11. dossiÊ carlito azevedo - 13 variações sobre césar aira

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174 revista landa Vol. 2 N° 2 (2014) 1 Carlito Azevedo Variação n o 1 Quem começou, entre nós, com esta história de César Aira, acho que foi o poeta argentino Anibal Cristobo. Assim que veio morar no Rio de Janeiro. Lembro que nos recebia em seu apartamento em Botafogo (esse “nós” aí se refere a certo grupinho de amantes da literatura, como de resto os há em qualquer cidade do mundo ao que parece) e, lá pelas tantas, soltava qualquer coisa assim: “Como escreveu o César Aira, a literatura é o contrário da psicanálise, pois enquanto esta parte de um mal-entendido para chegar a uma verdade, aquela parte de uma verdade para chegar a um mal-entendido”. 1 Publicado originalmente em caixa da Editora Nova Fronteira, contendo um livreto com este texto e dois romances de César Aira, As noites de Flores e Um acontecimento na vida do pintor viajante, por ocasião da Festa Literária de Parati (FLIP) de 2007. 13 variações sobre César Aira

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Ensaio de Carlito Azevedo sobre César Aira.

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    revista landa Vol. 2 N 2 (2014)

    1

    Carlito Azevedo

    Variao no 1

    Quem comeou, entre ns, com esta histria de Csar Aira, acho que foi o poeta argentino Anibal Cristobo. Assim que veio morar no Rio de Janeiro. Lembro que nos recebia em seu apartamento em Botafogo (esse ns a se refere a certo grupinho de amantes da literatura, como de resto os h em qualquer cidade do mundo ao que parece) e, l pelas tantas, soltava qualquer coisa assim: Como escreveu o Csar Aira, a literatura o contrrio da psicanlise, pois enquanto esta parte de um mal-entendido para chegar a uma verdade, aquela parte de uma verdade para chegar a um mal-entendido.

    1 Publicado originalmente em caixa da Editora Nova Fronteira, contendo um livreto com este texto e dois romances de Csar Aira, As noites de Flores e Um acontecimento na vida do pintor viajante, por ocasio da Festa Literria de Parati (FLIP) de 2007.

    13 variaes sobre Csar Aira

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    A seguir, em geral no dia seguinte, tomava o cuidado de ligar para todos os presentes com suas retificaes: No... no foi Csar Aira

    quem escreveu aquilo, Csar Aira na verdade escreveu uma espcie de autobiografia em que o autobiografado, Csar Aira, morre aos seis

    anos.

    Tudo isso para, num prximo encontro, desmentir mais essa in-formao, substituindo-a por coisas como: Em um dos romances de

    Csar Aira h uma cena inesquecvel em que uma louca... enlouquece. claro que h milhares de exemplos na literatura em que uma pessoa aparentemente s, sob um choque terrvel, enlouquece... Mas essa talvez

    tenha sido a primeira vez em que uma pessoa j louca, sob um choque

    terrvel, enlouquece... como ver Deus.

    Ou ento: Nos textos de Csar Aira comum o vento falar, os

    carrinhos de supermercado falarem, os morcegos falarem...

    Ou ainda: Csar Aira diz que, quando fez seis anos, aprendeu a

    ler e a escrever. E que seis meses depois j era um leitor pedantssimo.

    Quando j estvamos absolutamente seduzidos pela falta de uma

    resposta concreta, de uma perspectiva segura, de trs dimenses bem s-lidas, veio o suplemento Bablia, do jornal espanhol El Pas, chaman-do Csar Aira de o segredo mais bem guardado da literatura argentina.

    Ento era isso o que nosso amigo estava tentando fazer? Em lu-gar de nos revelar Csar Aira, tentava ocultar Csar Aira. E utilizando o

    mtodo Poe/Lacan da carta roubada. Csar Aira estava to exposto que

    estava escondido.

    Esse fato novo veio pr fim inrcia que em geral faz com que

    no nos apressemos a comprar os livros que nos recomendam, e a no

    ler os que compramos, inrcia explicada talvez pelo fato de desejarmos

    que o ato de ler seja um ato de liberdade, e no de obedincia.

    E fomos aos livros de Aira.

    A mesmo que se perderam de vez as respostas concretas, as

    perspectivas seguras, as trs dimenses slidas.

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    Variao no 2

    No romance O mago, de Csar Aira, o personagem principal um mgico de verdade. Ou seja, o que os outros conseguem realizar uti-lizando truques e efeitos, ele realiza de fato. E poderia realizar prodgios ainda maiores que aqueles exibidos em espetculos de magia, no fosse

    seu medo de influenciar de algum modo o curso do mundo, das conse-quncias que suas magias poderiam, involuntariamente, causar. Ele sabe

    muito bem que o simples fato de fazer um chapu aparecer na cabea de

    um homem pode alterar a histria universal. Por isso, conforma-se, tran-cado em seu quarto de hotel, em fazer sua escova de dentes, sua escova

    de barba e seu dentifrcio girarem no ar como um carrossel fabuloso.

    Verossmil? Inverossmil?

    Verdade? Mentira?

    Banal? Extraordinrio?

    O caso que a fico de Csar Aira no se preocupa muito em

    ver esses termos como oposies, mas se faz instrumento privilegiado

    para analisar suas relaes complexas (expresso cara a outro argentino que aprendemos a amar por aqui: Juan Jos Saer).

    Aira adora criar algo bem inverossmil para depois desdobrar a fico at tornar aquilo tremendamente verossmil, e depois mais uma

    volta no parafuso faz a coisa fica inverossmil, e mais uma volta no pa-rafuso, e outra, e outra...

    Em As noites de Flores, o esforo tornar verossmil um mons-tro de um metro de altura, meio morcego e meio papagaio, que despenca numa rua de Buenos Aires dizendo ter vivido nas estrelas. E consegue.

    Ao preo, claro, de novas inverossimilhanas.

    Em um de meus livros preferidos, A costureira e o vento, tudo pode ser explicado se imaginarmos que at as mais inesperadas coinci-dncias ocorrem. Mas isso tema para uma outra variao.

    Variao no 3

    Algum filsofo, antroplogo, psicanalista, j levou a srio, j

    investigou a fundo a questo das coincidncias? Ou esse tema j foi

    lanado de vez na lata de lixo das questes menores?

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    revista landa Vol. 2 N 2 (2014)

    Uma busca na internet sobre coincidncia nos deixa de queixo cado. Quase no h coincidncia que no tenha ocorrido de fato. No

    sei se algum se deu ao trabalho de verificar as coincidncias que so

    relatadas ali. Mario Quintana dizia que a mentira uma verdade que

    esqueceu de acontecer, pois para mim a coincidncia uma mentira que lembrou de acontecer. So coisas extraordinrias. A minha srie pre-ferida a que relata as coincidncias entre Abraham Lincoln e John F. Kennedy.

    Minha pergunta : o que se diria de um romancista em cujos

    relatos houvesse tantas coincidncias assim? Quem no se deparou com

    fatos incrveis, diante dos quais, algum comentou: se algum escre-vesse um romance assim, ningum acreditaria, ou contando ningum acredita. Em Um acontecimento na vida do pintor viajante, quando o pintor Rugendas, e seu acompanhante, o tambm pintor Krause, se deparam com certas maravilhas naturais do Novo Mundo, da regio an-dina, do Aconcgua, no deixam de comentar: Deveramos desenhar

    isso. Mas quem acreditaria?

    Aira resolveu contar as histrias em que ningum acreditaria. E

    no tem o menor pudor em exagerar nas coincidncias. S que, bem vis-tas as coisas, qualquer exagero de coincidncias ser sempre menor do que as coincidncias que h no mundo. Estatisticamente falando. Qual

    a populao do planeta Terra? Quanto dias h em um ano? Quantas pes-soas devem ter nascido no mesmo dia em que voc e que morrerro no

    mesmo dia em que voc e se casaram no mesmo dia em que voc e se separaram no mesmo dia em que voc? Eu diria, milhares. Bem, pelo

    menos no tempo em que as pessoas se casavam.

    Variao no 4

    O escritor Milan Kundera afirma, em A cortina, que Albertine foi o nome feminino por excelncia de sua adolescncia. O feminino que englobava todos os femininos. Por do livro Em busca do tempo perdi-do, claro. E que portanto, ao descobrir que a Albertine de Proust foi na verdade inspirada em um homem, o amor de Proust, sentiu como se tivessem matado sua Albertine.

    Nada a fazer; bem que eu queria conservar Albertine como uma

    mulher das mais inesquecveis, mas depois que me sopraram que seu

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    modelo era um homem, essa informao intil instalou-se na minha

    cabea como um vrus de computador. Um macho se intrometeu entre mim e Albertine; ele confunde sua imagem, sabota sua feminilidade,

    num instante a vejo com belos seios, em seguida tem o peito reto, por

    vezes aparece um bigode na pele macia de seu rosto.

    Isso me lembra aquela conversa da variao no 1. Sobre a litera-tura partir de uma verdade para chegar a um mal-entendido (alis, essa uma das pistas lanadas por Anbal cuja veracidade ainda no conse-gui checar... ser uma boutade de Anbal que, modesto, preferiu atribu-la a outro, como, segundo o argentino Borges, teria feito o tambm ar-gentino Bioy Casares nas pginas iniciais de Ficciones?). Kundera est confundindo a verdade com o mal-entendido? Pior, v negativamente

    esse vrus de computador extraordinrio que mexeu tanto com sua forma de compreender o mundo? Uma Albertine pacificada necessa-riamente melhor que uma Albertine flutuante, to instvel que, mesmo

    fechado o livro, muda constantemente de rosto, de corpo, de gnero?

    Csar Aira , nesse sentido, um craker. Adora instalar esses v-rus de computador em nossos crebros. Vrios de seus personagens so homem e mulher. Ou melhor, so ele e ela. Ao mesmo tempo. Como Csar Aira, personagem do livro Como me tornei freira, que s vezes ele e s vezes ela. Eis a insustentvel leveza dos gneros. No tra-vestimento, embora haja travestis em seus textos. Trata-se de no acre-ditar que certas informaes instaladas em nossas cabeas so inteis.

    Variao no 5

    Em uma entrevista, Csar Aira afirma que h no que escreve, e

    no modo como imagina escrever, um componente infantil que no quer

    perder. Talvez por isso ultimamente tenha preferido escrever fbulas e

    contos de fadas. Estranho, para quem comeou h trinta anos como

    jovem militante de esquerda e com a ideia de escrever grandes novelas

    realistas, diz ele. Mas note-se que a novela em que talvez mais dire-tamente aborde o tema da crise argentina do incio desse novo sculo, As noites de Flores, considerada por ele como uma dessas fbulas ou conto de fadas.

    E se h algo encantador nessas fbulas e contos de fadas a

    possibilidade iminente de uma metamorfose, de uma coisa se trans-

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    formar em outra. Um sapo em um prncipe. Uma princesa em um rato. Uma abbora numa carruagem. Mais do que as metforas, interessam

    em Aira as metamorfoses.

    Variao n 6

    Sempre que penso em realismo mgico me vem mente uma

    frase de Gabriel Garca Mrquez: Meu problema mais importante era

    destruir a linha de demarcao que separa o que parece real do que pare-ce fantstico. Porque no mundo que eu tentava evocar, essa barreira no

    existia.

    Por mais que aprecie alguns dos romances de Mrquez, sempre

    me perguntei, desconfiado: Se essa barreira no existe, como ele pode

    destru-la?

    Bem, como se pode imaginar, essa variao trata da relao

    tensa dos novos autores latino-americanos com a turma do realismo mgico. Alguns mais sutilmente, outros abertamente, os novos atacam bastante o movimento. Srgio SantAnna disse que realismo mgico era macumba para turistas. Csar Aira tambm no parece apreciar muito

    a confuso chamada realismo mgico, no cansa de dizer que os livros

    desses autores envelheceram demais e se tornaram quase ilegveis. Alm de tudo, prefere discernir melhor as coisas. Por exemplo, repudia o ab-surdo que incluir Jorge Luis Borges entre os autores do grupo. Nos

    livros de Borges, Felizberto Hernndez e Machado de Assis no h re-volucionrios e caciques, diz, lembrando a tirada de Borges: No h

    camelos no Alcoro.

    Csar Aira escreveu ainda que v a realidade como algo que s acontece aos outros. Lembra Mallarm dizendo que fumava para co-locar um pouco de fumao entre o mundo e ele. No destruir essa linha

    uma boa defesa para seguir operando sobre a realidade.

    P.S.: Acho que Aira entregaria de bom grado Julio Cortzar ao

    realismo mgico. Ele chega a dizer que o melhor Cortzar no passa de

    um mau Borges. E isso ainda no nada. Diz que uma fraude comple-ta. Sei que nunca leremos um autor estrangeiro como o lem os leitores de seu pas. O que no quer dizer que leiamos necessariamente de modo

    errado. Talvez seja a proximidade que os impede de ler melhor. Alis,

    nem sei se lcito falar em ler certo ou errado. S sei que grande parte

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    de meus amigos argentinos nutre um certo desprezo por Cortzar, mas

    sei tambm que vou morrer amando O jogo da amarelinha.

    Variao n 7

    s vezes voc est andando numa calada qualquer e escuta uma

    freada de carro, olha para o lado e v um casal dando uma risada, olha para a frente e v que a jovem grvida de vestido florido segue alegre

    o seu caminho, olha para cima e v que uns fiapos de nuvem s podem

    estar guiando ou seguindo seus passos, tal a coincidncia de seus tra-jetos, de repente algum lhe pergunta as horas, e a voc pensa: Meu

    Deus, estou dentro de um poema de William Carlos Williams.

    No todo poeta que consegue isso. Mesmo grandes, como Pou-nd, Drummond, Vallejo, no chegam l. Nunca pensei, em situao al-guma: Meu Deus, estou dentro de um poema de Ren Char.

    William Carlos Williams e mais alguns pouqussimos, como Pierre Reverdy, so colonizadores de inconsciente.

    Na prosa, s conheo o exemplo de Csar Aira. Nunca pensei

    estar dentro de um romance de Faulkner, de Vargas Llosa, de Rulfo, de meu amado Bolao. Mas vrias vezes j me vi em situaes que me

    fizeram pensar: estou dentro de um romance de Csar Aira.

    Qual a tcnica que usam para isso?

    Lembro que uma vez ia falar, em uma grande livraria, sobre um

    livro de Csar Aira que trata de um episdio na vida do pintor-viajante

    Rugendas. Estava tenso, como toda vez que tenho que falar para um p-blico de desconhecidos. Tinha lido toda a semana sobre Rugendas. A, prestes a chegar na livraria, em Ipanema, ouvi no txi a notcia do roubo

    de vrios trabalhos de Rugendas num museu de So Paulo. O motorista,

    um guatemalteco de poucas palavras, apenas as suficientes para dizer

    que era guatemalteco, e que alis no tinha a menor ideia da palestra que

    eu ia proferir, comentou: Eu acho que foram uns sujeitos que eu levei

    ontem do aeroporto Santos Dumont para o Flamengo. Eles estavam agi-tados e repetiam o tempo todo esse nome: Rugendas. Como estranhei, preconceituosamente, que ele conhecesse Rugendas, ele se apresentou melhor. No era s motorista de txi, era tambm ex-piloto de Frmula

    3, leitor compulsivo e editor-pirata.

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    Eu estava dentro de um romance de Csar Aira.

    Variao n 8

    Um trao tpico de Machado de Assis apresentar um persona-gem dizendo que no era alto nem baixo, no era bonito mas estava

    longe de ser feio. Seu objetivo talvez fosse situar seus personagens em

    uma zona de indeterminao visual, instalar um vrus de computador

    em nossas mentes para que a imagem que fazemos de seus personagens

    jamais se cristalizasse, fazer deles como que seres mutantes, na razovel

    rea de mutao que h entre no ser alto nem baixo, nem feio nem belo.

    J em Aira, leitor e admirador de Machado, h um recurso di-ferente. Podemos exemplific-lo com uma passagem de As noites de Flores. Ali se comenta que certo casal de entregadores de pizza s atra-vessava as ruas de Buenos Aires nas esquinas, tomando muito cuidado, embora noite (horrio em que entregavam pizzas) diminusse muito o

    nmero de carros nas ruas e consequentemente o perigo de serem atro-pelados. Mas o autor acrescente: Diminua e aumentava ao mesmo tem-po, porque os veculos, sendo menos numerosos, seguiam mais rpido. Em Um acontecimento na vida do pintor-viajante, quando Rugendas se dispe a desenhar as gigantescas carroas para a travessia dos pampas,

    constata que: Era fcil, e ao mesmo tempo difcil, desenh-las. um

    pequeno exemplo de um procedimento que Aira utiliza com uma habi-lidade nica. Esse jogo de inverses (diminua mas aumentava, conser-vava mas destrua, molhava mas secava) responsvel por um dos mais belos pargrafos de As noites de Flores, um pargrafo que uma anlise sutil da crise econmica de qualquer pas, e que voc pode ler na quarta

    capa da edio brasileira do livro.

    Alis, por isso que dou inteira razo a Anbal Cristobo, o poeta argentino da variao n 1, que sempre citava frases de Aira para depois negar que ele as tivesse dito. De certo modo, fora do contexto em que foram ditas, essas frases no so mais de Aira. Porque ele certamente

    deve inseri-las em um todo em que sero negadas, re-afirmadas, negadas

    outra vez, etc. Como dissemos, mais do que afirmar coisas, Aira investi-ga a complexidade das coisas.

    Variao n 9

    Goethe escreveu, ou melhor, comentou, e Eckermann escreveu,

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    que tudo o que est dito em seus poemas realmente aconteceu, mas no

    da maneira como foi escrito.

    Sinttico, Drummond escreveu no Poema-orelha: Tudo vivi-do? Nada./ Nada vivido? Tudo.

    A questo contar o que aconteceu, mas no exatamente como

    aconteceu. Se voc hoje encontrou, em um caf, um amigo que no via

    h tempos, se vocs sentaram juntos para uns goles e depois se foram,

    conte isso. Mas que tal, se na hora de contar, incluir na conversa uma

    garota eslovena que sentou-se com vocs pedindo socorro e dizendo-se

    perseguida por um ex-piloto guatemalteco de Frmula 3?

    E se a garonete (que lhe serve o) (desse) caf for na verdade a

    filha do piloto guatemalteco que no o v h mais de quinze anos, des-de que foi sequestrada por ndios? Os mesmos ndios que roubaram as

    pranchas de Rugendas...

    Bem, isso no Csar Aira, fiquem tranquilos.

    Variao n 10

    Na Argentina h pelo menos duas Liliana Ponce. Uma delas apa-rece em mais de um romance de Csar Aira. A outra uma fabulosa poeta. Uma das duas eu conheci numa casa de ch no Leblon. Ali ela me recomendou que escrevesse todos os dias. Como ela faz, como faz Csar

    Aira. Eu ento escrevi, com saudades antecipadas.

    Liliana Ponce no esqueceu o seu casaco no salo de ch

    Liliana Ponce nem estava de casaco

    (No Rio de Janeiro fazia uma belssimo dia de sol e dava gosto

    olhar cada ferida

    /exposta na pedra)

    Liliana Ponce, consequentemente, no teve que voltar s pressas

    para a casa de

    /ch

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    revista landa Vol. 2 N 2 (2014)

    (a garonete com cara de flautista da Sinfnica de So Petersbur-go no veio nos

    /alcanar sada acenando um casaco esquecido)

    Desse modo Liliana Ponce chegou a tempo de pegar o avio

    Partiu para a Argentina

    Variao n 11

    Um pas realiza uma espcie de censo para calcular a altura m-dia de seus habitantes. Depois de anos de pesquisa, chegam a um resul-tado: 1,68m. As empresas de propaganda ligadas ao governo passam imediatamente a buscar um homem e uma mulher de 1,68m para um anncio a ser veiculado na televiso. No encontram nenhum por incr-vel que parea, por uma coincidncia extraordinria, no h nenhum ha-bitante do pas que tenha 1,68m de altura, que, contudo, segundo todos os clculos mais exatos, a altura mdia do pas.

    Um dos traos preferidos da fico de Csar Aira encontrar

    casos em que a norma seja a exceo. As noites de Flores e Um aconte-cimento na vida do pintor-viajante so prdigos em casos assim.

    Variao n 12

    Csar Aira costuma repetir que sua admirao pelas vanguardas

    vem especialmente do fato de elas darem mais importncia ao processo criativo do que aos resultados. Quase como quem narra uma fbula, ele escreveu: Quando a arte j estava inventada, restando apenas continuar

    fazendo obras...

    notvel o pessimismo da frase... arte no o que inventamos,

    mas sim o que nos resta fazer.

    A vanguarda seria a resposta a esse estado ps-tudo de coisas. A vanguarda diz que nada, nem o romance, nem a poesia, nada est to-talmente inventado. Afinal, quando terminou o processo de inveno do romance? E o da poesia?

    Ora, o romance e a poesia ainda esto sendo inventados, e no

    resta apenas continuar fazendo obras como manda o figurino. H ainda

    a opo de ampliar a inveno.

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    No campo da boa literatura, Balzac, Stendhal, Flaubert, Proust,

    Faulkner deixaram bem pouco o que fazer. E de novo cito Kundera. Cer-ta vez lhe sopraram que o que a Tchecoslovquia precisava era de um

    novo Balzac. Ele respondeu que talvez fosse isso que a Tchecoslovquia

    precisava, mas que o que qualquer romancista digno desse nome preci-sava era ser ele mesmo, e no um novo Balzac. Pois se a histria (a

    da humanidade) pode ter o mau gosto de se repetir, a histria de uma arte no suporta repeties.

    Da surge uma das teses mais interessantes de Aira. Leiam-se seus comentrios e textos sobre a literatura m (la mala literatura).

    Penso que a ideia questionar um pouco essa ideia de qualida-de, a que nos apegamos tanto. Quem ainda no se cansou de ouvir dizer

    que h lugar para tudo e todos no supermercado da arte desde que seja

    bom, de qualidade? Algum a j questionou a fundo esse conceito?

    A vanguarda, para Aira, no uma moda que passou. Pelo con-trrio, afirma que sempre existiro escritores de vanguarda e de reta-guarda: Quer dizer, os que escrevem ajustando-se ao gosto e expecta-tiva dos leitores e os que pretendem mudar as regras do gosto.

    E mais provocativamente ainda: Escrever bem de retaguarda,

    porque os paradigmas para decidir o que est bem e o que est mal j

    esto determinados. O vanguardismo cria paradigmas novos.

    Mas note-se que a fico comercial, o estilo best-seller, m literatura e no literatura m. A diferena bsica. Enquanto Aira sa-crifica sem problemas a qualidade de um livro para chegar a algo novo,

    o que o best-seller faz no tem nada a ver com a busca de algo novo. Muito pelo contrrio, o que a fico comercial pretende a repetio da

    frmula que d certo, com o mnimo possvel de experimentao e no-vidade. O importante a redundncia que tranquiliza, e no o diferente,

    que assusta. Por isso acertou certo crtico ao afirmar que Aira escreve

    no s contra a noo de obra-prima polida e terminada, mas tam-bm contra a fico comercial.

    Em outra cena do j citado El mago, trs editores-piratas do Pa-nam tentam convencer o nosso mago a escrever um livro, e quando este diz que no sabe se sabe escrever bem, eles respondem desse modo:

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    As pessoas no escrevem por superstio, porque acham que

    devem faz-lo bem.

    E no verdade?

    Que nada. Ningum se importa se est bem ou mal escrito. De

    resto, nem saberiam julg-lo. Quem sabe o que um livro bom ou um

    livro ruim, quem sabe o que faz um livro ser bom ou ruim? Mas nem

    chegam a esse ponto: antes disso h um mecanismo psicolgico que anula o juzo...

    De certo modo, essa opinio dos editores-piratas do Panam, que

    voltaro a aparecer em outros romances de Aira, sempre com o mesmo

    objetivo, coincide com a de Lautramont ao escrever que a poesia deve

    ser feita por todos. Diz Aira: Democratiz-la de verdade, sac-la dessa

    cpsula de qualidade, do bom, do bem-feito, do feito apenas por quem tenha nascido com o dom. Por isso me agrada, por exemplo, John Cage, um msico que no era msico, que tinha dois tampes de madeira nos

    ouvidos, e no entanto fazia msica, inventava o modo de faz-la.

    Variao n 13

    Se tudo comeou com Anbal Cristobo, peo a ele que, desde Barcelona, escreva uma ltima variao sobre Csar Aira. E me respon-de por e-mail:

    Roberto Bolao, em uma breve nota intitulada O incrvel Csar Aira, diz que o argentino um excntrico, mas tambm um dos trs ou quatro melhores escritores de hoje em lngua espanhola. No mesmo artigo, destaca que Aira escapa a todas as classificaes e que sua

    posio na literatura atual em lngua espanhola to complicada com foi a posio de Macedonio Fernndez no princpio do sculo (passa-do).

    curioso que Bolao, cuja inteligncia e habilidade verbal nos legaram obras to instigantes, no tenha percebido a maior conquista de Aira: ser um mitmano compulsivo.

    Paul Auster, em mais de um livro, utiliza um recurso bastante ousado: partir de uma situao inicial pouco convencional, inveross-mil, para depois obrigar-se a sustent-la com um relato convincente; isto, para Aira, deve seguramente parecer uma fraqueza imperdovel.

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    revista landa Vol. 2 N 2 (2014)

    A nica forma de dar curso a uma mentira com outra maior. Como queria Wilde, que escreveu: Que diferena da tmpera do autntico mentiroso, com suas afirmaes francas e ousadas, sua soberba irres-ponsabilidade, seu desdm natural e saudvel por qualquer tipo de pro-va! Afinal de contas, o que uma boa mentira? Simplesmente a que se

    prova a si mesma. Se algum carece tanto de imaginao para apoiar

    uma mentira com provas, mais vale dizer sem escamoteaes a verda-de.

    Este Aira: o mitmano compulsivo que todos queremos ser e desejamos ler, o que no necessita provar nada.