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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE LETRAS E ARTES FACULDADE DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS VERNÁCULAS A REDENÇÃO MARCIANA: ECOS DA FILOSOFIA DE SØREN KIERKEGAARD NO ROMANCE O ENCONTRO MARCADO, DE FERNANDO SABINO Gustavo Rocha Ferreira e Silva Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira). Orientador: Prof. Doutor Adauri Silva Bastos Rio de Janeiro Julho de 2019

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Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO ......Fernando Sabino’s writing, its similarities to the chronical and journalistic style, the role of the dialogues, the narrator’s

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE LETRAS E ARTES

FACULDADE DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS VERNÁCULAS

A REDENÇÃO MARCIANA: ECOS DA FILOSOFIA DE SØREN

KIERKEGAARD NO ROMANCE O ENCONTRO MARCADO, DE FERNANDO

SABINO

Gustavo Rocha Ferreira e Silva

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas da Universidade Federal do

Rio de Janeiro como quesito para a

obtenção do título de Mestre em Letras

Vernáculas (Literatura Brasileira).

Orientador: Prof. Doutor Adauri Silva

Bastos

Rio de Janeiro

Julho de 2019

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO ......Fernando Sabino’s writing, its similarities to the chronical and journalistic style, the role of the dialogues, the narrator’s

A redenção marciana: ecos da filosofia de Søren Kierkegaard no romance

O encontro marcado, de Fernando Sabino

Orientador: Professor Doutor Adauri Silva Bastos

Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários para a obtenção do título de mestre em Letras Vernáculas

(Literatura Brasileira).

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________

Professor Doutor Adauri Silva Bastos ― Orientador ― UFRJ

__________________________________________________

Professora Doutora Maria Lucia Guimarães de Faria ― UFRJ

__________________________________________________

Professor Doutor Karl Erik Schøllhammer ― PUC-Rio

__________________________________________________

Professora Doutora Anélia Montechiari Pietrani ― suplente ―

UFRJ

__________________________________________________

Professor Doutor Victor Manuel Ramos Lemus ― suplente ―

UFRJ

Rio de Janeiro

Julho de 2019

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO ......Fernando Sabino’s writing, its similarities to the chronical and journalistic style, the role of the dialogues, the narrator’s

Silva, Gustavo Rocha Ferreira e.

A redenção marciana: ecos da filosofia de Søren

Kierkegaard no romance O encontro marcado, de Fernando

Sabino / Gustavo Rocha Ferreira e Silva. - Rio de Janeiro: UFRJ

/ FL, 2019. xi, 132f.: 29,7 cm.

Orientador: Adauri Silva Bastos

Dissertação (mestrado) – UFRJ / Faculdade de Letras /

Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas, 2019.

Referências Bibliográficas: f. 121-125.

1. Literatura. 2. Filosofia. I. Bastos, Adauri Silva. II.

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-

graduação em Letras Vernáculas. III. Título.

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Sumário

Introdução..........................................................................................................................1

1. O encontro marcado: aspectos linguísticos e estruturais

1.1. Características da escrita de Fernando Sabino em O encontro marcado.................. 11

1.1.2. A proximidade com a crônica e a escrita jornalística..............................................15

1.2. A função dos diálogos no romance............................................................................18

1.3. O narrador.................................................................................................................21

1.4. O romance como autobiografia: a confissão ficcional de Fernando Sabino...............27

2. Estádios existenciais: proximidades e distanciamentos entre Eduardo Marciano e Søren

Kierkegaard

2.1. O estádio estético.......................................................................................................36

2.1.1. A juventude de Eduardo Marciano: a fase estética..................................................38

2.2. O estádio ético...........................................................................................................43

2.2.1. Casamento e vocação literária: os retumbantes fracassos de Eduardo Marciano....46

2.3. O estádio religioso.....................................................................................................51

2.3.1. A fé de Eduardo Marciano: conflitos e redenção final............................................54

3. Angústia: proximidades e distanciamentos entre Eduardo Marciano e Søren

Kierkegaard

3.1. O conceito de angústia, segundo Kierkegaard...........................................................61

3.2. A angústia em O encontro marcado..........................................................................74

4. Desespero: proximidades e distanciamentos entre Eduardo Marciano e Søren

Kierkegaard

4.1. O desespero, segundo Kierkegaard...........................................................................86

4.2. O desespero em O encontro marcado........................................................................96

5. Conclusão...................................................................................................................111

Referências....................................................................................................................121

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Resumo

A REDENÇÃO MARCIANA: ECOS DA FILOSOFIA DE SØREN KIERKEGAARD

NO ROMANCE O ENCONTRO MARCADO, DE FERNANDO SABINO

Gustavo Rocha Ferreira e Silva

Orientador: Prof. Doutor Adauri Silva Bastos

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação

em Letras Vernáculas, Centro de Letras e Artes, Faculdade de Letras, da Universidade

Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do

título de Mestre em Literatura Brasileira.

O romance O encontro marcado (1956) narra a trajetória de Eduardo Marciano.

A dissertação propõe uma leitura pendular da obra, colocando-a em diálogo com as

densas e complexas ideias de Søren Aabye Kierkegaard (1813-1855), filósofo tido como

precursor do que veio a ser a corrente do existencialismo.

A primeira seção se dedica à análise dos aspectos linguísticos e estruturais da

narrativa. São pormenorizadas as características da escrita de Fernando Sabino, sua

proximidade com a crônica e o estilo jornalístico, a função dos diálogos, o papel e a

natureza ambígua do narrador e o viés autobiográfico do romance. A segunda parte

destaca e delineia as proximidades e distanciamentos entre a trajetória do protagonista e

o conceito de estádios da existência de Søren Kierkegaard: estético, ético e religioso. A

interpretação é a de que Eduardo Marciano atravessa-os até o mergulho final na fé.

O mesmo se dá em relação à angústia, tema da terceira parte da dissertação. O

protagonista a vivencia, sim, mas de maneira própria, razoavelmente distinta daquela

concebida pelo pensador dinamarquês. Afinal, Eduardo não sofre a angústia derivada do

se saber livre para escolher um rumo para a própria vida. Sofre por não conseguir realizar

o projeto existencial traçado por si mesmo ao final de sua adolescência e início da fase

adulta. O terceiro capítulo, portanto, apresenta o conceito de angústia segundo Søren

Kierkegaard para sustentar a interpretação de que o protagonista a vivenciou, mas não

nestes exatos moldes.

Este distanciamento não se dá em relação ao desespero, tema do quarto e último

capítulo. Em linhas gerais, o pensador dinamarquês o define como o resultado de um

desequilíbrio entre as duas instâncias que configuram o indivíduo, isto é, a alma e o corpo,

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eterna e finita, respectivamente. Como se verá, é justamente este o caso do protagonista,

iludido que está com o fato de que pode significar a própria existência com base

unicamente no exercício da razão.

A trajetória do personagem Eduardo Marciano trava paralelos e distanciamentos

em relação aos conceitos que compõem o denso e intrincado pensamento do filósofo

dinamarquês. Portanto, a diretriz principal seguida pela dissertação consiste na

problematização do romance O encontro marcado à luz de Søren Kierkegaard.

Palavras-chave: O encontro marcado; Fernando Sabino; Søren Kierkegaard;

existencialismo; angústia; desespero.

Rio de Janeiro

Julho de 2019

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Abstract

MARCIANO’S REDEMPTION: ECHOES OF SØREN KIERKEGAARD’S

PHILOSOPHY ON THE NOVEL O ENCONTRO MARCADO, BY FERNANDO

SABINO

Gustavo Rocha Ferreira e Silva

Orientador: Prof. Doutor Adauri Silva Bastos

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação

em Letras Vernáculas, Centro de Letras e Artes, Faculdade de Letras, da Universidade

Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do

título de Mestre em Literatura Brasileira.

Written by Fernando Sabino and published in 1956, O encontro marcado presents

the life of Eduardo Marciano. This dissertation proposes a dialogue between the novel

and the deep and complex ideas of Søren Aabye Kierkegaard (1813-1855), Danish

philosopher considered the precursor of existentialism.

The first chapter is dedicated to the structural and linguistics aspects of the novel

itself. Fernando Sabino’s writing, its similarities to the chronical and journalistic style,

the role of the dialogues, the narrator’s ambiguous estence and the autobiographical bias

will be all scrutinized. The second one will highlight and analyse the meeting and

detachment points between the main protagonist’s journey and Søren Kierkegaard’s

concept of the three stages on life’s way: aesthetic, ethic and religious. According to this

dissertation, Eduardo Marciano goes through these three phases until his final redemption

to God.

The third chapter is about anguish. The main character suffers from it, but in a

different way compared to how Kierkegaard ideated it. After all, Eduardo does not

undergo anguish for realizing he is free to choose his own paths in life. He suffers because

he cannot fulfil his dream of becoming a great novelist. This chapter presents Søren

Kierkegaard’s concept of angst in order to support this claim.

Sabino and Kierkegaard agree when it comes to despair. According to the Danish

philosopher, it is the consequence of the unbalance between the two dimensions of the

self, soul and body, eternal and finite, respectively. That is exactly what happens to the

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protagonist, who naively thinks he can give meaning to his existence using only his

reasoning.

Eduardo Marciano’s journey has meeting and detachments points compared to all

the dense and complex thought system of Kierkegaard. Ultimately, this dissertation aims

to scrutinize the novel O encontro marcado in the light of the Danish philosopher.

Keywords: O encontro marcado; Fernando Sabino; Søren Kierkegaard;

existentialism; anguish; despair.

Rio de Janeiro

Julho de 2019

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Introdução

Escrito entre março de 1954 e julho de 1956, O encontro marcado é o livro mais

conhecido de Fernando Sabino (1923-2004). Narra a trajetória de Eduardo Marciano

desde o nascimento até meados da terceira década de vida. Esta pesquisa propõe uma

leitura pendular da obra, conectando-a às densas e complexas ideias de Søren Aabye

Kierkegaard (1813-1855), filósofo, teólogo e escritor dinamarquês tido como precursor

do que veio a ser a corrente do Existencialismo.

Eduardo Marciano, personagem principal de O encontro marcado, é um indivíduo

de inteligência precoce a ponto de ter aprendido a ler e a escrever praticamente sozinho.

O mergulho na literatura se dá já na infância, em Belo Horizonte, e é aprofundado com o

passar dos anos. Ao se aproximar do fim da adolescência e do início da fase adulta, o

protagonista se decide em definitivo pela carreira de romancista. Como relata o narrador,

“um livro de contos – os outros publicavam livros, por que ele próprio não podia publicar?

Tinha dois contos premiados em concursos – se foram premiados, deviam ser bons”

(2005, 43). O jovem passa a se considerar um “escolhido”, um indivíduo com destino

certo, cuja missão é se alçar ao rol dos grandes nomes da literatura, bem como a de

constituir família e seguir uma vida simples, harmoniosa e retilínea, como a de seu pai.

Acontece, no entanto, que Eduardo não contava com o fato de que alguns traços

de sua própria personalidade viriam a atuar justamente como obstáculos à concretização

deste projeto existencial. Entre eles, se destacam a pressa e a ganância de viver, bem como

o orgulho, o espírito competitivo e o racionalismo excessivo. O jovem não é capaz de

aguardar a passagem dos anos, isto é, não quer esperar a vinda gradativa das experiências

e vivências que poderiam lhe servir de fonte para sua produção literária. Cumpre etapas

de vida de maneira apressada. Exemplos são as decisões relativas à vocação profissional

e ao casamento e consequente mudança para o Rio de Janeiro. Eduardo tem dificuldade

de se convencer de que “era preciso ir devagar – saber envelhecer. O fruto que apanhava

ainda verde deixava apodrecer na mão” (2005, 143).

Além da mencionada pressa em cumprir etapas existenciais, o personagem é

portador de um orgulho exacerbado, notado por algumas pessoas próximas. Quando

criança, subitamente decide estudar até se tornar o primeiro aluno da sala. Logo que

alcança o objetivo, passa a não mais ver razão em todo o esforço empreendido, de modo

que “não sabia o que queria, e vida afora se faria cada vez mais infeliz, agindo como se

soubesse” (2005, 19).

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Quando adolescente, passa a treinar natação por ser uma modalidade individual,

em que não dependia de ninguém além de si mesmo. Como relata o narrador, “era uma

espécie de êxtase: fazer de simples prova de natação, a que ninguém o obrigava, uma

disputa em que parecia empenhar o destino, fazer da arrancada final uma luta contra o

cansaço, em que a vida parecia querer prolongar-se além de si mesma” (2005, 34). O que

o movia era a inabalável vontade de ser o primeiro, o melhor, de desbancar adversários,

de usufruir da glória advinda da vitória, de bater recordes, enfim, de superar a si mesmo

e sobrepujar a irrefreável marcha do tempo.

O amigo Hugo é um dos personagens que alerta o protagonista quanto ao perigo

destes traços de personalidade: “o orgulho de ser o primeiro – a vida, para você, é um

campeonato de natação. Sua desenvoltura, sua excitação mental, sua fidelidade a um

destino certo, tudo isso faz de você presa certa do demônio” (2005, 88). A “explicação

para tudo” e o senso prático de Eduardo, também apontados por Hugo, são reflexos não

só de seu orgulho com também de seu excessivo racionalismo. Estes são os combustíveis

que o levam a se acreditar capaz de constituir um código de conduta para si, baseado em

seu próprio juízo e discernimento. São também a origem e a explicação de seu excruciante

sofrimento existencial.

Afinal, como será visto, Eduardo falha retumbantemente no propósito de se tornar

escritor, de constituir uma família, de significar a própria existência e de viver de maneira

simples, comedida, harmoniosa e idônea, como seu pai. Não consegue nem mesmo iniciar

seu romance. O mais próximo que chega disso é com a produção de artigos justamente

sobre a técnica do romance, publicados em jornais. A partir de certo momento, estes lhe

“saíam penosos, difíceis: as ideias, sopradas de alguma parte de sua mente, não chegavam

a impressionar a consciência, não se traduziam em palavras e permaneciam difusas, feitas

em estados de espírito” (2005, 216).

Casa-se com Antonieta de maneira apressada, sem conhecê-la a fundo. Com isso,

visa legitimar, sob o signo do matrimônio, os impulsos sexuais que sentia pela moça. Visa

também cumprir o que julgava ser uma etapa imprescindível de uma vida simples e

retilínea. A relação inevitavelmente se enfraquece com o passar dos anos, também por

conta dos adultérios cometidos pelo protagonista. Eduardo sofre não só por ser incapaz

de cumprir com seu “destino certo”, isto é, com o projeto de vida que traçara quando

ainda muito jovem. Sofre sobretudo por não conseguir atribuir um sentido à própria

existência, preso que está à esfera terrena, temporal, passageira, orgânica, isto é, distante

da dimensão divina, absoluta e criadora, origem e destino de sua alma. Acredita que basta

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a razão para significar sua trajetória existencial. No entanto, as verdades humanas são

voláteis, datadas, históricas, relativizáveis e insuficientes para conter os terremotos

anímicos que podem acometer o indivíduo.

O objeto dessa análise é justamente a trajetória existencial de Eduardo Marciano.

A hipótese fundacional é a de que é possível construir uma análise interdisciplinar e

comparatista do romance O encontro marcado, tendo, como segundo polo, parte das

ideias de Søren Aabye Kierkegaard. Vale lembrar, inclusive, que Fernando Sabino atribui

ao pensador dinamarquês “um estilo literário admirável que sempre me fascinou” (2005,

294). O próprio afirma que leu “em português, francês ou inglês com semelhante

deslumbramento toda obra sua que me caísse nas mãos” (2005, 294).

A referida hipótese irá se desdobrar em três. A primeira é relativa aos estádios

existenciais. Como será argumentado em momento oportuno, à sua maneira Eduardo

atravessa as fases estética, ética e religiosa, três dos principais conceitos da vasta

produção filosófica do pensador dinamarquês. A segunda é relativa à angústia do

personagem. A interpretação que se propõe é a de que no romance há mais

distanciamentos do que paralelos, já que Eduardo a vivencia de modo distinto daquele

definido por Søren Kierkegaard. A terceira e última é a de que ambos voltam a se espelhar

em se tratando do desespero sofrido pelo protagonista, como se verá no último capítulo

desta dissertação.

Antes de analisar mais detidamente a trajetória do protagonista de O encontro

marcado, o foco se voltará para os aspectos estruturais e linguísticos do romance. Será

destacado justamente o estilo da escrita de Fernando Sabino, que é marcado pela concisão,

clareza e simplicidade. Quer dizer, uma das principais preocupações do escritor é se fazer

entender por quem o lê. Por isso, não recorre a floreios e/ou neologismos. A seu ver, a

palavra é “um meio de transmissão da ideia ou do sentimento, e não um fim em si.

Portanto, deve ser transparente, cristalina. Na hora de escolher entre duas expressões,

opto sempre pela mais simples” (Sabino: 1988, 47).

A seguir, será destacada a presença de traços da crônica e da escrita jornalística

no romance. Como se irá demonstrar, é clara a escolha de Fernando Sabino por um estilo

mais enxuto, seco, direto, quase que a todo momento seguindo a ordem “sujeito, verbo e

complemento”. Também fica claro o tom de oralidade e coloquialidade em certas

passagens da obra, bem como a presença de outros elementos comuns à crônica enquanto

gênero literário, como o humor, o cotidiano, o pitoresco e a singeleza.

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A defesa da proximidade com a crônica será sustentada mediante acesso aos

trabalhos dos pesquisadores consultados para a elaboração desta dissertação. É o caso de

Suzana Barbosa Costa, para quem, em O encontro marcado, “a crônica organiza a

narrativa e dá conta do veloz e do espontâneo” (2007, 21). A pesquisadora conclui que o

romance tem “muitas cenas de bastidores de jornais, episódios pitorescos e

comportamentos delinquentes que geram a crônica” (2007, 21). Há que se ter em mente

o fato de Fernando Sabino haver trabalhado em jornais e revistas, para os quais produziu

não só reportagens como, sobretudo, crônicas. Entre os veículos estão os periódicos

sediados em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, como O Diário, secretariado pelo amigo

João Etienne Filho; Folha de Minas; Correio da Manhã; Diário de Notícias; Diário

Carioca; Jornal do Brasil; e, finalmente, as revistas Manchete e Senhor.

Após cumprida esta etapa, o foco incidirá sobre a função dos diálogos no romance.

Como se irá argumentar, em O encontro marcado estes tocam o andamento da narrativa.

Quer dizer, por meio das falas – e do narrador, obviamente –, Fernando Sabino faz com

que os eventos se sucedam uns aos outros. Bastam poucas linhas para que o(a) leitor(a)

entenda que houve transição entre cenas, isto é, que a narrativa caminhou. É o que se verá

em algumas passagens da obra. Não à toa, em sua brilhante dissertação de mestrado

“Dialogismo e polifonia em O encontro marcado, de Fernando Sabino”, Florita Dias da

Silva afirma que é “no diálogo que reside a força do romance [...], sendo o principal

suporte em que se assenta a narrativa” (2010, 26).

A seguir, a atenção será destinada à figura do narrador. Obviamente, este exerce

a função de levar a narrativa adiante, com auxílio dos diálogos, e de relatar o fluxo de

consciência do protagonista. No entanto, sua natureza é enigmática e volátil o bastante

para merecer uma seção exclusiva para si. Nota-se ora o uso da terceira pessoa, em

discurso indireto livre, ora a presença de verbos na primeira pessoa, denotando uma fusão

entre ele e o personagem principal. Isto é, em certos momentos, o narrador como que cede

espaço ao próprio Eduardo Marciano. Como bem notou Neusa Pinsard Caccese, “graças

a uma técnica originalíssima do autor, narrador e protagonista se confundem: fatos e

conceitos apresentados por uma suposta terceira pessoa e pensamentos e conflitos de

Eduardo se identificam, se misturam num todo uniforme e de efeito sugestivo” (1966,

153).

Quer dizer, é de fato tênue a fronteira entre ambos. O narrador é como um alter

ego do protagonista, isto é, “alguém muito próximo de Eduardo alçado a narrador de sua

história, testemunhando as aventuras da vida e as dúvidas do espírito” (Betella: 2008,

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5

353-4). Há momentos em que a terceira pessoa chega a se transformar em primeira, como

se Eduardo assumisse o papel de narrador e/ou vice-versa. É o que se nota pela própria

transição na conjugação dos verbos e dos pronomes oblíquos em meio ao discurso indireto

livre, sem abertura de travessão para indicar a fala do protagonista, como na passagem

“não se pode fazer das dúvidas de outrora o pão nosso de cada dia: não posso

responsabilizar ninguém pelo destino a que me dei”, por exemplo (2005, 144; grifos

nossos). O próprio Fernando Sabino corrobora este apontamento, ao afirmar que “O

encontro marcado não é na primeira pessoa mas na falsa primeira pessoa, porque é escrito

na terceira pessoa mas todo o enfoque é feito através do personagem principal. Apresento

só o que o personagem vê, o que está fora do alcance dele não conto” (Sabino: 1985, 18).

Ainda sobre o narrador de O encontro marcado, vale dizer que, além de levar a

narrativa adiante e de descrever o fluxo de consciência do protagonista, é o agente que

realiza os cortes temporais, tão frequentes no romance. Segundo Maria da Glória dos

Reis, o fato de a obra seguir uma cronologia linear “não impede que, em alguns

momentos, o autor volte ao passado, utilizando-se da técnica de fluxo de consciência,

havendo, também, pequenas antecipações de situações que só ocorreriam alguns anos

mais tarde” (2012, 72).

O último aspecto estrutural e estilístico a ser analisado é justamente o viés

autobiográfico da obra. O tema não poderia ser deixado de lado, visto que muitos(as)

pesquisadores(as) o abordaram, inclusive o próprio Fernando Sabino. Alguns consideram

O encontro marcado como um romance autobiográfico. Outros, de formação, “gênero em

que é exposto de forma pormenorizada o processo de desenvolvimento físico, moral,

psicológico, social e político do personagem Eduardo Marciano, desde a infância,

passando pela adolescência, até um estágio de maior maturidade” (Reis: 2012, 31). Há os

que o definem, ainda, como o retrato de uma geração específica, da qual o autor

obviamente fez parte. Trata-se daquela que entrou na fase adulta na década de 1940 e

“ensaiou seus primeiros passos sob a inexorável influência de um clima de eufórica e

desafiadora renovação da conjuntura do pós-Segunda Guerra” (Delgado: 2007, 41).

Suzana Barbosa Costa complementa, ao atribuir à obra a feição de um “relato

memorialista que traz a marca de um testemunho individual” (2017, 67). E com ela

Arnaldo Bloch se alinha, ao afirmar que o romance tem um “caráter universal, centrado

no drama de um jovem à procura de um sentido para a vida” (2000, 90).

De fato, O encontro marcado levanta o questionamento quanto aos pontos de

proximidade e distanciamento entre a vida de Fernando Sabino e a trajetória de Eduardo

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Marciano. O tema em questão será oportunamente expandido, visando à constatação

justamente dos tais pontos de proximidade e distanciamento. Já de antemão se pode dizer

que tanto Sabino quanto Eduardo podem ser fundidos na figura de “um jovem

aparentemente excêntrico demais para a idade e que, mais tarde, se envolve em uma busca

desesperada para dar sentido à vida” (Santos: 2016, 19). Isto porque, segundo o próprio

autor, o romance foi escrito “baseado na minha experiência pessoal até os 30 anos [...]

Mas de qualquer maneira, globalmente, no seu todo, O encontro marcado é a minha vida:

é a súmula da minha experiência vital até aquele momento” (Sabino: 1985, 12).

Somente após terminada a análise dos aspectos estruturais e linguísticos do

romance é que nos voltaremos para a trajetória de Eduardo Marciano propriamente dita.

Quer dizer, como já se adiantou, serão destacados os paralelos e distanciamentos entre

essa e as ideias de Søren Kierkegaard, a começar pelos três estádios da existência, isto é,

estético, ético e religioso. Como se verá adiante, a interpretação que aqui se constrói é a

de que Eduardo atravessou essas três fases antes de finalmente abraçar a fé.

O estádio estético é caracterizado pelo signo do prazer. Søren Kierkegaard

simboliza essa fase por meio da figura do sedutor. O esteta é o indivíduo que transita

somente pela dimensão da sensorialidade, do imediato, do instante fugaz, da ávida e

egoística busca por sensações, tanto físicas quanto intelectuais. O hedonismo é, pois, a

marca deste estádio, sendo seu lema, simplesmente, “hay que gozar de la vida”

(Kierkegaard: 1955, 37). O indivíduo se recusa a escolher um rumo para sua própria vida,

isto é, a assumir um compromisso consigo mesmo. Justamente por não escolher, “o esteta-

sedutor deixa-se levar ao sabor da corrente e das mais diversas fantasias; a indiferença é

a norma de suas experiências. Não é um imoral propriamente dito; sua indiferença coloca-

o em um confortável amoralismo” (Le Blanc: 2003, 61-2; grifo do autor). Em suma, como

se irá demonstrar, é possível, sim, afirmar que Eduardo Marciano – juntamente com seus

amigos mais próximos, Mauro e Hugo – atravessa tal estádio em seus anos de juventude.

É mediante o casamento com Antonieta – e consequentes mudança para o Rio de

Janeiro e conquista de um emprego na prefeitura da então capital federal – que Eduardo

adentra o segundo estádio, isto é, o ético. O indivíduo característico dessa etapa da

existência “submete-se a uma forma, conforma-se ao universal; renuncia ao instante,

renuncia a ser excepcional” (Le Blanc: 2003, 61-2). Quer dizer, prefere “edificar sua

personalidade sobre bases sólidas, manter com sua interioridade uma relação que nada

teria de arbitrária, ou seja, uma relação cuja legitimidade seria garantida por regras”

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(2003, 62). Não à toa, o que caracteriza o indivíduo imerso neste estádio é o fato de

“comprometer-se concretamente com a existência” (2003, 62; grifo do autor).

Ele agora entende ser o responsável por sua própria vida. Por isso, ancora-se em

valores e princípios para afirmar sua personalidade e erigir uma postura própria. Dessa

forma, exerce sua liberdade de maneira ajuizada e sensata. Personalidade e princípios

morais devem, pois, se espelhar mútua e integralmente. O homem ético opta por si no

sentido idôneo e não mais no hedonista, como fazia quando ainda imerso no estádio

estético. Segundo Søren Kierkegaard, pois, “a ética é antes de tudo a do cidadão,

assegurando a inserção do indivíduo na sociedade” (Farago: 2006, 129).

No entanto, ainda que adentre finalmente a esfera do geral e submeta sua conduta

ao signo do dever, o indivíduo do estádio ético, assim como o do estético, ainda está

vulnerável à angústia e ao desespero, de acordo com o pensador dinamarquês. É o que

ocorre com Eduardo Marciano: casamento, trabalho e exercício da cidadania não são o

bastante para aquietar os terremotos anímicos sentidos pelo protagonista, sedento de

verdades eternas que deem significação à sua sofrida existência.

Para Søren Kierkegaard, a solução está na fé, isto é, na entrada no estádio

religioso. Esta terceira fase se inicia a partir do momento em que o indivíduo se arrepende

de haver ousado significar sua própria vida por meio da razão. O salto ao estádio religioso

se dá “cuando uno mismo se considera como aquel cuyo recuerdo no será borrado por el

tiempo” (Kierkegaard: 1955, 69-70). Dá-se após uma revelação divina, não se tratando,

pois, de uma mudança totalmente consciente e/ou planejada. Isto porque “é a revelação

que capacita o indivíduo a superar os obstáculos que o impedem de aceitar aquilo que

Deus lhe oferece, todavia, sem ofuscar a diferença radical que há entre Deus e o homem”

(Giles: 1975, 28-9).

Como se viu, segundo Søren Kierkegaard, até abraçar a fé em definitivo, o

indivíduo está suscetível tanto à angústia quanto ao desespero. Este primeiro pathos – tão

caro ao pensador dinamarquês e consideráveis vezes repetido em O encontro marcado –

consiste em uma espécie de sufocamento, “como se a passagem do ar se tornasse

impossível e a conexão com o cosmos diminuísse, trazendo uma sensação de desolamento

e aniquilação” (Oliviéri: 2007, 35). É necessário ter sempre em mente o pressuposto de

que, para o filósofo dinamarquês, o ser humano consiste em “uma síntese de corpo e alma

instaurada pelo espírito e de tempo e eternidade instaurada pelo instante. Não são duas

sínteses, portanto, mas apenas uma vista de perspectivas diferentes” (Silva: 2008, 15). A

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relação do indivíduo com essa potência, a relação do espírito consigo mesmo e com sua

condição, é justamente a angústia.

Kierkegaard lançou mão da narrativa bíblica de Adão e Eva e sua expulsão do

Éden para ilustrar e expor seu entendimento do tema. Em O conceito de angústia (1968),

empreende uma densa reflexão acerca do pecado original. É ao tomar consciência de sua

capacidade de escolher, do fato de poder tanto obedecer quanto desobedecer a Deus, que

Adão é acometido pela angústia. Portanto, o pensador dinamarquês entende este pathos

como um medo sem objeto, exclusivo do ser humano, que surge quando este se torna

consciente de seu poder de escolha e autodeterminação. Em outras palavras, a existência

não vem com um manual de instrução. A angústia é derivada justamente da ausência de

certezas e garantias quanto ao sucesso ou insucesso do caminho pelo qual se irá optar.

Tema também caro a Søren Kierkegaard e muito presente em O encontro

marcado, o desespero deve ser entendido como um pathos distinto da angústia. Segundo

o pensador dinamarquês, é possível se desesperar de si ou de algo, de maneira consciente

ou inconsciente. O indivíduo pode vir a sofrer por querer ser si mesmo a qualquer preço,

ou por querer ser um eu que não é realmente. A não relação com Deus é um agravante

para Søren Kierkegaard. Como se verá, Eduardo Marciano sofre deste afeto sufocante

justamente por querer ser alguém que não é – escritor renomado, pai de família e cidadão

de postura íntegra – e por travar uma relação distante e automática com Deus, preferindo

construir um código de conduta baseado em seu próprio juízo e discernimento, ao invés

de pautá-lo pelas verdades eternas e absolutas advindas da esfera divina.

A leitura pendular e comparatista de O encontro marcado, aqui proposta,

obviamente se ancora em pressupostos metodológicos. Hans-Georg Gadamer será um dos

teóricos acessados. Isto porque, em Verdade e método. Traços fundamentais de uma

hermenêutica filosófica (1998), Gadamer afirma que “o sentido de um texto supera seu

autor não ocasionalmente, mas sempre. Por isso a compreensão não é nunca um

comportamento somente reprodutivo, mas é, por sua vez, sempre produtivo” (1998, 444).

Quer dizer, o processo de compreensão de um texto literário consiste, em parte, em um

esforço interpretativo do(a) leitor(a), ou seja, na participação deste(a) na construção do

sentido. Não se trata, pois, de mero reflexo integral do disposto e expresso na obra. Como

bem elucida Hans-Georg Gadamer, “a interpretação não é um ato posterior e

oportunamente complementar à compreensão, porém compreender é sempre interpretar,

e, por conseguinte, a interpretação é a forma explícita da compreensão” (1998, 459).

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Wolfgang Iser também será acionado para validar a leitura interpretativa que se

irá construir acerca do romance. Segundo o também teórico alemão, o sentido é resultado

da ação tanto do texto em si quanto, obviamente, do(a) leitor(a). A noção de efeito, pois,

consiste justamente no resultado do contato entre obra literária e quem a lê. Iser contribui

também ao lançar mão da noção de “bilateralidade”, entendida como a interação entre

dois polos, isto é, obra e leitor(a). O primeiro é o artístico e, o segundo, o estético. Logo,

o sentido do texto não está somente em si nem somente em quem o lê. Está, isto sim,

“situated somewhere between the two. It must inevitably be virtual in character, as it

cannot be reduced to the reality of the text or to the subjectivity of the reader, and it is

from this virtuality that it derives its dynamism” (1978, 21). Quer dizer, ao longo da

interação, o(a) leitor(a) projeta sobre o livro, consciente e/ou inconscientemente, seu

repertório de referências. Para Iser, em suma, o sentido de um texto é resultado da ação

tanto deste quanto, obviamente, do(a) leitor(a).

Faz-se tal ressalva metodológica justamente pelo fato de a presente análise

interdisciplinar de O encontro marcado ser fruto não só do comparatismo entre a obra em

si e parte das ideias de Søren Kierkegaard. Na dinâmica do processo como um todo houve

evidentemente a participação de um terceiro elemento, que tanto interpretou o texto

literário em questão quanto os conceitos que compõem o pensamento do filósofo. O

acesso a diversos pesquisadores e teóricos contribui para balizar a interação com o

romance e, sobretudo, com a produção do pensador dinamarquês, devido à sua densidade

e complexidade.

Em se tratando de seu viés filosófico, O encontro marcado é pouco estudado.

Lucilia de Almeida Delgado reconheceu o diálogo que o romance trava com a filosofia

existencialista, mas concentrou sua análise no traço memorialístico, histórico e de retrato

geracional da obra assim como no contexto em que se deu sua produção. Suzana Barbosa

Costa também reconheceu essas pontes, mas preferiu destacar mais o estilo em si da

escrita de Sabino, constatando nele uma hibridização entre romance e crônica, além de

problematizar a transitividade do eu narrador. Douglas Rodrigues de Sousa analisou o

caminho árduo enfrentado pelo personagem principal ao longo de sua formação como

escritor, enquanto Adriana Almeida de Oliveira e José Sterza exploraram o romance como

objeto de um trabalho sobre as expressões do tédio na cultura.

Aqueles que mais se aproximaram da hipótese fundacional de nossa pesquisa

foram Dulce Maria Viana Mindlin, Marcelo Antunes Neves e Florita Dias da Silva. Dulce

Mindlin dedicou menos de seis páginas ao tema. Neves tentou espelhar a trajetória do

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personagem principal nas ideias de Søren Kierkegaard, mas não só as definiu

superficialmente como o fez somente em relação ao conceito de “desespero”, deixando

de lado os de estádios existenciais (estético, ético e religioso) e de angústia. Já Florita

Dias da Silva voltou sua atenção mais à presença dos discursos religioso e bíblico no

referido romance. No entanto, não o fez ancorando-se nos escritos teológicos do pensador

dinamarquês, isto é, não considerou a fé do personagem principal como paralelo entre a

prosa de Fernando Sabino e a filosofia de Søren Kierkegaard. A presente dissertação visa

justamente preencher esta lacuna, contribuindo, assim, para a ampliação e o

aprofundamento da pesquisa acadêmica relativa ao viés filosófico de O encontro

marcado.

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O encontro marcado: aspectos linguísticos e estruturais

A análise de O encontro marcado se inicia tendo, como foco, seus aspectos

linguísticos e estruturais. Neste primeiro momento, serão apontadas as principais

características da escrita de Fernando Sabino; a proximidade desta com a crônica, gênero

literário mais presente na obra do escritor mineiro; a natureza e a função do narrador; e,

finalmente, o viés autobiográfico do romance. Felizmente, a Fernando Sabino foram

dadas oportunidades de comentar sua própria obra em entrevistas, palestras e

conferências. Considerando a análise do escritor sobre si mesmo, é possível afirmar, de

antemão, que houve mais concordância do que divergências entre ele e os críticos e

pesquisadores que o estudaram.

1.1. Características da escrita de Fernando Sabino em O encontro marcado

Logo à primeira vista, nota-se que o estilo de Fernando Sabino é marcado pela

simplicidade. O autor não demonstra preocupação em explorar a expressividade do

idioma. Isto é, não há floreios linguísticos, inventividade, neologismos etc. Sabino

prioriza a compreensão do(a) leitor(a), a transmissão da mensagem da maneira mais

límpida possível. Por isso, boa parte de seus períodos segue a ordem lógica “sujeito, verbo

e complemento”. Em O tabuleiro de damas (1988), o próprio escritor comenta esta

escolha que permeou grande parte de sua obra.

A palavra é que impulsiona a ação. No meu caso é um meio de transmissão

da ideia ou do sentimento, e não um fim em si. Portanto, deve ser transparente,

cristalina. Na hora de escolher entre duas expressões, opto sempre pela mais

simples. Uma oração tem sujeito, predicado e complemento. Mesmo me

afastando desta ordem, procuro não a perder de vista. E, sobretudo, tomo

cuidado com os complementos. As regras do estilo, para mim, continuam as

de sempre: clareza, concisão, simplicidade (1988, 47).

A simplicidade, a concisão e a clareza, a que o próprio autor se refere, obviamente

foram notadas pelos(as) pesquisadores(as) que analisaram sua obra. Exemplo é Dayse

Aparecida do Amaral Santos, que, em sua dissertação de mestrado intitulada O encontro

marcado: a escrita e a memória em Fernando Sabino, aborda a dificuldade enfrentada

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pelo autor para chegar justamente a uma escrita com estas características. O apontamento

é muito válido pois, à primeira vista, se pode concluir, apressada e erroneamente, que a

simplicidade de Sabino é sinal de certa incapacidade ou incompetência no manuseio do

idioma. Nada mais longe da verdade.

Segundo Dayse, “esta experiência de escrita [concisa, simples e clara] é difícil

para o autor. Escrever, para ele, exige um trabalho quase árduo e a escrita necessita ser

reformulada, sendo a forma de garantir sua subsistência e modo de sobrevivência, estilo

de vida e de sua literatura” (2016, 71). O próprio Fernando Sabino afirmou várias vezes

que aproveitava não mais que um quarto do volume de páginas que produzia,

consequência de seu esforço em aliar o simples à máxima expressividade possível. Em

entrevista concedida a Giovanni Ricciardi em novembro de 1986, presente no terceiro

volume de Biografia e criação literária (2008), o próprio autor, talvez com modéstia

exagerada, conta que

não tinha competência para fazer da palavra um fim em si e para fazer com

que a palavra fosse ela própria um instrumento de criatividade. A palavra

passou a ser para mim um instrumento de transmissão de uma ideia; ela é

apenas um meio para atingir um determinado fim. Procurei fazer a palavra o

mais transparente possível, através da qual as ideias fluíssem. Entre duas

palavras que dizem coisas semelhantes, prefiro a mais simples, a que seja

mais direta, mais desprovida de ornato (Sabino apud Mindlin: 2008, 201).

Pode-se dizer que as características levantadas acima se devem, em parte, ao fato

de que, na juventude, Sabino considerou seriamente a vocação de gramático. O mineiro

se mirava nos grandes nomes da área nessa fase de sua vida, correspondente a fins da

década de 1930 e início da de 1940. Não à toa, publicou artigo crítico sobre o dicionário

de Laudelino Freire em Mensagem, jornal dirigido pelo amigo e escritor Guilhermino

César. O próprio Sabino chegou a afirmar que continuava se atendo às regras de estilo

“que aprendi no colégio: concisão, clareza e simplicidade. Acho que o que prevalece nesta

busca é um senso estético, são os princípios de harmonia, de equilíbrio e de proporção no

jogar com as palavras, que devem ser concisas, simples e claras” (Sabino apud Mindlin:

2008, 201-2).

Acredita-se que é válido recorrer a algumas passagens de O encontro marcado

para ilustrar as características da escrita de Fernando Sabino listadas acima. Uma das

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cenas em que estas são mais evidentes é a da primeira ida de Eduardo Marciano a uma

casa de meretrício.

Entraram, afinal. Eduardo procurava apoio, correndo os olhos ao redor, com

simulada displicência. Algumas mesas em torno da pista de dança, uma

orquestra, homens bebendo cerveja, mulheres espalhadas pela sala. Não tinha

nada de mais, como numa festa qualquer. Aquelas eram as mulheres, as

famosas mulheres da “zona”. Seriam todas prostitutas? Nenhuma delas estava

nua, nem sumariamente vestida. Procediam como qualquer mulher

procederia. Apenas, quando dançavam, requebravam-se, apertando o

parceiro, dando passos ousados. Arranjavam fregueses, certamente – quanto

cobrariam? Moravam em pensões por perto. Talvez algumas estivestem ali só

para se divertir. A semiescuridão do ambiente não permitia ver bem suas

feições, arranjadas de maneira a parecerem belas, atraentes. Fixou-se numa

sozinha na mesa junto à orquestra: o olhar perdido, as mãos candidamente

cruzadas no colo (2005, 51).

Vê-se a presença de períodos curtos, como “Entraram, afinal”, “Não tinha nada

demais, como numa festa qualquer” e “Moravam em pensões por perto”. A construção da

cena se dá de maneira rápida, simples, concisa, ágil, sem se lançar mão de figuras retóricas

e/ou de ornamentações linguísticas. As palavras são usadas basicamente para descrever o

ambiente e as figuras humanas presentes, função a que se somam questionamentos do

personagem apresentados pelo narrador. Vale notar a pertinência da visão do próprio

Fernando Sabino, bem como dos(as) pesquisadores(as) acessados(as), relativa às

características de sua escrita. De fato, o trecho em questão foi construído por meio de um

estilo conciso, simples, direto, rápido, como se pode ver também na passagem a seguir,

desdobramento da anterior:

Em casa, já deitado, recompôs a cena: o cabaré, a mulher, o quarto da mulher.

Pela janela, o letreiro luminoso. Uma boneca na cadeira. Cheiro enjoativo de

pó de arroz, vaselina. Retratos na penteadeira, uma luz vermelha junto à

cabeceira da cama – a mulher estendendo o braço e apagando a luz. O corpo

da mulher no escuro, o cheiro do corpo, o sexo mais escondido do que

imaginara – recôndito, inatingível. Estreitamento? Buscava-o, em

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movimentos bruscos, desajeitados, incontroláveis, a mulher procurava ajudar,

mas era tarde, já havia acabado (2005, 53).

Com oito períodos, Sabino constrói a cena relativa à iniciação sexual de Eduardo

Marciano. Não há um relato pormenorizado, com atenção a detalhes supérfluos. O autor

vai direto ao ponto: descreve breve e agilmente os aspectos visuais – itens do cômodo, a

luz que vinha de fora e os bruscos movimentos da mulher –, olfativos e tácteis, encerrando

a cena de maneira rápida e taxativa, com um súbito e definidor “mas já era tarde, já havia

acabado”. A concisão, clareza e simplicidade servem para denotar justamente a rapidez e

o atabalhoamento com que se deu a primeira relação sexual do protagonista. A mesma

técnica é utilizada para relatar a reação de Eduardo adolescente ao suicídio do amigo

Jadir.

Agora, todas as noites, era aquilo: não conseguia dormir. Um tiro no peito.

No coração, portanto. E o amigo morto, lenço amarrado no queixo. Durante

o dia andava triste, abatido, pelos cantos, já pensando em outras coisas, não

pensando em nada – tão diferente daquele menino que arranhava o rosto, dava

gritos, fazia discursos. Não sabia o que se passava consigo; sabia que tudo era

triste, o mundo era mau. Havia mistério em tudo, a alegria da infância era

apenas lembrança. De súbito, a morte estava para abater-se sobre ele a

qualquer momento. Morreria cedo, na flor da idade – mas não daria um tiro

no coração (2005, 31).

Segundo alguns(as) pesquisadores(as), a origem do estilo da escrita de Fernando

Sabino pode ser atribuída à sua atuação por décadas como jornalista e cronista. Quer

dizer, a concisão, simplicidade e clareza – traços imprescindíveis ao texto jornalístico –

seriam fruto de anos de produção de reportagens, artigos e crônicas para diversas

publicações nacionais, sobretudo para as então sediadas em Minas Gerais e Rio de

Janeiro. Entre elas, vale citar O Diário, secretariado pelo amigo João Etienne Filho; Folha

de Minas; Correio da Manhã; Diário de Notícias; Diário Carioca; Jornal do Brasil; e,

finalmente, as revistas Manchete e Senhor.

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1.1.2. A proximidade com a crônica e a escrita jornalística

Um(a) dos(as) pesquisadores(as) que notaram e destacaram a incidência de traços

da crônica na escrita romanesca de Fernando Sabino foi Suzana Barbosa Costa. Em sua

dissertação de mestrado Encontro marcado com a crônica de Fernando Sabino (2007),

Suzana atribui à ligação com a imprensa o fato de o autor ter incorporado “elementos do

discurso midiático em sua escritura romanesca”, como, por exemplo, “o ritmo ágil dos

seus textos, a incorporação da oralidade e da coloquialidade” (2007, 63). Para Suzana,

em O encontro marcado, “a crônica organiza a narrativa e dá conta do veloz e do

espontâneo” (2007, 21). A pesquisadora conclui que há, no romance, “muitas cenas de

bastidores de jornais, episódios pitorescos e comportamentos delinquentes que geram a

crônica” (2007, 21).

Com ela concorda a já anteriormente citada Dayse Aparecida do Amaral Santos,

para quem a rapidez com que as cenas do romance são construídas “em muito se

assemelha à velocidade das ações presentes em uma crônica, pela própria experiência do

autor como cronista antes de escrever seu romance” (2016, 32). Segundo Dayse, o

hibridismo entre crônica e romance, em O encontro marcado, se deve também à presença

do humor e de acontecimentos singelos e pitorescos, “como o passeio na praça, o falar do

animal de estimação, a fala da vida e da experiência do protagonista e dos outros

personagens, o namoro da infância e da juventude, o cotidiano escolar” etc., matéria-

prima da crônica entendida como gênero literário (2016, 73). Uma passagem que bem

ilustra a fusão entre humor, cotidiano, pitoresco e singeleza é a própria abertura do

romance. Apesar de longa, vale ser citada integralmente por ser quase uma crônica à parte.

A casa tinha três quartos, duas salas, banheiro, copa, cozinha, quarto de

empregada, porão, varanda e quintal.

Que significava o quintal para Eduardo?

Significava chão remexido com pauzinho, caco de vidro desenterrado, de

onde teria vindo? minhoca partida em duas ainda mexendo, a existência

sempre possível de um tesouro, poças d’água barrenta na época das chuvas,

barquinho de papel, uma formiga dentro, a fila de formigas que ele seguia

para ver onde elas iam. Iam ao formigueiro. Um pé de manga-sapatinho, pé

de manga-coração-de-boi. Fruta do conde, goiaba, gabiroba. Galinheiro. A

galinha branca era sua, atendia pelo nome:

– Eduarda!

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Ela se abaixava, deixava-se pegar. Às vezes punha um ovo. Quando Eduardo

ia para o Grupo, deixava-a debaixo da bacia. Um dia o pai lhe disse que aquilo

era maldade: gostaria que fizestem o mesmo com você? As galinhas também

sofrem. Um domingo, encontrou Eduarda na mesa do almoço, pernas para o

ar, assada. Eduarda foi comida entre lágrimas. É, sofrem, mas todo mundo

come e ainda acha bom. Desgostou-se, jurou nunca mais ter galinha na sua

vida (2005, 9-10).

Essa passagem acima foi destacada para ilustrar o apontamento feito por Dayse

Aparecida do Amaral Santos. A cena realmente ilustra bem a fusão entre os elementos

listados pela pesquisadora. O pitoresco e a singeleza estão na exploração do quintal de

casa por parte de Eduardo ainda menino: “chão remexido com pauzinho”, “a existência

sempre possível de um tesouro”, “barquinho de papel” e “a fila de formigas que ele seguia

para ver onde elas iam” são trechos em que se nota a presença dos referidos traços. Soma-

se a eles o humor lúdico presente ao final da cena, quando o narrador, repercutindo o

raciocínio de Eduardo criança – isto é, assumindo o tom da fala infantil para representar

a reflexão e a conclusão feitas pelo personagem –, percebe a hipocrisia da figura do

adulto, o qual defende as galinhas, que “também sofrem”, mas as devora e “ainda acha

bom”.

A própria inocência, elemento comumente explorado por cronistas, é novamente

retratada nos momentos também iniciais do romance. Vale aproveitar o apontamento de

Dayse Aparecida do Amaral Santos para ilustrá-la. A pesquisadora destacou a

ingenuidade do namoro da infância e juventude de Eduardo Marciano, representada na

cena a seguir:

Conheceu Letícia num passeio de bicicleta. Marcou encontro para a noite.

Letícia foi. Perto da casa dela, que era perto da Rádio Emissora. Passou a

encontrar-se toda noite com ela – dizia, em casa, que ia à Rádio Emissora.

– O que é que este menino tanto faz na Rádio Emissora? – inquietava-se a

mãe. Em vez de estudar, toda noite...

Acabou indo mesmo à Rádio, em companhia de Letícia, para assistir aos

programas. Depois, saía com ela de mãos dadas – beijo, não, ela não deixava,

ele não insistia. Letícia era diferente, Eduardo amava Letícia.

– Eu te amo para o resto da vida.

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– Eu também.

– Então escreve isto aqui, na minha caderneta.

Letícia escrevia: “eu te amo...

– Eternamente.

– ... eternamente para o resto da minha vida”.

– Agora assina.

Letícia assinou [...]

Eduardo fazia planos para o futuro.

– Quando eu crescer, vou ser artista.

– Artista de quê?

– Não sei: artista (2005, 23-4).

A ingenuidade começa por Eduardo não revelar à mãe que saía para se encontrar

com Letícia. Dizia que ia à Rádio Emissora, aproveitando-se do fato de que o prédio da

rádio realmente ficar próximo à residência da menina. O questionamento da mãe adiciona

uma camada a mais de singeleza à cena, visto que não descobre se tratar de um

estratagema de Eduardo para encontros “proibidos” com a namorada. A singeleza ganha

ainda mais contorno por dois motivos: a recusa de Letícia a deixar que Eduardo a beijasse

e o fato de Fernando Sabino, por meio de diálogos rápidos, construir “em tempo real” a

assinatura da caderneta, ditada por Eduardo à Letícia. Quer dizer, a técnica faz com que

o(a) leitor(a) facilmente imagine o ato se desenrolando na sua frente. O traço de inocência

da cena é realçado pelos “planos futuros” de Eduardo, que queria ser “artista” sem saber

exatamente “de quê”.

Em suma, é pertinente afirmar que O encontro marcado apresenta traços

comumente atribuídos à crônica. Não à toa, tanto Suzana Barbosa Costa quanto Dayse

Aparecida do Amaral Santos fazem uso da expressão “hibridismo” em referência à fusão

de gêneros literários no romance. Vale rematar essa etapa da análise destacando um

apontamento da segunda pesquisadora citada, para quem

é plausível dizer que O encontro marcado é um romance híbrido porque, além

das características que o constituem como romance – como a escrita em prosa,

a presença de um narrador, um enredo longo, a complexidade vivida entre os

personagens (conflitos, situações dramáticas), situados em um tempo e

espaço –, também estão presentes na narrativa elementos da crônica, como a

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narrativa simples, diálogos curtos, as cenas do cotidiano, a essência humana,

a construção dos tipos, as pequenas histórias contadas dentro de um enredo

maior, além de notas de viagem e de leituras, casos, anedotas e notas,

conforme definido pelo próprio Sabino (2016, 75).

Como dito anteriormente, Suzana Barbosa Costa destacou a oralidade e o tom de

coloquialidade como traços do gênero crônica presentes no romance. Eis um oportuno

gancho para a etapa seguinte desta dissertação. Nela será feita uma análise justamente dos

diálogos e da importantíssima função que exercem em O encontro marcado. Em muitos

momentos, substituem o próprio narrador: as falas dos personagens fazem com que a

narrativa caminhe para frente. Esta é uma técnica comum na obra de Fernando Sabino,

presente sobretudo em “Pélagos”, conto que encerra a coletânea A vida real, lançado em

1952, quatro anos antes de O encontro marcado.

1.2. A função dos diálogos no romance

Considera-se válido recorrer a alguns pesquisadores e críticos para atestar o

apontamento anterior. Em seu artigo “Fernando Sabino: o verbo como aventura”, Marco

Aurélio Matos afirma que, em O encontro marcado, a “feição oral [oralidade] é básica

para ressaltar os conceitos, as confissões, a troca de emoções entre os personagens. Há

uma carga notável de diálogos – forma específica da credibilidade dos personagens e

espinha dorsal desta obra” (Sabino: 1996, 36-7). De fato, o tom coloquial é visível em

diversas falas, sobretudo nas interações entre Eduardo e seus amigos mais próximos,

Mauro e Hugo. Abaixo, segue parte da cena que representa o dia em que o protagonista

conhece o segundo.

– Por que você não aparece mais tarde lá na oficina?

– Que oficina?

– Oficina do jornal, nunca foi lá? Tem um botequim onde sempre se toma

qualquer coisa...

– Não posso beber. Sofro da vesícula. Ainda ontem...

– Deixa disso, rapaz – e Eduardo bateu-lhe nas costas cordialmente: – Uma

cachacinha de vez em quando não faz mal a ninguém. Apareça lá. Encontrar

o Veiga (2005, 49).

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As passagens “Deixa disso, rapaz” e “Uma cachacinha de vez em quando não faz

mal a ninguém” marcam o tom de informalidade da conversa entre os rapazes. O mesmo

tom está presente na resposta dada por Eduardo ao pai, seu Marciano, quando este lhe

pergunta se havia procurado um amigo que poderia ajudá-lo a conseguir um emprego

assim que terminasse o Ginásio: “– É muito difícil. Gente besta. Pensam que têm o rei na

barriga. Mandam esperar no gabinete – ainda não chegou, já saiu. Não dou para isso não”

(2005, 47). A coloquialidade também está presente em uma discussão sobre a Segunda

Guerra, travada por Eduardo e Java, funcionário do jornal para o qual o jovem escrevia

artigos literários.

– ... a burguesia foi responsável.

– A burguesia! – o outro soltou uma gargalhada. – Olha só este filhinho de

papai falando em burguesia. Você não sabe o que está dizendo. Um burguês,

feito você...

[...]

– Vai para a ...

Esboçou-se um começo de briga. Java se enfurecia:

– A culpa é sua, Veiga. Traz estes meninos bonitos para aqui, não sabem

beber, dá nisto.

– Menino bonito é a... (2005, 50).

Como dito, a informalidade é ainda mais presente nas conversas entre Eduardo e

os amigos Mauro e Hugo. Corroborando o apontamento de Suzana Barbosa Costa,

reproduz-se a seguir uma cena dos bastidores do jornal em que os rapazes trabalhavam.

Alguém soltou um berro. Era Zaratustra:

– “É preciso um grande caos interior para parir uma estrela dançarina”!

– Que Nietzsche, que nada!

– E daí? Só porque você não leu?

– Então soletra ao menos o nome dele, se você é capaz.

– Nietzsche também nunca leu Nietzsche.

Encharcados de literatura, pelas ruas da cidade.

– Eu sou um tímido! – gritou Mauro para os transeuntes espantados.

– Vivo em ti minha tímida ternura – citou Hugo.

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– De quem é este verso?

– Meu, uai.

– Ti-ti-tê? Titica.

– Aliteração, seu merda. Você não entende dessas coisas (2005, 58).

Em O encontro marcado, os diálogos têm a função de tocar o andamento da

narrativa. Quer dizer, por meio das falas – e do narrador, obviamente – Fernando Sabino

faz com que os eventos se sucedam uns aos outros. Bastam poucas linhas para que o(a)

leitor(a) entenda que houve transição entre cenas, isto é, que a narrativa caminhou para

frente. É possível aproveitar o desdobramento da passagem acima como exemplo do uso

desta técnica.

Decidiu tornar-se mesmo escritor. Um livro de contos – os outros publicavam

livros, por que ele próprio não podia publicar? Tinha dois contos premiados

em concursos – se foram premiados, deviam ser bons. Consultou seu

Marciano – seu Marciano concordou:

– Devem ser bons. Não entendo dessas coisas. Talvez se você esperasse mais

um pouco...

Mandou que o filho procurasse o Toledo, seu amigo, que era escritor.

– Um moço muito distinto e competente. Era meu colega de repartição. Hoje

acho que está no gabinete.

Toledo acabara de publicar um romance em editora do Rio, seu nome era

conhecido nos meios literários.

– Toledo, meu menino está querendo mesmo ser escritor. Vê se ensina umas

coisas a ele.

Eduardo foi à casa do romancista, levando seus contos numa pasta, debaixo

do braço. Ficou impressionado com a quantidade de livros que o homem tinha

no escritório:

– Não vai me dizer que o senhor já leu tudo isto – comentou, tentando

intimidade (2005, 43).

A segunda fala indica a aquiescência de seu Marciano quanto à ideia de procurar

Toledo e lhe pedir auxílio ao filho. A terceira, também de seu Marciano, simboliza o corte

temporal para a cena seguinte, em que o pai do protagonista se dirige diretamente ao

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amigo escritor. E, finalmente, por meio da quarta, fica subentendido novo corte, agora

diretamente ao encontro entre Eduardo e Toledo. Quer dizer, ainda que entremeadas por

breves intervenções do narrador, as três falas ajudam a levar a narrativa para frente, cada

uma simbolizando uma cena que sucede a anterior.

Não à toa, em sua brilhante dissertação de mestrado “Dialogismo e polifonia em

O encontro marcado, de Fernando Sabino”, Florita Dias da Silva afirma que é “no diálogo

que reside a força do romance [...], sendo o principal suporte em que se assenta a

narrativa” (2010, 26). Neusa Pinsard Caccese concorda com a pesquisadora. Em artigo

publicado na revista Alfa intitulado “Aspectos estruturais em O encontro marcado”,

reconhece o engenho de Fernando Sabino neste sentido, ao afirmar que

o romance é constituído, em sua maior parte, por diálogos, cuja característica

principal é a naturalidade, a espontaneidade. Mas literatura é arte, é artifício

– não naturalidade. Sim; na verdade reconhecemos nestes diálogos, que

caracterizamos de espontâneos, a mão do Artista, que trabalha cada frase,

cada pensamento, justamente para dar esta impressão ao leitor. Os termos

comuns, os “erros” de gramática são intencionais, e revelam o esforço de um

estilista que conhece seu ofício (1966, 160).

Fez-se questão de ressalvar que o narrador, juntamente com os diálogos, leva a

narrativa adiante. Procurou-se demonstrar isso no trecho em que seu Marciano aproxima

seu filho do amigo Toledo. Obviamente, o papel do narrador não se restringe a isso. A

próxima etapa da análise irá detalhar o máximo possível a função e a natureza quase

enigmática deste. Já de antemão, é possível afirmar que se trata de uma narrativa em

terceira pessoa, em que narrador e protagonista se confundem a ponto de, em alguns

momentos, parecer ceder o espaço de fala a este.

1.3. O narrador

O narrador de O encontro marcado exerce a óbvia função de fazer com que a

narrativa caminhe para frente, com auxílio marcante dos diálogos, o que foi destacado

anteriormente. Sua natureza é enigmática o bastante para merecer uma análise mais

pormenorizada, objetivo desta etapa da dissertação.

Inicialmente, nota-se o uso da terceira pessoa, em discurso indireto livre. Para

Gabriela Kvacek Betella, é por meio deste recurso que o narrador atua como “duplo vetor,

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capaz de reportar-se ao passado e devolver a narrativa ao presente, através das profundas

reflexões esboçadas” (2008, 353). De fato, os cortes temporais são frequentes, sendo o

narrador muitas vezes seu agente realizador. Em sua dissertação de mestrado A

construção da identidade no romance de formação O Encontro Marcado, de Fernando

Sabino, Maria da Glória dos Reis define o narrador como onisciente e onipresente.

Segundo a pesquisadora, o fato de o romance seguir uma cronologia linear “não impede

que, em alguns momentos, o autor volte ao passado, utilizando-se da técnica de fluxo de

consciência, havendo, também, pequenas antecipações de situações que só ocorreriam

alguns anos mais tarde” (2012, 72). A seguinte passagem de O encontro marcado

confirma os apontamentos acima. Nela, o narrador representa o fluxo de consciência de

Eduardo Marciano ao fazer menção, de maneira ágil e concisa, a diferentes passagens da

infância e adolescência do protagonista.

Tomou um táxi, mandou tocar para o Hotel Elite, no Catete, onde estivera da

primeira vez. O tio de Mauro, o prêmio, o ministro da Educação.

– Eduardo Mariano.

Assim eram os ministros – assim deveria ser o pai de Antonieta. Depois, a

sordidez do hotel, o arroz com formiga, a revista comprada na esquina, o

conto premiado: cem mil réis.

– Você é muito precoce.

Seu Marciano chegando, o Pão de Açúcar, seu Marciano a abraçá-lo:

– Meu filho, você é exatamente como eu gostaria de ter sido, não conte para

sua mãe.

Fez a barba pensando no pai – por que a espuma? por que uma vez para cima

e outra para baixo? Imitou-o ao terminar:

– Uma de menos (2005, 97).

Aqui, Eduardo relembra a premiação de um conto de sua autoria em cerimônia

realizada no Rio de Janeiro, na qual esteve presente o então ministro da Educação; um

breve diálogo com o diretor de redação de uma revista em que um de seus contos foi

publicado; uma fala de seu Marciano, após reunião com os pais de Mauro e Hugo sobre

as estripulias e exageros que os três amigos vinham cometendo; e uma cena de sua

infância, em que assistiu ao pai fazendo a barba. Como se vê, os cortes temporais são

feitos pelo narrador, que retrata o presente do personagem, realça vivências passadas e

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volta novamente ao tempo da cena. E não é só ao passado do protagonista que o narrador

remete: também são feitas antecipações de vivências futuras de Eduardo. É o que acontece

nas primeiras páginas do romance, na já referida cena em que o menino vê o pai fazendo

a barba.

– Se o senhor não fizer todo dia, quanto tempo leva para chegar até

aqui?

O pai não responde: passa a mão no rosto escanhoado, suspira e

comenta: “Uma de menos”. Um dia Eduardo se verá no espelho

fazendo a barba e vai se lembrar disso. O pai estará morto. Seu

Marciano morto! Não, seu Marciano ainda não parece que vai morrer

(2005, 13).

Por sua onisciência e onipresença – a ponto de ter acesso à mente do personagem

principal –, a já citada Gabriela Kvacek Betella considera o narrador como um alter ego

do protagonista, isto é, “alguém muito próximo de Eduardo alçado a narrador de sua

história, testemunhando as aventuras da vida e as dúvidas do espírito” (2008, 353-4). Com

a pesquisadora concorda Neusa Pinsard Caccese, para quem O encontro marcado

é narrado por uma pessoa que vê, de fora, os acontecimentos passados com o

protagonista. É, portanto, narrado em terceira pessoa, mas não apresenta a

objetividade que seria de se esperar. Isso acontece porque, graças a uma

técnica originalíssima do Autor, narrador e protagonista se confundem: fatos

e conceitos apresentados por uma suposta terceira pessoa e pensamentos e

conflitos de Eduardo se identificam, se misturam num todo uniforme e de

efeito sugestivo [...]. Estamos diante de uma obra narrada, ao mesmo tempo,

em primeira e em terceira pessoa; dois ângulos de visão, fundidos habilmente,

nos dão a perspectiva de Eduardo Marciano, somada à de seus companheiros

– uma perspectiva una, resultante de um desdobramento: o do protagonista e

de sua geração [...]. Quando se trata, porém, do debate de um problema no

seu íntimo, de uma reflexão interior, essa distância entre narrador e

protagonista desaparece (1966, 153).

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A fusão entre o discurso do narrador e o do personagem principal é notável em

diversas passagens do romance. O narrador por vezes representa Eduardo Marciano,

como um porta-voz. Ou melhor, parece ceder o espaço de fala ao protagonista. Por isso,

há momentos em que a terceira pessoa se transforma na primeira, como se Eduardo

assumisse o papel do narrador e/ou vice-versa. É o que se nota pela própria transição na

conjugação dos verbos e dos pronomes oblíquos.

Conheceria novas pessoas, pensaria outras coisas, ouviria em silêncio

prudente e compassivo opiniões alheias que um dia já foram suas. E está

certo! Não se pode fazer das dúvidas de outrora o pão nosso de cada dia: não

posso responsabilizar ninguém pelo destino a que me dei. Sozinho: sozinho

no mundo com uma mulher. O que significa isso? Significa que terei de amá-

la, zelar por ela, sustentá-la, cumprir os chamados deveres de estado. Pois

então o que é que estou fazendo aqui, sozinho? Não sou um homem? Um

marido, não sou? Há uma fresta em minha alma por onde a substância do que

sou está sempre se escapando mas não vejo onde nem por quê (2005, 144;

grifos nossos).

Outra passagem em que tais interação e dinâmica podem ser notadas é a seguinte:

À tarde pensou em procurar alguém, um amigo, um conhecido. Não vou

procurar ninguém, decidiu. Não tenho amigos, sou um homem sozinho,

ninguém me reconheceria. Mas à noite, quando deu por si, estava entrando no

bar de sempre. O que vim fazer aqui? se perguntava, depois de pedir um

uísque. Jantara, fora a um cinema, estava sem sono, não tinha onde ir. Depois

sinto vontade de conversar, não aparece ninguém que eu conheça, vou ao

telefone, ligo para quem quer que seja, e me apanham na engrenagem maldita,

começa tudo novamente... (2005, 277; grifos nossos).

Quer dizer, não há necessariamente a abertura de travessões para indicar que é

Eduardo quem fala. O discurso do narrador repentinamente imiscui-se no do protagonista.

A fronteira entre os dois é muito tênue. Tamanha proximidade levou Suzana Barbosa

Costa a concluir que, em O encontro marcado, há “uma espécie de narrador-voyer”

(2007, 97). Para a pesquisadora, a técnica de que Fernando Sabino lançou mão para

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construir sua obra não é nada gratuita ou impensada. Tratou-se de um recurso por meio

do qual o escritor demonstrou “a realidade ao redor da personagem, que vivia alheia a

tudo e a todos, que não via nada ao redor de si”, com o objetivo justamente de “mostrar

o que Eduardo Marciano não via” (2007, 68).

A fusão entre ambos atinge seu grau máximo nos momentos finais da trajetória do

protagonista. É quando o narrador se insere e se revela de vez na trama, interagindo com

Eduardo. Vale dizer que tal inserção acontece mais de uma vez, sendo a primeira delas

em uma cena em um bar em Copacabana em que o protagonista esperava a chegada de

Gerlane, sua amante (2005, 195). Neste primeiro encontro, o homem diz saber que

Eduardo é escritor por acompanhar seus artigos sobre a técnica do romance, publicados

em jornal. Antecipa ainda o encontro derradeiro, relatado abaixo: “mas ainda havemos de

nos encontrar” (2005, 196).

Desta vez, o homem não estava vestido de smoking, mas num terno cinza,

camisa azul de riscas, gravata de seda prateada e um cravo branco na lapela.

O rosto era o mesmo do último encontro – pálido, fino, escanhoado. Eduardo

tomava um uísque a seu lado, arrependido já de o haver reconhecido. Era

inútil, sempre que bebia, alguma coisa de imprevisível lhe acabava

acontecendo. Olhou-o, intrigado. Quem diabo seria aquele homem.

[...]

– Conheço um sujeito que está escrevendo um romance.

– Sobre o quê?

– Sobre você.

Eduardo se voltou, surpreendido:

– Sobre mim? Que história é esta?

– Um romance – repetiu o homem.

– E o que é que eu tenho a ver com isto? Ele me conhece?

– Você é o personagem dele – o homem insistiu, lacônico.

[...]

– Imagine você apenas personagem de um romance que está sendo escrito, só

existindo na imaginação do romancista.

– Pirandello – limitou-se Eduardo.

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– Um personagem – prosseguiu o homem, pensativo, inclinando-se e pondo-

lhe a mão no ombro:

– Vivendo apenas o que o romancista quer que você viva.

– É, mas neste caso não estaríamos conversando sobre isso. Teríamos de

obedecer o nosso papel. Você seria personagem também.

– Não: eu seria a única pessoa do lado de fora com quem você pode conversar.

Uma espécie de janela aberta para a realidade. Sua chance de se rebelar contra

o seu criador, se libertar. Longe de mim você será apenas escravo.

– Escravo, como? – perguntou Eduardo, já meio confuso.

– Escravo do romancista. Quando o romance é seu, o verdadeiro romancista

é você (2005, 277-8; grifo do autor).

Como foi dito em momento anterior desta análise, felizmente foram dadas a

Fernando Sabino oportunidades de comentar sua própria obra. Em se tratando da natureza

do narrador de seu romance mais conhecido, vale conhecer a conferência feita por ele em

Curitiba, em 1985, transformada em livro no mesmo ano. Trata-se de um projeto da então

Secretaria de Estado da Cultura e do Esporte do Paraná, intitulado “Um escritor na

Biblioteca”. Tal fala prova a concordância entre o escritor e os(as) pesquisadores(as) e

críticos(as) que o analisaram – contemporânea ou posteriormente a seu falecimento, em

11 de outubro de 2004 –, como já foi aventado aqui.

O encontro marcado não é na primeira pessoa mas na falsa primeira pessoa,

porque é escrito na terceira pessoa mas todo o enfoque é feito através do

personagem principal. Apresento só o que o personagem vê, o que está fora

do alcance dele não conto. E como era um personagem que só via a si mesmo,

me deixou uma grande dificuldade para contar as coisas. O personagem talvez

fosse mesmo meio alienado. Talvez isso fizeste parte do contexto maior que

o romance pretendeu focalizar (Sabino: 1985, 18).

“Narrador-voyer”, “na falsa primeira pessoa”: a análise de O encontro marcado

não poderia deixar de lado a natureza enigmática “daquele” que relata a trajetória de

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Eduardo Marciano, bem como as funções que exerce no romance. Tampouco poderia

descurar dos traços autobiográficos do livro, talvez o tema mais frequente nas teses,

dissertações e artigos consultados para a elaboração do presente trabalho. É a esta questão

que a próxima etapa irá se dedicar.

1.4. O romance como autobiografia: a confissão ficcional de Fernando Sabino

Por uns(as) considerado um romance autobiográfico. Por outros(as), de formação,

“gênero em que é exposto de forma pormenorizada o processo de desenvolvimento físico,

moral, psicológico, social e político do personagem Eduardo Marciano, desde a infância,

passando pela adolescência, até um estágio de maior maturidade” (Reis: 2012, 31). Há

os(as) que o definem, ainda, como retrato de uma geração específica, da qual o autor

obviamente fez parte. Trata-se daquela que entrou na fase adulta na década de 1940 e

“ensaiou seus primeiros passos sob a inexorável influência de um clima de eufórica e

desafiadora renovação da conjuntura do pós-Segunda Guerra” (Delgado: 2007, 41).

Suzana Barbosa Costa complementa, ao afirmar que o romance ilustra “com

lucidez e emoção aquele momento pelo qual todos passam, e no qual é preciso tomar

decisões, fazer escolhas, amadurecer, administrar frustrações e posicionar-se” (2007, 13).

Não à toa, a pesquisadora atribui à obra a feição de um “relato memorialista que traz a

marca de um testemunho individual” (2017, 67). Arnaldo Bloch se alinha à estudiosa ao

afirmar que o romance tem um “caráter universal, centrado no drama de um jovem à

procura de um sentido para a vida” (2000, 90).

De fato, O encontro marcado levanta o questionamento quanto aos pontos de

proximidade e distanciamento entre a vida de Fernando Sabino e a trajetória de Eduardo

Marciano. Justamente por isto, a questão está presente em boa parte das análises feitas

por críticos(as) e pesquisadores(as) dessa obra do autor, conforme afirmado

anteriormente. Por isso, a presente dissertação não poderia se furtar a dedicar algumas

linhas ao assunto.

O romance conta a história de um jovem nascido em uma Belo Horizonte em

transição, isto é, que migrava de um caráter mais provinciano para um mais cosmopolita,

momento em que “a capital mineira passava por grandes transformações urbanísticas e

arquitetônicas e em que o mundo da arte estava impregnado das concepções do

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movimento modernista, que influenciou diferentes gerações de escritores”, entre eles,

claro, Fernando Sabino (Santos: 2016, 98). Seu sonho e seu objetivo de vida eram o de

se tornar escritor. O pai era uma figura simples, comedida, conselheira, acolhedora, “um

pouco acima de um artesão, mas que tinha uma grande sabedoria de viver” (Sabino apud

Mindlin: 2008, 187). Filho de uma família católica, de classe média baixa, revela uma

inteligência e um talento muito precoces.

– Aprendeu a ler sozinho.

– Já sabe uma porção de coisas.

– Ontem me perguntou o que quer dizer meretriz!

– Leu no jornal.

– Precisamos tomar cuidado.

– Faz um discurso aí, Eduardo.

Inflamado, o menino soltava a língua horas seguidas. Quando era levado para

a cama, ainda estava falando sem parar: vermelho, suado, alinhando palavras

sem sentido. A mãe achava graça, seu Marciano ficava apreensivo:

– Você mesma é culpada. Ainda incentiva.

– Tão inteligente que ele é – dona Estefânia sacudia a cabeça (2005, 10-1).

Inicia muito cedo sua incursão no universo da literatura, com predileção por

romances policiais durante a infância e pré-adolescência. “Seus heróis, até então: aos dez

anos, Sherlock Holmes, Rafles, Tom Mix; aos onze, Tarzan, o Rei das Selvas; aos doze,

Winnetou, cacique dos Apaches; aos treze, os inspetores da Scotland Yard” (2005, 24).

Como dito anteriormente, quando jovem, acaba conhecendo Toledo, isto é, Guilhermino

César, romancista que lhe serve como mentor em seus primeiros passos na carreira

literária. Tem contos premiados em concursos realizados pelo Ministério da Educação,

participando das cerimônias de condecoração no Rio de Janeiro. Em uma delas, chega a

dividir o segundo lugar com o amigo Mauro, isto é, Hélio Pellegrino. O personagem

fictício cogita a ideia de se especializar em psiquiatria (2005, 110). O real, que deu origem

ao primeiro, de fato se tornou profissional da área.

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Hirondina deu o que em português? – perguntaram-lhe na maratona

intelectual, promovida pelo Ministério da Educação. Tirou o segundo lugar,

empatando com Mauro; um judeuzinho de outro colégio tirou o primeiro.

Tema da dissertação: minhas leituras prediletas [...]. Foram dividir o prêmio,

um conto de réis dividido em dois: quinhentos para cada um (2005, 25).

E foi uma passagem real da amizade com Hélio Pellegrino que inspirou a

construção da cena em que Mauro, de personalidade questionadora, politizada e

combativa, liga para o arcebispo da cidade e lhe exige a acolhida de famílias pobres de

retirantes que dormiam na rua, ao relento.

– Escuta, padre, quero que o senhor transmita um recado urgente ao

arcebispo. Na cidade, debaixo do Viaduto, tem mais de cinquenta

famílias de miseráveis dormindo ao relento. São retirantes, parece.

Cristãos, como qualquer de nós. E como cristão, exijo que sejam todos

albergados aí no palácio.

– Aqui no palácio? – espantou-se o padre. – Mas não há lugar para

tanta gente...

– Essa é boa: não há lugar! O senhor esquece de que com sete peixes

Cristo alimentou uma multidão inteira? (2005, 81).

Como já dito, o jovem Fernando Sabino considerou seriamente seguir carreira

como gramático, mirando-se em grandes nomes da área: “Eduardo resolveu conhecer o

léxico. Gramática Expositiva. Escrever certo! Questiúnculas de Português [...] Cândido

de Figueiredo, Moraes, Aulete, J. J. Nunes eram, agora, os seus heróis” (2005, 25). Chega

a publicar artigo crítico sobre o dicionário de Laudelino Freire no jornal Mensagem. A

publicação é inclusive citada quando o protagonista cogita fundar uma revista com este

nome, tendo logo desistido porque “já existia outra, sem mensagem alguma, com este

nome” (2005, 55). Cresce, torna-se escoteiro e nadador com recorde nacional nos 400m

costas, não superado já que a modalidade veio a ser extinta anos depois. Sobre isto, aliás,

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o próprio autor chega a afirmar que “sempre fui muito competitivo na minha juventude,

fui nadador, sempre tive um espírito de competição” (Sabino apud Mindlin: 2008, 196).

Em seis meses, era o melhor nadador de sua categoria, e ameaçava já o

recorde dos adultos. Uma espécie diferente de emoção – a de poder contar

consigo mesmo, e de se saber, numa competição, antecipadamente vencedor

[...] Era uma espécie de êxtase: fazer de simples prova de natação, a que

ninguém o obrigava, uma disputa em que parecia empenhar o destino, fazer

da arrancada final uma luta contra o cansaço, em que a vida parecia querer

prolongar-se além de si mesma (2005, 34).

No trecho acima fica clara a competitividade exacerbada de Eduardo, mencionada

anteriormente. O personagem não via a prova de natação como tal. Para ele, tratava-se de

uma disputa mais interna do que contra os adversários, em que era necessário superar os

próprios limites. Flora Christina Bender complementa, ao afirmar que Fernando “era o

protótipo do bom menino, escoteiro exemplar (dos 9 aos 13 anos); campeão mineiro de

natação, nado de costas, por uns quatro anos; jovem escritor de contos desde os treze

anos; e, eventualmente, o primeiro da classe” (1980, 7).

Último ano, último dia do ano: Lêda é a primeira entre as meninas, Eduardo

é o primeiro entre os meninos. Por desfastio, já não queria impressioná-la

assim:

– Juro que não queria ser o primeiro.

– O que é que você queria?

Não sabia o que queria, e vida afora se faria cada vez mais infeliz, agindo

como se soubeste (2005, 19).

Serve no Exército, na Arma de Cavalaria do CPOR, em Juiz de Fora. Casa-se com

a filha de um político eminente e se muda para o Rio de Janeiro. “Vida diferente da sua,

amigos que não conhecia, carioca, outros namorados talvez, um mundo que não era o seu,

impenetrável, hostil. Filha de ministro” (2005, 94). Já na então capital federal, logo após

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se casar, vê-se imerso na boemia e vivenciando profundos conflitos matrimoniais [e

existenciais], que culminam no divórcio da primeira esposa.

Em suma, em linhas gerais, com algumas diferenças pontuais a serem

apresentadas logo a seguir, esta é exatamente a história de Fernando Sabino até os 32

anos, idade em que começou a escrever seu mais conhecido romance. Isto é, autor e

protagonista podem ser fundidos na figura de “um jovem aparentemente excêntrico

demais para a idade e que, mais tarde, se envolve em uma busca desesperada para dar

sentido à vida” (Santos: 2016, 19).

Depois escrevi O encontro marcado, baseado na minha experiência pessoal

até os 30 anos. Eu havia chegado a um impasse, em que não sabia com que

contava, nem como ou para onde iria continuar. Minha vida se desintegrava.

Eu não teria mais condições de sobrevivência se não escreveste sobre o que

tinha vivido até aquele momento. Em consequência, é um romance muito

autobiográfico, como aqueles que já leram devem ter percebido, mas é um

livro escrito dentro das exigências da técnica do romance. Eu pretendia ser, e

ainda pretendo, é romancista. [...]. Quando me perguntam se sou o

personagem principal do livro, digo que apenas sou o protótipo daquele

personagem: há diferenças fundamentais entre nós [...]. Mas de qualquer

maneira, globalmente, no seu todo, O encontro marcado é a minha vida: é a

súmula da minha experiência vital até aquele momento (Sabino: 1985, 12).

São muitas as tais “diferenças fundamentais” entre Fernando Sabino e Eduardo

Marciano. A começar pelo personagem ser filho único, escolha que se deveu ao fato de o

autor querer “enfatizar o problema da solidão” de Eduardo (Sabino: 1985, 12). Fernando

Sabino, por sua vez, era o caçula de seis irmãos. O protagonista não teve filhos: o mais

próximo que chegou disto foi um aborto natural – sofrido pela primeira e única esposa,

Antonieta – e um induzido, após um caso furtivo com Neusa, uma vizinha. Sabino, por

sua vez, com pouco mais de 20 anos já era pai de uma menina. Sua primeira esposa era

filha do então governador de Minas Gerais, Benedito Valadares. Antonieta, mulher de

Eduardo, carioca, era filha de um ministro.

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O personagem não viveu no exterior, enquanto Sabino residiu em Nova York em

fins da década de 1940, tendo trabalhado no Escritório Comercial do Brasil e,

posteriormente, no Consulado Brasileiro. Seus amigos de toda vida, os tais “quatro

cavaleiros do apocalipse”, eram Otto Lara Rezende, Paulo Mendes Campos e Hélio

Pellegrino. Os de Eduardo são somente dois: Mauro e Hugo. Em 1952, Sabino já contava

com livros como Os grilos não cantam mais (1941), A marca (1944) e A vida real (1952).

Já Eduardo é um romancista frustrado, tendo somente dois contos premiados quando

jovem e alguns artigos em jornais sobre crítica literária e a técnica do romance.

A lista de distâncias e proximidades entre autor e criatura poderia se estender

muito mais. A mais notável entre elas, no entanto, é a ausência de menção à intensa troca

de cartas com Mário de Andrade, iniciada em 1941 – quando o então jovem mineiro lhe

envia um exemplar da coletânea de contos Os grilos não cantam mais – e interrompida

pelo falecimento do autor de Macunaíma, em 1945. Em O encontro marcado, Sabino se

refere três vezes ao modernista, mas não ao fato de este ter sido seu grande mestre. Na

redação do jornal em que trabalhavam Eduardo, Hugo e Mauro, o amigo Veiga lhes

mostra um conto de sua autoria. “Conto é tudo o que chamamos de conto”, frase que

encerra o trecho, foi, na verdade, dita por Mário de Andrade em uma de suas dezenas de

cartas a Fernando Sabino (2005, 55).

Foi também ele quem disse a frase com que Eduardo encerra um diálogo com os

amigos, em um bar: “a consciência é inútil sem uma convicção adquirida” (2005, 89). A

terceira menção é feita em diálogo com Toledo, quando Eduardo revisita Belo Horizonte,

depois de mais de uma década morando no Rio. Este lhe diz: “Você tem medo da morte?

Então desista de uma vez, porque morrer não tem importância – Mário de Andrade morreu

e está mais vivo do que eu, do que você. Estou repetindo palavras dele”, palavras estas

realmente ditas pelo modernista em carta enviada a Fernando Sabino (2005, 241).

As já citadas diferenças entre o autor e Eduardo Marciano são o bastante para

corroborar o apontamento de Gabriela Kvacek Betella, para quem boa parte da obra de

Fernando Sabino consiste em uma “confissão ficcional” (2008, 261). Quer dizer, segundo

a pesquisadora, o objetivo do romance “não é a recriação documental do passado, mas o

autor se serve dele para colher a matéria da ficção, que promove suspensões temporais,

intercala assuntos, mescla pessoas e divaga sobre vários temas” (2008, 352-3). Em suma,

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O encontro marcado não é uma autobiografia nem uma história iniciada “do zero”, isto

é, sem nenhum ponto de encontro com a vida de seu autor. Trata-se, como se viu, de uma

ficção entremeada por vivências ora reais, ora retrabalhadas.

Chegou-se a essa conclusão após análise de toda a trajetória de Eduardo Marciano

comparada à de Fernando Sabino. Para isto, recorremos a livros, teses, dissertações e

artigos tanto sobre o romance quanto sobre a vida do escritor. Não poderíamos nos furtar

a abordar os traços autobiográficos de O encontro marcado, uma vez que, como se viu, o

tema está presente em boa parte das fontes consultadas. E é justamente a trajetória do

protagonista o foco das próximas três etapas. Acredita-se que é possível travar um diálogo

frutífero entre esta e as principais ideias de Søren Kierkegaard, objetivo principal desta

dissertação.

Já de antemão, vale dizer que não se tomou o caminho existencial de Eduardo

Marciano como mera ilustração das ideias do pensador dinamarquês. Usa-se “diálogo”

como referência aos pontos de encontro e distanciamento entre o protagonista e os

conceitos cunhados por Søren Kierkegaard, isto é, como aquele vivenciou os três estádios

(estético, ético e religioso), o pecado, a fé, a angústia e o desespero, temas presentes em

boa parte da volumosa produção do dinamarquês. O pensador é inclusive citado em O

encontro marcado, em um diálogo entre o protagonista e o velho Germano, personagem

em que, segundo Arnaldo Bloch, “há componentes de Jayme Ovalle” – compositor, poeta

e amigo de Fernando Sabino (2000, 89-90).

– Sabe de uma coisa, Eduardo? Estive pensando muito em você. Seu erro

fundamental é lembrar em vez de recordar. Há uma diferença entre lembrar e

recordar; recordar é reviver, lembrar é apenas saber. O que é recordado fica,

o que é lembrado é também esquecido.

– Kierkegaard já disse coisa parecida.

– Já vem você. Quem é este? O jogador?

– Não: um filósofo dinamarquês.

– Ah! Eu estava confundindo com o Friedenreich, aquele jogador de futebol.

Pois se ele disse isto, ele é dos bons (2005, 183).

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Na 79ª edição de seu romance mais conhecido, Fernando Sabino explica cada

menção feita a livros, poetas, romancistas, filósofos, cientistas etc., em uma seção

intitulada “Citações e referências em O encontro marcado apresentadas pelo autor”. Ao

pensador dinamarquês, Sabino atribui “um estilo literário admirável que sempre me

fascinou” (2005, 294). Segundo o mesmo,

consta que Miguel de Unamuno, escritor espanhol também admirável,

aprendeu dinamarquês somente para lê-lo no original. Não cheguei a tanto:

mais modestamente, me limitei a ler em português, francês ou inglês com

semelhante deslumbramento toda obra sua que me caísse nas mãos (2005,

294).

O objetivo principal da dissertação consiste, pois, em construir uma interpretação

do romance a partir de um diálogo entre Sabino e Kierkegaard, interpretação a ser

amparada por pressupostos teóricos desenvolvidos por nomes da Hermenêutica e da

Estética da Recepção, como Hans-Georg Gadamer e Wolfgang Iser, bem como por teses

e dissertações que elucidam e retrabalham tais pressupostos. Quer dizer, estes teóricos

serão acessados oportunamente ao longo da análise. Acredita-se que tal estratégia

metodológica legitima o diálogo comparatista e interdisciplinar entre O encontro

marcado e as ideias de Søren Kierkegaard.

É justo dizer, aliás, que tal diálogo não é inédito na crítica literária. Dulce Maria

Viana Mindlin abordou-o em Ficção e mito: à procura de um saber. Outro pesquisador

que o explorou foi Marcelo Antunes Neves, em artigo intitulado “Os caminhos

existenciais em O encontro marcado”, publicado pela revista Vertentes & Interfaces I:

Estudos Literários e Comparados. Acontece, no entanto, que as duas análises não foram

(ou não puderam ser) profundas o bastante. Isto porque Dulce Maria Viana Mindlin lhe

dedicou somente seis páginas, correspondentes a um tópico do terceiro capítulo de seu

livro. Por sua vez, Marcelo Antunes Neves tentou espelhar a trajetória do personagem

principal nas ideias de Kierkegaard, mas não só as definiu superficialmente como o fez

somente em relação ao conceito de desespero, deixando de lado os de estádios de vida

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(estético, ético e religioso), de pecado e de angústia. É também ao preenchimento dessas

lacunas que se dedica a presente dissertação.

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36

2

Estádios existenciais: proximidades e distanciamentos entre Eduardo Marciano e

Søren Kierkegaard

A trajetória de Eduardo Marciano apresenta pontos de encontro com o conceito

de estádios existenciais, concebidos por Søren Kierkegaard. Os anos de juventude

compreenderiam o primeiro, estético, em que predominam a busca incessante pelo prazer,

o apego à sensorialidade imediata e, não raro, o vazio derivado da incapacidade de se

significar a própria vida. O indivíduo supera este estádio e adentra o segundo, ético,

quando passa a nortear sua conduta com base em valores, assumindo o compromisso de

cumprir com papéis socialmente esperados, como de cidadão consciente, trabalhador

honesto, pai de família e assim por diante. Nesta fase, o indivíduo mesmo assim é

acometido pelo sofrimento, já que ainda não se conecta a um Poder superior. Quando o

faz, assenta os pés na terceira e última fase, religiosa, marcada pelo mergulho na esfera

divina como fonte de significação da própria vida. Este capítulo se dispõe a analisar a

trajetória de Eduardo Marciano à luz dos conceitos de estádios existenciais de Søren

Kierkegaard.

2.1. O estádio estético

A trajetória de Eduardo Marciano cumpre estádios, a começar pelo estético.

Acredita-se que é possível, sim, afirmar que o protagonista vivencia esta fase em seus

anos de juventude. A partir de agora, serão apresentados o conceito de estádio estético

em si, como concebido por Søren Kierkegaard, bem como as cenas do romance que

autorizam tal interpretação. Vale relembrar que não se trata de considerar a vida de

Eduardo como mera ilustração das ideias do filósofo. Trata-se, isto sim, de realizar uma

interpretação amparada por Søren Kierkegaard. Afinal, o foco principal desta abordagem

é e será, a todo momento, o romance em si.

O estádio estético é caracterizado pelo signo do prazer. Kierkegaard simboliza esta

fase por meio da figura do sedutor. O esteta transita somente pela dimensão da

sensorialidade, do imediato, do instante fugaz, da busca irrefreada e egoística de

sensações, tanto físicas quanto intelectuais. O pensador dinamarquês delineia o conceito

em algumas de suas obras, como O banquete (1972), O matrimônio (1994) e Estética y

ética en la formación de la personalidad (1955), mas o faz sobretudo em Diário de um

sedutor (1974). É por meio da figura de Johannes, autor do diário que narra a conquista e

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posterior (e proposital) abandono da jovem Cordélia, que o filósofo representa o esteta

por excelência. O livro é introduzido por uma voz anônima que conta haver encontrado

os originais do tal diário em uma escrivaninha. Segundo tal voz, Johannes era um

indivíduo para quem

o prazer constituía a finalidade de toda a sua vida. Primeiro gozava

pessoalmente a estética, após o que gozava esteticamente a sua personalidade.

Gozava pois egoisticamente, ele próprio, o que a realidade lhe oferecia, bem

como aquilo com que fecundava esta realidade (1974, 146-7).

O esteta vive em constantes e incessantes busca e fruição de prazeres imediatos,

não somente dos físicos, mas também dos de cunho intelectual e poético, como apontado

anteriormente. O hedonismo egoísta é, pois, a marca deste estádio, sendo seu lema,

simplesmente, “hay que gozar de la vida” (Kierkegaard: 1955, 37). Em certo momento

da obra O banquete, esta figura toma a palavra para resumir seu modo de vida, fazendo

não restar dúvidas quanto à sua maneira de enxergá-la, defini-la e vivê-la: “eu não medito,

eu quero gozar. Deixemo-nos de conversas [...]. Quem, aos vinte anos, não sabe que há

um imperativo categórico: Goza! é uma pessoa ridícula. Quem não cumpre este dever é

um puritano ou um doente” (1972, 152; grifo do autor).

Este indivíduo se recusa a escolher um rumo para a própria vida, a assumir um

compromisso consigo mesmo, “senha” para sua entrada no estádio ético, a ser melhor

compreendido em breve. Justamente por não escolher, “o esteta-sedutor deixa-se levar ao

sabor da corrente e das mais diversas fantasias; a indiferença é a norma de suas

experiências. Não é um imoral propriamente dito; sua indiferença coloca-o em um

confortável amoralismo” (Le Blanc: 2003, 61-2; grifos do autor). O indivíduo está, aqui,

na dependência visceral dos estímulos externos. Afinal, “la condición para ese goce es,

aquí también, una condición exterior que no depende del individuo; pues aunque éste

goce de sí mismo, como dice, sólo puede hacerlo en el goce que depende a su vez de una

condición externa” (Kierkegaard: 1955, 51). Em suma, como afirma o já citado Charles

Le Blanc, “o estádio estético torna o prazer a meta última da vida” (2003, 57).

Faz-se pertinente, agora, voltar o olhar ao romance para identificar que paralelos

podem ser traçados entre o estádio estético, como definido por Søren Kierkegaard, e a

trajetória de Eduardo Marciano. Adianta-se que é nos anos de adolescência, em Belo

Horizonte, na companhia dos amigos Mauro e Hugo, que o protagonista vivencia a fase

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propriamente estética de sua vida, banhada em literatura, álcool, boemia e no binômio

sexualidade/remorso.

2.1.1. A juventude de Eduardo Marciano: a fase estética

Poderia se argumentar que o primeiro indício da imersão de Eduardo no estádio

estético seria sua iniciação sexual na casa de meretrício. Isto porque, como se viu, o

hedonismo, sobretudo sua face sexual, é a marca característica da postura do esteta frente

à vida. No entanto, esta primeira experiência foi traumática para o jovem, também por

conta de sua formação religiosa. Aliás, sua sexualidade é motivo tanto de prazer quanto

de remorso, como já se adiantou. Este tópico será melhor delineado quando a análise focar

a questão do pecado. É por meio da literatura, isto sim, que Eduardo mais propriamente

assenta os pés nesta fase de sua trajetória, sempre ao lado de Mauro e Hugo. Quer dizer,

“juntos, faziam suas descobertas literárias. Que literatura proletária! Verlaine, isto sim;

Rimbaud e Valéry. Juntos, choraram Baudelaire. Neruda, Garcia Lorca, Fernando Pessoa,

soltos pelas ruas” (2005, 54).

Em geral, andavam à noite pelas ruas de uma Belo Horizonte ainda marcada pelo

clima interiorano e pacato. Regados a álcool, eram capazes das piores diatribes. Trocavam

placas de rua, subiam o viaduto da cidade “porque (rezava a tradição) um poeta (um

grande poeta) havia feito aquilo antes, para se divertir” (2005, 57). O tal “grande poeta”

é, claro, Carlos Drummond de Andrade, o preferido da turma. Chegaram, inclusive, a

vender o esqueleto do pai de Mauro, médico, na tentativa de conseguir dinheiro para

beber. O nome com que o batizaram? Yorick, clara referência a William Shakespeare. O

plano resulta em fracasso por não encontrarem um comprador. Levam Yorick a uma

sorveteria, cruzam suas pernas e colocam um cigarro em sua boca, assustando clientes e

um garçom. Acabam enterrando-o no jardim de um dos delegados da cidade. Esta é, sem

dúvida, uma das cenas mais hilárias do romance.

Eduardo, Hugo e Mauro chegaram a ser presos após arrombarem a vitrine de uma

loja de chapéus, de madrugada, pelo simples prazer de usar um de caçador. Como relata

o narrador, “aquilo ainda acabaria mal: por pouco não foram apontados à cidade como

ladrões. Não tinha nexo tamanha leviandade – eles próprios, agora, protestavam. E

buscavam um sentido, além da simples espontaneidade de viver” (2005, 79; grifo nosso).

No entanto, a irresponsabilidade dos jovens não parou por aí. Eduardo e Hugo,

alcoolizados, certa vez se despiram em frente à igreja São José, depositando as próprias

roupas nas mãos de Veiga, diretor do jornal em que trabalhavam, logo antes de iniciarem

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um inconsequente discurso político, apoiado por Mauro e endossado por um transeunte

qualquer (2005, 92-3). Como bem resumiu Maria Glória dos Reis, aos três amigos

interessava “viver toda a experiência da adrenalina, de arriscar-se em determinado

projeto, já imaginando qual viria a seguir” (2012, 25). Quase todas as farras e “artes”

eram resultado do acionamento da senha “Não analisa, não!”,

palavra de ordem, espécie de lema que comandava o destino dos três, diante

do qual nenhum obstáculo se sustinha. Acordo tácito, compromisso de honra:

não analisar, porque do contrário surgiriam problemas, todos tinham seus

problemas: esmiuçando motivos, prevendo consequências, nenhuma atitude

seria possível, a vida perderia a graça. Tinham de viver em cada momento

uma síntese de toda a existência, não analisar jamais! (2005, 72; grifo nosso).

A frequência das farras dos três amigos fez com que seus pais decidissem se

encontrar para tratar do assunto, na tentativa de freá-las. Por isso, reuniram-se na casa de

seu Marciano. Eduardo foi compelido a participar assim que o pai ficou sabendo que os

rapazes subiam o Viaduto, a trinta metros do chão. A inconsequência e insolência do

jovem são notáveis no diálogo a seguir, por representarem bem sua imersão no estádio

estético, isto é, sua busca incessante por prazeres, diversões e distrações.

– Não tem perigo nenhum. Estou acostumado a saltar do último trampolim,

lá na piscina.

– E posso saber que proveito vocês tiram, arriscando assim a vida?

– Posso saber que proveito vocês tiram, não arriscando a sua? (2005, 64).

Apesar das diversões, farras, bebedeiras e similares, os amigos não raro eram

acometidos pelo tédio e por um profundo vazio existencial. Eis um ponto significativo da

trajetória de Eduardo Marciano, se lida e interpretada à luz de um diálogo com as ideias

de Søren Kierkegaard. Por viver levianamente, em busca de prazer, recusando-se a

escolher um rumo para si, dependendo avidamente de novos estímulos externos trazidos

pelo acaso, o esteta frequentemente vivencia momentos dessa natureza. É o que fica claro

em Diário de um sedutor, em que Johannes lamenta a demora em rever Cordélia, seu

alvo.

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Demoníaco acaso! Nunca te amaldiçoei por teres surgido, amaldiçoo-te

porque, em absoluto, te não mostras. [...] Tu, a quem amo com toda a minha

alma simpatizante, tu, a cuja imagem e semelhança me criei a mim próprio,

por que não apareces? [...] Demoníaco acaso! Eu te espero. Não pretendo

vencer-te com princípios, nem com isto a que os imbecis chamam caráter;

não, eu quero sonhar-te! [...] mas faz mover estas águas paradas, interrompe

o silêncio. Matar-me assim de fome é uma vergonha para ti, pois imaginas ser

mais forte do que eu (1974, 163).

A voz anônima, que introduz o diário de Johannes, corrobora a fragilidade deste

ao adiantar que “logo que a realidade perdia a sua importância como estimulante, ficava

desarmado, e nisto consistia o mal que o habitava. Tinha consciência disto, mesmo no

momento do estímulo, e o mal estava nesta consciência” (1974, 147). Da introdução da

tradução de Mi punto de vista, consta que “el estadio estético nos sumerge en el hombre

temporalizado, en el hombre esclavo del momento y para el cual sólo queda un recurso

supremo: la desesperación” (1972, 14-5). O mesmo apontamento está registrado em

Estética y ética en la formación de la personalidad. Ao se dirigir ao esteta, o orador critica

sua prisão ao instante, à dimensão da sensorialidade. Chega a alertá-lo, dizendo que “por

eso tu vida se disuelve y no sabes explicarlo. Si alguien desea aprender el arte de gozar,

hace bien en dirigirse a ti; pero si quiere conocer la vida, anda mal encaminado” (1955,

36). É justamente a dependência dos estímulos externos que caracteriza a armadilha em

que o esteta cai com frequência. Afinal, “el que vive estéticamente lo espera todo de

afuera. De ahí la angustia enfermiza con la que mucha gente habla de lo terrible que hay

en el hecho de no haber encontrado su lugar en el mundo” (1955, 131-2).

Com Eduardo Marciano não é diferente. O personagem sofre por não enxergar um

sentido para a vida. Por isso, anestesia-se com álcool, literatura, farras e “artes”. Não à

toa, os jovens têm o costume de “puxar angústia” entre si, isto é, de constatar a tragicidade

da condição humana, sua efemeridade e impotência diante da inexorabilidade da

passagem do tempo e inevitável chegada da morte: “Tema habitual de Eduardo: o tempo

em face da eternidade. Caminhamos para a morte. O futuro se converte, a cada instante,

em passado. O presente não existe. Vivemos a morte desde o nascimento” (2005, 60).

Uma das cenas que ilustram bem o vazio sentido pelo protagonista é a do Cassino

Atlântico, quando este faz uma visita à namorada, Antonieta, filha de um ministro que

residia no Rio de Janeiro. Ela avisara que o traje era a rigor, o que irrita o personagem:

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“Traje a rigor. Não era palhaço para se prestar a semelhante papel” (2005, 100). Eduardo

suborna o segurança com dinheiro conseguido na roleta e acaba entrando no salão vestido

normalmente, sem trajes formais. Dança à força com Antonieta, que lhe pede que vá

embora por não estar vestido como deveria e pela visível embriaguez. Eduardo fica menos

de cinco minutos, sendo logo retirado do salão por um garçom e um porteiro. Até aqui, o

personagem está distante de encontrar um sentido concreto para sua trajetória, preso que

está no plano das sensações, prazeres e fruições intelectuais. Como um esteta, recusa-se

a refletir seriamente sobre si de maneira a alçar um novo patamar existencial. Isto é,

mostra-se incapaz de escolher um propósito norteador, de assumir um compromisso, de

seguir um rumo real e concreto na vida.

Pensou em tentar de novo a sorte no jogo, e, de repente, veio-lhe um

irreprimível desalento ante tudo aquilo. Agora que o efeito do álcool ia

passando, percebia como faltava sentido aos seus impulsos, como eram

incoerentes as suas sucessivas reações [...]. Sentia-se miserável – tudo inútil,

vazio, inócuo, despropositado. Ninguém entenderia jamais o que ele sentia

naquele momento – bastava parar, sentar num banco da praia, meditar com

calma, e faria dele um destes momentos capazes de decidir todo um destino.

Um destes momentos – todo um destino.

Em vez disso, tomou um ônibus, foi para a cidade (2005, 102-3; grifo nosso).

Outra cena que ilustra bem o tédio vivido por Eduardo, por conta de sua imersão

no estádio estético, é a discussão com seu Marciano após conversa com o pai de

Antonieta. O ministro lhe oferecera um emprego público no Rio de Janeiro. O jovem,

extenuado pelo esforço obsessivo que empreendera no treino para sua volta à natação –

que resultara em um mero terceiro lugar em competição estadual –, e também por conta

de seu excessivo orgulho, recusa tanto os conselhos quanto o emprego. Seu Marciano

repreende Eduardo, dizendo que o ministro só queria ajudá-lo.

– Mas eu não queria dizer que não preciso de seus conselhos. Não preciso dos

conselhos dele.

– Não vejo motivo para tanto orgulho.

– Não é orgulho, papai, é tédio dessa vida... (2005, 135; grifo do autor).

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À luz dos conceitos de Søren Kierkegaard, o “tédio dessa vida” se deve ao fato de

o jovem ainda estar desconectado de uma verdade eterna, absoluta, da dimensão

atemporal de sua própria natureza de indivíduo. Não se pode perder de vista que, até aqui,

a relação do protagonista com a espiritualidade é fria, distante, maquinal, automática,

desconfiada. Comparece às missas de domingo por imposição dos pais. Esta é justamente

a combinação que o leva a vivenciar momentos de tédio, preso que está na esfera

meramente sensorial e orgânica da realidade.

Assim o orador de Estética y ética en la formación de la personalidad explica o

porquê do sofrimento do esteta, que, argumenta-se aqui, cabe também a Eduardo: “Un

solo instante tienes en él [o prazer] la conciencia de que todo es vanidad […]. Resulta de

ello que tu vida se halla entre dos enormes contrarios; tienes, a veces, una energía

prodigiosa, una indolencia igualmente grande” (1955, 55-6). O alerta ao amigo esteta vai

além, quando afirma que “toda concepción estética de la vida es desesperación, y que

todo individuo que vive estéticamente es un desesperado, lo sepa o no” (1955, 53). Nicola

Abbagnano corrobora a passagem anterior, ao afirmar que “o esteta precisa se lançar no

desespero, optando por ele e entregando-se a ele com todo o empenho, para romper o

invólucro da pura esteticidade e alcançar, num salto, a outra alternativa possível, a vida

ética” (1978, 15). Também para Thomas Ramson Giles, “é só ao preço do desespero

estético que o Indivíduo pode entrar neste estádio, uma vez que é no desespero profundo

que tomará a consciência necessária para abandonar a atitude de espectador da realidade”

(1975, 17).

Toma-se o cuidado de, por enquanto, não se entrar na definição de desespero

propriamente dito, como concebido por Søren Kierkegaard. Isto será feito mais

oportunamente, em etapa posterior desta análise interpretativa e interdisciplinar de O

encontro marcado. Ainda assim, vale destacar um dos muitos paralelos entre a trajetória

de Eduardo Marciano e a filosofia do pensador dinamarquês. Isto é, a de que o vazio

existencial vivido pelo esteta se deve à sua dependência de estímulos externos, sendo eles

de diferentes naturezas: sexuais, intelectuais, artísticos etc. Deve-se ao fato de o jovem

até então não ser capaz de escolher um rumo para si, de assumir um compromisso consigo

mesmo no sentido de se portar, frente à vida, de maneira responsável e idônea, assumindo

e exercendo um papel, migrando, pois, da esfera individual, do hedonismo egoísta, para

a do geral, do universal.

Eduardo Marciano não tem consciência exatamente do porquê de seu sofrimento.

Ainda assim, visa superá-lo. Acredita que um caminho possível para isto seria o de se

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casar com Antonieta, não só para legitimar o desejo sexual sentido por ambos – livrando-

se assim do remorso, reflexo de sua formação religiosa –, como sobretudo para construir

uma vida familiar harmoniosa e simples. Vê na literatura uma missão: dar seu testemunho,

escrever, influir, marcando seu nome na história como um grande romancista. Em suma,

Eduardo Marciano combina estas estratégias e tenta concretizá-las, dando, assim, entrada

definitiva no estádio ético, fase seguinte de sua trajetória e tema da próxima etapa da

presente análise.

2.2. O estádio ético

Ao esteta se opõe o homem do estádio ético, que “submete-se a uma forma,

conforma-se ao universal; renuncia ao instante, renuncia a ser excepcional” (Le Blanc:

2003, 61-2). Enquanto o esteta se recusa a escolher um rumo para a vida, isto é, se recusa

a escolher, o ético prefere “edificar sua personalidade sobre bases sólidas, manter com

sua interioridade uma relação que nada teria de arbitrária, ou seja, uma relação cuja

legitimidade seria garantida por regras” (2003, 62). Não à toa, o que caracteriza o

indivíduo imerso neste segundo estádio é o fato de “comprometer-se concretamente com

a existência” (2003, 62; grifo do autor).

Pode-se argumentar que se recusar a escolher também é uma escolha. No entanto,

“o homem não pode subtrair-se a optar, pois não querer optar é ainda uma opção, a da

má-fé, da trapaça com a vida” (Farago: 2006, 133). Soma-se a isto o fato de que a simples

escolha não é o bastante para o abandono da vida estética. O que realmente vale “en la

elección no es elegir lo que es justo, sino la energía, la seriedad y la pasión con las cuales

se elige” (Kierkegaard: 1955, 20-1).

Ao escolher a escolha – com o perdão da necessária e inevitável redundância –, o

indivíduo entende ser o responsável por sua própria vida. Por isso, ancora-se em valores

e princípios para afirmar sua personalidade e erigir uma postura própria. Desta forma,

exerce sua liberdade de maneira ajuizada e sensata. Personalidade e princípios morais

devem, pois, se espelhar mutuamente. Segundo Nicola Abbagnano, a fase ética “é o

domínio da reafirmação de si, do dever e da fidelidade a si próprio: o domínio da liberdade

pela qual o homem se forma ou se afirma por si” (1978, 15-6). Nesta fase, “a

personalidade é centrada em si mesma” (Almeida e Valls: 2007, 36-7). O homem ético

opta por si no sentido idôneo e não mais no hedonista, como o fazia quando ainda imerso

no estádio estético. Segundo Søren Kierkegaard, pois, “a ética é antes de tudo a do

cidadão, assegurando a inserção do indivíduo na sociedade” (Farago: 2006, 129).

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O estádio ético é o da reafirmação do dever e da fidelidade a si mesmo. É o

estádio da opção pela qual o indivíduo assume a responsabilidade por si

próprio, toma sobre o si o ato de ser ele mesmo. Pela reafirmação ética, o

indivíduo jura fidelidade a si mesmo, dedica-se a uma tarefa; engaja-se,

conquista a coragem e assegura a fidelidade à existência. Enquanto o esteta

permanece no puro imediato, o ético conserva o imediato no mediato (Giles:

1975, 20).

O indivíduo neste estádio quer ser cidadão, trabalhador, honesto, cumpridor de

princípios éticos positivos, participativo na esfera pública, provedor de uma família. O

signo que melhor simboliza o esteta é o do prazer. Por isso, Søren Kierkegaard o

representou na figura do sedutor, daí a construção do personagem Johannes e de seu

diário. Já ao ético, o filósofo atribui o signo do dever, representando-o na figura do

esposo. Isto porque, “no casamento, o homem não é apenas responsável por si mesmo,

mas o é também por outro e diante de outro. A família promove a superação do

egocentrismo, da prisão narcísica do esteta. Implica a necessidade do reconhecimento da

importância do outro” (Farago: 2006, 130).

O matrimônio é atributo definidor deste estádio a ponto de ser o título de um dos

livros da vasta produção de Søren Kierkegaard. A referida obra consiste em uma longa

carta endereçada a um esteta, amigo do remetente. Este defende para aquele a validade

da vida ética erguida sob a égide do casamento. O livro é válido para ilustrar a oposição

entre os dois estádios, já que a sensualidade é comparada – e preterida – ao amor

romântico e monogâmico. Assim, pois, o remetente recomenda ao amigo:

Deixa pois a Don Juan, a sua pequena glória, ao cavalheiro, o seu noturno e

suas estrelas, posto que não veem mais acima. O firmamento do matrimônio

é ainda mais elevado. Tal é o amor conjugal. E quando não é assim, não é por

culpa de Deus, nem do cristianismo, nem da cerimônia nupcial, de maldições

ou de bênçãos: é por culpa dos homens somente (1994, 49).

Em uma primeira aproximação à obra de Søren Kierkegaard, é possível deduzir,

precipitada e erroneamente, que o salto de um estádio ao outro anula de maneira sumária

as características do anterior. Não é bem o que acontece. Quer dizer, o indivíduo ético

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não abandona o prazer. Vive-o, isto sim, de maneira mais responsável e comedida. A

sensualidade, por exemplo, continua existindo, sendo agora vivenciada sob o véu

legitimador do casamento: “Meu matrimônio somente tem moralidade e, por conseguinte,

beleza estética, quando aquela, cuja vida compartilho neste mundo, na união mais terna,

está igualmente próxima a mim no domínio do espírito” (Kierkegaard: 1994, 96). France

Farago elucida bem esta questão ao afirmar que “a estética pode deixar-se ordenar pela

ética”, de maneira a que se atinja uma “existência feliz que consiste no equilíbrio destas

duas ordens” (2006, 129). O indivíduo ético ainda usufrui dos prazeres da vida, mas agora

sem a “diversidade, dispersão, acaso e inconstância” características do estádio estético

(2006, 125).

Tentou-se delinear os principais contornos definidores do estádio ético, como

concebido por Søren Kierkegaard. Foi inevitável recorrer a teóricos que elucidaram o

pensamento do dinamarquês, por conta da evidente densidade e complexidade de suas

ideias. Boa parte de suas obras é escrita na forma de pseudônimos, o que, à primeira vista,

pode confundir um(a) leitor(a) desavisado(a), que pode vir a tomá-lo como um filósofo

contraditório.

Repete-se a estratégia adotada na etapa anterior. Isto é, define-se o conceito do

estádio em questão para, aí sim, por meio de uma leitura comparatista e pendular,

identificar seus ecos na trajetória de Eduardo Marciano. Para isto, lança-se mão do

pressuposto hermenêutico de Hans-Georg Gadamer, delineado em Verdade e método.

Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica., segundo o qual “o sentido de um

texto supera seu autor não ocasionalmente, mas sempre. Por isso a compreensão não é

nunca um comportamento somente reprodutivo, mas é, por sua vez, sempre produtivo”

(1998, 444).

Quer dizer, o processo de compreensão de um texto literário consiste, em parte,

em um esforço interpretativo do(a) leitor(a), isto é, na participação deste(a) na construção

do sentido. Não se trata, pois, de mero reflexo integral do disposto e expresso na obra.

Como bem elucida Gadamer, “a interpretação não é um ato posterior e oportunamente

complementar à compreensão, porém, compreender é sempre interpretar, e, por

conseguinte, a interpretação é a forma explícita da compreensão” (1998, 459). Nunca é

demais frisar que o foco principal desta dissertação é o romance O encontro marcado.

Não se quer tomar a vida do protagonista como mera ilustração das ideias de Søren

Kierkegaard. Quer-se, isto sim, realizar uma interpretação interdisciplinar que resulte em

uma contribuição válida para o estudo da obra de Fernando Sabino.

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2.2.1. Casamento e vocação literária: os retumbantes fracassos de Eduardo

Marciano

A entrada de Eduardo no estádio ético se dá por meio do matrimônio com

Antonieta. Agora, o jovem adulto não mais se embriaga de literatura nem se entrega aos

prazeres fugidios e estímulos externos. Torna-se funcionário da prefeitura do Rio de

Janeiro, emprego conquistado por intermédio do ministro, seu sogro. É um homem

casado, atento aos acontecimentos políticos do país, alinhado à esfera do geral, guiando

sua vida pela tônica do dever: o de ser marido fiel, funcionário exemplar, bom amigo,

cidadão consciente e antenado etc. Sua sexualidade, antes motivo de tormento, é

apaziguada por agora estar sob o véu protetor e legitimador do casamento. Eduardo visa

ao cumprimento de seu compromisso de escrever um romance, isto é, de finalmente se

tornar um escritor e marcar seu nome na história da literatura. Aos poucos, vai

construindo um código de princípios éticos norteadores para sua conduta. Tem

consciência de que precisa se firmar no mundo, encontrar seu lugar nele, escolher um

rumo para a vida: “As estripulias juvenis teriam que ficar para trás, porque agora nosso

herói definitivamente entraria para a vida adulta e para a esfera do poder” (Costa: 2007,

92).

A interpretação que aqui se faz é de que Eduardo fracassa de maneira retumbante

no estádio ético. O protagonista falha em seu propósito de construção de uma vida

familiar simples. Acaba cometendo adultérios. Reconstrói seu código de princípios éticos

a todo momento, mas logo o desrespeita. Reformula-o novamente, e torna a desrespeitá-

lo. Distancia-se cada vez mais de sua vocação como escritor, sendo temporárias e

infrutíferas suas tentativas de retomá-la. Entrega-se ao consumo excessivo de álcool, ao

pernicioso hábito de frequentar os pontos da boemia carioca de seu tempo. Esta etapa da

análise irá levantar as passagens de sua trajetória que justificam tal interpretação.

As primeiras serão justamente as relativas à infidelidade conjugal e ao crescente

distanciamento em relação a Antonieta, sua esposa. O primeiro adultério se dá logo no

início da vida de casado: “Lêda finalmente separada de Amorim. Uma noite Eduardo foi

levá-la em casa, acabou beijando-a – um beijo com gosto de cigarro” (2005, 162). Tempos

depois, o protagonista acaba conhecendo Gerlane por intermédio de amigos em comum.

Com ela tem um caso atribulado, de idas e vindas. Em certa ocasião, Antonieta encontra

um lenço sujo de batom no bolso da calça de Eduardo e interpela-o. Apreensivo, ele

inventa que o lenço era de Térsio e que a mancha de batom era de Gerlane, com quem o

amigo estava tendo um caso (2005, 193).

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Eduardo se revolta contra a vida que vinha levando. Nota que está numa roda de

pessoas diferentes de si. Percebe estar se distanciando cada vez mais de sua vocação de

escritor. Tenta retomar as rédeas de seu projeto existencial, isto é, cumprir com o

compromisso, assumido por ele mesmo, de levar uma vida familiar simples e se dedicar

à produção literária. Comunica ao amigo Térsio a vontade de se mudar do Rio, “ir para

um lugar sossegado, ter um filho, criá-lo longe daqui, constituir uma família,

compreende? Levar uma vida decente. Eu queria ser um homem simples, direito... Um

homem como meu pai” (2005, 169-70).

O protagonista acaba se mudando para outro bairro com Antonieta. Esforça-se por

reatar o laço matrimonial, convivendo mais com a esposa, trazendo-lhe revistas,

presentes, sem passar no bar depois do serviço. Passam a ir ao cinema, a conversar mais.

Promete-lhe que seriam, enfim, felizes. As ideias voltam a frutificar em sua mente a ponto

de iniciar a escrita de um livro. Em suma, “o esforço que ele fazia era o de quando voltara

a nadar, anos antes. Desta vez haveria de vencer” (2005, 179).

A amizade com o velho Germano também acarreta nova investida de Eduardo

para salvar seu casamento. As conversas com o novo amigo arejam de tal modo a relação

com Antonieta que os cônjuges se buscam “sem pressa, para cumprir pacificamente os

deveres de estado. Essa era a felicidade, pois. A rotina não sendo o temido fantasma do

tédio, mas a ordem, o equilíbrio, a permanência tornados hábito” (2005, 189). Eduardo

se esforça para levar uma vida simples, regrada, comedida, em cumprimento dos papéis

esperados dele, isto é, de bom e fiel marido, trabalhador honesto, cidadão consciente, bem

ajustado à esfera do geral, com a conduta regida pelo signo do dever, da virtude. Um

indivíduo do estádio ético, portanto, se esta fase de sua vida for interpretada em diálogo

com os conceitos de Søren Kierkegaard.

No entanto, Eduardo é incapaz de se manter na senda reta, de respeitar a linha de

conduta por ele mesmo traçada. Isto porque os valores éticos são históricos, temporários,

datados, relativos, passíveis de desconstrução. Não bastam, pois, para significar a vida do

indivíduo a ponto de realizá-lo existencialmente. Não são princípios advindos de uma

dimensão absoluta, criadora e significadora da existência e da natureza humanas. Não à

toa, o próprio personagem se questiona quanto ao que é estencial e orgulhosa e

ingenuamente tenta concluir por si próprio, munido de senso crítico e excessivo

racionalismo. É interessante notar que o amigo Térsio o alerta quanto à fragilidade dessa

resolução. O trecho abaixo simboliza bem a interpretação que aqui se faz desta fase da

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trajetória do personagem principal, isto é, de sua inabilidade em cumprir com um projeto

de vida por ele mesmo arquitetado.

Organizou um decálogo de conduta no qual pressa, vaidade, teimosia,

egoísmo, dispersão, eram defeitos a evitar, com o incentivo das virtudes

correspondentes: calma, modéstia, humildade, generosidade,

concentração. Em vez de falar, ouvir; em vez de responder, refletir; em

vez de decompor, reintegrar.

Não teve muita oportunidade de praticar tudo isso. Mesmo porque não

sabia por onde começar, e concluiu que ao artista era estencial certo

egoísmo, do contrário jamais exerceria sua imaginação criadora; também

certa vaidade em se sentir capaz de criar. Concluiu que às vezes é mais

importante perguntar do que ouvir a resposta; e se a pressa era inimiga da

perfeição, certo grau de imperfeição era também indispensável à obra de

arte, para dar a medida do homem que a produziu. O artista era uma

espécie de homem! Reduziu, então, suas conclusões a uma norma apenas:

restringir-se ao estencial [grifo do autor]. Mas o que era estencial? Para

descobrir, muniu-se de um esquema de disciplina: ordem, obediência,

respeito, lucidez e método. Pôs Térsio a par de suas conclusões.

– Você assim ainda acaba mal – era o que dizia o outro, sacudindo a cabeça

(2005, 180).

E de fato Eduardo “acaba mal”. O aborto natural, sofrido por Antonieta por conta

de uma gravidez tubária, representa a pá de cal no casamento. Ambos tentam gerar um

filho novamente, mas sem sucesso. No íntimo, Eduardo se sente o culpado pelo ocorrido

devido ao seu caso adúltero com Gerlane. Por isso, conclui que “vivia sempre

recomeçando, não nascera para vencer, mas para encher raia, tirar o terceiro lugar.

Gerlane surgindo-lhe no caminho quando já se julgava a salvo com sua mulher: era inútil,

o filho perdido, ele próprio perdido” (2005, 198-9). O personagem realmente atribuía sua

salvação ao casamento, à constituição de uma família. Mas falha miseravelmente na

tentativa de significar sua existência por meio do signo do dever, carimbo característico

do indivíduo imerso no estádio ético da vida, segundo Søren Kierkegaard.

O fracasso não se dá somente no matrimônio. O mesmo ocorre com sua vocação

literária, também de maneira gradual e irreversível: “Térsio se arranjara afinal no

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matutino, aparecia todas as noites depois do serviço, a caminho da pensão onde morava.

Eduardo lhe expunha as suas ideias, já sem muita convicção” (2005, 162; grifo nosso).

Relata este conflito em carta a Mauro: “literatura. Já não escrevo nada. Está tudo

esgotado. Ou se faz alguma coisa de verdadeiramente novo, ou é melhor esperar os

tempos novos” (2005, 163).

O protagonista demonstra raiva por estar falhando em seu projeto, ou melhor, por

estar descumprindo seu compromisso de se tornar escritor. Integra-se à uma roda de

amigos, diferentes de si, com valores divergentes, com interações permeadas por

adultérios, sordidez, prevaricações; uma massa humana sem propósitos definidos.

Percebe-se vivendo de maneira automática, insípida, cada vez se distanciando mais de

sua vocação literária. Não consegue dar-se conta de que “o excesso de racionalismo era

a maior causa do fracasso do seu livro” (Oliveira: 2009, 540). Uma festa de Ano-novo é

o estopim para tomar a resolução de mudar de vida, em esforço raivoso de se readequar

a seu ideal de uma vida familiar, pacata, provinciana, regrada por uma produção artística

disciplinada.

Em muitos momentos, trancava-se em seu escritório, diante da máquina de

escrever. Permanece ali horas, sem uma ideia sequer, sem um fio de meada a puxar para

deste extrair alguma produção literária que fosse. Até os artigos sobre a técnica do

romance lhe “saíam penosos, difíceis: as ideias, sopradas de alguma parte de sua mente,

não chegavam a impressionar a consciência, não se traduziam em palavras e permaneciam

difusas, feitas em estados de espírito” (2005, 216). Seu espaço no jornal, em que

publicava tais artigos, acaba sendo cortado.

Em conversa com Térsio, após mergulho no mar em que nota não mais ser capaz

de “nadar nem duzentos metros”, comunica a ideia de produzir um livro com artigos sobre

a técnica do romance. Para sua surpresa e imediato ressentimento, o amigo lhe diz “por

que você em vez de ficar escrevendo sobre o romance, não escreve logo um romance?”

(2005, 211). Veiga, que dirigira o primeiro jornal em que Eduardo trabalhara em Belo

Horizonte, chega a procurá-lo. Encomenda-lhe uma reportagem sobre a situação política

do país. Conta-lhe, porém, que não lhe poderia pagar pelo serviço. Ainda assim, Eduardo

leva o projeto à frente. Eis uma faísca de recomeço para sua carreira como escritor.

Contata o sogro, agora ex-ministro, na tentativa de tomar a ele e aos seus asseclas como

fonte para a matéria. Porém, “não durou muito o entusiasmo: teve a surpresa de encontrar

o velho sozinho, sentado na varanda, e desde o primeiro instante o calor e a simpatia com

que foi recebido neutralizaram sua agressiva disposição de escrever o que quer que fosse”

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(2005, 219). A faísca da retomada da vocação literária se apaga rapidamente, sem gerar

nem ao menos uma brasa.

Eduardo tem consciência que o processo da escrita só se realiza com a

experiência e a vivência. E que o mergulho na alma humana só viria com

paciência e tempo, assim poderia colher o fruto maduro, mas ele era um

desesperado, tinha um excesso de “ganância de viver” que atrapalhava tudo,

colhia o fruto verde e não sabia nunca qual era o seu sabor porque este

apodrecia antes de maturar (Oliveira: 2009, 541).

Eduardo sofre porque seu excessivo racionalismo não é suficiente para ajudá-lo a

tomar as rédeas de seu destino, a construir um sólido sentido para sua própria existência.

Conclui que sua postura frente à vida estava “aberta numa dualidade irremediável: de um

lado o que ele queria ser e de outro o que realmente era, a ponto de nem saber direito o

que queria ser. Onde estiveste aquilo que buscava, e o que quer que fosse, o certo é que

tomara o caminho mais longo” (2005, 207).

O fracasso de Eduardo no estádio ético se dá pelo fato de sua personalidade não

se coadunar aos valores por ele mesmo escolhidos. Quer dizer, “o dever cumprido como

uma tarefa é apenas mecânico; mas o homem não faz o bem por hábito, não é justo por

hábito, deve querer fazer o bem, deve querer ser justo, deve se investir nessas ações: é

este o valor eterno da personalidade” (Le Blanc: 2003, 64; grifos do autor). Isto porque

“a ética, por ser a lei do geral, favorece a tendência que habita em cada um a se perder na

turba, ameaça perverter tudo, inclusive a sua moral” (Farago: 2006, 125). Para Søren

Kierkegaard, portanto, “é impossível encontrar a plena realização existencial neste

estádio, pois é exatamente no estádio ético que surge o conflito agudo entre as exigências

da universalidade e da interioridade” (Giles: 1975, 19). Por isso, “o estádio ético não pode

ser senão um lugar de passagem, pois é apenas um estádio preparatório para um estádio

mais alto que será, por sua vez, a negação radical do estádio ético” (1975, 20).

Esta negação é necessária para a superação da referida fase da vida. Até porque,

como já apontado anteriormente e constatado no caso de Eduardo Marciano, “o

cumprimento do dever e a realização do geral não bastam para lavar a vida interior do

pecado, dos erros que carrega nela. É necessária uma vontade interior que corresponda ao

drama da história pessoal” (Le Blanc: 2003, 66-7). Tal vontade, segundo Søren

Kierkegaard, é o arrependimento. Este é “o último momento do estádio ético. Quando o

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ético, na exploração de sua história pessoal, na descoberta de sua subjetividade,

reconhecer a necessidade do arrependimento, o salto para o estádio religioso torna-se

possível” (2003, 66-7).

E é justamente o que irá acontecer com Eduardo. Após sofrer por anos seguidos,

o personagem enfim adentra o estádio final, isto é, o religioso, tema da próxima etapa da

presente análise interpretativa e interdisciplinar de O encontro marcado. Assim como se

fez nas duas anteriores, primeiramente o foco será dado ao conceito, como cunhado por

Søren Kierkegaard e entendido pelos teóricos que o elucidaram. A seguir, será visto como

Eduardo Marciano vivencia esta fase redentora de sua até então sofrida trajetória.

Novamente, será tomado o cuidado de não se aprofundar a questão da angústia e do

desespero do personagem, temas a serem delineados mais à frente. Entretanto, já é válido

dizer que ambos estão presentes, sim, sendo, em certo sentido, a força motriz que faz com

que o personagem realize os saltos de um estádio a outro.

Assim se deu sua passagem do estético para o ético. Para superar o vazio

existencial típico desta primeira etapa, o indivíduo recorre a valores éticos, a um

compromisso, à responsabilidade de tomar as rédeas de seu destino. Viu-se, porém, que

tal estratégia se mostra, mais dia ou menos dia, insuficiente para lhe aquietar a alma, já

que sua personalidade não necessariamente combina com os princípios e caminhos

escolhidos. Este é o caso de Eduardo. Daí suas inúmeras transgressões dos códigos de

conduta que ele mesmo concebeu. Agora será visto como o protagonista finalmente se

rende a um Poder superior, a uma dimensão eterna, criadora, geradora do mundo e de si

e significadora da existência humana, aos olhos de Søren Kierkegaard. Será visto,

portanto, como se deu seu encontro marcado com Deus.

2.3. O estádio religioso

O estádio religioso inicia-se a partir do momento em que o indivíduo se arrepende

de haver ousado significar a própria vida por meio da razão. Søren Kierkegaard “no

depositaba sus esperanzas en las posibilidades ofrecidas por la razón [...] ni en las

recompensas con que quiere deslumbrarnos la ética” (Chestov: 1947, 153-4). Para o

pensador dinamarquês, o pecado está em tentar guiar a própria vida por meio de uma

verdade diferente da divina. Afinal, “o erro moral é tal com relação ao geral, ao Estado,

à comunidade humana que cerca o indivíduo; o pecado, erro moral com relação ao

Absoluto, é ruptura com a imanência” (Le Blanc: 2003, 69, grifo do autor). O pecado é,

pois, “a oposição ao eterno” (Farago: 2006, 98). Como bem elucidou Hernanes José de

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Morais, “o homem quando se recusa a ‘escutar’ a voz da divindade coloca-se em estado

de pecado: em linguagem bíblica seria como se seus ouvidos e coração, endurecidos,

rechaçassem a Deus” (2013, 66). E, finalmente, segundo León Chestov, “muertas en sí

mismas, las verdades increadas llevan la muerte a todo cuanto vive. De ellas procede el

pecado” (1947, 298).

Para Kierkegaard, o desespero é em parte resultado justamente da incapacidade

humana de conferir um sentido à própria existência. Como dito anteriormente, haverá um

momento específico desta dissertação em que esta questão será aprofundada. No entanto,

ao se abordar o estádio religioso, é inevitável adiantar que o sofrimento é justamente a

chave do problema, isto é, a condição necessária para a salvação do homem. O

pseudônimo de Estética y ética en la formación de la personalidad o afirma claramente

na seguinte passagem: “pues, como expliqué anteriormente al hablar de la concepción

estética de la vida, ganar el mundo entero perdiendo el alma es la desesperación y, sin

embargo, estoy convencido de que la desesperación es para el hombre la verdadera

salvación” (1955, 90).

Para a superação deste sofrimento característico do estádio ético “seria necessária

uma força: Deus, porque a Deus, justamente, ‘tudo é possível’” (Le Blanc: 2003, 51-2).

É esta força que está à disposição do indivíduo que quer fazer cessar seus terremotos

anímicos: “o que se exige é uma transformação completa de caráter, uma regeneração do

Indivíduo desde o cerne do seu ser. Mas nenhum mestre humano pode literalmente criar

uma alma de novo; só Deus é quem pode fazê-lo” (Giles: 1975, 25).

Resgatar de maneira consciente a relação com Deus, da qual procedemos

inconsciente e originalmente, significa nascer para si mesmo de verdade.

Trata-se na realidade de um segundo nascimento, reconciliado depois das

agruras do parto espiritual, de um indivíduo que, enfim presente a si mesmo,

se acha renovado, capaz de renovar-se dia após dia, e se beneficia, além da

perda da primeira imediatez que é a graça da infância, daquilo que

Kierkegaard denomina a “segunda imediatez”, isto é, a graça de viver.

Alcançar esta alegria que a pura gratuidade da vida confere tem, no entanto,

um preço: isto só pode fazer-se com dor (Farago: 2006, 86-7; grifo nosso).

O salto ao estádio religioso se dá em um instante, “cuando uno mismo se considera

como aquel cuyo recuerdo no será borrado por el tiempo” (Kierkegaard: 1955, 69-70).

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Dá-se após uma revelação divina, não se tratando, pois, de uma mudança consciente e

planejada. Isto porque “é a revelação que capacita o Indivíduo a superar os obstáculos

que o impedem de aceitar aquilo que Deus lhe oferece, todavia, sem ofuscar a diferença

radical que há entre Deus e o homem” (Giles: 1975, 28-9). A consciência do pecado,

“princípio do tornar-se cristão, é justamente a consequência direta da intervenção divina

na vida do homem” (Roos: 2007, 132).

À primeira vista, pode-se concluir que basta chegar ao estádio religioso para o

homem não mais se afligir frente à vida e à própria existência. No entanto, para Søren

Kierkegaard a fé não é exatamente uma “fórmula mágica”. As dúvidas continuam, já que

“a relação com Deus, dirigida pela fé, não pode trazer qualquer certeza intelectual de

libertação das incertezas da possibilidade” (Le Blanc: 2003, 51-2). O mesmo Charles Le

Blanc elucida ainda melhor esta questão ao afirmar que “se tudo é possível e as

possibilidades positivas não são mais seguras que as possibilidades negativas, o Indivíduo

não tem outra opção a não ser se entregar a ‘Aquele para quem tudo é possível’” (2003,

51-2).

Thomas Ramson Giles explica que “a fé nunca será uma posição conquistada de

uma vez para sempre, uma posição invulnerável. Aquele que faz o salto para alcançar o

estádio religioso enfrentará um combate constante, pois a fé representa uma conquista

constante sobre a dúvida” (1975, 24). André Luiz Holanda de Oliveira coloca a questão

em termos ainda mais claros, ao afirmar que “nem mesmo a crença em Deus soluciona

tais contradições presentes na vida, mas Kierkegaard vê em Deus e na religião, enquanto

relação subjetiva com Deus, a única resposta que confere significação ou autenticidade à

existência humana” (2003, 56).

O estádio ético não exatamente anula as características do estético. O prazer, a

sensualidade e a fruição em geral continuam, regidos agora pelo matrimônio e pelo

comedimento. A mesma dinâmica acontece na passagem do ético para o religioso. O

indivíduo não deixa de vivenciar os prazeres da vida. Não deixa de se manter inserido na

esfera do geral, de cumprir papéis sociais que dele são esperados. A diferença é que estes

são ressignificados, redimensionados. Isto porque o indivíduo neste estádio “conquista o

que há de melhor nos outros estágios: recebe de volta o finito, deixando-o ser iluminado

pelo infinito, o que representa desfrutá-lo sem se ver cerceada a sua liberdade, e cumpre

o ideal ético do dever absoluto para com Deus” (Oliveira: 2003, 95).

O estádio estético é retratado pela figura do sedutor. O ético é representado pelo

esposo. O religioso o será pelo cavaleiro da fé. Este é um conceito fundamental na obra

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do pensador dinamarquês, delineado sobretudo em Temor e tremor (1974). A presente

análise não poderia se furtar a abordá-lo, ainda que brevemente. Segundo Søren

Kierkegaard, é Abraão, personagem bíblico, aquele que encarnou a fé na intensidade

máxima, em seu estado mais puro. Afinal, o próprio Deus lhe exige Isaac, o único filho,

em sacrifício. Aos olhos da razão e da ética, o simples chamado é um absurdo e seu

cumprimento, um crime. Assassinar o próprio filho é uma das infrações mais abjetas. No

entanto, é tamanha a fé que Abraão não hesita em cumprir o chamado. Isto porque “pela

resignação, o patriarca está disposto a sacrificar o próprio filho, mas em virtude do

absurdo, crê que Deus é capaz de devolvê-lo, ainda que fosse preciso ressuscitá-lo dentre

os mortos” (Costeski e Marques: 2015, 259).

Abraão caminha com Isaac por longos três dias até o topo do monte Morija. É

quando está prestes a imolá-lo que o arcanjo Gabriel lhe revela que, por sua

inquebrantável crença, sua irresoluta fé, Deus o abstém da obrigação de matar o próprio

filho. Søren Kierkegaard recorre a esta passagem para ensinar que, para o real crente, para

o cavaleiro da fé digno deste título, a dimensão divina paira soberana sobre a moral do

ser humano. Para o pensador dinamarquês, a verdadeira crença em Deus não se abala

frente ao Absurdo que possam parecer, aos olhos dos homens, Sua magnitude e Suas

intervenções.

Procurou-se demonstrar as principais características do estádio religioso como

concebido e definido por Søren Kierkegaard. A análise volta os olhos novamente à

trajetória de Eduardo Marciano, seu foco principal. A intenção é a de interpretar a fase

final do romance, isto é, os últimos momentos antes de sua entrada definitiva no

monastério, a convite do amigo frei Domingos. Adianta-se que Eduardo vivenciou o que,

para ele, foi um instante de revelação divina. O homem cuja relação com Deus era fria,

distante, maquinal e automática finalmente aproxima-se da dimensão do Absoluto. A

próxima etapa da presente análise irá procurar sustentar esta interpretação.

2.3.1. A fé de Eduardo Marciano: conflitos e redenção final

Eduardo Marciano trava uma relação distante e automática com a esfera

transcendental. Comparece à missa mais pelo costume, imposto pelos pais e reforçado

pelo ambiente provinciano no qual nasceu e viveu as primeiras duas décadas de vida.

Questiona verdades dogmáticas ao dizer a um professor que “como a salvação só podia

vir de Cristo, Judas condenou o mundo, se suicidando” (2005, 40).

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No entanto, discorda-se do apontamento de Ilca Vieira de Oliveira, para quem “o

personagem é aquele que questiona a própria existência de Deus, o louco e o

incompreendido, pois o seu excesso de racionalidade faz com que ele duvide até mesmo

dos mistérios divinos” (2009, 541). Eduardo não nega a existência de Deus. Seu problema

é o de achar que pode caminhar na vida com as próprias pernas, isto é, que sua razão é

suficiente para tecer princípios éticos norteadores.

Você acredita em Deus? Não sabia por que, sentia que deveria decidir-se, era

uma pergunta que ficara sem resposta, queria sempre poder responder a tudo,

estar pronto para ser interrogado, fugir às respostas dúbias, hesitantes, que

nada diziam. Olhou pela janela o céu estrelado, a imensidão infinita do céu...

Não foi preciso muito para concluir que, sem Deus, jamais chegaria a

entender onde o universo começava e onde acabava, de onde vinha ele, para

onde iria. Concentrou-se, respirou fundo, e declarou com firmeza:

– Acredito [...].

Ao contrário do que esperava, não fez da descoberta um grande problema:

sim, Deus existia, era claro, evidente, indiscutível que Deus existia – e então?

Era como se sempre tiveste existido para ele. Fizera a primeira comunhão,

acostumara-se a ir à missa aos domingos – hábito imposto pela mãe desde

cedo e que nunca se dispusera a interromper (2005, 42-3).

É de fato pertinente atribuir a Eduardo Marciano um excesso de racionalismo. Sua

arrogância e orgulho o levam a querer “responder a tudo”, a ter explicação para tudo. Os

amigos Térsio e Germano alertam-no quanto à invalidez desta postura frente à vida.

Mesmo assim – e apesar de não gostar de falar sobre o tema –, o protagonista afirma

acreditar em Deus, como se viu na última citação. Seu catolicismo “era sereno e humilde,

de uma certeza sem problemas: Deus não abandona àqueles que não O abandonam”

(2005, 82). Em outro momento, o narrador afirma que Eduardo “sim, acreditava em Deus,

mas um Deus longínquo, esquecido, distraído, voltado para outras preocupações, que não

o seu mesquinho problema de aprender a viver” (2005, 217). No entanto, como já dito,

não é a Ele que Eduardo recorre para significar a própria vida. Não é Dele que o

personagem extrai suas verdades norteadoras. Este é um dos motivos de seu excruciante

sofrimento existencial – o “desespero”, como concebido por Søren Kierkegaard e a ser

futuramente delineado –, o qual só será superado ao final do romance.

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O excessivo racionalismo de Eduardo o impede de aceitar a fé cristã, de

aproximar-se subjetiva e verdadeiramente de Deus. Para o personagem, a consciência de

nada vale sem uma convicção adquirida. Ressalta-se o adjunto adnominal para

demonstrar que, para o protagonista de O encontro marcado, o homem precisa construir

seu próprio código de conduta, fugindo sempre “às respostas dúbias, hesitantes, que nada

diziam” (2005, 43). Bom, o problema é que, como se viu, a personalidade humana

metamorfoseia-se com o passar do tempo. O indivíduo transforma-se com o avançar dos

anos. A existência humana é marcada pelo signo do devir. Quer dizer, as verdades

humanas são relativas, datadas, históricas, insuficientes, portanto, para significar a vida a

ponto de aquietar os terremotos anímicos a que se está sujeito(a).

Eduardo anseia por verdades eternas. Somente um milagre ou uma revelação

incontestável poderiam superar seu excessivo racionalismo: “milagre? Sim, parecia viver

à espera de um milagre. Havia alguma coisa de errado, sim, de fundamentalmente errado,

sim. Se descobrisse o que era, estaria a salvo” (2005, 216). E é por vias tortas que a

intervenção divina finalmente chega em sua vida. Eduardo tem um caso com Neusa, sua

vizinha, tempos depois de se separar de Antonieta, mas com o vínculo matrimonial ainda

oficialmente em vigência. A moça engravida e esconde a gestação da mãe, por medo de

severas represálias. Eduardo cogita o aborto, o que, para sua formação religiosa, era o

mais abominável dos crimes. O personagem inicialmente hesita em relação à ideia, mas

acaba concordando. Vale notar que, quando jovem, dissera a Mauro e Hugo que “matar

não é tão grave como impedir que alguém nasça, tirar a sua única oportunidade de ser. O

aborto é o mais horrendo e abjeto dos crimes. Neste ponto, Job estava completamente

enganado: nada mais terrível do que não ter nascido” (2005, 60; grifo do autor). Pouco

mais de uma década depois, ele se vê diante da oportunidade de transgredir esta que talvez

seja uma das máximas mais importantes de seu código de conduta, e afirma, concordando

com Jó: “desgraçado o dia em que eu nasci, ele pensava, e a noite em que se disse: foi

concebido um homem” (2005, 272).

Se era preciso errar primeiro, escorregar, cair, para depois entregar-se às mãos

de Deus, matéria de salvação, aproveitasse! aí estava a ocasião de queda: este

era o problema a enfrentar. Estarrecido como se não só a sua sorte mas a do

mundo inteiro dependeste daquele passo [...]. Era como se o objetivo de sua

vida fosse este: tudo o que fizera até então, desde o nascimento, o trouxera

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por caminhos confusos até a última prova, o teste definitivo da sua natureza

de homem (2005, 271; grifo do autor).

Eduardo vê seu dilema como oportunidade de queda no abismo da fé. Eis um teste

definitivo de sua crença em Deus: “e se não houveste filho algum? e se os exames se

negassem, o médico se enganara, os sintomas se desfariam, e Deus perdoava, e não mais

precisava imolar o filho, como no sacrifício de Abraão. O que era preciso para haver um

milagre?” (2005, 272-3). Esta era, pois, uma oportunidade de recorrer a Deus e Dele se

aproximar em definitivo. Isto porque, para o personagem, se Deus intervieste a seu favor,

não só Sua existência mas principalmente Seu amor e Sua misericórdia a ele estariam

incontestavelmente comprovados.

Eduardo erroneamente aproxima seu dilema ao do cavaleiro da fé. Dizemos

“erroneamente” porque Abraão não hesitou quando Deus lhe exigiu Isaac em sacrifício.

Já com Eduardo se dá exatamente o contrário. Primeiro porque Deus não exigiu o aborto

de seu filho com Neusa. Esta é uma interpretação do próprio protagonista: “estes eram os

desígnios de Deus, reconhecia-os afinal: o sacrifício exigido” (2005, 272). Segundo

porque se diz incapaz de cumprir o “chamado”: “– Meu Deus, eu não posso pagar este

preço, é demais para mim” (2005, 273). Quer dizer, “a oposição entre a incerteza e a fé

de Eduardo foi testada, mas sua confiança não se provou genuína mais do que seus afetos

humanos” (Silva: 2010, 40).

No consultório, para livrar-se de um Eduardo aflito e angustiado, o médico mente:

diz que o embrião naturalmente se descolara do útero de Neusa. O protagonista, por não

saber da verdade, acaba recebendo a notícia como uma intervenção misericordiosa de

Deus a seu favor. A noite deste fatídico dia é talvez o ponto mais significativo de sua

trajetória.

Dobrou a esquina, relanceou os olhos em torno, pôs-se a recitar:

– Creio em Deus Padre, todo-poderoso, criador do céu e da terra, e em Jesus

Cristo, um só seu filho...

Não sabia terminar. Inundado de alegria, começou a dançar no meio da rua:

– Acabou, acabou, ACABOU.

[...] Basta olhar para as minhas mãos para sentir que elas ocupam o lugar das

mãos de Deus... (2005, 280).

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Ainda que por vias tortas, Eduardo abraça a fé. Vê seu sofrimento existencial

acabado por entender que o suposto falecimento natural do embrião fora resultado da

intervenção misericordiosa de Deus em sua vida. Abandona o posto na prefeitura para

favorecer a promoção do amigo Misael – a cujo filho doa todos os seus livros – e se muda

para o convento de frei Domingos, a convite do próprio. A presente análise interpreta que,

por haver abraçado a fé, por haver constatado a insuficiência da razão como ferramenta

de construção de um código de conduta, por haver abandonado o próprio orgulho,

Eduardo adentra o estádio religioso. Finalmente tem seu encontro marcado com Deus.

No entanto, vale registrar que nem todos os pesquisadores concordam com esta

interpretação. É o caso de Marcelo Antunes Neves, para quem

a ida do personagem ao mosteiro assinala a possibilidade deste encontro;

porém, com base no próprio texto, é possível perceber que Eduardo não

chegou a sinalizar efetivamente uma escolha pela vida monástica (como

também não parece, pelo menos ainda não, em termos kierkegaardianos, uma

passagem à “esfera religiosa”). Veja: nas últimas linhas do romance, o frei

Domingos diz a Eduardo “– Não acreditei que você vieste”, ao que o outro

lhe responde “– Vim por um ou dois dias. Depois…”. Atente-se, aqui, para o

tom de incerteza, confirmada inclusive pela reticência. Por fim, diz o

narrador: “Calou-se. Não tinha importância também o que lhe aconteceria

depois” (2011, 149).

Discorda-se da válida interpretação do autor do artigo “Os caminhos existenciais

em O encontro marcado”. A escolha pela vida monástica não é condição imprescindível

para o indivíduo do estádio religioso. Para adentrá-lo, segundo Søren Kierkegaard, basta

a superação da razão pela fé, a constatação da insuficiência e inferioridade daquela frente

a esta. O narrador diz que “não tinha importância também o que lhe aconteceria depois”

porque, agora, Eduardo entrega sua vida aos desígnios de Deus, abstendo-se de arrogante

e orgulhosamente tentar controlá-la e significá-la.

Vale notar a corroboração de Neusa Picard Caccese, para quem as tentativas de

Eduardo foram “A Procura, a salvação alcançada é O Encontro, não o encontro físico,

material, como dissemos, mas o encontro mais profundo, sobrenatural, com a Verdade,

com o Princípio de todas as coisas, encontro que dará, afinal, um sentido à vida de

Eduardo” (1966, 157; grifos da autora). Florita Dias da Silva contribui ao afirmar que o

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personagem “é um ser dividido entre as efemeridades do mundo material e a incerteza do

mundo espiritual; oscilando entre estes dois polos, ele busca um equilíbrio. O romance

revela a necessidade humana de transcendência e da busca do Divino” (2010, 37). Maria

da Glória dos Reis complementa ao afirmar que Eduardo “sentiu-se feliz pelo

reaparecimento de sua fé e por sentir que ocupa um lugar nas mãos de Deus” (2012, 86).

Outras passagens do romance sustentam esta interpretação. É possível dizer que a

entrada de Eduardo no estádio religioso é prenunciada em conversa com Antonieta,

quando ambos já estão em processo de divórcio e ela morando com o pai. Ao final de

uma discussão com a ex-esposa, em que Eduardo faz a última tentativa de reconciliação,

Antonieta, arrependida pela irritação e pelas palavras pesadas ditas ao ex-marido,

pergunta

– O que pretende fazer?

– Não sei... Como haveria de saber? – e, constrangido, evitava olhá-la pela

última vez: – Sabe, Antonieta? Estive pensando, estou com vontade de fazer

mesmo uma viagem... (2005, 235; grifo nosso).

A tal “viagem” não é física, mas anímica, espiritual, existencial, iniciada quando

Eduardo deixa o emprego público e vai morar com frei Domingos no monastério. Ele a

anuncia tanto a Antonieta quanto a Toledo (2005, 241). Esta interpretação ganha corpo

se for levado em conta o fato de que a última parte do romance é intitulada, justamente,

“A viagem”. O frei é Eugênio, amigo de infância dos tempos de Belo Horizonte. Junto a

Mauro, no último dia letivo do ginásio, Eduardo e Eugênio haviam combinado de se

encontrar dali a quinze anos, naquele mesmo colégio (2005, 46). Inicialmente, o prazo

era para dali a vinte. Foi Eduardo quem sugerira a redução para quinze. Para justificá-la,

o protagonista diz “– Vou morrer antes disso” (2005, 46). E de fato “morre” dali a quinze

anos: não uma morte física, fisiológica, biológica, mas, sim, identitária. Morre o Eduardo

orgulhoso, racional ao extremo, cumpridor de uma “vocação como romancista”, detentor

de seu próprio destino, cunhador de princípios éticos para si, obsessivamente determinado

a “vencer na vida”, com pressa e ganância de viver. Nasce um novo Eduardo Marciano,

agora imerso no estádio religioso, abraçado à fé e mais próximo de Deus.

Até aqui, a presente análise procurou delinear os paralelos e distanciamentos entre

a trajetória do protagonista de O encontro marcado e o conceito de “estádios” de Søren

Kierkegaard. Houve momentos em que não foi possível deixar de pontuar, ainda que

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brevemente, a angústia e o desespero enfrentados pelo personagem. No entanto, tomamos

o cuidado de não nos aprofundar por ora. Isso porque tamanha é a importância de ambas

as questões para a obra como um todo de Søren Kierkegaard que cada das duas merece

uma etapa particular. A análise volta o foco, agora, para o conceito de angústia como

concebido pelo filósofo dinamarquês.

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3

Angústia: proximidades e distanciamentos entre Eduardo Marciano e Søren

Kierkegaard

Como visa explorar ao máximo o potencial interdisciplinar entre o romance O

encontro marcado e as ideias de Kierkegaard, esta dissertação não poderia se furtar a

tratar da angústia. Vivenciado de maneira intensa por Eduardo Marciano e muito presente

nas reflexões do pensador dinamarquês, é possível afirmar de antemão que este afeto

apresenta feições distintas quando ambos são postos frente a frente. Isto é, a angústia no

romance destoa daquela definida por Søren Kierkegaard. A etapa que se segue procura

delinear melhor estas diferenças.

3.1. O conceito de angústia, segundo Kierkegaard

Originada do vocábulo grego argor (“estreitamento”, “diminuição”), a angústia

pode ser entendida como um sufocamento, “como se a passagem do ar se tornasse

impossível e a conexão com o cosmos diminuísse, trazendo uma sensação de desolamento

e aniquilação” (Oliviéri: 2007, 35). Sem dúvida, este é um dos conceitos basilares do

pensamento de Søren Kierkegaard, que “desenvolveu suas reflexões a partir de seu

próprio íntimo, no qual a solidão e o sofrimento se tornaram o centro de suas

especulações, fazendo-o considerar de maneira inédita até então o problema do sentido

da subjetividade e da existência” (Dantas: 2007, 3). Os temas abordados por Søren

Kierkegaard, sobretudo a angústia, fazem ainda mais sentido se considerarmos sua curta

porém intensa trajetória existencial. Como bem notaram Jorge Miranda de Almeida e

Álvaro Valls, “a brevidade de sua vida contrasta com a qualidade e a extensão de sua

produção, ainda não classificada nos círculos acadêmicos” (2007, 7).

Este importante detalhe fica ainda mais compreensível se estiver em mente o fato

de Michael Pedersen Kierkegaard, seu pai, homem de um luteranismo altamente austero

e melancólico, ter contado ao filho Søren que seduzira e violara Anne Sørensdatter Lund,

sua mãe, pouco antes do falecimento de sua primeira esposa. Para o sétimo filho do casal,

pois, a família começara carimbada com o estigma do pecado. Anos depois, Søren se

referiria a este episódio como o “grande terremoto” (Farago: 2006, 26). Michael fez crer

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ao filho que este deveria expiar os abomináveis pecados por ele cometidos antes de seu

nascimento. As sucessivas e precoces mortes de seus irmãos – exceção feita a Peter, bispo

luterano cuja extrema-unção Søren recusou, pouco antes de morrer – reforçam, em

Kierkegaard, a ideia de que deveria suportar o sofrimento e a angústia como pena pelos

deslizes do progenitor.

Soma-se a este traumático episódio o desenlace de seu noivado com Regine Olsen,

jovem de 17 anos que muitos biógrafos e pesquisadores consideram como aquela que

inspirou a criação de Cordélia, alvo das investidas sensuais de Johannes em Diário de um

sedutor. Søren é quem promove a separação em 1841, apesar de estar profundamente

apaixonado pela moça. Justifica sua decisão por pressentir “que o casamento seria

incompatível com sua tendência melancólica e com sua vocação filosófica” (Dantas:

2007, 4).

A presente análise interdisciplinar de O encontro marcado não poderia se furtar a

abordar o tema da angústia, sobretudo por conta do fato de o próprio termo estar

consideráveis vezes repetido no romance. A leitura comparatista e pendular da obra de

Fernando Sabino, que se empreende aqui, requer, portanto, a definição a mais completa

possível deste pathos tão caro a Søren Kierkegaard.

Os pesquisadores que se dedicaram a elucidar o pensamento do dinamarquês são

quase uníssonos quanto a este tema em particular. E já de antemão se pode dizer que,

segundo a interpretação que aqui se sustenta, Eduardo Marciano e Søren Kierkegaard não

se espelham integralmente quanto ao sentido da referida palavra. Há que se destacar este

detalhe de imediato, visto que o objetivo deste trabalho é apontar não só os paralelos entre

O encontro marcado e as ideias de Søren Kierkegaard, como, também, os

distanciamentos entre ambos.

Chegou-se a esta conclusão após o cumprimento da premissa, bem delineada por

Hans-Georg Gadamer, de que a compreensão de um texto é resultado de um projetar, de

uma expectativa antecipada que se confirma ou não após a leitura. Segundo o teórico

alemão, “quem quiser compreender um texto realiza sempre um projetar. Tão logo

apareça um primeiro sentido no texto, o intérprete prelineia um sentido do todo” (1998,

401). Essa dinâmica também vale para o texto literário.

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Inicialmente, pressupôs-se que houvesse somente paralelos entre O encontro

marcado e os conceitos concebidos por Søren Kierkegaard, incluindo o de angústia. Quer

dizer, a expectativa inicial era de que a análise pendular se daria em ritmo de constante e

ininterrupto espelhamento entre os dois polos. Entretanto, ao longo da leitura tal

expectativa teve que ser revisada em prol da construção de uma interpretação a mais

condizente possível com o disposto no romance: a de que Eduardo Marciano vivencia

uma angústia distinta daquela concebida pelo filósofo dinamarquês. Afinal, como bem

alerta Hans-Georg Gadamer, “a compreensão do que está posto no texto consiste

precisamente na elaboração deste projeto prévio, que, obviamente, tem que ir sendo

constantemente revisado com base no que se dá conforme se avança na penetração do

sentido” (1998, 402). Ainda segundo Gadamer,

quem procura compreender está exposto a erros de opiniões prévias, as quais

não se confirmam nas próprias coisas. Elaborar os projetos corretos e

adequados às coisas, que como projetos são antecipações que apenas devem

ser confirmadas nas coisas, tal é a tarefa constante da compreensão [...]. A

compreensão somente alcança sua verdadeira possibilidade quando as

opiniões prévias, com as quais ela inicia, não são arbitrárias. Por isso faz

sentido que o intérprete não se dirija aos textos diretamente, a partir da

opinião prévia que lhe subjaz, mas que examine tais opiniões quanto à sua

legitimação, isto é, quanto à sua origem e validez (1998, 403).

Não seria legítimo, pois, insistir em uma interpretação errônea, deixando de lado

tal premissa teórica, de validade e pertinência praticamente indiscutíveis. Justamente por

isso, o projeto inicial teve que ser revisto e reajustado. Afinal, o(a) leitor(a) do texto

literário “não pode se entregar, já desde o início, à casualidade de suas próprias opiniões

prévias e ignorar o mais obstinada e consequentemente possível a opinião do texto – até

que este, finalmente, já não possa ser ouvido e perca sua suposta compreensão”

(Gadamer: 1998, 405). Por isso, a análise procurou “se mostrar receptiva, desde o

princípio, para a alteridade do texto” (1998, 405). O resultado é a conclusão inevitável de

que há, sim, distanciamentos entre O encontro marcado e as ideias de Søren Kierkegaard

quanto à questão da angústia.

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Obviamente, há que se pontuar que a interpretação que aqui se constrói não é

definitiva. Isto porque o sentido de um texto não é dado somente por si ou pelo(a)

autor(a). Na dinâmica hermenêutica, também há que se levar em conta o fato de que o

“sentido [do texto literário, no caso] está sempre determinado também pela situação

histórica do intérprete, e, por consequência, por todo o processo objetivo histórico”

(Gadamer: 1998, 444). Quer dizer, o sentido do texto será influenciado também pelo

repertório de vivências concretas e referências teóricas do(a) leitor(a) em questão, que

são inerentes ao contexto histórico e cultural no qual este(a) está inserido(a).

Para dar prosseguimento à análise, é preciso pontuar que a melhor compreensão

possível do conceito de angústia, como concebido por Søren Kierkegaard, depende

necessariamente de se ter em vista o pressuposto de que, para o filósofo, o ser humano

consiste em “uma síntese de corpo e alma instaurada pelo espírito e de tempo e eternidade

instaurada pelo instante. Não são duas sínteses, portanto, mas apenas uma vista de

perspectivas diferentes” (Silva: 2008, 15). A relação do indivíduo com esta potência, a

relação do espírito consigo mesmo e com sua condição, é justamente a angústia.

O ser humano “reflete sobre sua própria constituição corpo/alma. Temos, pois, a

chave do conceito de indivíduo para Kierkegaard. Indivíduo é a relação que se relaciona

consigo mesma” (Jatobá: 2011, 19). Vale pontuar que esta concepção de uma natureza

humana triádica é fundamental para se entender não só como o pensador concebia a

angústia, mas, também, a maneira como definiu o desespero, tema a ser delineado em

etapa posterior. Jonas Roos bem elucida esta fundamental premissa ao afirmar que

uma pessoa nasce humana, trata-se de um dado antropológico a priori.

Entretanto, um ser humano não é necessariamente um self, não é

necessariamente si mesmo. O self envolve um processo de tornar-se. O self

não é a simples junção de elementos polares, o que ainda guardaria um

dualismo antropológico, mas uma relação autoconsciente, uma relação que se

relaciona a si mesma na medida em que envolve um processo ativo de

realização por parte do sujeito (2008, 69).

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Foi em O conceito de angústia, uma de suas principais obras, que o pensador

dinamarquês lançou mão da narrativa bíblica de Adão e Eva e sua expulsão do Éden para

representar e expor seu entendimento relativo ao tema. Neste livro, Kierkegaard

empreende uma densa reflexão acerca do pecado original, sob o pseudônimo de Virgilius

Haufnienses (algo como “O vigia de Copenhagem”, em latim). Obviamente, ao longo

desta tangencia e aprofunda a questão da angústia em si. Vale dizer, acaba assumindo

certa oposição à tradição teológica relativa ao assunto, sobretudo a Santo Agostinho, à

Reforma Protestante e a Georg Wilhelm Friedrich Hegel.

No entender de Søren Kierkegaard, remeter à narrativa do pecado original consiste

em uma estratégia didática e significativa para abordar a angústia, já que “como Adão

todo homem se encontra no estado de inocência e mediante a angústia, realiza o salto

qualitativo passando à culpa, à queda” (Silva: 2008, 78). Como se sabe, Adão e Eva

viviam no paraíso em estado de total inocência e ignorância relativa ao bem e ao mal, isto

é, em “estado edênico-infantil de paz e de quietude, no qual o espírito está, sim, presente,

mas ainda como quem sonha” (Garaventa: 2011, 8). A situação muda após a proibição ao

consumo do fruto do conhecimento, advinda de Deus, fazendo nascer em Adão a aflição

derivada de se saber capaz de escolher. Quer dizer, o impedimento divino “desperta a

possibilidade da liberdade. O que se ofertava à inocência como um nada da angústia

adentrou-o [Adão] e conserva ainda aqui um nada: a aflitiva possibilidade de poder”

(Kierkegaard: 1968, 48; grifo nosso).

Este nada, como bem explicou Marcos Érico de Araújo Silva, “não é o vazio, mas

precisamente a possibilidade, o poder de se determinar” (2008, 15-6). É aquilo que “o

indivíduo experimenta quando decide dar-se uma identidade, imprimir uma direção

precisa à sua vida, escolher a si mesmo” (Garaventa: 2011, 6). Isto porque “existir é estar

condenado a se produzir na existência, através de um projeto de vida que procede das

escolhas e da responsabilidade do indivíduo” (Dantas: 2007, 6). Logo, “podemos mesmo

supor que não exista um só ser humano que não tenha no âmago de si uma inquietação,

uma perturbação e, portanto, que esteja isento de sentir angústia” (Oliviéri: 2007, 33).

É, pois, ao tomar consciência de sua capacidade de escolher, do fato de poder tanto

obedecer quanto desobedecer a Deus, que Adão é acometido pela angústia. Por isso, “a

diferença entre o pecado de Adão e o pecado de qualquer outro homem consiste no fato

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de que, com o primeiro, nasce a pecaminosidade e o segundo tem a pecaminosidade como

condição” (Dantas: 2007, 8). Assim, o personagem bíblico mergulha na angústia ao se

ver diante de infinitas possibilidades, tanto as do bem quanto as do mal. Não à toa, Søren

Kierkegaard compara este sentimento asfixiante

à vertigem. Quando o olhar imerge num abismo, existe uma vertigem, que

nos chega tanto do olhar como do abismo, visto que nos seria impossível

deixar de o encarar. Esta é a angústia, vertigem da liberdade, que surge

quando, ao desejar o espírito estabelecer a síntese [entre alma e corpo], a

liberdade imerge o olhar no abismo das suas possibilidades e agarra-se à

finitude para não soçobrar (1968, 66).

O pensador dinamarquês entende a angústia, pois, como um medo sem objeto,

exclusivo do ser humano. O homem e os animais compartilham do sentimento do medo.

A angústia, por sua vez, é restrita àquele por ser o único a conceber o conceito de

possibilidade, de liberdade, de escolha. Søren Kierkegaard a alinha à noção de “porvir”.

É por se ver diante de infinitos caminhos disponíveis que o indivíduo sofre. Afinal, não

há garantia alguma de que a escolha feita necessariamente se reverterá em benefício. Não

há como controlar totalmente o resultado das ações tomadas. Quer dizer, as

“possibilidades, que projetam o indivíduo para o futuro, uma vez que o indivíduo vive

projetado para o futuro destas realizações, não carregam em si garantias incontestáveis de

êxito” (Lopes, Pires e Silva: 2011, 6).

Escolher é sinônimo de apostar, visto que há inúmeros fatores que podem tanto

contribuir com quanto prejudicar a realização do que se espera. E o homem não pode se

abster de escolher. Claro, é possível argumentar que se abster de escolher já é em si uma

escolha. No entanto, até mesmo esta estratégia gera sofrimento, já que quem a adota passa

a conviver com a fantasia do que poderia ter acontecido caso tivesse dado o passo adiante

que preferiu não dar. Foi esta linha de raciocínio, aliás, que veio a inspirar Jean-Paul

Sartre a conceber o conceito de “má-fé”, praticamente um século depois, apresentado em

seu famoso texto O existencialismo é um humanismo.

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O ato de existir, pois, não vem com um manual de instrução acoplado a si. É o

que se compreende do apontamento de Jorge Miranda de Almeida e Álvaro Valls, para

quem “a existência não pode ter, enquanto tal, uma essência pronta, pois não seria

existência de fato, já que ela não existe antes de ser concretizada como existência. E a

liberdade não existe antes de ser agida” (2007, 52). Quer dizer, “não existe um conceito

absoluto que o defina, porque cada indivíduo define a si mesmo a partir da sua

subjetividade” (Oliviéri: 2007, 36).

Vale o reforço: o ser humano sofre justamente por ser livre. Afinal, “o homem

não sabe de onde tudo se originou e nem como terminará, não podendo ter certeza de

nada, muito menos das consequências de suas escolhas, e esta impossibilidade de prever

e explicar os fatos o angustia” (Souza: 2011, 12-3). Maria de Fátima Oliviéri

complementa ao afirmar que “assim é que, se a vida pode ser considerada uma dádiva,

existir é a empreitada de cada indivíduo, onde só ele é o responsável por sua existência e

por suas decisões” (2007, 36).

As possibilidades que se apresentam a nós não oferecem nenhuma garantia

de sucesso. Uma ilusão irá representá-las a nós como boas notícias ou boas

promessas, mas qualquer alternativa carrega consigo felicidade e infelicidade,

sucesso ou fracasso, vida ou morte. As possibilidades positivas não têm mais

probabilidade de se realizar do que as possibilidades negativas. Cada decisão

mobiliza a pessoa integralmente: este é o segredo do poder paralisante da

existência como possível. Se a existência é possibilidade, a existência

individual é angústia. Se a individualidade é o modo de ser fundamental do

homem diante da existência, sua dimensão principal é, portanto, a angústia

(Le Blanc: 2003, 51; grifo do autor).

Vale esclarecer que, no contexto do pensamento de Søren Kierkegaard, é preciso

entender a liberdade “não como escolha entre isto ou aquilo, mas como possibilidade de

poder. Isto é, a liberdade neste primeiro aspecto não se realiza na determinação de si

mesmo neste ou naquele sentido, mas na pura possibilidade de se determinar” (Silva:

2008, 15-6). Para Thomas Ramson Gilles, “ser livre significa contribuir para a própria

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realização, mas significa também poder enganar esta realização, significa tanto o destruir

como o construir” (1975, 44).

Esta ambivalência da liberdade também é notada por Maria de Fátima Oliviéri,

para quem a vida humana é feita de “constantes escolhas. Em cada uma delas, o indivíduo

provavelmente terá perdas. Uma das causas da angústia deriva justamente do medo das

perdas decorrentes de não se ter tomado a melhor decisão” (2008, 51).

A angústia é o sintoma da condição de criatura e da contingência do homem,

e remete à insegurança que assinala a existência humana, mas é também o

sinal de que o homem, como ser exposto à liberdade possível, é destinado a

ser mais que um ser natural [...]. Não existe nenhum indivíduo (incluindo

Adão) que não tenha espírito ou não experimente a angústia; pelo contrário,

neste elemento que assinala a liberdade do homem, a angústia é característica

constante e natural no gênero humano (Garaventa: 2011, 11).

Como se adiantou anteriormente e se procurou demonstrar até aqui, os teóricos e

pesquisadores consultados para a elaboração também da presente etapa são quase

uníssonos quanto ao conceito de angústia como concebido por Søren Kierkegaard. Ainda

que haja algum risco de se incorrer em certa repetição ou redundância, vale continuar

acessando-os para elucidar ainda mais este que é, de fato, um dos pilares da obra filosófica

do dinamarquês, o qual muito explica seu alçamento ao rol dos grandes nomes do

pensamento ocidental.

Pode-se afirmá-lo com segurança tendo em vista a evidente e inegável influência

exercida por Søren Kierkegaard sobre autores do século vindouro, como Martin

Heidegger, Albert Camus, Karl Theodor Jasper, Gabriel Marcel e Jean-Paul Sartre. A

importância do referido conceito, no âmbito do vasto cabedal de reflexões produzido pelo

dinamarquês, levou León Chestov a afirmar que “forzoso es creer que, entre las ideas

vividas por Kierkegaard en el curso de su excepcional experiencia espiritual, aquella [a

angustia] fue la más cara, la más necesaria, la que vivió más intensamente” (1947, 116).

Feita a necessária e inevitável ressalva, é possível seguir adiante com Charles Le

Blanc, para quem a angústia consiste em um “sentimento de mal-estar diante do

desconhecido da possibilidade” (2003, 50). Para o autor, não se trata de uma “liberdade

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abstrata que se identificaria ao livre-arbítrio e sim a uma liberdade concreta e finita”

(2003, 81). O teórico canadense contribui ainda mais, ao pontuar a distinção entre

angústia objetiva e subjetiva, feita por Søren Kierkegaard.

A primeira consiste na “do homem genérico colocado, pelo próprio fato da

existência, diante da possibilidade de poder, em outras palavras, de sua liberdade; é a

angústia pela qual o pecado entrou no mundo” (2003, 82; grifo do autor). Já a segunda “é

a do homem concreto que imerge em seu próprio possível, que experimenta pessoalmente

‘a vertigem da liberdade’ por meio de seus atos e de seus pecados” (2003, 83). Alinhando-

se aos teóricos anteriormente citados, Le Blanc pontua que a angústia é intrínseca ao ser

humano, fruto do fato de este se saber capaz de escolher, de ter inteligência, de ter a

consciência do possível, do porvir. Justamente por isso “é tão impossível libertar-se da

angústia quanto de si mesmo” (2003, 83).

A indissociabilidade entre indivíduo e angústia, bem como o fato de esta ser um

medo sem objeto, são corroborados por France Farago. Para a pesquisadora, ela é “o lugar

onde o si mesmo começa a advir, experiência cuja tonalidade afetiva é absolutamente

única”, isto é, “o pathos em cujo seio o indivíduo começa a chegar à consciência de si

mesmo” (2006, 80; grifo da autora). O próprio Søren Kierkegaard ressalta o aspecto

positivo deste pathos, exclusivo ao ser humano, ao afirmar que “anjo ou animal, jamais o

homem poderia sentir a angústia. Contudo, considerando que é uma síntese [entre corpo

e alma], pode senti-la e tanto mais intimamente a sente, mais aumenta a sua humana

grandeza” (1968, 157). O pensador dinamarquês acrescenta que “o homem constituído

pela angústia é constituído pela possibilidade e apenas aquele que a possibilidade forma

está formado em sua infinitude” (1968, 158).

O caráter edificante e, portanto, positivo de tão importante afeto da vida humana

também é destacado por Maria de Fátima Oliviéri, para quem, “ao edificar-se, ao cultivar-

se a si mesmo, ao eleger a autenticidade como sua verdade, o indivíduo singular se torna

admirável” (2007, 36). Quer dizer, quando ousa “ser um ‘si mesmo’, na seriedade e na

responsabilidade, ele se torna extraordinário” (2007, 36). Maria Inácia Lopes, Danilo

Chaves Pires e Ednaldo Maximiano da Silva complementam ao afirmarem que

“experimentar a angústia é uma condição para que este viajante encontre sua

autenticidade, uma existência com sentido e não se perca nas obscuridades de uma vida

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perdida” (2011, 4). Isto é, angústia e sofrimento “são realidades inelutáveis à condição

humana, e não obstáculos para que ela chegue à sua meta plenificadora” (2011, 13).

Por isso, faz sentido que “Kierkegaard qualifique o sentimento de angústia como

um mestre, efetivamente o mestre ‘primeiro’, podendo até ser muito proveitoso se o

indivíduo souber tirar partido dele” (Oliviéri: 2007, 38). A angústia, pois, é fundamental

para a subjetividade, já que esta “se configura na medida em que o eu escolhe o que deseja

ser, trabalha seriamente na própria realização e alcança com clareza a consciência de si”

(Lopes, Pires e Silva: 2011, 15).

Deus deixa o homem livre, à sua imagem, para operar, por seus atos

concretos, as escolhas em que se projeta a fim de construir-se, “edificar-se”.

Confia-lhe a responsabilidade de criar sua história, o que não abole mesmo

assim a dependência ontológica que caracteriza, de per si, a condição de

criatura. Eis por que, se podemos advir de nós mesmos, vivemos sempre

correndo também o risco de nos perdermos... (Farago: 2006, 96).

A natureza vertiginosa da angústia, como definida pelo pensador dinamarquês, é

realçada por Jean Breaufet. Segundo o autor de Introdução às filosofias da existência. De

Kierkegaard a Heidegger (1976), isto se deve ao fato de que “ninguém pode substituir-

se a mim na responsabilidade absoluta que assumirei. Então, meus atos me comprometem

sem recurso” (p. 13). Portanto, a vertigem é inevitável, indissociável da angústia, logo,

do ato de existir, como também pontuou Regis Jolivet ao analisar o pensamento de Søren

Kierkegaard. Para o sacerdote e filósofo francês, “desde que, de fato, o que é dado não é

o eu, mas somente a possibilidade do eu, cada um de nós sentir-se-á colocado diante do

nada e como que debruçado sobre o vácuo” (1957, 59). Essa sensação de desfalecimento

tem, para Jolivet, um caráter dual, isto é, tanto de “temor” quanto de “atração”, tanto de

“simples vislumbre da possibilidade” quanto “também de terrível” (1957, 59).

Segundo o teórico, ainda assim a angústia tem seu viés positivo, como também

apontou France Farago. Mesmo que impossível de não ser vivenciada pelo indivíduo, ela

“instala o homem diante de si mesmo, enquanto não é aquilo que há-de vir a ser pela

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liberdade”, isto é, “permite que o existente se revele a si próprio, propõe-lhe o eu que tem

de realizar” (1957, 60; grifo do autor).

Nicola Abbagnano também ressalta o aspecto dual da indissociabilidade entre

possibilidade, liberdade e angústia. Para o teórico italiano, “todas as possibilidades além

de serem possibilidades-de-sim são também possibilidade-de-não: implicam a nulidade

possível daquilo que é possível, por conseguinte a ameaça do nada” (1978, 11; grifos do

autor). Não à toa, Abbagnano pontua o fato de que Kierkegaard atribui à possibilidade

um caráter paralisante.

A angústia é a expressão de uma perfeição da natureza humana, pois é só

através dela que o homem poderá elevar-se à existência autêntica. A angústia

aniquila nele todas as suas seguranças habituais para o entregar ao abandono

donde unicamente pode surgir a autêntica existência. A angústia é a vertigem

da própria liberdade. O indivíduo vê intercalar-se entre ele e o mundo um

vácuo que o faz perder todo o sentimento de segurança. Sente-se arrebatado,

entregue exclusivamente a si mesmo. Só na medida em que for capaz de

sofrer a prova deste abandono será existencialmente livre. Somente através

desta angústia lhe será dado alcançar a liberdade; não há outro caminho para

chegar até ela (Giles: 1975, 45).

Abismo profundo. Vertigem da liberdade. Mal-estar sentido ao se tomar

consciência do poder de escolher e ao exercê-lo. Paralisia fruto do fato de não haver

garantia alguma de sucesso (nem de insucesso) quando do ato de se determinar, de devir,

de se tornar si mesmo. A angústia é, pois, intrínseca ao indivíduo, elemento indissociável

de sua condição como ser humano. Consequentemente, é parte integrante de sua trajetória

existencial.

Até aqui, procurou-se perfazer a compreensão a mais detalhada possível deste

afeto, pormenorizadamente destrinchado por Søren Kierkegaard em O conceito de

angústia. Para isso, julgou-se necessário recorrer a diferentes teóricos e pesquisadores,

dada a densidade da explanação empreendida pelo dinamarquês na referida obra. Agora

a presente análise interdisciplinar de O encontro marcado estabelece uma breve e sutil

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mudança de rota. Com isto, foca a mira no viés salvacionista da angústia, sem o qual uma

dissertação que (também) versa sobre o pensamento de Søren Kierkegaard estaria

indubitavelmente incompleta.

Explica-se. Segundo o pensador dinamarquês, não só à liberdade se chega por

meio do enfrentamento da angústia: o mesmo se dá em relação à fé em Deus. O autor

equipara a angústia vivida no paganismo à noção de “destino”, como se adiantou

anteriormente. Para Kierkegaard, este “equivale à união da necessidade e da

contingência” (1968, 102). Ainda assim, o referido pathos pode levar à fé. É quando

finalmente reconhece e valoriza sua dimensão espiritual – isto é, eterna e atemporal – que

o indivíduo supera os grilhões do sufocamento e aniquilamento dos quais era vítima

indefesa até então. Isto porque “uma vez estabelecido o espírito, a angústia deixa de

existir e do mesmo modo o destino, porque, concomitantemente, se institui a Providência”

(1968, 102). Quer dizer, se o indivíduo deixar que a angústia o afaste da fé, estará inegável

e irremediavelmente perdido.

A imprescindibilidade do sofrimento derivado da possibilidade de escolha é

corroborada por Jean Breaufet. Para o teórico, “somente essa prova permite ao homem

confrontar-se diretamente com a verdade total de sua condição” (1976, 13). A vertigem e

a asfixia são, pois, o instrumento, o caminho para a salvação do indivíduo. Diante das

infinitas possibilidades tanto de sucesso quanto de insucesso, ao homem está disponível

a escolha de entregar sua vida a quem tudo é possível, isto é, a Deus.

Ou seja, para o filósofo dinamarquês, o homem pode escapar da angústia pela

fé, uma vez que a ansiedade não é em si mesma um pecado, diz ele, pois é a

reação natural da alma quando em face ao escancarado abismo da liberdade.

Entretanto, sem a fé, a angústia leva ao desespero, sendo o pavor a ansiedade

face ao eterno. Esta ansiedade pode, então, levar o pecador de volta a Deus

que o criou e lhe deu a liberdade e, assim, a ansiedade pode ser salvadora pela

fé. A angústia é, então, o caminho para a fé (Souza: 2011, 14).

É válido pontuar que para Søren Kierkegaard a angústia é um afeto multifacetado.

Até o momento, foi dado maior destaque a uma de suas faces, isto é, à dimensão da

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liberdade, do “nada” entendido como a variedade de possibilidades que o indivíduo vê

diante de si. No entanto, é preciso estender o conceito, ainda que brevemente, para que a

análise fique a mais completa possível. Para isso, vale acessar teóricos como Roberto

Garaventa e Maria de Fátima Oliviéri.

Segundo o primeiro, também há a “angústia do mal”, que consiste na prestação de

“contas da culpa por ele [indivíduo] cometida, da possibilidade sempre presente de

cometê-la novamente, e das consequências eventuais e imprevisíveis do seu ato” (2011,

6). Seu oposto é a “angústia do bem”, aquela em que “querendo obstinadamente

permanecer na sua condição de pecado”, o indivíduo se “recusa a abrir-se a qualquer

possibilidade de mudança” (2011, 6).

Há, ainda, a “angústia da sexualidade”, entendida como o tomar de consciência

do conflito entre espírito e corpo; a do “amanhã”, representada pela perda da fé em Deus

e consequente incerteza em relação ao futuro; a do “finito”, experienciada “diante da

inconsistência de tudo aquilo que é finito e terreno” (2011, 6); e, finalmente, a

“neurótica”, como definiu Maria de Fátima Oliviéri, “resultado do bloqueio emocional,

que acontece quando o sujeito tem medo da liberdade” (2007, 38).

No entanto, Roberto Garaventa pontua que é a “angústia da liberdade” aquela a

que Søren Kierkegaard mais dedicou atenção. Justamente por isso, a presente dissertação

reservou mais linhas a essa que é uma das muitas faces que constituem tão complexo e

fundamental afeto, característico da vida humana e, como dito anteriormente,

consideráveis vezes citado em O encontro marcado.

A próxima etapa irá voltar os olhos ao romance, isto é, à forma como o narrador

e Eduardo Marciano entendem este sufocante sentimento e, sobretudo, como o

personagem o viveu. Há mais distanciamentos que proximidades entre a obra e o

pensador dinamarquês quanto a esta questão, diferentemente do que houve em se tratando

dos estádios da existência. Eduardo Marciano vivencia a angústia, sim, mas não

exatamente por se ver diante de infinitas possibilidades, por se julgar consciente de sua

capacidade e necessidade de escolher. Não sofre por ser livre. Sofre, isto sim, por não ver

um sentido para sua existência, por se mostrar incapaz de lidar com a irrefreável marcha

do tempo e a consequente finitude de si mesmo, por ser incapaz de cumprir o projeto de

vida por ele mesmo traçado.

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Perspectivando sua trajetória tendo como pano de fundo a já mencionada

concepção de Kierkegaard da natureza triádica do ser humano, chega-se à conclusão de

que Eduardo sofre por não conseguir costurar uma síntese entre corpo e alma. Isto se deve

justamente ao fato de o protagonista não reconhecer e valorizar devidamente sua porção

espiritual, atemporal e eterna. Quer dizer, o personagem se diz um “escolhido”, um

indivíduo com uma vocação definida, isto é, a de ser um renomado escritor, arquiteto do

testemunho de uma geração. Seu problema, pois, não é exatamente a insegurança frente

à inadiável necessidade de escolher: é, isso sim, o de cumprir com o “chamado”, com o

caminho que lhe fora “imposto”. A próxima etapa irá sustentar esta interpretação, se

ancorando nos mesmos pressupostos teóricos de Hans-Georg Gadamer, referidos

anteriormente, e, também, nos de Wolfgang Iser.

3.2. A angústia em O encontro marcado

A primeira aparição da angústia no romance se dá logo em suas páginas iniciais.

Em cena ao lado de Letícia, a primeira namorada, em um passeio de fim de tarde, Eduardo

sente uma intensa aflição em relação ao próprio futuro. Ainda que nem narrador nem

personagem mencionem a palavra, é possível identificar a presença desta sensação de

aniquilamento justamente pela ansiedade do protagonista em relação aos próximos anos

de sua vida. Eduardo parece sofrer uma aguda impotência frente ao próprio destino.

– Letícia – Eduardo parou, segurou-a nos ombros: – Estou triste, eu queria...

Eu queria...

– Fala – a menina o olhava com ternura, emocionada, à espera.

– Não sei – seus olhos se encheram de lágrimas.

– Não fica assim, meu bem.

– Tudo é tão ruim, Letícia. Tudo tão triste.

Abraçou-se a ela.

– Não fique triste. Você está comigo [...].

Eduardo se sentia tonto, alguma coisa estalava e rompia no seu coração:

– Letícia, que será de mim, Letícia, responde! Que será de mim (2005, 28).

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Segundo a interpretação que aqui se faz, não há no trecho acima uma proximidade

clara o bastante entre a angústia do personagem e aquela definida por Søren Kierkegaard.

A tontura de Eduardo, o que “estalava e rompia no seu coração”, é a tomada de

consciência de si mesmo, da incidência inevitável do porvir. Não é a vertigem gerada pela

incerteza quanto ao futuro, o medo sem objeto, o abismo das possibilidades, o sofrimento

derivado do exercício da liberdade e do poder escolher, características da angústia

segundo o pensador dinamarquês, como se viu anteriormente. O medo de Eduardo tem

objeto claro: é seu futuro, seu destino.

Reforça-se que, até aqui, a ocorrência deste afeto no personagem se dá de maneira

inconsciente. Quer dizer, Eduardo ainda não tem exatamente consciência da marcha

irrefreável do tempo e da finitude de sua vida. Ainda não vê necessidade de significá-la,

de construir um código de princípios éticos que norteiem sua conduta. Neste momento,

sua posição é a de um simples menino que, apesar de acometido pela aflição em relação

ao futuro, ainda não tem maturidade suficiente para elaborar uma reflexão sobre sua

condição de ser humano.

Tal maturidade começa a ganhar contornos mais nítidos quando Eduardo se

aproxima do fim da adolescência e início da fase adulta. É nesta fase de sua trajetória que

pela primeira vez surge o bordão “puxar angústia”, compartilhado com Hugo e Mauro,

cujo sentido era o de “abordar um tema habitual, como el sentimiento trágico de la vida,

le recherche du temps perdu, to be or not to be” (2005, 59). Como se vê, a literatura é um

dos elos de ligação (se não o principal) entre os três jovens.

No entanto, assim como se deu na cena anteriormente destacada, a interpretação

que aqui se constrói é a de que a angústia, vivida por eles, é diferente daquela concebida

por Søren Kierkegaard. Isto porque Hugo a alia ao “efêmero da existência”; Mauro, à

“inexorabilidade do fortuito na vida de cada um”; e Eduardo, ao “tempo em face da

eternidade”, isto é, à inevitabilidade da morte, ao fato de que “caminhamos para morrer”,

de que “nascemos para morrer” (2005, 59-60).

Nada mais a fazer – a cidade dormia e a noite avançava. Cansados, deixaram-

se ficar num dos bancos da praça

– Chegou a hora de puxar angústia.

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[...]

– Você já pensou que daqui a cem anos estaremos mortos?

– O que são cem anos, diante da eternidade?

– Esta vida é uma merda (2005, 60).

Quer dizer, para os jovens a angústia não consiste na vertigem da liberdade, da

indecisão frente às inúmeras possibilidades e na necessidade de escolher um rumo para si

sem garantia alguma de sucesso (ou insucesso). O que lhes aflige é a aparente gratuidade

da existência humana, fenômeno sem sentido definido em si mesmo, efêmero, fortuito,

sendo a única certeza sobre ele a de que inevitavelmente chegará a um fim, mais dia ou

menos dia.

Tema habitual de Eduardo: o tempo em face da eternidade. Caminhamos para

a morte. O futuro se converte, a cada instante, em passado. O presente não

existe. Vivemos a morte desde o nascimento.

– Nascemos para morrer.

E ficavam calados, solenizados, angustiados enfim, diante da gravidade do

que Eduardo sentenciara (2005, 60; grifo nosso).

À luz das ideias de Søren Kierkegaard, Eduardo parece vivenciar mais o desespero

do que propriamente a angústia, consequência de um desequilíbrio entre as instâncias

(corpo e alma) que compõem a estrutura triádica de seu ser. A oposição entre tempo e

eternidade lhe dói justamente por (ainda) não reconhecer e valorizar a porção eterna de

seu eu. Eduardo está restrito à materialidade, à esfera terrena, física, transitória, corporal.

Está, portanto, distante de um Poder criador e absoluto. Seu mal-estar se deve ao fato de

acreditar que a vida se resume ao tempo do corpo, isto é, que, após a morte biológica,

tudo estará acabado e tudo terá sido em vão.

Insiste-se: Eduardo ainda não reconhece sua porção espiritual, daí seu

desequilíbrio. Este aspecto de sua trajetória será melhor delineado quando a análise voltar

à questão do desespero. Aqui, porém, segundo a interpretação que se faz, é possível

afirmar que não se trata propriamente da angústia como entendida pelo pensador

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dinamarquês. Eis por que se adiantou que, em relação a este tema em especial, há mais

distanciamentos que paralelos entre O encontro marcado e a filosofia de Søren

Kierkegaard. Este ponto não poderia ser deixado de lado, já que o livro “se caracteriza,

antes de mais nada, pela atmosfera, pela ambiência, mais que isso, pelo clima de angústia,

tormento, tensão, que envolve Eduardo e o acompanha aonde quer que vá” (Caccese:

1966, 158; grifo nosso).

Quer dizer, no romance o fenômeno da angústia apresenta contornos próprios que

o diferenciam da maneira como Søren Kierkegaard o concebia. Esta interpretação se

fortalece se forem considerados os momentos seguintes ao do falecimento de seu

Marciano, cuja postura frente à vida sempre serviu de modelo ao protagonista. Não à toa,

sua morte afeta e muito Eduardo, tendo sido pressentida em uma noite gélida em seu

apartamento no Rio de Janeiro, em conversa com o amigo Térsio.

– Eu queria ser um homem simples, direito... Um homem como meu pai. Mas

o que é aquilo?

Recuou assombrado: um vento mais forte entrava pela janela. Deixou-se

ficar, olhos parados, sentindo-se tomado de um estupor inexplicável:

– Como meu pai – repetiu ainda, para si mesmo, sem desviar os olhos da

janela (2005, 170).

O personagem volta a Belo Horizonte para cuidar do velório, enterro e do

inventário de seu Marciano. Os problemas no relacionamento com Antonieta já estão

presentes neste momento. Tamanho o distanciamento entre ambos que “Eduardo não quer

a presença da esposa e ela também não quer fazer-se presente” no velório (Reis: 2012,

29). O protagonista passa uns dias em sua cidade natal e vê ali o naufrágio, perdição e

ruína de Mauro. O amigo vivia nos bares, sempre embriagado, mal conseguindo terminar

a faculdade de medicina e ressentido pelo fato de não ter conseguido lançar candidatura

como deputado em representação à classe estudantil. Vê também a amargura de Toledo

– amigo de seu Marciano com quem travara os primeiros diálogos sobre o ofício de

escritor, quando ainda adolescente –, que abandonara a literatura e reclamava da vida que

então levava.

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As representações literárias urbanas, tal como a construída em O encontro

marcado, atribuem sentidos às cidades, além de resgatar e apresentar ao leitor

os cenários citadinos, com seus múltiplos personagens sociais. Esta

aproximação se estabelece porque a referência geográfica nomeada aparece

muito nitidamente no romance; mas mesmo o espaço não sendo nomeado

para o leitor, isto não impede de ocorrer um entrelaçamento da constituição

do personagem e do lugar onde ele atua. O espaço é tão componente que

torna-se quase como apenas um, há uma espécie de indistinção entre sujeito

e espaço (Santos: 2016, 122).

Quer dizer, todos ao redor de Eduardo – tanto os amigos de Belo Horizonte quanto

os do Rio – falham em seus propósitos, inclusive ele próprio. Como bem pontua Maria

Glória dos Reis, “nosso herói lutou tanto para transformar o mundo e acabou sendo o

reflexo do que ele mesmo abominava. Não passava de um intelectual de bar” (2012, 95).

Ainda segundo a pesquisadora, “talvez Eduardo quisesse fazer uma análise profunda

sobre si porque achava mais confortável não parar para pensar na condição miserável que

estava vivendo. Escrever sobre a técnica do romance seria menos penoso do que escrever

sobre si” (2012, 103). O próprio narrador relata que

sua vida [de Eduardo] não estava certa. Estes amigos com quem você anda

não servem – a mãe dissera. E assim eram todos – escritores sem livros,

poetas sem versos, pintores sem quadros, arraia miúda da arte que vicejava

ao seu lado, tirando-lhe o que lhe restava de melhor – entusiasmo, idealismo,

mocidade. A que ponto chegara: em Belo Horizonte lastimara Hugo e Mauro,

agora percebia que também ele não escapava, eram os três que naufragavam

lentamente. Mas ainda haveria de se salvar.

Como? (2005, 176).

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Ao invés de voltar ao Rio de Janeiro após o velório e enterro de seu pai, o

personagem resolve passar uns dias em Ouro Preto. E é no hotel em que se hospeda que

sofre uma crise aguda de esgotamento emocional.

Apoiou-se à parede – seu corpo tremia, o coração disparava e todo ele parecia

tocar o mais fundo da angústia. Sim, aquilo era angústia. Num grande esforço

tentou ainda ordenar os pensamentos, entender as coisas ao redor – não

entendia mais nada.

– Estou perdido – murmurou, deixando-se cair na cama.

Sentia-se inseguro como no instante de se atirar na piscina em dia de

competição. Mas isto não era nada: era um estado permanente de angústia,

crônico, suportável – era a fragilidade do ser diante da brutalidade e da crueza

da vida, mas era ainda a vida, o existir e se saber presente. A evasão da

realidade, o vórtice negro em que se sentira cair ali na janela, como num poço,

é que era a angústia, o desespero, a negação de si mesmo – o não-ser, o vazio,

o nada (2005, 177; grifo do autor).

No trecho em questão, angústia e desespero são equiparados pelo narrador. Quer

dizer, não há a nítida distinção entre ambos estabelecida pelo pensador dinamarquês,

apesar de as duas noções serem correlatas. Eduardo é acometido por uma forte

insegurança, sim, mas não causada pelas possibilidades de escolha disponíveis. Trata-se

mais de uma fraqueza, de uma impotência frente à realidade e à efemeridade das coisas,

de um vazio derivado da incapacidade de atribuir sentido à própria existência, em suma,

da “fragilidade do ser diante da brutalidade e crueza da vida” (2005, 177).

Como adiantado ao final da etapa anterior, Eduardo não sofre pela necessidade de

escolher um rumo para si. Isto porque se considera um “escolhido”, alguém cuja vocação

fora sacramentada: a de ser um escritor, de representar sua geração por meio da literatura.

Porém, “passou sua vida fazendo escolhas erradas que iam contra os objetivos que traçou

para si” (Reis: 2012, 51). Inevitável e retumbantemente, o protagonista falha nesta que

acreditava ser a missão de sua vida. Isto se deve ao fato de apresentar

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um traço de arrogância daqueles que se consideram conhecedores sobre tudo

ao seu redor; este traço fará com que qualquer novo aprendizado seja-lhe

desinteressante, pois o personagem já acredita-se pronto e acabado. Esta

contradição entre o que pensa de si mesmo e o que realmente é faz Eduardo

produzir uma literatura medíocre, vazia de significado – pois, na maioria dos

casos, ele simplesmente não é capaz de terminar os projetos começados (Reis:

2012, 40).

Não à toa, o próprio narrador relata que Eduardo “sentia vagamente que se tornara

instrumento de desígnios outros, poderosos, desconhecidos – já não era dono de si

mesmo. Você não soube escolher – lhe dissera Toledo: foi escolhido. Escolhido por

quem? Para quê? Desígnios de Deus?” (2005, 143). No artigo “Os caminhos existenciais

em O encontro marcado”, Marcelo Antunes Neves corrobora esta interpretação. Segundo

Neves,

a escolha é um ato existencial, através dele o indivíduo constrói seu próprio

destino. Por outro lado, o momento da escolha é também um momento de

dúvida, de inquietação, de desamparo; contudo, é seu dever escolher: só assim

poderá dizer que estará realmente existindo, que ele [Eduardo Marciano] é,

que possui uma identidade. Esta é sua aporia: Eduardo Marciano é aquele que

não escolheu: foi escolhido. Esta sua incapacidade de escolher e de mudar o

próprio destino (por falta de força? cegueira? medo? orgulho?), esta situação

de ser o escolhido e não aquele que escolhe levará Eduardo a um caminho

estranho, um caminho não previsto. Um caminho, enfim, que o conduzirá ao

sofrimento e à perda de suas próprias referências na vida (2011, 146).

Eduardo sofre, isso sim, por sua ganância de viver, por sua pressa em cumprir

etapas existenciais, já que ainda não enxerga sua dimensão espiritual e, portanto,

atemporal, eterna. Esta avidez é consequência direta de sua aflição diante da finitude da

existência. É como se quisesse realizar tudo o que almeja para si o quanto antes por não

saber quando seu fim irá chegar, como se estivesse na iminência da morte. Como bem

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pontuou Maria Glória dos Reis, “Eduardo tem muita pressa de viver; por isso, não percebe

o que, realmente, está acontecendo em sua vida” (2012, 28).

– Estou com taquicardia, doutor. Alguma lesão, talvez. Um estado

permanente de expectativa, como à espera de um desastre, como se fosse

morrer a qualquer momento.

– Você não tem nada no coração. Isso é angústia, e da boa. Deve procurar

um psiquiatra (2005, 178).

Vale dizer que o protagonista não deixa de ter consciência deste problema. Fora

até alertado por seu pai: “você vive muito depressa – o pai tinha razão, era isso, depressa

demais. Essa ganância de viver” (2005, 143). Infelizmente, não consegue resolvê-lo, não

é capaz de diminuir o ritmo, de desacelerar. É o próprio narrador quem informa que

Eduardo precisava se convencer de que

era preciso ir devagar – saber envelhecer. O fruto que apanhava ainda verde,

deixava apodrecer na mão. Casado. A vida o afastava de sua origem, de seus

amigos. Já nem sempre estaria presente na lembrança deles, o tempo o

empurrava com força demais e isso era terrível. Mal podia sentir o gosto das

novas experiências, já não eram novas, ficavam logo para trás, o passado, ele

que não tinha presente, não tinha nada, não fizera nada – por que não podia

parar um pouco, descansar, não dar mais um passo? Queria adquirir seus

hábitos também, certa maneira de ser, ele que era moço [...]. O tempo levava

tudo, ele não tinha onde se ancorar (2005, 143).

Uma outra menção significativa à angústia se dá quando o narrador relata a espera

de Eduardo por Gerlane, sua amante, em um bar de Copacabana. No entanto, novamente

a angústia em questão não tem os contornos e o sentido daquela concebida por Søren

Kierkegaard. Isto porque, no trecho em questão, Eduardo não está diante de um medo

sem objeto, da indecisão frente a uma infinidade de caminhos a seguir na vida. Trata-se

mais do desespero, fruto de sua incapacidade de se conectar verdadeiramente a um Poder

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superior, à dimensão eterna e absoluta, isto é, a Deus. Há que se lembrar que sua ligação

com a esfera religiosa, até aqui, é frouxa, esporádica e de contornos nebulosos.

Pronto, estou sozinho – correu os olhos em torno. Os dois casais haviam

saído sem que ele percebesse, o garçom voltara a inexistir atrás do balcão,

devia ser mais de uma hora. Sozinho. Como sempre desejou viver! Podia

se estender de comprido e dormir. Podia chorar, podia tomar veneno,

morrer. Sozinho – sozinho no mundo, isolado, incomunicável, fora do

tempo, abandonado, perdido... Mudou com esforço a ordem dos

pensamentos, tentou reanimar-se dentro de sua embriaguez: angustiado

diante da angústia, o poço negro em cujo vórtice fora apanhado uma vez,

em Ouro Preto (2005, 196).

Anos depois do falecimento de seu pai, Eduardo visita Belo Horizonte novamente.

Logo nota que a cidade natal perdera os contornos provincianos, vindo a assumir agora

uma paisagem e dinâmica mais metropolitanas. Não à toa, o protagonista inevitavelmente

acaba tomando consciência de uma forte ruptura com seu lugar de origem. Já se via

perdido no Rio de Janeiro, imerso em um casamento instável e em rodas de amigos

esparsos, fugidios, de ocasião, com quem não travava laços afetivos concretos e

significativos como os que tinha com Hugo e Mauro, quando de sua adolescência na

capital mineira. Sem contar a desestruturação que sentia pelo “emprego de funcionalismo

público, pela boemia, pela separação, pela solidão e pela frustração de não ter sido

escritor”, como acrescenta Dayse Aparecida do Amaral Santos (2016, 32).

Quer dizer, “fica evidente a importância do lugar físico na identificação pessoal

para Eduardo, sendo que a presença do lugar na memória e nas lembranças vai moldando

sua identidade” (Buchweitz e Requião: 2016, 156). Mesmo que aparentemente não seja

este o caso, remeter à questão da influência dos espaços geográficos na vida de Eduardo

Marciano, ainda que de maneira breve, é pertinente ao tema da angústia do personagem.

Isto porque “este processo do modo como as cidades foram sendo edificadas, e de como

cada uma vai perdendo espaço e poder significa também o processo de angústia e perda

em que vivem os personagens de O encontro marcado” (Santos: 2016, 107-8).

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Os efeitos deste processo radical de transformação, sofrido por Belo Horizonte,

ficam evidentes quando da última visita de Eduardo. A antiga Praça, em que se reunia

com os amigos para “puxar angústia”, fora totalmente reformulada pelo novo prefeito. O

protagonista sente que nada mais o religa a Belo Horizonte. Tanto que, após revisitar a

mãe, Mauro, Hugo, Toledo, o túmulo de seu Marciano e o clube em que treinara natação,

sai “da cidade como de um cemitério” (2005, 242). A angústia é aqui novamente trazida

à tona e, assim como em outras vezes em que surge no romance, tem um sentido diferente

daquele concebido por Søren Kierkegaard. A de Eduardo Marciano tem contornos de

aflição, cansaço, perdição, arrependimento, e não exatamente de um medo sem objeto, de

uma imobilidade aflitiva diante das inúmeras possibilidades de caminhos a seguir, de uma

vertigem derivada do exercício da liberdade.

Os bancos agora eram de mármore, como túmulos. Nada mais o ligava

àquele lugar.

– Chegou a hora de puxar angústia.

Chegou a hora. Mocidade velha, cansada, desnorteada, exaurida, quando

chegaria enfim a tua hora? Quantos séculos de angústia coletiva te

fizeram? Quantas horas de aflição foram vividas, quantos corações se

extenuaram no amor e na esperança para te entregarem desamparada ao

mundo novo? e que será de ti neste mundo? que será do mundo? Perguntas

sem resposta e sem sentido que ele largava na praça avermelhada pelo

crepúsculo (2005, 237).

A interpretação que aqui se constrói ancora-se não só nos pressupostos de Hans-

Georg Gadamer, já expostos anteriormente. Wolfgang Iser também contribui para a

sustentação desta análise comparatista e interdisciplinar de O encontro marcado.

Segundo o teórico alemão, o sentido de um texto é resultado da ação tanto do texto em si

quanto obviamente do(a) leitor(a). A noção de efeito consiste justamente no resultado do

contato entre obra literária e quem a lê.

Não à toa, Iser lança mão da noção de “bilateralidade”, entendida como a interação

entre dois polos, isto é, obra e leitor(a). O primeiro é o artístico e o segundo, o estético.

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Logo, o sentido do texto não está somente em si nem somente em quem o lê. Está, isto

sim, “situated somewhere between the two. It must inevitably be virtual in character, as

it cannot be reduced to the reality of the text or to the subjectivity of the reader, and it is

from this virtuality that it derives its dynamism” (1978, 21).

Quer dizer, ao longo da interação, o(a) leitor(a) projeta sobre o livro, consciente

e/ou inconscientemente, seu repertório de referências. Segundo Iser, o sentido do texto

must clearly be the product of an interaction between the textual signals and

the reader’s acts of comprehension. And, equally clearly, the reader cannot

detach himself form such an interaction; on the contrary, the activity

stimulated in him will link him to the text and induce him to create the

conditions necessary for the effectiveness of that text. As text and reader thus

merge into a single situation, the division between subject and object no

longer applies, and it therefore follows that meaning is no longer an object to

be defined, but is an effect to be experienced (1978, 9-10).

Faz-se tal ressalva metodológica justamente por conta do fato de a presente análise

interdisciplinar de O encontro marcado ser resultado não só do comparatismo entre a obra

em si e as ideias de Søren Kierkegaard. Na dinâmica do processo como um todo houve

evidentemente a participação de um terceiro elemento, que interpretou tanto o texto

literário de Fernando Sabino quanto os conceitos que compõem o pensamento do filósofo

dinamarquês. O acesso a diversos pesquisadores e teóricos contribui para balizar a

interação tanto com o romance quanto com a produção de Søren Kierkegaard (sobretudo

com esta, devido à sua densidade e complexidade).

A mesma estratégia, adotada nas etapas relativas aos estádios existenciais e à

angústia, será posta em prática a seguir. A análise se volta para a questão do desespero,

tão cara à Søren Kierkegaard e tão presente em O encontro marcado. Assim como ocorreu

com os três estádios existenciais – e diferentemente em relação à angústia –, é possível

adiantar que há mais paralelos do que distanciamentos entre o desespero vivido por

Eduardo Marciano e o concebido pelo filósofo dinamarquês. A noção triádica do

indivíduo, mencionada anteriormente, será novamente acessada, dada sua inegável

contribuição para a compreensão do referido conceito.

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4

Desespero: proximidades e distanciamentos entre Eduardo Marciano e Søren

Kierkegaard

Delineado sobretudo na obra O desespero humano (doença até a morte) (1974),

sob o pseudônimo Anti-Climacus, o desespero também é um tema caro a Søren Aabye

Kierkgaard. Diferentemente do que se viu em relação à angústia, este afeto assume feições

similares tanto no romance quanto nas reflexões do pensador dinamarquês. É o que se

verá a partir de agora na quarta e última etapa desta dissertação.

4.1. O desespero, segundo Kierkegaard

Para a devida compreensão do conceito conforme cunhado pelo pensador

dinamarquês, é válido ter em mente a concepção triádica da natureza humana, apresentada

anteriormente. Em linhas gerais, é possível afirmar que o desespero é resultado de um

desequilíbrio entre as duas instâncias que configuram o indivíduo, isto é, a alma e o corpo,

eterna e finita, respectivamente. Como bem resumiu Thomas Ramson Giles, “uma vez

que o indivíduo é a síntese entre a finitude e a infinitude, o desespero surge quando um

destes fatores assume o predomínio sobre o outro” (1975, 34).

Andreza Gomes de Souza complementa ao afirmar que “o desespero, assim, se

define pelo desequilíbrio da dialética/síntese entre finito e infinito, podendo o eu

desesperar de si ou de algo, apercebendo-se ou não disso” (2011, 15). Ou seja, o desespero

pode ser tanto de si ou de algo quanto consciente ou inconsciente. Para Søren

Kierkegaard, a resolução de tal problema está na fé, no mergulho na dimensão do

Absoluto, em Deus – justamente o Criador desta complexa configuração –, no

reconhecimento e na valorização da porção eterna do próprio self. Esta questão em

especial será retomada e devidamente pormenorizada em breve.

Para o pensador dinamarquês, o indivíduo é composto por corpo e alma, por uma

dimensão finita e infinita. Ambas instâncias, opostas e complementares entre si, se

interrelacionam. No entanto, a mera relação entre corpo e alma ainda não é o bastante

para a constituição do eu. Este advém da consciência desta relação de síntese entre alma

e corpo. O eu se forma assim que há o voltar-se para si mesmo, para a ligação entre estas

duas instâncias. Para Søren Kierkegaard, o eu é resultado da tomada de consciência da

relação entre corpo e alma. O eu é o espírito. Logo, segundo o filósofo e teólogo

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dinamarquês, “eu” e “espírito” são sinônimos. Daí o porquê de se nomear esta concepção

da natureza humana como “triádica”.

O homem é espírito. Mas o que é espírito? É o eu. Mas, neste caso, o eu? O

eu é uma relação, que não se estabelece com qualquer coisa de alheio a si,

mas consigo própria [...]. Numa relação de dois termos, a própria relação entra

como um terceiro, como unidade negativa, e cada um daqueles termos se

relaciona com a relação, tendo cada um existência separada no seu relacionar-

se com a relação; assim acontece com respeito à alma, sendo a ligação da

alma e do corpo uma simples relação. Se, pelo contrário, a relação se conhece

a si própria, essa última relação que se estabelece é um terceiro termo

positivo, e temos então o eu (Kierkegaard: 1974, 337).

É justamente devido a esta configuração, composta por instâncias distintas que se

interrelacionam e são interdependentes, que o indivíduo está sujeito ao desespero. Isto

porque “o que é unido é estável, o que está em relação, ao contrário, é instável, variável,

frágil”, como bem elucidou Charles Le Blanc (2003, 85). Ou seja, “se o homem não fosse

síntese, não seria desespero e nem poderia ter um self. O desespero pode ser de infinitude,

isto é, carência de finito, ou da finitude, isto é, carência de infinito” (Teixeira: 2017, 61).

Regis Jolivet destaca a inevitabilidade do desespero na vida do ser humano. Segundo o

filósofo e sacerdote francês, “o homem, de qualquer maneira que a si se encare, esbarra

sempre com os seus próprios limites; verifica e sente que o mundo inteiro não o pode

completar e que também não pode completar-se a si mesmo” (1957, 57-8).

Para Søren Kierkegaard, o desespero acomete o ser humano “pois Deus, fazendo

que o homem fosse essa relação, como que o deixa escapar da sua mão, de modo que a

relação [entre corpo e alma] depende de si própria” (1974, 340). É oportuno pontuar a

diferença entre este conceito e o de angústia, ainda que se trate, obviamente, de ideias

correlatas. Como se viu, a angústia consiste na vertigem da liberdade, na sensação de

sufocamento diante da necessidade de se escolher uma entre várias possibilidades. Já o

desespero consiste no desequilíbrio entre corpo e alma, podendo ser um desespero de si

ou de algo, consciente ou inconsciente.

Este pathos pode assumir duas formas, segundo Søren Kierkegaard. A primeira

delas é o “querer ser si mesmo a qualquer preço”. A segunda é o “desespero de si”, e se

dá quando o indivíduo não quer ser si mesmo, quando quer se desfazer do eu que é,

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quando quer ser outro eu que não é na realidade. Quer dizer, diante do ser humano em

geral está a “tentação de ou assumir desesperadamente no desafio este ser que é seu, ou

então, de modo igualmente desesperado, não ser ele mesmo, isto é, escapar covardemente

do tormento do seu ser que exige a fadiga de sua edificação” (Farago: 2006, 97). Em

relação à primeira forma, Thomas Ramson Giles afirma que este indivíduo específico

quer desesperadamente ser si-próprio sem esperança alguma de êxito. Quer

ajuda, mas nos seus próprios termos. Não quer sofrer a humilhação de ter de

aceitá-la incondicionalmente. Agarra-se ao seu sofrimento porque este lhe dá

o direito de experimentar o ressentimento, mas, por outro lado, se enraivece

só em pensar numa saída que possa tirar-lhe este sofrimento (1975, 37).

A segunda forma – isto é, quando o indivíduo não quer ser si mesmo – é

conhecida também como “desespero da fraqueza” (1975, 38). Consiste no resultado da

inconsciência ou até da renúncia à porção eterna e atemporal do si mesmo. Quer dizer,

“se o indivíduo se considera apenas como um objeto temporal entre outros, tudo o que

deseja, todas as suas aspirações têm que ser deste mundo, porém isso o deixa totalmente

à mercê de acontecimentos externos” (1975, 38). Não à toa, esta forma é facilmente

atribuível ao indivíduo do estádio estético, preso que está à dimensão terrena e física da

vida, dependente de estímulos exteriores, como se viu na etapa relativa ao tema e como

bem retratado por Søren Kierkegard no personagem Johannes, o esteta por excelência de

Diário de um sedutor.

Uma análise do desespero, como concebido por Søren Kierkegaard, não poderia

deixar de lado o fato de o filósofo ter atribuído ao conceito um caráter de “doença até a

morte”. No entanto, vale dizer que não se trata de uma enfermidade que leva ao

falecimento no sentido estrito e mais usual do termo. Isto porque “bem longe de dele se

morrer, ou de que este mal acabe com a morte física, a sua tortura, pelo contrário, está em

não se poder morrer, como se debate na agonia o moribundo sem poder acabar”

(Kierkegaard: 1974, 341). Quer dizer, trata-se de uma “enfermidade do eu: eternamente

morrer, morrer sem todavia morrer, morrer a morte” (1974, 341).

O desesperado é então um enfermo que sofre de uma doença até a morte, mas

de uma doença da qual não pode morrer, o mal não acaba. O desespero é uma

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doença até a morte porque o desesperado deseja a morte do eu (modificação,

transformação da relação do eu com ele mesmo), a morte de um eu que,

justamente, não pode morrer. O desespero é a doença até a morte porque ele

é o viver a morte do eu, ou seja, a tentativa impossível de tornar o eu

autossuficiente ou de negar a possibilidade do eu (Le Blanc: 2003, 87; grifo

do autor).

A noção de “doença para a morte” é ainda mais simplificada por Natalia Mendes

Teixeira, segundo quem “ao morrer tudo termina, mas ao morrer pela doença mortal,

vive-se a morte [...]. A doença mortal é a entrada da morte estando em vida. Quem

desespera não consegue morrer, morre continuamente e essa é sua vida” (2017, 60).

Thomas Ramson Giles complementa ao atribuir ao desespero um caráter parasitário. Quer

dizer, este “não devora a eternidade do ‘eu’ que é o seu próprio sustentáculo. Essa

destruição de si próprio, o desespero, é impotente e não consegue os seus fins. A sua

vontade é destruir-se, porém é exatamente isso que ela não consegue fazer” (1975, 33).

O já citado Charles Le Blanc acrescenta que “o eu que quer se tornar ele mesmo

não o consegue (por causa de sua natureza finita) e que aquele que não quer ser ele mesmo

sofre um fracasso semelhante” (2003, 88). Segundo o teórico, deve-se a isso o fato de ser

impossível vencer o desespero. Isto, claro, se não houver o mergulho na dimensão do

Absoluto, do Eterno, isto é, de Deus, origem e retorno do eu, do espírito, entendido como

o resultado da tomada de consciência da interrelação entre corpo e alma, instâncias

opostas e complementares entre si.

Para Søren Kierkegaard, a inconsciência e principalmente a recusa da dimensão

espiritual do si mesmo é uma das causas do desespero, sintoma do desequilíbrio entre as

porções que configuram o indivíduo. Aquele que se restringe à esfera terrena, física,

orgânica, temporal, está fadado ao desespero, seja este consciente ou não. Afinal, como

se viu, a “doença até a morte” pode ser de si ou de algo, assim como consciente ou

inconsciente. O pensador dinamarquês resume bem a questão ao afirmar que “o desespero

é precisamente a inconsciência em que os homens estão do seu destino espiritual” (1974,

347).

Quer dizer, este ignorante em especial “vive sem grande consciência do seu

destino espiritual e daí toda aquela falsa despreocupação, aquela falsa satisfação em viver

etc., que é o próprio desespero” (Giles: 1975, 33). Ressalta-se novamente o porquê de

esta forma de desespero ser facilmente atribuível ao indivíduo do estádio estético.

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Kierkegaard também expande a questão para destacar esta inconsciência espiritual, ao

dizer que este indivíduo

é presa da sensualidade e duma alma plenamente corporal; porque a sua vida

só conhece as categorias dos sentidos, o agradável e o desagradável, e manda

passear o espírito, a verdade etc... É porque é demasiado sensual para ter a

ousadia, a paciência de ser espírito. Apesar da sua vaidade e falsidade, os

homens não têm ordinariamente mais do que uma leve ideia, ou melhor, não

fazem a mais leve ideia de serem espírito, de serem este absoluto que ao

homem é dado ser [...].

Todos nós somos uma síntese com uma finalidade espiritual, essa é a nossa

estrutura (1974, 358).

Para Søren Kierkegaard, tal inconsciência é um agravante do desespero, já que

esta “é estar ao mesmo tempo desesperado e em erro” (1974, 359). Quer dizer, o indivíduo

restrito à esfera terrena, que erige sua personalidade com base em abstrações, que não se

remete a Deus, “realize o que realizar de extraordinário, explique o que explicar, até o

próprio universo, por muito interessante que, como esteta, goze a vida: mesmo assim, ela

será desespero” (1974, 360).

Quer dizer, este pathos pode advir da valorização e ampliação unicamente da

esfera temporal, em detrimento da espiritual e eterna. Como complementa León Chestov,

“mientras el hombre se limite a admirase, no rozará el enigma del ser. Sólo la

desesperación podrá conducirle al umbral de lo que es realmente” (1947, 77). Ainda

segundo Chestov, o tema também deve estar entre as preocupações da filosofia.

Como se adiantou anteriormente, para Søren Kierkegaard a solução para o

desespero está no mergulho na fé, na dimensão do Absoluto, no reconhecimento e

valorização da porção eterna do si mesmo. Quer dizer, segundo o pensador dinamarquês,

somente ao tomar consciência do próprio destino espiritual, de que se é um espírito e de

que Deus existe e é sua origem e fim, o eu consegue superar o excruciante sofrimento

existencial.

Como aponta André Luiz Holanda de Oliveira, “o eu, enquanto relação sintética,

não é causa de si e nem se basta a si mesmo, pelo contrário, o eu é obra de um outro. E

este outro originário é o absoluto, que Kierkegaard identifica com Deus” (2003, 80).

Enquanto não tomar consciência disso, o eu irá continuar imerso no sofrimento, preso a

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ele, ainda que aparentemente não pareça, ainda que diga que é feliz, ainda que, enfim,

não sinta nenhum de seus “sintomas” característicos.

Vale lembrar que o desespero é “uma disfunção subjacente em um nível

ontológico que pode ocorrer até mesmo sem sintomas psicológicos discerníveis”

(Teixeira: 2017, 59). Isto porque “o eu não tem saúde e não está livre do desespero, senão

quando, tendo desesperado, transparente a si próprio, mergulha até Deus” (Kierkegaard:

1974, 350).

Quer dizer, para Søren Kiekegaard, assim como a angústia, o desespero é o

caminho para a salvação do indivíduo. Como afirma Anti-Climacus em O desespero

humano (doença até a morte), “é então que Deus vem em socorro do crente, livrando-o

do horror, talvez pelo próprio horror, no qual, inesperadamente, miraculoso, divino, se

manifesta o socorro” (1974, 350). A figura de Jesus Cristo é destacada, e não sem motivo,

considerando o fato de Søren Kierkegaard ter dito “que fui e sou um autor religioso, que

toda a minha obra de escritor se relaciona com o cristianismo” (1986, 22). Afinal,

um eu em face de Cristo é um eu elevado a uma altitude, a uma potência

superior, pela imensa concessão de Deus, a imensa acepção de que Deus o

investiu, tendo querido, para ele também, nascer e ser homem, sofrer e

morrer. A nossa fórmula precedente sobre o crescimento do eu, quando cresce

a ideia de Deus, vale igualmente aqui: quanto mais aumenta a ideia de Cristo,

mais o eu aumenta. A sua qualidade depende da sua medida. Dando-nos

Cristo como medida, Deus mostrou-nos à evidência até onde vai a imensa

realidade dum eu; porque só em Cristo é verdade que Deus é a medida do

homem, a sua medida e o seu fim (Kierkegaard: 1974, 409).

Por conta da densidade e complexidade das ideias de Søren Kierkegaard, é

oportuno recorrer ao auxílio de teóricos e pesquisadores para se atingir a compreensão a

mais fidedigna possível. Esta estratégia é a que se vem adotando até o momento e a que

será adotada até o final da presente etapa desta análise interdisciplinar de O encontro

marcado. Neste sentido, é válido acessar Charles Le Blanc, que afirma que “se a Salvação

é impossível para o homem, a Deus tudo continua sendo possível. Assim, o único remédio

para o desespero é a fé, porque ter fé é acreditar que para Deus tudo é possível” (2003,

88).

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Quer dizer, segundo o autor canadense, “a impossibilidade de vencer o desespero

só é uma impossibilidade para aquele que não acredita em Deus, para aquele que não tem

fé” (2003, 88). O desespero é um caminho certeiro para a fé. A importância deste

sofrimento específico para o indivíduo se deve ao fato de que “torna possível a fundação

da verdade existencial, ou seja, que está no princípio da busca de uma verdade que é

verdade para mim” (2003, 90; grifo do autor). Ainda segundo Charles Le Blanc,

se a fé é remédio para o desespero, leva o indivíduo além da razão e de toda

possibilidade de compreensão, porque a fé é absurdo, paradoxo, escândalo. O

indivíduo tem o dever de assumir uma posição na existência, uma posição

diante de Deus, tem o dever de perder sua razão para conquistar Deus, o que

é justamente o próprio ato de crer [...]. Como a existência se caracteriza pela

precariedade absoluta ligada à possibilidade, a fé instaura entre o eu e o

mundo, entre o eu e ele mesmo, uma relação de estabilidade que apaga

angústia e desespero apenas pelo princípio de que para Deus tudo é possível

(2003, 90; grifo do autor).

Para France Farago, o desespero “é a gênese do nascimento para si mesmo em

espírito e verdade, indo além do marasmo da finitude. Se não existe nascimento sem

sofrimento, isto é igualmente verdadeiro no que tange ao nascimento para si mesmo na

dimensão da interioridade” (2006, 46-7). A pesquisadora pormenoriza ainda mais a

questão ao afirmar que “o sofrimento tem com efeito sua fonte na ambiguidade do

homem, no fato de que sua vida é sua própria tarefa de unificação pessoal e que só pode

realizá-la em função do seu relacionamento com uma instância que Kierkegaard chama

de ‘o poder eterno’” (2006, 46-7).

Quer dizer, o desespero é “o critério que possibilita saber se existimos

propriamente falando: tal sofrimento é o indício de uma morte ao imediato” (2006, 46-7).

Este apontamento de France Farago é válido e pertinente, pois clareia a noção de

Kierkegaard do desespero como caminho para o renascimento existencial do indivíduo.

Isto é, para a solução de seu intenso sofrimento, o ser humano precisa abdicar do foco

exclusivo na dimensão terrena, na dependência dos estímulos externos, para refundar sua

interioridade sob a luz de Deus. É preciso “morrer para a primeira imediatidade, a fim de

poder nascer para a segunda, renascer, ressuscitar. O sofrimento opera uma

individualização pela prova” (2006, 146-7).

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Vale uma breve digressão para ressaltar o fato de que Søren Kierkegaard não

apregoa a total renúncia à esfera temporal. Para o pensador dinamarquês, Cristo é o

modelo a seguir pois representou como ninguém tanto a dimensão terrena quanto a

espiritual do ser humano, isto é, tanto a porção finita quanto a infinita.

O infinito que ilimita, e o finito que delimita é a síntese que resulta no eu. Se

carece de finito, perde-se no imaginário, e será desesperado. Se carece de

infinito, é um indigente moral, repetição de um eterno mesmo, e será

desespero. Se focar o temporal e carecer de eternidade será ainda desespero.

Se carecer de possível, será asfixiado pelo necessário, será desespero

(Teixeira: 2017, 61).

Jorge Miranda de Almeida e Álvaro Valls consideram o desesperar em si como

uma vantagem. Isto porque, ao fazê-lo, o indivíduo pode finalmente desembocar na esfera

atemporal e absoluta da existência, se reconhecendo dela originário e dependente. Este

sofrimento específico posiciona o ser humano “em seu verdadeiro patamar: liberdade

derivada e responsabilidade original que despedaça o eu que é dado na possibilidade para

constituir o si-mesmo a partir das escolhas éticas que o indivíduo singular realiza em meio

às contradições em que está situado” (Almeida e Valls: 2007, 64). Para os dois

pesquisadores, “quem assume o desespero está mais próximo da cura” (2007, 64).

Segundo Regis Jolivet,

para escolher o eterno, temos que desesperar daquilo que somos e do que

temos na ordem do finito. O homem, de qualquer maneira que a si se encare,

esbarra sempre com os seus próprios limites; verifica e sente que o mundo

inteiro não o pode completar e que também não pode completar-se a si mesmo

[...]. Mas há também um desespero saudável e salvador, distintivo de uma

humanidade que simultaneamente se reconhece finita e infinita. É a porta que

se abre para a transcendência com o Absoluto; faz-nos penetrar no eterno.

Provoca o desprendimento e o salto graças aos quais o homem ultrapassa,

como vimos, os seus limites, enche-se da sua verdade e existe

verdadeiramente... (1957, 57-8).

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O já citado André Luiz Holanda de Oliveira destaca a participação da liberdade

na salvação do indivíduo em Deus. Para o autor da dissertação de mestrado A noção de

existência autêntica em Kierkegaard (2003), o indivíduo tem, diante de si, a verdadeira

liberdade”, a qual “implica a dependência espiritual” (2003, 66). Quer dizer, é possível

escolher atravessar o caminho do desespero para se atingir a salvação. Escolher, aqui, tem

mais um sentido de “aceitar o inevitável” do que propriamente “optar premeditadamente”.

Ainda segundo Oliveira, “escolher o desespero é escolher a si mesmo no seu valor eterno.

Desesperar-se é o mesmo que ter consciência ou reflexão, porque para optar pelo eterno

temos de nos desesperar do que somos e do que temos na categoria da nossa finitude”

(2003, 66).

Como se adiantou anteriormente, o objetivo da presente etapa é o de se chegar à

compreensão a mais fidedigna possível do conceito de desespero segundo Søren

Kierkegaard. Resta somente pontuar a ligação entre este e o pecado. Este tema em

especial foi brevemente aventado quando da análise do estádio religioso. Vale retomá-lo

e pormenorizá-lo.

O ponto de partida deve ser a premissa de que, para Søren Kierkegaard, o pecado

não é o oposto da virtude, mas sim da fé. Logo, como afirma o pensador dinamarquês ao

remeter à Epístola aos Romanos 14,23, “tudo o que não provém da fé é pecado” (1974,

385). O teólogo vai além ao afirmar que o pecado “não é o desregramento da carne e do

sangue, mas o consentimento dado pelo espírito a este desregramento”, estando-se,

consciente ou inconscientemente, perante Deus (1974, 385).

O estado contínuo de pecado é um pecado a mais; ou, para usar uma expressão

mais precisa e tal como adiante se desenvolverá, permanecer no pecado é

renová-lo, é pecar. Ao pecador talvez isto pareça exagerado, pois lhe custa

reconhecer em qualquer outro pecado atual um novo pecado. Mas a

eternidade, seu guarda-livros, é obrigada a inscrever o estado de pecado em

que se está no passivo dos novos pecados. O seu livro tem apenas duas

colunas e tudo o que não vem da fé é pecado; a falta de arrependimento após

cada pecado é um novo pecado, e até cada um dos instantes em que este

pecado permanece sem arrependimento é um novo pecado (1974, 403; grifo

do autor).

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Ser consciente do próprio estado de pecador, sem que se esforce para superá-lo,

é, para Søren Kierkegaard, um agravante, “o que se entende por elevação de intensidade”

(1974, 406). Segundo o pensador dinamarquês, isto significa o máximo enclausuramento,

já que este indivíduo “se encerrou na sua própria sequência e não quer sair daí. Recusa-

se a qualquer contato com o bem, receia a fraqueza de escutar por vezes uma outra voz.

Não, ei-lo decidido a só se escutar a si, a não conviver senão consigo” (1974, 406).

A recusa da fé, da dimensão eterna do si mesmo, do cristianismo, é o supremo

grau do desespero. Para Søren Kierkegaard, “o pecado contra o Espírito Santo é o pecado

que ataca” (1974, 417). Thomas Ramson Giles elucida ainda mais esta questão em

especial ao afirmar que “o indivíduo peca quando, perante Deus, ou com a ideia de Deus,

desesperado, não quer ou quer ser si-próprio. O acento recai então sobre o estar perante

Deus, ou ter a ideia de Deus” (1975, 40).

Fez-se questão de finalizar a análise do conceito de desespero, como concebido

pelo pensador dinamarquês, ressaltando seu viés de recusa à dimensão espiritual e

atemporal do si mesmo. Isto porque, como se procurará sustentar, é justamente esta a

principal origem, motivo e explicação do excruciante sofrimento existencial que acomete

Eduardo Marciano. Esta questão foi brevemente delineada quando da análise da entrada

do protagonista no estádio religioso. Viu-se que o distanciamento do personagem

principal em relação a Deus em nada o favoreceu. Eduardo se afundou e se enclausurou

em si mesmo justamente por ser incapaz de abandonar o próprio orgulho e excessivo

racionalismo em prol da ancoragem de si mesmo na verdade divina. Um aprofundamento

maior é não só oportuno e pertinente como necessário. Afinal, assim como a angústia, o

desespero é tema muito presente em O encontro marcado, sendo um termo repetido

consideráveis vezes ao longo do romance.

Para sustentar esta interpretação – isto é, de que o desespero de Eduardo Marciano

se deve à sua recusa e incapacidade de mergulhar na dimensão absoluta e atemporal, de

reconhecer e valorizar a porção eterna de si mesmo –, a análise irá novamente ancorar-se

em pressupostos teóricos da Hermenêutica e da Estética da Recepção. Autores como

Hans-Georg Gadamer e Wolfgang Iser serão acessados mais uma vez para validar os

apontamentos construídos.

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4.2. O desespero em O encontro marcado

Como se viu anteriormente, o desespero segundo Søren Kierkegaard pode ser de

si mesmo ou de algo, além de consciente ou inconsciente. A interpretação que aqui se

constrói é a de que, no caso de Eduardo Marciano, seu intenso aniquilamento existencial

é resultado da constante recusa e desvalorização de sua porção eterna, bem como de sua

relação distante com a esfera divina, em parte explicada pelo seu orgulho e excessivo

racionalismo. Isto explica sua dificuldade em encontrar um sentido para a própria

existência, em seguir um caminho retilíneo, permeado por verdades sólidas e não

vulneráveis a relativizações. Por isso, é possível afirmar que há mais paralelos do que

distanciamentos entre O encontro marcado e Søren Kierkegaard quanto a esta questão

em especial.

Seu orgulho e excessivo racionalismo são visíveis logo no início de sua trajetória,

isto é, em seus anos de colégio. É o próprio narrador quem os evidencia, ao afirmar que

Eduardo se julgava “superior, privilegiado, único. Olhava com desprezo a massa ignara

dos colegas, seres vulgares, relaxados, não sabiam se vestir, andavam despenteados,

suados, sujos, jogavam bilhar, preocupavam-se com os exames – passar nos exames era

tão fácil!” (2005, 37). O temperamento do protagonista é destacado também por Maria da

Glória Reis, que o considera “um forte catalisador em Eduardo: sua autoconfiança e amor

próprio se misturam a um orgulho descabido, gerando um sujeito pedante, que acredita

ser superior a outras pessoas” (2012, 24).

A passagem relativa ao tenso diálogo com Monsenhor Tavares, após altercação

entre Eduardo e o amigo Mauro na sala de aula, também é indício da personalidade

orgulhosa do protagonista. O diretor do colégio claramente alerta o aluno, ao dizer-lhe:

“Você é atrevido, orgulhoso, indócil, malcriado – desfechou o padre, voltando-se para ele

solenemente, acusando-o com o dedo: – Que pretende da vida? Acha que com tudo isso

estará aparelhado para viver?” (2005, 39). Também não à toa, Monsenhor Tavares, em

tom acusatório, rígido e disciplinador, brandindo o lápis na direção do então menino,

afirma: “Você precisa perder este hábito de responder. Precisa aprender a ouvir, quando

os outros falam” (2005, 39).

Esta opinião sobre Eduardo Marciano é compartilhada por Hugo, que junto com

Mauro, é o amigo mais próximo em sua juventude. Isto é, o personagem em questão é um

dos que melhor conhecem o protagonista. A cena final da parte “Geração espontânea” é

uma das mais reveladoras em se tratando da índole de Eduardo. Nela, os três amigos estão

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reunidos em um bar e, já embriagados, decidem dizer o que cada um pensa dos outros

dois. Justamente por isso, “debaixo do sorriso de aparente despreocupação, os três se

haviam feito graves, sérios. Sentiam no ar a ameaça, o perigo da experiência, sentiam

medo” (2005, 86).

Aqui, Hugo destaca o orgulho como essência do temperamento de Eduardo. É

capaz inclusive de antever o futuro trágico do amigo, isto é, o abismo de desespero em

que este cairá e no qual se debaterá ao longo de sua sofrida trajetória. Hugo serve como

pressagiador de passagens posteriores do romance. Tanto que, neste momento, afirma

que:

seu desprezo pelos fracos porque se julga forte, sua inteligência incômoda,

sua explicação para tudo, seu senso prático – tudo orgulho. O orgulho de ser

o primeiro – a vida, para você, é um campeonato de natação. Sua

desenvoltura, sua excitação mental, sua fidelidade a um destino certo, tudo

isto faz de você presa certa do demônio – mesmo sua vocação para o

ascetismo, para a vida áspera, espartana [...]. De nós três, o de mais sorte, o

escolhido, nosso amparo, nossa esperança. E de nós três, talvez, o mais

miserável, talvez o mais desgraçado porque condenado à incapacidade de

amar, pelo orgulho, ou à solidão, pela renúncia (2005, 88).

Outro personagem que serve como pressagiador do denso desespero em que

Eduardo irá mergulhar é Toledo, amigo de seu Marciano, que serve ao protagonista de

primeira porta de entrada no universo da literatura. Ele alerta o rapaz quanto ao fato de

este estar deixando passar a oportunidade de finalmente se tornar romancista. Diz-se

“pressagiador” pois é exatamente o que vai acontecer: Eduardo irá fracassar

retumbantemente na carreira de escritor, porque, segundo Toledo, “não soube escolher,

foi escolhido” (2005, 118). A reação do protagonista é de irritação, reflexo imediato de

seu orgulho ferido.

– Ainda está em tempo, Toledo. Eu não sou um vendido.

– E eu sou – é isto o que você quer dizer. Qual, esta linguagem do Mauro

não serve para você, por favor, perceba! Mauro se engrandece assumindo

atitudes assim. Você apenas se compromete.

– Não tenho medo do compromisso.

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Toledo deu uma gargalhada:

– Não, você não tem medo! Tem apenas um horror cego ao compromisso,

e sabe por quê? Pois eu vou lhe dizer: porque para você o importante não

é se comprometer, e sim cumprir o compromisso assumido. Está certo,

mas aquele que quiser salvar sua vida... (2005, 118; grifo do autor).

E de fato ninguém, a não ser Deus, pode e consegue livrar Eduardo Marciano do

desespero. Isto já foi adiantado quando da etapa relativa ao estádio religioso. Ainda assim,

vale manter este detalhe em mente, dada sua importância para a interpretação

interdisciplinar e comparatista que aqui se constrói de O encontro marcado. Afinal, o

motivo principal do desespero de Eduardo é sua renúncia à esfera divina, é a

desvalorização de sua porção atemporal e transcendente, consequência de seu orgulho e

excessivo racionalismo, os quais o levam a acreditar ser possível construir um código de

conduta com as próprias mãos, calcado em sua própria capacidade de discernimento.

Mas vale acrescentar que Eduardo viverá o desespero também por não conseguir

se firmar como escritor nem construir uma vida simples como a de seu pai. E parte disto

se deve ao fato de não ser capaz de seguir à risca o conselho de Toledo, isto é, o de

renunciar a tudo em prol da literatura, fazendo da nostalgia do que não viveu justamente

a fonte de sua produção artística: “Nostalgia daquilo que a gente não é, dos lugares onde

não esteve, das coisas que não chegou a fazer. Se você não tiver isso, se um dia se sentir

satisfeito, pode ter a certeza de que você não é mais escritor” (2005, 117).

O velho Germano, assim como Hugo e Toledo, antecipa o excruciante sofrimento

existencial em que Eduardo irá mergulhar em momentos futuros de sua trajetória. É o que

fica evidente em duas passagens do romance. Em uma visita feita pelo protagonista ao

ex-diplomata, este lhe diz: “Sabe Eduardo? Estou chorando por sua causa: essa tristeza

antecipada diante das fatalidades que a gente não pode mudar...” (2005, 190). Mas é em

um encontro anterior que este presságio adquire contornos mais dramáticos. Nesta

ocasião, Germano, de maneira nervosa e atabalhoada, segura Eduardo pelos ombros e lhe

diz:

– Sabe de uma coisa, meu aleijadinho? Vou lhe dizer, preste atenção: um dia,

faz tempo, li um livro, parece que do Dostoievski [no caso, Os irmãos

Karamázov]. Me lembro de uma cena em que um rapaz vai visitar o místico,

em companhia do irmão mais novo, que também era místico – o rapaz não, o

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rapaz era estroina –, então o padre não dá importância ao irmão mais novo,

mas cai aos pés do rapaz e beija-lhe os sapatos chorando, depois diz: “Faço

isto pelo que você ainda vai sofrer”. Pois bem: estou sentindo que devia fazer

o mesmo com você (2005, 185).

A já tão destacada presunção de Eduardo, de querer construir um manual de

princípios para si, não é o bastante para aplacar a profunda sensação de aniquilamento e

esgotamento sentida em muitos momentos de sua trajetória. É o que fica claro em cenas

como a ida ao Parque com Hugo, quando ainda residia em Belo Horizonte, nos anos finais

de sua adolescência. Na ocasião, os amigos

devassavam as razões da existência, descobriam a natureza íntima das coisas,

tentavam penetrar o mistério do ser.

– Estamos imprensados entre estes dois acontecimentos: o nascimento e a

morte. Temos apenas 60 anos para resolver o problema, talvez menos.

– Não há problemas: só há soluções.

– Só há uma solução: morrer.

– As nossas contradições. Vivemos segundo nossas emoções do momento,

procurando localizar, descobrir uma constante e dizer: isso sou eu.

– Ninguém entende nada de nada (2005, 76; grifo do autor).

No trecho acima, fica claro que Eduardo e Hugo demonstram total descrença na

eternidade, isto é, sua ligação é unicamente com a dimensão passageira e temporal da

vida. Isto explica o sofrimento de ambos se a cena em questão for lida tendo, como pano

de fundo, a concepção de Søren Kierkegaard relativa ao desespero. Quer dizer, apesar de

se dizerem católicos, a fé real é inexistente na vida destes dois personagens. Eduardo

frequentava a missa por hábito imposto pelos pais. Em resposta ao sermão de Monsenhor

Tavares, respondeu sem firmeza que acreditava em Deus. Logo em seguida, responde

para si com maior convicção, mas sem aproveitar a oportunidade para enfim travar com

o Criador uma relação direta, palpável, de graça e gratidão.

Eduardo ora polemiza não apenas com a fé na existência de Deus, mas com a

religião enquanto instituição – vista pelas personagens como “clero

reacionário” –, ora aceita os valores cristãos católicos, como considerar

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sagrado ir à missa todos os domingos, apenas por cultivo dos ideais de

religiosidade, impostos pelos pais, e pelo próprio ambiente provinciano no

qual Eduardo e seus amigos viviam. A formação das principais personagens

é voltada para uma educação tradicional, na qual a voz do conservadorismo

se faz ouvir. Mas, desde cedo, os jovens já revelam suas contestações às

convenções e tradições que lhes eram impostas (Silva: 2010, 35).

Quer dizer, “tanto Eduardo, quanto Hugo e Mauro mostravam-se conscientes da

crise em que viviam [na juventude], todavia eram céticos em relação à possibilidade de

restaurar a plenitude perdida. Buscavam por vários caminhos o religamento entre o

homem e o mundo sobrenatural” (Costa: 2007, 86). Ainda segundo Suzana Barbosa

Costa, “o cerne da atitude romântica manifestava-se neles como uma tentativa de restituir

uma experiência de plenitude e de absoluto, buscavam encontrar respostas” (2007, 86).

Florita Dias da Silva complementa, ao afirmar que “as personagens oscilavam

entre o ritmo da modernidade e a segurança do conservadorismo, assim como a cidade

que ora se deixa envolver pelo novo, ora pela segurança de tradições” (2010, 100). Para

a pesquisadora, aliás, Fernando Sabino desdobrou Eduardo Marciano nas figuras de Hugo

e Mauro, de maneira a “converter cada contradição interior de Eduardo em dois

indivíduos, com o intuito de dramatizar esta contradição e desenvolvê-la” (2010, 97).

Estes dois últimos são, pois, “representantes de facetas de sua própria consciência [de

Eduardo], que aparecem enquanto vozes para mostrar ao herói sua própria

inconclusibilidade e auxiliá-lo no processo de tomada de consciência de si, dos outros e

do mundo” (2010, 97).

Concorda-se em parte com a interpretação de Suzana Barbosa Costa. Quer dizer,

de fato ambos os personagens viviam crises existenciais, cada a um a seu modo. De fato,

ambos eram céticos quanto à restauração de uma plenitude. No entanto, neste momento

específico de suas vidas, ainda não há esta tentativa de religamento com a esfera

atemporal e divina, o que explica o sofrimento dos amigos. Aliás, tal tentativa, até onde

está expresso no romance, só é bem-sucedida no caso de Eduardo, e somente ao final do

romance.

Isto porque até aqui, para o protagonista, Deus é como a lua, o sol, as estrelas,

enfim, elementos grandiosos mas óbvios, que sempre fizeram parte da paisagem. Esta

desconexão com o Criador fica evidente quando, já casado com Antonieta, Eduardo,

muito embriagado, abandona a festa no apartamento em que estavam e comparece a uma

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missa de Ano-novo. O narrador relata que o personagem “assistiu, obstinado, ao resto da

primeira missa do ano. Aquilo era uma missa. E não lhe dizia nada, gestos mecânicos de

um ritual sem sentido” (2005, 165).

Interpreta-se isso como origem e explicação do desespero em que o personagem

já vivia. Afinal, como já dito, para o pensador dinamarquês um dos motivos deste

desequilíbrio ontológico é justamente o não reconhecimento e valorização da porção

eterna do si mesmo, a não relação do indivíduo com sua dimensão atemporal e

transcendente, com o Poder que o criou. A desconexão de Eduardo com a esfera divina

também explica sua reação após o velório do pai, seu Marciano.

O velho Marciano morto, nunca pensara nisto, ele não parecia que um dia iria

morrer. Isso alterava fundamentalmente a sua vida? ou não lhe traria sequer

a mais ligeira modificação no modo de ser e encarar as coisas – sempre fora,

era assim, sempre seria, ele vivendo, a morte do pai já em sua vida

incorporada. Mais uma época ali se encerrava? Acaso não vivia sempre

encerrando épocas e inaugurando outras? De onde vinha, para onde ia? Que

sentido tinham as coisas? Nenhum, nenhum, se dizia, sentindo finalmente

seus olhos se encherem de lágrimas (2005, 171).

Em casa, após o enterro do pai, Eduardo evidencia sua até então distante relação

com Deus. Em seu antigo quarto, na casa em que cresceu em Belo Horizonte, afirma não

contar com mais ninguém, “nem com meus amigos, nem com meu pai, nem com minha

mulher, nem comigo mesmo. Estou sozinho, não há salvação” (2005, 173, grifo nosso).

Sua reação certamente seria diferente se travasse com Deus um diálogo mais próximo e

concreto. Quer dizer, neste caso, aceitaria a intervenção divina, veria a morte como um

fenômeno natural – e não como um evento traumatizante que atesta a gratuidade e

inutilidade da existência humana – e, finalmente, se veria acompanhado ao menos por

Deus e, justamente por isso, a salvo.

Aliás, em se tratando do desespero vivido por Eduardo Marciano, é válido levar

em consideração a latente e didática metáfora entre o trinômio “natação-água-mar” e o

caminho existencial por ele trilhado. O personagem fora um campeão da modalidade,

tendo atingido um recorde nacional, superado muitos anos depois. Disto fica sabendo por

acaso, ao recortar um artigo seu, intitulado “A arte do romance”, publicado em um jornal,

cuja parte de trás trazia a notícia (2005, 210). Eduardo se sentia à vontade quando imerso

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na água. Tinha-a sob controle: dominava as braçadas, vencia a luta contra a correnteza,

contra os adversários, contra a irrefreável passagem do tempo. Este era um ambiente “em

que a vida parecia querer prolongar-se além de si mesma” (2005, 34). Quando na água,

era um vencedor. Já na vida...

Não à toa, é tomado por intensa aflição ao saber do afogamento de Rodrigo, amigo

dos tempos de competição, náufrago após a queda de um avião militar. Isto é, o trágico

acidente adquire um contorno simbólico para o personagem: eis mais um nadador tragado

pelas águas revoltas do oceano, assim como ele fora e estava sendo tragado pelas águas

revoltas do tempo e da existência. Tentando se sentir minimamente de volta ao controle

de si mesmo e de sua trajetória, experimenta mergulhar no mar e logo nota o efeito da

passagem dos anos. É o que informa o narrador, ao dizer que “em breve está respirando

difícil, os braços lhe pesam, o corpo se rebela e o medo o domina, ao sentir a corrente

traiçoeira arrastá-lo. Agora pode compreender por que Rodrigo não se salvou” (2005,

210).

Quer dizer, nem mais nas águas literais Eduardo é um vencedor. Nelas, assim

como nas da vida, fracassa, naufraga. Falha em seu ideal de se firmar como escritor, de

se harmonizar com a esposa, de constituir uma família e ser, enfim, um homem simples,

como o fora seu Marciano, seu pai. Fracassa em estabelecer um sólido código de conduta

e segui-lo à risca. Falha porque não consegue ser quem almejava ser, porque não é capaz

de erigir verdades eternas, absolutas, calcadas na razão, para guiar sua própria trajetória.

Por isso, desespera-se. Desespera-se por não valorizar sua porção espiritual e não

ver um sentido para a própria existência. Desespera-se por não conseguir ser o que

acreditava ter sido escolhido para ser. Não consegue cumprir com o compromisso, com a

missão de se tornar um romancista de renome. Sofre por querer ser um eu diferente de

seu verdadeiro eu. Como bem apontou Florita Dias da Silva, “o herói polifônico do

romance O encontro marcado, além de buscar ‘valores autênticos’, se coloca numa

posição de fronteira, pois, para ele, não há um valor supremo definitivo” (2010, 53).

Não à toa o personagem passa a ter sonhos relativos à natação após ler a notícia

do afogamento de Rodrigo, neles se vendo “empenhado em competições difíceis mas

nadando sem parar, numa água grossa, viscosa como melado, que lhe impedia os

movimentos – ou então a piscina ia se esvaziando à medida que nadava” (2005, 208).

Pertinente notar que o nome do capítulo da segunda parte, de que consta a cena acima

referida, é justamente “O afogado”. Esta relação também é apontada por Neusa Pinsard

Caccese, para quem o protagonista “nada nesta ‘água grossa’ que é a vida, que lhe nega

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uma solução satisfatória aos seus anseios de felicidade e realização. A imagem pode

variar – pode ser simbolizada por um poço negro e fundo, que o atraía para suas

profundezas – o significado é um só” (1966, 152; grifo nosso).

Pela primeira vez pensou na morte como solução. Solução de que, se não

havia problema? Um dia ia abrir a boca na sua roda costumeira no bar da

cidade, para dizer uma coisa, viu que não tinha nada a dizer, não chegou a

abrir a boca. Vasculhou-se interiormente, não encontrou nada; nem uma

ideia, um pensamento aproveitável. Estava vazio, literalmente vazio, nada

interessava, nada tinha importância.

– Eu acabei completamente! – descobriu, abismado (2005, 214).

É por não reconhecer e valorizar sua porção eterna e por querer ser um eu que não

é que Eduardo é vítima do desespero. A ignorância da origem do problema – isto é, a não

valorização de sua dimensão atemporal e divina – só agrava seu sofrimento. Este detalhe

aproxima o sofrimento existencial, vivido pelo personagem, daquele definido por Søren

Kierkegaard. Quer dizer, Eduardo reconhece sua relação distante com Deus, mas não

entende que a origem de seu desespero também reside justamente aí.

– Mas escuta aqui, Eduardo Marciano, você acredita mesmo em Deus? –

ele se interrogava ao espelho, fazendo caretas. Ou quem sabe acreditava

apenas em certos preceitos, certas regras de conduta que não chegava

sequer a praticar, certos ensinamentos recolhidos e conservados como as

roupas de alguém que já morreu?

Basta de interrogações. Sim, acreditava em Deus, mas um Deus longínquo,

esquecido, distraído, voltado para outras preocupações, que não o seu

mesquinho problema de aprender a viver. Ou de não ter problemas. Não

pensar mais nisso, pois (2005, 217).

Em se tratando do desespero vivido por Eduardo Marciano, alguns personagens

servem não só como pressagiadores, como já se viu, mas também como esclarecedores.

Quer dizer, ajudam a explicar ao protagonista – e, indiretamente, também ao(à) leitor(a)

– o porquê de seu sofrimento. É o caso do velho Germano. Em um dos encontros entre

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ambos, este repreende a falsa convicção de Eduardo de ser capaz de controlar o próprio

destino.

– Não tenho nada a lhe dizer. Você jamais saberá nada, você não é capaz de

saber coisa nenhuma desta vida.

– Por quê?

– Porque você se julga dono de seu destino, e ninguém é dono de coisa

nenhuma neste mundo. Eu por acaso sou dono do meu? Não faço coisas que

por si só já são destinos? Ninguém conhece ninguém, nem a si mesmo, a cada

passo nos surpreendemos, nos desmentimos, negamos o que um minuto antes

nos pareceu a última das verdades. Olhe, só há uma verdade essencial, e essa

a gente gasta a vida toda procurando, quando ela está montada no nosso

ombro como uma cruz. Só um cego é que não vê (2005, 228).

Em relação ao desespero, a interpretação que aqui se constrói é a de que Eduardo

Marciano o sofre por não reconhecer e valorizar a porção eterna do próprio eu, por se

manter distante em relação a Deus. É o desespero de “querer ser um eu que não se é”,

dispensando uma ligação concreta com o Poder que lhe deu origem e se mostrando

incapaz de cumprir com o compromisso de firmar os pés na história da literatura como

grande romancista, além de constituir uma vida simples e retilínea como a de seu pai.

Como se viu quando da análise do estádio religioso, o protagonista se livra do

vórtice negro quando finalmente adentra o terreno da fé. Isto se dá após o aborto de Neusa,

vizinha que engravida de Eduardo pouco tempo depois da concretização do divórcio deste

com Antonieta. O médico mente ao dizer que o embrião havia se descolado

espontaneamente da parede do útero, o que é interpretado pelo personagem como uma

intervenção misericordiosa de Deus em sua vida e, portanto, prova de Seu amor a ele. É

esta leitura interpretativa que leva à conclusão de que, em se tratando do desespero, há

mais paralelos do que distanciamentos entre O encontro marcado e Søren Kierkegaard.

Como se deu quando da análise dos três estádios existenciais de Eduardo e da

angústia no romance, a interpretação que se constrói nesta etapa é ancorada em

pressupostos teóricos definidos. Entre eles estão os de Wolfgang Iser, para quem o texto

literário tem dois aspectos, isto é, o verbal e o afetivo. O primeiro consiste na dimensão

mais objetiva e concreta, ou seja, nas palavras propriamente dispostas e expressas nas

páginas. Já o segundo corresponde à suplementação das lacunas de sentido presentes no

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texto. Quer dizer, “any description of the interaction between the two [texto e leitor] must

therefore incorporate both the structure of effects (the text) and that of response (the

reader)” (1978, 21).

Ou seja, para Iser o sentido é resultado também da ação do leitor e não somente

uma propriedade objetiva do texto em si, a ser dele extraída em estado puro. Daí sua

noção de que o significado deve ser concebido não como “a definable entity but, if

anything, a dynamic happening” (1978, 22). Janine Resende Rocha corrobora este

apontamento ao afirmar que “Iser aposta, assim, na autonomia do leitor, e não na

submissão dele a critérios preestabelecidos, cuja insuficiência perante o texto literário

orientou as questões elaboradas pela Estética do Efeito no contexto de seu surgimento

enquanto proposta teórica” (2017, 75). Em suma, “a leitura, bem como a interpretação e

a tradução, resulta da mediação entre o texto e o horizonte do leitor” (2017, 77).

A noção de “dinâmica em curso” é, pois, fundamental para a compreensão do

pensamento do teórico alemão. É também nela que se ancora a presente análise

interdisciplinar e comparatista de O encontro marcado. Para Iser, o texto literário está

permeado por lacunas, isto é, espaços vazios de sentido a serem suplementados pelo(a)

leitor(a). São justamente estes “vãos” que “enable the text to ‘communicate’ with the

reader, in the sense that they induce him [ou ela] to participate both in the production and

the comprehension of the work’s intention” (1978, 24).

Quer dizer, uma interpretação de um texto nunca o esgota, não perfaz sua

totalidade, já que cada leitor(a) tem seu próprio cabedal de referências e vivências. Isto

sem contar a evidente influência do contexto histórico em que este indivíduo está inserido,

o que também entra como elemento da equação que resulta na construção do sentido de

um texto literário. Em outras palavras, “uma vez que o texto se estrutura por vazios que

ele mesmo não deverá preencher, será o leitor quem se aventurará a realizar essa tarefa.

Ele se converte deste modo em parte integrante de um sistema do texto” (Diniz: 2014, 20;

grifo do autor).

Generally, the role prescribed by the text will be the stronger, but the reader’s

own disposition will never disappear totally; it will tend instead to form the

background to and a frame of reference for the act of grasping and

comprehending. If it were to disappear totally, we should simply forget all the

experiences that we are constantly bringing into play as we read – experiences

which are responsible for the many different ways in which people fulfill the

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reader’s role set out by the text. And even though we may lose awareness of

these experiences while we read, we are still guided by them unconsciously,

and by the end of our reading we are liable consciously to want to incorporate

the new experience into our own store of knowledge (Iser: 1978, 37).

Outra noção de Wolfgang Iser em que a presente análise se ancora é a de

“ideação”. Ela consiste no fato de que a realidade do texto literário, inexistente, só “vem

à tona” por ação do(a) leitor(a), isto é, mediante seu ato de conceber, de absorver ideias,

referências e vivências e confrontá-las com as preexistentes em sua mente. Em outras

palavras, “the structure of the text sets off a sequence of mental images which lead to the

text translating itself into the reader’s consciousness” (1978, 38).

Isto é, “o sentido enquanto imagem, ao contrário, jamais poderá existir na ausência

do sujeito. Ele é o produto da interação entre a complexidade dos signos textuais e os atos

de imaginação do leitor” (Diniz: 2014, 18-9; grifos do autor). Quer dizer, “os atos da

imaginação que o leitor realiza geram nele uma situação em relação ao texto, que não é

mais passível da mesma divisão sujeito-objeto da atividade discursiva. Assim, o sentido

imagético se associa ao próprio efeito do texto sobre o leitor” (2014, 18-9; grifo do autor).

Portanto, é ao longo deste processo dinâmico que todo o cabedal de vivências

do(a) leitor(a) “acts as a referential background against which the unfamiliar can be

conceived and processed” (Iser: 1978, 38). Daí a inevitável participação deste segundo

polo da dinâmica na própria construção do sentido de um texto literário. Daí também a

própria unicidade de cada interpretação que se faz de uma mesma peça ficcional. Não à

toa, Wolfgang Iser define a obra literária como um “array of sign impulses (signifiers)

which are received by the reader. As he reads, there is a constant ‘feedback’ of

‘information’ already received, so that he himself is bound to insert his own ideas into the

process of communication” (1978, 66-7).

Luiz Costa Lima corrobora os pressupostos de Wolfgang Iser e apresenta a noção

de “oscilação” entre texto e leitor(a), o que esclarece ainda mais os pressupostos advindos

da Estética da Recepção (ou Estética do Efeito), da qual Iser é um dos principais

representantes. Quer dizer, na interação entre objeto e sujeito, este “se distancia

interessadamente de si, aproximando-se do objeto, e se afasta interessadamente do objeto,

aproximando-se de si. Distancia-se de si, de sua cotidianeidade, para estar no outro, mas

não habita o outro, como na experiência mística, pois o vê a partir de si” (Lima: 1979,

19; grifo do autor). Janine Resende Rocha reforça a noção de “oscilação”, ao afirmar que

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“o ponto de vista do leitor oscila entre a perspectiva da narrativa circunscrita pela ótica

do narrador, dos personagens, do enredo e do objeto ficcional construído pelo próprio

leitor em sua leitura” (2017, 32).

Luiz Costa Lima também corrobora a ideia de que o texto literário está permeado

por “vãos”, isto é, lacunas de sentido a serem suplementadas pela projeção que o leitor

faz de si mesmo e de seu cabedal de referências e vivências sobre o disposto nas páginas.

Segundo Costa,

a interpretação, portanto, cobre os vazios contidos no espaço que se forma

entre a afirmação de um e a réplica do outro, entre pergunta e resposta.

Passemos à relação texto-leitor. Embora nesta haja a diferença acentuada de

o leitor não conhecer a reação do “parceiro”, há, no entanto, um dado comum:

também os textos – e não só os ficcionais – tampouco são figuras plenas, mas,

ao contrário, enunciados com vazios, que exigem do leitor o seu

preenchimento. Este se realiza mediante a projeção do leitor. A comunicação

entre o texto e o leitor fracassará quando tais projeções se impuserem

independentes do texto, fomentadas que serão pela própria fantasia ou pelas

expectativas estereotipadas do leitor. Ao invés, a comunicação do êxito

dependerá de o texto forçar o leitor à mudança de suas “representações

projetivas” habituais (1979, 23).

Quer dizer, o(a) leitor(a) deve se portar diante do texto ficcional como um

“estrangeiro”, segundo Luiz Costa Lima, “que a todo instante se pergunta se a formação

de sentido que está fazendo é adequada à leitura que está cumprindo” (1979, 24). Esta é

a condição fundamental para que haja uma interação positiva entre os dois polos que

compõem a dinâmica. Há que se levar em conta o fato de que a obra literária contém em

si certo grau de indeterminação, conceito-chave para a compreensão dos enunciados da

Estética da Recepção. Justamente devido a isto, segundo Luiz Costa Lima, “o texto

ficcional possibilita uma multiplicidade de comunicações” (1979, 24).

Portanto, a análise interdisciplinar e comparatista de O encontro marcado ancora-

se em pressupostos teóricos que elevam o(a) leitor(a) à condição de efetivo participante

da dinâmica de construção de sentido. Quer dizer, o texto literário não fala por si só,

independentemente de vir a ser lido ou não. O significado de uma composição literária é

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resultado da interação entre esta e quem a lê. Diogo Corrêa Diniz afirma que o sentido é

“como um evento a ser experimentado pelo leitor em relação com o texto” (2014, 16).

Em sua dissertação de mestrado Do vazio ao gozo: intersecções entre o efeito

estético e o prazer do leitor, Diniz afirma que “a visão da obra literária como destituída

de um sentido a priori, isto é, que preexista à relação com aquele que a lê, rompe

nitidamente com a compreensão tradicional de texto literário, pois eleva o leitor a

elemento ativo da criação deste sentido” (2014, 16, grifo do autor). Ainda segundo o

pesquisador, a cada leitor(a) é facultado “participar do jogo a seu modo e, a partir da

relativa imprevisibilidade dos lances de que compõem o jogo, chegar ao seu próprio

sentido. Apesar de possivelmente diferente daquele a que chegou outro leitor, cada

sentido poderá ser igualmente verdadeiro” (2014, 16-7).

O ato de interpretar consiste em uma relação bilateral entre o texto literário e o(a)

leitor(a). Janine Resende Rocha afirma que “mesmo que caiba ao leitor preencher lacunas

e propor conexões entre os segmentos textuais, a mobilidade desta atuação não equivale

a uma deriva diante do texto, pois o expresso controla a operação que constrói o sentido

do não-expresso” (2017, 28). Ou seja, para a pesquisadora, “é preciso esclarecer que o

destaque conferido ao leitor no processo de construção do sentido não minimiza o

trabalho autoral de composição” (2017, 83). Diego Corrêa Diniz também reitera a

importância do polo originário deste processo dinâmico em que consiste a leitura e a

interpretação, ou seja, o texto em si. Justamente por isso, afirma que

o leitor não pode assumir qualquer ponto de vista, pois seu direcionamento

depende da perspectividade interna do texto. O leitor implícito, estando

enraizado nas perspectivas textuais, só pode ler aquilo que por elas é indicado.

Ele cumpre seu papel como estrutura textual quando ocupa seu lugar no

sistema do texto e se desloca pelos pontos de vista esquematizados pelo polo

artístico: só dessa maneira ele é capaz de apreender e relacionar as diferentes

perspectivas trazidas pelo discurso ficcional em um ponto de encontro. Como

se nota, este não se dá no próprio texto, mas sim na imaginação do leitor. Ao

ativar atos de imaginação que elaborem a diversidade das representações e as

reúnam num ponto de encontro – que se torna o horizonte do sentido do texto

–, o leitor desempenha sua função como ato estruturado. Estrutura textual e

ato estruturado estão, pois, numa relação dialética entre impulso e resposta,

convergindo na figura do leitor implícito (2014, 22; grifos do autor).

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Todos os pressupostos teóricos até aqui levantados – incluindo, obviamente, os de

Hans-Georg Gadamer – serviram não só de balizas, mas também de carimbos

legitimadores da interpretação comparatista e interdisciplinar de O encontro marcado.

Isto porque esta proposta de leitura do romance, justamente por ancorar-se nestes

enunciados, procurou a todo momento evitar excessos e arbitrariedades. Nasceu de uma

imersão cuidadosa tanto na obra em si quanto nas densas e complexas ideias concebidas

por Søren Kierkegaard. Por isso, argumenta-se aqui que há paralelos entre o desespero

vivido por Eduardo Marciano e aquele concebido pelo pensador dinamarquês.

Afinal, o personagem principal do romance nega sua porção atemporal e eterna,

isto é, vive distante de Deus, tencionando construir um código de conduta por si só, com

base em seu próprio juízo e discernimento. Há que se levar em conta também sua tentativa

de ser um eu que originalmente não é, ou seja, um romancista de renome, pai de família,

que leva uma vida retilínea e simples como a de seu Marciano. O que se viu foi que até a

entrada definitiva no estádio religioso – após o que entendeu como uma intervenção

miraculosa de Deus em sua vida –, foi acometido de um intenso sofrimento existencial

derivado do fato de acreditar que a vida se resumia à esfera terrena. Seu desespero

também foi fruto da crença de ser capaz, por meio do uso da razão, de resolver o problema

da ausência de sentido de sua própria existência.

Segundo Søren Kierkegaard, assim como se dá com a angústia, o desespero é o

caminho para a fé. Foi justamente por atravessá-lo que Eduardo Marciano foi

“presenteado” pela intervenção de Deus em sua vida. Ainda que até seja plausível apontar

que tal milagre foi falso, fruto de uma mentira contada pelo médico que realizara o aborto

em Neusa; e, finalmente, ainda que se possa argumentar que o verdadeiro milagre foi a

visita surpresa do amigo Vitor ao seu apartamento, o que evitou que Eduardo tomasse o

tubo de luminal esquecido por Antonieta no apartamento que dividiram, interessa aqui

constatar a reação do protagonista à notícia dada pelo médico.

Quer dizer, mesmo tendo séria e concretamente cogitado o suicídio, quase

chegando às vias de fato, Eduardo resistiu ao desespero até o mergulho em definitivo na

fé, em decorrência do que entendeu como uma intervenção de Deus em sua vida. Daí sua

mudança ao convento do amigo frei Domingos, sem se preocupar com o que lhe

aconteceria a partir de então. Portanto, o encontro marcado não foi com Mauro e Eugênio

em frente ao ginásio em que estudaram quinze anos após a formatura, apesar de Eduardo

haver de fato comparecido ao local na data estipulada. O encontro marcado foi com Deus,

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com a esfera atemporal e eterna que deu origem ao seu espírito, e à qual o protagonista,

enfim deixando de lado seu orgulho e excessivo racionalismo, finalmente se religou.

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5

Conclusão

Esta dissertação propôs uma leitura pendular de O encontro marcado, de Fernando

Sabino. Travou-se um diálogo entre o romance e parte das densas e complexas ideias de

Søren Aabye Kierkegaard (1813-1855), filósofo, teólogo e escritor dinamarquês tido

como precursor do que veio a ser chamado de Existencialismo.

Antes do mergulho na trajetória em si do protagonista Eduardo Marciano, foi dado

destaque aos aspectos estruturais e linguísticos da obra. Como se procurou demonstrar, a

escrita de Fernando Sabino é marcada pela concisão, clareza e simplicidade. A principal

preocupação do autor é se fazer entender por quem o lê. Por isso, como se viu, não recorre

a floreios e/ou neologismos. Para o escritor, a palavra é “um meio de transmissão da ideia

ou do sentimento, e não um fim em si. Portanto, deve ser transparente, cristalina. Na hora

de escolher entre duas expressões, opto sempre pela mais simples” (Sabino: 1988, 47).

A presença de traços da crônica e da escrita jornalística no romance também foram

destacados. É evidente a escolha de Fernando Sabino por um estilo enxuto, seco, direto,

quase que a todo momento seguindo a ordem “sujeito, verbo e complemento”. Também

ficou claro o tom de oralidade e coloquialidade em certas passagens da obra, bem como

a presença de outros elementos comuns à crônica enquanto gênero literário, como o

humor, o cotidiano, o pitoresco e a singeleza.

Esta proximidade entre os dois gêneros foi sustentada também mediante acesso a

algumas das pesquisas consultadas para a elaboração desta dissertação. Foi o caso do

trabalho de Suzana Barbosa Costa, por exemplo, para quem em O encontro marcado “a

crônica organiza a narrativa e dá conta do veloz e do espontâneo” (2007, 21). A

pesquisadora conclui que há no romance “muitas cenas de bastidores de jornais, episódios

pitorescos e comportamentos delinquentes que geram a crônica” (2007, 21). Como se viu,

isto se deveu em parte ao fato de Fernando Sabino haver trabalhado em jornais e revistas

para os quais produziu reportagens, sobretudo crônicas. Entre estes veículos estão

importantes periódicos sediados em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, como O Diário,

secretariado pelo amigo João Etienne Filho; Folha de Minas; Correio da Manhã; Diário

de Notícias; Diário Carioca; Jornal do Brasil; e, finalmente, as revistas Manchete e

Senhor.

Após cumprida esta etapa, o foco incidiu sobre a função dos diálogos no romance.

Como se procurou argumentar, em O encontro marcado tocam o andamento da narrativa.

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Quer dizer, por meio das falas – e do narrador, obviamente –, Fernando Sabino faz com

que os eventos se sucedam uns aos outros. Bastam poucas linhas para que o(a) leitor(a)

entenda que houve transição entre cenas, isto é, que a narrativa caminhou para frente. É

o que se viu em algumas passagens da obra. Não à toa, em sua brilhante dissertação de

mestrado Dialogismo e polifonia em O encontro marcado, de Fernando Sabino, Florita

Dias da Silva afirma que é “no diálogo que reside a força do romance [...], sendo o

principal suporte em que se assenta a narrativa” (2010, 26).

A seguir, a atenção foi destinada à figura do narrador. Obviamente, este exerce a

função de levar a narrativa adiante, com o auxílio dos diálogos, e de relatar o fluxo de

consciência do protagonista. No entanto, sua natureza é enigmática e volátil o bastante

para ter merecido uma etapa exclusiva para si. Notou-se ora o uso da terceira pessoa, em

discurso indireto livre, ora a presença de verbos na primeira pessoa, denotando uma fusão

entre ele e o personagem principal. Isto é, em certos momentos do romance, o narrador

como que cede espaço ao próprio Eduardo Marciano. Como bem apontou Neusa Pinsard

Caccese, “graças a uma técnica originalíssima do Autor, narrador e protagonista se

confundem: fatos e conceitos apresentados por uma suposta terceira pessoa e

pensamentos e conflitos de Eduardo se identificam, se misturam num todo uniforme e de

efeito sugestivo” (1966, 153).

Como se viu, é de fato tênue a fronteira entre ambos. O narrador é como um alter

ego do protagonista, isto é, “alguém muito próximo de Eduardo alçado a narrador de sua

história, testemunhando as aventuras da vida e as dúvidas do espírito” (Betella: 2008,

353-4). Foram citados momentos em que a terceira pessoa chega a se transformar em

primeira, como se Eduardo assumisse o papel de narrador e/ou vice-versa. É o que se

notou pela própria transição na conjugação dos verbos e dos pronomes oblíquos em meio

ao discurso indireto livre, sem abertura de travessão para indicar a fala do protagonista,

como na passagem: “Não se pode fazer das dúvidas de outrora o pão nosso de cada dia:

não posso responsabilizar ninguém pelo destino a que me dei”, por exemplo (2005, 144;

grifos nossos). O próprio Fernando Sabino corrobora este apontamento, ao afirmar que

“O encontro marcado não é na primeira pessoa mas na falsa primeira pessoa, porque é

escrito na terceira pessoa mas todo o enfoque é feito através do personagem principal.

Apresento só o que o personagem vê, o que está fora do alcance dele não conto” (Sabino:

1985, 18).

Ainda sobre o narrador de O encontro marcado, vale dizer que, além de levar a

narrativa adiante e descrever o fluxo de consciência do protagonista, ele é o agente que

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realiza os cortes temporais tão frequentes no romance, como foi devidamente destacado.

Segundo Maria da Glória dos Reis, o fato de a obra seguir uma trajetória temporalmente

linear “não impede que, em alguns momentos, o autor volte ao passado, utilizando-se da

técnica de fluxo de consciência, havendo, também, pequenas antecipações de situações

que só ocorreriam alguns anos mais tarde” (2012, 72).

O último aspecto estrutural e estilístico analisado foi justamente o viés

autobiográfico da obra. O tema não poderia ter sido deixado de lado, visto que muito(a)s

pesquisadore(a)s o abordaram, inclusive o próprio Fernando Sabino. Alguns consideram

O encontro marcado como um romance autobiográfico. Outros, de formação, “gênero em

que é exposto de forma pormenorizada o processo de desenvolvimento físico, moral,

psicológico, social e político do personagem Eduardo Marciano, desde a infância,

passando pela adolescência, até um estágio de maior maturidade” (Reis: 2012, 31).

Há os que o definem, ainda, como retrato de uma geração específica, da qual o

autor obviamente fez parte. Trata-se daquela que entrou na fase adulta na década de 1940

e “ensaiou seus primeiros passos sob a inexorável influência de um clima de eufórica e

desafiadora renovação da conjuntura do pós-Segunda Guerra” (Delgado: 2007, 41).

Suzana Barbosa Costa complementa ao atribuir à obra o caráter de um “relato

memorialista que traz a marca de um testemunho individual” (2017, 67). Arnaldo Bloch

se alinha ao afirmar que o romance tem um “caráter universal, centrado no drama de um

jovem à procura de um sentido para a vida” (2000, 90).

De fato, O encontro marcado levanta o questionamento quanto aos pontos de

proximidade e distanciamento entre a vida de Fernando Sabino e a trajetória de Eduardo

Marciano. O tema em questão foi oportunamente expandido, visando à constatação

justamente dos tais pontos de proximidade e distanciamento. Já de antemão se pode dizer

que ambos podem ser fundidos na figura de “um jovem aparentemente excêntrico demais

para a idade e que, mais tarde, se envolve em uma busca desesperada para dar sentido à

vida” (Santos: 2016, 19). Isto porque, segundo o próprio autor, o romance foi escrito

“baseado na minha experiência pessoal até os 30 anos [...]. Mas de qualquer maneira,

globalmente, no seu todo, O encontro marcado é a minha vida: é a súmula da minha

experiência vital até aquele momento” (Sabino: 1985, 12).

O objeto da presente pesquisa foi justamente a trajetória existencial de Eduardo

Marciano. Desenvolveu-se a hipótese fundacional de que é possível construir uma análise

interdisciplinar e comparatista do romance O encontro marcado, tendo como segundo

polo parte das ideias de Søren Aabye Kierkegaard (1813-1855). Fernando Sabino era

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conhecedor da obra do pensador dinamarquês a ponto de reconhecer, em Kierkegaard,

“um estilo literário admirável que sempre me fascinou” (2005, 294). O autor brasileiro

afirmou que lia “em português, francês ou inglês com semelhante deslumbramento toda

obra sua que me caísse nas mãos” (2005, 294).

A referida hipótese se desdobrou em três. A primeira delas foi relativa aos estádios

existenciais. Como argumentado em momento oportuno, à sua maneira Eduardo

atravessou as fases estética, ética e religiosa, três dos principais conceitos da vasta

produção filosófica do pensador dinamarquês. A segunda foi relativa à angústia do

personagem. A interpretação que se propôs foi a de que, aqui, houve mais distanciamentos

do que paralelos, já que Eduardo a vivenciou de modo distinto daquele definido por Søren

Kierkegaard. A terceira e última foi a de que ambos voltam a se espelhar em se tratando

do desespero sofrido pelo protagonista.

O estádio estético é caracterizado pelo signo do prazer. Søren Kierkegaard

simboliza esta fase por meio da figura do sedutor. O esteta é o indivíduo que transita

somente pela dimensão da sensorialidade, do imediato, do instante fugaz, da ávida e

egoística busca por sensações, tanto físicas quanto intelectuais. O hedonismo é, pois, a

marca deste estádio, sendo seu lema simplesmente “hay que gozar de la vida”

(Kierkegaard: 1955, 37). Este indivíduo se recusa a escolher um rumo para sua própria

vida, isto é, a assumir um compromisso consigo mesmo. Justamente por não escolher, “o

esteta-sedutor deixa-se levar ao sabor da corrente e das mais diversas fantasias; a

indiferença é a norma de suas experiências. Não é um imoral propriamente dito; sua

indiferença coloca-o em um confortável amoralismo” (Le Blanc: 2003, 61-2; grifo do

autor). Em suma, como se procurou demonstrar, é possível sim afirmar que Eduardo

Marciano – juntamente com seus amigos mais próximos, Mauro e Hugo – vivenciou tal

estádio em seus anos de juventude.

É mediante o casamento com Antonieta – e consequentes mudança para o Rio de

Janeiro e conquista de um emprego na prefeitura da então capital federal – que Eduardo

adentrou o segundo estádio, isto é, o ético. O indivíduo característico desta etapa da

existência “submete-se a uma forma, conforma-se ao universal; renuncia ao instante,

renuncia a ser excepcional” (Le Blanc: 2003, 61-2). Quer dizer, prefere “edificar sua

personalidade sobre bases sólidas, manter com sua interioridade uma relação que nada

teria de arbitrária, ou seja, uma relação cuja legitimidade seria garantida por regras”

(2003, 62). Não à toa, o que caracteriza o sujeito imerso neste segundo estádio é o fato de

“comprometer-se concretamente com a existência” (2003, 62; grifo do autor).

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O indivíduo passa a se ver como o responsável por sua própria vida. Por isso,

ancora-se em valores e princípios para afirmar sua personalidade e erigir uma postura

própria. Desta forma, exerce sua liberdade de maneira ajuizada e sensata. Personalidade

e princípios morais devem, pois, se espelhar mútua e integralmente. O homem ético opta

por si no sentido idôneo e não mais no hedonista, como o fazia quando ainda imerso no

estádio estético. Segundo Søren Kierkegaard, “a ética é antes de tudo a do cidadão,

assegurando a inserção do indivíduo na sociedade” (Farago: 2006, 129).

No entanto, ainda que adentre finalmente a esfera do geral e norteie sua conduta

sob o signo do dever, o indivíduo do estádio ético, assim como o do estético, ainda está

vulnerável à angústia e ao desespero como concebidos pelo pensador dinamarquês. É o

que ocorre com Eduardo Marciano, como se procurou demonstrar. Casamento, trabalho,

exercício da cidadania e carreira profissional não são o bastante para aquietar os

terremotos anímicos sentidos pelo protagonista, sedento que está de verdades eternas que

signifiquem sua sofrida existência.

Para Søren Kierkegaard, a solução está na fé, isto é, no mergulho no estádio

religioso. Esta terceira fase inicia-se a partir do momento em que o indivíduo se arrepende

de haver ousado significar sua própria vida por meio da razão. O salto ao estádio religioso

se dá em um instante, “cuando uno mismo se considera como aquel cuyo recuerdo no será

borrado por el tiempo” (Kierkegaard: 1955, 69-70). Dá-se após uma revelação divina, não

se tratando de uma mudança consciente e planejada. Isto porque “é a revelação que

capacita o indivíduo a superar os obstáculos que o impedem de aceitar aquilo que Deus

lhe oferece, todavia, sem ofuscar a diferença radical que há entre Deus e o homem” (Giles:

1975, 28-9). Foi o caso de Eduardo Marciano. O protagonista adentrou o estádio religioso

mediante o que interpretou como um milagre de Deus, isto é, o falso descolamento natural

do embrião que gerara com a vizinha Neusa. Para Eduardo, esta intervenção divina o

livrou de cometer o aborto, crime mais abjeto segundo seu código de princípios.

Como se viu, segundo Søren Kierkegaard até o definitivo mergulho na fé o

indivíduo está sujeito tanto à angústia quanto ao desespero. Este primeiro pathos – tão

caro ao pensador dinamarquês e consideráveis vezes repetido em O encontro marcado –

consiste em uma espécie de sufocamento, “como se a passagem do ar se tornasse

impossível e a conexão com o cosmos diminuísse, trazendo uma sensação de desolamento

e aniquilação” (Oliviéri: 2007, 35). Mantivemos sempre em mente o pressuposto de que,

para o filósofo dinamarquês, o ser humano consiste em “uma síntese de corpo e alma

instaurada pelo espírito e de tempo e eternidade instaurada pelo instante. Não são duas

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sínteses, portanto, mas apenas uma vista de perspectivas diferentes” (Silva: 2008, 15). A

relação do indivíduo com esta potência, a relação do espírito consigo mesmo e com sua

condição é justamente a angústia, como procuramos demonstrar.

Em O conceito de angústia (1968), o pensador dinamarquês lançou mão da

narrativa bíblica de Adão e Eva e sua expulsão do Éden para representar e expor seu

entendimento relativo ao tema. Kierkegaard empreende uma densa reflexão acerca do

pecado original. É ao tomar consciência de sua capacidade de escolher, do fato de poder

obedecer ou desobedecer a Deus, que Adão é acometido pela angústia. Portanto, o

pensador dinamarquês entende este pathos como um medo sem objeto, exclusivo do ser

humano, que o acomete quando se torna consciente de seu poder de escolha e de

autodeterminação. Em outras palavras, a existência não vem com um manual de instrução.

A angústia é derivada justamente da ausência de certezas e garantias quanto ao sucesso

ou insucesso do caminho pelo qual se irá optar.

A interpretação proposta foi a de que Eduardo Marciano não vivenciou a angústia

como concebida pelo pensador dinamarquês. O personagem não se mostrou indeciso ou

inseguro quanto ao caminho existencial a seguir. Seu projeto de vida fora definido muito

cedo: casar, constituir família, dedicar-se à literatura, tornar-se um grande romancista e

viver de maneira harmoniosa e simples como seu pai. Sua angústia é de outra natureza,

como procuramos demonstrar. É uma sensação de sufocamento advinda de sua

incapacidade de significar a própria existência e realizar o projeto de vida que havia

traçado para si. Tanto é que o romance equipara angústia e desespero na passagem: “A

evasão da realidade, o vórtice negro em que se sentira cair ali na janela, como num poço,

é que era a angústia, o desespero, a negação de si mesmo – o não-ser, o vazio, o nada”

(2005, 177).

Tema também caro a Søren Kierkegaard e, como se viu, consideráveis vezes

repetido em O encontro marcado, o desespero deve ser entendido como um pathos

distinto da angústia. Segundo o pensador dinamarquês, é possível desesperar-se de si ou

de algo, de maneira consciente ou inconsciente. O indivíduo pode vir a sofrer por querer

ser si mesmo a qualquer preço, ou por querer ser um eu que não é realmente. A não relação

com Deus é um agravante para Kierkegaard. A pesquisa propôs que Eduardo Marciano

foi acometido por este sufocante afeto justamente por querer ser alguém que não é –

escritor renomado, pai de família e cidadão de conduta íntegra – e por travar uma relação

distante e automática com Deus, preferindo construir um código de conduta baseado em

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seu próprio juízo e discernimento e não pautado por verdades eternas e absolutas advindas

da esfera divina.

Como se viu, o protagonista é um indivíduo de inteligência precoce a ponto de ter

aprendido a ler e escrever praticamente sozinho. O mergulho na literatura deu-se já na

infância, em Belo Horizonte, e foi aprofundado com o passar dos anos. Ao se aproximar

do fim da adolescência e do início da fase adulta, Eduardo se decidiu em definitivo pela

carreira de romancista. Como relata o narrador, “um livro de contos – os outros

publicavam livros, por que ele próprio não podia publicar? Tinha dois contos premiados

em concursos – se foram premiados, deviam ser bons” (2005, 43). O jovem passou a se

considerar um “escolhido”, alguém cuja missão na vida seria alçar a si mesmo ao rol dos

grandes nomes da literatura, bem como constituir família e seguir uma vida simples,

harmoniosa e retilínea, como a de seu pai.

No entanto, não contava com o fato de que alguns traços de sua própria

personalidade viriam a se revelar obstáculos à concretização deste projeto. Entre eles,

destacam-se a pressa e ganância de viver, bem como o orgulho, espírito competitivo e

excessivo racionalismo. O jovem não foi capaz de aguardar a passagem dos anos, isto é,

não quis esperar a vinda gradativa das experiências e vivências que poderiam lhe servir

de fonte para sua produção literária. Cumpriu etapas de vida de maneira apressada.

Exemplos são as decisões relativas à vocação profissional e ao casamento e consequente

mudança para o Rio de Janeiro. Eduardo tinha dificuldade de se convencer de que “era

preciso ir devagar – saber envelhecer. O fruto que apanhava ainda verde, deixava

apodrecer na mão” (2005, 143).

Além da mencionada pressa em cumprir etapas existenciais, o protagonista de O

encontro marcado foi portador de um orgulho exacerbado, facilmente notado por pessoas

próximas. Quando criança, subitamente decidiu estudar até se tornar o primeiro aluno da

sala. Logo que alcançou o objetivo, passou a não mais ver razão em todo o esforço

empreendido: “Não sabia o que queria, e vida afora se faria cada vez mais infeliz, agindo

como se soubesse” (2005, 19). Quando adolescente, passou a treinar natação por ser uma

modalidade individual, em que não dependia de ninguém além de si mesmo. Como relata

o narrador, “era uma espécie de êxtase: fazer de simples prova de natação, a que ninguém

o obrigava, uma disputa em que parecia empenhar o destino, fazer da arrancada final uma

luta contra o cansaço, em que a vida parecia querer prolongar-se além de si mesma”

(2005, 34). O que o movia era a inabalável vontade de ser o primeiro, o melhor, de

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desbancar adversários, de usufruir da glória advinda da vitória, de bater recordes, enfim,

de superar a si mesmo e de sobrepor-se à irrefreável marcha do tempo.

O amigo Hugo foi um dos que alertaram o protagonista quanto ao perigo destes

traços de sua personalidade: “o orgulho de ser o primeiro – a vida, para você, é um

campeonato de natação. Sua desenvoltura, sua excitação mental, sua fidelidade a um

destino certo, tudo isto faz de você presa certa do demônio” (2005, 88). A “explicação

para tudo” e o senso prático de Eduardo, também apontados por Hugo, são reflexos não

só de seu orgulho mas também de seu excessivo racionalismo. Estes são os combustíveis

que o fazem acreditar ser capaz de constituir um código de conduta para si, baseado em

seu próprio juízo e discernimento. São também a origem e explicação de seu intenso

sofrimento existencial.

Afinal, Eduardo falhou retumbantemente no propósito de se tornar escritor, de

constituir uma família, de significar a própria existência e de viver de maneira simples,

comedida, harmoniosa e idônea como seu pai. Não conseguiu nem mesmo iniciar seu

romance. O mais próximo que chegou disto foi com a produção de artigos justamente

sobre a técnica do romance, publicados em jornais. A partir de certo momento, tais textos

lhe “saíam penosos, difíceis: as ideias, sopradas de alguma parte de sua mente, não

chegavam a impressionar a consciência, não se traduziam em palavras e permaneciam

difusas, feitas em estados de espírito” (2005, 216).

Casou-se com Antonieta de maneira apressada, sem conhecê-la a fundo. Com isso,

procurou legitimar, sob o signo do matrimônio, os impulsos sexuais que sentia pela moça.

Visou também cumprir o que julgava ser uma etapa imprescindível de uma vida simples

e retilínea. A relação inevitavelmente enfraqueceu-se com o passar dos anos, também por

conta dos adultérios cometidos pelo protagonista. Eduardo, pois, sofreu não só por ser

incapaz de cumprir seu “destino certo”, isto é, de realizar o projeto de vida que traçara

quando ainda muito jovem. Sofreu sobretudo por não conseguir atribuir um sentido à sua

própria existência, preso que estava à esfera terrena, temporal, passageira, orgânica, isto

é, distante da dimensão divina, absoluta e criadora, origem e destino de sua alma.

Acreditou que bastaria a razão para significar sua trajetória existencial. No entanto, as

verdades humanas são voláteis, datadas, históricas e relativizáveis, insuficientes para

conter os terremotos anímicos que acometem o indivíduo.

Esta leitura pendular e comparatista de O encontro marcado obviamente precisou

ampliar sua base teórica. Hans-Georg Gadamer foi um dos autores acessados. Isto porque

em Verdade e método. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, Gadamer

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afirma que “o sentido de um texto supera seu autor não ocasionalmente, mas sempre. Por

isso a compreensão não é nunca um comportamento somente reprodutivo, mas é, por sua

vez, sempre produtivo” (1998, 444). Quer dizer, o processo de compreensão de um texto

literário consiste, em parte, em um esforço interpretativo do(a) leitor(a), ou seja, na

participação deste(a) na construção do sentido. Não se trata de mero reflexo integral do

disposto e expresso na obra. Como bem elucida Hans-Georg Gadamer, “a interpretação

não é um ato posterior e oportunamente complementar à compreensão, porém,

compreender é sempre interpretar, e, por conseguinte, a interpretação é a forma explícita

da compreensão” (1998, 459).

Wolfgang Iser também foi acionado para validar a interpretação que se construiu

do romance. Isto porque, segundo o também teórico alemão, o sentido é resultado da ação

tanto do texto em si quanto do(a) leitor(a). A noção de efeito consiste justamente no

resultado do contato entre obra literária e quem a lê. Iser contribui também com o conceito

de “bilateralidade”, entendida como a interação entre dois polos, isto é, obra e leitor(a).

O primeiro é o artístico e o segundo, o estético. Logo, o sentido do texto não está somente

em si nem somente em quem o lê. Está, isso sim, “situated somewhere between the two.

It must inevitably be virtual in character, as it cannot be reduced to the reality of the text

or to the subjectivity of the reader, and it is from this virtuality that it derives its

dynamism” (1978, 21). Quer dizer, ao longo da interação, o(a) leitor(a) projeta sobre o

livro, consciente e/ou inconscientemente, seu repertório de referências. Para Iser, em

suma, o sentido de um texto é resultado da ação tanto deste quanto do(a) leitor(a).

Fez-se tal ressalva metodológica justamente por conta do fato de a presente análise

interdisciplinar de O encontro marcado ser fruto não só do comparatismo entre a obra em

si e as ideias de Søren Kierkegaard. Na dinâmica do processo como um todo houve

evidentemente a participação de um terceiro elemento, que tanto interpretou o texto

literário em questão quanto os conceitos que compõem o pensamento do filósofo. O

acesso a diversos pesquisadores e teóricos contribuiu para balizar a interação com o

romance e sobretudo com a produção do pensador dinamarquês, tendo em vista sua

densidade e complexidade.

O viés filosófico de O encontro marcado é pouco estudado. Lucilia de Almeida

Delgado reconheceu o diálogo que o romance trava com a filosofia existencialista, mas

concentrou sua análise no traço memorialístico, histórico e de retrato geracional da obra,

assim como no contexto em que se deu sua produção. Suzana Barbosa Costa também

reconheceu estas pontes, mas preferiu destacar mais o estilo em si de Sabino, constatando

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nele uma hibridização entre romance e crônica, além de problematizar a transitividade do

eu narrador. Douglas Rodrigues de Sousa analisou o caminho árduo enfrentado pelo

personagem principal ao longo de sua formação como escritor, enquanto Adriana

Almeida de Oliveira e José Sterza exploraram o romance como objeto de um trabalho

sobre as expressões do tédio na cultura.

Aqueles que mais se aproximaram da hipótese fundacional de nossa pesquisa

foram Dulce Maria Viana Mindlin, Marcelo Antunes Neves e Florita Dias da Silva. Dulce

Mindlin dedicou menos de seis páginas ao tema. Neves tentou espelhar a trajetória do

personagem principal nas ideias de Søren Kierkegaard, mas não só as definiu

superficialmente como o fez somente em relação ao conceito de “desespero”, deixando

de lado os de estádios existenciais (estético, ético e religioso) e de angústia. Já Florita

Dias da Silva voltou sua atenção mais à presença dos discursos religioso e bíblico no

referido romance. No entanto, não o fez ancorando-se nos escritos teológicos do pensador

dinamarquês, isto é, não considerou a fé do personagem principal como possibilitadora

de se traçar um paralelo entre a prosa de Fernando Sabino e a filosofia de Søren

Kierkegaard. A presente dissertação visou justamente preencher esta lacuna,

contribuindo, assim, para a ampliação e o aprofundamento da pesquisa acadêmica relativa

ao viés filosófico de O encontro marcado.

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