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A IGREJA CATÓLICA E O GOLPE CIVIL-MILITAR DE 1964 DE UMA
PERSPECTIVA DA HISTÓRIA REGIONAL
Angelo Barreiro Gonçalves1
Frank Antonio Mezzomo2
Resumo: O objetivo do artigo é discutir a aproximação da Igreja Católica com o golpe civil-militar de 1964, em uma perspectiva da história regional. Analisamos as ações e repercussões político-sociais da Igreja Católica, diante da criação da Escolinha do Povo e da Marcha da Família com Deus pela Liberdade realizada em 1964, em Campo Mourão, Paraná. Com base em entrevistas, imagens e notas publicadas por jornais de circulação regional, procuramos problematizar a presença religiosa na construção da legitimidade do golpe civil-militar. A articulação eclesiástica no fechamento da Escolinha do Povo, de orientação pedagógica freiriana, e o apoio da Igreja na organização das “marchas pela liberdade” evidenciam, em uma perspectiva regional, as proximidades do púlpito com as autoridades palacianas. Palavras-chave: Regime civil-militar; Igreja Católica; Escolinha do Povo; Marcha da Família com Deus pela Liberdade.
Introdução
O presente artigo3 tem por objetivo discutir ações e repercussões político-
sociais da Igreja Católica em Campo Mourão4, Paraná, no contexto do golpe civil-
militar de 1964, através da análise da criação da Escolinha do Povo e da Marcha da
Família com Deus pela Liberdade. A pertinência e atualidade dessa temática se dão,
entre outras razões, porque em 2014 completou-se cinquenta anos de instauração do
golpe civil-militar no Brasil, derrubando o presidente João Goulart, democraticamente
eleito, e instalando uma ditadura que se prolongou por vinte e um anos.
1 Especialista em História do Mundo Contemporâneo e Neuropedagogia. Atua como professor de História no Colégio Estadual Tiradentes (EFM), município de Umuarama, Paraná. E-mail: [email protected]. 2 Professor do Colegiado de História, do Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória) e do Programa Interdisciplinar Sociedade e Desenvolvimento (PPGSeD) da Universidade Estadual do Paraná, Câmpus de Campo Mourão (Unespar). E-mail: [email protected]. 3 Artigo desenvolvido junto ao Programa de Desenvolvimento Educacional do Paraná, da Secretaria de Educação do Estado do Paraná (PDE/SEED), em convênio com a Universidade Estadual do Paraná (Unespar), Câmpus de Campo Mourão. Como parte das atividades realizadas mencionamos, ainda, a produção de um Caderno Pedagógico, discutido com professores de História da rede pública estadual do Paraná, núcleo de Umuarama, ao longo do primeiro semestre de 2017. Nessa experiência pedagógica procuramos reflexionar estratégias de ensino de história através de recursos didáticos como jogos, músicas, vídeos, análise e interpretação de imagens. Por fim, vale ressaltar que os trabalhos oportunizaram discutir acerca de importantes aspectos ligados ao ensino de história, principalmente da história regional. 4 Campo Mourão é um município localizado na Mesorregião Centro Ocidental Paranaense, tendo sido emancipado politicamente em 1947. Sua população em 1960 era constituída por 140.362 habitantes, predominantemente rural, e em 2010 contava com 87.194, majoritariamente urbana (IBGE, 1960; 2010).
Não obstante a vigência de mais de duas décadas com os militares no poder
(1964-1985), com seu corolário de desrespeito aos direitos humanos,
experimentamos no Brasil, em 2013 e 2015, e na esteira de um período de crise e
conturbação política e social, o surgimento de inúmeras manifestações públicas que
hastearam uma pauta conservadora (PINTO, 2017), levando, em diversos momentos,
a setores da sociedade a reclamar pela volta dos militares ao poder, afinal, seriam
eles os portadores da solução para a “crise moral” que estaria se abatendo sobre o
país. Ainda, e conforme entendimento de Cerri e Molar (2010), no Brasil, diferente de
outros países latino-americanos, há entre os jovens estudantes menor aversão e
resistência à experiência histórica do regime militar, consequência, em grande
medida, do processo tardio de escolarização, assim como da conscientização
histórica acerca da democracia e dos direitos humanos.
Diante da atualidade do tema, várias pesquisas a respeito do regime militar no
Brasil vêm sendo desenvolvidas e tornadas públicas, trazendo para a discussão novos
olhares acerca da temática, inclusive problematizando a participação da Igreja
Católica na instauração do golpe e legitimação do regime civil-militar. Desenvolver
essa análise a partir de duas experiências, enfocadas em uma perspectiva regional
(MATTOZZI, 1998; PRIORI et. al. 2012), é o propósito apresentado nesse texto.
A Escolinha do Povo: uma iniciativa da Ação Popular em Campo Mourão
Em 1962, dissidentes da Juventude Universitária Católica (JUC), criaram a
Ação Popular (AP). No início de sua trajetória, a AP definiu-se como adepta do
socialismo humanista, inspirando-se em ideias de Jacques Maritain (ARANTES E
LIMA, 1984). Embora conflitante com as diretrizes da hierarquia católica, a AP ainda
acabaria recebendo apoio de alguns sacerdotes progressistas, inclusive Dom Helder
Câmara (SOARES, 2014).
Composta em sua maioria por jovens, a AP exerceu grande influência na área
estudantil, controlando várias diretorias da União Nacional dos Estudantes (UNE).
Conseguiu também penetração nos meios operários e rurais, principalmente no
Nordeste, através do Movimento de Educação de Base (MEB), vinculado à CNBB
(ARANTES E LIMA, 1984). Botas (1983, p. 16) destaca que “o MEB tinha um
programa de ação onde estavam intimamente ligadas a alfabetização e a formação
política”.
As iniciativas de alfabetização do MEB espalhavam-se pelo Brasil e em Campo
Mourão, a partir de 1963, dois padres ligados à Ação Popular, José Luiz Silva e João
Batista Filho, promoveram uma ação bastante parecida, por meio da criação da
Escolinha do Povo. Para coordenar as atividades, veio de Curitiba, a convite de José
Luiz, uma estudante universitária, Raquel Felau (MELLO, 2009).
Além da Escolinha do Povo, responsabilidade de José Luiz e Raquel, “a célula
da AP desenvolveu, entre outras ações, aquelas voltadas à preparação de líderes e
voluntários [...] a criação da Cruzada de Ação Social (CAS), liderada por João Batista
Filho” (MELLO, 2009, p. 87). A CAS5 era formada por pessoas mais moderadas, se
comparadas à equipe da Escolinha. No entanto, aos sábados, o padre João Batista
coordenava uma formação que debatia desde a encíclica Mater et Magistra até obras
de Marx e Engels.
Em relação a AP, João Batista Filho esclareceu que: “José Luiz era da AP e eu
também. Nós três, José Luiz, eu e Raquel desenvolvemos o trabalho de AP em Campo
Mourão”6 (Entrevista de João Batista Filho, apud MELLO, 2009, p. 103). A principal
missão da AP em Campo Mourão seria alfabetizar adultos pobres e para tanto,
escolheram um método pedagógico: o de Paulo Freire.
Os padres mobilizaram a comunidade, que construiu e colocou em
funcionamento a Escolinha do Povo. Naquela pequena escola de madeira, localizada
no bairro mais pobre da cidade, a Vila Operária7, instrumentalizou-se essa pedagogia,
pelas mãos de um grupo de jovens voluntárias, algumas ainda estudantes
secundaristas8 (MELLO, 2009).
As aulas formais ocorriam no período noturno, mas as atividades desenvolvidas
não se limitavam à alfabetização. Sobre o trabalho da Escolinha, Anice Simão, uma
das voluntárias da CAS, relata:
5 A Cruzada de Ação Social (CAS) desenvolvia trabalhos na área da saúde e assistência social. 6 “Eu era de AP. As meninas, as jovens não tinham nada, não eram vinculadas à AP. Quem era vinculado à AP? Era eu e um padre” (CNV, testemunho de Raquel Felau Guisoni, 2014). Mello (2009, p. 105) ratifica que “a ideologia da organização não havia sido aberta a todos os integrantes do grupo. Ficou restrita aos três cabeças: Raquel Felau, José Luiz Silva e João Batista Filho”. 7 Segundo Felau (1964) o cenário da Vila era o seguinte: “a maior parte das casas são barracos em péssimas condições, feitos de lâminas. Higiene é péssima. É visível a miséria, ela é gritante! Quase não há água, a luz somente querosene ou a vela. A subnutrição é crônica e a infestação de parasitas é um dos principais problemas. Grande número de crianças são atacadas por vermes [...]” Em relação à situação educacional, a professora relata que viviam na Vila Operária 209 adultos e 268 crianças, sendo que 142 adultos eram analfabetos e 143 crianças estavam sem escola. 8 No início, em 1963, o trabalho era voluntário, tendo alguns meses depois, recebido ajuda financeira da Fundação de Assistência ao Trabalhador Rural (FATR).
Era um trabalho sério, difícil mesmo. As meninas trabalhavam muito, iam nas vilas, faziam limpeza nas casas, ensinavam as mães como tratar das crianças. Era um trabalho árduo o das adolescentes. A Raquel chegava nos casebres de chão batido, principalmente os mais pobres, ensinava até a lavar a louça (Entrevista de Anice Simão, apud MELLO, 2009, p. 89).
Para auxiliar nessas ações, os padres também criaram um grupo de escoteiros
(Imagem 1), que trabalhavam com as famílias em seus domicílios, ensinando os
moradores a abrir fossas, fazer hortas, além de cuidados com higiene.
Imagem 1: Grupo de escoteiros e Padre José Luiz, nas proximidades da
Escolinha do Povo (1963).
Fonte: Museu Municipal Deolindo Mendes Pereira de Campo Mourão, Paraná.
As iniciativas de alfabetização de adultos no Brasil eram baseadas nos mesmos
métodos utilizados para crianças. No final da década de 1950, Paulo Freire começou
a colocar em prática um método de alfabetização fundamentado na “consciência da
realidade da cotidianidade vivida pelos alfabetizandos para jamais reduzir-se num
simples conhecer de letras, palavras e frases” (FREIRE, 1996, p. 35).
De acordo com Ana Maria Freire (1996, p. 35-36) o educador propôs “uma
educação de adultos que estimulasse a colaboração, a decisão, a participação e a
responsabilidade social e política”. Em sua concepção, a educação seria um “ato
político”, já que os analfabetos “viviam proibidos de ser, ter, saber e poder”. As aulas
deveriam girar em torno das seguintes perguntas: Quê? Por quê? Como? Para quê?
Por quem? Para quem? Contra quê? Contra quem? A favor de quem? A favor de quê?
Deveriam ser escolhidas em torno de dezessete “palavras geradoras”, de forte
fonêmica e que fizessem parte do cotidiano dos alunos. A autora toma por exemplo a
palavra TIJOLO, que foi utilizada em Brasília (nos anos 1960 era uma cidade em
construção). A palavra geradora “tijolo” era inserida em uma situação cotidiana:
trabalho na construção. A partir daí se iniciava o trabalho de alfabetização: ti – jo – lo
/ ta – te – ti – to – tu (FREIRE, 1996). A metodologia freiriana ganhou destaque
nacional em 1963, através de uma experiência em Angicos, Rio Grande do Norte,
onde 300 trabalhadores rurais foram alfabetizados em 45 dias. A partir daí a
fundamentação teórica do sistema Paulo Freire passou a ser divulgada intensamente
por todo o país (FÁVERO, 2004).
O método de alfabetização de adultos de Paulo Freire exerceu grande
influência nas ações educativas promovidas pelo MEB e também na célula da AP em
Campo Mourão:
A Escolinha do Povo foi nossa criação: José Luiz e eu. Eu já tinha trabalhado no Nordeste, usando a alfabetização pelo método de Paulo Freire. Essa metodologia, a educação Paulo Freire, tem a dinâmica de se fazer a alfabetização no campo da casa. Aquela área era muito pobre, nós tentamos (Entrevista de João Batista Filho, apud MELLO, 2009, p. 103).
A professora Estel, uma das alfabetizadoras, relembra “tínhamos todo o
material original desse mestre e tentávamos seguir seus ensinamentos pedagógicos”
(Carta de Estel de Mello Figueiredo apud MELLO, 2009, p. 102).
Imagem 2: Cartilha da Escolinha do Povo – 1° Livro de Leitura.
Fonte: Museu Municipal Deolindo Mendes Pereira de Campo Mourão, Paraná.
O material didático para as aulas era elaborado pelas próprias alfabetizadoras,
pois não havia dinheiro para mandar produzi-lo ou adquirir em outro local. Uma das
cartilhas de alfabetização, denominada “Escolinha do Povo - 1º Livro de Leitura”, é
datilografada e as ilustrações elaboradas manualmente, em estêncil à tinta. Na
cartilha, conforme Imagem 2, estão presentes as “palavras geradoras” do método de
Paulo Freire. De conteúdo significativo, remetem ao cotidiano vivido pelos
alfabetizandos da Vila Operária. Nela encontramos as palavras geradoras “fome”,
“chuva”, “barraco”, “igreja”, “enxada”, “lavadeira”, “trabalho”, etc.
A nossa cartilha tinha a parte temática, de conscientização, de refletir sobre o texto, o debate sobre os assuntos que afetavam suas vidas (dos alunos) e, sem reflexão não adianta, não é? José Luiz valorizava bastante essa parte. Valorizava muito (Entrevista de Imaculada Conceição Cavalcante Kffuri, apud MELLO, 2009, p. 101-102).
Fica claro que o padre José Luiz comungava dos preceitos de Paulo Freire,
para quem não havia sentido em simplesmente ensinar as letras. Era preciso, por
meio de discussões, despertar a consciência, entender a realidade e através do
conhecimento, transformá-la.
Porém, um acontecimento político abortou esta e outras iniciativas parecidas.
Em 1º de abril de 1964, o golpe civil-militar derrubou o presidente Goulart. Estava
inaugurada a fase da “caça às bruxas”. Muitas pessoas ou organizações, pelo simples
fato de terem colaborado de alguma forma com o governo deposto, passaram a
receber o rótulo de “comunistas” e por consequência a sofrer perseguições (FICO,
2004). O MEB, por ser uma ação que visava a “promoção popular” por meio da
alfabetização foi acusado de comunista e sofreu perseguições do novo regime. Em
Campo Mourão, as ações da AP, como a Escolinha do Povo e CAS foram encerradas
e, mesmo seus marcos temporais, silenciados e varridos dos registros históricos do
município.
Analisando as “Notas Históricas sobre a Diocese de Campo Mourão, após 20
anos de instalação”, escritas em 1982, pelo primeiro bispo diocesano, Dom Eliseu,
constatamos o silêncio acerca da existência da Escolinha do Povo e CAS entre as
iniciativas sociais da diocese. Mello (2009, p. 88) referindo-se à Escolinha, afirma que
“após 31 de março, essa instituição foi impedida, pelo novo regime imposto ao país,
de continuar suas atividades nos moldes propostos inicialmente e seu nome foi varrido
dos documentos escolares”. A autora defende ainda que, após o golpe, a Escolinha
foi reaberta, tendo seu nome alterado para Escola Isolada Dr. Osvaldo Cruz, agora
ligada à prefeitura municipal. Em 1974, foi transferida para administração da
Secretaria Estadual de Educação do Paraná. Atualmente, permanece funcionando
com o nome Colégio Estadual Dr. Osvaldo Cruz (CEDOC).
Mello (2009, p. 87) também sustenta que a Escolinha sofreu “interdição
discursiva” e o silêncio pairou sobre o assunto, sendo a escola excluída dos registros
documentais e por um longo período, relegada da história mourãoense. Nos registros
da história do Colégio Estadual Dr. Osvaldo Cruz constava seu nascimento em 02 de
abril de 1964. A pesquisadora refuta essa data, justificando que devido ao golpe
militar, “a escola teve alterada sua metodologia, clientela, seus coordenadores e
algumas das alfabetizadoras afastadas”, porém trata-se da mesma Escolinha do
Povo, fundada em 1963 pelos padres católicos. Conclui a autora que a data 02 de
abril de 1964 não representa o nascimento dessa escola e sim a “data do ato de
silêncio desferido pelo golpe militar de 1964 decretando, nesta cidade, a morte da
primeira instituição com objetivos transformadores” (MELLO, 2003, p. 16).
Em 14 de novembro de 2014, o colégio publicou o “Jornal do CEDOC: 50 anos”.
No jornal o histórico da instituição é apresentado da seguinte forma: “o Colégio
Estadual Dr. Osvaldo Cruz foi oficialmente criado em 02 de abril de 1964,
homenageando o médico e sanitarista Dr. Osvaldo Cruz, o qual fez uma verdadeira
revolução no combate às doenças endêmicas” (Jornal do CEDOC: 50 anos, 2014).
Não há, portanto, nenhuma referência à Escolinha do Povo e a “revolução” do saber
pretendida por aqueles jovens sonhadores de 1963 e 1964.
A fala da alfabetizadora Estel parece corroborar com o argumento do
silenciamento instaurado logo após o golpe:
É difícil voltar a falar sobre assunto que fomos obrigados a calar, e de certa forma, apagar da memória para poder continuar a viver. Foi assim realmente o que aconteceu na época: o silêncio total em troca da vida. [...] O golpe de 64 estabeleceu um corte radical no movimento que foi decepado. O horror foi estabelecido. [...] Meu maior sentimento é não podermos contar com nenhum documento. Tudo foi queimado para que não ficassem pistas (Carta de Estel de Mello Figueiredo, 06 jul. 1999, apud MELLO, 2009, p. 102-103).
Sobre o fechamento da Escolinha do Povo, Raquel Felau rememora:
No momento do golpe militar sofremos muita pressão, isso eu não tenho dúvida. O próprio padre José Luiz deve ter sofrido pressão maior [...] O sucesso do golpe militar nos valeu o epíteto de comunistas, naquele momento, sem o ser. Usou-se muito a pregação anti-comunista, uma das justificativas, inclusive, do golpe militar, a chamada revolução. (Entrevista de Raquel Felau, apud MELLO, 2009, p. 100).
Raquel Felau permaneceu até o fim de 1964 em Campo Mourão. Em 1965
partiu para Porto Rico, onde formou-se em Educação Sanitária. Em 1966 voltou a
morar e trabalhar em Curitiba. A partir do Ato Institucional n. 5 (AI-5), instaurado no
Brasil em 1968, quando a repressão aos movimentos de oposição ao regime
aumentou consideravelmente, a AP (já na ilegalidade) passou por um processo de
radicalização, assumindo de vez o marxismo e a luta clandestina.
Raquel deixou seu emprego e, como membro da AP, integrou-se
clandestinamente a movimentos camponeses na região de Paranavaí, norte do estado
do Paraná. No início da década de 1970, imprimia em São Paulo, o Jornal Libertação,
vinculado a AP e o Livro Negro da Ditadura. Em 1973, ela e parte dos membros da
AP aderiram ao PCdoB. Novamente como clandestina, foi para o Rio Grande do Sul,
lá morando até 1979, ano em que foi assinada a Lei da Anistia.
Raquel Felau retomou a vida como professora, militou em movimentos
feministas e sindicais. Em 2006 foi secretária de relações de gênero e presidente da
Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE).
A professora Raquel, ao citar a pressão sofrida pelo padre José Luiz, expõe
conflitos presentes na diocese desde 1963, a partir de quando a relação entre Dom
Eliseu e os dois padres ligados a AP já mostrava sinais de conflito. Depois de 1º de
abril 1964, com o advento do golpe civil-militar, as cartas foram colocadas à mesa:
O nosso trabalho prosseguiu até quando foi conveniente ao bispo. Naquele momento, exatamente, quando estourou 64 [...] Dom Eliseu não queria comprometimento que viesse abalar sua posição. Foi então que ele chegou e disse: - Olhem, o pessoal está atrás de vocês, e se vocês forem presos ou alguma coisa, eu não quero me envolver
(Entrevista de João Batista Filho, apud MELLO, 2009, p. 104, grifos do original).
Assim terminava a principal ação da AP em Campo Mourão: a Escolinha do
Povo. Fechada, tendo seu material didático queimado, suas alfabetizadoras
assustadas e seus idealizadores sofrendo os reflexos do expurgo promovido pelo
novo regime. O corte definitivo das ações dos padres José Luiz e João Batista em
Campo Mourão viria com a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, ocorrida em
abril de 1964.
A Marcha da Família com Deus pela Liberdade em Campo Mourão: ações e
repercussões político-sociais
Nos primeiros meses de 1964, a campanha nacional anticomunista, lançada no
início da década de 1960, atingiu o seu ápice. Grande parte dos meios de
comunicação foram utilizados para depreciar o governo Goulart e associar as
Reformas de Base à ideia de convulsão social. É nessa conjuntura de anticomunismo
que surge em São Paulo e depois se espalha por todo país, a Marcha da Família com
Deus pela Liberdade. Conforme Presot,
tais passeatas surgiram como uma espécie de pedido às Forças Armadas por uma intervenção salvadora das instituições e, posteriormente ao 31 de março de 1964, passaram por uma ressignificação de seu discurso, transformando-se numa demonstração de legitimação do golpe civil-militar. As Marchas acabaram por constituir algumas das maiores manifestações públicas de nossa história política e tornaram-se emblemáticas não só pelo número de manifestantes como também pela notável estrutura de propaganda a serviço de seus organizadores e capacidade de mobilização popular para a ação política (PRESOT, 2010, p. 74).
Para Saes (1986, p. 501) a intenção das marchas era “criar clima sócio-político
favorável à intervenção militar, bem como de incitar diretamente as forças armadas
ao golpe de Estado”.
Simões (1985, p. 96) afirma que as “marchadeiras” “foram insistentemente
aclamadas por generais, políticos e jornalistas como a vanguarda de todo o
movimento” que segundo eles, teria desencadeado o golpe civil-militar. O general
Mourão Filho argumentava que ele, como todos os homens que participaram da
“revolução, nada mais fez do que executar aquilo que as mulheres pregavam nas ruas
contra o comunismo” (SIMÕES, 1985, p. 107).
No Paraná, algumas marchas ocorreram antes do golpe civil-militar, como em
Bandeirantes e Curitiba, no dia 24 de março de 1964. A marcha da capital paranaense,
que reuniu 30.000 pessoas em um dia chuvoso, foi organizada pela União Cívica
Feminina (UCF), com o apoio da Associação Comercial do Paraná (ACOPA), e
destacou-se por uma particularidade: diferente do que se viu em outras cidades, ela
deixou “em segundo plano os valores tradicionais cristãos” e priorizou a defesa das
“liberdades individuais”, tanto que foi denominada como “Marcha a favor do Ensino
Livre” (CODATO; OLIVEIRA, 2004, p. 271).
As ameaças ao ensino livre viriam de uma “pretensa” estatização dos colégios
particulares que, em sua maioria, pertenciam às congregações religiosas católicas.
Protestavam também contra o projeto do Ministério da Educação e Cultura (MEC) que,
entre outras ações, propunha a adoção de um livro didático único, editado pelo próprio
ministério e que seria de uso obrigatório em todas as escolas. Essa iniciativa foi
criticada sob o argumento de que se buscava impor controle ideológico ao ensino,
além de contrariar os interesses econômicos das indústrias gráficas curitibanas,
ligadas ao mercado de livros didáticos. Para a ACOPA “o monopólio da produção e
da distribuição de livros pelo Estado contraria a liberdade de mercado” (CODATO;
OLIVEIRA, 2004, p. 295).
No dia 31 de março de 1964, os bispos do Paraná, reunidos em Curitiba,
lançaram um manifesto aos católicos paranaenses sobre o momento político nacional.
Intitulado “Manifesto aos paranaenses – perigos da hora presente – reformas, sim.
Subversão, não – a hora é de vigilância e de luta” (BOLETIM ECLESIÁSTICO DA
ARQUIDIOCESE DE CURITIBA, 1964), o documento, que foi assinado por onze
bispos, entre eles o de Campo Mourão, tece duras críticas ao comunismo, descrito
como o maior inimigo a ser combatido, conclama os fiéis a lutarem decididamente em
movimentos em defesa da família e da pátria e apela à intervenção das forças
armadas:
Mais do que nunca é preciso que estejam os Pastores bem unidos aos seus fiéis na salvaguarda e defesa dos sagrados patrimônios de
liberdade, de justiça e de religião [...] Devemos, pois acautelar-nos da impaciência, confusão e agitação no tratamento de nossos problemas, se não quisermos precipitar a vitória dos inimigos na Pátria [...] queremos apelar e dar o nosso apoio, mais uma vez, às Autoridades constituídas, ao Congresso Nacional e às Forças Armadas a fim de que zelem pelos altos interesses de um Brasil que nasceu sob o signo da Cruz de Cristo. De seu devotamento e patriotismo temos o direito de esperar solução para a hora dramática que atravessamos (BOLETIM ECLESIÁSTICO DA ARQUIDIOCESE DE CURITIBA, 1964, p. 16-19).
A grande campanha anticomunista empregada nacionalmente e o apoio de
diversos bispos paranaenses ao golpe civil-militar levaram parte das classes sociais
às ruas. É inegável que os líderes religiosos – sobretudo por conta da capilaridade
nacional e concordata moral existente entre Igreja Católica e Estado, principalmente
nos primeiros anos de regime militar – tinham grande poder de influência sobre a
população, em sua grande maioria católica.
De acordo com Presot (2010, p. 83) a maioria das manifestações em aversão
ao suposto comunismo ocorreu após o golpe, tornando-se um movimento de apoio à
“revolução”, e por isso foram chamadas de “marchas da vitória”. As pessoas foram às
ruas “comemorar a vitória, dar ‘ação de graças’ pelo afastamento do comunismo das
terras brasileiras”.
No norte do estado, a Folha do Norte do Paraná, jornal mantido pela diocese
de Maringá e apoiado entre outras, pela diocese de Campo Mourão, tinha grande
circulação. Em diversas edições havia matérias alertando contra o “perigo vermelho”:
O maior perigo do momento é, sem dúvida, o avanço comunista. Seria criminosa ingenuidade fechar os olhos ante os indícios alarmantes de penetração comunista em todos os setores da vida nacional. Pontos chave da nação estão em mãos de elementos confessadamente comunistas ou a eles úteis em extremo (FOLHA DO NORTE DO PARANÁ, 02 abr. 1964, p. 5).
Brito (2015, p. 144) destaca que, entre o final de 1963 e os primeiros meses de
1964 “a temática foi massivamente abordada [...] Acreditamos que o medo gerado em
torno dessa suposta ‘ameaça’ foi a chave para desencadear o poder de mobilização
que o anticomunismo assumiu nessa conjuntura”.
Analisando o discurso anticomunista da Folha do Norte do Paraná, entre os
anos de 1962 e 1965, Brito (2015) verificou que entre 5 de abril e 12 de junho de 1964,
o jornal dedicou vasta cobertura às marchas que ocorreram em várias cidades do
norte paranaense: Terra Boa e Maringá, em 03 de abril; Londrina, Apucarana e Nova
Esperança, em 04 de abril; Mandaguaçu, em 05 de abril; Cianorte, 11 de abril e Campo
Mourão, no dia 21de abril, tiveram seus eventos divulgados pelo periódico. Considera
Brito:
No geral, as matérias abordavam o itinerário da passeata, a programação, que incluía muitas vezes a celebração de uma missa e também apresentações musicais, a presença de autoridades políticas e eclesiásticas da região e a tônica dos discursos proferidos na ocasião. Em relação à participação popular, o periódico destacava sempre a presença de um número ‘incalculável’ de pessoas, assim como de caravanas vindas de diversas cidades da região (BRITTO, 2015, p. 108).
A Folha do Norte do Paraná noticiou, também, incidentes violentos nas
marchas de Mandaguaçu, em que “comunistas e simpatizantes” teriam sido agredidos
e Nova Esperança onde, segundo o jornal,
O povo ateou fogo a uma banca de jornal onde se vendia a ‘Última Hora’, em seguida foi invadido o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, onde populares entraram destruindo tudo quanto foi papelada encontrada; tudo foi atirado pelas janelas em sinal de protesto (FOLHA DO NORTE DO PARANÁ, 07 abr. 1964, p. 4).
Manifestações semelhantes ocorreram em outras cidades do estado, como em
Toledo, na região Oeste, onde o bispo diocesano convocou toda diocese, inclusive os
colégios confessionais, a participar da Marcha, que reuniu cerca de mil pessoas no
dia 03 de maio de 1964 (MEZZOMO, 2002).
No dia 21 de abril de 1964, feriado de Tiradentes, a Marcha aconteceu na Praça
Getúlio Vargas, em frente à Catedral de Campo Mourão, com grande número de
participantes (SANTOS JÚNIOR, 2006). Essa informação é corroborada por Mello
(2009) ao mencionar que os católicos, liderados pelo bispo Dom Eliseu Simões
Mendes [...] compareceram em grande número à Marcha da Família com Deus pela
Liberdade.
O jornal Folha do Norte do Paraná cobriu a marcha com a seguinte manchete:
“Campo Mourão demonstrou seu civismo e patriotismo realizando a Marcha da
Família com Deus pela Liberdade”. Segundo a matéria, a marcha foi:
mais uma demonstração da euforia do povo brasileiro pela volta da tranquilidade espiritual e moral ao seu lar em virtude do desmantelamento da grande conspiração comunista efetivada pelos traidores da Pátria com o intuito de nos atrelar ao carro de Moscou (FOLHA DO NORTE DO PARANÁ, 23 abr. 1964).
O jornal O Estado do Paraná noticiou que compareceram à Marcha “10 mil
pessoas, que percorreram com carros alegóricos a avenida Irmãos Pereira, rua Santa
Catarina e avenida Capitão Índio Bandeira, terminando na praça Getúlio Vargas” (O
ESTADO DO PARANÁ, 21 maio 1964).
Imagem 3: Marcha da Família com Deus pela Liberdade em Campo Mourão, Paraná.
Fonte: Jornal O Estado do Paraná, 21 maio 1964.
A manifestação do dia 21, representou o desfecho de uma programação
iniciada na semana anterior. A convocação para a Marcha (Imagem 4) indica que de
17 a 20 de abril foram realizadas palestras preparatórias na Rádio Colmeia. Entre os
palestrantes estavam o prefeito Milton Luiz Pereira e o bispo diocesano, Dom Eliseu
Simões Mendes. No dia 21, ocorreram várias atividades, com destaque para a
“concentração cívica” na praça e passeata pelas ruas. Na praça discursaram, Dom
Eliseu, um pastor evangélico, políticos e uma representante da mulher mourãoense
que, segundo Santos Júnior (2006) foi Walkyria Gaertner Boz.
Imagem 4: Convocação para a Marcha da Família com Deus pela Liberdade em Campo
Mourão (abr. 1964).
Fonte: Museu Municipal Deolindo Mendes Pereira de Campo Mourão, Paraná.
Analisando a marcha de Campo Mourão, é possível perceber o que Motta
(2002) chamou de ecumenismo religioso em torno do evento. Segundo ele, no início
dos anos 1960, diferente da postura da Igreja Católica em épocas anteriores, vigorou
um “ecumenismo anticomunista”, que se caracterizou pelo incentivo à união de todas
as crenças contra o comunismo. O objetivo era transparecer “a imagem de que o
repúdio ao comunismo era um sentimento universal e não atributo de um único grupo”
(MOTTA, 2002, p. 246). Uma das palestras na rádio foi proferida por um vereador,
mas na convocação da marcha, consta que ele falaria em nome do pastor
presbiteriano Joffre Botão. Outro pastor, José Joaquim Ferreira, da Assembleia de
Deus, também discursou na concentração principal, na praça.
Para Presot (2010, p. 86) embora as muitas manifestações registradas país
afora tenham sofrido influência da marcha paulistana, revestiram-se de elementos de
caráter local, incorporando peculiaridades regionais e preenchendo a manifestação
de sentido para a população regional. Assim, a “pluralidade de significados” dessas
marchas pode ser entendida pela análise dos elementos presentes nas culturas
políticas das regiões onde ocorreram.
Em Campo Mourão, a escolha da data, 21 de abril, dia de Tiradentes, que
segundo Carvalho (1990) teria tido (pelos republicanos) através de uma alusão
imagética, seu suplício associado à figura de Jesus Cristo e seu martírio, unia dois
acontecimentos históricos bastante diferentes, mas colocados na mesma bandeja. O
mártir da Inconfidência Mineira haveria morrido pela liberdade da pátria, já os militares
teriam livrado o país do comunismo anticristão, garantindo “liberdade e democracia”.
Chama a atenção outra particularidade: o protagonismo masculino em sua
organização e condução. Nas primeiras marchas, como São Paulo, Rio de Janeiro e
mesmo Curitiba, nota-se um protagonismo feminino à frente das manifestações. Em
Campo Mourão, embora na foto da concentração seja visível grande presença
feminina, há apenas uma menção às mulheres: uma oradora as representou.
Analisando a marcha da capital paulista, Sestini (2008) argumenta:
Fica claro pelas imagens da ‘Marcha’ que não eram apenas mulheres que estavam ali presentes. Contudo, o papel invertia-se. Enquanto as mulheres tradicionalmente possuíam um papel coadjuvante, de ajuda nas atividades as quais possuíam nos homens o papel de liderança, agora eram elas que estavam à frente, como cabeças (SESTINI, 2008, p. 87).
Contudo, vale ressaltar que esses movimentos não visavam romper com o
tradicional lugar reservado à mulher, sendo fundamental “a permissão do marido para
que essas mulheres agissem politicamente” (CORDEIRO, 2009, p. 107). Ou seja,
apenas temporariamente, elas deixavam seus lares (espaço privado) e se lançavam
às ruas (espaço público) em defesa da mesma posição que já exerciam na sociedade,
a de “mãe, esposa, enfim, a dona do lar numa sociedade pretensamente saudável” e
que em sua visão estaria em risco por conta da subversão comunista, que pretendia
subverter a ordem natural da família, através da luta pela emancipação da mulher
(SILVA, 2014, p. 113). Aliás, tal representação acerca do papel privado que a mulher
deveria desempenhar, é corroborado nas conclusões de pesquisa que topicaliza como
os papeis femininos eram representados no jornal Folha do Norte do Paraná –
periódico eclesiástico que tinha apoio da Igreja de Campo Mourão –, isto é, como
“mãe, esposa e dona do lar” (PÁTARO; MEZZOMO; RIBEIRO, 2014).
O rompimento do bispo com os padres da AP, ao que parece, foi agudizado
pela negativa de João Batista em celebrar a missa da Marcha da Família com Deus
pela Liberdade, que segundo ele, foi muito parecida com uma procissão, com missa
e reza do terço pela família:
Quando eles chegaram na Igreja Dom Eliseu não estava [...] A situação nacional difícil. O José Luiz tinha saído. Eles queriam que eu celebrasse a missa [...] Neguei-me, argumentando não ser aquilo católico. Era como aproveitar o momento para fazer política. Dom Eliseu achou minha atitude desagradável, fez um espalhafato. Disse que se alguém viesse atrás de nós não assumiria nossa defesa. Aconselhou-me a voltar para o meu estado [...] Como me posicionei contra, negando-me a rezar a missa naquelas condições, a partir dali, nós caímos na contramão da história. Mandou José Luiz para a Europa. Arrumou uma viagem com bolsa, pagou-lhe a passagem. Depois me mandou embora. Chegou e disse pessoalmente: - Olha aqui, vocês têm umas ideias que não batem com as minhas.
(Entrevista de João Batista Filho, apud MELLO, 2009, p. 104-105, grifos do original).
José Luiz foi enviado para Genebra-Suíça, anos depois retornou ao Brasil.
Deixou o sacerdócio e tornou-se escritor e jornalista. Sobre ele, João Batista registrou:
“era todo comprometido com a mudança da sociedade, de uma mentalidade aberta
[...] a prática do Zé Luís era com teatro, no meio do povo, lado a lado, chão a chão”
(Entrevista de João Batista Filho, apud MELLO, 2009, p. 105).
João Batista, sentindo-se abandonado pelo bispo e ameaçado, foi para a
Paraíba, onde se tornou militante das Ligas Camponesas. Ali, conforme Mello,
quase é capturado pelo braço da ditadura, escapa por sorte num episódio em que outro padre, seu companheiro é preso e morto. Batista, alertado por pessoas próximas, escapa e cai na clandestinidade. Em São Paulo, vivendo em favelas, sobrevive com grandes dificuldades, sempre com muitos olhos sobre si (MELLO, 2009, p. 106).
Batista deixou o sacerdócio, formou-se em sociologia, com pós-doutoramento
na Université Paris, França, exercendo por muitos anos a função de professor da
Universidade Estadual de Londrina (UEL).
A posição do bispo de Campo Mourão ao liderar os católicos na Marcha da
Família com Deus pela Liberdade e a postura adotada em relação aos dois padres da
Ação Popular, parece garantir na diocese certa semelhança com o que ocorreu na
esfera nacional: alinhamento da Igreja Católica com o regime civil-militar, ao menos
nos primeiros anos de vigência da ditadura brasileira. Castro (1984, p. 80) ratifica essa
conclusão ao afirmar que a maioria dos bispos e padres apoiou o golpe de 1964, “seria
faltar com a verdade histórica dizer que a maioria do clero e dos católicos não aderiu
ao golpe a 1º de abril de 1964”. O apoio ao movimento golpista também é confirmado
por Betiato (1985, p. 71) segundo o qual, “a Igreja, em meio à confusão, preferiu apoiar
o golpe”, como aliás já apontamos acima, mencionando a posição da Igreja do Paraná.
Gomes (2014, p. 21) apresenta razoável ponderação acerca do entendimento
das posturas da Igreja Católica diante do golpe e do apoio à ditadura militar,
lembrando que não se pode ignorar “a complexidade daquele processo histórico e a
variedade de matizes das diversas posições políticas em jogo”. Vale ressaltar que,
embora minoritárias, alas da Igreja apoiavam as Reformas de Base de Jango, setores
regulares (bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas) e principalmente setores
seculares, mais incisivamente os movimentos de juventude. Contudo, quando ocorre
o golpe em 1964, ainda eram restritas as áreas da Igreja que haviam alcançado essa
sensibilização social e a grande maioria da hierarquia acabou apoiando o golpe civil-
militar. Nos anos seguintes ao golpe civil-militar, mais especificamente no período
1964-1973, as demandas em torno do comunismo, da resistência ao regime e do
combate a ela pelos militares ainda não estavam discernidas pela hierarquia, de modo
que os “discursos e atitudes da hierarquia penderam entre o silêncio, hesitação,
contradição e confusão” (MEZZOMO, 2012, p. 96).
Considerações finais
Retomando o estudo de Cerri e Molar (2010, p. 170), já citado anteriormente,
que debate o pensamento da juventude brasileira em relação à Ditadura Militar,
concluindo que pode estar havendo “amnésia, em vez da resolução das pendências
em termos de direitos humanos, deixadas pela ditadura”. Observamos que essa
amnésia parece contaminar não somente os jovens, mas também uma parcela da
população brasileira. Sempre que os problemas das instituições democráticas (e não
são poucos) vem à tona, o saudosismo ganha fôlego e o discurso acerca do retorno
das forças armadas ao poder ganha mais adeptos entre grupos conservadores e
também daqueles que conhecem parcialmente as experiências históricas do regime
no Brasil. Peter Burke esclarece que "a função do historiador é lembrar a sociedade
daquilo que ela quer esquecer". Parte de nossa sociedade parece querer esquecer
todos os desmandos e ataques aos direitos humanos que foram cometidos por parte
dos governos ditatoriais no Brasil.
Não deixar imperar o silêncio, em uma perspectiva regional, significa colocar
em pauta alguns acontecimentos da história de Campo Mourão. Le Goff (2003, p. 108)
nos desafia a “fazer o inventário dos arquivos do silêncio, e fazer a história a partir dos
documentos e das ausências de documentos". Neste caso específico, os arquivos do
silêncio têm muito a dizer. Trazer essas vozes à tona, publicizá-las e discuti-las em
sala de aula pode compor uma série de estratégias para ampliar o horizonte de
compreensões.
Houve prejuízo social em fundar a Escolinha do Povo, cuja principal missão
seria alfabetizar adultos pobres da Vila Operária de Campo Mourão, através do
método pedagógico de Paulo Freire e suas palavras geradoras? Houve problema em
ensinar os moradores a abrir fossas, fazer hortas e cuidar da higiene? Certamente a
imensa maioria das pessoas diria que não. Promover reflexões, debater sobre
circunstâncias que afetavam a vida dos alfabetizandos, despertar-lhes a consciência
da realidade em que viviam, estimular sua responsabilidade social e política e
principalmente questionar o status quo da época, parece ter sido considerado, em
1964, como subversão em Campo Mourão. Ações como essas não foram toleradas
pelos novos “donos do poder” que impuseram sobre elas um fim abrupto.
Também em 1964, as Marchas da Família com Deus pela Liberdade surgiram
como consequência do clima exacerbado de anticomunismo que vigorava no país. De
início, clamavam nas ruas que as forças armadas intervissem politicamente no país,
gerando assim clima sócio-político oportuno para o golpe civil-militar, posteriormente
a ele, converteram-se em movimentos de legitimação do regime que se instalava.
Ainda sobre elas, cabe aqui um questionamento: se a Marcha com suas
“injeções de horror ao ‘comunismo’” (CASTRO, 1984, p. 79) tivesse ocorrido somente
na Sé em São Paulo e não em praças de várias outras capitais e de cidades do interior
do Brasil, os militares teriam contado com tanto apoio civil em sua “revolução” ou os
comunistas seriam tão temidos e por vezes amaldiçoados como foram?
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