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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁPRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
DIRETORIA DE PESQUISA
PROGRAMA INSTITUCIONAL DE BOLSAS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA – PIBIC: CNPq, CNPq/AF, UFPA, UFPA/AF, PIBIC/INTERIOR, PARD, PIAD, PIBIT,
PADRC E FAPESPA
RELATÓRIO TÉCNICO - CIENTÍFICO
Período: fevereiro/2015 a agosto/2015( ) PARCIAL(X) FINAL
IDENTIFICAÇÃO DO PROJETOTítulo do projeto de pesquisa: Mães e avós de crianças em acolhimento institucional: estudo sobre o cuidado feminino.Nome do Orientador: Janari da Silva Pedroso.Titulação do Orientador: Doutor.Faculdade: Faculdade de Psicologia.Unidade: Programa de Pós-Graduação em Psicologia.Laboratório: Laboratório de Pesquisa: Desenvolvimento e Saúde – LADS.Título do Plano de Trabalho: O cuidado na perspectiva transgeracional de famílias com crianças acolhidas institucionalmente: estudo de caso múltiplo.Nome do Bolsista: Lucas Fadul de Aguiar.Tipos de bolsa:
( ) PIBIC/ CNPq( ) PIBIC/CNPq – AF( )PIBIC /CNPq – Cota do pesquisador(X) PIBIC/UFPA( ) PIBIC/UFPA – AF ( ) PIBIC/ INTERIOR( )PIBIC/PARD( ) PIBIC/PADRC( ) PIBIC/FAPESPA( ) PIBIC/ PIAD( ) PIBIC/PIBIT
Resumo
Com as mudanças que vem ocorrendo desde o século XX no que dizrespeito aos papéis sociais ocupados por cada gênero, as mulheres ainda se apresentam como principal cuidadora e mantenedora da prole; há odiferencial singular de que este momento histórico vivencia a presençamais atuante dos avós no tratar com os netos. Este estudo teve comoobjetivo explorar as dinâmicas Intergeracionais e transgeracionais emfamílias que tiveram suas crianças institucionalizadas, tendo em vistaque por meio dessa realidade extrema, ao ponto de um sujeito deixarsua residência, buscou-se melhor compreender que padrõescomportamentais sustentam tais relações, tendo como especial enfoque ono gênero feminino. Utilizou-se como método o estudo de caso, tendocomo participantes duas famílias. Fez-se uso de entrevistassemiestruturadas como instrumento de coleta de dados, e o genogramacomo maneira de sistematizar as relações Intergeracionais. Obteve-secomo resultado a presença de comportamentos de fuga e abandono dentremembros femininos, entre as gerações estudadas. Concluiu-se que istofoi resultado de padrões de cuidado negligente para com as cuidadorasfugitivas, que se repete com as crianças institucionalizadas.
1. Introdução
A família nuclear tradicional constitui-se primariamente pelo arranjo da figura
masculina que trabalha e sustenta a casa, a mulher que cuida dos afazeres domésticos e
da educação dos filhos. Contudo, a presença mais competitiva da mulher no mercado de
trabalho a partir da metade do século XX iniciou um ciclo profundo de transformações
que influenciam as dinâmicas até então institucionalizadas, em que as atribuições
familiares não mais se limitam à divisão por sexo ou geração.
Não obstante a entrada da mulher no mercado de trabalho e a realocação desta
em seu papel social, diversas pesquisas demonstram que o cuidado feminino ainda é
majoritário e valorizado, como mostram estudos em que a mãe aparece como única
cuidadora dos filhos. Pines-Gassman (2011), ao realizarem entrevistas com 61 mães –
maioria passava por problemas financeiros - indicam que muitas delas encontram-se
envolvidas em cargas excessivas de trabalho, na qual as oportunidades de contato entre
mães e filhos estariam prejudicadas.
Em situações adversas como essas, a família – muita das vezes somente a mãe
e o filho – contam apenas com a presença dos avós, que se tornam pontos de apoio para
a manutenção das relações entre gerações, tanto para estreitar os laços destes com seus
netos, e dos filhos com os pais. Cardoso (2011) corrobora essa perspectiva, ao afirmar
que diante de todas as necessidades profissionais presentes no mundo contemporâneo,
os pais sentem extrema dificuldade de conciliarem responsabilidades parentais, pessoais
e profissionais.
Em nível intergeracional, a presença da mãe também prevalece diante da do
pai. Tendo como exemplo disso, cita-se o estudo de Silva, Magalhães e Cavalcante
(2014), que ao trabalharem com crianças institucionalizadas e sua relação com os avós,
apontaram em média que 16% daqueles que mantém contato com os netos são do sexo
masculino, em comparação com 84% do sexo oposto.
Uma pesquisa conduzida nos Estados Unidos por Barnett, Scaramella, Neppl,
Ontai e Conger (2010), que avaliou a qualidade das relações entre grupos de pais (G1) e
filhos (G2), levando em conta a relação dos avós (G3) com os netos, corrobora para a
presença mais intensa das avós no cuidado com seus netos, mesmo em condições tidas
como não adversas. Além de se notar a presença marcante da avó em detrimento do avô,
constatou-se que a díade G1-G2 teve seu envolvimento sensivelmente melhorado a
partir da presença de G3; ressalta-se que fatores socioeconômicos apareceram como
motivo principal à presença mais ativa dos avós na vida das crianças, que serviram de
suporte não apenas financeiro, como também emocional, para seus filhos e netos, tendo
apenas como empecilho certas dificuldades de mobilidade, já que a distância entre as
residências de cada membro familiar era relativamente grande.
Outra pesquisa, realizada por Viguer, Meléndez, Valencia, Cantero e Navarro
(2010) na Espanha, verificou, pelo viés infantil, a relação entre netos e avós, em que se
avaliou estilos de socialização utilizados pelos últimos e as brincadeiras compartilhados
por ambos. Ao todo, foram entrevistadas 360 crianças, entre 10 e 12 anos. Os resultados
demonstraram a importância do gênero e da linha familiar na seleção do avô
‘’favorito’’; diferenças surgiram nas próprias brincadeiras realizadas e nas atividades
que demonstravam o estilo de socialização envolvida. Na maioria dos casos, observou-
se a presença da avó como sendo representante da terceira-geração “predileta”, pelo fato
também de ser mais presente. Os avós, e em especial a avó, no século XXI, desse modo,
mostram-se como agentes de bem-estar e atenção para seus netos, em que dispõem de
tempo livre para cuidar das crianças, apoio financeiro e segurança emocional, o que leva
à redução das chances de aparecimento de doenças e problemas emocionais.
Compreende-se, dessa maneira, que por um ponto de vista de múltiplas
gerações, dada as influencias sociais e culturais, o fator gênero perpassa como aspecto
fundamental a ser analisado quando se questiona a perpetuação de uma cultura familiar.
Um estudo realizado por Carlson e Knoester (2011), ao abordar a influência do gênero
na transmissão de padrões comportamentais em diversas estruturas familiares, em que
foi encontrada convergência de comportamentos entre mães e filhos e divergência entre
pais e filhas, concluiu-se que a relação genitor/cuidador – criança sofre forte influência
com relação ao sexo do par.
Portanto, o cuidado feminino passa a ser problematizado, com especial atenção
ao fator transgeracional e intergeracional, ao permitir analisá-lo por uma perspectiva em
que padrões e a transmissão de comportamentos tornam-se visíveis, além das diversas
singularidades que marcam os gêneros; o presente estudo, para tal finalidade, explora
essa temática por meio de uma realidade extrema, em que por razões diversas, a
presença da família não se fez suficiente para impedir um fato que gera diversas
discussões nos campos sociais e políticos: a institucionalização de crianças.
Quando a questão é debatida com enfoque no gênero, pesquisas apontam uma
parcela significativa das crianças que estão em instituições de acolhimento
possui/possuíam somente a entidade feminina como representante legal, como mostra os
dados coletados por Fukuda, Penso, Santos e Benedito (2013): cerca de 42% dos
infantes que se encontram em unidades de acolhimento detêm na figura materna a única
representante jurídica que os enquadram dentro de uma família.
Desde a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA em 1990,
carências materiais e sociais não figura como razões plausíveis para a
institucionalização de crianças. Não obstante, Magalhães e Cavalcante (2013),
apontaram a situação de pobreza como maior empecilho dessas famílias no que diz
respeito ao desejo de criarem condições melhores para seus filhos e netos. Os dados
apontaram que devido à falta de condições de materiais, estas cuidadoras não sabiam ao
certo como conduzir a educação da nova geração; não deixou de se notar que a falta de
programas sociais para mães e avós dificulta ainda mais o quadro; além disso, a
pesquisa salientou a falta de políticas públicas de educação à infância institucionalizada,
estreitando as oportunidades que estes possuem de melhorarem de vida. Somada as
poucas opções oferecidas às crianças desses grupos, o meio social em que se encontram
apresenta, muita das vezes, uma realidade pautada pela violência familiar e social, onde
se percebe a abandono de crianças e a negligência destes por parte dos genitores, uma
das consequências mais frequentes desses ambientes.
Isso faz das crianças institucionalizadas tema merecedor de especial atenção,
por serem encaminhados à unidades de acolhimento em decorrência do cuidado precário
e negligente dos próprios genitores e familiares, tendo o maltrato e o abandono como
principais fatores. Pesquisas brasileiras, como a do Conselho Nacional do Ministério
Público (CNMP, 2013), em relatório recente, constatam que as principais razões de
acolhimento de crianças em instituições variam entre a negligência, a violência e o
abandono. Os dados publicados apresentam: (81%) reportou acolhimentos realizados
em razão de negligência dos cuidadores. A segunda maior causa de acolhimento é a
dependência por drogas ou álcool dos pais ou responsáveis (81%), seguida pelo
abandono (78%), pela violência doméstica (57%) e pelo abuso sexual (44%).
Pesquisas similares conduzidas fora do país ratificam resultados encontrados
no Brasil, a exemplo de um estudo feito no Oeste do Kenya sobre os motivos relativos
ao acolhimento. Quatrocentos e sessenta e dois arquivos de uma instituição de
acolhimento foram revisados, em que: 71% das crianças perderam um ou ambos os pais.
Os motivos para admissão foram: pobreza (36%), abandono (22%), negligência (21%),
abuso sexual (8%). A maioria das crianças residentes havia experimentado no mínimo
algum tipo de experiência com maus-tratos (66%). Dentro dessa categoria, incluem-se:
físicos (8%), sexual (2%), psicológico (28%), negligência (26%), negligência médica
(18%), privação escolar (38%), abandono (30%) e trabalho infantil (23%). O maior
motivo para crianças não órfãs serem admitidas foi: situações de maus-tratos (90%),
enquanto que aquelas que eram órfãos encontraram na pobreza o principal responsável,
um número aproximadamente de 49% (MORANTZ, COLE, AYAYA, AYUKU
BRAITSTEIN, 2012).
Além dos fatores citados, os maus-tratos são também consequência da
legitimidade que possuem enquanto prática de cuidado necessária à educação e
moralização do indivíduo à sociedade. Em pesquisa realizada no Brasil com o interesse
de se avaliar quais dessas práticas são mais utilizados pelos pais, obtiveram-se os dados
de que 42% dos pais entrevistados preferem o uso de uma educação coercitiva,
enquanto que apenas 2% afirmaram não a utilizarem, preterindo outras formas de
cuidado, no estudo classificadas como indutivas. Concomitante, esses mesmos pais
foram indagados sobre a forma como foram criados e 39% relataram que também foram
educados por seus pais, predominante, com práticas de cuidado coercitivas, o que
incluía os maus-tratos (MARIAN, MARTINS, FREITAS, SILVA, LOPES, PICCINNI,
2013).
Os pioneiros da abordagem sistêmica são os primeiros a investigarem-na como
um organismo em que os membros constituintes são vistos de modo interdependentes,
na qual as avaliações transcendem a perspectiva de uma única geração, em que qualquer
situação que ocorra com um destas pessoas, seja numa geração ou noutra, ressoa
diretamente em todo o sistema. O indivíduo é tido como um agregado de diversas
heranças que circundam os meios que o cercam, como a esfera social, econômica,
política e cultural, assim como o meio interno familiar o qual se encontra inserido desde
o momento do seu nascimento e nos períodos de desenvolvimento. O aparecimento de
sintomas que causam sofrimento e desagregam um grupo denuncia falhas não apenas do
sistema familiar, como também social, e, concomitantemente, aponta à necessidade de
mudanças em seu funcionamento (BUCHER-MALUSCHKE, 2008). O sintoma de um
membro da família passa a ser visto de maneira relacional, com uma função no e para o
sistema.
Visto dessa forma, a família passa a ser compreendida como um todo mais
complexo do que simplesmente a soma de suas partes, não estando restrita a uma
geração, porém sim, com o fator transgeracional como atuante na manutenção e/ou
modificação de valores e comportamentos. A transmissão de comportamentos em mais
de uma geração, segundo Murray Bowen (1976), é a repetição de padrões de um
sistema, visualizadas individualmente; o autor salientou que isto ocorre por meio ou não
da diferenciação do self do individuo com relação ao da família, que é exatamente o
mundo simbólico que vive na psique de um determinado grupo. Essa diferenciação é a
capacidade que cada ser humano possui, de modificar e atualizar as relações internas
que envolvem cada pessoa, assim conferindo-lhes uma nova dinâmica que se
desenvolve ao longo do crescimento pessoal e o contato com realidades outras.
O presente trabalho, portanto, tem como objetivo verificar a repetição de padrões
de comportamento e formas do cuidar feminino, em uma perspectiva conceitual
sistêmica, em que estão envolvidas as complexidades e problematizações que permeiam
o meio social, cultural e histórico que abarcam a presença de diversos arranjos, em que
a presença dos avós como cuidadores pode se tornar essencial para o desenvolvimento
da criança, ao oportunizar segurança emocional e financeira.
2. Método
O método utilizado foi o estudo de casos múltiplos, nos expostos explanados por
Yin (2009, p.39), que define esta metodologia como “uma investigação empírica que
investiga um fenômeno contemporâneo em profundidade e em seu contexto de vida real
especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não são claramente
evidentes”. Este método encontra-se consoante com uma abordagem qualitativa de
pesquisa, tendo em vista que não se preocupa em confirmar hipóteses pré-existentes,
assim como não possui o pressuposto de controle de variáveis com o controle de
variáveis.
2.1 Participantes: Duas participantes integraram a pesquisa, cada uma delas
como representante de uma das crianças institucionalizadas: uma tia-avó e uma tia. Os
critérios de inclusão à entrevista foram: a) os membros deviam pertencer ao sexo
feminino, com vistas em mais de uma geração; b) possuírem parentesco consanguíneo
com a criança acolhida; c) mantivessem visitas regulares à instituição. Foram excluídas
todas as participantes que não atendessem a esses requisitos, e mais àquelas pessoas
diagnosticadas com transtornos psiquiátricos.
2.2. Ambiente: A pesquisa foi realizada na instituição “Abrigo Começo Feliz”,
localizado no Bairro do Satélite, em Belém/PA. O local possui com um espaço
destinado às brincadeiras para crianças – uma espécie de playground – onde se
encontram brinquedos, uma piscina e uma área ampla de recreação. Há uma cozinha, a
secretaria, uma sala para os membros da limpeza, outra para os motoristas e um quintal
onde se lava as roupas das crianças. Ressalta-se a presença também de uma área
destinada às refeições, onde há uma mesa maior, destinada para funcionários e
visitantes, e uma mesa menor, para os abrigados; por fim, existe uma sala para os
técnicos da instituição – assistentes sociais, psicólogos e pedagogos – e um local
destinado às visitas dos parentes das crianças; este último também é utilizado para se
realizar entrevistas de cunho acadêmico, como o do presente trabalho.
2.3 Instrumentos e Materiais:
2.3.1 Entrevistas semiestruturadas: A entrevista semiestruturada pretende investigar
itens que incluem questões relativas aos seguintes pontos: identificação pessoal
e de seus familiares (nome, estado civil, idade, ocupação,
parentesco);caracterização do sistema familiar (número de uniões, tempo atual
da união, número de pessoas que moram na residência e conhecimento sobre as
práticas de cuidado); características econômicas e levantamento acerca das
relações interpessoais com a família atual e com a família externa.
2.3.2 Genograma: Segundo McGoldrick et al (2008), os genograma registram
informações sobre os membros de uma família, colocando em destaque suas
relações em pelo menos três gerações; por meio desse instrumento, visualizam-
se os membros e os principais eventos que marcaram suas vidas, desde
momentos felizes até rupturas emocionais trágicas. O genograma de cada
família foi montado na sua frente, com papel e canetas coloridas – para que se
possam diferenciar determinados pontos da estória familiar.
2.3.3 Diário de Campo: Teve por objetivo registrar, em tempo real, atitudes, fatos e
fenômenos percebidos no campo de pesquisa. Os registros são feitos
diariamente sempre datados, sinalizando os sujeitos envolvidos, o local, a
situação observada, as condições que podem estar interferindo no fato, a
influência da rotina e as normas institucionais do fenômeno.
2.3.4 Materiais: Foram utilizados papéis folhas de papéis A4 em que foram desenhados
os genogramas, canetas esferográficas de cor preta para desenhar os mesmos e
canetas coloridas CIS LUMINI para destacar pontos importantes da estória
familiar do participante; além destes, utilizou-se um caderno de uso pessoal
como diário de campo e um gravador pelo qual gravou-se as entrevistas para
posterior transcrição.
2.4 Cuidados éticos e judicias
O plano de trabalho faz parte do projeto do professor orientador já aprovado
pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Saúde da Universidade
Federal do Pará. Todos os participantes da pesquisa assinaram o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido. Os devidos cuidados foram tomados para garantir o
sigilo e a confidencialidade das informações, e dessa forma preservar a identidade dos
participantes bem como das instituições envolvidas, mesmo com a divulgação dos
resultados.
2.5. Procedimento
Para o desenvolvimento desse estudo, primeiramente fez-se uma revisão da
literatura científica concernente ao assunto, nos dois primeiros meses da pesquisa. Em
seguida, buscou-se compreender o funcionamento dos instrumentos e materiais utilizados
à coleta de dados. Tendo esta preparação inicial se concluído, foi-se a campo para realizar
uma ambientação ao local: conhecer melhor o estabelecimento onde a coleta foi
realizada, tornar-se familiar aos funcionários e visitantes e as crianças e ganhar confiança
e respeito dos mesmos para o livre acesso dos documentos da instituição. Os primeiros
dias no local, o pesquisador foi acompanhado por orientadores mais experientes que
participam do mesmo grupo de pesquisa, com o intuito de facilitar a entrada no local.
Foram também repassadas algumas regras básicas de conduta. Transcorrido o tempo
necessário de ambientação, partiu-se para a seleção dos candidatos e subsequentes
entrevistas, o que demorou mais alguns meses. A coleta dos dados foi realizada com dois
visitantes da instituição. Antes das entrevistas, explicou-se o motivo da pesquisa e se
solicitou que os participantes assinassem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido,
após terem-no lido e concordado. Também foi solicitado permissão para que se pudessem
gravar as conversas, a fim de facilitar a transcrição das falas coletadas; ambos os
participantes assim o aceitarem. Ao longo do diálogo, montou-se o genograma para que o
entrevistado pudesse ver a figura e porventura interferir no desenho, ou até mesmo
modificá-lo. Após a coleta, os resultados foram levados para interpretação.
2.6. Análise dos Resultados
Os dados das entrevistas foram sistematizados em categorias temáticas com
Análise de Conteúdo de Bardin (2010), que a divide em três partes: exploração do
material, tratamento dos resultados e interpretação/inferência. O genograma foi avaliado
por meio de uma perspectiva teórica sistêmica, em que se pudessem visualizar as
dinâmicas familiares Intergeracionais e transgeracionais. O diário de campo serviu
como instrumento fundamental para que o pesquisador anotasse observações à cerca do
ambiente e posteriormente as utilizasse nos insights advindos no momento de
construção das categorias temáticas e posterior análise de dados.
3. Resultados
Para o tratamento dos resultados, colocou-se primeiramente cada caso
individualmente, com a apresentação do genograma e as histórias individuais das
protagonistas. Em seguida, fez-se uma discussão dos dois casos por meio de categorias
temáticas construídas a partir dos conteúdos dos dados.
a. Caso Antonieta
O genograma do caso Antonieta foi montado de acordo com as informações
coletadas pela conversa com Agripina, 38, tia-avó da criança Evarista, que se encontra
institucionalizada no abrigo desde seu nascimento, à época da entrevista com 4 meses
de nascida. Agripina é filha de Jason e Madalena; seu pai, falecido, morreu aos 80 anos,
de derrame, enquanto que sua mãe encontra-se viva com 69 de idade, porém em estado
vegetativo após um acidente vascular cerebral. Possui 9 irmãos – Margarida, Eduardo,
Sara, Eliza, Magda, Marcos, Duciomar, Adágio e Joel, além de alguns outros já mortos,
dos quais ela não lembra. Foi casada, tendo três filhos no primeiro relacionamento – um
de 21, Calil, outro de 19, Leandro, e uma de 14, Rosa – e atualmente está namorando
com Ítalo, com quem já tem um filho de 2 anos, Afonso. A entrevistada é irmã mais
nova de Margarida – a mais velha de todos -, que se encontra também falecida em
decorrência um derrame cerebral, à época com 37 anos de idade. Margarida, casada com
Marcelo, gerou 8 filhos, dois quais 2 já não estão mais vivos – morreram logo nos
primeiros anos que se seguem ao nascimento. São eles: Mirian, Antonieta, Karla, Ana,
Gardenha, Bruno e os dois falecidos, Carlos e Catarina. Destes, além da própria
Antonieta, tem-se conhecimento apenas de que Karla teve uma filha, que morreu
afogada ainda criança.
Filha de Margarida, Antonieta, mãe de Evarista, é uma moça de 26 anos que
sofre problemas sérios de depressão e é moradora de rua. Além da menina, que está
acolhida na instituição, possui outro filho, Edgar, que se encontra na guarda do pai,
apenas conhecido por um apelido. Não se conhece a identidade do genitor de Evarista,
de quem os familiares supõem ser também alguém desabrigado. O pai de Antonieta,
Marcelo, fugiu de casa quando a moça tinha apenas 6 anos de idade – e aos 12, sua mãe
Margarida faleceu, sendo a menina colocada aos cuidados da avó Madalena, como
mostra o genograma.
JASON MADALENA
AGREPINAMARGARIDA EDUARDO SARA ELIZA MARCOSMAGDA DUCIOMAR ADAGIO JOEL
MARCELO
MIRIAM ANA ANTONIETA CARLA GARDENIA BRUNO CARLOS AGDA
DANIEL
EDGAR EVARISTA
CALIL LEANDRO ROSA
ÍTALO
AFONSO
Desde pequena, Antonieta era extremamente agarrada à mãe, Margarida. Menina
chorona, em tenra idade viu seu pai se afastar da sua vida. Fugia, ora por alguns dias,
ora por muitos meses, segundo relato. Era uma família de boa condição financeira,
esposo comerciante, dono de negócios no interior. Sabe-se apenas que conflitos e fugas
iam e vinham. Marcelo, o pai, foi embora, uma vez. Voltou. Desapareceu uma segunda.
Distanciou-se uma terceira. Na quarta, jamais reapareceu. Levou consigo toda a
poupança que a família economizara no banco. O negócio perdeu espaço. Sem dinheiro
e sozinha, Margarida se viu obrigada a sustentar os seis filhos. Incapaz de encontrar
emprego na cidade interiorana em que vivia, buscou trabalho na capital, onde passou a
viver como empregada doméstica. As seis crianças ficaram aos cuidados dos avós.
Antonieta, jovem e frágil, sem entender o que se passava, chorava por duas ausências: a
do pai e da mãe. A angústia pesava também em Margarida.
Margarida lutava para que pudesse dar condições de uma vida digna à família.
Com um tempo de poupança, foi capaz de comprar um terreno, que futuramente
abrigaria ela e os filhos. Seis anos se passaram desde o desaparecimento do pai;
Antonieta, aos poucos, acostumou-se com a nova dinâmica familiar, apesar de que, nos
conta sua tia, nunca mais fora a mesma, tendo ficado arredia e ainda mais chorona. Os
avós, sempre atenciosos, cuidavam bem dos netos. No entanto, outra fatalidade:
Margarida falecera em decorrência de um acidente vascular cerebral. Já sem pai,
Antonieta viu-se também sem a mãe. A garota, antes chorona, trocou as birras pelo
silêncio, as lágrimas pelo isolamento. Já não mais saía de casa, ou se o fazia,
permanecia quase todo tempo sozinha.
Agora sem pai, a menina viu-se sem mãe. Todavia, havia uma única coisa que
Antonieta ainda se apegava. Uma sobrinha, da qual sempre cuidava e que muito adorava
tal qual se fosse uma filha. Certo dia, todos haviam saído para cuidar dos seus afazeres.
A irmã mais velha deixou a criança com Antonieta, para que a vigiasse. Uma casa
grande, onde vivia os avós e netos. Com muito zelo, a filha de Margarida olhava
atentamente a menina, que brincava. Apenas as duas estavam em casa. Decidiu ir olhar
algumas coisas em outros cômodos. Pensou em levar a criança, porém não o fez. Ao
voltar para ver como estava a filha da irmã, desesperou-se; não a encontrava em lugar
algum. Procurou-a, até encontrá-la afogada dentro de um balde. Antonieta caiu em
depressão. A família, de luto, não culpou a pobre adolescente. Esta, porém, via-se como
a única responsável por toda essa tragédia.
O tempo passou, e já não mais aguentando a própria moradia, começou a repetir
o mesmo padrão do pai. Fugiu; fez disso um costume. Ia para rua e se envolvia com
qualquer homem que lhe desse alento. Não demorou muito e veio o primeiro filho, o
qual ela levou para rua, por medo de o tirarem. Encontrada desnutrida no meio de uma
praça, as irmãs tomaram-lhe de seus braços o primogênito. O verdadeiro pai, conhecido
da família, constatou que a criança lhe pertencia, que passou aos seus cuidados. A
segunda filha, da qual ninguém sabe quem é o genitor, esta, Antonieta não desejava que
nenhum consanguíneo a tivesse. Preteriu colocá-la aos cuidados de um abrigo, optou
por dizer a Assistente Social que não possuía parentes. Depois, voltou às ruas, lugar que
se sentia abrigada. Família que verdadeiramente ninguém poderia roubar.
b. Caso Joana
O genograma do caso Joana foi montado a partir das informações trazidas por
Karoline, tia de Letícia, bebê, que a época da entrevista possuía apenas 6 meses,
abrigada desde seu nascimento. Karoline é filha de Cintia com um homem o qual ela
não sabe o nome, que fugira de casa quando ela tinha apenas 5 anos de idade. Juntos,
Cintia e seu parceiro tiveram 4 filhos – Jordan, Gabriela, Karoline e Joana. A
entrevistada não possui qualquer informação do pai ou dos parentes destes. Pela família
da mãe, tem uma avó que ainda se encontra viva – Maria, de 67 anos e um avô já
falecido, Matheus. Maria e Matheus geraram diversos filhos, dos quais se tomou
conhecimento apenas os que se encontram vivos. São eles: Erza, Tereza, Lídia, Rodolfo,
Cintia, Rodrigo e Leonardo. Aos poucos que o genograma foi sendo formado, notou-se
que aquela família possuía muitos membros presentes, dois quais, devido o tempo
estipulado pela entrevistada, não permitiu que se conhecessem todos. Para efeitos de
praticidade, tem-se ciência apenas dos filhos de duas filhas de Maria – Cintia, que já
foram citados, e Erza, que são: Rosileide, 28 anos, um falecido que não foi mencionado
o nome, e Cícero, de 27.
Esta família é marcada por diversas intrigas, a começar pelo pai de Karoline que
deixou os filhos, quando esta possuía apenas 5 anos de idade. Por terem tido filhos
muito cedo e não serem consideradas pela própria mãe como capazes de sustentar,
emocionalmente e financeiramente, a cria, tanto Karoline quanto Erza tiveram suas
crianças tomadas pela genitora, que assumiu voluntariamente a responsabilidade pelos
novos membros da família. Rosileide e Joana estavam sempre em conflito, a primeira
com ciúme da segunda, ambas criadas pela avó. Letícia, o bebê que se encontra
acolhido, é o quarto filho de Joana, do qual ela não cria nenhum deles. O genograma
mostra com mais facilidade as dinâmicas familiares.
MATHEUS MARIA
ERZA TEREZA LIDIA RODOLFO CINTIA RODRIGO LEONARDO
ROSILEIDE CÍCERO
JORDAN GABRIELA CAROLINE ROSILEIDE KAIKEELDA
MARIANA
JOÃO
CARLOS AMANDA JÉSSICA
MORGANA VANESSA JOSY LETICIA
Cintia, muito jovem, engravidou de um rapaz de mesma idade, com quem teve
sua primeira filha: Joana. Era uma moça que mal saíra da adolescência, não possuía
emprego e ainda morava com os pais. Maria, genitora de Cintia, assim como a filha,
transformara-se em cuidadora muito cedo; o padrão se repetia. Temerosa de que a nova
criança não fosse bem tratada, a agora avó apressou-se a ficar com a neta sob a sua
guarda. Fez o mesmo com a outra filha Erza. Enquanto que a mais velha aceitou com
resignação a “decisão” de sua mãe, o mesmo não pode se dizer de Cintia. Contragosto
aceitou que sua criança fosse levada. Tendo se envolvido com esse rapaz, não demorou
a que outros filhos viessem – Karoline foi a última. Quando esta tinha apenas 5 anos de
idade, seu pai desapareceu; ninguém sabe o paradeiro. Boatos correm apenas de que ele
se encontra no Maranhão, junto com suas irmãs. Tal situação deixou Cintia e a pequena
família em situação de extrema dificuldade. Em diversas ocasiões tiveram apenas um
teto de papelão como abrigo. Ao ver a situação da filha, a mãe Maria pensou em levar
também os outros filhos de Cintia para seus cuidados. Esta, tendo que aceitar que lhe
tomassem o primeiro, recusou-se que lhe retirassem os outros.
Nunca se soube ao certo, conta a entrevistada, se houve um confronto real entre
mãe e filha. De todo modo, Cintia nutriu certo ressentimento pelas atitudes da genitora,
por mais que fossem protetivas. Todas as noites, quando saía do trabalho, Cintia passava
na casa da mãe para ver a filha, que sempre lhe pedia para que a levasse embora. Por
mais que tentasse, o esforço conjunto de Joana e sua mãe não foram suficientes para
aplacar a decisão de Maria.
Joana por sua vez, por mais que aceitasse sua condição, guardava
contestamentos à situação em que se encontrava. Brigas explodiam com a avó. Em um
desses acontecimentos, aos 10 anos de idade, Joana comprou a própria prisão: saiu de
casa e encontrou alguns jovens fumando droga. A jovem intrometeu-se no círculo e
pediu para experimentar o psicoativo. E como disse Karoline, que repetiu as palavras da
irmã: usou aquela vez e nunca mais conseguiu parar.
Após cinco anos depois do ocorrido, a família ficou sabendo da situação. Um
choque acometeu-os, principalmente Cintia. Joana, conforme foi crescendo, passou a
viver fora de casa. Comprometeu-se mais do que gostaria com as drogas, em que passou
a ser usuária e vendedora. Visitou cidades do interior, onde se envolveu com diversos
homens. Ao longo dessas empreitadas, teve quatro filhos: cada um com um parceiro
diferente. Nenhuma das crianças encontra-se sob a sua guarda. Por mais que desejasse
tê-los em seu recolhimento, todos lhe foram tirados pela família. Joana teve nos
parentes os firmes opositores, principalmente as tias e a filha de Erza criada também
pela avó, com quem criou certa inimizade.
Após muito tempo nas ruas, a já adulta Joana decidiu voltar à casa da avó, com
quem ficou um tempo. Recebida de braços abertos, alegria geral tomou conta dos
familiares. Todavia, situações embaraçosas levaram a expulsão da filha pródiga da
residência dos avós: a morte do avô, que debilitou a situação de Maria, e o retorno febril
de Joana ao consumo de drogas, com o agravante de estar vendendo-as dentro da
própria casa que lhe forneceu, novamente, sustento. As primas e tias, por não aceitarem
a “ingratidão”, colocaram-na para fora da moradia, o que a obrigou a voltar às ruas,
mais uma vez. Repetidas vezes, os conflitos familiares retiraram-lhe tudo o que de mais
valioso possuía: abrigo, amor e, sobretudo, reconhecimento.
4. Discussão
a. Fugiu uma vez, uma segunda, uma terceira...
Esta categoria foi criada a partir de uma série de falas que evidenciavam diversas
situações negativas que ocorreram na vida das mães das crianças abrigadas, ao
apontarem, diferentes formas de maltratos de ordem psíquicas que ocorreram no
decorrer da vida dessas genitoras, que as levaram, invariavelmente, à situação de rua.
Esta categoria foi assim chamada para ressaltar o comportamento de fuga presente na
família. Algo premente à análise dessa categoria é fato de que tanto Antonieta quanto
Joana conviverem com as ausências paternas e maternas. Ambos os pais fugiram de
casa, sem nem ao menos se despedirem das filhas, e assim, provocaram sérios
problemas à vida de suas famílias, identificadas nas falas:
“Agora assim, toda a história da Antonieta começou ai, quando ele fugiu,
abandonou todas elas, quando eram pequenas. Ele sempre fugia, mas na quarta
vez que fugiu ele não voltou mais. E ele levou tudo embora, transferiu o dinheiro
para outra conta, deixou só as dívidas e os filhos para criar." (Caso Antonieta).
“Quando nós erámos pequenas, a gente morava de baixo de uma casa, um
barraco, só coberto, só tinha o telhado a casa, entendeu, ela tinha arranjado um
terreno em uma invasão ai no começo ela só botou o telhado e lá a gente
dormia...” (Caso Joana).
Tais acontecimentos foram os responsáveis pelo fato das crianças terem ido
morar com os avós. Subsequente a esse fato, há o conflito com a avó e o envolvimento
com drogas em tenra idade, no caso de Joana, e o falecimento da mãe e da sobrinha de
Antonieta, como pode ser visto no genograma. Anos mais tarde, ocorreu o
envolvimento destas com a vivência de rua, a relação fugaz com múltiplos parceiros, o
desfecho da gravidez e posterior acolhimento destas crianças num abrigo.
Compreende-se o fenômeno de ir à rua como o resultado de uma série de
conflitos destas mulheres com o ambiente o qual estavam submetidos, grande parte
deles iniciados devido à ausência parental, que nestes casos, ressalta-se, originou-se e
criou situações adversas no contexto em que estavam situadas. Uma pesquisa que
corrobora para este dado, realizada por Ackley, Hoyt e Whitebeck (1997), com pais e
adolescentes sobre questões relacionadas à fuga de jovens, concluiu que boa parte de
adolescentes que fugiram de casa possuíam taxas baixas de envolvimento parental, além
de grande rejeição da parte destes pelos filhos. Os dados coletados permitem concluir
que o comportamento de ir para rua é também resultado de uma repetição de padrões
transgeracionais, perpassados de pais para filhas, como bem mostra os genogramas e as
entrevistas:
“Ai ele [o pai] fugia, ficava um tempo fora sabe. Depois voltava. Ai ele fugiu a
primeira. Fugiu a terceira...” (Caso Antonieta).
Desse modo, famílias podem vir a se organizar em volta de padrões de doenças,
sintomas, vícios, entre outros malefícios (BUCHER-MALUSCHKE, 2008). A autora
ressalta que muitos desses comportamentos são transmitidos de maneira inconsciente,
sem que os membros da família, ou até mesmo aqueles que o perpetuam, deem-se conta.
Os casos de Antonieta e Joana há duas gerações que o padrão de fugir aparece dentro do
sistema. Contudo, observa-se o ato de fugir apenas tornou-se plausível em condições
extremamente específicas – o momento em que a casa em que moravam tornou-se um
ambiente sufocante às suas existências.
Logo, chega-se a conclusão de que a fuga dos pais ocorreu da mesma forma que
os das filhas – a partir do momento em que viver com a família em que estavam não
mais lhe agradavam. Em Antonieta isso é mais visível pela morte tanto da mãe e o
trágico fim da menina que estava aos seus cuidados. Em Joana, percebe-se isso pelos
conflitos que possuía com a família. O cuidado ora negligente ora rigoroso desta avó,
neste caso, é evidente, como mostra as falas:
“[...] qual foi a reação da avó (ao descobrir que Joana usava drogas)? - “Nunca
fez nada ". (Caso Joana).
“Como posso te dizer... Fechada, ela (avó) não dava muito carinho pros filhos,
ela nunca deu muito carinho pros filhos, entendeu, se eles fizessem logo coisa
errada era logo pra bater...” (Caso Joana).
Após Antonieta e Joana terem saído de casa, sabe-se apenas que se envolveram
com múltiplos parceiros e terminaram por engravidarem. Diversas pesquisas confirmam
que mulheres moradoras de rua possuem altas probabilidades de apresentarem
comportamentos de risco, como o uso de drogas, falta de controle da natalidade
encontrou estudos ade, sexo por sobrevivência (BASSUK, BUCKNER, PERLOFF,
BASSUK, 1986; ZLOTNICK, ROBERTSON, WRIGHT, 1999). Outro ponto a ser
levantado é o fato de que muitos estudos concordam que a idade e a duração na rua são
fatores chaves para determinar a previsão de uma gravidez, assim como mulheres
negras eram mais propensas a terem filhos na rua do que brancas (RAFAELLI,
CAMPOS, MERRIT, 1993; WEITZMAN, 1989; GREENE, RINGWALT, 1998;
SHEAFF, TALASHEK, 1995). Apesar de boa parte de esses estudos terem sido
realizados nos EUA, a partir da idade e a quantidade de filhos que Antonieta e Joana
tiveram, observa-se que estes dados não são uma exclusividade da realidade americana.
Contudo, para que melhor se compreenda o tópico da gravidez, uma segunda categoria
cobrirá o tema.
b. Sem mãe e sem filho.
Esta categoria, por sua vez, trata de outro padrão que se repete, só que dessa vez,
já tendo alcançado três gerações: a ausência da mãe. Como mostra o genograma, tanto
Antonieta quanto Joana cresceu praticamente sem a presença dos dois pais. Após todo o
desenrolar da história e a fuga destas para a rua, o resultado disto foi à gravidez e
subsequente nascimento dos filhos, e desse modo, um novo núcleo foi constituído.
Segundo os relatos, estas crianças ficaram algum tempo com as mães, antes de terem
sido colocadas ou à guarda dos parentes ou dos abrigos.
Esta realidade é melhor compreendia tendo como parâmetro uma pesquisa
realizada por Rubin, Lauriat, Bassuk (1986), que tinha por objetivo descrever as
características de famílias moradoras de rua. Observou-se que 94% desses arranjos são
liderados por mulheres, 2/3 das mães desabrigadas com filhos não possuíam vínculos
fortes com outros familiares e ¼ relatou ter apenas os filhos como laço verdadeiramente
duradouro. Em média 71% desses sujeitos desenvolveram algum tipo de doença mental.
Apesar de o estudo ter sido realizado na década de 80 do século XX, permanece
atual para a compreensão da dimensão dos dois casos desta pesquisa, tendo em vista que
Antonieta e Joana enquadram-se nessa perspectiva: além de terem desenvolvido vícios
pelas drogas e a depressão de Antonieta, sabe-se de possuírem sérios problemas com os
familiares antes e principalmente depois da gravidez. Joana teve todos os seus filhos
colocados sob a guarda das primas e tias, com quem nunca teve uma boa relação com
algumas delas, como corrobora o genograma. Antonieta, por sua vez, foi veemente em
não entregar a guarda da segunda filha aos parentes próximos. Preteriu doá-la a outras
pessoas, como mostra os dados:
“Ai foi... Disseram que não dava, por que a Antonieta não queria que levassem
ela, ela quer que seja entregue a um casal, que ta ai, que quer adotar a criança,
têm condições, isso e aquilo..." (Caso Antonieta).
Além das intrigas culminarem em um maior afastamento por parte das duas
protagonistas dos seus arranjos familiares mais próximos, resultou também na precoce
separação das mães moradores de ruas com seus filhos. Tanto uma como a outra
perderam a guarda de todas as crianças que tiveram, o que reforça os resultados
encontrados por Crawford, Trotter, Hartshorn e Whitbeck (2011) que mostram que
cerca de apenas metade das mães desabrigadas possuem contato regular com sua prole e
1/5 nunca nem se quer viu seus filhos.
A perda da guarda das crianças por parte dessas mães, neste caso em específico,
não apenas representa uma causalidade da situação em que se encontram, porém,
apresenta outro fator que a própria família não se deu conta, a repetição de outro padrão
transgeracional: a ausência da mãe. Ambas as mulheres perderam contato com suas
genitoras em tenra idade, e suas filhas, mais cedo ainda. Em Joana, isso é visível a partir
do momento em que foi tomada às forças para ser cuidada pela sua avó, e o mesmo a
ocorreu com seus filhos. Com Antonieta, o caso foi um pouco mais complexo: o
primeiro filho foi-lhe tirado, enquanto que a segunda, praticamente doada. Por todas as
dores e perdas que sofrera e a incapacidade de ser corresponder ao ideal de uma boa
mãe, a mãe que foi praticamente abandonada quando criança também abandonou.
(COELHO, FILHO, MORSCH, LAMY, FERNANDES, 2011).
5. Conclusão
Este estudo apresenta dois casos que em primeiro momento podem vir a parecer
distintos, porém guardam singularidades e padrões que necessitam de melhor
compreensão. Não obstante, tanto as histórias de Antonieta quanto Joana colaboraram
para a conclusão de diversas pesquisas, no que diz respeito a pontos relacionados à
questão de gênero entre parentes e transmissão intergeracional. Todavia, o que se
salienta é não somente os conflitos familiares e as sucessivas perdas e frustrações aos
quais estes dois sujeitos foram submetidos. Aponta-se para a relação de eventos
aparentemente distintos que, porém, culminaram na desagregação das relações que estas
mulheres possuíam com a família. Assim, percebe-se que a conexão entre tais ocorridos
– a fuga do pai, a falta de contato com a mãe, a morte de uma sobrinha ou o uso de
drogas – não está na contiguidade que estas situações apresentam, mas sim, nas relações
que revelam e as dinâmicas intrapessoais que se mostram nas diversas gerações.
Nota-se, dessa maneira, que os percursos das duas protagonistas dessas estórias
obliteram para um caso muito específico da sociedade, contudo, possivelmente
recorrente e encontrado em outros ambientes: uma relação de cuidado criada pelo
cuidado negligente. Tem-se em vista, desse modo, como a sequência de eventos
desestabilizadores estruturaram tanto Antonieta quanto Joana para que se adequassem
ao convívio da rua. Pode-se inferir quão paradoxal tal afirmativa aparenta. Não
obstante, aponta-se para o fato de que dadas todas as perdas que tais pessoas sofreram, a
rua mostrou-se como atraente, na medida em que ofereceu um espaço o qual, pelo
menos ilusoriamente, não pode ser perdido – algo muito diferente da família. Afinal, a
pior das alternativas pode ser a única opção viável e mais ou menos confortável para
todos aqueles que experimentaram o quanto doloroso pode ser lidar com a falta de
carinho e afeto.
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Parecer do Orientador
O discente desenvolveu sua pesquisa de acordo com o tempo previsto. No desempenho
de seu trabalho executou de forma responsável segundo as recomendações éticas. O
discente já preparou dois artigos para ser enviado (um de revisão de literatura e outro
empírico). Considero o trabalho excelente por atender os critérios previstos no plano de
trabalho e pelo desempenho acadêmico.
Belém, 10 de agosto de 2015
Janari da Silva Pedroso