamos com todo o

espaço”, o mínimo que podemos fazer, segundo Jill crê, é abrir um espaço nas nossas

estruturas performáticas para que os povos aborígenes contem a sua própria história. De

forma semelhante, ao convidar por exemplo Tony Yap, um bailarino malaio, a contribuir para

The Crossing, dançando a sua relação com o lugar de Lock Island, Jill permitiu-lhe “ter uma

voz”: criar a própria dança. Como fazedora/diretora performática, Jill acredita não conseguir

representar perspectivas alheias; apenas pode criar espaço(s) para que outros se representem

neles. Obviamente, esta abertura tem algumas limitações: desde o princípio, Jill é seletiva ao

convidar determinados indivíduos e grupos para o local por si escolhido; a artista intui que

esses convidados criarão cumulativamente uma transversalidade de “personagens” que

representem diversas relações com o lugar em questão. O objetivo da artista, na composição

dessa “sobreposição” num espaço, é a criação de uma “obra inclusiva a partir de diferentes

perspectivas reais”.

Sempre rotulando o seu trabalho como uma “resposta poética”, Orr não tenciona

documentar e representar uma história fatual nem sequer verdadeiramente “contar uma

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estória”, pois considera que outras pessoas (historiadores, acadêmicos) estarão bem melhor

equipadas para elaborar um documentário fatual devidamente explanado. Jill prefere evocar

um fato, que ela crê proporcionar mais possibilidades, uma ligação mais lateral de inter-

relações de passado, presente e futuro pelos lugares. As imagens visuais, que ela cria, partem

da história real (documentada ou recontada pelos autóctones) e da sua resposta intuitiva/

criativa ao lugar. Muitas vezes, a resposta intuitiva inicial de Jill, que o próprio lugar gera, é

depois apoiada por pesquisas, naquilo que ela apelida de um “processo invertido”.

Defendendo que as personagens “já lá estão” no lugar, preparadas para ela, ela tem então de

“verificar que são reais”, analisando os fatos. Das pesquisas que realiza, Jill Orr fica ciente da

enorme quantidade de histórias para lá do que ela efetivamente inclui nos trabalhos. A artista

acredita que “saber aquilo que fica de fora confere mais peso ao que é incluído”. Os seus

trabalhos são, então, uma destilação e, a partir deste momento destilado, acredita que a leitura

do público “voltará a alargá-lo”. Orr descreve o seu trabalho como uma “história falsa” que

“paira nos limiares do espaço”.

A costa litoral sul de Warrnambool inspirou Orr para a sua instalação de vídeo de

múltipla projeção From the Sea [cujo título em português poderia ser “Vindos do Mar”]. Esse

trabalho evocou aspectos da história e mitologia locais, como os “fantasmas” dos vinte e oito

navios naufragados ao longo daquele trecho da costa. Inclui ainda referências sutis a

refugiados atuais que procuram asilo na Austrália. A imaginação de Jill de From the Sea

deriva da sua consciência do mistério/ mito da nau de mogno portuguesa que se julga ter

naufragado nos rochedos em Warrnambool (“The Mahogany Ship”), cerca de duzentos anos

antes da alegada “descoberta” do continente por Cook. Jill soube pelo povo nativo

Gunditjmara que, nos tempos que antecederam a implantação europeia, devido à relação de

direções num cerimonial fúnebre tradicional dos Gunditjmara, este povo tinha a crença de que

as almas, corpos ou sobreviventes vindos do ocidente eram seres santos; os que vinham do

oriente não eram considerados importantes. Essa informação confirmou a propensão de Jill

para criar uma obra no lugar de onde se observavam os seres que vinham “do mar” [From the

Sea, o nome da obra], como se fossem observados da perspectiva (indígena) da terra firme.

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From the Sea, Warrnambool, 2003. Fotografias de Sharp Edge Photography para Jill Orr

A dimensão política de From the Sea residia no estabelecimento de paralelos entre

imagens representando tempos históricos muito díspares e, assim, diferentes ramificações

legais e valores culturais. Uma imagem fugaz mostrava duas personagens iraquianas andando

pela praia: uma alusão ao furor em torno dos imigrantes ilegais que chegam de barco e a

histeria nacionalista em torno do “controle fronteiriço” no momento atual de 2002-2003. Essa

imagem foi incluída na sequência de vídeo não linear, entre outras imagens de diversas

pessoas/ fantasmas de aspecto europeu/ britânico chegando via mar de uma era anterior. Da

perspectiva da terra (e respectivos habitantes indígenas), esses seres chegados do mar são

considerados como equivalentes, ao contrário do aparente esquecimento da Austrália branca

dominante, de que originalmente todos viemos de outro local e presumimos o direito de

reclamar esta terra como nossa.

Em vez de formarem uma cronologia lógica, o contemporâneo e o antigo entrelaçam-

se nesses trabalhos. Os tempos e as culturas atravessam caminhos, com lucidez, na exploração

da natureza do lugar, criando um patchwork de imagens, que apresenta cumulativamente

perspectivas sobre o lugar específico e o ambiente sociopolítico envolvente. Em From the Sea

havia outra “cena” envolta no estrépito e no fragor das ondas na costa, de homens brancos

envergando fatos a arrancar crianças aborígenes aos respectivos pais. Essa foi uma seção que

Jill fez “diretamente”, perguntando primeiro às crianças e seus pais se quereriam encenar esta

parte horrífica da sua história. Num estranho entrecruzamento de material cultural e dos

tempos, as crianças pequenas não tinham consciência das “Gerações roubadas” e, em vez

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disso, julgavam que os homens de fato escuro (contemporâneo) e óculos de sol eram os

Homens de Negro do recente filme e achavam-nos legais! Por isso, as crianças ficaram

absolutamente imperturbáveis ao verem o seu cerimonial de dança em volta da fogueira

interrompido por esses homens, que os levavam embora pelas dunas de areia.

A obra The Crossing [que poderia chamar-se, em português, A Travessia], de Jill Orr,

foi descrita em material publicitário do Festival Mildura de 2007 como “uma expressão

contemporânea do espírito do lugar que tece e reconhece, simbolicamente, histórias que se

sobrepõem”. A reunião de histórias indígenas, as perspectivas coloniais britânicas e outras

histórias (de) imigrantes, essa performance ao vivo in situ explorou os múltiplos extratos

culturais e procurou representar as histórias sub-representadas passadas e presentes de Lock

Island, no rio Murray junto à cidade de Mildura. As personagens coloniais que Jill identificou

para esse trabalho (a enfermeira, o padre missionário e a freira) terão todas, historicamente,

tido contato próximo com o povo aborígene. Jill imaginou a personagem do missionário

verborreico, no processo inicial de responder ao lugar de Lock Island. Depois, nas pesquisas,

descobriu haver histórias significativas de missionários na região de Mildura, confirmando o

seu “processo invertido”. Pelo contrário, a personagem da enfermeira (bush nurse) foi

despoletada através da documentação da presença colonial em Mildura. Estas enfermeiras

(que, tanto quanto Jill sabia, nunca tinham sido representadas em performance) foram

pioneiras no trabalho em proximidade com os aborígenes, no cuidado dos doentes (muitas

vezes com doenças trazidas pelos colonizadores) e como parteiras. Os Latje Latje mais velhos

contam histórias dos seus nascimentos, e dos das mães e avós, nos chãos térreos das cabanas.

Nesse trabalho, as temporalidades voltam a ser apresentadas em sobreposição: o

homem malaio imediatamente abaixo do missionário colonial expressa uma história hodierna

de imigração e dissociação do lugar, a mulher colonial (eu) e os filhos são transportados pelo

rio num barco a motor. Os jovens Latje Latje executaram danças “tradicionais”, bem como

uma versão hip-hop da sua história do rio, representando a atual relação contemporânea com

esse lugar. Essas anomalias quebram as expectativas do público duma narrativa

historicamente precisa e sugerem que esses múltiplos passados continuam a invadir o

presente.

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Tony Yap em The Crossing, 2007. Fotografia de Naomi Herzog e Malcolm Cross para Jill Orr

Ao trazer um público a um lugar, a experiência incorporada dos membros do público

naquele momento coexistem igualmente com as histórias que a performance evoca. Em The

Crossing, Jill previu que o processo físico dos membros do público de andarem pela ponte

para Lock Island, depois, de lugar em lugar à volta da ilha, poderia encorajá-los a “despirem

algumas das suas capas sociais”, a centrarem-se calmamente naquele momento, de modo a

entrarem percentualmente naquele lugar e abrirem-se para receber a teatralidade da

performance. Uma grande parte da obra consistia na caminhada física efetuada pelo público,

uma negociação corpórea do terreno, sentado na areia junto ao rio, etc. A forma (tanto

geográfica como temporal) entre os atores convidados/ as cenas permitiam a observação

pública do local. O público, quase completamente Koori, na última noite, incluindo mulheres

mais velhas para quem andar já envolvia algum esforço, conferiram uma abertura, silêncio e

atenção muito particulares à performance e à experiência de andarem entre lugares, sem

retorno ao modo social. Os artistas executantes sentiram essa atenção e o lugar parece quase

fazer eco com este enfoque auditivo onde Jill recorda uma “partilha vibratória”.

Nesta última noite de The Crossing, aconteceu algo não ensaiado. Na cena final

apoteótica, todos os executantes convergem numa grande praia junto ao rio: uma cerimônia

dançante dos Latje Latje é interrompida pelo missionário palavroso, o imigrante asiático

perdido irrompe na cena, um espírito europeu da terra dança entre as crianças Koori, entra a

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freira e atira um balde de água sobre o padre, para o calar, e a enfermeira e a mãe empurram

uma cadeira de rodas vazia pelo caos adentro. Até aqui foi ensaiado. Depois, Peter Peterson, o

caçador Latje Latje, que tinha estado escondido a observar nas sombras junto ao rio durante a

atuação, atormentado pela retórica insistente e ruidosa do missionário, saiu para a luz e

“lancetou” o missionário e, de seguida, com um gesto e um som, parou a freira e as outras

personagens coloniais nos seus papéis. Peterson, com essa ação, paralisou efetivamente o

tempo, reclamando o momento e o lugar para seu povo, como se ele nos fizesse “desaparecer”

a nós, os tipos brancos, decapitando simbolicamente todos os intrusos institucionais da

colonização. Ao parar o tempo, é como se ele pudesse rescrever a história: “se vocês não

estivessem aqui, o que poderíamos ter feito, enquanto povo indígena, neste lugar?”

Paradoxalmente, a ação violenta improvisada de Peterson pareceu trazer paz à cena,

não apenas em termos de encenação, mas em termos “reais”, como se todos tivéssemos

participado num ritual de reconhecimento e/ou reclamação e, assim, curando de certa forma o

passado, assentando algo que estava por resolver, uma restituição há muito devida. Pouco

depois, fez um gesto curativo sobre o corpo do missionário com folhas fumegantes de

eucalipto da fogueira e todos continuámos as nossas trajetórias. Depois de o público ter

avançado para um último local, onde os jovens executavam uma espécie de coda: a dança do

rio, na qual cada totem é executado em conjunto como aspectos unificados do rio, Peter ficou

para trás e completou o seu ritual de defumação da praia com os ramos, limpando e

acalmando toda a zona.

Peter Peterson em The Crossing, 2007. Fotografia de Naomi Herzog e Malcolm Cross para Jill Orr

Alegadamente, Peter Peterson terá dito antes a Jill que iria “matar” o missionário na

performance e que ela (Jill, no papel de enfermeira) também deveria paralisar depois de atirar

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o balde de água. Jill entendeu ser como se Peterson tivesse de a testar: para ver se ela era

genuína nos seus gestos de convite ao contributo do povo Latje Latje para a obra; se ela

queria mesmo afetar mudanças nas relações entre pessoas e lugar.

O potencial do elemento ritual (a possibilidade da mudança ou transcendência) está

inscrito na estrutura da obra de Jill. Os artistas que ela convidou para colaborarem em The

Crossing foram todos eles pessoas que ela considerava estarem envolvidas em práticas que

“se ligam à terra” e abraçam a potencialidade da transcendência (cerimoniais/ danças

indígenas, Butoh, improvisação, atuação e trabalho vocal que leva a áreas desconhecidas).

Esses artistas foram selecionados pelo interesse que partilhavam pela ampliação para lá dos

aspectos técnicos físicos da execução do movimento/ som vocal, etc., para lutar por estados

de “ser para lá do material” ou estados de ser que “não estão sujeitos às limitações do

universo material” (que é como o dicionário australiano Australian Concise Oxford

Dictionary descreve “transcendência”), abrindo caminho ao espírito que se move através do

corpo. Dentro da estrutura da performance, que Jill compara a um ritual e que possibilita o

momento de transcendência, tem de estar a combinação de lugar/ Local, povo/ artista(s) e a

eventualidade de algo desconhecido acontecer à medida que a performance “se liga” ou está

em curso. Nas palavras de Jill:

A estrutura tem de ser suficientemente definida para que exista um fluxo evidente de ações, mas tem de ser suficientemente aberta para (me) ser algo assustador [risos] e para que algo desconhecido surja dessa interação entre lugar e estrutura ou ritual da performance. É isso que confere poder ao momento performático transcendente ao vivo. Ou, para usar outra palavra, é aí que reside a comunicação.

Pergunto a Jill: “Então é essa a razão para se fazer uma obra com base num lugar?”

Ela responde:

A razão está em permitir que várias perspectivas diferentes sejam vistas num mesmo lugar, nas mesmas perspectivas temporais e culturais que se desenvolveram a partir da história e que continuam a ser encenadas no presente. São essas coisas que impedem ou permitem que as pessoas vivam respeitando-se mutuamente.

A minha própria prática na dança, a que eu chamo locating (localização), visa o

relacionamento com um lugar através da percepção e da improvisação, para articular uma

relação entre o meu corpo e aquele determinado local. As obras performáticas que executo

neste processo de interligar o empenho em representar o meu desejo de me “enquadrar” num

ambiente e de, simultaneamente, expressar o meu constrangimento pelo fato corpóreo de ter

pele branca neste país. Perceber que a minha presença neste país se deve à exploração do

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colonialismo e é responsável pela expropriação e injustiças constantes contra os povos

indígenas, perturba-me profundamente [Nota da Tradução: a artista usa o termo unsettle, que,

por um lado, significa precisamente “perturbar, inquietar”, por outro lado, encerra em si a

negação (un-) de settle, enquanto fixar-se, estabelecer-se, colonizar], pelo que decidi não

evitar esta temática nas minhas obras relativas a lugares na Austrália. As minhas

representações dos vários níveis históricos de um local estão, pois, dispostas segundo esta

lente pós-colonial. Abordo o lugar em termos localizados e específicos, e concebo-o como um

microcosmo que sirva de referência a todo o continente australiano e às respectivas tensões

sociopolíticas. As minhas obras tentam reconhecer a história colonial, já que a cor branca da

minha pele faz com que eu tenha de incluir essa história como parte da minha identidade.

Qualquer que seja o lugar australiano com que esteja a trabalhar, incluindo espaços

urbanos contemporâneos e/ou espaços interiores, tenho consciência e procuro atrair a atenção

do público para o lugar antigo aborígene que, acredito, ainda existe por baixo, antes e

“através” da arquitetura. A minha obra ao vivo Blasted Away (2005) foi executada na Queen’s

Bridge, em Melbourne, onde até aos anos 80 do séc. XIX uma parede de pedra atravessava o

rio Yarra, formando uma cascata. Tinha procurado um lugar no bairro empresarial de

Melbourne que fosse significativo tanto para a história indígena como para a história europeia

e encontrei as quedas de água na forma de um enfeite num mapa antigo de Melbourne na sala

dos mapas raros na biblioteca estatal. Pesquisando mais, percebi que as quedas de água foram

um importante ponto de travessia e de encontro para os clãs da nação Kulin, além de terem

estado por detrás da principal motivação das decisões de Batman e de Faulkner de se

estabelecerem aqui, devido à separação entre a água salgada e a água doce a montante.

Contudo, menos de duas décadas depois da ocupação europeia, o rio já estava, de qualquer

forma, demasiado poluído para se poder beber a água, pelo que a cascata foi rebentada

[Blasted Away] com dinamite nos anos 80 do séc. XIX de modo a permitir a navegação rio

acima.

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Gretel Taylor, Blasted Away, 2004. Fotografia de Christian Alexander

Fiz várias performances de movimento em Queen’s Wharf, este primeiro lugar de

fixação das gentes de Batman e de Faulkner, na “descoberta” do lugar que haveria de se

tornar na cidade de Melbourne. Envergando um fato formal contemporâneo e saltos altos, a

minha dança fazia intermitentes referências a características arquitetônicas e ocorrências

incidentais do ambiente urbano atual (degraus de basalto, ancoradouros, arranha-céus do

outro lado do rio, um banco de rua, semáforos, elétricos a passar e peões a falar ao celular),

bem como a cascata na minha imaginação, que ali existira em tempos. Ao lado de uma placa

comemorativa do significado deste lugar para a nação Kulin e os colonos europeus, em

termos ofensivamente neutros, dancei a violência que eu sentia estar a faltar no memorial. A

obra terminava com a projeção de uma imagem de vídeo e o som de uma cascata na ponte

como a minha versão de um memorial do local que existiu e, de algum modo, ainda existe

neste lugar.

Referindo arbitrariamente múltiplas histórias além de referir o momento atual, eu

esperava revelar a onipresença das estórias que este lugar engloba e propor que,

intencionalmente ou não, elas informam as nossas identidades personificadas atualmente. O

público fica ciente do tempo como sendo fluído, transitório, ainda que incorporado no lugar.

O passado está implicado no presente e no futuro; o presente está inextrincavelmente ligado

ao passado e, assim, até certo ponto, o presente é responsável pelo passado. Reina Lewis e

Sara Mills, editoras de Feminist Postcolonial Theory: A Reader afirmam:

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Tem sido difícil lidar, de formas construtivas, com a ligação entre a exploração do passado e a afluência do presente e, naturalmente, os feitos dos colonos do passado e da própria pessoa… A culpa dos brancos é uma das respostas menos produtivas a esta história. (2003, p.7)

Questiono-me: posso admitir sentir esta culpa e usá-la “construtivamente” (ou, pelo

menos, criativamente)?

Still Landing, videoinstalação, por James Geurts, 2006

Inspirando-me em relações que desenvolvi ao viajar pelo Northern Territory, consegui

permissão dos proprietários para filmar um vídeo na sua região (Purtuiu, a noroeste de

Yuendumu, a aproximadamente 400 km a noroeste de Alice Springs). Estas mulheres idosas

não só me acolheram, como deram um contributo inestimável ao projeto, ao permitirem que

as suas canções fossem gravadas e usadas na trilha sonora. Acabando por assumir a forma de

uma instalação em três telas, Still Landing (2007-08) explora a relação experiencial momento

a momento do meu corpo com o ambiente desértico por entre referências por via de imagem e

som às histórias colonial e aborígene. Numa colagem coreografada de imagens não lineares,

assumo diversas aparências: uma criatura desprezível do ramo imobiliário, em roupas

modernas, dividindo e domesticando a terra, uma marionete germânica tradicional

literalmente “atirada” para a terra vermelha do deserto, uma “ode a Miranda’ (a menina

desaparecida de Picnic at Hanging Rock) e eu mesma, mal vestida, como Napangardi, o nome

que me deram os meus amigos Warlpiri, tentando ouvir e responder a esta região e aos povos

indígenas nela, no momento presente. Estas personagens, que representam aspectos da minha

própria identidade, além de refletirem a história da região, são encaradas como se cada uma

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respondesse diferentemente às vozes das mulheres Warlpiri que emanam da terra. Contudo, as

distinções entre as personagens esbatem-se no final, congregando-se numa miscelânea de

disfarces imundos sobre o meu corpo fatigado, sugerindo o entrelaçamento de histórias e as

contínuas implicações que englobam a minha identidade/ o meu corpo enquanto mulher

australiana branca nos dias de hoje. Passado, presente e futuro entretecem-se mutuamente,

estão intrinsecamente ligados, ainda que sejam irreconciliáveis. A dança reside na sua própria

impossibilidade; é uma tentativa de atingir o inatingível: ficar-se completamente incorporado

no momento presente, localizado, estabelecido, integrando-se, de algum modo, em tudo o que

ali aconteceu antes.

Still Landing cena do vídeo, por James Geurts, 2006

A incursão do tempo no tema do lugar, no meu trabalho, visa, sem presumir ter

conseguido, uma incorporação da minha identidade como mulher australiana branca no

momento atual: “um presente em devir”. Concordo com Jill Orr quando diz: “Se eu ao menos

eu puder possuir as imperfeições do passado que herdei e as imperfeições das minhas próprias

ações passadas e representá-las performaticamente, de alguma forma, isso terá de contribuir

para um mais profundo entendimento do onde nos encontramos hoje”.

Bibliografia Eidelson, Meyer, 1997, The Melbourne Dreaming: a guide to the Aboriginal places of Melbourne,

Aboriginal Studies Press, Canberra.

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Lewis, Reina e Mills, Sara (ed.), 2003, Feminist Postcolonial Theory: A Reader, Routledge, Nova

Iorque.

Muecke, Stephen, 2004, Ancient and Modern: time, culture and Indigenous philosophy, University

of New South Wales Press, Sydney.

Orr, Jill, 2009, <http://www.jiillorr.com.au/>.

Orr, Jill. Entrevista de Gretel Taylor, Melbourne, 29/6/2009.

Otto, Kristin, 2005, Yarra, Text Pub., Melbourne.

The Australian Concise Oxford Dictionary, 2004, Oxford University Press, South Melbourne, 4.ª Ed.

Gretel Taylor Artista performática independente, acadêmica e investigadora. Formada em Estudos Performáticos pela

Faculdade de Artes e Comunicação da Universidade de Victoria (Austrália).

[tradução do inglês por Susana Canhoto]

Link para o texto original:

<http://artsonline.monash.edu.au/performance/files/2012/09/proceedings-taylor-the-

omnipresence-of-time-in-place-ttp-conference.pdf>

© 2013 eRevista Performatus e o autor