variaÇÃo e ensino de lÍngua materna:...
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Ao final desta aula, você deverá:
• ter consciência de que o preconceito linguístico é consequente da incompreensão de que a língua é, por natureza, heterogênea, variável;
• entender que a gramática tradicional é tida como o berço do preconceito linguístico;
• saber que norma padrão e norma culta não podem ser consideradas como sinônimas;
• compreender o papel da escola frente às variações e às mudanças linguísticas;
• reconhecer pressupostos básicos que caracterizam a chamada reeducação sociolinguística;
• perceber as contribuições da sociolinguística para o ensino de língua materna.
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VARIAÇÃO E ENSINO DE LÍNGUA MATERNA: IMPLICAÇÕES
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VOCÊ SABIA?
AULA 7VARIAÇÃO E ENSINO DE LÍNGUA MATERNA:
IMPLICAÇÕES
1 INTRODUÇÃO
Com os conteúdos das aulas anteriores, você já
aprendeu sobre um dos princípios que regem as línguas:
por natureza, toda língua é heterogênea, logo, variável. Viu
que, por meio da sociolinguística, é possível mostrar que a
heterogeneidade linguística está relacionada à heterogeneidade
social; que a variação não se constitui um “caos” linguístico,
como pressupõem aqueles que desconhecem o verdadeiro
funcionamento de uma língua. Também viu que, numa
perspectiva variacionista, é possível explicar as mudanças que
se processam no interior de uma língua. Portanto, você já deve
estar consciente de que a variação é realmente um princípio
inerente às línguas e que ela contribui para o processo de
mudança linguística; pressupostos estes considerados básicos
da disciplina que está estudando.
Diante dessa realidade, a questão agora é: como ensinar
a língua materna frente à variação e mudança linguísticas?
Esta é uma das perguntas que normalmente são feitas quando
se tem em vista o ensino tradicional de língua. Como você
sabe, em se tratando de língua, somos formados a “pensar”
que tudo aquilo que foge ao modelo idealizado de língua, a
chamada língua culta, se constitui em “erro”. Logo, aquele
falante que não faz uso da modalidade prestigiada pela escola
não é visto com “bons olhos”, gerando, assim, uma escala
de julgamentos e valores que vão caracterizar o chamado
preconceito linguístico. Portanto, nesta aula, vamos
refletir sobre as consequências sociais da variação linguística,
bem como ressaltar a necessidade de uma reeducação
sociolinguística no espaço escolar.
O preconceito linguístico, atitude que consiste em discriminar um fa-lante pelo modo de falar a sua lín-gua, é um dos temas mais debatidos na atualidade, por vários autores brasileiros. Entre eles, destaca-se Marcos Bagno, linguista que atua na Universidade de Brasília, e que já publicou várias obras que reite-ram a necessidade de uma educação linguística voltada para a inclusão social e pelo respeito à diversidade linguística do Brasil. Entre as suas obras, destacam-se: Preconceito lingüístico: o que é, como se faz (1999); Dramática da língua portu-guesa: tradição gramatical, mídia & exclusão social (2000); Norma lingüística (Org.) (2001); Lingüísti-ca da norma (Org.) (2002); Língua materna: letramento, variação & en-sino (Org.) (2002); A norma oculta: língua & poder na sociedade brasi-leira (2003); A língua de Eulália: no-vela sociolingüística (2008) (aquele livro que foi recomendado na aula 1); Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação lingüís-tica (2007); Não é errado falar as-sim? Em defesa do português brasi-leiro (2009). Para saber mais sobre o autor e ter acesso a alguns de seus textos, recomendo acessar o seu site: www.marcosbagno.com.br
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ATENÇÃO
2 VARIAÇÃO E PRECONCEITO LINGUÍSTICO
Você sabia que, de modo geral, do ponto de vista sociocultural,
variação linguística implica em erro, deficiência, estigmatização,
negligenciamento... enfim, preconceito linguístico? Que a diferença
linguística é vista, por muitos, como um “mal” a ser erradicado? Que a
escola, fonte primordial do letramento na nossa sociedade, é uma das
reprodutoras de desigualdades sociais? São fatos que, infelizmente,
ocorrem em nossa sociedade.
Que uma sociedade é regida por normas, você sabe! Normas
que refletem os diferentes domínios sociais. Por exemplo, aqueles que
caracterizam as relações de poder, os conflitos
sociais, as imposições de valores de determinados
grupos sobre outros, as distribuições de bens
materiais e culturais... e, por que não dizer, as
diferenças linguísticas. Que essas diferenças
refletem os grupos sociais, é verdade! Mas atenção!
Não é verdade que as diferenças se constituem
em “erro”, em deficiência. Infelizmente, não é
bem assim que a escola preconiza. A forma como
a língua é ensinada leva o aluno a acreditar que
as diferenças linguísticas, em particular aquelas
produzidas por falantes de origem rural, de classe
social baixa, com pouca ou nenhuma escolaridade,
de locais/regiões culturalmente desvalorizados
etc., constituem num “defeito”.
A propósito, você já deve ter ouvido alguém
criticar, ou mesmo você, uma pessoa que fale
pranta; bicicreta, pexi; trabaiá; istudá; preguntá;
cunzinhá; cumê; nós vai; nós foi; pega ele etc. Que absurdo! Como
soa mal! É um ignorante mesmo! Como pode falar desse jeito! E aquele
indivíduo que fala o chamado “R” caipira (retroflexo), que aparece em
toRta; impoRta; veRde; peRto... aquele que é do interioR de São
Paulo? cerRto? É caipira mesmo! E o mineiro, que fala nossinhora
(nossa senhora); tomei uma pincumel (pinga com mel); comprei um
kidicarne (quilo de carne); pega o midipipoca e o liditeiti (milho de
pipoca e o litro de leite); que trem doidimais (doido demais)! Tadin do
minerin, né! Economiza até nas palavras! É pão-duro mesmo!
Percebe que são julgamentos sociais? Você sabia que esse
tipo de julgamento ocorre em qualquer lugar do mundo, em qualquer
comunidade linguística? Em qualquer sociedade humana, há sempre
indivíduos que acreditam que seu modo de representar a língua é
Vale registrar que “nas sociedades modernas, os valores culturais associa-dos à norma lingüística de prestígio, considerada correta, apropriada e bela, são ainda mais arraigados e persistentes que outros, de natureza ética, moral e estética”. (BORTONI-RI-CARDO, 2006, p.13).
SAIBA MAIS
Stella Maris Bortoni-Ricardo, um dos nomes mais importantes da Sociolinguística no Brasil, tem procurado, por meio de seus vários trabalhos, enfatizar a contribuição da sociolinguística para o ensino de língua materna no Brasil. Nessa perspectiva, dois livros se destacam: Educação em língua materna: a sociolingüística na sala de aula (2004) e Nós cheguemu na escola, E AGORA? Sociolingüística & educação (2005). Para saber mais sobre a autora e suas obras, acesse o seu site: www.stellabortoni.com.br
Fonte: www.livrariasaraiva.com.br/
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mais “correto”, mais “bonito” do que o de outros que fazem parte
daquela comunidade. Ou que uma língua X é mais simples/inferior
do que outra... Você já deve ter ouvido afirmações do tipo: a língua
portuguesa é muito complexa, difícil, com muitas regras! E as
exceções, então!!! Ora, se a língua portuguesa é tão difícil, como é
que uma criança a aprende em dois ou três anos de vida?! Você nota
o equívoco desse tipo de avaliação?
A propósito, você sabe em que se baseiam essas avaliações
que são feitas a respeito das línguas? Conforme Alkmim (2001,
p.42), “podemos afirmar, com toda tranqüilidade, que os julgamentos
sociais ante a língua – ou melhor, as atitudes sociais – se baseiam
em critérios não lingüísticos: são julgamentos de natureza política e
social”. A autora completa:
A não aceitação da diferença é responsável por numerosos e nefastos preconceitos sociais e, neste aspecto, o preconceito lingüístico tem um efeito particularmente consensual quando se trata de questões lingüísticas: ficamos unanimemente chocados diante da palavra inadequada, da concordância verbal não realizada, do estilo impróprio à situação de fala. A intolerância lingüística é um dos comportamentos sociais mais facilmente observáveis, seja na mídia, nas relações sociais cotidianas, nos espaços institucionais etc. (p. 42).
Que o preconceito linguístico ocorre em nossa sociedade, é
fato! Rejeitar qualquer manifestação linguística diferente daquela
modalidade que a escola determina como padrão evidencia um tipo de
julgamento que impera em nossas gramáticas tradicionais há muito
tempo. Estamos falando aqui do que é “certo” e do que é “errado” na
língua.
A gramática tradicional, aquela que você conhece bem,
preconiza um modelo de “língua exemplar”, a língua regida pela
norma culta, que não admite todo e qualquer uso que escape
desse modelo idealizado. Portanto, você nota, claramente, que
esse modelo se constitui, ao mesmo tempo, da seleção de algumas
variantes, consideradas de prestígio, e da exclusão de todas as
formas alternativas. Nesse modelo, variação e mudança linguísticas
não têm vez. Consequentemente, abre-se um abismo social, pois
os usos linguísticos reais não correspondem ao que é preconizado
tradicionalmente.
Conforme Bagno (2007), esse abismo existe “porque a nossa
tradição gramatical se inspira em grande parte em determinados usos
(literários, antigos, lisboetas) do português de Portugal e despreza
SAIBA MAIS
“Todas as línguas são es-truturas de igual comple-xidade (...) não há diale-tos mais simples do que outros”. Com estas afirma-ções de Possenti (1998, p. 26, 28), podemos de-fender, com segurança, a ideia de que não é mais difícil aprender uma língua do que outra; quem co-nhece ou usa um dialeto X não é nem mais capaz nem mais incapaz do que quem conhece outro. Se alguém pensar diferente disso, não passa de preconceito e/ou ignorância!
Sírio Possenti, um dos mais renomados linguistas da atualidade, é autor do livro Por que (não) ensi-nar gramática na escola, o qual recomendo a você como leitura obrigatória para a sua formação.
PARA CONHECER
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ou condena as variantes mais freqüentemente empregadas pelos
brasileiros” (p. 94). Vamos a um exemplo prático!
Pense nas regras para as colocações pronominais: próclise,
mesóclise e ênclise. Pensou? Quantas regras!!! E quantas delas você
usa? Com certeza, uma ou outra. No geral, é a próclise (lembre-se
do poema de Oswald de Andrade: Dê-me um cigarro X Me dá um
cigarro). E a mesóclise? Afinal, será que você a conhece? E a ênclise?
Será que ela é realmente funcional?
Pense na seguinte situação: você se encontra num ponto de
ônibus ao lado de várias pessoas, entre elas uma velhinha. De repente,
um homem leva a bolsa dessa pobre mulher. Agora, imagine se ela
grita: PEGUEM-NO! Será que a sua colocação pronominal surtirá
efeito e alguém correrá para pegar o ladrão? Mas, e se ela gritar:
PEGA O LADRÃO! ou PEGA ELE! A situação será outra, concorda? Essa
é apenas uma das muitas situações que ilustram o abismo existente
entre o que é prescrito e o que, de fato, é usado. Mas de uma coisa
você pode ter certeza: a recomendação da ênclise, como em PEGUEM-
NO, pode não ser tão pragmática quanto nos outros casos. Ou seja,
PEGA O LADRÃO e PEGA ELE, gramaticalmente “erradas”, podem ser
mais eficientes do que aquela que é tida como “correta”.
A propósito do que seja “certo” e “errado” na língua, Scherre
(2005) afirma:
No dia-a-dia, por razões diversas, convivemos com estas noções como se fossem valores absolutos, portadores de verdades inerentes e, até, imutáveis. Esse sentimento toma uma dimensão fora do comum quando se trata de questões que envolvem a linguagem. De forma geral, as pessoas crêem que há uma língua estruturalmente mais certa do que outra, que há um dialeto mais certo do que outro ou que há uma variedade mais certa do que outra, e poucos percebem que as formas consideradas certas e/ou de prestígio são as que pertencem à língua, aos dialetos ou às variedades das pessoas ou grupos que detêm o poder econômico ou cultural. Mesmo pessoas que analisam de forma objetiva os fenômenos lingüísticos freqüentemente emitem enunciados que revelam esse tipo de crença. Uma das conseqüências dessa crença se reflete no preconceito lingüístico, que estigmatiza direta ou indiretamente as pessoas que não dominam formas lingüísticas consideradas certas por uma dada comunidade (p. 16-17).
Pelas palavras da autora, você nota que construções como
PEGA O LADRÃO e PEGA ELE são fortemente estigmatizadas porque
não representam o modelo idealizado de língua. Ora, mesmo não
representando tal modelo, não podemos considerá-la menos correta
PARA CONHECER
Maria Marta Pereira Scher-re é, também, uma das pes-quisadoras mais conhecidas da área da Sociolinguística, com inúmeros trabalhos so-bre variação. Um deles tem um título bastante sugestivo: DOA-SE lindos filhotes de poodle: variação lingüística, mídia e preconceito, publica-do pela Parábola, em 2005. Nele, a autora reflete sobre a língua portuguesa em uso e o preconceito linguístico. Na luta pela democracia linguística, argumenta sobre a necessida-de de “dar vez e voz a todas as falas”, entre elas, as que são erroneamente classificadas como erradas.
http://www.parabolaeditorial.com.br
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do que a outra forma, afinal, correto é tudo
o que está de acordo com as regras ou
princípios de um determinado grupo dentro
dos limites do próprio grupo. Ou seja, na
situação descrita acima, o correto pode não
ser PEGUEM-NO.
Para que você entenda mais sobre a
razão do discurso do “certo” e do “errado”,
característico da gramática tradicional, vamos
falar, na próxima seção, um pouco da sua
história. Como verá, é um discurso de
muitos séculos!
2.1 Gramática tradicional: o berço do preconceito linguístico
A gramática que você conhece hoje, conjunto de normas
que devem ser seguidas, surgiu, no mundo ocidental, por volta
do século III a.C, com o propósito “de criar um ‘padrão’ uniforme
e homogêneo que se erguesse acima das diferenças regionais e
sociais para se transformar num instrumento de unificação política e
cultural” (BAGNO, 2007, p. 63). Como você pode notar, uniformidade
e homogeneidade são os princípios básicos desse modelo instituído
como padrão. Nele, não há lugar para a heterogeneidade e a variação
linguísticas. Portanto, é visível a exclusão social das variedades que
não correspondem ao modelo unificador.
Segundo Bagno (2007, p. 67), a gramática tradicional é
um “produto intelectual de uma sociedade aristocrática, machista,
escravagista, oligárquica, fortemente hierarquizada” que adotou um
modelo de língua característico de um grupo restrito de falantes,
que são: “do sexo masculino; livres (não-escravos); membros da
elite cultural (letrados); cidadãos (eleitores e elegíveis); membros
da aristocracia política; detentores da riqueza econômica” (p.
68). Somente essas pessoas falavam bem a língua; logo, todas
as variedades regionais e sociais foram consideradas defeituosas,
corrompidas, feias etc.
Ainda sobre a variação, o autor completa:
Os primeiros gramáticos, comparando a língua escrita dos grandes escritores do passado e a língua falada espontânea, concluíram que a língua falada era caótica, sem regra, ilógica, e que somente a língua escrita literária
Figura: UAB/UESC
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merecia ser estudada, analisada e servir de base para o modelo do ‘bom uso’ do idioma [...] Comparando também a língua falada de seus contemporâneos e a língua escrita das grandes obras literárias do passado, eles concluíram que, com o tempo, a língua tinha se degenerado se corrompido e que era preciso preservá-la da ruína e da deterioração. Tinham, portanto, uma visão pessimista da mudança (p. 68).
Como você pode ver, nessa perspectiva, língua falada implica
em inferioridade; mudança significa degeneração, ruína, deterioração.
Percebe o preconceito linguístico explícito? Nota que, realmente, é a
gramática tradicional o berço da noção de “erro”?
Agora, o mais preocupante, é que, mesmo depois de muitos
séculos, o discurso do “certo” e do “errado” ainda continua vigorando
em nossas gramáticas, ou melhor, em nossa sociedade. Certamente,
você já ouviu correções do tipo: o certo é dizer nós e não, a gente;
cantar e não, cantá; de-me um cigarro e não, me dá um cigarro;
vendem-se casas e não, vende-se casas; assisti ao filme e não, o
filme; para eu fazer e não, para mim fazer; há uma pedra no meio do
caminho e não, tem uma pedra no meio do caminho... O que muitos
não sabem é que esses “erros” já fazem parte da gramática intuitiva
do falante do português brasileiro, que são inovações resultadas dos
usos diversos que os falantes fazem da sua língua. Como já afirmamos
acima, são construções tão corretas quanto aquelas que são tidas
verdadeiramente como corretas. São construções diferentes! Você
deve notar que, nessa perspectiva, diferenças linguísticas não são
julgadas como erros, são apenas formas ou estruturas que divergem
de um determinado padrão.
Infelizmente, essa verdade não é aceita por todos. Vale
destacar aqui o papel dos defensores intransigentes da norma
padrão tradicional, os chamados puristas, no trabalho de ampliação
do preconceito linguístico. Normalmente, essas pessoas ignoram os
avanços das pesquisas linguísticas e desprezam a relevância, por
exemplo, de uma disciplina como a sociolinguística, que muito tem
contribuído para a compreensão das variações e mudanças linguísticas,
bem como para o ensino de língua materna. Bagno (2007, p. 156)
apresenta um exemplo da reação tradicional à mudança e ao trabalho
dos cientistas da linguagem. Trata-se do famoso gramático Pasquale
Cipro Neto que, no Jornal O Globo de 1998, escreveu:
Alguns lingüistas talvez já estejam preparando suas baterias para me criticar, sob o argumento de que deve existir um motivo para que o brasileiro em geral não faça concordância de nada e o que importa é discutir o motivo
ATENÇÃO
Você pode questionar: mas o que seria erro então? Do ponto de vista linguístico, só existe erro se as for-mas ou construções não fazem parte de maneira sistemática de nenhuma das variantes de uma lín-gua. Estamos falando aqui de sequências do tipo: o menina; o meninos; meni-no o; casa a caiu etc. São construções que você não ouvirá nem mesmo de um falante que nunca frequen-tou uma escola.
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do erro, como se o motivo do erro justificasse o erro. Aliás, esse tipo de lingüista [...] adora dizer que em língua não existe erro, o que existe é a variação lingüística, o que importa é comunicar. Esses mesmos lingüistas perdem seu precioso tempo e a verba do contribuinte com teses mirabolantes, financiadas pelo dinheiro público, em que se descabelam para justificar por que o brasileiro diz ‘falta dez minuto’. Um argumento clássico é que ‘quando o sujeito vem depois do verbo o falante não o reconhece como tal e acaba colocando o verbo no singular’. Chique, não? nhenhenhém.
Percebe o descaso do gramático ao finalizar a sua fala? Assim
como ele, muitos outros também se exprimem dessa forma. Scherre
(2005), ao falar de variação e mídia, relata: “como representantes
legítimos da sociedade brasileira, os jornais brasileiros, de forma mais
ou menos explícita, apresentam situações diversas de preconceito
lingüístico” (p. 38).
Na sua investigação, a pesquisadora detecta em jornais, como
o Correio Brasiliense, um dos mais bem conceituados de Brasília,
vários casos de preconceito linguístico explícito. Em seções que
têm como foco a língua em uso, frases como estas são destacadas:
uma seção de olho nos atentados ao idioma; não dá para aceitar;
falar em nível aceitável de linguagem é exigência de civilidade;
empobreceu a linguagem; gafes no horário nobre; a concordância foi
nocauteada; estão assassinando a nossa língua; estão atropelando
a gramática... São frases resultantes de julgamentos extremamente
preconceituosos sobre falas reais de indivíduos de nossa sociedade.
Para a pesquisadora, um veículo como o jornal poderia prestar, de
forma cidadã, um grande serviço à comunidade. No entanto,
[...] ela presta um desserviço, porque reforça um dos aspectos mais sórdidos do ser humano, que é a divisão entre classes e a exclusão social, também por meio da língua que se usa [...] praticar preconceito lingüístico, explícito ou implícito, é, sem dúvida, atentar contra a cidadania (p. 89).
Como você vê, a autora fala em exclusão social. Pois bem,
esta é uma das consequências do discurso do “certo” e do ”errado”.
Se alguém condena ou exclui uma pessoa, por ter usado uma
modalidade que não a de prestígio, está praticando o preconceito
linguístico, como você pode perceber na ilustração abaixo:
PARA REFLETIR
Conforme Bagno, são muitas as declarações apocalípticas sobre a suposta decadência da língua portuguesa, uma visão que se desdobra ao longo de quase tre-zentos anos. Veja algu-mas delas:
● “Se não existissem livros compostos por frades, em que o tesouro está conser-vado, dentro em pouco po-díamos dizer: ora morreu a língua portuguesa, e não descansa em paz” (José Agostinho de Almeida (...), escritor português);● “(...) português – um idioma que de tão mal-tratado no dia-a-dia dos brasileiros precisa ser di-vulgado e explicado para os milhões que o têm como língua materna” (Mário Sa-bino (...) 1997);● “Não fique nenhuma dú-vida, o português do Brasil caminha para a degrada-ção total’ (Marcos de Cas-tro (...) 1998);● “Que língua falamos? A resposta veio das terras lu-sitanas. Falamos o caipirês. Sem nenhum compromisso com a gramática portugue-sa. Vale tudo (...)” (Dad Squarisi (...) 1996). (BAG-
NO 2007, p. 72).
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SAIBA MAIS
A propósito das noções de “certo” e ”errado”, Cagliari (1997, p. 82) afirma:
[...] são conceitos pouco ho-nestos que a sociedade usa para marcar os indivíduos e classes sociais pelos modos de falar e para revelar em que consideração os tem, se são pessoas que gozam de in-fluência ou ocupam posições de prestígio ou não, se exer-cem o poder instituído ou não etc. Essa atitude revela seus preconceitos, pois marca as diferenças lingüísticas com marcas de prestígio ou estig-mas. A escola, incorporando esse comportamento precon-ceituoso da sociedade em ge-ral, também rotula seus alu-nos pelos modos diferentes de falar [...]. A escola, como espelho da sociedade, não admite o diferente e prefere adotar só as noções de certo e errado, numa falsa visão da realidade.
Esse tipo de resposta dada pela professora manifesta,
explicitamente, o preconceito à forma “errada” do aluno. Para a
professora, falar pobrema é realmente um problema, pois revela
ignorância e falta de cultura. E mais ainda: esse aluno não sabe falar!
Quanta ingenuidade!!! Ele sabe falar, sim! E, se sabe falar, significa
que tem conhecimento suficiente para falar efetivamente a língua.
Portanto, se você ouvir alguém dizer “não sei falar a minha
língua” ou “a língua portuguesa é muito difícil”, precisa esclarecer
a essa pessoa que ela está se referindo não à língua propriamente
dita, mas à gramática normativa. Tal indivíduo pode não saber se
expressar usando as regras prescritas, mas, com certeza, ele sabe
muito bem uma língua. Se tal indivíduo também diz “falei errado”,
precisa também conscientizá-lo de que esse “erro” tem sentido apenas
num contexto específico. É dessa forma que podemos desmistificar
as noções do “certo” e do “errado” no que diz respeito aos usos da
língua. Como você viu, são noções que imperam, há muitos séculos,
em nossas gramáticas.
Diante do que foi exposto, você pode questionar: como fica a
escola? afinal, é seu papel ensinar sobre língua? Com certeza! Mas
não é e não pode ser da forma que tem sido feito. Ela deve ensinar,
sim, a chamada norma culta do português, mas jamais ignorar as
outras modalidades dessa língua. Sobre isso, Bortoni-Ricardo (2005)
afirma:A escola não pode ignorar as diferenças sociolingüísticas. Os professores e, por meio deles, os alunos têm que estar bem conscientes de que existem duas ou mais maneiras de dizer a mesma coisa. E mais, que essas formas alternativas servem a propósitos distintos e são recebidas de maneira diferenciada pela sociedade. Algumas
Figu
ra:
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conferem prestígio ao falante, aumentando credibilidade e o poder de persuasão; outras contribuem para formar-lhe uma imagem negativa, diminuindo-lhe as oportunidades. Há que se ter em conta que essas reações dependem das circunstâncias que cercam a interação. Os alunos que chegam à escola falando ‘nós cheguemu’, ‘abrido’ e ‘ele drome’, por exemplo, têm que ser respeitados e valorizadas as suas peculiaridades lingüístico-culturais, mas têm o direito inalienável de aprender as variantes de prestígio dessas expressões. Não lhes pode negar esse conhecimento, sob pena de se fecharem para eles as portas, já estreitas, da ascensão social. O caminho para uma democracia é a distribuição justa de bens culturais, entre os quais a língua é o mais importante (p. 15).
Segundo a autora, questões desse tipo precisam ser mais
discutidas no âmbito educacional, visando a implantação de um
estado democrático, compromissado com a formação plena dos
indivíduos e contra toda forma de exclusão social pela linguagem. A
pergunta que surge é: como fazer isso? Por meio de uma reeducação
sociolinguística, como verá mais adiante. Antes, vamos falar um pouco
sobre como a “norma” é vista pelas gramáticas e pelos linguistas.
2.2 Norma padrão e norma culta aos “olhos” da gramática tradicional e da linguística
Como você está vendo, a escola, por meio da gramática
normativa, prescreve o uso da norma culta, ou melhor, a chamada
norma padrão da língua. E que padrão é esse? Como ele foi instituído?
Motivado por critérios políticos e ideológicos, esse modelo
padrão surgiu da necessidade de instituir uma língua única para
receber o título de língua oficial de uma determinada nação. Ele se
constituiu a partir da seleção de variantes consideradas de prestígio,
bem como da exclusão daquelas formas que não correspondiam a tal
padrão.
Uma vez estabelecido tal modelo, ele “vai ser objeto de um
grande investimento (...) vai precisar atender todas as exigências
de uma língua oficial, de uma língua literária, de uma língua de
ensino, de uma língua que será veículo da ciência, de uma língua
institucionalizada” (BAGNO, 2007, p. 89). Para que isso ocorra, será
preciso então:
● criar um modo único de escrever essa língua – daí a necessidade de uma ortografia oficial, que é uma lei promulgada, em todos os países, pelo poder central;
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● catalogar o repertório lexical dessa língua – origem dos dicionários, que se interessam tradicionalmente por listar e definir as palavras que pertencem às variedades de maior prestígio social e cultural;● criar novos vocábulos (sobretudo técnicos e científicos), para que a língua se torne veículo de uma cultura erudita, acadêmica;● estabelecer as regras de uso ‘correto’ da língua – origem das gramáticas normativas, que descrevem e prescrevem os modos de usar a língua mais próximos da tradição literária e das variedades de prestígio;● criar instituições que divulguem e preservem essa língua padronizada – função primordial da escola, dentro de uma visão tradicional de ensino de língua, das academias de língua e de outras instituições (BAGNO, 2007, p. 90).
Esse modelo corresponde ao padrão culto da língua. Portanto,
tradicionalmente, norma padrão e norma culta são vistas como
sinônimas. Todavia, alguns linguistas chamam a atenção para o
equívoco que se instaurou a partir dessa visão. Veja o que diz Bagno
(2007):
A norma-padrão não faz parte da língua, não corresponde a nenhum uso real da língua, constituindo-se muito mais como um modelo, uma entidade abstrata, um discurso sobre a língua, uma ideologia lingüística, que exerce evidentemente um grande poder simbólico sobre o imaginário dos falantes em geral, mas principalmente sobre os falantes urbanos mais escolarizados (p. 106).
Na visão desse autor, nesse modelo ideal não há espaço para
os usos reais da língua. E usos reais seriam todas as formas de
representação de uma língua, incluindo aí as variantes prestigiadas
(norma culta) e as estigmatizadas (norma vernácula popular). O
autor chama a atenção para o termo “norma culta” e questiona: “por
que chamar de culto apenas o que vem das camadas privilegiadas
da população? E por que opor ‘culto’ a ‘popular’, como se o povo não
tivesse cultura e como se os falantes ‘cultos’ não fizessem parte do
povo?” (p. 104).
Uma resposta para esse tipo de questionamento é fornecida
por Faraco (2002), em seu texto “Norma-padrão brasileira:
desembaraçando alguns nós”:
Há na designação norma culta um emaranhado de pressupostos nem sempre claramente discerníveis. O qualificativo ‘culto’, por exemplo, tomado em sentido absoluto pode sugerir que esta norma se opõe a normas ‘incultas’, que seriam faladas por grupos desprovidos de
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cultura. Tal perspectiva está, muitas vezes, presente no universo conceitual e axiológico dos falantes da norma culta, como fica evidenciado pelos julgamentos que costumam fazer dos falantes de outras normas, dizendo que estes ‘não sabem falar’, ’falam mal’, ’falam errado’, ‘são incultos’, ‘são ignorantes’ etc.Contudo, não há grupo humano sem cultura, como bem demonstram os estudos antropológicos. Por isso, é preciso trabalhar criticamente o sentido do qualificativo culta, apontando seu efetivo limite: ele diz respeito especificamente a uma certa dimensão da cultura, isto é, à cultura escrita. Assim, a expressão norma culta deve ser entendida como designando a norma lingüística praticada, em determinadas situações (aquelas que envolvem certo grau de formalidade), por aqueles grupos sociais mais diretamente relacionados com a cultura escrita, em especial por aquela legitimada historicamente pelos grupos que controlam o poder social (p. 39-40).
Mesmo sendo essa norma culta usada por um grupo específico,
é preciso lembrar que ela também está em contato com outras normas
sociais, sofrendo influências e participando, inclusive, dos processos
de mudanças. Vale destacar, aqui, casos de variações linguísticas
registradas em situações de escritas monitoradas, por exemplo,
reveladas por Bagno (2000), (2007) e Scherre (2005). São casos
que provam a influência da língua falada sobre a língua escrita; ou
seja, revelam que pessoas cultas estão usando, também, formas e
estruturas que, antes, faziam parte do universo linguístico de pessoas
“não-cultas”.
Como você pode ver, a discussão gira em torno da natureza
polarizada da realidade sociolinguística de uma língua. De um lado,
estão aqueles que defendem um português de padrão-culto; de outro,
um português que é usado pela maioria dos brasileiros. Sobre essa
divisão, autores como Perini (2005), Bagno (2007), Mattos e Silva
(2004) e Lucchesi (2002) defendem diferentes propostas, porém,
todas com um foco em comum: a realidade linguística brasileira é
constituída por diferentes sistemas.
Perini, em seu texto “As duas línguas do Brasil: qual é mesmo
a língua que falamos” sugere uma divisão entre a língua falada
(vernáculo brasileiro) e a língua escrita (português). Segundo o autor,
“o português e o vernáculo são, é claro, línguas muito parecidas. Mas
não são em absoluto idênticas” (p. 36). Mattos e Silva, em seu livro
“o português são dois: novas fronteiras, velhos problemas...”, discute
sobre o multilinguismo brasileiro e afirma que “o português no Brasil
sempre foi (...) mais de um” (p. 131). No caso, a autora se refere
à coexistência de diferentes sistemas que caracterizam o português
Conforme o Aurélio, axio-lógico (Adj. Filos.) signi-fica: 1. Concernente à, ou que constitui uma axiolo-gia; 2. Concernente a, ou que constitui um valor.
PARA CONHECER
O texto de Mário A. Perini está no seu livro Sofrendo a gramática, no qual o autor apresenta, na forma de ensaios, várias questões referentes à linguagem/língua/ gramática. Numa linguagem clara, com tí-tulos bastante instigantes, o autor promove uma dis-cussão sobre a necessidade de uma nova postura dos professores em relação ao ensino de gramática, par-ticularmente. Vale a pena lê-lo!!! Recomendo-o como uma leitura complementar. Também instigante é o livro de Rosa Virgínia Mattos e Silva: “O português são dois...” Novas fron-teiras, velhos problemas. Fazendo alusão ao famoso poema de Carlos Drum-mond de Andrade, Aula de português, a autora discute sobre o ensino de portu-guês do Brasil; diversidade linguística; variação e mu-dança; entre outras ques-tões.
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174 Módulo 2 I Volume 5 EAD
Variação e ensino de língua materna: implicações
ensinado nas escolas e o que é falado por grande parte da nação
brasileira.
Lucchesi e Bagno, por sua vez, propõem uma análise tripartida.
O primeiro defende os seguintes termos: norma-padrão, norma culta e
norma popular. Para ele, norma culta seria “constituída pelos padrões
de comportamento lingüísticos dos cidadãos brasileiros que têm
formação escolar (...) e é tributária, enquanto norma lingüística, dos
modelos transmitidos ao longo dos séculos (...)”. Já a norma popular
“se define pelos padrões de comportamento lingüístico da grande
maioria da população alijada de seus direitos elementares e mantida
na exclusão e na bastardia social” (LUCCHESI, 2002, p. 87). Bagno,
por sua vez, substitui “norma culta” por variedades prestigiadas e
“norma popular” ou “vernácula”, por variedades estigmatizadas,
“sobre as quais se impõe um modelo idealizado e ideologizado de
‘língua certa’, a norma padrão” (p. 117).
O que essas divisões sugerem é que não podemos encarar
a língua portuguesa como um sistema homogêneo, modelado
por um único e exclusivo padrão. Com elas, é possível desfazer o
mito da unidade do português brasileiro e encarar outros padrões
que caracterizam a realidade linguística dessa língua. Como afirma
Lucchesi (2002, p. 89), é preciso “propor uma atualização da norma
padrão com base nos padrões reais de uso que verificamos nas
normas lingüísticas brasileiras, condição necessária para a verdadeira
democratização do ensino da língua no país”. Como você verá, a
seguir, esse é um dos pressupostos que regem a chamada reeducação
sociolinguística.
3 A NECESSIDADE DA REEDUCAÇÃO SOCIOLINGUÍSTICA
Certamente, a primeira pergunta é: o que é reeducação
sociolinguística? Para respondê-la, vamos recorrer a Bagno (2007, p.
86): “é uma proposta de pedagogia da variação lingüística que leva
em conta as conquistas das ciências da linguagem, mas, também,
as dinâmicas sociais e culturais em que a língua está envolvida”.
Reeducação significa uma nova educação,
[...] uma reorganização dos saberes lingüísticos que não tem nada a ver com ‘correção’ nem com substituição de um modo de falar por outro – ao contrário, a reeducação sociolingüística tem que partir daquilo que a pessoa já sabe e sabe bem: falar a sua língua materna com desenvoltura e eficiência (p. 85).
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Para que essa pedagogia surta efeito, é necessária, portanto, a
reeducação do próprio professor. Para tanto, ele precisa se conscientizar
de várias coisas. Entre elas, destacamos as necessidades de:
• Ter uma concepção clara do que seja uma língua e do que seja
um aluno (ou mesmo qualquer indivíduo). Não se pode pensar em
língua a partir do modelo estabelecido como padrão-culto. Língua
não se resume a um modelo específico. Língua é constituída por
vários modelos, que podem ser aprendidos pelos falantes em
diferentes circunstâncias. Não se pode pensar que o indivíduo que
chega à escola não sabe ainda uma língua. Se ele se comunica,
prova que realmente tem conhecimento de língua, de uma
gramática. Mas, atenção! Não estamos necessariamente falando
de gramática normativa. Estamos nos referindo à gramática
internalizada, aquela que o falante adquire naturalmente.
• Desmistificar a ideia de que gramática normativa se constitui
num conjunto de verdades absolutas sobre a língua. O que temos
ali é apenas uma descrição de uma das inúmeras manifestações
possíveis da língua escrita.
• Ter em mente que língua não é ensinada. Na verdade, aprende-se
uma língua. Para entender melhor isso, é só pensar nas crianças!
Por volta dos três anos de idade, a criança fala efetivamente a
sua língua. Não se ensina uma criança a falar uma língua a partir
de descrições do tipo: tal palavra é verbo, adjetivo, substantivo...
essa é uma sentença interrogativa, negativa... essa é uma
sentença coordenada, subordinada... Já pensou se fosse assim?!!!
• Reconhecer que o que o aluno já sabe não precisa ser
ensinado. Estamos nos referindo aqui a muito do que se ensina
tradicionalmente. Por exemplo, se o aluno já produz orações
diversas, por que perder tanto tempo ensinado sobre os tipos de
orações? Se ele faz uso, é porque já as conhece. Se ele aplica
corretamente as regras da concordância, por que então ensiná-
las? Deve-se ensinar se ele realmente não sabe.
• Fazer o aluno reconhecer as suas competências linguística e
comunicativa, promovendo a auto-estima linguística dos alunos,
dizendo-lhes que eles já sabem o que é uma língua e que a escola
vai ajudar a desenvolver ainda mais esse saber. Por exemplo, se ele
SAIBA MAIS
Vale destacar, aqui, as palavras de Mattos e Sil-va (2004, p. 27):
Qualquer indivíduo normal que entre na escola para ser alfabetizado em sua língua materna já é senhor de sua língua, na modalidade oral própria a sua comunidade de fala. Admitido esse prin-cípio, qualquer trabalho de ensino da língua materna se constitui em um processo de enriquecimento do potencial lingüístico do falante nativo, não se perdendo de vista a multiplicidade de comunida-des de fala que compõe o universo de qualquer língua natural, multiplicidade que variará, a depender das ca-racterísticas de cada uma, enquanto língua histórica, isto é, língua inserida tanto sincrônica quanto diacronica-mente no contexto histórico em que se constitui e em que se constituiu.
SAIBA MAIS
Sobre as gramáticas normativas, Bagno (2007, p. 199) lembra:
Na nossa cultura, existe a idéia de que as gramáticas normativas explicam ‘a’ língua, ‘o’ português, mas isso está muitíssimo longe de ser verdade. Basta ver os exemplos dado nessas obras; eles são sempre retirados de obras literá-rias, sobretudo de autores consagrados e já mortos. Isso revela que as gramá-ticas normativas querem ser (mas nem isso elas conseguem plenamente) uma descrição-prescrição dos usos da língua literá-ria.
Linguística II: sociolinguística
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Variação e ensino de língua materna: implicações
não sabe usar a língua em situações que exijam monitoração,
deve-se ensiná-lo, permitindo-lhe o aprimoramento dos
recursos linguístico-comunicativos necessários para o bom
desempenho nas mais diferentes situações.
• Entender que a variação e a mudança são princípios
inerentes às línguas. Que não existe comunidade linguística
na qual todos falem da mesma forma. Que as variantes
produzidas pelos indivíduos podem ser resultantes das
influências de diferentes fatores. Estamos falando aqui
dos fatores linguísticos e extralinguísticos. Que as línguas
mudam, e que a variação é responsável por isso. É preciso
explicar o fenômeno que se apresenta em variação na língua
e demonstrar a situação adequada ao uso de cada uma das
variantes da regra.
• Promover o reconhecimento da diversidade linguística
como uma riqueza da nossa cultura, da nossa sociedade,
trabalhando no sentido de reconhecer a variação como um fato
linguístico e não como um “caos” linguístico. Há necessidade
de entender que negar o que é caracteristicamente nosso
na língua é negar a nossa própria identidade cultural. É
preciso construir uma atitude de simpatia frente às formas
variantes, uma atitude de investigação e de observação
dinâmica da linguagem.
• Conscientizar o aluno da escala de valores que existe na sociedade
com relação aos usos da língua. Mas, atenção! Ter consciência não
significa aceitar a situação de discriminação nem submeter-
se a ela! Cabe à escola ensinar não apenas uma modalidade
da língua, o padrão-culto, mas também reconhecer a
legitimidade das outras variedades. Ensinando outras formas
de falar e de escrever, a escola estará contribuindo para a
ampliação do repertório comunicativo do aluno.
• Refletir com o aluno sobre os preconceitos que vigoram em
nossa sociedade, entre eles, o linguístico, conscientizando-o
da necessidade de destruir mitos do tipo: “certo” e “errado”.
É preciso mostrar que a noção de “erro” nada tem de
linguística, é apenas resultante dos valores sociais atribuídos
pelos falantes. Que, do ponto de vista linguístico, não existe
“erro”, existem diferenças.
SAIBA MAIS
Como você já estudou em disci-plina anterior, o conceito de com-petência linguística foi apre-sentado por Chomsky. Segundo o autor, consiste no conhecimento internalizado que o falante tem das regras para a formação das sentenças. Dell Hymes (1966), sociolinguista norte-americano, argumentou que o conceito pro-posto por Chomsky não dava con-ta das questões da variação da língua. Propôs, então, um novo conceito, o de competência co-municativa, que abarca tanto as regras de formação das sentenças quanto as normas sociais e cultu-rais que definem a adequação da fala. Conforme Bortoni-Ricardo (2004, p. 73),
[...] a principal novidade na proposta de Dell Hymes foi, portanto, ter inclu-ído a noção de ‘adequação’ no âmbito da competência. Quando faz uso da língua, o falante não só aplica as re-gras para obter sentenças bem forma-das, mas também faz uso de normas de adequação definidas em sua cultu-ra. São essas normas que lhe dizem quando e como monitorar seu estilo. Em situações que exijam mais formali-dade, porque está diante de um inter-locutor desconhecido ou que mereça grande consideração, ou porque o as-sunto exige um tratamento formação, o falante vai selecionar um estilo mais monitorado; em situações de descon-tração, em seus interlocutores sejam pessoas que ele ama e em que confia, o falante vai sentir-se desobrigado de proceder a uma vigilante monitoração e pode usar estilos mais coloquiais. Em todos esses processos, ele tem sempre de levar em conta o papel social que está desempenhando.
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SAIBA MAIS
• Trabalhar para a inserção plena do aluno na cultura letrada, por
meio das práticas da escrita e da leitura, bem como promover o
conhecimento ativo das convenções dos muitos gêneros textuais
que circulam na sociedade, sobretudo dos gêneros escritos mais
monitorados.
• Explicar ao aluno que o falante culto é exatamente aquele que
dispõe da consciência da prática da variação da linguagem e
de sua adequação às diversas situações de interação. Que, no
desempenho dos papéis sociais, ele circula por diferentes espaços,
que poderão exigir adequações e certos usos especializados da
língua.
• Ressaltar que o aprimoramento da competência comunicativa
do aluno se dá espontaneamente no convívio social. Mas, para
o desempenho de algumas tarefas especializadas, em particular
aquelas que estão relacionadas às práticas sociais de letramento,
ele precisará desenvolver recursos comunicativos através de uma
aprendizagem escolar.
O que acabamos de expor aqui são apenas alguns dos princípios
que fundamentam a reeducação sociolinguística. Tendo consciência
dessa necessidade, revendo os seus conceitos e os seus valores,
o professor pode e deve ser um transformador do espaço-tempo
pedagógico, contribuindo para desmistificar muitas “verdades” sobre
a língua portuguesa e seu funcionamento, bem como para combater
o preconceito linguístico e a toda forma de discriminação social.
Você, que está sendo formado para trabalhar com língua
portuguesa, está disposto a encarar o desafio? Então, já é hora de
“arregaçar as mangas” e começar a refletir sobre o que precisa ser
mudado!
Cabe aqui lembrar o que diz Bortoni-Ricardo (2004, p. 33-34):
Em toda comunidade de fala onde convivem falantes de diversas variedades re-gionais, como é o caso das grandes metrópoles brasi-leiras, os falantes que são detentores de maior poder – e por isso gozam de mais prestígio – transferem esse prestígio para a variedade lingüística que falam. Assim, as variedades faladas pelos grupos de maior poder políti-co e econômico passam a ser vistas como variedades mais bonitas e até mais corretas. Mas essas variedades, que ganham prestígio porque são faladas por grupos de maior poder, nada têm de intrinse-camente superior às demais. O prestígio que adquirem é mero resultado de fatores políticos e econômicos.
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Variação e ensino de língua materna: implicações
ATIVIDADES
1 Você deverá ler o livro de Marcos Bagno, Preconceito lingüístico: o que é, como se faz, e fazer um resumo esquemático sobre os mitos infundados que favorecem o preconceito linguístico em nossa sociedade.
2 Com base no poema de Carlos Drummond de Andrade, Aula de português, procure elaborar um pequeno texto, refletindo sobre o ensino de língua portuguesa, particularmente sobre a polarização retratada pelo poeta.
A linguagemna ponta da língua,
tão fácil de falare de entender.
A linguagemna superfície estrelada de letras,
sabe lá o que ela quer dizer?
Professor Carlos Góis, ele é quem sabe,e vai desmatando
o amazonas de minha ignorância.Figuras de gramática, esquipáticas,
atropelam-me, aturdem-me, seqüestram-me.
Já esqueci a língua que comia,em que pedia para ir lá fora,
em que levava e dava pontapé,a língua, breve língua entrecortada
do namoro com a prima.
O português são dois; o outro mistério.
3 Como afirma Possenti (1998), falamos mais corretamente do que pensamos. É relativamente pequena a diferença entre o que um aluno já conhece da sua língua e aquilo que lhe falta para ser um usuário semelhante ao que a escola imagina. Muitos dos “erros” são, em geral, hipóteses significativas sobre o funcionamento de uma língua. Para você refletir sobre isso, considere as produções abaixo:
a. kaza, vazo, kaxorro, xá, pratu, leiti, omeim e ovu (escritas por um aluno numa dessas atividades chamadas de “ditado”);
b. Nós vai comprá dois doce pra nós comê na hora do lanche (dita por um aluno num determinado momento de uma aula);
c. Eu fazi o dever de casa (dita também por um aluno, quando o professor lhe perguntou se havia feito o dever de casa);
PARA CONHECER
Carlos Góis (1881-1934), filólogo-autor de obras gra-maticais empregadas nas escolas brasileiras no início do século passado.
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d. “Cabrita” é o diminutivo de “cabra” e o plural de boi é “boiada” (dita por um aluno quando o professor falava sobre flexão de grau e de número);
e. “Talento” significa “andar devagar” e “cálice”, “a ordem para ficar calado” (resposta dada por um aluno).
Na sua reflexão, você deverá considerar: que tipo de conhecimento linguístico esses alunos demonstram ter? Há algum tipo de erro? Escolha uma das situações para justificar a sua resposta. Também procure esclarecer como o professor deve proceder diante da situação?
4 Como você viu, a proposta da reeducação sociolinguística visa promover, entre outras coisas, um ensino de língua mais democratizado. Procure, então, explicar, e exemplificar, como o professor deve dar conta das variações e das mudanças que se implementam numa língua como a nossa.
LEITURA RECOMENDADA
Para complementar esta nossa aula, recomendo a leitura do artigo Variação linguística e ensino de gramática, de Görski e Coelho (2009), ambas professoras do Programa de Pós-graduação
em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina. Para ter acesso, basta ir ao seguinte endereço: http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/workingpapers/article/view/10749
RESUMINDO
Nesta aula, você viu que a sociolinguística tem contribuído para reflexões sobre:
● O preconceito linguístico, instaurado a partir da gramática tradicional.● As normas linguísticas, particularmente norma padrão e culta, que não
devem ser consideradas como sinônimas.● O papel da escola frente às variações e às mudanças.● A reeducação sociolinguística, uma prática necessária no âmbito escolar
brasileiro.
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Variação e ensino de língua materna: implicações
RE
FE
RÊ
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BAGNO, M. Dramática da língua portuguesa: tradição gramatical, mídia & exclusão social. São Paulo: Edições Loyola, 2000.
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AGNO, M. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação lingüística. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.
BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolingüística na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.
BORTONI-RICARDO, S. M. Nos cheguemu na escola, E AGORA? Sociolinguística & educação. 2. ed. São Paulo: Parábola Editorial: 2005.
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Suas anotações
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