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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO A fotografia como ruína Elane Abreu de Oliveira Profª. Drª. Nina Velasco e Cruz Orientadora Recife, dezembro de 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

A fotografia como ruína

Elane Abreu de Oliveira

Profª. Drª. Nina Velasco e Cruz Orientadora

Recife, dezembro de 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

A fotografia como ruína

Elane Abreu de Oliveira

Dissertação apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em

Comunicação da Universidade

Federal de Pernambuco como

requisito parcial para a obtenção

do título de Mestre, sob a

orientação da Profa. Dra. Nina

Velasco e Cruz.

Recife, dezembro de 2009

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Oliveira, Elane Abreu de

A fotografia como ruína / Elane Abreu de Oliveira. – Recife: O Autor, 2009.

120 folhas: il., fig.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de

Pernambuco. CAC. Comunicação, 2009.

Inclui bibliografia.

1. Fotografia. 2. Benjamin, Walter, 1892-1940. 3.

História. 4. Memória. I. Título.

77 CDU (2.ed.) UFPE

770 CDD (22.ed.) CAC2009-106

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Para meus pais, pela torcida ininterrupta.

Para Murilo, pelos momentos de descon(cen)tração.

Para Tia Tereza (in memorian), pelas lembranças risonhas.

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AGRADECIMENTOS

Sobretudo, à força divina que me acompanha a cada palavra escrita.

A meus pais, família e amigos que, de tão perto, compreenderam o isolamento

necessário para realização deste trabalho: Eliane, Firmino, Marilane, Tâmara, Keren, Sandra,

Nila, Ibrantina, Camila e Fava.

A Paulo Victor, pela companhia e paciência (ainda que curta) para os lamentos.

A Mateus, pelas conversas filosóficas.

A Nina, pelas sugestões, livros e estímulos a seguir a carreira acadêmica.

Ao PPGCOM - UFPE, que tão bem me acolheu.

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Entre os inúmeros gestos de comutar, inserir, acionar etc., especialmente o “click” do fotógrafo trouxe consigo muitas conseqüências. Uma pressão do dedo bastava para fixar um acontecimento por tempo ilimitado. O aparelho como que aplicava ao instante um choque póstumo.

Walter Benjamin

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RESUMO

Com base no pensamento benjaminiano sobre a imagem e o tempo, traçamos um paralelo

entre o conceito de fotografia e a noção de ruína. Evidenciamos o que há de comum nessa

analogia com o objetivo de aprofundar a discussão da questão: como a fotografia, ao se

caracterizar como ruína, dialoga com a descontinuidade do tempo? Nesse caminho,

percebemos no legado de Walter Benjamin pontos-chave para construirmos nossa

fundamentação, tais como: o conceito de história, a memória, a ruína alegórica barroca e a

própria fotografia. A contribuição do filósofo nos permitiu ligar tais temas aos liames da

teoria fotográfica tão discutida por Roland Barthes, Philippe Dubois, André Bazin, dentre

outros que balizaram a fotografia sob a ótica do vestígio, do rastro do real. Interessou-nos

perceber a proximidade entre imagem fotográfica e o tempo descontínuo que se estabelece na

dialética entre passado e presente, aparência e ocultação, morte e vida. Indo além, também

relacionamos fotografia e história, que põem em evidência duplos como:

documento/monumento e verdade/mentira. Ao longo do texto, dedicamo-nos a apresentar

imagens de fotógrafos que trabalham, de formas diversas, com a fotografia como ruína. São

eles: Eugène Atget, Christian Boltanski e Rosângela Rennó. Essa seleção de imagens,

sobretudo, reforça temas benjaminianos que abordamos. Buscamos, então, construir e

fundamentar um texto com o intuito de chegar mais próximo daquilo que seria, para

Benjamin, a imagem fotográfica de seu pensamento.

PALAVRAS-CHAVE: Fotografia. Walter Benjamin. História. Memória.

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ABSTRACT

Based on Benjamin’s thought about image and time, we delineate a parallel between the

concept of photography and the notion of ruin. We showed what is common in this analogy in

order to intensify the discussion of the question: how does photography, when characterized

as ruin, dialogue to discontinuity of time? So we can view in the legacy of Walter Benjamin

key points to raise our basis, such as: the concept of history, the memory, the allegorical

baroque ruin and the photography. The philosopher’s contribution allowed us to connect these

themes to the photographic theory so discussed by Roland Barthes, Philippe Dubois, André

Bazin, among others who have guided the photography under the perspective of the vestige,

the trace of real. We are interested on the nearness between photographic image and

discontinuous time that is established in the dialectic between past and present, visibility and

hiding, death and life. Beyond this, we relate photography and history, which highlight

doubles like: document/monument and truth/lie. Throughout the text, we are dedicated to

show pictures of photographers who cultivate, in many ways, photography as ruin. They are:

Eugène Atget, Christian Boltanski and Rosângela Rennó. This choice of images steps up

Benjamin’s subjects we work. So we try building and basing a text with the aim to approach

of what would be, for Benjamin, the photographic image of his thought.

KEYWORDS: Photography. Walter Benjamin. History. Memory.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................11 1. A CONTRIBUIÇÃO DE BENJAMIN – IMAGEM E TEMPO.....................................15

1.1. Hístor é testemunha ocular, aquele que viu.......................................................................15

1.2. A memória é monádica......................................................................................................26

1.3. A ruína é uma miniatura de mundo....................................................................................42

1.4. Fotografar é revelar............................................................................................................51

2. A FOTOGRAFIA E OS VESTÍGIOS DO TEMPO........................................................65

2.1. O traço fotográfico e as ruínas...........................................................................................65

2.2. Do efeito Medusa ao instante movente..............................................................................75

2.3. Sob rastros de memória......................................................................................................86

2.4. Da morte à redenção........................................................................................................103

CONCLUSÕES.....................................................................................................................111

As descontinuidades atravessadas...........................................................................................111

Pequenas fotografias do pensamento......................................................................................114

BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................119

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INTRODUÇÃO Durante minha trajetória acadêmica, em trabalhos e em conversas informais entre

amigos, o tema do “tempo” sempre exerceu determinado fascínio em mim. Seus usos, sua

pressa, sua inconstância, seu gasto, suas expressões, sua longevidade, sua fugacidade. Por

mais amplo e metafísico que o “tempo” possa parecer, a fotografia foi o “meio” e a

“expressão” que mais se afinou com os meus pensamentos na Comunicação. Instigava-me, na

fotografia, como o tempo podia “parar” em imagem; ato praticamente impossível de se fazer

na nossa vida, tão ativa. Assim, na maioria das atividades (teóricas ou práticas), a serem

desenvolvidas na graduação e na especialização, tentava encaminhá-la para um dos dois

temas: tempo ou fotografia. A teoria da imagem fotográfica, contudo, estivera mais presente

que sua própria produção. Eis, agora, a pesquisa de mestrado. E mais uma vez o tempo. A

fotografia/ruína.

Debruçamo-nos (orientanda e orientadora), por algum tempo, sobre uma relação que

pode, aos olhos de alguns, estar diretamente associada à sujeição ao tempo passado: a

fotografia como ruína. Preferimos esse título aberto, ou seja, não muito explicativo, uma vez

que tratamos de um tema igualmente aberto, ainda inconcluso, e que, neste trabalho, será

esboçado. Sem intuito de exaurir o tema, a versão logo mais escrita, será um passeio de modo

a melhor percorrer o terreno irregular da questão: como a fotografia, ao se caracterizar como

ruína, dialoga com a descontinuidade do tempo? Para responder a essa pergunta, apoiamo-

nos, primordialmente, no pensamento benjaminiano, que, dentre outros, destaca-se por sua

escrita imagética e fragmentária – fotográfica e em ruínas. A própria fotografia como modelo

de pensamento.

Um teórico que não queria ser visto como doutrinário. É inconcebível falar de

Benjamin sem deixar brechas, fendas no ato do texto. Ao refletirmos sobre o seu pensamento,

consequentemente, estamos dispostos a mergulhar em sua incompletude e expostos a fazer

outras tantas lacunas. Topamos o desafio. Aproveitamos o caráter aberto de sua obra para,

quem sabe, esgarçá-la ainda mais. Seus escritos são aqui consultados como ponto de partida

para pensarmos a relação de sua filosofia com as imagens e o tempo, já que isso também

interessa às nossas questões sobre a fotografia.

Fazemos isso, também, sem esquecer a grande contribuição do teórico para o estudo e

a crítica dos meios de comunicação, os quais, no raiar do século XX, influenciaram de forma

decisiva o modo perceptivo dos habitantes das grandes cidades. Em seus textos clássicos na

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área de Comunicação (O narrador, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, A

pequena história da fotografia), Benjamin é atento a essas mudanças provocadas pelo

advento das técnicas reprodutivas. Os ganhos e as perdas nesses novos processos que se

impunham ao homem moderno foram destacados pelo filósofo de forma emblemática. Perdas:

da aura, da experiência, da capacidade de narrar. Ganhos: do inconsciente ótico, das

semelhanças, da arte como fotografia.

Como aquele que procura escrever tentando concretizar uma visibilidade através do

texto, Benjamin é o “colecionador” dos “fragmentos”, da escrita ensaística, das citações, do

minúsculo. Seu conceito de “imagem dialética” percorre insistentemente seus escritos. E

quando associamos essa dialética à própria fotografia e o tempo, vem à tona outras

manifestações: “dialética parada”, “dialética na imobilidade”, “dialética da embriaguez”. Esse

conceito, também, é expresso em sua filosofia da história, que também exploramos com

dedicada atenção. Em seu ensaio das teses Sobre o conceito da história, temos diversas

formulações do pensamento em imagem. Dele, extraímos o potencial da fotografia se

expressar sob o signo do clic, do instantâneo.

Nosso estudo, por alguns, poderá ser caracterizado como “essencialista”, uma vez que

trazemos, junto a Benjamin, um corpo de teóricos que se dedicaram a responder o que é

fotografia, o que ela tem de específico, ou como se dá sua gênese (Barthes, Bazin, Dubois).

Entretanto, sublinhamos que nossa intenção é identificar no que esses pensadores auxiliam à

nossa questão principal: como a fotografia, ao se caracterizar como ruína, dialoga com a

descontinuidade do tempo? Nossa busca por diálogos alargou nosso horizonte para outras

áreas (Filosofia, História), o que deu à pesquisa um caráter interdisciplinar. A própria

Comunicação já se constrói em um campo de contatos com outras disciplinas. Desse modo,

apenas damos ênfase a essa característica.

Com base no levantamento bibliográfico, partimos de uma comparação, ou melhor

dizendo, de uma analogia entre fotografia e ruína para exprimir os momentos em que essas

duas ideias dialogam entre si e como uma pode esclarecer a outra. Em prévias palavras, sem

recorrer ao dicionário, ruína implica em resíduo, vestígio, fragmento, resto do que foi,

passado, incompletude, ausência presente, morte. Falar de algo arruinado é falar de algo

fracassado, malogrado, sem vida. Já no exercício de encontrar sinônimos para o termo,

poderíamos destacar várias das possíveis semelhanças à ideia de fotografia. Contudo, o que

está no cerne dessa relação e intrínseco às duas é a noção de tempo e, arriscaríamos dizer, de

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um tempo paradoxal: tempo passado/presente, morto/vivo, aparente/oculto; tempo-fragmento,

quebrado, descontinuado.

Seguimos as pistas que esse duplo fotografia/ruína deixou para nós. Os capítulos que

se seguem foram divididos em tópicos e sub-tópicos de forma a melhor apresentar as

bifurcações do tema principal. Afirmamos, com isso, que não existe uma divisão arriscada

entre “capítulo teórico” e “capítulo de análise”. Toda a dissertação é de cunho teórico e, como

tal, todo capítulo é concomitantemente de análise. Mostramos fotografias e as analisamos ao

longo de todo o trabalho, no intuito de dar evidência à força do suporte. Não escolhemos

apenas um fotógrafo porque a variedade de autorias se adequava melhor à polifonia de nossa

proposta. Então, concentramos nossa atenção em obras de três fotógrafos/artistas, que

trabalham questões singulares sobre a fotografia como ruína: Eugène Atget (1857-1927),

Christian Boltanski (1944-) e Rosângela Rennó (1962-).

Eugène Atget, fotógrafo que viveu na França no transpor do século XIX para o XX,

esteve atento às ruínas de Paris, seja nos lugares como nas pessoas que ali viviam. Christian

Boltanski, artista francês contemporâneo, consagra-se por trabalhar as fotografias como apelo

à lembrança. Suas obras devolvem à vida arquivos-ruína, muitas vezes, silenciados pelo

encadeamento histórico. Rosângela Rennó, artista visual brasileira ainda em atividade,

desenvolve sua obra com base nos vários tipos de imagens-ruína: as midiáticas, as de álbuns

fotográficos abandonados, as de arquivos institucionais e pessoais. Assim, com base nesses

três modos de apropriação das imagens, buscamos traçar elos entre o suporte imagético e o

pensamento fotográfico.

No primeiro capítulo, resolvemos tratar especificamente da escrita imagética de

Benjamin e justificar como ela se relaciona à visibilidade fragmentária do tempo. Sustentamos

nossa abordagem em diversos pensadores do filósofo: Kátia Muricy, Rainer Rochlitz, Paulo

Rouanet, Mauricio Lissovsky, Olgária Matos, Flavio Kothe, dentre outros. No segundo,

abordamos, de maneira mais específica, as teorias e os discursos sobre a imagem fotográfica

que falam mais de perto à sua relação com a ruína: a noção de índice, o “isso foi”, o corte, a

morte do referente, o congelamento, o rastro, o instante (Barthes, Bazin, Dubois, Sontag,

Kossoy). Também colocamos em evidência os temas da memória, do documento e do

monumento, que, pelos historiadores que defendem uma descontinuidade temporal presente

no tempo histórico (Le Goff, Foucault, Nora), são discutidos com especial relevo. E claro, não

esquecemos de sempre dialogar com o próprio Benjamin.

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Nosso interesse é perceber, como a noção de rastro, vestígio, é recorrente, seja na

fotografia, seja na história, seja na memória, na noção de instante. A descontinuidade

temporal na fotografia como ruína pode ser vista por esses diversos ângulos. O paradoxo que

sustenta a “imagem dialética” é encontrado de variadas formas na fotografia como imagem

descontínua, imagem-ruína. Incompletude, passado/presente, morte/vida, presença/ausência,

congelamento/mobilidade, são alguns dos duplos que apresentamos sob a ótica do

rastro/ruína. Não intencionamos, entretanto, assumir uma postura “filosófica”, tampouco

“metafísica”. Esse trabalho se dirige aos interessados em pensar a fotografia fotograficamente

e àqueles que, de alguma forma, arriscam pensar alguns conceitos benjaminianos. Repetimos

que se trata de um diálogo sobre fotografia e suas manifestações em rastro temporal. Ou seja,

a fotografia é o meio e o objeto em questão. A ótica e o olhado.

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1. A CONTRIBUIÇÃO DE BENJAMIN – IMAGEM E TEMPO

Elaboramos, neste capítulo primeiro, aquilo que poderia ser chamado de uma

ancoragem benjaminiana, em que o texto é seccionado por temas de nosso interesse central.

Cada tópico apresentado, no entanto, diferentemente de Benjamin, não se pretende um

mosaico, em que os fragmentos são propositalmente descontínuos e desordenados. Não

concretizamos essa premissa assistemática. Propomos uma condução de leitura – que, claro,

pode ser seguida ou não –, para termos um entendimento mais lúcido sobre cada assunto

abordado e, também, para facilitar a lembrança de cada tema quando a ele nos reportamos em

outras seções e capítulos.

Na primeira seção, trataremos da concepção benjaminiana de história e mostraremos

como sua escrita fragmentária consolida seu pensamento. Utilizaremos as “teses sobre o

conceito da história” como articulação desses temas. Na seção seguinte, buscaremos esmiuçar

o seu pensamento sobre a memória, que está evidentemente ligada à dimensão temporal,

apresentando o entrelaçamento de suas ideias às de Proust, de Bergson e de Baudelaire. Na

terceira seção, daremos ênfase à visão barroca na constituição de uma história a partir e por

meio das ruínas. Por último, esboçamos uma articulação sobre a fotografia e os temas

anteriormente apontados.

Com isso, não esperamos dar conta da arquitetura do pensamento de Benjamim. É

nossa intenção esboçarmos algumas reflexões de temas relevantes que se articulam com a

imagem fotográfica. Comprometemo-nos em não ser demasiadamente extensos nem

insuficientemente breves.

1.1. Hístor é testemunha ocular, aquele que viu

Descontinuidade, heterogeneidade, pormenores. Ensaio, aforismo, fragmento. A forma

da escrita de Walter Benjamin muito fala sobre sua postura de expressar nas palavras a

experiência do tempo que flui. Ele se dirige às místicas românticas e cabalísticas, de escritores

como Hamman, Herder e Friedrich Shlegel, cujos esforços se deram em utilizar a linguagem

como expressão de conteúdos mentais, não-verbais. Neste sentido, a linguagem para

Benjamin é mágica, pois é imediata no que é comunicável da essência espiritual. E este

recurso corporifica o seu “método de desvio”, de “caminho indireto” ou do “mosaico”, como

coloca Kátia Muricy (1998), Rainer Rochlitz (2003) e Paulo Sergio Rouanet (1984), ao

comentarem a apresentação das ideias na filosofia de Benjamin.

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A natureza monadológica das idéias apresenta a verdade, que nunca se totaliza mas, ao contrário, constitui-se como o mosaico, que só existe em razão de sua fragmentação. A escrita é um medium dessa apresentação que atende ao caráter descontínuo do pensamento. (MURICY, 1998, p.183).

Dois esclarecimentos se fazem necessários: o que é mônada e o que é medium. Para

Benjamin, a verdade aninhada nas ideias como “interpretação objetiva da história” é também

um ser que se mostra no fragmento. “Enquanto contraste entre uma estrutura fechada e a

totalidade, a ideia é mônada.” (id., ib, p.152). A mônada, como imagem da ideia, é o “mundo

em miniatura”, autosuficiente, carregando a concretude histórica do mundo e a

atemporalidade inteligível da ideia. Esta natureza monadológica, visão muito cultivada no

período barroco1, precisa ser aqui compreendida para que entendamos como a ideia rompe

com o continuum da história e funda uma outra temporalidade. A ideia é origem, um salto, é

algo que emerge, uma libertação do vir-a-ser dos acontecimentos. Ao mesmo tempo em que é

histórica, é a-histórica ao desvencilhar-se do via-a-ser.

A monadologia de Leibniz designa o termo mônada como unidade espiritual

indivisível e eterna, componente simples do universo. Sendo parte e também todo, ela é um

ponto de vista sobre o mundo ao mesmo tempo em que é todo o mundo sob determinado

ponto de vista (ABBAGNANO, 1982). Esse conceito é crucial para compreendermos como

Benjamin exprime a ideia de salto na história e também o próprio sentido dado ao fragmento.

A mônada sugere uma percepção particular da unidade, do instante. Sua visão é da origem,

em que não há começo nem fim, já que é composta por partes e, por partes, começa e acaba.

Ela corporifica o instante como tempo de interrupção, ao modelo de um disparo fotográfico.

Já o medium não quer dizer, como parece, meio. É o imediato, o que se manifesta

imediatamente na linguagem, sua essência espiritual, mágica. A linguagem humana seria um

reflexo da essência de Deus, que é o verbo, e chega até nós no nome. “Benjamin irá

considerar o nome, como o resumo da ‘totalidade intensiva da linguagem entendida como

essência espiritual do homem’ e, simultaneamente, irá propor Deus como o destinatário da

linguagem humana:” (MURICY, 1998, p.102). A comunicabilidade do espírito é garantida no

ato de nomear as coisas. Nesse aspecto, podemos extrair de Heidegger (2003) o poder de

evocação do nome. Nomear é evocar, é aproximar o que se evoca, mas não com o fim de

1 A concepção barroca de ideia como mônada muito influenciou Benjamin para sua concepção barroca de história. O Trauerspiel – drama barroco – é o paradigma para sua análise, como veremos no tópico “A ruína é uma miniatura de mundo”.

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tornar as coisas imediatas, mas de convocar, trazer para uma proximidade “a vigência do que

antes não havia sido convocado”. Sublinhamos que, para o filósofo, o termo essência carrega

o sentido do vigor, do vigorar (wesen). “Evocar é sempre provocar e invocar, provocar a

vigência e invocar a ausência” (id., ib., p.16).

Na proposição de Heidegger (e também na de Benjamin), no nome das coisas, ligamos

mortais e divinos, pois a evocação nomeadora convida as coisas para perdurarem no mundo.

“No nomear, as coisas nomeadas são evocadas em seu fazer-se coisa. Fazendo-se coisa, as

coisas des-dobram mundo, mundo em que as coisas perduram (...) Fazendo-se coisa, as coisas

são gesto de mundo” (id., ib., p.16-17). Entender essa capacidade de evocação do nome é

captar que o mundo, para Heidegger, concede às coisas sua essência. Em essência, o homem é

linguagem. Heidegger e Benjamin privilegiam o aspecto linguístico não como instrumento,

mas como essencial. Essa “virada linguística” da filosofia participa do movimento de

pensamento do século XX que privilegiou as formas de expressão da literatura e da filosofia.

Rainer Rochlitz (2003, p.34) assinala que Benjamin recusa o caráter instrumental da

linguagem, pois ela é “(...) medium de todo o conhecimento anterior a qualquer pensamento e

constitutivo de toda consciência”. A concepção da linguagem é mística por dar ao homem um

“papel messiânico na Criação”, um papel libertador, capaz de lidar com a experiência

fragmentada do mundo. Antes do pecado original, quando as coisas não tinham nome, homem

e natureza se comunicavam de forma imediata. Depois da Queda, a fala humana se tornou

mediata, uma língua sobre as coisas e não das coisas, como coloca Mauricio Lissovsky

(1998). O ato de nomear, então, adquire uma dimensão receptiva da própria língua das coisas

e é reparador ao apaziguar a dor da perda desse elo imediato, adâmico.

Tendo claras essas formulações, é mais compreensível apreender o que seria o

“método” de Benjamin, que embora tenha a linguagem como primordial, leva-nos ao mundo

das imagens presente nos textos. Paulo Rouanet (1984) designa esse método como “tratado

filosófico” que se propõe a representar as ideias e, por isso, ele se recusa às falsas

totalizações, como nas ciências sistemáticas. O sistema se opõe ao tratado. Enquanto o

primeiro se baseia em elos, continuidades, coerências, o tratado é como mosaico: é composto

de fragmentos de pensamento assim como o mosaico se compõe de fragmentos de imagem.

Origem do drama barroco alemão, obra benjaminiana de 1928, é um exemplo dessa primazia

do fragmentário. Seu texto é totalmente assistemático: há passagens bruscas, desconexões de

um tópico a outro, citações, retomadas de temas constantemente. Passagens é outra obra que

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retoma esse caráter fragmentário do Trauerspiel (drama barroco) nos seus temas heterogêneos

e citações, construindo-se pela montagem. É como se Benjamin, no intento de representar a

natureza da verdade como ideia, mostrasse sua construção descontínua, estilhaçada.

Na sua filosofia da história, Benjamin traz à tona tanto a sua abordagem fragmentária

do tempo, como a sua rejeição a um tempo cronológico, linear, homogêneo, causal, herdado

pela historiografia tradicional burguesa (o historicismo). Sua defesa é de que o historiador

materialista, dialético, pode fundar uma outra concepção de tempo, calcado na intensidade

relampejante do “agora” (jetztzeit), baseado na tradição messiânica e mística judaica. E isto,

mais uma vez, carrega a visão de mônada de que falamos.

(...) o historiador dialético deve libertar o objeto histórico do fluxo da história contínua, salvando-o, sob a forma de um objeto-mônada: fragmento de história, agora intemporal, que o olhar de Medusa do historiador mineraliza, transformando-o em natureza, e que como tal dá acesso à pré-história do objeto, e à sua pós-história (ROUANET, 1984, p.19).

Há, dessa forma, uma temporalidade fundada no instante fixado pelo historiador. Ao

mesmo tempo em que recorta o objeto da continuidade histórica, ele o salva do vir-a-ser

enquanto mônada, que é intemporal. A partir dessa quebra na linearidade histórica, o objeto-

mônada se estabelece como origem, salto, dando acesso à sua pré e pós-história. Esse salto é

atual, emergente, libertador das amarras cronológicas. Ele inaugura um momento. É neste

raciocínio que Benjamin escreve as suas “teses sobre o conceito da história”, de 1940. O

filósofo expressa essa imagem do tempo, em que a visão verdadeira do passado é relâmpago,

neste trecho da “tese” 5: “A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se

deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é

reconhecido” (BENJAMIN, 1994a, p.224).

Há um movimento veloz em jogo, que deve ser imobilizado. A imagem relampejante

do passado só pode ser fixada no ato de seu reconhecimento. Temos, no trecho citado na

“tese” 5, a imagem enquanto fugacidade, latência. O historiador dialético deve “mineralizar”

esse instante imagético, pois o movimento historicista tradicional é o da marcha linear,

progressista, que abafa essas possibilidades de congelamento e ruptura, fugidias. O passado

enquanto “verdade”, “ideia”, na reflexão de Benjamin, não morre nas relações causais de

passado, presente e futuro. Ele é atual, desde que salvo enquanto fragmento, mônada.

Na “tese” 9, temos a imagem do anjo, quadro de Paul Klee descrito por Benjamin,

como elucidativa dessa visão do passado. Aqui é ressaltado o aspecto catastrófico com que o

anjo olha os fragmentos.

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Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e a dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade (...) o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto um amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é chamada de progresso. (BENJAMIN, 1994a, p.226).

A “cadeia de acontecimentos” a que se refere o filósofo, nessa passagem, corresponde

à concepção de um tempo histórico contínuo, homogêneo, sequencial (passado-presente-

futuro). O anjo da história, boquiaberto, de olhar fixo, espantado com o acúmulo dessa cadeia,

parece querer reverter esse momento e “acordar os mortos” em uma nova escrita histórica,

que é descontínua. Nessa iminência do despertar, no entanto, a tempestade do progresso lhe

arrasta para o futuro, vetando-lhe as possibilidades de transformar o passado. A visão

relampejante do anjo (todos os tempos em um só), para Benjamin, deve impelir o historiador

à ação, consciente da catástrofe.

Aos nossos pés, há ruínas dispersas, que só o anjo vê. Seu olhar é iconoclasta. O

congelamento de sua visão catastrófica dá uma dimensão de como o continuum da história

progressiva procura silenciar acontecimentos que fogem à sua cadeia, à sua marcha. A força

tempestiva do progresso torna homogêneo o tempo, pois o detém em uma sequencia linear em

que as ruínas são ignoradas. É um esforço enxergar o tempo da história como saturado de

“origens”, possíveis de libertação. Contudo, é tarefa da história (do historiador materialista)

libertar esses fragmentos silenciados no passado, pois é no despertar das possibilidades

abafadas que se pode mudar o presente e libertar o futuro que o passado não teve. “A história

é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo

saturado de ‘agoras’”, como Benjamin (ib., p.229) ressalta na “tese” 14.

***

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FIGURA 1: Romanichels, groupe - Eugène Atget (1912)

Consagrado por fotografar construções e ruas de Paris vazias, Eugène Atget não esteve

sensível apenas a registrar a cidade extinta do movimento de pessoas. Dentre seus registros,

ainda que em menor número, destacam-se imagens como essa (acima, Fig.1), que retrata um

grupo de pessoas em uma moradia provisória, isolada da agitação de um grande centro

urbano. Trata-se das margens ao sul da cidade, em que estrangeiros e ciganos procuravam

acomodar-se, uma vez que sua presença era ameaçada pelo exército.

Nessa zona, assim nomeada até a Segunda Guerra, como destaca Szarkowski (2003),

distante a uma milha do centro da cidade como forma de defesa, era proibido construir

moradias de estruturas permanentes. Talvez a maioria dos residentes da zona fossem ciganos,

que, não tendo interesse na permanência naquele lugar, pareciam invisíveis e, das minorias

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étnicas, os menos discutidos. Contudo, aos olhos de Atget, eles não passaram despercebidos.

Da invisibilidade e vulnerabilidade as quais estavam sujeitos, o fotógrafo agiu contra a

marcha progressiva, retratando-os e mantendo com eles uma troca de olhares que, ainda que

provisória, possibilitou-lhes a visibilidade.

Estando também atento à periferia da cidade, Atget rompeu com o olhar tradicional e

historicista, que silencia as possibilidades de um desvio das amarras contínuas do tempo

homogêneo. A fotografia acima é uma ruptura com a sequencia de acontecimentos que Paris

seguia com o objetivo de se defender das ameaças externas. Nessa imagem, estão seres

humanos, que à margem de um grande centro, viveram na incerteza da permanência. E ainda

que alheios aos acontecimentos para além da zona, não foram sujeitos menos históricos.

Ruínas de uma Paris em expansão, os residentes da zona, região provisória, foram alvo

de um olhar incerto de Atget. Ao mesmo tempo em que a imagem capta um momento fugidio,

o olhar fixo do fotógrafo para as pessoas estabelece um contato também incerto e arredio.

Aquelas pessoas pouco compreendiam a escolha do fotógrafo, assim como o fotógrafo

desconhecia a vida que ali se passava. Poderíamos dizer que Atget, ao congelar sua visão das

ruínas, parece estar entre a tempestade que o leva e a possibilidade de salvá-las, bem ao modo

do anjo da história. Esse momento de reconhecimento, é instantâneo, relampejante, tal como

uma fotografia.

Assim, essa imagem destaca-se não apenas de um fluxo histórico que o exército de

Paris tinha a missão de manter, mas também de uma linearidade que a maioria das fotografias

de Atget registrava, que eram as ruas, parques e cafés de Paris vazios de pessoas. Esses

lugares o fotógrafo já conhecia com certa familiaridade e já realizava seus registros de forma

metódica. A zona, contudo, para ele, era tão imprecisa quanto o confronto de olhares com

aqueles que ali estavam. Sua fotografia interrompe um fluxo para dar visibilidade a uma

minoria esquecida, de futuro incerto. A imagem permaneceu como pegada, poderíamos dizer,

desse confronto de olhares entre ruína e anjo da história.

***

O “agora” a que Benjamin se refere implica a ideia de “origem”, que como já dito

anteriormente, é o salto no curso do vir-a-ser. Os acontecimentos, como massa homogênea,

abafam esses possíveis “agoras”, saltos e cristalizações. Esse abafamento reforça o princípio

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aditivo do historicismo. Já o princípio construtivo do materialismo histórico admite as

fixações do tempo, as interrupções no fluxo da história, presentes nos momentos de tensões.

Quem escreve a história, para Benjamin, deve considerar o presente como pensamento

tensivo, que inclui não apenas o movimento das ideias, mas também suas imobilizações, tal

como a “tese” 17. “Quando o pensamento pára, bruscamente, numa configuração saturada de

tensões, ele lhes comunica um choque, através do qual essa configuração se cristaliza

enquanto mônada”.

Cristalização, mineralização, fragmento, mônada. O exercício de escrita histórica

implica em considerar esse modo de apresentação das ideias. O movimento concomitante à

paralisação e a incompletude paralela à totalidade, evidenciados nas “teses”, levam-nos à

compreensão de uma ambivalência presente na visão fragmentária e construtiva da história.

No fragmentário, nos destroços, também está a “força messiânica”, de salvação. “O passado

traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. (...) foi-nos concedida uma frágil

força messiânica para qual o passado dirige um apelo”, como diz Benjamin (1994a, p.223), na

“tese” 2.

O salto no tempo, pelo historiador marxista (materialista) está diretamente ligado ao

atual, assim como a moda cita o antigo. Na “tese” 14, a noção temporal do salto na moda é

associada à dialética de Marx. E como sabemos, salto é origem.

A moda tem um faro para o atual, onde quer que ele esteja na folhagem do antigamente. Ela é um salto de tigre em direção ao passado. Somente, ele se dá numa arena comandada pela classe dominante. O mesmo salto, sob o céu livre da história, é o salto dialético da Revolução, como o concebeu Marx (BENJAMIN, 1994a, p.230).

Nesta direção, apreendemos uma atitude histórica marxista voltada para a atualidade,

independentemente do período temporal em que ela acontecer. A sua atualidade é “livre”, sem

as amarras de uma visão dominante. Nisso, ela se distingue da moda. No entanto, a ideia do

salto para a moda afirma a atemporalidade presente na origem. É a ideia de uma emergência

que pode ser atual a qualquer momento, mesmo que cite um momento passado. O “agora”

está disperso e pode explodir do continuum. Há uma força revolucionária nesse “agora”.

Essa irrupção no tempo é messiânica, salvadora, como é colocado por Benjamin em

alguns trechos de suas teses, os quais citaremos. O materialista histórico aproveita a

oportunidade de cristalização do tempo de natureza monadológica, “(...) reconhece o sinal de

uma imobilização messiânica dos acontecimentos, ou, dito de outro modo, de uma

oportunidade revolucionária de lutar por um passado oprimido” (id., ib., p.231). A tarefa da

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história enquanto salvadora é arrancar o passado da opressão dominante, assim como Messias,

na tradição judaica.

“O ‘agora’, que como modelo do messiânico abrevia num resumo incomensurável a

história de toda a humanidade, coincide rigorosamente com o lugar ocupado no universo pela

história humana” (id., ib., p.232). Nesse trecho da “tese” 18, há uma comparação da

abreviação da história humana com o “agora” messiânico. É como se esse “agora” nos desse

uma noção do ínfimo tamanho da história que conhecemos e da imensidão que ainda

desconhecemos. É uma proporção em escala: enquanto um salto messiânico nos dá a ver toda

história da humanidade, essa mesma história corresponde a um ínfimo lugar no universo. O

“agora”, ao mesmo tempo em que abrevia, age como mônada. Traz à tona a ideia do todo no

minúsculo, no fragmento.

O nexo causal existente entre os vários momentos da história contenta o historicista.

Contudo, o historiador consciente desse nexo, não se conforma em tomá-lo enquanto verdade.

Ele capta essa configuração causal, em que sua época “(...) entrou em contato com uma época

anterior, perfeitamente determinada. Com isso, ele funda um conceito do presente como um

“agora” no qual se infiltram estilhaços do messiânico” (id., ib., p.232). A determinação de

uma época, o seu enclausuramento entre limites temporais da história dos vencedores, em

nada perturba ou apela, pois é preenchida pela “massa dos fatos”, homogênea, contínua e

vazia. Já o presente enquanto “estilhaço messiânico” é carregado de uma força redentora,

“uma experiência única”, como o ímpeto do anjo da história. Neste presente, “ele mesmo

escreve a história”. (id., ib., p.230).

Como na crença judaica, “cada segundo era a porta estreita pela qual podia penetrar o

Messias” (id., ib., p.232). Encarar esta emergência permanente do tempo coloca o historiador

materialista em um estado de alerta constante, pois o “estilhaço” é, muitas vezes,

imperceptível. “Assim como as flores dirigem sua corola para o sol, o passado, graças a um

misterioso heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história” (id., ib.,

p. 224). Nessa metáfora, Benjamin descreve o momento tênue, sutil, em que o historiador

materialista pode salvar o passado em um “estilhaço”.

O perigo é outra forma do passado se apresentar enquanto ameaça, catástrofe. A visão

do anjo ressalta esse aspecto. Ela relampeja perigosamente. Na “tese” 6, é evidenciada essa

ameaça da imagem do passado, a qual o materialismo histórico deve fixar e apresentar ao

sujeito histórico, sem que ele seja consciente disso. “O perigo ameaça tanto a existência da

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tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes

dominantes, como seu instrumento”. (id., ib., p. 224). Cabe ao historiador impedir que esta

entrega se perpetue.

Benjamin, na “tese” 7, também fala da aderência ao “método de empatia” por parte do

investigador historicista e que é rompido pelo materialismo histórico. Essa empatia é com os

vencedores.

Sua origem é a inércia do coração, a acedia2, que desespera de apropriar-se da verdadeira imagem histórica, em seu relampejar fugaz. (...) A empatia com o vencedor beneficia sempre (....) dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. (BENJAMIN, 1994a, p.225)

Os vencedores de hoje são herdeiros dos que dominaram antes. Nesta herança, o

triunfo de cada dominador carrega o preço da opressão dos dominados, “seus corpos

espezinhados”. Vale destacar aqui a apatia, a inércia, com que os vencedores contêm o

desespero do “relampejar fugaz” do passado. É nesta inércia diante do desespero que faz com

que o passado homogêneo seja transmitido de forma empática. A atenção do materialista

histórico é decisiva nessa relação, pois ele deve olhar também para os mortos nesse triunfo,

rompendo a empatia da vitória herdada ao longo das gerações.

A barbárie em que se caracterizou o processo de transmissão cultural, ou, em outras

palavras, os bens culturais resultantes do “espezinhamento” dos vencidos, leva o materialista

histórico a refletir o “cortejo triunfal” com horror. A cultura carrega em si a barbárie. “Nunca

houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie” (id. ib.,

p.225). Neste sentido, Benjamin agrega um caráter negativo à cultura que, no caso, está aliada

aos valores burgueses, das classes dominantes. A tarefa do historiador consciente é se

distanciar dela, escovando a “história a contrapelo”.

Nesta visão da barbárie, temos também a visão catastrófica do anjo da história. Como

já citado, o anjo “(...) vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína

e a dispersa a nossos pés” (id., ib., p.226). Redimir o passado, colher seus fragmentos

relaciona-se também com a descontinuidade da cultura. História e cultura são alvos do ato de

“despertar os mortos”. Para ambas, é necessário um olhar iconoclasta, que escape do

progresso e resgate “os corpos prostrados no chão”. “O dom de despertar no passado as

2 Na sua concepção medieval, a acedia é a “preguiça do coração”, mal da alma, o abandono da busca de Deus. (MATOS, Olgária. Aufklärung na metrópole: Paris e via láctea, in: BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa oficial, 2007).

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centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os

mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer” (id., ib., p.224-225).

A história é tarefa que nunca se conclui de geração para geração. Sua construção e sua

sujeição a novas origens são características que fazem com que a cada época se construa

simultaneamente passado e futuro. O futuro está no presente de cada época, na origem, como

futuro do pretérito. Essa forma anterior de futuro, contida no presente, é expressa na “imagem

da felicidade”, colocada por Benjamin na “tese” 2. São resgatadas possibilidades do que

“poderia ter sido”:

(...) nossa imagem da felicidade é totalmente marcada pela época que nos foi atribuída pelo curso da nossa existência. A felicidade capaz de suscitar nossa inveja está toda, inteira, no ar que já respiramos, nos homens com os quais poderíamos ter conversado, nas mulheres que poderíamos ter possuído. Em outras palavras, a imagem da felicidade está indissoluvelmente ligada à salvação” (id., ib., p.222-223).

Esse futuro do pretérito, que nos liga a um momento messiânico, de felicidade

salvadora, retoma uma imagem de um passado invejável, em que poderíamos ter agido de

maneira diversa. Esta relação temporal, original, em que passado e futuro se entrecruzam, não

valoriza uma espera pelo que virá, mas uma atuação no presente, no “agora”. Falar de uma

“inveja” atrelada ao que já vivemos é, dessa forma, acender “centelhas de esperança” no já

vivido.

Despertar, perigo, estilhaço, “agora”. É inegável que, nas suas “teses”, Benjamin quer

revolucionar nossa maneira usual de pensarmos o tempo. Somente com essa transformação,

há possibilidade de formular outra concepção de história. Nesse intento, o filósofo nos

envolve com escritos que se apresentam como imagens. Imagens do seu pensamento. Da

mesma forma como acena para uma dimensão da história cujo todo resulta do descontínuo,

ele, enquanto escritor, incorpora o modo fugaz de apresentar as ideias. Já que a verdade assim

se apresenta no seu método.

As imagens, para Benjamin, são dialéticas, quando coexistem nelas ambiguidades,

ambivalências como passado e presente, antigo e agora, sonho e despertar. A linguagem é o

imediato, o medium dessa “dialética parada” ou “dialética na imobilidade”. Lembremos da

imagem descrita do anjo. Sua construção é dialética pelo potencial das palavras que o

descreve como ambígua: “passado”, “futuro”, “mortos”, “acordar”, “encara fixamente”,

“impele irresistivelmente”. O anjo é heterogêneo, descontínuo, imóvel movente.

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Para Rochlitz (2003, p.329), “a dialética da detenção opera um corte transversal no

processo histórico, a fim de extrair dele uma imagem às ambiguidades reveladoras”. O autor

reforça a característica que Benjamin (2007, p.48) aponta neste fragmento de “Paris, a capital

do século XIX”: “a ambiguidade é a manifestação imagética da dialética, a lei da dialética na

imobilidade. Esta imobilidade é utopia e a imagem dialética, portanto, imagem onírica”. No

entanto, mesmo onírica, a imagem dialética é decisiva para o despertar.

Muricy se refere à “dialética parada” presente nas “teses” pelo encontro das palavras

para a construção do relampejar. “A fugacidade desse encontro – expressa na reiterada da

metáfora do relâmpago – e o perigo que o apelo do passado ao presente não seja por este

entendido, são indicados, nas teses, por diferentes formulações” (MURICY, 1998, p.226).

Referendar essas formulações do relâmpago seria redundante, já que, ao longo do texto,

citamo-las. O caráter ambíguo da imagem dialética (sonho-despertar, movimento-

imobilização, passado-presente) está presente na imagem relampejante e é nele onde deve

investir o materialista histórico.

1.2. A memória é monádica

Está ali, nas “teses sobre o conceito da história”, apesar de não ser claramente

detalhada, a questão da memória. É das “teses” que retiramos um ponto de partida para

falarmos de tempo e memória. Nas palavras de Benjamin (1994a, p.224), “articular

historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-

se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”. Na

reminiscência está o germe da memória. Para os gregos, Mnemosyne, a deusa da

reminiscência, era a musa da poesia épica.

Em seu ensaio O narrador, de 1936, Benjamin fala de uma tarefa fundante da

reminiscência. “Ela funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração

em geração. (...) Ela tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si.

(...) Tal é a memória épica e a musa da narração (BENJAMIN, 1994a, p.211). A tarefa do

narrador encarna a reminiscência, pois nela está embutido o ato de lembrar. O narrador seria a

figura rara que, em tempos de pobreza de experiências comunicáveis entre as gerações,

compartilha, pela narração, suas histórias.

É inerente a qualquer narrador a experiência que passa de pessoa para pessoa.

Camponeses e marujos são apontados no ensaio como os dois “tipos arcaicos” da arte de

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narrar. Os primeiros por conhecerem as tradições e histórias de sua terra. Os segundos por

terem histórias de viagens a contar. Leskov, narrador-objeto do texto, acumulou experiências

em viagens pela Rússia, conheceu seitas rurais, marcou a sua narrativa com uma “dimensão

utilitária”, ou seja, com conselhos morais, sábios. As histórias, para serem mais facilmente

memorizadas, deveriam renunciar aos traços psicológicos. “Quanto mais o ouvinte se esquece

de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido” (id., ib., p.205).

A característica moderna do desaparecimento da arte de narrar tem seu cerne no

isolamento do sujeito que, com a mecanização do trabalho e a difusão da informação, tem

acesso fácil a notícias diárias de forma clara, objetiva, não deixando liberdade para a

interpretação do leitor. Há uma outra relação com o espaço e com o tempo, já que “o saber

que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação sobre acontecimentos

próximos” (id., ib., p.202). A imprensa é imediata. E foi ela que também favoreceu a

produção de livros de romances que, para Benjamin, não se alimentam da tradição oral como

acontece na narrativa. Há um desaparecimento da experiência coletiva. “O narrador retira da

experiência o que ele conta (...) E incorpora as coisas narradas à experiência dos ouvintes. O

romancista segrega-se” (id., ib., p.201).

No romance, o tempo, tomado em seus matizes psicológicos, é constitutivo. É um tempo fragmentado e descontínuo que corresponde à experiência temporal da era industrial. Esta temporalidade rompe com a memória – “a mais épica de todas as faculdades” – que está vinculada a um tempo artesanal ou orgânico, aquele em que, trabalhando em seus teares, os homens podiam, junto ao fogo, ouvir e contar histórias nas quais reconheciam a sua experiência (MURICY, 1998, p.188).

Nesta distinção da memória na vida moderna, são sedimentados dois termos na escrita

de Benjamin: experiência (Erfahrung) e vivência (Erlebnis). A primeira se refere ao

comunitário, à memória individual e coletiva, à tradição, enquanto a segunda se relaciona ao

mundo privado, ao indivíduo solitário. Assim, a memória, “a mais épica de todas as

faculdades”, vai perdendo suas forças para o homem moderno que se recolhe em seu mundo

particular, em seu trabalho segmentado. Não mais o seduz conservar o que foi narrado. A

segurança da reprodução foi colocada nas mãos das técnicas.

O atrofiamento da memória na modernidade também é apresentado por Benjamin no

seu ensaio Experiência e pobreza, de 1933. É reforçada a subtração da experiência no período

em que o hábito de contar histórias foi substituído pelo silêncio do pós-guerra, que assolou a

geração que viveu de 1914 a 1918. Os combatentes calaram. Voltaram pobres em

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experiências comunicáveis. “O frágil e minúsculo corpo humano” foi desmoralizado pelas

“explosões destruidoras”, já que “uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso

desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem” (id., ib., p. 115). Não mais limitada

ao privado, a pobreza de experiência passa a ser a barbárie de toda a humanidade. Porém, uma

barbárie positiva, para Benjamin.

O lado positivo deste novo conceito de barbárie está no fato de impelir o bárbaro “a

partir para frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, sem olhar nem para direita,

nem para esquerda” (id., ib., p. 116). Nesse aspecto, a barbárie aqui não se apresenta do modo

negativo, pois se fundamenta no princípio da “tabula rasa”, sedimentador do empirismo, em

que se cria a partir do branco. “Sua característica é uma desilusão radical com o século e ao

mesmo tempo uma total felicidade a esse século” (id., ib., p. 116). Nessa dialética, não há

saudosismo aos vestígios do que foi, mas um nascimento no atual. Com esta visão moderna

da barbárie, Benjamin destaca o pintor Paul Klee, o arquiteto Adolf Loos e o romancista Paul

Sheerbart.

É Sheerbart que se preocupa em acomodar seus personagens “em casas de vidro

ajustáveis e móveis, tais como as construídas, no meio tempo por Loos e Le Corbusier. (...) O

vidro é em geral o inimigo do mistério. É também o inimigo da propriedade”. (id., ib., p. 117).

A cultura de vidro abordada por Sheerbart elimina os rastros, os vestígios, tão protegidos nas

moradias burguesas. O vidro era a atitude contrária ao hábito burguês do interior cujos

adornos se ajustavam mais ao ambiente do que ao próprio morador. Tudo no salão burguês

era rastro, vestígio de seu dono. A cultura de vidro elimina os rastros. Nada nela se fixa. Ele

não tem aura. Tudo é frágil, quebradiço. A vida moderna deveria se ajustar à sua própria

sobrevivência “em troca da moeda miúda do ‘atual’” (id., ib., p. 119).

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FIGURA 2: Petit intérieur d'un artiste dramatique. Mr R., rue Vavin – Eugène Atget (1909 or 1910)

Benjamin, em seu texto sobre o flâneur, personagem que está no limiar tanto da

burguesia quanto da grande cidade, que passeava pelas ruas parisienses sem rumo, anônimo,

observando tudo, como em um panorama cuja paisagem é a multidão, diz que o morador do

intérieur, em seu mundo privado, reprime as reflexões sociais. Ele tenta despir seus objetos

do caráter de mercadoria para dar a eles um valor afetivo, em vez do valor de uso, de

utilidade, como faz o colecionador. Todos os seus rastros estavam bem guardados no

intérieur. Tanto que sua morada era seu mundo em miniatura, e seus objetos eram guardados

em caixas, estojos, protetores etc., dando à sua casa um caráter ainda mais particular.

Esse “pequeno interior de um artista dramático” apresentado na imagem (Fig.2) faz

parte de um projeto de Atget de construir um ensaio com diversos interiores parisienses de sua

época. Móveis, espelhos, quadros, livros e adornos compõem um cenário tipicamente

burguês, em que todos os vestígios de seu dono estão ali protegidos. Manter particulares esses

vestígios era o motivo pelo qual a cultura de vidro se colocava como uma atitude contrária ao

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hábito burguês. O risco da transparência, da exposição dos rastros do intérieur, fez com que o

próprio Atget, nessa fotografia, não afirmasse se esse lugar era ou não a sua morada.

Atget, além de fotógrafo, foi ator. Assim, o título da fotografia poderia ser associado a

ele. Szarkowski (2003) comenta que o artista teria sido capaz de incluir no seu ensaio sobre os

interiores parisienses fotografias de seu próprio apartamento, subtitulado como do Mr. R.,

artista dramático, vivendo na rua Vavin. Essa incerteza mistura verdade e ficção que, para um

ator (que ele ainda era, até 1913), era agradável. E, por outro lado, misturar realidade e

invenção poderia ser uma forma de proteger seus próprios vestígios, como assim faziam os

burgueses em suas moradas.

Mesmo sendo um artista com pouco financiamento, o fotógrafo-ator chegou a se

apresentar em algumas universidades populares com peças de Moliére e Victor Hugo. Era um

homem de muita leitura, o que leva a crer que sua vida, mesmo não sendo das mais

favorecidas, primava pela intelectualidade. E a fotografia foi também um meio de

sobrevivência, já que ele comercializava suas imagens para desenhistas e ilustradores. Assim,

pelo que transparece a fotografia acima, como coloca Szarkowski (ib.), não se podia ter

certeza se Atget morou ou não ali. A quantidade de livros condiz com o interesse do artista

pela leitura, mas ainda não é suficiente para afirmar que ali estão seus vestígios.

Berenice Abbott, fotógrafa americana fã do trabalho de Atget, por volta de 1925, fez

visitas ao artista e, em nenhum momento, foi convidada por ele para conhecer além de seu

quarto de trabalho. A intimidade do artista, assim, era preservada, e não seria uma jovem

estrangeira que iria ter a permissão de entrar nos quartos da casa. Entretanto, 50 anos depois,

Maria Hambourg provou para Abbott que o apartamento da fotografia acima foi, sim, uma das

moradas de Atget. Tratava-se do quinto lugar do artista em Paris, desde que ele havia chegado

à cidade há 20 anos antes da data da fotografia. Quando fotografou seus quartos, ele tinha

estado lá por uma década, e as imagens parecem refletir uma vida estável e decidida, sem

evitar conforto material e intelectual (id., ib.).

O “pequeno interior do artista dramático”, então, mesmo no jogo entre verdade e

ficção, dá indícios não de um homem arruinado, mas de um fotógrafo e leitor de grande

curiosidade, que deixa em seus lugares de morada suas pegadas. Não foi à toa que, mesmo

fotografando esses lugares, guardando-os em imagens, Atget não deixou claro que eram seus,

ocultando sua verdadeira identidade.

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Tanto em O narrador como em Experiência e pobreza, temos a questão da experiência

moderna ligada ao aparecimento das técnicas industriais, comunicacionais, literárias e

arquitetônicas. A liquidação da memória na modernidade é pronunciada nestes e em outros

escritos que falam sobre as transformações por quais passavam a cidade e suas multidões

(principalmente nos textos dedicados à obra de Baudelaire). O tema da atenção e da

desatenção, vale ressaltar, foi predominante em estudos da nascente psicologia científica,

como também nas ciências humanas no final do século XIX, conforme indica Jonathan Crary

(2007). Isso ocorreu devido ao contexto saturado de informações sensoriais advindas do

campo social urbano e industrial, no qual a capacidade humana de síntese perceptiva entrou

em crise. Foi nessa época que surgiram técnicas óticas com o intuito de estabelecer sínteses,

tais como o estereoscópio e, posteriormente, os primeiros cinemas (cicloramas, panoramas,

dioramas, dentre outros).

O processo de modernização da percepção “incorpora” a visão, ou seja, dá autonomia

ao olho para produzir imagens, reagindo a estímulos internos e externos. Na filosofia, a

relação perceptiva do sujeito com o campo visual e a memória foi enfaticamente discutida por

Henri Bergson (2006) em Matéria e memória, obra contemporânea ao surgimento da

fotografia e do cinema. Nela, o filósofo extrai dessas experiências modernas analogias que

deram forma ao seu pensamento. Para ele, a matéria e nosso corpo são imagens e a nossa

percepção da matéria são essas imagens “relacionadas à ação possível de uma certa imagem

determinada, meu corpo” (id., ib., p.17). Destacamos em Bergson que a percepção é uma

seleção de imagens (“imagens virtuais”) e ela implica necessariamente em movimento, em

mudança. Em outras palavras, perceber é escolher uma ação possível de meu corpo sobre os

objetos e esta percepção implica em se modificar a cada instante. Ela “dispõe do espaço na

exata proporção em que a ação dispõe do tempo” (id. ib. p.29). Apontaremos adiante como

Benjamin relaciona Bergson à obra proustiana.

No romance de Marcel Proust, Benjamin vê uma tentativa de capturar as

reminiscências e, com elas, a experiência, no tempo de seu radical dilaceramento. Proust, em

Em busca do tempo perdido, privilegia o tempo múltiplo, evocado por lembranças que saltam

involuntariamente a partir de reminiscências. São elas que fazem da sua obra não uma vida

como ela fielmente foi, mas uma “vida lembrada por quem a viveu”. Benjamin (1994a) assim

reconhece a densidade da obra proustiana. Nela, não se quer mostrar a linearidade e finitude

do tempo. Pelo contrário. O tempo proustiano é o tempo da lembrança, do cruzamento de

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tempos involuntários, imprevistos, oriundos das sinestesias. O exemplo clássico da

reminiscência em sua obra é a sensação experimentada pelo autor ao saborear a madeleine

(tipo de bolo pequeno), que o leva a lembrar dos anos de sua infância, na cidade de Combray.

Estava no sabor, no acaso, as lembranças que evocara. Por se constituir desse modo, a

memória encontrada em sua obra é chamada memória involuntária (mémoire involontaire).

Diz Benjamin em A imagem de Proust:

A eternidade que Proust nos faz vislumbrar não é a do tempo infinito, e sim a do tempo entrecruzado. Seu verdadeiro interesse é consagrado ao fluxo do tempo sob sua forma mais real, e por isso mesmo mais entrecruzada, que se manifesta com clareza na reminiscência (internamente) e no envelhecimento (externamente). Compreender a interação do envelhecimento e da reminiscência significa penetrar no coração do mundo proustiano, o universo dos entrecruzamentos (BENJAMIN, 1994a, p.45).

Ele se deixa levar por acontecimentos lembrados involuntariamente, descobertos.

Cabe então reforçar que o tempo proustiano se apresenta ilimitado, aberto, pelos caminhos da

lembrança. A textura de entrecruzamentos que ele manifesta é a do fluxo que irrompe da

reminiscência (algo que estava ali, passível de ser recordado) e se externa no envelhecimento,

no esquecimento da infância. Até sentir o gosto da madeleine, o escritor estaria limitado aos

apelos da memória voluntária (mémoire volontaire), aos apelos da atenção, evocados

deliberadamente. Uma vez que a memória se lança no abismo da desatenção, abrange

perspectivas que se lançam a ela indiretamente. Em termos freudianos, seria o ainda não

consciente.

Benjamin (ib.) comenta que é uma das habilidades de Proust possibilitar uma reversão

na cronologia do tempo. O passado não está morto, não se olha para trás com a sensação de

resignação, de conformismo. Quando no instante presente o passado se reflete, a narrativa se

rejuvenesce. Há uma espécie de salvamento do que passou, quando o acontecimento é

lembrado. Para o filósofo que condena a visão de uma história passada irrecuperável, a obra

proustiana se encaixa nessa tarefa de reversão do passado, mesmo que parta de uma

experiência vivida pelo próprio Proust. Pois a possibilidade de o passado se atualizar,

metamorfosear-se no presente da lembrança, que impele o homem a tatear outros caminhos

possíveis para sua história, em tempos modernos, parece realizável apenas artificialmente, nas

histórias literárias.

***

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33

FIGURA 3: 10 portraits photographiques de Christian Boltanski, 1946-1964 - Christian Boltanski

(1972)

O artista francês Christian Boltanski, na obra retratada acima, expõe fotografias

intituladas como suas, desde a sua infância à juventude. A história narrada por meio dessas

fotografias, contudo, embora pareça, não é fiel ao fluxo do tempo, que conduz o pequeno

garoto do primeiro quadro ao homem do último quadro. Boltanski fotografa várias crianças

em diferentes idades para, depois, montar esse conjunto e mostrá-lo como sendo um registro

de sua própria infância.

Uma biografia, então, é inventada. Como coloca Entler (2006), o artista sugere que, na

insuficiência das imagens testemunharem os fatos reais, há possibilidades de esses

testemunhos serem reinventados como ficção. Ainda que não se trate de uma reversão

particular do tempo, como fez Proust, Boltanski aponta para a impossibilidade de testemunhar

o passado tal como ele aconteceu. As fotografias são testemunhos incompletos, que não dão

conta de uma totalidade cronológica. Reside nelas a fraqueza do testemunho. Ao mesmo

tempo em que registram a existência de algo, declaram a insuficiência desse registro.

Falamos disso para localizar a obra de Christian Boltanski em um novo tipo de

realismo: aquele que se liberta da perfeição da mimesis. O artista, então, assume a

precariedade de testemunho das imagens para, com elas, inventar narrativas diversas. As

crianças fotografadas apenas sugerem uma sequência cronológica de acontecimentos. E, com

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esse teor sugestivo, “os dez retratos fotográficos de Christian Boltanski” trata de uma ficção

biográfica do autor. Apropriando-se de vários vestígios de infância, ele encena uma história.

Pouco se pode dizer de cada criança retratada. É outra característica das obras de

Boltanski trabalhar a questão do anonimato nas imagens. Essa questão, inclusive, influenciou

outros artistas contemporâneos (como a francesa Sophie Calle e a brasileira Rosângela

Rennó) que, no intuito de utilizarem o documento fotográfico como matéria-prima de suas

obras, trabalham com o que a imagem pode sugerir - suas ausências, suas incompletudes. O

passado, que na fotografia é ontologicamente tão enfático, passa de uma constatação para uma

criação. Esse potencial criativo dos fragmentos imagéticos elaboram uma nova relação com o

tempo: tanto o passado quanto o futuro podem ser reinventados.

Se assim pensarmos, Boltanski e “seus retratos” colocam para nós a reversibilidade

temporal possível dos documentos fotográficos. A reconstrução da realidade por meio das

imagens se torna expressão de um tempo não apenas declarado pelo testemunho visual, mas

também realizável pela criatividade do artista ao montar sua narrativa. Ainda que não se trate

de um entrecruzamento temporal proustiano, a obra de Boltanski convida a ceder a tempos

imprevistos.

***

Outro aspecto que também parte de Proust é a diferenciação entre rememoração e

lembrança. Seu objeto de escrita, o romance, limitado à dimensão privada, não conjuga o

passado individual e coletivo, que caracteriza a rememoração3. A experiência, no sentido de

Benjamin, deve considerar a ligação dessas duas dimensões (individual e coletiva) para que a

tradição não morra. Assim, a vivência, voltada ao indivíduo, dá acesso a lembranças que, por

sua vez, não interferem na experiência. Contudo, pelo que já expomos, a intenção de Proust

de captar as imagens reminiscentes de sua infância fala alto ao leitor moderno cuja faculdade

mnemônica está atrofiada.

3 Há controvérsias sobre a questão da rememoração dentre os estudiosos de Benjamin. Martha D’Angelo (2006) coloca que é inerente à lembrança o “tecido da rememoração”. Muricy (1998) assinala que há distinção entre os termos, pois na rememoração está embutida a ligação com o passado original, a relação do comunitário com o individual, que seria a experiência autêntica, mística. Rochlitz (2003) fala que a rememoração é teológica por transmitir uma força “messiânica”. Pela anamnesis (recordação) é possível, analisando a palavra profana, lembrar-se de sua nomeação original e conduzi-la novamente à ordem do Nome, como ideia, conforme Paulo Rouanet (1984).

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“O procedimento de Proust não é a reflexão, e sim a consciência. Ele está convencido

da verdade de que não temos tempo de viver os verdadeiros dramas da existência que nos é

destinada. É isso que nos faz envelhecer, e nada mais” (BENJAMIN, 1994a, p.46). No intuito

de restaurar a tarefa do narrador, contando sua infância, Proust estava certo de que poderia

não dar conta do acaso. No estalo, no sobressalto, na ruptura da linearidade, a memória

involuntária é acionada por estímulos ainda não conscientemente vivenciados. Se pouco salta

como estímulo, isso se dá pelo fato de nossa memória estar desgastada, acostumada a

frequentes choques, sobressaltos. A modernidade está no auge dos choques. Nesse contexto, a

teoria da experiência de Bergson vem à tona no ensaio Sobre alguns temas em Baudelaire,

onde há um diálogo entre o seu pensamento, o de Proust, o de Freud, o de Baudelaire e do

próprio Benjamin acerca da memória, a consciência e a concepção do tempo.

Em Matéria e Memória, Bergson relaciona a estrutura da memória à estrutura

filosófica da experiência. Sendo matéria da tradição, a experiência particular ou coletiva

“forma-se menos com dados isolados e rigorosamente fixados na memória, do que com dados

acumulados, e com freqüência inconscientes, que afluem à memória” (BENJAMIN, 1994b, p.

105). O que define o caráter da experiência bergsoniana é a duração (durée), que vai na

contramão do tempo científico quantitativo. A duração é qualitativa, ou seja, varia conforme o

preenchimento que se faz do tempo. Por exemplo, uma hora, para quem espera, pode parecer

tediosa, sem fim; contudo, para quem preenche esse mesmo tempo com atividades, pode fluir

rapidamente. Essa brevidade se dá pela intensidade da vida psicológica.

Não se pode falar, em termos bergsonianos, de uma determinação histórica da

experiência, uma vez que ele confronta a experiência da época de industrialização

massificante e exclui a morte. Sua filosofia oferece indícios para se pensar a memória como

uma imagem fixada por quem fechou os olhos e mergulhou na sua intensidade. A atuação da

durée, segundo Benjamin (id.), coincide com o que tenta fazer Proust ao restaurar as

reminiscências que o penetraram enquanto inconscientes. Para Baudelaire, o pensamento de

Bergson pode dar pistas, porém a a-historicidade da experiência é um ponto onde os dois se

distanciam, como veremos mais adiante.

Façamos agora uma menção a Freud. Ele “estabelece uma correlação entre memória

(na acepção de mémoire involontaire) e o consciente. (...) Só pode se tornar componente da

mémoire involontaire aquilo que não foi expressa e conscientemente ‘vivenciado’” (id., ib., p.

108). Em outras palavras, os resíduos mnemônicos são mais duradouros e intensos se sua

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impressão não chegar ao consciente. Conscientização e permanência seriam incompatíveis

entre si, na hipótese de Freud, em um mesmo sistema. O consciente se protege contra

estímulos, como acontece com as descargas de energia em choques traumáticos. “Quanto

mais corrente se tornar o registro desses choques no consciente, tanto menos se deverá esperar

deles um efeito traumático”. (id., ib., p. 109).

Vale aqui uma distinção que pode ainda não estar clara: correlacionar essas categorias

psicanalíticas às terminologias benjaminianas de experiência e vivência. É a vivência que está

ligada ao consciente, à resistência aos choques. Quanto mais exitosa for sua ação de conter os

estímulos, menos oportunidades terão de se incorporarem à experiência e menor será o

armazenamento de traços mnemônicos. Era a submissão à vivência por qual passavam os

habitantes da grande cidade. Automatizados, comportavam-se alheios, na reação aos

estímulos. Como comentou Poe: “se eram empurrados, cumprimentavam graves aqueles que

os tinham empurrado e pareciam muito embaraçados”. (id., ib., p. 126).

“À vivência do choque, sentida pelo transeunte na multidão, corresponde a ‘vivência’

do operário com a máquina” (id., ib., p. 126). Um artista moderno se afastava dessa visão.

Relacionando a “experiência do choque” à modernidade, Benjamin destaca Baudelaire, que,

mais do que qualquer outro, pôs no centro do seu trabalho artístico essa ligação de duelo. O

poeta, “perseguindo o trabalho, rápido e impetuoso, como se temesse que as imagens lhe

fugissem (...) luta, mesmo sozinho, e apara seus próprios golpes” (id., ib., p. 111-112). Na sua

prosa Sobre a modernidade, ao retratar o pintor da vida moderna4, mantém relação intensa

com a imagem do choque e a memória. “Estabelece-se assim um duelo entre a vontade de

tudo ver, de nada esquecer, e a faculdade da memória (...) Um artista (...) acostumado a

exercitar sobretudo memória e imaginação, encontra-se então como que assaltado por uma

turba de detalhes” (BAUDELAIRE, 1996, p.31-32).

No trapeiro, no apache, no jogador, na prostituta, na lésbica, no flâneur, Baudelaire

encontra a figura do herói nas margens errantes da cidade. Em meio as massas urbanas, nos

choques com ela, ele conseguiu emancipar-se das vivências, do olhar privado e anestésico que

o indivíduo na multidão parecia lançar. Mesmo sendo ele um solitário. “Os poetas encontram

o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo o seu assunto heróico. Com isso, no tipo ilustre

do poeta aparece a cópia de um tipo vulgar” (BENJAMIN, 1994b, p.78). A cópia é vista aí

4 Baudelaire, nesta obra, aborda a época de transformações sociais e estéticas da segunda metade do século XIX, tempo em que o pintor Constantin Guys sugere em seus trabalhos a experiência estética da efemeridade.

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como redentora. Na inversão do vulgar, é dado um golpe no vir-a-ser, um baque na

consciência.

Sempre a tomando de assalto. É assim que Baudelaire expressa sua intimidade com a

“experiência do choque”. É como se quisesse capturá-la, em vias de sua morte na consciência.

As Flores do Mal, sua obra poética analisada com proximidade por Benjamin (em seus

ensaios de Um lírico no auge do capitalismo), oferece uma visão da cidade grande debilitada

e, ao mesmo tempo, permanente aos seus olhos. “Essa cidade tomada por constante

movimentação se paralisa. Torna-se quebradiça como o vidro, mas, também como vidro,

transparente – ou seja, transparente em seu significado” (id., ib., p.81). Como já colocamos, o

vidro é “inimigo do mistério”.

Há, na cidade de Paris, a modernidade aliada à antiguidade. Existe, um tom de

ameaça, de perigo, no modo como se constitui. A experiência moderna se torna frágil, pois se

sabe do que foi, mas não do que virá. Daí a compreensão de Baudelaire da experiência em

meio a sua fragilidade e permanência, novidade e antiguidade. Paris se mantém de pé e

também suas tendências de desenvolvimento social. Entretanto, essa estabilidade acaba por

tornar frágil, instável, a experiência de tudo que esteve sob o signo do “verdadeiramente

novo”. “A modernidade é o que fica menos parecido consigo mesmo; e a antiguidade – que

deveria estar nela inserida – apresenta, em realidade, a imagem do antiquado” (id., ib., p.88).

Nesses moldes, é que os choques constituem a chave para a experiência em Baudelaire.

O restauro da faculdade mnemônica nas correspondências baudelaireanas traz uma

combinação intrínseca: experiência e culto. Elas são dados do “rememorar”. “O significado

que estas correspondances5 têm para Baudelaire pode ser definido como uma experiência que

procura se estabelecer ao abrigo de qualquer crise. E somente na esfera do culto ela é

possível” (id., ib., p.132). Nas correspondances, Baudelaire põe em evidência alguns dias,

destacados da linearidade temporal. São dias especiais que não se associam aos outros dias.

5 As correspondências são dois poemas assim intitulados, contidos em As Flores do Mal, em que o poeta ressalta a relação do belo (culto) com a Natureza. Julgamos importante dar destaque à imensa nota explicativa de Benjamin sobre o belo, exposta nas páginas 132 e 133 de Sobre alguns temas em Baudelaire. O belo pode estar ligado à natureza e à história. Conforme a história, o belo é um apelo ao elo com o que já anteriormente admirado. Sua aparência consiste na busca da admiração fora da obra. É recolhido, nesta admiração, o que as gerações anteriores nela admiraram. Ou seja, aquilo que já produziu grande efeito, não pode hoje ser mais absolutamente julgado. Em sua ligação com a natureza, o belo se relaciona com a imitação, a reprodução na obra de arte de algo indefinível. “As correspondances, representam a instância, diante da qual se descobre o objeto de arte como objeto fielmente reproduzido e, por conseguinte, inteiramente problemático” (BENJAMIN, 1994b, p.133). Como exemplo do caráter da obra de arte como cópia do belo, Benjamin fala de Proust que, em sua busca de reencontrar o tempo, reproduziu na sua forma loquaz de escrita o aspecto desconcertante de sua intenção, seu “aqui insuficiente”.

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Foram salvos do esquecimento. Apontamos um trecho de uma correspondência a seguir,

retirado de As Flores do Mal (BAUDELAIRE, 1981, p. 96).

Amo a recordação daqueles dias nus Em que Febo inundava as estátuas de luz, Quando homem e mulher na sua agilidade Folgavam sem engano e sem ansiedade.

Notamos a tentativa de resgatar um passado, cultuado no ato da escrita. “Aqueles dias

nus”, em que “homem e mulher folgavam sem ansiedade”, remetem-nos ao paraíso original,

uma vida anterior que parece nostálgica. Ao recordar a imagem traduzida na poesia, dá-nos

uma dimensão do quão ama o tempo remoto, distante, e o traz para o seu presente como

possibilidade de recordar. Outro aspecto que podemos mencionar é a falta de ansiedade em

que homem e mulher são apresentados. Na sensação moderna, esse aspecto é onírico, diante

da multidão que se acotovela nas ruas.

Outra forma poética colocada por Baudelaire é o spleen, de caráter melancólico, em

que encarna a experiência da morte, da efemeridade moderna. “No spleen, no entanto, a

percepção do tempo está sobrenaturalmente aguçada; cada segundo encontra o consciente

pronto para amortecer o seu choque” (BENJAMIN, 1994b, p.136). A apatia assola o homem

moderno, para quem a experiência se perdeu. Diz o trecho de O Gosto do Nada

(BAUDELAIRE, 1981, p.96).

Engole o tempo enfim a vida diminuta, Tal como a um corpo rijo a neve só brancor. Eu vejo do alto o globo curvo a se compor, E não procuro mais o abrigo de uma gruta!

O tempo aqui parece ignorar qualquer estímulo. É “engolido” pela vida insignificante,

pelo estado de alerta da consciência, sem cor. O homem (e o poeta), mesmo ao ver um

fenômeno natural – o “globo curvo” –, não se anima a cultuá-lo, não estabelece nenhum

envolvimento. Ele “vê” e “não procura”; o tempo “engole” e é “brancor”. Podemos destacar

dessas expressões a intenção de Baudelaire em fazer de seus versos semelhantes à sua

experiência, à da modernidade, à da atualidade.

Um tempo sem história, ou pré-histórico, como na mémorie involontaire. Há nessa

concepção temporal, “fragmentos desiguais e privilegiados” que objetivam ir da exacerbação

da vivência à verdadeira experiência. A experiência histórica, que Benjamin vê como

estilhaçada, fragmentada, é composta por Baudelaire. Ele corporifica o historiador

materialista que resgata o que foi esquecido, tornando-o presente no seu fazer artístico.

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Rememora as forças messiânicas, minadas pelo curso do via-a-ser. A história e a arte são

formas de rememoração. Com esse entendimento, parece mais claro para nós a correlação

entre a experiência baudelaireana e a histórica.

“Se no spleen (...), Baudelaire ainda dispõe dos estilhaços da verdadeira experiência

histórica, Bergson, por sua vez em sua concepção da durée, se afastou consideravelmente da

história” (id., ib., p.137). Estaria no spleen a presença da morte, a nudez da vivência. A morte,

então, é o elemento distintivo de Baudelaire em relação a Bergson. “A durée, da qual a morte

foi eliminada, tem a mísera eternidade de um arabesco; exclui a possibilidade de acolher a

tradição. É a síntese de uma vivência que se pavoneia nas vestes que toma emprestadas à

experiência” (id., ib., p.137). Ao tentar definir o sentido de experiência histórica, Benjamin

recorre à dimensão tradicional, teológica, que por sua vez está ligada à memória.

“O que é ‘teológico’ no espírito de Benjamin é a faculdade profana da memória de

destinar seu inacabamento à morte e ao sofrimento passado” (ROCHLITZ, 2003, p.240). Sem

essa incompletude inerente à morte e ao passado, o presente individual (da vivência), esquece

a dívida que tem com os vencidos que ficaram para trás. Nesse sentido, a durée de Bergson é

um exemplo desse esquecimento. Não remonta a um senso comunitário, de solidariedade.

Apesar de dar a merecida importância ao trabalho de Bergson, Benjamin faz aí a sua crítica à

duração.

Sobre a exclusão da morte, Olgária Matos (1998) complementa que, na civilização

industrial, agindo pelo princípio do rendimento, as manifestações da experiência vivida, como

o amor, a felicidade e a morte, são contidas. O homem estaria sendo esmagado pelos seus

próprios produtos, pela “especialização da duração” e “decadência da historicidade”. À luz

desse raciocínio, fazemos uma ponte com a durée de Bergson. A noção bergsoniana de

experiência estaria enclausurada pelo próprio motor do sistema capitalista, que dita quanto

vale cada hora de produção. É como se, nesses moldes, o tempo do trabalho sempre corresse

preenchido, igual ou alienante, na expressão de Marx. A repetição culmina em carência de

recordação.

Especificando-se a duração, que corrobora com o continuum, a memória tem um

sentido reparador, de recuperação da experiência do passado. Recorramos à Benjamin. “A

Grande Revolução introduziu um novo calendário. O dia com o qual começa um novo

calendário funciona como um acelerador histórico. No fundo, é o mesmo dia que retorna

sempre sob a forma dos dias feriados, que são os dias da reminiscência”. (BENJAMIN,

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1994a, p.230). As revoluções, assim, instauram uma nova concepção de tempo que é

abreviado, carregado de história, e os feriados marcam um outro tempo, em que retornam as

possibilidades do recordar. Ou seja, a memória se estabelece nesse esforço de rompimento, de

reiteração da experiência, em contraponto à cristalização do sentido.

Assim, a memória em Benjamin assume sua ligação direta com a história. Ambas

lutam contra o esquecimento e a sujeição ao passado anestésico. Nas ruínas, nas

reminiscências do tempo, mora uma força rejuvenescedora que nos desafia. A melancolia que

elas suscitam, como em um spleen baudelaireano, anuncia não apenas vestígios do que foi,

mas apelos à vitalidade da recordação.

***

FIGURA 4: Imemorial - Rosângela Rennó (1994)

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Tornar atuais imagens do passado, dar novos sentidos às fotografias encontradas,

questionar o documento fotográfico explorando suas potencialidades para além de seu caráter

de constatação, têm sido tarefas recorrentes da artista Rosângela Rennó. É conhecida como a

“fotógrafa que não fotografa”, por apropriar-se de imagens encontradas em jornais, revistas,

ateliês fotográficos, mercado de pulgas, álbuns de família, arquivos públicos, registros

criminais, penitenciárias e até mesmo no lixo. No caso da imagem anterior (Fig.4), Rosângela

trabalhou com base em 15.000 arquivos relativos aos empregados envolvidos na construção

de Brasília, que foram encontrados em um armazém do Arquivo Público do Distrito Federal.

O nome da obra – Imemorial - já aponta para o questionamento que Rennó levanta

acerca do esquecimento desses trabalhadores. Brasília, cidade projetada para ser símbolo do

progresso, foi erigida pelas mãos desses homens anônimos, silenciados no transcurso da

história. De que memória falamos ao nos lembrarmos da criação de Brasília? A desses

homens? Certamente, não. Rennó resgata essas ruínas e as reposiciona em um outro contexto,

para falar de uma Brasília de que nos esquecemos. As imagens das crianças e dos

trabalhadores, como achados em um baú antigo e abandonado, são expostas por Rennó ainda

com marcas de ferrugem da catalogação por quais passaram.

Merewether (1997, p.160) expõe que, em Imemorial, Rennó utiliza histórias sobre o

“massacre nas barracas da obra e de dezenas de trabalhadores que morreram no processo de

construção de Brasília e foram enterrados nas suas fundações. Nos arquivos, esses

trabalhadores foram classificados como ‘dispensados por motivo de morte’”. Acontecimentos

como esse tornam enfáticos o alerta benjaminiano sobre o continuum da história. E da

melancolia advinda com esse conhecimento do massacre da história dos vencedores, Rennó

não cruza os braços e luta pela memória dos vencidos.

Esquecidos à sombra de um passado anestésico, os rastros desses trabalhadores são,

para Rennó, elementos de uma reescrita histórica. A artista atua na força rejuvenescedora que

existe nos cacos do historicismo. E nada mais favorável ao ato rejuvenescedor do que a tarefa

de recolher esses cacos sujeitos à força do esquecimento e torná-los visíveis em uma

construção artística. Como coloca Merewether (1997), Imemorial representa uma atitude

redentora dos corpos caídos na construção de Brasília.

Espezinhados no passado, aqueles que se empenharam na construção do futuro

figuram na obra de Rennó como ressuscitados. Apaziguando a dor do passado, as imagens,

em uma narrativa diversa, apelam para a vitalidade da lembrança – seja questionando a

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verdade histórica, seja apontando para a incompletude da memória. A tarefa de Rennó

conteve o empenho benjaminiano de atentar para a descontinuidade do tempo e, por isso, os

vestígios do que foi carregam a obra de um sentido reparador.

***

1.3. A ruína é uma miniatura de mundo

Ao pensarmos na dispersão de ruínas, anteriormente citada na “tese” do anjo da

história, tomamos aqui esse aspecto como central. Benjamin recorre às ruínas em seu caráter

alegórico, como presentificação do vivo no morto. Esse aspecto é tratado com ênfase em

Origem do drama barrroco alemão, em que as ruínas são para o pensamento barroco o que

devem ser para o historiador materialista. Em outros textos, as ruínas também trazem esse

direcionamento alegórico. Então, antes de tudo, é interessante esclarecer o contexto do drama

barroco, para daí esclarecer o sentido de alegoria e sua implicação para pensarmos a ruína.

O homem barroco está imerso em catástrofes porque sua história natural (história-

destino) é esvaziada de “força messiânica”. Eliminou-se a transcendência ao preço de se

secularizar a religião do século XVII, em que tanto a vida humana quanto a sua salvação

foram concebidos profanamente. A imanência passou a cegar a história e, com isso, tornou-a

natural, ameaçadora. Assim, a história não tendo intencionalidade messiânica, passa a ser

história da natureza, sucessiva, formada por catástrofes que culminarão na “catástrofe final”.

Nesse sentido, a percepção da história barroca como natureza traz como proposta ideal a

política absolutista (na figura do Príncipe) como estabilização profana, imanente, em que a

ordem deve ser sempre restaurada e a história se faz naturalizada (terrena, evolutiva). Desse

contexto se originou o drama barroco, no qual Benjamin se debruça como alegórico.

“A fisionomia alegórica da natureza-história, posta no palco pelo drama, só está

verdadeiramente presente como ruína” (BENJAMIN, 1984, p. 199-200). Se Benjamin volta

frequentemente ao aspecto arruinado, dramático do barroco para se expressar, é porque os

fragmentos do mundo lhe dizem muito. A palavra escrita, no barroco, tende a expressar-se

visualmente, como na alegoria. “Na esfera da intenção alegórica, a imagem é fragmento,

ruína. Sua beleza simbólica se evapora (...) o falso brilho de totalidade se extingue” (id., ib,

p.198). Símbolo e alegoria, então, distinguem-se6. O primeiro carrega uma intenção de

6 Há quem diga que “a alegoria engloba o símbolo, transcendendo-o” (KOTHE, 1976, p.35).

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totalidade, é arbitrário, tem o caráter de convenção. A segunda é incompleta, despedaçada,

dialética, aberta a significações, pois “a ambiguidade, a multiplicidade de sentidos é o traço

fundamental da alegoria. A alegoria, o Barroco, se orgulham da riqueza de significações” (id.,

ib., p.199).

Na sua relação com a história e com a natureza, o alegorista é aquele que mata. Mata

a totalidade, os episódios contextualizados e os chama a significar fora do contexto. Essa

presença da morte consiste na “exposição barroca, mundana, da história como história

mundial do sofrimento, significativa apenas nos episódios de declínio (...) Mas se a natureza

desde sempre esteve sujeita à morte, desde sempre ela foi alegórica”. (id., ib., p.188). Ao lado

da significação, então, está a morte, o sofrimento. Isso acontece porque, para significar um

objeto, o alegorista o esvazia, retira seu “brilho”, transforma-o em ruína, para daí convertê-la

em saber. Então, a morte é tanto o que permite construir a alegoria, como é o que nela é

representado. A pretensão de totalidade da história natural se enfraquece assim como a

totalidade simbólica. Significando, pois, o alegorista quer salvar a história das leis do destino.

Com base nesses primeiros aspectos, que se dirigem à visão barroca da história, é que

cremos melhor elucidar a ruína (ou ruínas) benjaminiana. Ruína e história, em Benjamin (ib.),

estão intimamente entrelaçadas. Sensorialmente, como ruína, a história se fundiu com o

cenário de inevitável declínio. Podemos relembrar o que já expomos sobre história no tópico

1.1 (“Hístor é testemunha ocular, aquele que viu”) e identificar, também, essa fusão. Na

concepção barroca, temos uma valorização evidente dos fragmentos como princípio

construtivo. Ruínas e fragmentos criam, constroem alegorias. Nesse gesto de criação, a

alegoria é violenta, pois extrai do fluxo da história-destino um fragmento de intemporalidade.

A violência carrega um sentido positivo, pois quer redimir pelo conhecimento.

“As alegorias são no reino dos pensamentos o que são as ruínas no reino das coisas

(...) O que jaz em ruínas, o fragmento significativo, o estilhaço: essa é a matéria mais nobre da

criação barroca” (id., ib., p.200). A ênfase dessa criação não trata o fragmento, a ruína como

“reminiscência antiga”. É uma “sensibilidade estilística contemporânea”. Daí ser comum às

obras literárias do período barroco acumular fragmentos e experimentar combiná-los.

Podemos dizer que elas, como Benjamin (e sua escrita assistemática), respiram a mesma

intenção estética. A falta de hierarquia, de unificação, faz do princípio construtivo ars

inveniendi (arte de inventar), combinação de elementos antigos.

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Do estilhaço dotado de significação, extraímos um sentido messiânico dado à criação

barroca. Ao arrancar o fragmento de sua morte forçando-o a significar, o alegorista muda o

percurso temporal catastrófico, no qual a história-destino se sedimenta. Estaria na raiz de

todas as obras significativas essa força de transformação. É isso que, ao entender de

Benjamin, faz o drama barroco durar. Desde o início, as obras típicas do barroco estavam

destinadas à destruição pela crítica. Morrer era o destino delas. “Seu halo se extinguiu, porque

era dos mais grosseiros. O que dura é o estranho detalhe das suas referências alegóricas: um

objeto de saber, aninhado em ruínas artificiais, cuidadosamente premeditadas” (id., ib.,

p.203). Assim, a beleza que dura nessas obras está na alegoria, que sobreviveu à

artificialidade das ruínas como objeto de saber. Saber que dá vida ao morto.

A raiz que liga as obras barrocas à alegoria tem uma inclinação para o vivo ainda que

sob a máscara do morto. A mortificação dessas obras pela crítica é ponto de partida para o

despertar de sua beleza adormecida, de seus estilhaços carregados de história. Afirmando-se

como ruína (não mais artificial, mas alegoricamente), a obra pode renascer. “Na estrutura

alegórica do drama barroco sempre se destacaram essas ruínas, como elementos formais da

obra de arte redimida” (id,. ib., p.204). Assim, na redenção, associamos a força alegórica à

força “messiânica” também inerente à história, que se trata de trazer à tona o que poderia ter

sido e não foi. Mas isso só se faz possível quando o alegorista escapa à história-destino.

Por ser, concomitantemente, “imagem fixa e signo com o poder de fixar”, sua

utilização fica a cargo do alegorista que a significa e ao mesmo tempo a neutraliza. Essa dupla

atividade constrói uma escrita cuja imagem é ruína. Inevitável não comparar essa

neutralização ou cristalização alegórica à imobilização messiânica da história, relampejante.

O alegórico seria o “agora” atual. É identificada uma correspondência entre alegoria barroca e

história barroca, sendo esta última anti-história e não história-destino. Rouanet (1984, p.42)

assinala que “através da figura da morte, a alegoria se relacionava com a história-destino e,

através da significação, com a anti-história”.

Em um outro texto, Benjamin (1995, p.236) apresenta o que chama de caráter

destrutivo. Notamos, em suas palavras, algumas ligações com o perfil alegorista. “O caráter

destrutivo só conhece um lema: criar espaço; só uma atividade: despejar. Sua necessidade de

ar fresco e espaço livre é mais forte que todo ódio”. Se substituirmos “despejar” por

“significar”, compreenderemos o mesmo sentido da tarefa alegórica, que é de dar significado

ao fragmento morto, preenchendo-o, salvando-o. De maneira análoga, em outra passagem, é

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destacada no caráter destrutivo a atividade de intervir no ritmo da “natureza” a fim de impedir

a “catástrofe final”, designada pela ordem do destino. “O caráter destrutivo está sempre

trabalhando de ânimo novo. É a natureza que lhe prescreve o ritmo, ao menos indiretamente;

pois ele deve se antecipar a ela, senão é ela mesma que vai se encarregar da destruição”.

Indo mais além,

O caráter destrutivo tem a consciência do homem histórico, cujo sentimento básico é a desconfiança insuperável na marcha das coisas e a disposição com que, a todo momento, toma conhecimento de que tudo pode andar mal. Por isso o caráter destrutivo é a confiança em pessoa. (...) O que existe ele converte em ruínas, não por causa das ruínas, mas por causa do caminho que passa através delas. (id., ib., p.237).

Fundir a visão alegórica à do historiador é crucial para Benjamin. Ele reitera a

importância dessa fusão na descrição do caráter destrutivo que “converte em ruínas” as coisas

do mundo para que, assim, possa ver “caminhos”, “significados” dentre elas. No seu

sentimento de desconfiança da “marcha das coisas”, ele traz para si a possibilidade de

“conhecimento” do malogro da história. Não ficando de olhos fechados para esse malogro, as

ruínas são, para ele, alegóricas, já que podem ser transformadas, experimentadas de uma nova

forma. Vemos assim entrelaçadas três disposições em interromper o curso do mundo: a do

historiador, a do alegorista e a do caráter destrutivo. Em todas, de uma forma ou de outra, os

fragmentos, os destroços são cruciais para que essa interrupção na marcha ocorra.

A visão alegórica do mundo, de ver a vida a partir da morte traz uma sensibilidade que

não se encerra na inversão dos termos. Ela é mais aguçada, em outras palavras, na faculdade

de perceber a morte existente na vida. É por isso que, para Benjamin, a obra de arte (mais

especificamente tratada em seu estudo do drama barroco) é ruína: ela não apenas indicia o que

foi, mas as potencialidades não construídas historicamente, o lamento da felicidade perdida no

passado. Ruína enquanto obra é índice, registro de esperança, pois uma vez “mantido o

registro, mantém-se a promessa de felicidade, eventualmente realizável. Se realizada, a arte

seria, talvez, dispensável, pois a vida mesmo seria ‘artística’” (KOTHE, 1976, p.42).

Estaria na alegoria (que etimologicamente significa “dizer o outro”) o prenúncio da

“aura”7, que também tem sua ligação histórica. A obra de arte aurática cristaliza algo distante

no tempo e no espaço, e sua destruição se configura com o advento das técnicas de

reprodutibilidade. Benjamin (1994a) coloca que o homem perde sua ligação com a tradição,

aquela que tem correspondência com o original, transmitido de geração em geração, como

7 Aura: o “aqui e agora” do original. “Aparição única de uma coisa distante, por mais perto que esteja”.

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colocamos acerca da narrativa no tópico anterior. A perda ou destruição da aura seria o corte

desse elo distante no qual estava impregnada a força primitiva, a “percepção original”. O

declínio da aura, assim, foi impulsionado pela paixão das massas modernas em “fazer as

coisas ficarem mais próximas” pela sua reprodutibilidade. Mas isso ainda não nos diz muito.

Comentando essa quebra com o elo original, Rochlitz (2003) aponta que a aura em

Benjamin, niilista, sempre está associada à destruição e ao declínio. Destruir, porém, é

desmascarar, desnudar a “falsa aparência”, é ser bárbaro. “À medida que a idéia de uma

autonomia da arte está ligada, para Benjamin, à aura mágica e religiosa, ela não tem mais

razão de ser e apresenta, doravante, um caráter puramente ilusório”. (id., ib., p.219). É preciso

redimir na ruína toda realidade falsa e ilusória. A obra de arte pode ser ruína, na atualidade, de

pluralidade de significações. Esse papel de escavação da obra cabe a mais uma disposição em

descontinuar o curso da história: a do crítico.

Para o crítico da obra de arte, o passado deve ser capturado em função de sua

atualidade, de sua plurivocidade. Assim como o passado é aberto para o historiador dialético,

deve ser também a obra para o crítico. O caráter autônomo de cada uma não pode ser reduzido

ao mero documento sócio-histórico do que houve no passado. Sua autonomia está também em

ser ruína (e paralelamente não-ruína) de algo que não houve, de ficções, de concretizações em

aberto, de alternativas à realidade. A obra é ruína de “algo não havido”, por isso, inconsciente.

Em Rua de mão única, Benjamin (1995) define alguns direcionamentos do crítico,

reunidos no que nomeou de A técnica do crítico em treze teses. A terceira “tese” diz que o

crítico “não tem nada a ver com o intérprete de épocas artísticas passadas” (id., ib., p.32). Ou

seja, seu interesse é no resgate do passado da obra que repercute em presentes posteriores e

não a interpretação do passado circunscrito na época artística. Criticar é apreender o passado

da obra no diálogo com a atualidade do próprio crítico e, nesse diálogo, perceber o “rosto” de

uma época que o autor faz presente. Benjamin acrescenta na oitava “tese” que “a posteridade

esquece ou celebra. Só o crítico julga no rosto do autor” (id., ib., p.32).

A celebração de determinadas obras, movimentos artísticos, em detrimento do

esquecimento de outras, demonstra um problema que se dá na relação da história com a arte.

O que denominamos de “história da arte” só nos mostra a concretização de períodos em que

artistas-autores celebrados se inserem na lógica do tempo linear. Contudo, o crítico, como

Benjamin aponta acima, julga a obra na sua inter-relação contemporânea com o artista, seu

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tempo, seu “rosto”. Essa inter-relação se estabelece ao passo que o crítico considera a

obra/autor como autônoma, ruína.

Na visão crítica, o passado precisa ser melhor compreendido pois nele já se aninhava o

presente. Aí está a astúcia de sua atividade: atentar para a existência do presente no passado.

Essa tarefa está diretamente ligada à ressurreição. Quando lembramos a análise que Benjamin

faz da obra de Baudelaire e, até mesmo, do próprio Baudelaire em relação a de Constantin

Guys (o pintor da vida moderna), temos, em ambos, exemplos dessa atuação crítica. Ambos

apreendem a fisionomia de uma época nas obras ao mesmo tempo em que elas. É o exercício

de ver uma “historiografia inconsciente” nas obras, como coloca Kothe (1976). É o exame

duplo da obra: tanto como fenômeno social, quanto como mônada. Isso implica em “decifrar

o pacto fugaz” entre as forças contraditórias da obra (passado e presente) no intuito de

capturar, atualizar essas forças como em um sonho.

O estudo da obra “deve ser (...) o mover-se na tensão entre estas duas posições. A

‘intemporalidade’ da obra de arte, como a ‘intemporalidade’ do inconsciente, é

transtemporalidade” (id., ib., p.46). Assim, cabe ao crítico transpor dimensões temporais,

desnudar passados para prever futuros, combinar passado, presente e futuro. Contida nessa

relação temporal do crítico, está seu esforço em contrastar utopia e realidade da obra de arte

que, em outras palavras, é ver a alegoria presente na ruína. Daí surge a correspondência entre

a obra de arte/ruína/alegoria e a história. A obra é ruína alegórica que testemunha o sido e o

não-sido da história, uma vez que documenta um passado concretizado e aponta, ao mesmo

tempo, para o que poderia ter sido e não foi (o sonho).

***

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FIGURA 5: Série Vermelha - Rosângela Rennó FIGURA 6: Série Vermelha –Rosângela Rennó

(2000) (2000)

Nessas imagens, Rosângela Rennó não nos oferece claramente, à primeira impressão,

os sujeitos fotografados. Encobertos pela cor vermelha, os retratados só se tornam mais

visíveis ao nos aproximarmos mais das imagens. Como é característico da artista, os

documentos fotográficos são manipulados de forma a fabricar um outro contexto para as

pessoas retratadas. A cor foi um dos artifícios usados para envolver as fotografias com outra

atmosfera, não existente nos originais. Há um jogo entre o visível e o invisível.

Composta por imagens digitais realizadas a partir de originais do século XX obtidos

em álbuns de famílias e negativos de vidro, com pessoas vestidas de militares, a Série

Vermelha (Fig.5 e Fig.6) encobre a identidade dos fotografados como um véu. Rennó, com

essas pessoas anônimas – no caso das duas imagens, crianças -, traz à tona certa opacidade à

normatividade dos militares. Quando olhamos cada imagem, precisamos ultrapassar uma

barreira. O véu vermelho nos convida a olhar além do opaco.

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É curioso como, nessas imagens, a artista, ao mesmo tempo em que trabalha o

exercício do olhar, coloca-nos também em um posicionamento crítico quanto ao controle

social exercido pelos militares. A inocente figura da criança dentro da retidão do fardamento

agita o espectador para uma reflexão histórica do passado. Mas não explicitamente pelo que

significou o autoritarismo para o adulto no século XX. Na verdade, a criança, por herdar esse

comportamento disciplinar, transmitido à sua geração, não pôde ter outra escolha. O que estas

fotografias falam não equivale a um fato datado, uma prova, um documento. É mais que isso.

São vozes, murmúrios das realidades possíveis para esses sujeitos captados pela câmera.

As crianças acima retratadas apontam para uma infância que poderia ter sido de

maneira diversa. Não mais são crianças. Cresceram. E olhar para elas vestidas com essas

fardas põe-nos a questionar quantas possibilidades de serem crianças lhes podem ter sido

vetadas. A vida militar da época lhes impunha não apenas um fardamento, mas uma forma de

pensar baseada no rigor, na ordem. Rennó tinge de vermelho essa infância para dar a ver

tantas outras.

A criação de realidades é trabalhada pela a artista como forma de denúncia social, de

apelo. Os anônimos da série, ruínas de uma continuidade histórica, puderam, em um novo

contexto, agir no presente. Lembrando Benjamin, assumimos uma postura passiva diante do

passado quando seguimos a marcha desse tempo histórico contínuo. Não é o caso de Rennó e

não pode ser o caso da obra de arte quando carrega o papel do crítico. Como ruínas

alegóricas, as imagens da série transpõem o tempo, desnudando passados e apontando futuros.

As veladuras e apagamentos intencionais nas imagens não as tornam menos

verdadeiras. Há um embate entre aquilo que vemos e o que podemos ver, entre o que foi e o

que poderia ter sido. O sonho se configura na atualização dessas forças temporais. É nessa

direção que aponta a crítica aos documentos fotográficos. Está subjacente a eles um passado

que precisa ser melhor compreendido, uma historiografia inconsciente. Rennó atua nesses

desvelamentos do tempo nas imagens.

***

Também como ruína alegórica pode ser vista a própria história enquanto detrito da

possibilidade concretizada (consciente) e índice do que não se concretizou (inconsciente). A

aparência e as ocultações do passado, dessa forma, são decisivas para o trabalho do

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historiador crítico ou do crítico alegórico. Na dialética de ambas, luta-se contra um passado

consumado, incapaz de se fazer ressoar no presente e de antecipar-se ao ritmo da marcha. É

possível estar atento ao futuro que já dava seus primeiros acordes anos, séculos atrás.

Benjamin viu essa disposição não só em Baudelaire, mas em Balzac.

Balzac soube prever as ruínas da burguesia mercantil em Paris. Reconheceu os

monumentos burgueses como frágeis, efêmeros, fadados à destruição antes mesmo que eles

desmoronassem. Benjamin (2007, p.126) cita um fragmento do escritor:

“As ruínas da Igreja e da Nobreza, as do Feudalismo, da Idade Média são sublimes e hoje

enchem de admiração os vencedores, que ficam surpresos, boquiabertos; mas as da Burguesia

serão um ignóbil detrito de cartonagem, de gessos, de coloridos”. Estava ali, no auge do

século XIX, o anúncio de seu próprio fim. Passagens, intérieurs, pavilhões de exposição,

folhetins, publicidade, mercadorias, panoramas. Indícios de um mundo burguês efêmero como

resquícios de um mundo onírico.

A utilização dos elementos do sonho no despertar é o caso exemplar do pensamento dialético. Por isso, o pensamento dialético é o órgão do despertar histórico. Cada época sonha não apenas a próxima, mas ao sonhar, esforça-se em despertar. Traz em si mesma seu próprio fim e o desenvolve – como Hegel já o reconheceu – com astúcia. Com o abalo da economia de mercado, começamos a reconhecer os monumentos da burguesia como ruínas antes mesmo de seu desmoronamento (id., ib., p.51).

Passagens é o alvo desse pensamento dialético, alegórico, crítico. Essa obra é uma

imensa coleção de notas e citações em que, Benjamin, num empenho surrealista, agarra-se

compulsivamente aos detritos da sociedade. Como colecionador, ele se assemelha ao

“trapeiro”, que encontra nos dejetos, nos objetos ignorados, o tesouro de sua obra. Ele os

resignifica, transforma-os em matéria de seu conhecimento, faz com que contenham uma

outra história que a sociedade da época não nos contou. Na coleção, é montada uma nova

“totalidade” cujos fragmentos, introduzidos em novo contexto, libertam-se de sua função

originária. Revela-se para nós um novo “rosto” de uma época.

Há, nessa intenção do colecionador, o empenho de escrever a história como mônada,

em que os “detritos” revelam toda uma época, assim como o microcosmo contém e espelha o

macrocosmo. Nas palavras de Benjamin (id., ib., p. 241): “colecionadores são fisiognomistas

do mundo das coisas”. Assim, dos autores célebres aos anônimos, a obra-coleção das

Passagens reúne, em pé de igualdade, citações dos mais diversos tipos para que o todo

comunique a fisionomia das coisas e do tempo. Cada fragmento é selecionado com a atenção

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de um trapeiro que, não podendo recolher todos os cacos, preocupa-se com que cada um,

eleito, contenha o todo.

Junto ao colecionador-trapeiro, dessa forma, avizinha-se o historiador e o alegorista,

assim como o próprio crítico. Comenta Marcio Selligmann-Silva (1999, p.185): “O

colecionador/historiador/alegorista quer salvar na sua arca8 (...) o máximo possível de ruínas

da enchente/tempestade chamada progresso/fascismo”. Nesse gesto, de salvar as coisas de seu

destino ignóbil, o colecionador dá um novo salto no céu da história. Daí entendermos que,

para a ruína, ainda há história por ser escrita, uma história inconsciente, a ser revelada. Sob

sua máscara mortuária, está o indício de sua redenção, do seu futuro a ser libertado.

Somemos às disposições em deter o curso da história, então, a do crítico e a do

colecionador, que fazem das ruínas caminho de conhecimento. Ao interpretar as obras de arte

ou ao recolher os cacos no presente, eles rejuvenescem o tempo, desconstroem a ordem

causal. As ruínas desafiam a dimensão espacial com o caos das lembranças (o sido, o ainda, o

não-sido). São vestígios invisíveis, melancolia que sorri.

Olgária Matos (1998, p.83) assim caracteriza o “instante único” das ruínas:

As ruínas contrariam o devir abstrato do tempo, compensando a sistemática tripartição – antes, durante, depois – pela dinâmica pas encore (ainda não) e jamais plus (nunca mais). (...) Instante único, elas atestam um tempo antes do qual nada foi consumado e depois do qual tudo está perdido.

1.4. Fotografar é revelar

Já estava ali, submersa há tempos antes de seu advento, o fenômeno da “escrita com

luz”. Em 1839, o daguerreótipo é inventado justamente após o incêndio do panorama de

Daguerre. Benjamin (2007, p.42) menciona que essa invenção foi um desconsolo para muitos

pintores. “A fotografia provoca a ruína da grande corporação de pintores miniaturistas”. Há,

neste momento, todo um debate entre os artistas sobre o valor artístico da fotografia. Além

das razões econômicas que provocam a ruína dos pintores, os primórdios da fotografia

demonstram superioridade artística em relação aos retratos em miniatura. Constatação esta

decorrente de uma razão técnica - o fotografado precisava manter-se concentrado por um

longo tempo de exposição – e de uma razão social, que era o pertencimento dos primeiros

fotógrafos à vanguarda, de onde vinha grande parte de seus clientes. Contudo, “a tentativa de

provocar um confronto sistemático entre arte e fotografia era inicialmente fadada ao fracasso.

8 O autor se refere à “arca construída segundo um modelo judeu”. As Passagens seria essa enorme “arca”.

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Esse confronto só poderia ser um momento do confronto entre arte e técnica, realizado pela

história” (id., ib., p.717).

Benjamin, em sua Pequena história da fotografia, ao comentar o frágil conceito

antitécnico e fetichista de arte que a nova técnica instaurou, enfatiza o vazio que se deu no

longo debate dos teóricos da fotografia que se ocuparam em abominá-la sem chegarem a

nenhum lugar. Julgaram-na sob o mesmo pilar que ela havia destruído. O fato de a fotografia

estar ligada, diretamente, à representação do real por um meio mecânico foi um dos motivos

que a fizeram tomar muito do espaço destinado à pintura. Os pintores que tomavam a

realidade como paradigma para suas obras, logo perceberam que, por mais detalhistas que

fossem, não iriam ser tão verossímeis quanto a reprodução que uma imagem fotográfica

prontamente alcançaria.

Os primeiros clichês, placas expostas na camera obscura, eram como joias, peças

únicas. Por volta de 1840, os álbuns de família marcavam o glamour que os retratos de

homens influentes faziam questão de possuir. Hill, famoso retratista da época que utilizava a

fotografia como auxílio à pintura, teve seu nome transmitido à história pelo uso das

fotografias e não pelo seu mérito de pintor. A pintura já conhecia esses retratos. Então, para

Benjamin (1994a), interessa mais pensar a introdução da nova técnica a partir de imagens de

pessoas anônimas, que a história do primeiro decênio pré-industrial da fotografia ainda não

havia mostrado. Imagens essas que não se dirigem ao gênio do autor. Nelas, existe uma

magia, “algo de estranho e novo”.

A “magia” estranha que os rostos anônimos passaram a revelar está na possibilidade

de neles ser desvendado o “inconsciente ótico” do que é alvo da câmera. Isso quer dizer que,

além de um planejamento acurado do fotógrafo ao produzir sua imagem, resta uma “pequena

centelha do acaso” em um “lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em

minutos únicos, há muito extintos” (id., ib., p.94). É neste lugar descoberto “olhando para

trás” que o observador buscará fixar-se. É o despertar de imagens adormecidas, ocultas no

acaso que chamuscou a imagem apreendida pelo fotógrafo - sem que ele tenha planejado.

Esses retratos, na visão profética de Benjamin, atestam que “a técnica mais exata pode dar às

suas criações um valor mágico que um quadro nunca mais terá para nós” (id, ib. p.94).

***

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FIGURA 7: Les suisses morts - Christian Boltanski (1990)

Em Les suisses morts, temos vários rostos participando da instalação. Idosos, jovens,

criança, lado a lado, compõem um mural fisionômico. As expressões faciais se diversificam.

E inevitavelmente, pelo título da obra, associamos a morte a todos esses rostos. “Os suíços

mortos” dirigem ao espectador, ainda que com expressões descontraídas e singulares, uma

indagação: qual foi a nossa história? Qual nossa individualidade? O anonimato das fotografias

nos questiona acerca de suas particularidades.

“Os suíços mortos” são pessoas humanas, cotidianamente esquecidas, e que, pelo

trabalho de Christian Boltanski, vêm novamente à tona, em uma outra construção.

Percebemos, inclusive, como ele trabalha a disposição das imagens para compor sua obra -

compilando as expressões e iluminando-as, ocultando e revelando-as. Faces fadadas ao

esquecimento, entretanto, como obra, inverte-se sua banalidade em significância, em

imaginação.

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Esses rostos não se tratam das primeiras fotografias, como coloca Benjamin quando

expõe sobre o caráter mágico das primeiras pessoas fotografadas. Boltanski coletou esses

semblantes de obituários de um jornal suíço e, eliminando dessas imagens qualquer tipo de

identificação, os sentidos para elas são reelaborados. O deslocamento de um contexto

midiático para um contexto artístico retira desses “mortos” informações sobre a vida de cada

um. Isso faz com que suas vidas sejam imaginadas por quem os vê. É recorrente em Boltanski

trabalhar com os temas da morte e do anonimato de forma a devolver um despertar às

imagens. Nisso, identificamos um empenho benjaminiano. Do acaso que chamuscou as

fotografias em um dado momento passado, vem à tona um futuro não previsto.

E por que mortos suíços? Qual seria a diferença deles? Boltanski responde que:

“porque os suíços não têm razão de morrer, em todo caso não por razões históricas” 9. O

artista, assim, aponta para uma morte que independe de país, raça, religião. Morte que

independe de guerra ou identidade. Por razões históricas ou não, muitas pessoas comuns

morrem e são esquecidas. A obra também acena para o grande número de judeus mortos,

durante a segunda guerra, dizimados por “razões históricas”. Inclusive, Boltanski é de família

judaica e dedica vários de seus trabalhos à memória do Holocausto.

O artista faz questão de mexer na amnésia das imagens e, consequentemente, naquela

de quem vê. Os indivíduos esquecidos, sem identidade, transformam-se em matéria

incorpórea, pois não mais são os do jornal suíço nem os possíveis judeus dizimados. Eles são

a própria ausência de um tempo que os identifica. Se resta alguma individualidade para os

rostos apresentados, ela não está no lugar de onde vieram, no contexto em que viveram, nem

no veículo midiático em que foram publicadas suas imagens. O que Boltanski sublinha com

esse trabalho é a humanidade que se desprende das barreiras cronológicas e historicistas.

***

A natureza que fala à câmera – o consciente - é diferente da que fala ao olhar

observador. Essa última “(...) é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado

conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente” (BENJAMIN,

1994a, p.94). Ou seja, a fotografia dá a ver um mundo pelo congelamento dele na sua “exata

9 Tradução livre de “parce que les Suisses n'ont pas de raison de mourir, en tous cas pas de raisons historiques”. Disponível em: <http://www.centrepompidou.fr/education/ressources/ENS-boltanski/ENS-boltanski.htm>.

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fração de segundo”. Percebemos na imagem congelada aquilo que não perceberíamos sem ela

(graças às suas possibilidades de ampliação, controle de tempo). Esse é seu “inconsciente

ótico”.

Mas ao mesmo tempo a fotografia revela nesse material os aspectos fisionômicos, mundos de imagens habitando as coisas mais minúsculas, suficientemente ocultas e significativas para encontrarem um refúgio nos sonhos diurnos, e que agora, tornando-se grande e formuláveis, mostram que a diferença entre a técnica e a magia é uma variável totalmente histórica (id., ib., p.94-95).

Cabe aqui resgatar o porquê dessa variável histórica. Como expomos anteriormente, o

historiador dá fisionomia às épocas e, para isso, atenta para os resíduos ignorados pelo curso

contínuo do tempo. Ao articular uma nova construção histórica, ele dá relevo, significado, a

fenômenos que o passado da historiografia tradicional oculta. Nesse sentido, Benjamin

percebe a força mágica ou “messiânica” que a fotografia pode trazer à tona. Essa força

inconsciente, onírica, habita o minúsculo que a técnica mais exata apreende em “instantes

únicos”. Não foi por acaso que sua atenção se voltou para os rostos anônimos. Eles eram

ruínas. Ruínas da história, do tempo instantâneo moderno e progressivo que a fotografia

passou a representar com o advento das técnicas de reprodução. O que Benjamin percebe e

quer reforçar são os acenos, as centelhas de um futuro que relampeja nas imagens, a presença

do antigo no novo.

“As primeiras pessoas reproduzidas entravam nas fotos sem que nada se soubesse

sobre sua vida passada, sem nenhum texto escrito que as identificasse” (id., ib., p.95). Os

jornais e revistas ainda não faziam dessas fotografias seu instrumento. Esses rostos não

tinham contato com a vivência dos choques urbanos, não carregavam consigo informações

dadas da atualidade, estabelecidas por quem se interessa pela venda de notícia. O olhar

repousava no silêncio que rodeava o rosto humano. Silêncio este, possível pelo

distanciamento, pela falta de vínculo da fotografia com os eventos e burburinhos da

atualidade da época. Nesses primeiros retratos, a fraca sensibilidade para fixar a imagem

exigia um tempo longo de exposição e imobilidade do modelo. Nelas, a expressão humana

tinha tempo para crescer dentro do momento da fotografia.

Como crítico, na busca das melhores obras que falem de forma autônoma sobre o sido

e o não-sido da história, Benjamin via nos rostos anônimos captados por Hill uma suspensão

do tempo. Neles, resvalava um tempo persistente, durável, que impregnava a imagem em que

o modelo vivia dentro do instante, devido à longa duração de sua pose. Esse tempo persistente

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e, por assim dizer, mais durável das fotografias, evocava no observador uma impressão

também mais duradoura, diferente do instantâneo10. Estaria nessa impressão mais durável,

também, a fisionomia da época.

Tudo nessas primeiras imagens era organizado para durar; não só os grupos incomparáveis formados quando as pessoas se reuniam, e cujo desaparecimento talvez seja um dos sintomas mais precisos do que ocorreu na sociedade na segunda metade do século, mas as próprias dobras de um vestuário, nessas imagens, duram mais tempo (id., ib., p.96).

O que se mostra nessas imagens duradouras está também no que nelas se prenuncia da

época. Benjamin aponta, nessa passagem, o desaparecimento do senso comunitário, coletivo,

ou seja, a morte da experiência na segunda metade do século XIX que se anunciava. É como

se essas imagens nos comunicassem um apelo, para que se olhe para elas à procura do

“rosto” do tempo. Estaria abrigada nos rostos fotografados a faísca do acaso, escondida no

pequeno detalhe, que persiste, mesmo na dobra de um vestuário. Há neles algo de definitivo,

não datado, feito para ficar.

O invisível, escondido no continuum entre o claro e o escuro, ou entre a luz e a

sombra, era, vale ressaltar, fruto da convergência entre objeto e técnica, que foi tão completa

nesses primórdios quanto sua dissociação, no momento de decadência. O “equivalente

técnico” das primeiras fotografias as distinguia claramente dos instantâneos, pelo já citado

longo tempo de exposição, assim como a técnica do mezzo tinto, “uma florescência única”

advinda da pintura. “O mesmo pode se dizer do condicionamento técnico do fenômeno

aurático” (id., ib., p.99). Fotógrafos, a partir de 1880, esforçaram-se em “criar uma ilusão de

aura” e, para isso, utilizaram os mais diversos recursos, dentre os quais se destacou o retoque

por off-set. Caiu na moda um “tom crepuscular”, artificial, que “apesar dessa penumbra,

distinguia-se com clareza crescente uma pose cuja rigidez traía a impotência daquela geração

em face do progresso técnico” (id., ib., p.99).

No retrato de Kafka criança, Benjamin reforça essa ligação dos fotógrafos ao

“simulacro”. Os álbuns de família burgueses da época eram produzidos por ateliês que, com

cenários de palmeiras, colunas de mármore, tapeçarias, submetiam os modelos a uma

torturante representação diante da câmera. Vestido com uma roupa sufocante, adornada com

rendas, segurando um grande chapéu do tipo espanhol na mão esquerda, sob um fundo com

palmeiras tropicais imóveis, Kafka quase desaparece na fotografia se não fosse seu olhar triste

10 Benjamin opõe a durabilidade das primeiras fotografias ao instantâneo, que se trata das fotografias modernas. O instantâneo era tirado em uma “fração de segundo”.

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que domina a cena. “Em sua tristeza, esse retrato contrasta com as primeiras fotografias, em

que os homens ainda não lançavam no mundo, como o jovem Kafka, um olhar desolado e

perdido” (id., ib., p.98).

Retirar a máscara, desnudar a verdadeira face impotente dessa época. Na fotografia,

poucos o fizeram como Atget11, segundo Benjamin. Fotógrafo que vendia suas fotos por

alguns cêntimos, e anônimo até a descoberta quase póstuma de seu material por Berenice

Abbot. Viveu em Paris na sombra de sua modéstia por volta de 1900. Suas fotos, contudo,

alcançaram o que ele não imaginara. Sendo precursoras da fotografia surrealista, elas foram

mestres em sugar a aura da realidade. Buscaram “desinfetar a atmosfera sufocante” dos

retratos convencionais burgueses, na época do seu declínio. Atget purifica essa atmosfera ao

começar a livrar o objeto de sua aura. Mérito que a escola moderna surrealista conseguiu

movimentar.

Quando o surrealismo se anunciou nas fotografias de Atget, segundo Benjamin, a aura

da realidade foi suprimida. As imagens surrealistas buscaram registrar coisas perdidas,

transviadas, obsoletas. A fotografia, como mero exercício do retrato convencional, dava lugar

a outro olhar, que divergiu da visão romântica e majestosa. É como se vê nas imagens de

Atget, que descobre esses motivos primeiramente. Nelas, a cidade se encontra esvaziada.

Ruas, pátios, cafés e parques estão na atmosfera do silêncio, da solidão. Atget, como um

trapeiro que recolhe os resíduos de Paris na sua “arca”, “(...) não negligenciou uma grande fila

de formas de sapateiro, nem os pátios de Paris, onde da manhã à noite se enfileiram carrinhos

de mão, nem as mesas com os pratos sujos ainda não retirados, como existem aos milhares, na

mesma hora (...)” (id., ib., p. 102). Contudo, a maioria das fotos é vazia.

A fotografia surrealista extingue aquela representação burguesa – tão bem paga e

cultuada no gênero do retrato representativo -, preparando “uma saudável alienação do

homem com relação ao seu mundo ambiente” e libertando “para o olhar politicamente

educado o espaço em que toda intimidade cede lugar à iluminação dos pormenores (id., ib., p.

102)”. Nas obras dos surrealistas, é exercitado o poder transformador da fotografia. Insere-se

o homem no mundo à sua ausência. A energia revolucionária passa a ser percebida nas coisas

banais e obsoletas do cotidiano da época, nas primeiras fábricas e construções de ferro, nos

objetos fadados ao desuso, nas ruínas modernas.

11 Só por volta de 1930, Camille Recht publica um volume com uma seleção das mais de quatro mil fotografias de Atget recolhidas por Berenice Abbot.

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***

FIGURA 8: Untitled [ragpicker] – Eugène Atget (1899 – 1900)

Como um trapeiro em busca de imagens com as quais pudesse ganhar alguns trocados,

Atget se destacou por utilizar a fotografia como possibilidade de sobrevivência. Em troca de

alguns trocados, vendia suas imagens a artistas. Flagrava cenas mundanas de Paris, dentre as

quais poucas são as que aparecem pessoas. Aquelas que aparecem são personagens comuns,

como o músico de rua, a prostituta e esse da foto, o trapeiro. Coletando os restos, os destroços

da burguesia francesa, tanto o trapeiro, quanto o fotógrafo são personagens alegóricos nessa

tarefa. Veem nas ruínas caminhos.

Quando fotografou pessoas, o interesse de Atget se direcionava aos anônimos, aos

personagens marginais, que se dedicavam a pequenos ofícios – como os comércios de rua, por

exemplo. Assim, por mais que as ruas e parques parisienses vazios tenham marcado sua

produção, vale lembrar que o trapeiro da fotografia muito personifica seu modo de registrar a

cidade. Diferenciando-se do gênero burguês do retrato, as pessoas fotografadas não estão em

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cenários artificiais, especialmente produzidos para o momento da fotografia. Ainda que haja

certa preparação ou pose do retratado, Atget o fotografa em plena rua, sem grandes recursos

de produção.

Até 1900, o fotógrafo se interessou por registrar pequenos ofícios (petits-métiers).

Cada pequeno ofício – ou cada pequeno trabalhador - era registrado de forma a mostrar a

roupa, mercadorias, equipamentos ou, mesmo, uma postura de servilismo (SZARKOWSKI,

2003). O trabalhador da fotografia (Fig. 8) é mostrado dessa forma. Puxando seu carro de mão

repleto de sacos, vestido de forma humilde e com uma inclinação servil, ele aparece parado

para o clique do fotógrafo. Mesmo que esteja posando para a câmera, há no semblante do

personagem certa seriedade no olhar, de entrega não tão amigável.

Tipos como o trapeiro retratam bem os habitantes de uma Paris além do salão burguês.

Os retratistas que se dedicavam a servir a burguesia não tinham interesse nesse gênero de

habitante. Aliás, se as famílias abastadas eram fotografadas por poderem pagar um retratista,

este não se envolveria com um humilde personagem de rua, que luta para sobreviver com o

pouco que ganha. É nesse momento que o próprio Atget se confunde com esses personagens

mundanos. Por muito tempo, a fotografia foi a atividade que lhe rendeu algum dinheiro. Não

servia a uma burguesia abastada, mas a artistas e ilustradores que precisavam das suas

imagens.

O trapeiro, que recolhe o tecido sujo do mundo, é um personagem-ruína que, no raiar

do século XX, é soterrado pelo crescimento da burguesia industrial capitalista. Os pequenos

ofícios se viram ignorados por um crescente comércio fabril. De uma individualização

comercial, passou-se às fábricas, à industrialização. A produção em série assustou não só os

pequenos trabalhadores, mas o próprio Atget, que viu a transição de um modo tradicional de

comércio para as lojas de departamento. A serialização dos produtos, ainda que ofensiva para

o fotógrafo, ressoou nas suas imagens. (ver Fig.9).

Sendo testemunha das mudanças sociais, políticas e econômicas do início do século, o

fotógrafo coletou imagens que bem condensam as ruínas que deixaram o século anterior. Não

é por acaso que os temas de suas fotografias mudam, já que ele precisa acompanhar o novo

contexto capitalista industrial das vitrines de produtos. Vitrines estas em que os inanimados

manequins ganham vida pela transitoriedade das mercadorias.

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FIGURA 9: Magasin, avenue des Gobelins – Eugène Atget (1925)

***

E o rosto humano? Teria ele um outro valor para a fotografia na modernidade? Como

essa ruína foi retrabalhada? Sem consistir mais no retrato, foi dada uma nova significação ao

rosto pelo fotógrafo alemão August Sander. Benjamin comenta que Sander construiu uma

“galeria fisionômica” do povo alemão. Reuniu rostos de diferentes camadas sociais, desde

camponeses a membros da alta sociedade, em uma rica variação, alcunhada por alguns da

época de “científica”. Entretanto, a atualidade desse trabalho se dá na sua função social de

retirar das imagens os “traços fisionômicos” de nós próprios. É este exercício atemporal,

independente de raça ou credo, de olhar nos outros nós mesmos e vice-versa que Benjamin

(1994a, p. 103) enfatiza:

Sob o efeito dos deslocamentos de poder, como os que estão hoje iminentes, aperfeiçoar e tornar mais exato o processo de captar traços fisionômicos pode converter-se numa necessidade vital. (...) A obra de Sander é mais que um livro de imagens, é um atlas, no qual podemos exercitar-nos.

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Ver o “semelhante” em nós mesmos. Não se trata mais da aura artística, o “algo único

e distante”. Mas de uma nova experiência, que não limita a fotografia ao seu status de arte.

Perceber, de forma inversa, a “arte como fotografia” é reconhecer a sua contribuição decisiva

para a experiência humana. Nossa percepção das grandes obras se modifica com o

aprimoramento das técnicas de reprodução. Essas obras não são mais frutos de um só

indivíduo; “(...) elas se transformaram em criações coletivas tão possantes que precisamos

diminuí-las para que nos apoderemos delas” (id., ib., p. 104). Por isso, a fotografia, assim

como as demais formas reprodutivas, constitui uma “técnica de miniaturização”, pela qual o

homem mantém certo domínio sobre as obras e sem o qual as obras ficariam inutilizadas.

Miniaturizar as obras por meio das técnicas, segundo Benjamin, acaba por desligá-las

do culto. Foi neste aspecto que muitos dos teóricos se prenderam ao abordarem a fotografia.

No entanto, decorrente da percepção fotográfica do mundo, passamos a acompanhar a

mudança na própria natureza da arte, que parece mais dependente da técnica do que nunca

antes se tinha dado conta. Torna-se ainda mais desafiante assumir o papel do crítico, já que

numa época em que as obras chegam ao público pela reprodução, tanto a fotografia quanto o

cinema passam a ser dificilmente isentos de propagação das ideias políticas, ideológicas e de

estímulos ao consumo. A ênfase dada ao cinema no ensaio A obra de arte na era de sua

reprodutibilidade técnica confirma essa capacidade do “aparelho” de mobilizar as massas, já

que a exibição fílmica demanda do espectador uma “atenção aguda” ao movimento da

imagem. Em outras palavras, o cinema também altera a estrutura do sistema perceptivo

daquele que incorpora a câmera, suas acelerações, seus ângulos, suas interrupções e

miniaturizações.

“Se a fotografia se libera de certos contextos, obrigatórios para um Sander, uma

Germaine Krull, um Blossfeldt, se ela se emancipa de todo interesse fisionômico, político e

científico, ela é considerada ‘criadora’” (id., ib., p. 105). Benjamin contrapõe a fotografia

criadora à construtiva e diz que ser criador é “uma forma de ceder à moda”. Sua crítica fala da

necessidade de desnudar a técnica de seu invólucro capitalista, progressivo, de trazê-la para

um diálogo construtivo. Libertar a fotografia das amarras de um discurso fetichizado,

comercial (“fotografia como arte”) é separá-la de interesses institucionais, panfletários. É

preciso, então, ultrapassar essa “criatividade” fotográfica aliada à venda e fabricar, construir

algo. Se a “criatividade” está associada à venda, menos serve ao conhecimento. A

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contrapartida da fotografia está no “desmascaramento” ou na “construção”, e não na simples

“reprodução”.

Os surrealistas, então, tinham esse empenho construtor pela fotografia. Em seu ensaio

O surrealismo, Benjamin fala do movimento que nasceu na França em 1919, com intelectuais

tais como André Breton, Louis Aragon, Paul Éluard, dentre outros. Estava associada ao

movimento uma dialética da embriaguez, em que o estado entre sono e vigília é

recorrentemente explorado. As obras do movimento, apesar de se consolidarem, muitas vezes,

em literatura, lidam com outra coisa – bluff, palavra, manifestação, documento, falsificação.

Tratam-se de experiências, que não devem ser rotuladas pelo êxtase das drogas, mas

interpretadas como originadas de uma “iluminação profana, de inspiração materialista e

antropológica” (id. ib. p.23). Nadja, de Breton, é um exemplo dessa “iluminação”.

“‘Na ocasião (isto é, durante o convívio com Nadja) interessava-me muito a época de

Luís VII, por ser o tempo das cortes do amor, e eu tentava imaginar, com a maior intensidade,

como a vida era encarada nesse tempo’ - é o que nos narra Breton” (id. ib. p.24). A

“iluminação profana” é, nessa passagem, exemplificada nessa intensidade imaginativa que

parte do “antiquado”, que deixa Breton mais próximo às coisas que da própria Nadja. Breton

capta a força dos objetos.

Foi o primeiro a ter pressentido as energias revolucionárias que transparecem no “antiquado”, nas primeiras construções de ferro, nas primeiras fábricas, nas primeiras fotografias, nos objetos que começam a extinguir-se, nos pianos de cauda, nas roupas de mais de cinco anos, nos locais mundanos, quando a moda começa a abandoná-los (id., ib., p.25).

Podemos compreender Breton como um dos primeiros a enxergar a beleza das ruínas

do seu tempo. Ele desvenda a nova e, ao mesmo tempo, “antiquada” Paris, presente nos seus

personagens, objetos e desejos mundanos. Daí a luz “profana” que toca a construção de

Nadja. Nesse registro escrito – para não denominarmos “romance”, já que o próprio autor o

combatia -, a fotografia é um dos artifícios decisivos. São instantâneos que saltam ao leitor: de

personagens, objetos, espaços etc. Eles compõem a diversidade da narrativa que parece

ganhar forma psíquica, permeada de encontros insólitos. Breton parece querer tecer, com

imagens, a relação de objetos cotidianos com o mundo interior. Estimula-nos a despertar

sonhando.

Está na vida, no cotidiano iluminado o espaço da ótica dialética. As suas energias

revolucionárias e profanas se transformam em “inervações do corpo coletivo”. O mérito dos

surrealistas esteve em reacender essa força. A força no despertar dos fragmentos fadados ao

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sufoco do inconsciente. As ruínas da realidade imediata convidam os surrealistas a abrirem

um espaço de imagens que não é contemplativo e em que opera a destruição dialética, a força

política. “Organizar o pessimismo significa simplesmente extrair a metáfora moral da esfera

da política, e descobrir no espaço da ação política o espaço completo da imagem”. (id. ib.

p.34). O corpo é também esse espaço de ação.

Surrealistas. Primeiras fotografias. Primeiras fábricas. Inconsciente. Estaria na

“miniaturização do mundo”, na “iluminação profana”, na “destruição da aura”, na “arte como

fotografia”, caminhos para uma escrita histórica que abrigue os “estilhaços do messiânico”?

Teríamos nas obras-ruínas propostas de um corte no curso dos acontecimentos? Para melhor

apreendermos o mundo fotograficamente e termos dele uma impressão mais duradoura,

precisamos explorar o que nas imagens insiste e o que delas resiste no nosso mundo. Nessa

tarefa, Benjamin teve a sensibilidade de um surrealista e a vidência de um adivinho; recorreu

às dimensões profana e mágica da legibilidade das imagens.

Sobre a capacidade de ler as imagens, Benjamin desafia tanto o historiador quanto o

fotógrafo. Não é por acaso que a parte final do seu ensaio Pequena história da fotografia nos

indaga: “Não deve o fotógrafo, sucessor dos áugures e arúspices, descobrir a culpa em suas

imagens e denunciar o culpado? (...) um fotógrafo que não sabe ler suas próprias imagens não

é pior que um analfabeto?” (id., ib., p.107). O ato de ler é o do detetive em busca do

criminoso, do adivinho que procura na posição dos astros uma leitura do futuro. Diretamente

ligada à leitura, está a identificação das semelhanças, o despertar da faculdade mimética

inerente ao homem. Conscientemente, percebemos apenas uma fração das inúmeras

semelhanças das quais não temos consciência. Para isso aponta Benjamin em A doutrina das

semelhanças.

Perceber semelhanças é, além disso, uma questão de instante, tal qual o momento

efêmero em que os astros se posicionam no dia do nosso nascimento. É um instante

extrasensível, cuja precisão só se dá em um momento específico, como um lampejo. Essa

percepção “perpassa, veloz, e, embora talvez possa ser recuperada, não pode ser fixada, ao

contrário de outras percepções. Ela se oferece ao olhar de modo tão efêmero e transitório

como uma constelação de astros” (id., ib., p.110). Na semelhança, vemos engendrado, mais

uma vez, o paradoxo da interrupção e da fugacidade, assim como na imagem dialética do

passado, abordada nas teses do conceito da história. Além disso, o exemplo da leitura pelos

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astrólogos é, várias vezes, colocado por Benjamin por resguardar duas dimensões preciosas da

significação da palavra leitura: a profana e a mágica.

O colegial lê o abecedário, e o astrólogo, o futuro contido nas estrelas. No primeiro exemplo, o ato de ler não se desdobra em dois componentes. O mesmo não ocorre no segundo caso, que torna manifestos os dois estratos da leitura: o astrólogo lê no céu a posição dos astros e lê ao mesmo tempo, nessa posição, o futuro ou o destino (id., ib., p.112).

Essa força primitiva vinda dos astros haveria migrado paulatinamente para a

linguagem e para escrita, nas quais as semelhanças extra-sensíveis são ativadas não mais de

forma direta como ocorre ao vidente, mas como medium12, na receptividade nomeadora das

coisas. A velocidade rítmica da leitura e da escrita na percepção das semelhanças é

instantânea. Elas são clics que “irrompem do fluxo das coisas, transitoriamente, para

desaparecerem logo em seguida” (id., ib., p. 112-113). A partir dessa analogia ao clic do

fotógrafo é que Lissovsky (1998) comenta a ligação da fotografia com a história em

Benjamin. Cremos ser bastante construtiva essa reflexão para entendermos a fotografia como

“imagem dialética” e também, para posteriormente, relacionarmos mais de perto fotografia à

ruína.

Lissovsky diz que, em Benjamin, o “uso das imagens” assume uma dimensão

transcendental. O filósofo se dedica a

(...) tomar a fotografia como modelo da “imagem dialética”, do “isolamento inalienável” da idéia do pensamento. Por intermédio da fotografia, será possível pensar a apropriação da história em sua forma; a apreensão do passado, no acontecimento, no “instante em que é reconhecido” (LISSOVSKY, 1998, p.22).

Seguindo o intuito de utilizar a fotografia como imagem do pensamento, estaremos

atentas à dialética das imagens que perpassa não só a filosofia benjaminiana, mas se destaca,

também, nos teóricos que se dedicam a pensar a imagem fotográfica. A fotografia, como clic

mental, modelo perceptivo, consegue armar um leque de considerações sobre a significação, o

tempo, a história, a memória, dentre outros temas, que serão tratados no capítulo seguinte.

Daremos sempre ênfase à dialética do fragmento, que percorre os escritos de Benjamin. Com

isso, pretendemos conduzir nosso pensamento de maneira mais próxima ao que estamos

estudando: fotografia como ruína.

12 Sobre essa concepção de medium, relembrar o que expomos no tópico 1.1.

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2. A FOTOGRAFIA E OS VESTÍGIOS DO TEMPO

Chega a hora de falarmos, em específico, sobre a fotografia e sua relação com o

tempo, sobretudo o tempo em vestígios, rastros, que, como veremos, caracteriza a formação

da imagem fotográfica e seu modelo como imagem do pensamento. Nosso objetivo é

apresentar algumas perspectivas (teórico-filosóficas e críticas) que rondam o pensamento de

autores que lidam especificamente com o tema da fotografia, assim como buscar em outras

disciplinas (principalmente a filosofia e a história) argumentos que, necessariamente, ajudam

a dar conta de aspectos que transbordam aos estudos fotográficos em si.

Tomamos como base a própria descrição de uma “essência” da imagem fotográfica –

colocada como “traço”, “impressão” de um real, “índice” - a fim de partir para outras

questões que nos interessam como a ideia de corte, descontinuidade, congelamento, instante,

presença, ausência, passado, presente, memória, documento, monumento, morte e vida. Ideias

que, claro, falam de perto à fotografia como ruína. Dividimos o texto por temáticas, como no

capítulo anterior, para desenvolvê-las com mais acuidade.

2.1. O traço fotográfico e as ruínas

O novo modelo de percepção instalado pela tecnologia imagética da fotografia muito

contribuiu para que se defendesse uma “essência” própria do meio. Buscando uma

característica singular a todas às fotografias, Barthes destaca a presença do referente na

imagem fotográfica como sendo a sua natureza singular. Nesse propósito, esbarra numa

suposta singularidade originada tecnicamente: o traço do real impresso na imagem. Ainda que

nomeada de “essencialista” e enfatizar o instante de impressão, a proposição barthesiana é

rica como paradigma de um olhar inquieto diante da fotografia. Um olhar que, procurando

definir o que é “fotografia”, oscila nos limites de uma definição até hoje incompleta.

Também na busca de uma “ontologia da imagem fotográfica”, André Bazin, em seu

ensaio assim nomeado, destaca a “objetividade essencial” da fotografia em relação à pintura.

Estaria na gênese mecânica e na fidelidade objetiva o seu poder de nos colocar ante uma

credibilidade arrebatadora. Credibilidade ausente na pintura. “A fotografia se beneficia de

uma transferência de realidade da coisa para sua reprodução” (BAZIN, 1991, p. 22). A

semelhança com o objeto capturado, ou seja, o realismo da imagem se deve a essa presença da

coisa, que está ali, sem ser necessário o talento de um gênio artístico. Voltaremos

posteriormente a comentar outros trechos de Bazin.

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Ainda sobre o teor automático da formação da imagem, as definições de fotografia que

encontramos constantemente em manuais a caracterizam, muitas vezes, pela descrição técnica

da captura da imagem pela câmera e sua sensibilização em papel fotossensível constituído de

haletos de prata (e, mais recentemente, pela incidência da imagem em sensores digitais).

Também no senso comum, como diz Laura Flores (2005), é recorrente associar a fotografia ao

produto da câmera. No intuito de direcionar nossa discussão para um aspecto que não se

limita apenas ao aparelho, mas ao fenômeno que se nomeia de “fotográfico” – no qual existe

um instante específico de emanação do objeto na superfície sensível -, cremos ser nodal na

abordagem da fotografia como ruína partirmos da ideia que Benjamin já anunciara na sua

Pequena história e que Barthes reitera com seu clássico noema do “isso foi”: o traço de

existência do referente – aquilo que estava diante da câmera - persiste na imagem.

Benjamin se dirige à fotografia como vestígio de um instante que se deu na realidade e

que chamuscou a imagem. Ao falar da fotografia de Hill, enfatiza: “(...) preserva-se algo que

não se reduz ao gênio artístico do fotógrafo (...) que reclama com insistência o nome daquela

que viveu ali, que também na foto é real” (BENJAMIN, p.93, 1994a). Nessa passagem, o quê

de real conferido à imagem escapa às intenções artísticas. A foto mostra: ali a modelo está

real, ali a modelo existiu. É incontestável essa presença do referente. Ao mesmo tempo, leva o

espectador a dar rumos a quem ali está, a desvendar a “faísca de acaso” que, graças ao real

presente, queima a imagem. Diríamos que o próprio referente – incontestável – leva à sua

transcendência. Não se trata mais da mimese. É por conta da própria fração (e não do espelho

fiel) de realidade presente na imagem que a faz dizer e também calar.

Em tom barthesiano, “toda foto é de alguma forma co-natural a seu referente. Mistura

duas vozes: a da banalidade e da singularidade” (BARTHES, 1980, p. 114). Em A Câmara

Clara, o autor se refere ao “intratável” na fotografia, ao “isso-foi”, que confere à imagem o

certificado de presença, de emanação de um real passado. Figura, pois, no noema fotográfico

de Barthes, não só o “vejam”, “olhem”, o “eis-aqui”, como também a temporalidade do

instante (passado) que não se repetirá existencialmente: “vejam, isso existiu”. Esse gesto

dêitico da fotografia é um dos aspectos que a aproxima da categoria sígnica do índice, sobre a

qual iremos falar mais especificamente mais tarde. Interessa-nos ainda em Barthes seu

posicionamento quanto ao acaso, à surpresa na fotografia, àquilo que não está na

transparência da imagem e que se desvirtua de uma codificação (como a cultural, que chamou

de studium). A esta instância perturbadora da fotografia, ele deu o nome de punctum. “Pois o

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punctum é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte. O Punctum de

uma foto é esse acaso que nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)” (id., ib.,

p.46). Não citaremos os exemplos de punctum que o autor cita durante a obra a partir de

algumas fotografias. Portanto cabe destacar que o que punge o observador em determinada

fotografia é um detalhe, um objeto parcial.

***

FIGURA 10: Corpo da alma – Rosângela Rennó (2003)

Em imagens em tons de cinza – como a acima – expostas em grandes placas de metal,

a série Corpo da alma, de Rosângela Rennó, mostra retratos com pessoas segurando

fotografias de entes queridos desaparecidos. Essas imagens, originalmente publicadas em

jornais, são editadas pela artista de modo a destacar os entes queridos e manter o tom

reticulado das pessoas que os seguram. Não por acaso Rennó retira essas fotografias de um

meio de grande circulação – o jornal. Ela coleciona imagens midiáticas, dentre outros

gêneros, para dar a elas um destino não tão efêmero quanto o da notícia.

Índice da fotografia impressa, o tom reticulado que encobre a mulher da fotografia faz

com que ela apareça com certo apagamento diante da maior nitidez dada às imagens dos entes

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desaparecidos. Corpo da alma, assim, encarna o gesto dêitico em relação à presença do

referente e ao passado: “olhem, eles estão aqui. Eles desapareceram”. Apontando para o

desaparecimento desses corpos, Rennó sublinha a tênue relação entre aparência e ocultação

tão presente no trabalho fotográfico. Desvirtuando esses corpos de um código cultural

(studium), como a imprensa, essas pessoas que são trazidas na obra não são situadas em uma

marcação cronológica, em um contexto espaço-temporal. Pelo contrário. Apesar de indicarem

visualmente que foram retiradas de um meio anterior – o jornalístico -, na obra, acenam para a

desmobilização de sentidos.

As imagens reivindicam uma percepção mais vigilante, um desvendamento. Onde

estão essas pessoas? O que aconteceu com elas? Vítimas de violência, desaparecimento ou

mesmo mortos por atos terroristas ou de guerra, as pessoas cujos retratos são segurados por

parentes parecem ecoar um estado de impotência, como comenta Herkenhoff13. Não há,

também, contentamento por parte do familiar da vítima. Este agarra a fotografia como um

apelo à esperança, seja por justiça, por saudade ou por lembrança. Sabemos que a imagem

fotográfica tem esse poder de indicar a presença da ausência. Corpo da alma dá ênfase à

presença do vestígio de seres humanos. A obra recoloca o “isso-foi” barthesiano.

É no anonimato desses corpos-imagens, tão cotidianamente tornados lixo, fadados às

intempéries do nosso esquecimento, que Rennó problematiza o código fotográfico.

Fotografias são limitadas ao studium que lhe deu origem? São provas de acontecimentos

deixados no passado? O índice fotográfico é questionado na própria constituição da obra.

Arrancadas de uma clareza e objetividade – buscada na imprensa -, de provas vão ao estatuto

de ficção, de intencionalidade simbólica vão à atemporalidade extraimagética. A artista

explora a elasticidade do corpo-imagem para apontar para alma existente dele.

A fugacidade estampada nas imagens de Corpo da alma adverte para dispersão

emergente nas fotografias. Não só dispersam o tempo, os acontecimentos, em uma

descontinuidade histórica, mas também os fazem de forma a recuperar a potência material e

visual de sua apresentação. Retículas, apagamentos, nitidez, tons de cinza, juntos, são índices

do que pode sumir e emergir em imagem, em experiência fotográfica.

13 Disponível em: <http://www.rosangelarenno.com.br/bibliografia/en>. Acesso em: 30 set. 2009.

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***

Ora, esse estalo que uma fotografia me proporciona, e outra não, detém-me, como uma

ferida: “vejo, sinto, portanto noto, olho e penso” (BARTHES, 1980, p.46). Esse corte, essa

picada, não pertence à objetividade da câmera, mas ao espectador, à sua subjetividade. Diante

da foto do Jardim de Inverno (foto de sua mãe), Barthes se deixa levar pelos sentimentos e

lembranças, mas reitera que esse campo aberto e não-codificado só se manifesta dada a

presença do referente, constituinte do “isso foi”.

Na fotografia a presença da coisa jamais é metafórica. A imobilidade da foto é como o resultado de uma confusão perversa entre dois conceitos: O Real e o Vivo: ao atestar que o objeto foi real, ela induz sub-repticiamente a acreditar que ele está vivo, por causa desse logro que nos faz atribuir ao Real um valor absolutamente superior, como que eterno. Mas ao deportar esse real para o passado ela sugere que esse real está morto (id., ib., p.118).

A sugestão de morte do real na fotografia também está associada à inconclusão do que

é apreendido pela câmera. A emanação do referente se dá numa fração de tempo e, claro, essa

fração imobilizada em imagem nos é parcial, deixa brechas, pede complementos. Nesse

aspecto, a vida da fotografia se desenrola aos olhos do observador, ainda que parta de uma

constatação de morte. O acaso que me conduz na fotografia – o punctum barthesiano – “é o

que acrescento à foto e que todavia já estava nela” (id., ib., p.85). Já está na foto o “isso foi”,

a certificação de presença, o rastro, a marca, o indício.

O peso do real em Barthes, assim como em Benjamin, não é absoluto. Em algum

momento – e só nesse momento, já passado – é que o referente deixou seu vestígio na

imagem. Contudo, a crença na vida dessa realidade capturada, imobilizada, ainda nos

confunde. Absolutizar esse real foi por muito tempo a tese defendida nos primórdios da

técnica fotográfica. Como já apontamos no capítulo anterior, o advento da fotografia no

século XIX foi acompanhado de uma longa discussão sobre o seu êxito enquanto espelho,

representação do real de natureza automática. E até hoje, ela está impregnada da ideia de

prova, de constatação da existência daquilo que ela mostra. Contudo, no que implica a relação

da fotografia com a ruína, por exemplo, para um entendimento do tempo fotográfico? Essa é

uma das questões que nos direciona.

Destaquemos três motivos que ligam a fotografia à ruína: a presença/ausência do

objeto (que é apontada quando a fotografia é tratada como rastro do real – a coisa está ali, mas

ao mesmo tempo, não está), a incompletude (pois não temos uma totalidade presente, mas um

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pedaço, uma sobra do que já passou e persiste) e a morte/vida (pois estamos falando de uma

aniquilação do tempo, mas também de sua persistência em parte). Para permear esses três

motivos, parece-nos inevitável um mergulho na categoria sígnica do índice, proveniente das

teorias de Charles Sanders Peirce, que foi abordada e discutida por Philippe Dubois (2009).

Está vinculado à noção de índice, a propósito, um dos discursos apontados pelo autor, que é o

da fotografia como traço de um real. Embora esse discurso trate também da questão do

realismo, a mimese não é mais central. O traço nos dá a ideia de marca, vestígio,

incompletude. E por ele ser originário de um real – notemos aqui a ênfase no artigo singular -,

é um traço particular, único, determinado exclusivamente por seu referente - o real que

queima a imagem e não mais se repetirá.

Índice é “representação por contiguidade física do signo com seu referente” (DUBOIS,

2009, P.45). Ele se distingue do ícone e do símbolo (outras duas categorias) por ser o primeiro

uma “representação por semelhança” e do segundo por ser uma “representação por convenção

geral”. Ambos (ícone e símbolo) são representações mentais, não possuem ligação física com

o referente. A fotografia, por ser uma emanação, uma impressão do objeto, caracteriza-se

como índice. Nessa categoria, estaria a fumaça – índice do fogo, a ruína – “traço do que havia

ali”. O denominador comum a esses exemplos é serem signos afetados por seus objetos. Sem

se demorar em detalhar o exemplo da ruína como índice, mas sim, na fotografia, Dubois

reforça que sendo a foto uma impressão luminosa, não quer dizer que ela, necessariamente,

tenha que passar por um aparelho, nem que se pareça com o objeto que lhe deu origem. Para

essa distinção, ele fala do fotograma, que é uma imagem obtida pelo decalque direto do objeto

exposto à luz em papel sensível, sem passar por um aparelho fotográfico e sem, praticamente,

possuir semelhança com o referente – dada a falta de clareza nos contornos de luz e sombra.

Prevalece apenas o princípio do traço. Traço esse de um momento único – o de inscrição na

imagem.

Vemos que Dubois quer resguardar a fotografia do discurso da mimese e da gênese

automática. Para isso, recorre a Peirce e os princípios que interessam a um recorte, a um traço

de realidade próprio à fotografia. Do índice, ele retira as premissas de uma pragmática da

fotografia (fazendo questão de opor à semântica). Não interessa o sentido atribuído à imagem

(“isso quer dizer aquilo”), mas a existência do que ela representa. “Como índice, a imagem

fotográfica não teria outra semântica que não sua própria pragmática” (id., ib., p.52). Não

vemos mal em revisitar os princípios indiciários apontados pelo autor, já que muito

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contribuem para um melhor entendimento dos três motivos (apontados por nós) que sustentam

a fotografia como ruína.

A condição de índice da imagem fotográfica implica, caso quisermos sintetizar nesse ponto as aquisições de Peirce, que a relação que os signos indiciais mantêm com seu objeto referencial seja sempre marcada por um princípio quádruplo, de conexão física, de singularidade, de designação e de atestação. (id. ib., p.51).

O princípio de conexão física, como já mencionamos, refere-se ao fato de podermos

inferir da imagem o seu traço do referente, a sua impressão (como no caso do fotograma).

Notemos que o momento de impressão se dá por uma fração de todo o processo fotográfico: é

o momento em que o objeto se transfere para a imagem, que se enquadra entre um antes (da

escolha feita pelo fotógrafo, do tipo de material em que a imagem vai ser impressa, do ponto

de vista escolhido) e um depois (a revelação da imagem, a difusão, a imersão em códigos

culturais). Como diz Dubois, é só nesse instante em que a fotografia é “puro ato-traço”. Desse

principio, ao levarmos em conta o motivo de presença/ausência da fotografia como ruína,

identificamos claramente o traço como certificado de presença. A ausência só se dá depois

desse instante “puro” de emanação, já na quebra da ligação física, ou, quando só temos dela o

vestígio, a sobra. A ruína é esse traço do instante, passado e não mais em estado de conexão

pura. No entanto, quando pensamos em ruínas como objetos materiais, uma separação

temporal vem à tona: há um antes completo, original, e um depois, que são os vestígios dessa

completude. É justamente na ausência que o segundo motivo se mostra: o da incompletude.

Ruínas são incompletas; as fotografias também são.

Na singularidade, Dubois destaca a unicidade do traço fotográfico. “O traço

(fotográfico) só pode ser, em seu fundo, singular, tão singular quanto seu próprio referente”

ou “esse princípio de singularidade indiciária encontra de fato sua origem na própria

unicidade do referente” (id., ib., p.72). O peso da singularidade, assim, remonta à referência

material – o objeto que estava diante da câmera naquele momento de conexão física é único.

Esse princípio é problematizado quando fazemos um paralelo entre matriz (original) e cópia

em nossos dias. Podemos distinguir com melhor precisão uma matriz quando ela é física – um

negativo fotográfico, por exemplo. Mas em tempos de hoje, com o advento da imagem digital

(numérica14), já não temos esse discernimento. A singularidade indicial fica dispersa, pois a

14 François Soulages diz que a fotografia digital é uma imagem da imagem e não mais uma imagem da realidade. “A ruptura com o real é infinitamente maior com a imagem numérica, que pode tornar-se totalmente autônoma – se modificamos a matriz numérica - em relação ao real que lhe deu origem, passando da esfera que em algum

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“prova” física se evanesce com a lógica numérica dos sistemas digitais – temos inúmeros

“originais” e “cópias”.

A matriz física, entretanto, é, por assim dizer, um testemunho de presença única,

quando pensada enquanto índice. E a essa afirmação se relaciona também ao princípio da

atestação. A foto, traço de um real, é atestado desse real. “Enquanto índice, a fotografia é por

natureza um testemunho irrefutável da existência de certas realidades” (id., ib., p.74). Ruínas

também indicam a existência de que algo havia ali. Mesmo em uma implicação mais genérica,

partimos da noção de que ruínas e fotografias atestam a existência de um momento pregresso.

O noema barthesiano do “isso foi” enfatiza essa relação de testemunho de um momento

passado-ruína. O que vejo na fotografia já aconteceu. Fotos são, elas mesmas, ruínas.

Designam a existência do que foi e do que é.

Dessa indicação característica do signo indiciário, Dubois ressalta o princípio de

designação. Voltando ainda a Barthes, fotos sinalizam, apontam com o dedo. “Uma fotografia

sempre se encontra no extremo desse gesto [dêitico]; ela diz: isso é isso, é tal! mas não diz

nada mais” (BARTHES, 1980, p.14). Contudo, indicar, mostrar, são atribuições de qualquer

signo indiciário. O que difere, ao pensarmos na fotografia, é que ela é índice que para com o

“isso foi” (existência), ou seja, não vai além com o “isso quer dizer” (sentido). Além disso,

Dubois reforça que o instante de “puro ato-traço”, de impressão do referente, é ínfimo em

relação a todo o processo fotográfico e que “convém libertar bem o signo fotográfico desse

fantasma de uma fusão com o real” (DUBOIS, 2009, p.87).

No esforço de apartar o índice fotográfico de uma “totalidade” com o real, em que

objeto e representação se transformam em um só, Dubois se dedica a argumentar a distância

espaço-temporal, o abismo inerente ao dispositivo fotográfico. Espacialmente, essa distância

se manifesta no próprio ato do fotógrafo (ele precisa se distanciar do objeto para capturá-lo

com a câmera) e também na separação que advém pelo aqui do signo e o ali do referente

(“veja, nós que estamos aqui com você olhando essa imagem, fomos até lá”). Até na extrema

proximidade do fotograma, em que objeto e representação se tocam fisicamente, o signo não é

a coisa; há uma distância entre visível e intocável. “O referente que nos sidera é de fato o

intocável da imagem fotográfica, mesmo que a última emane fisicamente do primeiro.

lugar tratava de uma lógica fotográfica para uma lógica puramente numérica na qual encontram-se também as imagens calculadas realizadas sem nenhuma relação com um real já existente, de um real do qual teríamos como que apreendido em vôo uma imagem pelo viés do cálculo (...)” (SOULAGES, 2008, p. 83-84).

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Obrigatoriamente, qualquer chapa só mostra em seu lugar uma ausência existencial. O que se

olha na película jamais está ali”. (id., ib., p. 88).

Lembremos o nosso primeiro motivo de abordagem da fotografia como ruína:

presença/ausência. O signo ruína implica, necessariamente, em presença do objeto – pois o

próprio signo é resto dele. A ausência, porém, não é existencial, já que a ruína pode ser um

vestígio físico do que ali havia antes. Mencionamos em outro momento que é na relação

temporal que a presença/ausência figura como característica da fotografia como ruína, uma

vez que o instante de emanação do objeto é vestígio na imagem. E, seguindo esse raciocínio, é

na incompletude temporal e em uma não totalidade da realidade é que podemos falar em

fotografia-ruína. Ora, percebemos, com isso, que nos debruçarmos sobre o tempo é

fundamental para compreender melhor essa temática.

Temporalmente, a distância fotográfica também se manifesta. Há uma decalagem

temporal entre o momento em que a imagem é captada e o momento em que a vejo.

“Qualquer foto só nos mostra por princípio o passado, seja este mais próximo ou distante”

(id., ib., p.89). Vale reiterar que, em qualquer situação, a ruína também aponta para o passado.

Faz parte dela, enquanto signo, dirigir-se a um tempo anterior – antes de sua constituição.

Ruínas arquitetônicas, por exemplo, são indícios de uma construção anteriormente em estado

íntegro. O motivo da incompletude, já citado, associa-se claramente à distância – de um antes

conservado e o seu depois arruinado.

Na fotografia, o desaparecimento do objeto real na imagem reforça o princípio da

distância, assim como coloca em cheque o motivo da presença/ausência. Presença da foto,

ausência do referente. “(...) no próprio instante em que é tirada a fotografia, o objeto

desaparece. (...) Só lhe resta a foto, frágil, incerta, quase estranha. É a foto que literalmente

vai se tornar sua lembrança, substituir a ausência” (id., ib., p.90). Assim surge a foto, de um

instante ao modelo do mito de Orfeu, que morre ao ver Eurídice. Nos Infernos, ele desmaia no

exato momento em que a reconhece.

Ainda que pareça oportuno passar, aqui, a abordar o terceiro motivo – morte/vida, é

interessante ainda pensarmos acerca da natureza do índice ruína e sua relação com a

fotografia. Devemos mencionar a breve distinção que o próprio Dubois faz especificamente

dos dois signos (dedica apenas uma página para diferenciá-los). O substrato dessa distinção

cremos estar neste trecho:

(...) esse critério de distância no espaço e no tempo permite assinalar a diferença de condição desses dois tipos de índice que são a foto e a ruína. Se

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eu disse em outra parte que a fotografia é uma ruína do real, é preciso conceber que ela só o é na ordem temporal: se a ruína como vestígio é de fato o traço físico e material do que esteve ali, nem por isso é uma representação separada (espacial e objetualmente) de seu referente: ela é o último, mas num outro estado, que carrega sua marca, os estigmas do trabalho destruidor dos séculos e dos anos. Na ruína, a distância é apenas temporal (id., ib., p.96).

Dessa relação que o autor nos coloca, podemos observar que o aspecto de

contiguidade física intrínseco ao índice ruína não permite que ele se separe espacialmente do

seu referente. Inclusive, também falamos sobre isso quando nos reportamos à incompletude.

A ruína não só representa o seu objeto anterior. Ela é parte dele ainda que em outro estado de

integridade material. O que tentaremos desenvolver no outro capítulo parte justamente desse

caráter físico que se sobressai na ruína e não na fotografia. Entretanto, supomos que ao nos

debruçarmos sobre elas – as ruínas –, especificamente, iremos contribuir para pensarmos com

mais afinco sobre a temática, ao levantarmos questões de ordem não apenas semiótica.

Resta-nos, por ora, abordar um pouco mais a questão do passado, já que a fotografia

como ruína levanta esse aspecto. Sabemos que advém da fotografia enquanto rastro, vestígio,

um lapso temporal. Essa brecha no tempo, pelo que já expomos, acontece no próprio processo

de fixação da imagem. Por ser uma imagem que congela uma cena e, com isso, detém um

instante, ela coloca em jogo o desejo pela própria conservação temporal. Sabemos que o

tempo flui. Quando nos remetemos a fotografias como vestígios, elas se colocam como

paradas, cortes nesse vir-a-ser. Do mito de Orfeu, vamos ao de Medusa: aquele que a olha é

petrificado em estátua por seu olhar.

A partir da íntima relação com o passado, é que a imagem fotográfica também

mortifica. Agora falamos do nosso terceiro motivo: morte/vida. Na fotografia, eu morro como

referente para me fazer nascer em imagem. E não só isso: pela imagem, tenho o tempo detido,

fixado para guardá-lo, embalsamá-lo. A relação do morto com o vivo foi discutida por

Barthes e dele citamos, no início do texto, a confusão que existe entre o vivo e o próprio real,

uma vez que a presença do referente faz crer que, quando apreendido, é eterno. O autor

também problematiza uma “microexperiência da morte” ao falar da pose no retrato: “não sou

nem um sujeito nem um objeto, mas antes um sujeito que se sente tornar-se objeto (...) torno-

me verdadeiramente espectro” (BARTHES, 1980, p.29). Desse transformar-se em espectro,

transformo-me em ruína.

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Na sua Ontologia da imagem fotográfica, Bazin declara que a fotografia é também um

processo de mumificação, de tentativa de embalsamar o tempo para salvação. “A morte não é

senão a vitória do tempo. Fixar artificialmente as aparências carnais do ser é salvá-lo da

correnteza da duração: aprumá-lo para a vida”. (BAZIN, 1991, p.19). A noção de duração aí

colocada, no sentido bergsoniano, implica o movimento, a mudança do tempo. Na fotografia,

estaria a expressão da interrupção da duração. Mauricio Lissovsky (2008) discorda desse

isolamento da fotografia do movimento, já que a própria imagem fixa, para ele, possui uma

mobilidade. Falaremos melhor desse seu argumento nos tópicos seguintes.

Voltando a Bazin, então, estaria no congelamento do tempo o desejo de mumificá-lo,

“pois a fotografia não cria, como a arte, eternidade, ela embalsama o tempo, simplesmente o

subtrai à sua própria corrupção”. (BAZIN, 1991, p.24). Ora, desses termos “congelamento”,

“mumificação”, “petrificação”, é reincidente o terceiro motivo que destacamos. A morte/vida

recorre, na fotografa, a uma fixação do tempo para arrancá-lo do seu devir. Tornar-se ruína,

nesse devir, parece inevitável. Cada fixação em imagem se torna vestígio da corrupção do

tempo. Bazin e Barthes tematizam a morte pelo aspecto da fixidez temporal em rastro. E disso

Dubois fala o tempo todo. “A fotografia jamais cessou de ser trabalhada pelo problema do

tempo. Ela o fixa. Parada sobre a imagem. Sombra petrificada. Mumificação do índice”

(DUBOIS, 2009, p.139).

2.2. Do efeito Medusa ao instante movente

Decorre do recorte, de perceber a fotografia como fragmento, uma descontinuidade

que lhe é característica. Já falamos que a fotografia como ruína enfatiza o motivo da

incompletude. Percebemos nos autores clássicos que tratam especificamente do tema, o

direcionamento dado à fotografia como recorte, pedaço, vestígio. O cuidado que devemos ter

é que, muitas vezes, o reforço nessa caracterização da imagem fotográfica também a

minimiza, como apenas um produto da realidade, de prova da existência de algo, o que deixa

a desejar quanto à sua possibilidade construtiva de realidades.

Imagens fotografadas não parecem manifestações a respeito do mundo, mas sim pedaços dele, miniaturas da realidade que qualquer um pode fazer ou adquirir. (...) Fotos brincam com a escala do mundo: são recortadas, retocadas, expostas, projetadas, colocadas em álbum, emolduradas, pregadas nas paredes etc. (SONTAG, 2004, p.15)

Susan Sontag denomina as fotos de “miniaturas de realidade” e, ao mesmo tempo,

enfatiza a questão do recorte como sendo a brincadeira da foto: jogar com a “escala do

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mundo”. Por um lado, a impregnação do real na fotografia. Por outro, a sua possibilidade de

brincar com o mundo em cuts. É nesse segundo aspecto que nos aprofundaremos. Lembrando

que nossa abordagem benjaminiana da fotografia está imbricada à visão do autor sobre a

história, é imprescindível que atentemos ao que faz da fotografia um objeto que favorece a

descontinuidade. Aqui, faremos uma abordagem que ainda se relaciona ao motivo da

incompletude, mas que não se encerra na sua particularidade indicial. Pois se trata de pensar a

experiência fenomênica da fotografia como fundamento à teoria de Benjamin do

acontecimento histórico. E, para isso, precisamos ir do corte à instabilidade das imagens.

***

FIGURA 11: Foueur d’orgue - Eugène Atget (1898-1899)

Trazemos aqui essa imagem de Eugène Atget para sublinhar o que nela há de vestígio

instável do tempo. O fotógrafo, nessa época, ainda se dedicava a realizar registros para o

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álbum “Paris pitoresca, pequenos ofícios” (Paris pittoresque, petits métiers). Inclusive,

produzir imagens das ruas tipológicas de Paris tornou-se um hábito entre artistas. E Atget, já

que fornecia imagens para a inspiração deles, não podia ausentar-se dessa tarefa. Personagens

diversos foram capturados por sua câmera de forma a compor um rico álbum. Dentre eles,

músicos de rua, como o da imagem anterior (Fig. 11).

A fotografia foi realizada em uma dessas ruas da cidade em que transitavam os

pequenos comerciantes. Contudo, o que se retratou foi uma jovem cantora e seu parceiro,

responsável pelo instrumento musical, o barrel organ15, transportado no carrinho

(SZARKOWSKI, 2003). Esse clique, além de registrar uma cena “pitoresca”, dá lugar a certa

vitalidade da imagem, uma vez que a personagem foi congelada no ápice de uma ação. A

pequena cantora, de braços e sorriso abertos, olhando para o alto, destaca-se no quadro. Seu

semblante se diferencia nitidamente da seriedade do seu parceiro, que lança um olhar

intimidador e direto para a câmera.

Os personagens desse fragmento fotográfico, além de se posicionarem de forma

distinta no enquadramento, rompem com a frontalidade dos rostos tão exercitada por Atget

nos seus retratos. Ao recorrermos à ideia de corte fotográfico, essa imagem deixa vestígios de

que foi paralisada no tempo. É como se Atget tivesse flagrado esse momento no seu

desenrolar, sem que tenha havido uma preparação do instante, mas um flagra dele. A ação da

cantora, como congelada numa fração de segundo de uma duração, é uma fatia do tempo.

Outro fator que colabora para o destaque desse instantâneo é a expressão feliz da

pequena cantora. Segundo Szarkowski (ib.), contrariando a falta de “riso” na obra de Atget, a

jovem e seu semblante radiante nos levam a crer que, mesmo não sendo uma famosa cantora,

é uma profissional do entretenimento e, tal como seu sorriso radiante, não evidencia uma

inautenticidade ordinária. Assim, esse instantâneo fala de um tempo descontinuado, tanto pela

captura de um instante do desenrolar da ação, quanto pela ruptura que esse fragmento consiste

nos retratos de Atget.

É desse instante paralisado a uma instabilidade presente na imagem a trajetória que

enfatizamos nessa fotografia. Um instante – tomado no seu acontecimento – deixa rastros do

seu antes e seu depois, ainda que se desenvolvam imaginativamente. É um instante que se

move na sua instabilidade, no jogo entre o congelamento e o movimento. Por ter sido a

15 O barrel organ se trata de um grande instrumento que toca música mediante o acionamento de uma manivela. Costumava ser utilizado para entreter as pessoas na rua.

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cristalização temporal de um acontecimento, esse instantâneo ainda se move aos olhos do

espectador. A pequena cantora salta em um corte na continuidade.

***

A ideia de corte é particularmente descrita por Dubois. Temporalmente e

espacialmente, a fotografia é uma tomada, uma fatia, cortada ao vivo, subtraída de uma

continuidade. O gesto do corte, para o autor, é um golpe, uma jogada. Nesse jogo, a

“fotografia é uma partida sempre em andamento, onde cada um dos parceiros (o fotógrafo, o

observador, o referente) vem arriscar-se tentando fazer a jogada certa” (DUBOIS, 2009,

p.162). São relatadas três reflexões sobre a descontinuidade na temporalidade fotográfica.

Com elas, faremos paralelos com o modelo teórico do acontecimento histórico de Benjamin.

A primeira se trata da “detenção da memória” provocada pela imagem fotográfica,

sobre a qual o autor exemplifica com uma foto sua que foi tirada enquanto corria, quando

criança. Ele diz que parou de correr no momento do clique de seu pai, ficando congelado,

parado diante da câmera: a foto (me) detém. “Eu parei, a foto imobilizou-me de uma vez por

todas” (id. ib. p.163). Pego no golpe,

torno-me como suspenso, enregelado, fixado numa imagem que hoje me parece, quando a olho, não como uma lembrança de corrida (a-corrida-que-eu-poderia-ter-vencido), mas como uma lembrança de parada, de congelamento, de escapada do mundo que continua sem mim (id. ib. p.163-164).

Essa experiência, em que o autor se percebe mais em uma “parada” que em uma

“corrida”, mostra como o momento fotográfico irrompe de uma continuidade, salta como um

tigre para uma temporalidade que não mais se inscreve no fluxo, mas se destaca dele – para

fora dele. O corte, como uma detenção, uma parada, no continuum vem expressar muito o

lampejo benjaminiano enquanto mônada. Relembrando Benjamin: “quando o pensamento

pára, bruscamente, numa configuração saturada de tensões, ele lhes comunica um choque,

através do qual essa configuração se cristaliza enquanto mônada” (BENJAMIN, 1994a,

p.231).

Não é por acaso que as articulações que Benjamin faz sobre a ideia do “agora” como

origem diz respeito à interrupção de um fluxo, a um salto. A cristalização desse salto, além de

histórica, é fotográfica, levando em conta o “choque” com que o movimento do pensamento é

detido. E só por essa paralisação é que o “anjo da história” pode ter uma visão catastrófica dos

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acontecimentos. A fotografia que consideramos, aqui, como uma forma específica de

temporalidade encontra expressão nessa “dialética na imobilidade” formulada por Benjamin.

Contudo, é bom relembrar que, como expomos no capítulo anterior, o autor admite não só o

congelamento, mas uma mobilidade nas suas imagens.

Golpear, cortar. De uma só vez, o instante que o fotógrafo captura passa do

movimento à petrificação. Fotografar implica nessa passagem, nessa mudança de estado. A

experiência fotográfica da detenção vivenciada por Dubois nos esclarece o exato momento de

deslocamento provocado pela interrupção temporal, a qual ele mesmo descreve como

“experiência de corte radical da continuidade, corte que fundamenta o próprio ato fotográfico”

(DUBOIS, 2009, p.164). Fazendo um diálogo com o “estilhaço” benjaminiano, a imagem

fotográfica como um corte no tempo da história é catastrófica, já que golpeia a linearidade

dos acontecimentos. Nesse momento-estilhaço, em que, pelo clique, sou pego, desperto pelo

relampejar.

As imagens do pensamento de Benjamin, claro, vão além dessas relações, já que se

dirigem a uma percepção instantânea e não, estritamente, à fotografia como natureza de

imagem. Entretanto, cabe ressaltar os momentos em que a imagem fotográfica se torna a

maneira mais próxima da sua construção histórico-filosófica. Para isso, ressaltamos a segunda

reflexão de Dubois sobre o corte: a brincadeira de “estátua”. Aludindo à infância, ele descreve

o jogo em que, numa olhada brusca para trás, aquele que conta deve flagrar o participante que

se mover. “Nesse jogo, o movimento, tal como aparece aos olhos do que conta, não passa de

uma série de posições fixas, recortadas, fora do fio da duração” (id., ib., p.165). O movimento

é recortado em imobilizações, por “brancos”, já que é na ausência do olhar que ele se perfaz.

Da petrificação do movimento, como um perigo, pensamos na própria Medusa, aquela

que “não é possível olhar sem morrer, sem ser petrificado em estátua” (id., ib., p.148). Aqui o

instante é uma ameaça, já que ser capturado implica em uma passagem: do mundo dos vivos

para o dos mortos; de um lado da fatia ao outro. Pelo ato fotográfico se passa “de um tempo

evolutivo a um tempo petrificado, do instante à perpetuação, do movimento à imobilidade, do

mundo dos vivos ao reino dos mortos, da luz às trevas, da carne à pedra” (DUBOIS, p.168,

2009). Essa passagem, o autor enfatiza que, certamente, é feita com medo, angústia, ao olhar

de Medusa. Afinal, ela demanda encarar a morte. Nada mais benjaminiano do que essa

proposta. Na visão relampejante da história, ao mesmo tempo em que se destaca uma ruptura

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na linearidade temporal, ruínas se amontoam aos nossos pés. Há uma passagem da totalidade

aos fragmentos.

Sobre esse momento de perigo, mineralizado pelo olhar de Medusa do historiador,

apreendemos uma importante ligação entre a fotografia e a história em Benjamin: o signo do

clic. Mauricio Lissovsky (1998), mencionado no capítulo anterior, desenvolve, com especial

atenção, essa relação:

O historiador e o fotógrafo são ambos regidos pelo signo do tigre – o totem interruptor, o animal sagrado do clic. No salto do tigre sobre a presa, o acontecimento é imobilizado, ‘cristaliza-se como mônada’: ‘uma configuração saturada de tensões (...) Benjamin persegue no ‘objeto histórico’ o ‘sinal de uma imobilização messiânica dos acontecimentos’. Também o disparo do fotógrafo pertence à ordem das interrupções: ‘A máquina comunicava ao instante, por assim dizer, um choc póstumo’. (LISSOVSKY, 1998, p. 23).

Nesse trecho, temos a clara associação da imagem fotográfica à imagem relampejante,

do salto de tigre. Lissovsky evidencia que o objeto histórico que Benjamin persegue é

construído aos saltos, ao modo imobilizante, assim como um corte fotográfico. O salto, vale

lembrar, é perigoso, chocante. Não por acaso historiador e fotógrafo têm uma relação tensa

com seus objetos. Ao congelá-los, arrancam do vir-a-ser dos acontecimentos. São fragmentos

que, distanciados de uma ordem cronológica, aguardam uma decifração diversa. Uma outra

temporalidade é instaurada a partir da interrupção e exige uma interpretação atenta. Sendo a

fotografia o modelo de imagem dialética benjaminiana, deixemos claro que nela não temos

ligação simplesmente com a morte, mas também com a salvação; não só com o passado, mas

também com o futuro. Voltaremos a esse assunto ainda nesse capítulo.

Sobre a descontinuidade característica que o ato fotográfico faz eclodir, vale lembrar o

que Boris Kossoy (1999) destaca, em uma perspectiva similar a de Dubois, como a relação

fragmentação/congelamento: a fotografia é um recorte espacial e uma interrupção temporal.

“Na realidade a técnica permite ao fotógrafo articular a relação fragmentação/congelamento

cultural e expressivamente – em seu processo de criação - no ato de tomada da foto”

(KOSSOY, 1999, p.30). Ora, já que falamos de recorte do tempo e do espaço, não podemos

tomar o ato fotográfico como captura da verdade absoluta. Ele é um constructo, uma criação,

que pressupõe escolhas do próprio fotógrafo, não explícitas no documento. Sugerindo não

mais uma realidade restrita da fotografia, Kossoy a aponta enquanto binômio

documento/representação, no qual a interferência do fotógrafo no testemunho da realidade dá

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à imagem seu caráter ficcional, de construção de realidades. “O índice iconográfico comprova

a ocorrência/aparência do referente que o fotógrafo pretendeu perpetuar” (id., ib., p.34).

Para o autor, a fotografia não se limita a apenas uma realidade. Ela cruza realidades.

Sem corresponder, essencialmente, à verdade histórica, mas sim a um registro da aparência, a

realidade fotográfica “(...) reside nas múltiplas interpretações, nas diferentes ‘leituras’ que

cada receptor dela faz num dado momento” (id., ib., p.38). Essas leituras, por sua vez, devem

levar em conta tanto as exterioridades quanto as ocultações do documento/representação.

Cabe ao exercício do leitor não se deixar iludir pela parcialidade que é inerente à fotografia

enquanto verdade histórica.

Kossoy e sua relação entre fotografia e história, ainda que não se proponha a ver a

imagem fotográfica como modelo da “imagem dialética”, admite que na imagem fotográfica

há um jogo entre verdades explícitas e segredos implícitos ao documento. Daí designar a

fotografia como documental, porém imaginária. Desse duplo da imagem, vale dizer: se é

inerente à fotografia suas exterioridades e ocultações, não podemos dela extrair a realidade tal

como ela é. Dialogando com Benjamin, mais uma vez, a “imagem do passado”, de maneira

alguma, corresponde de forma empática à história dos vencedores ou, dito de outro modo, ao

passado homogêneo. É no instante de reconhecimento da “imagem do passado” que o

historiador vê aquilo que antes não estava explícito - uma história da barbárie.

Susan Sontag (2004, p.92), no entanto, ao comentar o pensamento de Benjamin e sua

relação com a atividade do fotógrafo, não é muito otimista. Ela diz que o apelo benjaminiano

quanto ao passado falar com voz própria, ao ser generalizado na fotografia, passa a ser a

“descrição do passado”, pois o preserva. A nova realidade paralela criada pela fotografia “(...)

que torna o passado algo imediato, ao mesmo tempo em que sublinha sua ineficácia cômica

ou trágica, reveste a especificidade do passado com uma ironia ilimitada, transforma o

presente no passado e o passado em condição pretérita”.

Segundo a autora, a fotografia favorece uma relação instantânea com o passado e isso

implica, inevitavelmente, na sua ligação direta com a realidade. Algo como “se isso está na

foto é porque aconteceu assim”. Há uma crença maior naquilo que se vê do que naquilo que

se oculta. Neste aspecto, o caráter indicial (de presença do que de fato existiu, rastro do

referente) da fotografia acaba por fazer com que o mundo deixe de estar fora das fotos para

estar dentro delas. “A vida não são detalhes significativos, instantes reveladores, fixos para

sempre. As fotos sim” (id., ib., p.96).

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O que Sontag afirma sobre a instantaneidade do passado por meio da fotografia atrela

a imagem ao espelho do real. E isso corrobora para o desenrolar de uma narrativa imagética

irreversível, já que são instantes “fixos para sempre” e, por assim dizer, irrevogáveis. É nesse

aspecto que Benjamin faz questão de diferir suas “imagens”. A imagem do passado que

ocorre ao historiador se dá em um instante específico – o “agora” da cognoscibilidade -, como

no momento de um clic. Contudo, esse clic se dá por congelamento apenas por uma fração de

segundo, uma centelha. Ele paralisa para reconhecer tanto as ruínas como suas possibilidades

de redenção. É essa fixação do instante que impele o passado ao futuro.

Para termos essa compreensão, porém, além de exigir um mergulho na natureza

dialética do pensamento benjaminiano, que nos coube fazer no capítulo anterior, também foi

preciso recorrer, em contrapartida, nesse capítulo, à própria natureza fotográfica que os

teóricos da fotografia já citados nos descrevem – principalmente, Dubois. Na sua terceira

reflexão sobre o corte fotográfico, a imobilidade é mais uma vez anunciada como própria à

fotografia. No que ele chama de “a flecha partida ou o pensamento descontínuo”, afirma que o

movimento da flecha só existe em ilusão, já que é pelas diferentes posições que o objeto

ocupa, a cada instante, no espaço, que somamos momentos de imobilidade em uma ideia de

movimento. Assim, “(...) em cada fragmento do tempo, por mais infinitesimal e até teórico

que seja, a flecha está fixa. Jamais se pode dizer estritamente aqui-agora que está se

mexendo” (DUBOIS, 2009, p.165-166).

O instante fotográfico, para que lhe seja definida uma fixação ou imobilidade

característica, é recorrentemente comparado ou mesmo acompanhado da ideia de movimento.

Nas três reflexões de Dubois sobre o corte (“detenção da memória”, “estátua” e “flecha

partida ou pensamento descontínuo”), a circuncisão do instante está imbricada a um tipo de

congelamento ou parada do acontecimento. O próprio autor, inclusive, afirma que nessas suas

reflexões sobre o corte, a noção de instante não é definida de maneira simples.

Toda a relação do ato fotográfico com a temporalidade vai começar a atuar aqui em sua extrema complexidade, e veremos que a noção de instante (único, pontual etc.), tantas vezes dada como consubstancial à própria idéia que se tem do ato fotográfico, é de fato uma noção menos evidente e menos simples do que parece, em particular porque não exclui nem uma certa relação com a duração, nem a existência de uma grande mobilidade interior. O instante fotográfico é um instante eminentemente paradoxal (id., ib., p.166).

Se ressaltarmos apenas as palavras assinaladas pelo autor - “instante”, “duração”,

“mobilidade” e “paradoxal” -, percebemos que a complexidade já se estabelece aí. Podemos

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falar em um instante movente? Em uma duração instantânea? O autor identifica o paradoxo e

esboça sua problematização, ainda que se mantenha mais na defesa de uma fixidez própria do

instantâneo fotográfico do que na sua “mobilidade interior”. Fala que o ato fotográfico é

atravessado por intensos “vaivéns” e até coloca que o instantâneo, mesmo sendo um ponto

que instaura uma temporalidade, não deixa de superar essa demarcação, passando desse ponto

a uma “nova inscrição na duração”. Essa nova inscrição se dá pela “perpetuação (no outro

mundo) do que só aconteceu uma vez” (id., ib., p. 174).

Dubois, ainda na sua argumentação da mobilidade do instante, parece “fixista”, uma

vez que admitindo movimento no corte fotográfico, prioriza a “perpetuação”, mesmo que em

outro estado, desse instante. Já falamos nesse capítulo sobre essa passagem de um mundo a

outro por meio da foto – do mundo dos vivos ao dos mortos. Essa passagem, entretanto, tem

como fim perpetuar o instante, dar a ele permanência. Daí dizer que, no tempo, o autor não

consegue fundamentar o movimento. Sua tentativa de dinamizar o instante fotográfico,

portanto, vai se juntar também ao espaço: “nesse simples ponto fixo abre-se e desdobra-se

todo um espaço que autoriza e até suscita o movimento interno, uma corrida que não cessa de

fazer o ‘sujeito’ fotográfico correr” (id., ib., p.174). Ou seja, é pelo princípio da distância

espaço-temporal (que já comentamos no tópico anterior) que o sujeito vai se mover dentro,

entre e pelas imagens.

Querendo circunscrever o instante, Dubois ainda não esclarece totalmente de que

modo ele pode tornar-se movente. Cita trabalhos do fotógrafo Denis Roche16 para

exemplificar as “idas e voltas” da imagem, mas, por outro lado, o instante parece perder-se no

próprio processo de encontrá-lo. Inclusive, tentando discernir bem a descontinuidade peculiar

à fotografia, faz um paralelo com a narratividade do cinema, no que diz respeito à relação

campo/fora-de-campo.

O fora-de-campo cinematográfico, porque se inscreve no movimento e é capturado na duração – afinal é tudo o que estará no princípio da montagem – é um espaço sempre ativo diegeticamente, investido pelo jogo da narrativa: um personagem que se vê sair do campo à direita é seguido imaginariamente em seu espaço off, pode nele realizar uma ação e voltar ulteriormente para o campo visual. (...) Ao contrário, o fora-de-campo fotográfico, longe de operar por continuidade e narratividade, sempre se dá na parada, num corte temporal estrito, qualquer continuidade apartada, numa convulsão instantânea. (...) em foto, o fora-de-campo é literal, no cinema é metafórico (id., ib., p.180-181).

16 Denis Roche é o fotógrafo que insistiu na repetição do ato de tomada. Para ele, a fotografia se distingue de outras artes por reclamar essa repetição imediata do instantâneo.

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A literalidade do corpo é exigida na fotografia. Aquilo que, pela narratividade do

cinema, permite o desenrolar da história mesmo na ausência visual do ator, na fotografia só

ocorre pela presença. Enquanto no cinema se destaca a continuidade, na fotografia é a

descontinuidade um de seus principais aspectos. Sobre a representação do tempo no suporte, o

cinema corre em sua própria narrativa. Já na fotografia, nos casos extremos de sua produção

nos primórdios da técnica (que, inclusive, exigia um longo tempo de imobilidade do modelo)

e do advento do instantâneo (a foto feita em uma fração de segundo), o tempo se esvai do

suporte. No primeiro caso, por a película ser muito lenta para captar o movimento rápido. No

segundo, por ser rápida demais, “a foto detém o movimento”. Dessa forma, o instantâneo só

nos dá a ver “um único instante do movimento, imobilizado, na maioria das vezes capturado

no apogeu de seu percurso” (id., ib., p.182). O ilustre fotógrafo do século XX, Cartier-

Bresson, consagrado por capturar cenas no seu “momento decisivo”, não fez mais do que

trazer à tona esses instantâneos em apogeu17.

Não esquecendo que o nosso interesse é compreender a fotografia como modelo

teórico e também relacioná-la à ruína, devemos lembrar que Benjamin, na sua Pequena

história da fotografia, falava de uma persistência do instante nos primeiros retratos,

justamente por eles exigirem um longo tempo de imobilidade do modelo em frente à câmera.

Vimos que Dubois não ressalta a diferença desses retratos em relação às fotografias

instantâneas. Simplesmente fala que, em ambas, não há tempo do movimento se inscrever na

imagem. Para responder melhor à questão relativa ao tempo do instantâneo, Lissovsky (2008,

p.8) se aprofunda na seguinte indagação, em seu livro A máquina de esperar: “a partir do

momento em que a fotografia se tornou dominantemente instantânea, para onde foi o tempo

que antes era parte indissociável de sua confecção?”. De forma distinta de Dubois, mas não

deixando de mencioná-lo, Lissovsky vai no cerne da questão sobre o instante fotográfico e sua

origem moderna.

Sabemos que a fotografia não nasceu instantânea. Já expomos como eram feitas as

fotografias nos primórdios e como os recursos conquistados por elas contribuíram para a

descoberta do “inconsciente ótico”, por meio do qual coisas minúsculas e ocultas se tornam

“grandes e formuláveis”. Benjamin dá o exemplo das plantas de Karl Blossfeldt como

17 Na série especial de documentários intitulada Contacts, fotógrafos renomados mostram como funciona o processo de produção e escolha das fotos. Cartier-Bresson, depois de ver a cópia contato de seus negativos, circula aquelas que deverão ser ampliadas. O fato mostra como, dentre vários instantâneos em sequência, apenas um é eleito como “apogeu”.

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expressão desse “inconsciente”. A percepção, também, diante do muito rápido era outra, com

as possibilidades fotográficas (congelamento, ampliação etc) e cinematográficas (close,

câmera lenta, dentre outros). O próprio filósofo, ao esboçar seu pensamento, mostra como

estava regido pelo signo do clic.

Cada tecnologia da imagem, diz Lissovsky (ib., p.21), carrega uma visualidade que lhe

é própria, “estabelecendo não apenas as condições do que é visível, mas, sobretudo, do

invisível que lhe é correlato”. Em uma sociedade onde a experiência declina, a fotografia

passa a ser sua conquista. O pensamento benjaminiano estava baseado nesse paradoxo de

visibilidade e invisibilidade. Assim,

a recuperação dessa experiência tanto em Benjamin como em Proust, é dependente da “participação do instante” - isto é, dá-se em um instante particular, destacado de uma série supostamente homogênea, e no qual toda a temporalidade está implicada. É uma prerrogativa do instante fazer da convergência entre passado e futuro um salto em direção ao “tempo perdido” (id., ib., p.20).

Essa noção abrangente do instante faz da fotografia uma experiência-chave no

pensamento de Benjamin. Ela é da ordem das interrupções, destaca o acontecimento de sua

sucessão, assim como favorece a percepção da semelhança. Vimos no final do capítulo

anterior, a partir do ensaio A doutrina das semelhanças, como a semelhança engendra o

paradoxo da interrupção e da fugacidade: “(...) as semelhanças irrompem no fluxo das coisas,

transitoriamente, para desaparecerem logo em seguida” (BENJAMIN, 1994a, p.112-113). A

fotografia instantânea, então, favorece essa percepção do semelhante, pois, com o declínio da

“aura” e da experiência “sensível”, as semelhanças se tornam “extrasensíveis”. Nesse

raciocínio, Lissovsky afirma que está o cerne da reflexão de Benjamin sobre a fotografia.

Nas últimas décadas do século XIX é que se pôde falar em fotografia instantânea. “Na

percepção visual, o intervalo mínimo requerido é de 1/10 de segundo. Abaixo desse limiar,

nada fica. Tudo pisca” (LISSOVSKY, 2008, p.36). Ainda que pareça lógico associar o

instantâneo à “diminuta extensão física temporal”, Lissovsky expõe que a particularidade

desse tipo de imagem está na “desaparição do durante”. Recorre, inclusive, ao conceito

bergsoniano de duração para fundamentar sua afirmação. E, ainda que pareça estranho – já

que o pensamento de Bergson implica no devir das coisas, ou seja, tem mais êxito no modelo

do cinema -, o que ele propõe é uma inversão: pensar o imóvel a partir do movimento. A

fotografia do século XX, para Lissovsky, é uma experiência peculiar de “instalação da

duração”.

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Falamos anteriormente como Cartier-Bresson se destacou por suas fotografias em

“momento decisivo”. Sua escolha do exato momento exemplifica como aquele “instante” se

sobressai de uma sequência, de uma duração. Ora, é nessa proposta de fotografia instantânea

que Lissovsky investe. O instantâneo que irrompe do devir. É pela espera que o fotógrafo

instaura uma duração particular e onde impregna no instantâneo o aspecto. Deixando de ser

desprovido de tempo, como no fotograma, o instantâneo “passa a ser uma forma particular em

que o tempo se manifesta pelo vestígio de seu ausentar-se, pelo seu modo de refluir-se. Esse

vestígio, esse traço deixado pelo tempo quando bate em retirada, eu chamo de aspecto18” (id.,

ib., p.60).

A proposta do autor, assim, sugere uma revisão do que Dubois coloca como o golpe

do corte, já que seria própria à temporalidade fotográfica a exclusão da duração. Ainda

reconhecendo o valor dessa noção de corte como ato, Lissovsky expõe que é inútil restituir

duração à fotografia quando ela é um ato consumado (um agora-passado). “Mas se olharmos

do outro lado, talvez reencontremos a duração, bem aqui onde ela ainda é um agora-futuro”

(id., ib., p.61). Assim, estaria no próprio devir do instante um aceno de futuro e não de

mortificação, congelamento, próprio ao olhar de Medusa.

Está presente nas imagens fotográficas uma instabilidade, que vai do instante à

duração ou vice-versa. A ideia de corte nos é favorável para pensar como o ato fotográfico se

relaciona com o tempo da interrupção, sem o qual não existiria o “piscar” do disparo.

Sabemos, outrossim, que “parar”, “interromper” não faz da fotografia um acontecimento

estanque. Seu devir já estava assinalado por Benjamin, quando, por clics, descreve a

possibilidade de ver no passado virtualidades de futuro. Eis o que se estabelece na relação da

fotografia como ruína: é na visão relampejante que se pode “despertar os mortos”; é no

vestígio, no aspecto, que o tempo devém instante.

2.3. Sob rastros de memória

Tempo que passa, que congela. Acontecimentos esquecidos e outros lembrados.

Fotografar para lembrar faz do ato de tirar fotos um exercício de não se fazer esquecer. Se

registramos por meio de fotos é porque queremos lembrar, mesmo que, hoje, com a difusão

em larga escala da fotografia digital, nossas recordações possam não se materializar em papel.

18 Sob a ótica do aspecto, Lissovsky analisa o conjunto de fotografias modernas não só de Bresson, mas também de Diane Arbus, Sebastião Salgado e August Sander.

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E ainda que essa atividade não garanta “eternidade” ao tempo registrado, pelo menos, deixa

rastros para ativar lembranças. Ao nos referirmos ao termo “memória” e sua relação com a

fotografia, muitos desdobramentos são sugeridos. Contudo, é comum percebermos a

proximidade que o próprio ato de registrar tem com o tempo passado (interrompido) e,

paralelamente, ao tempo presente, que corre. É disso que iremos nos ocupar nesse primeiro

momento.

A memória se liga à fotografia, para autores como Laura Flores (2005, p.139), pela

própria condição indicial dela advinda. Trazendo algo do passado ao presente da percepção

visual, ela se constitui como imagem-rastro evanescente. “Ambas, fotografía y memoria,

tienen como objetivo principal almacenar algún tipo de esencia inmaterial, instantánea y

volátil”. Tanto a percepção como a imagem só existem como instantes frágeis. Uma vez

materializada, a fotografia funciona como “equivalente físico e mental” da memória. Não foi

à toa que o uso de imagens fotográficas como forma de “documentar” o passado, no século

XIX, foi também uma forma de mantê-lo presente.

Caracterizadas como “voláteis”, fugidias, fotografia e memória, embora preservem

algo do passado, são meios por quais as lembranças tomam forma de rastro. Vamos perceber

essa analogia ao longo do texto. Entretanto, sem descrever uma “equivalência” entre os dois

termos, Benjamin ressalta a noção de memória como “meio” e não “instrumento” de

aproximação com o passado. Em seu texto Escavando e recordando, faz questão de sublinhar

que

(...) a memória não é um instrumento para a exploração do passado; é, antes, o meio. É o meio onde se deu a vivência, assim como o solo é o meio no qual as antigas cidades estão soterradas. Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava (BENJAMIN, 1995, p.239).

O passado, assim, não está explícito, não vem à memória em acontecimentos

transparentes. No trabalho de escavação, está o empenho em revelar os “fatos” passados como

camadas, como aquele que revolve o solo para espalhar a terra. O escavador é aquele à

procura de ruínas do passado. Daí a memória agir como meio dessa exploração. No ato de

escavar, recordo do que antes havia ali e do que ainda pode estar submerso, desconhecido. Os

vestígios do passado, “as antigas cidades soterradas”, só se tornarão visíveis por essa tarefa

mnemônico-escavadora. Lembramos, nesse momento, o que Benjamin (1994a, p.224) expõe

sobre a tarefa do historiador dialético. A articulação do passado não significa conhecê-lo

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“como ele de fato foi”. “Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja

no momento de um perigo”.

Recordar, então, é lidar com rastros de um tempo sobre o qual não conheço em

integridade. A memória como meio de perscrutação do passado lida com as obscuridades de

um terreno repleto de “achados”, ruínas. Por tudo que já falamos acerca da noção de índice

em fotografia e na ruína, estabelecemos um paralelo, aqui, com a memória como meio. Meio,

segundo Benjamin, onde se investiga os resquícios de tempo passado. Ou seja, mais do que

encontrar uma exatidão dos acontecimentos passados, as lembranças informam, revelam seus

destroços que até hoje ressoam. A “verdadeira lembrança” deve, ao mesmo tempo, “fornecer

uma imagem daquele que se lembra” e indicar as camadas que “foram atravessadas

anteriormente”.

Desse raciocínio, identificamos na memória do escavador algumas semelhanças com a

atividade da memória em Bergson. Como que acionando “camadas”, a memória, no entender

bergsoniano, atualiza-se nas virtualidades do objeto. Ela está sempre presente e em

reconstrução constante, uma vez que a própria percepção transcorre diferentes níveis. As

camadas da memória, desse modo, rondam em torno do objeto percebido. Assim, “essa

memória, que sua elasticidade permite dilatar indefinidamente, reflete sobre o objeto um

número crescente de coisas sugeridas – ora os detalhes do próprio objeto, ora detalhes

concomitantes capazes de ajudar a esclarecê-lo” (BERGSON, 2006, p.119).

Agindo por expansão, a memória não é estanque. Unindo, e assumindo os riscos dessa

ponte bergson-benjaminiana, a tarefa da memória oscila conforme o sujeito, que potencializa

os desdobramentos daquele objeto, e o próprio objeto, que sugere detalhes ao sujeito,

ajudando a esclarecê-lo. Considerando a fotografia como esse possível objeto, chegamos a

uma consideração importante: como alvo de uma reconstrução constante da memória, meio de

esclarecer o passado, ela sugere informações sobre esse passado, contudo, somada à

atualidade do próprio sujeito que a investiga. Pela memória, escavadora de camadas, a

fotografia, ainda que imagem interrompida pelo golpe temporal, é objeto em crescente estado

de atualização.

Exemplifiquemos com a lembrança de Barthes (1984) ao olhar a imagem de sua mãe.

Diante da foto do Jardim de Inverno, ele se deixa levar pelos sentimentos e lembranças,

percorrendo um campo aberto que não se limita ao código fotográfico, mas se expande e se

atualiza ao revisitar a imagem. O sentimento do autor, ao ver a fotografia, é descrito como

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uma aparição na memória, uma lembrança involuntária, viva e completa. Por meio da foto,

assim como Proust, Barthes se deixou levar pelos tempos memoráveis, reminiscentes. Tempos

esses não explícitos na fotografia em si, mas evocados no acontecimento lembrado, que tece

seu próprio caminho, do presente para o antes e o depois.

Ainda que saibamos que Barthes identifica na foto uma presença incontestável do

referente, já passado, a sua atividade mnemônica, no momento da lembrança, desvenda

camadas outrora encobertas. É como se a fotografia fosse a ponta de um iceberg que esconde

muitos porvires. Da premissa barthesiana do “isso foi”, desprende-se, pela memória, um

instante instável. Entretanto, esse desprendimento acontece conforme a tarefa do escavador.

Barthes, ainda que reconheça na atualidade da lembrança uma “aparição na memória”,

designa nessa experiência “o real no estado passado”. Um atestado da presença e não das

virtualidades dele ressonantes.

É dessa relação testemunhal com o real que Kossoy (1999) fala do documento

fotográfico como memória. Da aparência do referente, desdobram-se realidades além da

exterior, mais explícita. As outras faces do documento não podem ser vistas. “É o outro lado

do espelho”. Da constatação, detecta-se o oculto, pois nem tudo está ali. A realidade interior

da imagem perturba a imobilidade fotográfica. Em um trabalho mental de reconstituição,

mergulhamos no conteúdo da foto, tentando articular as circunstâncias que envolveram a

situação documentada. Visitamos o passado ao rememorá-lo. Isso, para Kossoy (ib., p.132)

implica no processo de criar realidades. “Fotografia é Memória e com ela se confunde. O

estatuto de recorte espacial/interrupção temporal da fotografia se vê rompido na mente do

receptor em função da visibilidade e ‘verismo’ dos conteúdos fotográficos”.

A reconstituição oriunda da ruptura do estatuto do recorte, para o autor, pode ser

dirigida tanto à articulação histórica quanto à recordação pessoal. Um aspecto interessante

apontado aqui é que, a partir da ideia de corte defendida por Dubois, tem-se, no ato da criação

de realidades para o documento, não a característica do congelamento, mas do seu contrário.

“Na tentativa de ‘descongelarmos’ o documento poderemos, talvez, devolver aos cenários e

personagens sua anima, ainda que seja por um instante” (id., ib., p.135). Esse instante, em que

a fotografia ganha vida imaginativamente, é dedicado a explorar o oculto do documento.

Possível instante-escavação.

Benjamin, como sabemos, em suas teses, dirige-se a uma história fragmentária,

descontínua. E, a cargo do historiador, está a tarefa de desconfiança do passado, da sua

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verdade. Desconfiar do documento histórico, inclusive, foi uma das tarefas que fizeram de

Michel Foucault um marco dentre os pensadores no século XX. Ele se destacou por trabalhar

a noção de descontinuidade histórica e também por perceber como os corpus documentais

com os quais trabalhava apresentavam regularidades e rupturas discursivas. Esse novo tipo de

história – a arqueologia – dedica-se a explorar não apenas as práticas de um discurso único,

mas todas aquelas que nele se apoiam. O empenho é de questionar o documento quanto à sua

verdade, chegando a tratá-lo como mentira. Logo mais abordaremos essa dualidade

verdade/mentira no documento.

O caráter de presença/ausência que parte da ligação da fotografia com o passado é

recorrente, principalmente, sob a imagem do rastro, do vestígio. Vimos que o documento, ao

mesmo tempo em que certifica uma presença, também o faz com a ausência. Sendo a

memória o meio pelo qual o passado ganha vida, fazendo da sua realidade também uma

ficção, sua atividade requer uma exploração dos rastros do tempo. Na visão da história

benjaminiana, não podemos conhecer o passado com exatidão, mas apenas o articularmos.

Não temos acesso a uma totalidade dele, uma vez que só cintila em um instante de perigo.

Fotografia, memória e história se entrelaçam nesse momento visionário. Momento-ruína.

A noção de rastro é complexa por unir uma presença do ausente e a ausência da

presença. Falamos dessa relação indicial que tanto ruína quanto fotografia carrega.

Encontramos no texto da filósofa e professora Jeanne Gagnegin (1998, p.218), Verdade e

memória do passado, um questionamento fundamental: “por que a reflexão sobre a memória

utiliza tão frequentemente a imagem – o conceito – de rastro?”. Movida por essa indagação, a

autora identifica uma fragilidade essencial que essa imagem traz para nós.

(...)a memória vive essa tensão entre a presença e a ausência, presença do presente que se lembra do passado desaparecido, mas também presença do passado desaparecido que faz sua irrupção em um presente evanescente. Riqueza da memória, certamente, mas também fragilidade da memória e do rastro. Podemos também observar que o conceito de rastro rege igualmente todo o campo metafórico e semântico da escrita, de Platão a Derrida (id., ib., p.218).

Está na escrita a característica de assinalar a ausência das coisas e, por isso, sua

analogia ao rastro. Contudo, a autora, nessa passagem, faz questão de frisar o aspecto frágil

que o conceito estabelece. Ele nos dá consciência do quanto a fragilidade percorre a memória.

Mais uma vez recorremos a Benjamin quando diz que o passado relampeja perigosamente. É

o perigo de uma irrupção em “um presente evanescente”, fugaz. Contrariando o desejo de

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plenitude e presença, o rastro e sua fragilidade essencial faz da tarefa do historiador uma luta

contra o esquecimento e a mentira, “sem cair em uma definição dogmática de verdade”. Nas

palavras de Gagnegin (ib., p.218), “o rastro inscreve a lembrança de uma presença que não

existe mais e que sempre corre o risco de se apagar definitivamente”.

O historiador é desafiado a não se entregar a essa fragilidade. Lutar contra o

esquecimento e a mentira, é escavar as camadas desse passado, não deixando de “despertar os

mortos” no presente. Ao entrelaçar-se com a história, a memória assume essa “frágil força

messiânica” presente na visão relampejante do passado. Por ser evanescente, ou seja, por

poder aparecer e desaparecer em apenas um instante, essa fragilidade do rastro é complexa.

No rastro, eu vejo e lembro. Contudo, se eu não o vejo, o que significa? Aí está um nó. A

ausência do rastro também significa.

Seria mentira o extermínio de pessoas na segunda guerra, por exemplo, pela escassez

de arquivos dos campos de concentração? Sabemos que esses “documentos” foram destruídos

com a intenção também de aniquilar a expressão da história e da memória de um povo inteiro.

Qualquer rastro de existência dele, para Hitler, deveria ser destruído e, em consequência,

apagaríamos sua existência também da memória. É manter atual a lembrança do esquecimento

um dos principais desafios do historiador. Essa tarefa, para Gagnebin, é “sem glória”, uma

vez que se trata de “transmitir o inenarrável”, manter acesa a memória dos anônimos, lembrar

que o “inesquecível existe”, mesmo que não se possa descrevê-lo.

***

FIGURA 12: Reserve Canada e Reliquaire - Christian Boltanski (1988; 1989-1990)

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O Holocausto e, atrelado a ele, o tema da ausência e do esquecimento, são colocados

por Christian Boltanski nos dois trabalhos que aparecem na fotografia acima: Reserve Canada

(1988), à esquerda da imagem, trata-se de uma instalação com um imenso conjunto de roupas

penduradas e expostas de forma amontoada, com iluminação superior, e Reliquaire (1989-

1990), à direita, um conjunto de imagens de rostos que aparecem de forma fantasmática,

diluída, sem possibilidade de identificação.

Por um lado, em Reserve Canada, Boltanki lembra os cadáveres esquecidos no

extermínio do Holocausto. Vestimentas penduradas em grande número torna imensa a

manifestação da ausência corporal. E remontando essa ausência aos tempos de guerra, são

rastros de um tempo sem documento, sem reconstituição fiel, carente de testemunhas. O

artista alerta para a ausência de pistas, de rastros – principalmente humanos - deixados da

época do extermínio em massa. O vazio evocado pelas roupas enfatiza o desaparecimento da

recordação, o aniquilamento da memória.

Por outro, Reliquaire tenta dimensionar a destruição dos documentos desses anônimos

extinguidos pelo rumo da história. As fotografias que compõem a obra aparecem de forma

irreconhecível, diluídas, quase apagadas. As imagens metaforizam nossa própria memória

sobre esses acontecimentos. A inexistência de arquivos tão estimulada por Hitler toma forma

na inexatidão desses rostos. Como lembrar se nos fizeram esquecer? Nossa frágil lembrança

de uma presença remota corre o risco de apagar-se inteiramente. É essa fragilidade que

Boltanski evoca nos rostos de Reliquaire (ver Fig.13, a seguir).

As ruínas trazidas nas duas obras – tanto as peças de roupa quanto os rostos

indefinidos – aludem à incompletude, à presença do ausente, temas que são enfáticos ao

falarmos de fotografia. Fotografar é tornar lampejos acontecimentos passados, é criar rastros e

apropriar-se deles não como verdade, mas como fragmentos de um tempo frágil. Nesse

sentido é que, mesmo em trabalhos em que a fotografia não é o material em exposição,

Boltanski é fotográfico. Ele trabalha com as relações que se desdobram da relação “fotografia

como ruína”.

Roupas e fotografias falam de presença e ausência, de rastro. Nas roupas, a ausência

de um corpo e a presença do seu invólucro. Na fotografia, a ausência do objeto fotografado,

mas ao mesmo tempo, o traço de sua presença. Boltanski joga com esses duplo. Suas obras

põem em questão nossa capacidade fotográfica de ver o mundo, as ruínas dele. E esse jogo de

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mostrar e ocultar é também sobre o que fala Benjamin (1984, p.198), em sua visão alegórica

da imagem. “Na esfera da intenção alegórica, a imagem é fragmento, ruína. Sua beleza

simbólica se evapora (...) o falso brilho de totalidade se extingue”.

Reconstituir totalmente as lembranças não é uma tarefa que cabe à fotografia nem ao

artista. Entretanto, ambos atuam na escavação das camadas da memória do passado. Ao trazer

à tona a inconclusão dos acontecimentos, a ausência de testemunhas do Holocausto, a

fragilidade da lembrança, Reserve Canada e Reliquaire lançam luz à sombra sobre a qual

persiste um fato histórico. A partir dos fragmentos, mostram que as recordações dos sujeitos

mortos, ali representados pelas fotografias e vestimentas, não são reconstituíveis, mas essa

impossibilidade convoca a persistir acesa a existência do inenarrável.

FIGURA 13: Reliquaire - Christian Boltanski (1989)

***

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No trabalho histórico, paralelo ao da memória, está em jogo o tempo do “agora”, na

relação que esse tempo tem com um tempo passado. Temos conhecimento de que essa relação

vai na contramão do historicismo, que lida com o “tempo homogêneo e vazio”. Assim, não

sendo possível termos uma exatidão descritiva do passado, já que cairíamos no “dogma da

verdade”, devemos olhar para trás com desconfiança. Cabe, então, enfatizar a dualidade

verdade/mentira do que herdamos como passado. E, também, questionar o que se coloca

como documento-rastro. A fotografia, considerada esse documento-rastro, pelo menos desde o

seu uso como tal, participa desse conflito entre o que é falso e verdadeiro na imagem.

Ao falarmos de documento, naturalmente associamos o termo à ideia de prova,

testemunho, constatação e, embutida nessa relação, a questão da verdade. Reiterando o que já

abordamos no início do capítulo, a fotografia exerce um papel fundamental nessa relação de

comprovação dos acontecimentos, e se caracteriza, no senso comum, como documento visual

incontestável da existência de um determinado objeto ou fenômeno. Jonh Tagg (2005)

assinala que a fotografia pode estar impregnada da ideia de prova, de constatação da

existência daquilo que ela mostra, quando acompanhada de um processo social, histórico ou

cultural que a assegure.

Que una fotografia pueda ser llevada al estrado de prueba, por ejemplo, no depende de un hecho natural o existencial, sino de un proceso social, semiótico, aunque con ello no intento sugerir que el valor de prueba esté incrustado en la copia impresa, en un aparato abstracto, o en una estrategia de significación concreta (TAGG, p.11, 2005).

Tagg enfatiza que a noção de prova “documental” associada à fotografia está envolta

de um aparato social, mais do que do seu vínculo existencial, condicionado pelo índice.

Afirma que o problema da evidência fotográfica é histórico e não apenas proveniente de um

“feito natural”. Ou seja, é um resultado da história o discurso da fotografia enquanto prova.

Não é à toa que ele relaciona as técnicas de representação e regulação social do século XIX

(vigilância, arquivos de penitenciárias, manicômios) ao reconhecimento da fotografia como

instrumento de “prova” oficial das instituições. Arquivos fotográficos foram montados nessa

época com o intuito de guardar “evidências” em investigações judiciais. Só posteriormente,

em um contexto capitalista, segundo o autor, é que o “documental” se sobressaiu como

discurso, quando a imediatez e a verdade19 tiveram no meio fotográfico um lugar privilegiado.

19 O autor se refere ao um momento de crise (social, econômica e identitária) vivido na Europa Ocidental e nos Estados Unidos que teve como resposta o discurso documental de “expor os fatos”, a “experiência de primeira mão”.

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Se, nesse esforço de “provar”, “evidenciar” fatos, a imagem fotográfica é usada pelo

corpo social, ela também é, dizemos, manipulável, construída. Kossoy (1999, p.134) nos fala

dessa construção em outro momento: a fotografia cria realidades; “é uma representação

elaborada cultural/estética/tecnicamente”. Essas realidades da fotografia fazem com que sua

“essência” puramente técnica e tida como “neutra”, que garante um estatuto de “verdade”,

seja questionada. “Sempre houve um condicionamento quanto à ‘certeza’ de a fotografia ser

uma prova irrefutável de verdade”. (id., ib., p. 133).

Retomemos o duplo verdade/mentira do documento no que concerne à sua

apresentação do passado. Não é apenas a existência documental que garante a apreensão da

verdade. Precisamos, também, levar em consideração a ausência como forma de compreender

essa “vontade de verdade”. A noção de rastro ligada à memória, ao mesmo tempo em que nos

coloca diante de uma “evidência” mutilada do passado, liga-se ao seu correlato, a “ocultação”.

Nessa perspectiva é que, mais uma vez, citamos a memória como meio para o

escavador/historiador/arqueólogo e, também, para aquele que investiga o passado com base

em fotografias. O documento deve ser questionado como a quem interroga um criminoso que

mente.

***

FIGURA 14: Série Vulgo – Rosângela Rennó (1998)

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Difícil falar de criação de realidades para o documento fotográfico sem citar a Série

Vulgo de Rosângela Rennó. Isso acontece porque, nessa série, são utilizadas fotografias

pertencidas originalmente ao Arquivo do setor de Psiquiatria e Criminologia da Penitenciária

do Estado de São Paulo, e concedidas à artista para a execução da obra. As fotografias foram

feitas e arquivadas pelo citado setor com o propósito de identificar os prisioneiros por

número, características físicas, cicatrizes, dentre outras marcas. Quando deslocadas de seu

contexto original, as imagens são esteticamente reelaboradas.

Esse arquivo penitenciário e seus objetivos de identificação dos detentos põem em

evidência o discurso da fotografia enquanto prova. Como forma de vincular às imagens o

estatuto de documento-verdade, a penitenciária também está, de certa forma, carregando-as de

intencionalidade. Rennó não faz nada mais do que evidenciar esse jogo de intenções que

existe na elaboração dos documentos. Trazendo as imagens para o campo artístico, em que o

peso de “verdade” diminui, ela põe em discussão possibilidades criadas para as imagens de

arquivo. Ou seja, ela se apropria do rastro documental para dele elaborar uma ficção para os

retratados.

Sabemos que o documento não é capaz de dar conta da totalidade da realidade. Eles

são parciais, são rastros. Rennó não nega essa característica. Expôs as fotografias em grande

tamanho, de maneira que até mesmo as manchas originais das imagens fossem ampliadas

(manchas pretas nas bordas e no topo da cabeça do detento). Contudo, acrescenta-lhes, além

da enorme dimensão, outro tipo de sinal, que, de alguma forma, individualiza cada indivíduo

e não os padroniza.

A artista selecionou fotografias que contivessem marcas distintas no couro cabeludo

dos detentos e, nelas, acrescentou uma sutil cor vermelha, como podemos observar na

imagem (Fig.14). Essa intervenção na materialidade documental diverge da padronização com

que foram realizadas as fotografias: mesmo enquadramento, mesma posição e vestimentas. As

fronteiras visuais do registro documental criminal, dessa forma, são diluídas para que, no

campo artístico, possam não carregar apenas um discurso anteriormente estabelecido.

O documento joga com aparências e ocultações. E quando se trata de imagem

fotográfica, suas camadas podem ser trabalhadas de diversas formas, como acontece no caso

da Série Vulgo. A maleabilidade documental acompanha o processo histórico, e, ainda no

século XIX, ela estava a serviço das intenções de instituições que regulavam o corpo social.

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Na arte, pois, os usos do documento ultrapassam essa dimensão reguladora e ganham uma

dimensão estética. O documento, visivelmente, é manipulável e passível de críticas, seja pelo

historiador ou pelo artista.

É essa intenção de dar anima ao documento que podemos experimentar ao ver a

fotografia da Série Vulgo, de Rosângela Rennó. Deslocada de seu contexto “original” –

arquivos de penitenciárias –, a imagem passa a abrir para nós o seu lado oculto. Manipulando

os documentos – selecionando-os, ampliando-os e editando-os -, a artista cria uma outra

versão deles. Ela demole sua função de “verismo” e de congelamento do passado. O código

fotográfico é retrabalhado no intuito de escavar suas camadas, suas outras narrativas. Rennó

trata o documento como uma mentira.

***

O historiador Jacques Le Goff (1990, p.548) é contundente. “Todo o documento é

mentira. Cabe ao historiador não fazer o papel de ingênuo”. Nessa afirmação, é colocado nos

braços do historiador o trabalho do escavador, que não pode se conformar com o que diz as

superfícies, desmitificando-as e atentando para o que sob elas se esconde. Não existe

neutralidade no documento. Há um “inconsciente cultural” nele contido. Lembremos da

manipulação de Hitler para apagar qualquer rastro, fazer calar qualquer eco que existisse do

extermínio dos judeus. Ele temia essa escavação documental.

O documento não é inócuo. É antes de mais nada o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. (...) O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias. No limite, não existe documento-verdade. (id., ib., p.547-548).

Esse texto é emblemático também para pensarmos a fotografia como documento.

Sabemos que ela é uma fonte bastante consultada para apresentar rastros do passado.

Contudo, deve ser pensada como essa “imposição de futuro”. Não pode ser assegurada uma

falta de intencionalidade nesse aspecto. É interessante como Le Goff nos coloca também

diante do duplo lembrança/esquecimento. Esquecemos pelo resultado de uma “montagem”

histórica que fez silenciar determinados episódios, ocultar outros possíveis futuros. A imagem

dialética benjaminiana da felicidade traduz esse dilema das possibilidades de “futuro” no

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“pretérito”. Para o Benjamin, a nossa “imagem da felicidade” é inteiramente marcada pela

época que nos atribuíram ao longo de nossa existência. “A felicidade capaz de suscitar nossa

inveja está toda, inteira, no ar que já respiramos, nos homens com os quais poderíamos ter

conversado, nas mulheres que poderíamos ter possuído” (BENJAMIN, 1994, p.222-223).

Assim como o passado não é unívoco, também não é o próprio futuro. Subjacente às

aparências que o documento nos impõe, estão camadas esquecidas, ainda por explorar.

Contudo, a “montagem” que nos foi herdada manipula essa imagem do “pretérito”, colocada

como resultado das épocas. Nisso, Le Goff traz mais uma assertiva: “documento” é

“monumento”. Ele se refere à importância da crítica profunda do documento, encarando-o

como monumento, algo edificado, intencional, ligado a uma “aparência enganadora”, falsa.

Para uma crítica mais apurada, é preciso desmontar o documento/monumento, demolir sua

montagem, descamá-lo.

Foucault, como vimos, destacou-se por essa “desmitificação” inerente ao

documento/monumento. No ato de questionar o documento/monumento, desviou-se da

história em sua forma tradicional, que fazia questão de “‘memorizar’ os monumentos do

passado, transformá-los em documentos”. Por uma visão descontinuísta,

(...) a história é o que transforma os documentos em monumentos e que desdobra, onde se decifravam rastros deixados pelos homens, onde se tentava reconhecer em profundidade o que tinham sido, uma massa de elementos que devem ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados, organizados em conjuntos. (...) poderíamos dizer, jogando um pouco com as palavras, que a história, em nossos dias, se volta para a arqueologia – para a descrição intrínseca do monumento (FOUCAULT, 1997, p.8) .

Esse empenho para a descrição do monumento, ou seja, partir de uma “massa de

elementos” para o trabalho de isolá-los, agrupá-los, correlacioná-los e interpretá-los, toma a

descontinuidade como princípio fundante. Notamos que os “rastros” mais uma vez aparecem,

aqui sendo marcas deixadas pelos homens no passado. Contudo, não são trabalhados como

uma procura da “verdade” do passado. De um empecilho, a descontinuidade passa a uma

prática. Eis a tarefa do historiador/arqueólogo: descrever o monumento, desmascarar suas

intencionalidades, demolir sua montagem, criticá-lo. Nesse caminho, cabe a ele não se deixar

enganar pelo “tempo homogêneo e vazio” a que estão sujeitos os monumentos tradicionais.

Desestruturar esta construção é perceber a história a partir de várias práticas, e não de

um único motor. Tudo o que possa permitir a descoberta de fenômenos que se relacionem à

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busca do historiador é útil (da semântica à foto-interpretação). Nos múltiplos saberes,

encontramos aparências e ocultações que podem ser pertinentes à investigação histórica. Le

Goff, contudo, sublinha a necessidade de transferir a noção de documento/monumento do

campo da memória para o da história. Ele vê, como o historiador Pierre Nora, a rachadura

existente entre os dois campos.

“Desde que haja rastro, distância, mediação, não estamos mais dentro da verdadeira

memória, mas dentro da história” (NORA, 1993, p.9). História e memória estão longe de

serem sinônimos, diz Nora. A história trabalha no “criticismo destruidor” da memória. Ou

seja, é sob o olhar de suspeita que a história encara a memória. Enquanto a memória20 se

alimenta de lembranças particulares ou simbólicas e também de esquecimentos, sendo

vulnerável a manipulações, “a história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do

que não existe mais” (id., ib., p.9). Está embutida na história uma operação intelectual e

crítica da qual a memória se afasta.

Consideramos essa distinção radical entre memória e história – o “fim da história-

memória”, assim nomeado por Nora – como expressão do mal-estar que o próprio campo da

ciência histórica sentiu com sua ligação à “monumentalização”21 dos documentos tradicionais.

Podendo perturbar a própria autonomia do campo histórico e também reiterando uma ligação

homogênea com o tempo passado, a “história-memória” se rompeu. Com isso, chega-se a

uma nova forma de se abordar o passado: passa-se do visível ao invisível; do homogêneo ao

descontínuo. Contudo, o enlace entre os dois campos nos parece ainda necessário, no mínimo,

para entender suas diferenças.

Anteriormente expomos como a memória, pelo menos numa concepção bergsoniana,

liga-se com a atualidade perceptiva do objeto. Ou seja, a memória não carrega essa

preocupação do campo histórico, de rachadura com a continuidade “monumental”. Por outro

lado, percebemos que, em uma acepção benjaminiana, memória é meio de escavação do

passado a partir de uma abordagem presente. E Benjamin, como já dito, por meio de outros

textos, mantinha de perto suas reflexões sobre a história que, vale lembrar, caracteriza-se

como descontínua. Chegamos então a uma questão: ainda não se mantêm próximas a memória

20 Faz-se referência a Maurice Halbwachs que, em seu livro A Memória Coletiva (2006), diz ser a memória resultante da ligação a um grupo. Carregamos lembranças conosco ao termos experiências em grupo. Com isso, só existe memória individual em relação à memória coletiva. 21 Do latim, monuetum se dirige à raiz indo-européia men, que exprime uma função primordial do espírito (mens), a memória (meminí). Monere quer dizer “fazer recordar”, “iluminar”, “instruir”. Monumentum é sinal do passado (LE GOFF, 1990).

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e a história na postura do historiador, mesmo que seja para um aguçamento de sua crítica? Por

mais que se estabeleçam as diferenças, ambas vêm à tona quando o assunto é a exploração do

passado.

Nora afirma que, pelo viés da memória, impunha-se o “culto à continuidade”, a

“necessidade do sagrado”. O futuro era previsível, uma vez que era “projeção do presente”. Já

na abordagem descontinuísta da nova história, em que passado, presente e futuro entram em

uma outra dinâmica, chegamos “a um passado que vivemos como rompimento; de uma

história que era procurada na continuidade de uma memória a uma memória que se projeta na

descontinuidade de uma história” (NORA, 1993, p.19). Novamente próximas, história e

memória mudam de estatuto, ainda sendo ressaltada a projeção de uma sobre a outra. Não

mais história-monumento, mas história pela crítica dos documentos/monumentos.

Cabe, aqui, esclarecer, para além das comparações entre história e memória, que

adotamos a concepção de memória como meio de perscrutar o passado e, também, de

atualizar as camadas do objeto percebido (já mencionada via Benjamin e Bergson). Fizemos

isso porque essa concepção atinge de forma mais completa o objeto fotografia e suas

implicações com a noção de rastro e a memória, que, como expõe Gagnebin, lida com a

presença e ausência, o presente e o passado; dialética fundamental às imagens benjaminianas.

Na tarefa “crítico-destruidora” dos historiadores Le Goff, Foucault e Nora, pudemos

enxergar outros duplos presentes nas relações documento/monumento e história/memória:

aparência/ocultação, verdade/mentira e lembrança/esquecimento. Se esses duplos são

apontados é porque está em jogo sempre uma dinâmica, que não se limita a apenas um dos

estados. A percepção da fotografia como ruína passa por esses duplos, por essa instabilidade.

Mostrando e ocultando, questionando a verdade e a mentira, fazendo lembrar e esquecer. Eis

o golpe, eis a brecha da imagem, eis sua demolição, eis a passagem.

***

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FIGURA 15: Monuments – Christian Boltanski (1985)

“Monumentos”, como assim intitula Christian Boltanski suas estruturas piramidais

com fotografias de anônimos e lâmpadas incandescentes, coloca-nos face ao verbo monere,

que quer dizer “fazer recordar”, “iluminar”. Os rostos em preto e branco, que parecem de

crianças, com fraca definição nos contornos, aludem a personagens comuns, às pequenas

memórias devastadas no continuum da história. Iluminados, eles constroem a ideia de um

memorial às vítimas do esquecimento.

É recorrente em Boltanski o tema da memória ou das “pequenas memórias”, já que ele

não fala da memória dos vencedores, mas daquelas que foram arruinadas, despedaçadas. Na

tentativa de dar voz, ainda que de forma alusiva, a essas “pequenas memórias”, o artista não

só prestigia a lembrança dos seus vestígios mas, em contrapartida, faz uma crítica à amnésia

deles. Sua inquietação com o extermínio em massa é traduzida ao trazer para suas obras a

singularidade dos seres humanos. Seu interesse é mostrar o quão múltiplo somos e quantas

múltiplas recordações morrem com atos de guerra, por exemplo.

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Diz o artista: “interesso-me pelo que chamei de A pequena memória, uma memória

afetiva, um saber cotidiano, o contrário da grande memória preservada nos livros”22

(BOLTANSKI, 1998). As “pequenas memórias” trabalhadas nas imagens de Boltanski não se

dirigem ao tempo homogêneo da história tradicional. Elas são fragmentos no chão da grande

memória lembrada. Monuments, ao iluminar esses rastros “pequenos de memória”, entretanto,

apontam para a ausência de recordação das ruínas deixadas no curso linear histórico, ou seja,

os pequenos saberes esquecidos. O duplo lembrança/esquecimento se desdobra de forma

enfática na obra de Boltanski. Não se trata de uma “monumentalização” de documentos, de

uma memorização do passado, mas de uma quebra dele em vários pequenos pedaços.

Além do duplo lembrança/esquecimento, podemos dizer que Boltanski chama atenção

para a verdade/mentira dos documentos. Quem garante que o nosso passado foi tal e qual

narram os livros? De outro lado, onde estão os testemunhos das “pequenas memórias”? Como

na discussão sobre o caráter da verdade fotográfica dos documentos, há, sobre isso, uma

certeza: qualquer documento deve ser olhado com desconfiança, pois ele está intencionado a

mostrar e a esconder. Se as “pequenas memórias” permanecem alheias a muitos de nós, isso é

fruto de uma intencionalidade que vem sendo transmitida de geração a geração: a

intencionalidade dos vencedores.

É interessante como o artista materializa o tema da ausência: seja de testemunhos, de

humanidade ou de lembranças. Os retratos aparentam quase desaparecer não fosse a luz que é

colocada sobre ele. E ainda iluminados, os rostos não são mostrados com inteira clareza.

Estão no limiar entre a presença e a ausência, entre o aparecer e o desaparecer. Vemos nesses

aspectos relações com a dialética das imagens benjaminianas. Os rostos estão entre o sonho e

o acordar. Quando nos esforçamos para identificá-los, eles parecem fugir, escapar de um

reconhecimento. Essa fuga presente em Monuments também reforça um caráter instável das

imagens, como a própria “centelha” benjaminiana.

A obra de Boltanski é fotográfica ainda que não se utilize apenas de fotografias. As

questões trazidas concernem à própria natureza fotográfica, que vai da transparência à

ocultação, da presença à ausência. Jogando com esses estados, o artista persiste na tarefa de

atuar na fragilidade da “pequena memória”, já que ela, de tão quebradiça, pode desaparecer.

22 Tradução livre de: “Je m'intéresse à ce que j'ai appelé La petite mémoire, une mémoire affective, un savoir quotidien, le contraire de la grande mémoire préservée dans les livres”.

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“Essa pequena memória, que forma para mim nossa singularidade, é extremamente frágil, e

desaparece com a morte”23 (id., ib.).

***

2.4. Da morte à redenção

Falamos que o signo fotográfico está fadado à morte do referente. Também expomos

que a fotografia, ao mesmo tempo em que aparenta uma realidade, esconde outras sob sua

superfície. Essas realidades se situam em um invisível da imagem, que podem vir a ser

revelados pela proximidade que a representação capturada tem com a história de vida do

observador, o qual vai “animar” a cena retratada. Essa atividade mnemônica, que dá vida às

superfícies fotográficas, contudo, dá-se por impressões fugidias, uma vez que as lembranças

vão perdendo o vigor, engolidas pela distância temporal entre o que está na foto e o que hoje

acontece.

Ora, então seria a distância temporal a juíza do destino das imagens? Aquela que

decide se vale ou não a pena o abandono ou a preservação de determinados instantes? Ao

mesmo tempo em que queremos preservar “congelados” instantes contra a “marcha do

tempo” por meio das fotografias, eles parecem sucumbir ao devir temporal. Passamos a

perceber a extensão da distância que separa aquele instante, no passado, do atual, o agora. A

vida que se tentou preservar na captura de um momento muda de estado, passa a ser pedra. “O

momento vivido, congelado pelo registro fotográfico, é irreversível”, defende Kossoy (1999,

p.139). O que não se enquadra nessa proposição é a própria interpretação do registro, do uso

que se pode fazer dele, que pode tomar, sim, outro rumo que não aquele que lhe foi destinado.

O próprio Kossoy (id., ib., p.144) finaliza seu livro com a reflexiva frase-conceito de

fotografia: “um signo à espera de sua desmontagem”. Disso, desprendemos dois termos para

analisar: “espera” e “desmontagem”. Sobre essas instâncias, veio imediatamente à lembrança

uma indagação colocada por Lissovsky em uma conferência recente24, realizada em Fortaleza,

no dia 14 de abril de 2009: o que fazem as fotografias quando não estamos olhando para elas?

E, dentre citações de Benjamin e do filósofo italiano Giorgio Agamben, demonstrando com

23 Tradução livre de: “Cette petite mémoire, qui forme pour moi notre singularité, est extrêmement fragile, et elle disparaît avec la mort”. 24 O título da conferência em questão era: Viagem ao país das imagens: a instabilidade das fotografias e suas propriedades combinatórias.

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imagens de arquivo, ele responde: elas esperam. E, claro, aguardam por sua “desmontagem”,

seu desvelamento.

Lissovsky mostrou diversas fotografias de arquivo pelas quais demonstra que o

arquivo tem lacunas: “eles não falam do que foi, mas balbuciam o que poderia ter sido”. Em

menção a Benjamin, o conferencista enfatiza essa relação do futuro com o pretérito. Ele diz

que o “futuro habita as imagens”. Como o ovo em seu ninho, o futuro está aninhado nelas.

Fica claro o apelo benjaminiano dessa relação. Em Pequena história da fotografia, sublinha

que na imagem há um “lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos

únicos, há muito extintos” (BENJAMIN, 1994. p.94).

A descontinuidade histórica reflete diretamente na noção de tempo benjaminiana. O

tempo histórico é incompleto. Não é dado em totalidade. Já ressaltamos esse motivo de

ligação entre fotografia e ruína. Ambas se apresentam incompletas, são rastros. Porém, o lugar

em que o futuro se instala na imagem é “imperceptível”, não se dá explicitamente, mas ainda

está lá. Lissovsky (2003, p.144), em um texto específico sobre o tempo na fotografia

moderna, fala que foi a maneira como “aceitando o tempo como o invisível da imagem

fotográfica, permitiu que ele a atravessasse de múltiplas maneiras. Aceitando o desafio de

exprimir a ausência do tempo, a fotografia moderna percorreu seus mais belos caminhos”. O

autor se debruça sobre as produções de Sebastião Salgado, Cartier Bresson, Diane Arbus e

Auguste Sander para expressar o modo como o tempo que se ausenta atravessa as imagens

desses fotógrafos.

A invisibilidade está inerente à fotografia, assim como o seu correlato. É mais um

duplo do qual participa a fotografia como ruína. Esse lugar invisível, “em que o futuro se

aninha ainda hoje em minutos únicos”, deixa vestígios nas imagens. Contudo, uma maneira de

enxergar esses vestígios, ou seja, compreender o que significam, é ao dar mobilidade ao

instante capturado, ao colocá-lo em uma duração (LISSOVSKY, 2003, 2008), e, claro, tendo

conhecimento de como o fotógrafo trabalhava para essa captura. Destacaremos aqui a

fotógrafa americana Diane Arbus, no intuito de demonstrar essa ação do instante.

Recorreremos, para isso, às informações que Susan Sontag nos dá sobre o trabalho da

fotógrafa.

Em vez de tentar persuadir seus temas a se pôr numa atitude natural ou típica, ela os incentivava a ficar constrangidos – ou seja, a posar. (...) O que torna tão impressionante o emprego da pose frontal em Arbus é que seus temas são, não raro, pessoas que não esperaríamos que se oferecessem tão gentilmente e tão ingenuamente para a câmera. Assim, nas fotos de Arbus, a

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frontalidade também subentende, da forma mais nítida, a cooperação do tema. A fim de levar essas pessoas a posar, a fotógrafa teve de ganhar-lhes a confiança, teve de tornar-se “amiga” deles”. (SONTAG, 2004, p.49-50)

A fotógrafa costumava fotografar pessoas com anomalias, das quais costumava

conquistar a confiança antes de posar para foto. A pose incentivada por Arbus a seus modelos

fazia com que o instante fotografado fosse o resultado de uma “cooperação” entre ela e o

fotografado que, gentilmente, fingia para a câmera. Suas fotos não buscam a espontaneidade.

O constrangimento a que ela impunha seus modelos antes de disparar, fazia do disparo algo

sempre depois. Depois da conquista, depois do constrangimento, depois da pose. O tempo se

ausenta nesse após, o qual é totalmente dependente do antes – pré-imagem. Nesse caso, o

próprio instante é destruído, já que a foto vem nesse depois, no seu resto.

Para Lissovsky (2003), Arbus é a fotógrafa destruidora do instante. Seu disparo é

“resultado de uma ação demolidora”25. Em outras palavras, o instante devém como resto,

como um depois. Sendo ele, o instante, “resto de uma demolição”, temos nessa ação de

tornar-se ruína o refluir do tempo na fotografia. A imagem incorpora essa instabilidade do

tempo. “Ela adquire uma duração que lhe é própria, que toma corpo neste lugar onde o refluir

do tempo tem curso, no qual o instante ainda não está dado e onde ele se realiza. Este lugar é

a espera” (LISSOVSKY, 2003, p.148). Na espera, Arbus opta pela destruição do instante.

Percebendo a espera como esse lugar onde o instante se prepara, não sendo ainda

dado, podemos, pelas fotos (sem desvinculá-la do conjunto da obra) observar de que maneira

cada fotógrafo trabalha nesse lugar e o que nele investe. A espera é lugar e também meio.

“Por meio da espera, o fotógrafo procura imprimir na imagem o tempo que se ausenta. A

espera é a duração própria do ato fotográfico e o modo como os fotógrafos facultam ao

instante o seu advento”. (id., ib., p.148). Sendo a impressão de um tempo invisível, já que está

ausente, a duração de cada fotógrafo se dá de forma distinta. Cabendo, nesse momento,

apenas esclarecer esse caráter invisível do tempo da duração, não nos deteremos a detalhar

sua manifestação em todos os fotógrafos analisados por Lissovsky. Todavia, sua análise desse

aspecto lacunar do tempo na fotografia moderna demonstra o quão a noção de vestígio se faz

presente em termos fotográficos.

25 Diferencia-se, por exemplo, segundo o autor, de Sebastião Salgado, no qual o instante devém por construção, acúmulo.

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Até aqui, nossa abordagem da fotografia como ruína seguiu a trilha do que na imagem

implica em ausência e presença, em traço, vestígio. Desde as considerações históricas às

formulações próprias do campo fotográfico, vimos que a descontinuidade do tempo se

impregna na imagem. Quando abordamos a memória, inclusive, a própria ausência de

vestígios é significativa, já que implica em não fazer lembrar. Por último, pudemos ver que a

duração é também da ordem do ausente. E deixa na imagem seu vestígio (nomeado por

Lissovsky de aspecto). De todas as maneiras, vendo-a de fora como suporte, mergulhando em

seu interior, pesquisando a sua história, a fotografia é rastro ou deixa rastros.

A imagem fotográfica sendo caracterizada como descontínua deixa brechas, lacunas

para apresentação de um tempo histórico incompleto. Benjamin (1994a, p.232), sobre a

temporalidade histórica, frisa, inclusive, que “cada segundo era a porta estreita pela qual

podia penetrar o Messias”. Porta tão estreita quanto veloz, já que é no instante que o passado

relampeja irreversivelmente. Nesse momento fugaz é que o historiador materialista pode

redimir o passado, desde que nele reconheça o “agora” messiânico. A característica fugaz da

temporalidade histórica se reflete, inclusive, no modo fotográfico de percebê-la: na espera e

no instante.

Nessa visão do passado que prevê futuro, exige-se a habilidade da lontra de impor

espera. “Signo das coisas fugidias, dos ‘confins do zoológico’, a lontra estende seus domínios

pelo território mais vasto: os ‘lugares que têm’ o ‘poder’ de ‘nos fazer ver o futuro’, onde

‘parece ser coisa do passado tudo o que nos espera’”. (LISSOVSKY, 1998, p.24). A lontra,

por sua característica fugaz, de aparecer e logo desaparecer, exige que esperemos sua próxima

aparição. É assim que, ao interpretar o pensamento de Benjamin e sua ligação aos animais

totêmicos, Lissovsky diferencia a lontra do tigre. O tigre é o animal interruptor, a lontra, o

fugaz. “A espera pela irrupção da lontra é também a espera pela recuperação do passado” (id.,

ib., p.24).

A fotografia é atravessada pela dialética do tigre e da lontra. Uma vez que aquilo que é

fugaz – o próprio instante -, só pode ser percebido pela interrupção. Contudo a fugacidade é

justamente o que não se pode interromper. Esse impasse entre visibilidade e invisibilidade, o

qual exemplificamos com a noção de duração na fotografia, monta um paradoxo. “Na

fotografia, os dois modos da temporalidade – a fugacidade e a interrupção – evidenciam-se

como problema de visibilidade: problemas da aura e da centelha. A foto oscila entre aquilo

que lhe escapa e isto que nela se infiltra” (id., ib., p.26).

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O uso da centelha, por sua vez, como imagem dialética persiste no pensamento

benjaminiano. Associada aos fragmentos do mundo barroco, a centelha se dirige à redenção.

Como faísca, que cintila, o fragmento e a ruína esperam por um ato religioso, messiânico.

Não é à toa a importância, em suas teses da história, da expressão “estilhaço”, “ruína”,

“fragmento”. Dirigindo-se ao barroco, os “estilhaços”, as “ruínas”, têm possibilidade de

redenção. Podem ser redimidos pela alegoria, já que esta tem um princípio construtivo

(expomos melhor no capítulo anterior, 1.3). Identifica-se na alegoria, contudo, a questão da

morte, já que para tornar o fragmento significativo é preciso arrancá-lo, com violência, do

fluxo da história-destino. O alegorista, então, mata para significar, para construir, para redimir

pelo conhecimento.

Com isso, como na imagem da centelha, a fotografia, como experiência do tempo, se

dá nessa espera de um “clarão”, que acontece em um instante particular. A participação nesse

instante de fugacidade e interrupção dá densidade ao tempo do “salto”. Trata-se do instante

movente, fluido. Lembremos a visão monádica, estabelecendo nela um ritmo.

“A monadização rítmica da fotografia, como essa forma de fluido, está a serviço da

‘imobilização do acontecimento’, contrariando em si – segundo sua perceptibilidade singular

– uma infinidade de relações” (LISSOVSKY, 1998, p.32). Ou seja, há uma temporalidade

fotográfica densa, que não se dá nem somente na fixidez, nem somente na mobilidade. Eis um

de seus principais paradoxos.

Vimos, ao longo do capítulo, diversas referências à fotografia quanto ao seu caráter

“imóvel”, “congelado”, “morto”, “petrificado”. Entretanto, tomando como referências

Benjamin e Lissovsky, podemos ter mais clara outra reflexão sobre a imagem fotográfica,

que, sem anular as considerações de Barthes, Dubois e outros autores citados que se alinham

no tema, coloca-nos sob outra ótica para pensarmos a mesma temática. Do “isso foi”, da

morte do passado, da irreversibilidade do tempo, chegamos à instabilidade das imagens.

Vemos, nessa perspectiva, uma relação fotografia/ruína para além do gesto brusco do índice.

Na ótica do alegorista, que da morte traz à vida, a fotografia como ruína, ainda que

compartilhe das formulações sobre a imobilização, o passado fixo, o efeito Medusa, pode vir a

ser fragmento à espera de redenção. Como rastros do passado, fotografias/ruínas aguardam

por escavação, por uma descoberta de futuro. Fotógrafo e historiador precisam dos tempos da

lontra e do tigre para decifrarem a densidade do “agora”, o mistério que impele o passado à

redenção.

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Para finalizar, volto à conferência de Lissovsky, a que me referi no início desse tópico,

para citar mais uma de suas frases pensadoras (dessa vez não sendo mais uma pergunta) sobre

a fotografia. “Sua atualidade pouco significa diante de sua potência de reencarnação”. O apelo

que nos dirige a imagem fotográfica é por essa nova chance à vida, por sua salvação, por seu

caminho reversível – da pedra à carne. Isso não depende de sua contemporaneidade. A própria

reencarnação é esse refluir do tempo.

***

FIGURA 16: A Última Foto - Paula Trope, formato 9x12, lente Extar – Rosângela Rennó (2006)

A imagem acima foi extraída do trabalho A Última foto, de Rosângela Rennó, em que

a artista põe em atividade diversos aparelhos fotográficos antigos colecionados por ela. Ela

oferece a 43 fotógrafos, incluindo ela mesma, a oportunidade de clicarem, pela última vez,

com esses aparelhos, o Cristo Redentor, ícone do Rio de Janeiro. Por que pela última vez?

Pois logo depois desse derradeiro uso, os aparelhos fotográficos utilizados seriam lacrados.

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Como na imagem (Fig. 16), cada fotógrafo utilizou uma câmera analógica que variava

conforme o formato e a fabricação (de chapa 9x12cm a reflex de 35mm; do início do século

XX a década de 80). Câmeras estas colecionadas por Rennó ao longo de 15 anos. Desta vez,

Rennó não resgata imagens passadas mas, sim, aparelhos passados e dá a eles o seu último

uso. E o tema para as últimas fotografias, não escolhido em vão, trata-se de um dos mais

incansavelmente fotografados. O desafio era fazer com que cada fotógrafo, tendo sua

derradeira chance de fotografar um clichê, o Cristo Redentor, desse a ele uma nova dimensão.

As fotografias que compõem a série26 colocam em questão, em diferentes modos,

nosso próprio olhar, contaminado pela exaustiva repetição e difusão do assunto em imagens

turísticas e midiáticas, ou seja, o referente já enraizado na mente. As feições, tamanhos,

ângulos, enquadramentos e intervenções que o Cristo recebe dotam o assunto das fotos de

uma realidade que não se encerra na aparência, mas se oculta nos seus detalhes mais

significantes. Elas questionam sua própria existência enquanto registro do real.

Foram dadas aos fotógrafos novas condições de experiência e fruição de suas próprias

imagens, uma vez que seus olhares sobre o Cristo, tidos como derradeiros antes da “morte” da

câmera, não se conformariam com o lugar trivial e já registrado. Desse trabalho de busca do

novo no corriqueiro, de experiência última, é também possível extrair uma crítica ao caráter

descartável da fotografia digital em nossos dias, que só cresce em número e pouco deixa

espaço para uma fruição reciclável do destino das imagens.

A “morte” da câmera analógica vivenciada por nós hoje, inclusive, é colocada em A

Última Foto como aceno, apelo. Onde foram parar nossas câmeras com filme, as manivelas

que faziam avançar as películas, as fotografias em papel? Ficaram no passado? Nesse trabalho

de desafiar nossa amnésia, o aparelho fotográfico está presente não apenas como testemunho

de um tempo remoto, quando a tecnologia digital ainda não assustava. Está também como

forma de despertar, de ruína. Ao lado de cada câmera, não temos imagens antigas, datadas

com o aparelho. Temos imagens atuais. O aparelho capta imagens contemporâneas,

independentemente de sua data de fabricação.

Poderíamos ver na fotografia da página anterior, por exemplo, uma cena dos anos 70,

dada a própria maneira em que a imagem se encontra: em preto e branco, com recantos

desgastados, manchas claras e escuras, dando a impressão de desbotamento com o passar do

26 Para ver todas as fotografias da série, assim como demais trabalhos da artista, acessar <http://www.rosangelarenno.com.br>.

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tempo. A associação da fotografia com o modelo antigo do câmera (exposto ao lado da

imagem) é irresistível. Entretanto, sua contemporaneidade independe desse passado. Seja do

aparelho, seja do próprio garoto. Nessa evocação instável do tempo para o presente,

manifesta-se o desejo de permanência das imagens.

É nessa direção que a atualidade do pensamento de Benjamin perpassa o trabalho de

Rennó. No arquivo, na coleção, no acúmulo de materiais que guarda ao longo de sua vida, ela

desperta as imagens de sua posição cômoda. Afinal, para ela, a constatação de que o tempo

passado está morto não tem sentido, já que se pode investir na busca dos possíveis “agoras”,

dos caminhos entre as ruínas.

***

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CONCLUSÕES

As descontinuidades atravessadas

Como todo processo de criação, a pesquisa toma caminhos, muitas vezes, imprevistos

em seu princípio. Foi o caso desta. E sua concretização é fruto da escolha de momentos que

mais tomaram corpo no processo. Falamos disso para lembrarmos que o ato de concluir

demanda olhar para o passado e desenhar na mente o que permaneceu, depois das idas e

vindas do ato da escrita. Destacar as permanências é uma tarefa não muito difícil, pois, como

já diz o termo, elas continuam, persistem. Já as impermanências, os desvios, esses são mais

difíceis de resgatar. Começamos nossas conclusões partindo dessa dificuldade: lembrar o que

foi deixado para trás para, depois, sublinhar o que permanece.

Partimos, antes mesmo de optar pelo aporte benjaminiano para pensar a imagem e o

tempo, de um projeto de pesquisa de mestrado que questionava uma possível “estética da

ruína” presente nas imagens do fotógrafo tcheco Josef Koudelka. Esse fotógrafo se destacou

por registrar cenas de guerra em imagens que se espalharam pelo mundo, como as da

Primavera de Praga. Além disso, registrou os ciganos da Europa Ocidental, etnia itinerante,

muitas vezes esquecida, assim como lugares devastados pelas agressões ao meio ambiente.

Espaços arruinados, pessoas em situações de catástrofe, vazios de grandes cidades e

degradações ambientais são assuntos evidentes em seu acervo. Contudo, falar das ruínas de

Koudelka, especificamente, acabaria por não abranger outras questões que nos atingiram na

relação de fotografia e ruína. Questões essas que não se limitam à análise do suporte

fotográfico e seu conteúdo, mas auxiliam a compreendê-los de forma mais orgânica, ou seja,

ligada a questões mais profundas sobre a natureza da imagem.

Por isso dedicamo-nos a desvincular do próprio Koudelka o caráter da fotografia como

ruína. Ruína esta não só estampada na imagem, mas trabalhada de diferentes formas por

outros fotógrafos e artistas que lidam com a imagem fotográfica como vestígio, traço, de um

mundo não tão verdadeiro quanto parece ser. É principalmente nesse ponto que Koudelka se

afasta dos fotógrafos/artistas que trabalhamos ao longo do trabalho. Suas imagens, pelo

menos as trágicas, de cunho fotojornalístico, parecem assumir o objetivo de documentar cenas

fiéis aos fatos ocorridos. E sabemos, até pelo que expomos no segundo capítulo, que é

arriscado esse intuito de marcar a imagem fotográfica com o estatuto de “documento-prova”

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do que passou. Provar, espelhar a realidade tal como ela é, não faz sentido para aqueles que

desconfiam da fotografia como documento calcado no discurso da mimese.

É por isso que, em um desvio proposital e crítico dessa proposta inicial de trabalho do

projeto de pesquisa, optamos por extrair conceitos que estavam ali dispersos, sem muito

aprofundamento no projeto: documento, monumento, ruína, história. E, dentre os autores

citados, Walter Benjamin figurou como um dos que apontavam para uma crítica dessas

noções. A leitura do filósofo, considerada enigmática, abriu-nos os olhos para um outro

patamar de análise. Sairíamos de um trabalho vinculado especificamente à linguagem

fotográfica e seu conteúdo estético, para uma pesquisa teórica e analítica de conceitos,

estando esses presentes não apenas em um olhar do fotógrafo, mas em uma maneira

fotográfica de lidar com a imagem. Nessa direção, Benjamin foi fundamental para mudarmos

o foco para a questão: como a “fotografia como ruína” nos auxilia a entender a imagem como

descontínua? Ou seja, nosso interesse se voltou para uma imagem fotográfica que não se finda

no suporte, mas no que dele se desprende como vestígio de um tempo descontínuo.

A questão, então, deu corpo a uma discussão não prevista anteriormente com os

autores do projeto. Ler Benjamin exigiu leituras de outros autores que dessem a

fundamentação pertinente para o diálogo do filósofo e seu pensamento sobre a imagem e o

tempo. Inclusive, “imagem” e “tempo” já são noções, em primeira instância, bastante

complexas de abordar. Seguir, porém, as ideias benjaminianas, ainda que desafiante, foi uma

forma de direcionar melhor a base teórica do trabalho. Além disso, os fotógrafos que

escolhemos solicitavam esse olhar benjaminiano aliado à fotografia, pela maneira como se

apropriaram da noção de ruína. Uma ruína que, sob uma máscara mortuária, volta à vida.

Sem, talvez, conseguir cercear, delimitar bem o sentido de ruína que trabalhamos – até

porque, em alguns momentos, ela pode ter se confundido simplesmente com a ruína enquanto

signo indicial – buscamos entender, primeiramente, como ela é abordada quando colocada nos

textos benjaminianos. Sobre o conceito da história e a Origem do drama barroco alemão

pareceram indicar melhor do que se trata essa ruína aos olhos do filósofo. Ruína está

intimamente entrelaçada à visão barroca de história em Benjamin. A história como ruína se

fundiu a um cenário de declínio inevitável. “A fisionomia alegórica da natureza-história, posta

no palco pelo drama, só está verdadeiramente presente como ruína” (BENJAMIN, 1984, p.

199-200). Nesses textos, contudo, o filósofo alerta não somente para o malogro da história

como ruína, mas para seu caráter alegórico e messiânico. “As alegorias são no reino dos

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pensamentos o que são as ruínas no reino das coisas (...) O que jaz em ruínas, o fragmento

significativo, o estilhaço: essa é a matéria mais nobre da criação barroca” (id., ib., p.200).

Assim, criar a partir do “estilhaço”, empreender uma tarefa messiânica a partir da

morte são ações do alegorista e do historiador materialista e dialético. Pudemos perceber, no

legado de Walter Benjamin, a dialética constante das suas ideias alegóricas. Perseguimos o

conceito de “imagem dialética”, que tanto acompanha o seu pensamento, para passarmos a ver

sua obra como fotográfica, ainda que não mostre nenhuma imagem. Sua escrita é visual e,

como fragmentos de saber, destina-se a se desenvolver no pensamento. Identificamos, dessa

forma, o “estilhaço” como conteúdo e forma dos seus escritos. Pequenos ensaios, fragmentos

textuais, citações, possibilitam uma leitura de forma não tão hierárquica e contínua. Eis a

descontinuidade, tanto no seu pensamento teórico quanto na visualidade da sua escrita. Foi

com essa descontinuidade que resolvemos dialogar.

Fugir de um continuum implica em romper com um tempo progressivo, causal,

“homogêneo e vazio”. A temporalidade do “estilhaço”, como um “salto no céu da história”

rompe com essas amarras do tempo linear. Aproveitamos essa ideia monádica de tempo para

relacionarmos às imagens fotográficas que, como expomos, são também fragmentárias e

descontínuas. Partimos, então, desse paralelo entre fotografia e as ideias de Benjamin para

traçarmos uma ótica das ruínas – a própria fotografia como ruína. Percebemos que aliar

história e imagem foi fundamental para estabelecermos ainda mais diálogos sobre nosso tema

principal, como com a memória, por exemplo.

Curiosamente, pudemos encontrar no que Benjamin problematiza sobre a memória a

influência de Proust, Bergson e Baudelaire. Esses autores, contemporâneos a ele, viram nascer

o século XX e presenciaram as transformações vertiginosas no cotidiano moderno pelo

advento da imprensa e das técnicas reprodutivas, como a fotografia. Associada à dimensão

temporal, a noção de memória para esses três autores assume forte influência das tecnologias

da imagem, como a fotografia e o cinema. Isso foi interessante para perceber como o tempo

acelerado e a grande quantidade de estímulos visuais da modernidade acometeram os

habitantes das metrópoles e a sua faculdade da memória. As ideias de mémoire volontaire e

involontaire em Proust, duração em Bergson e a experiência do choque em Baudelaire foram

bases para que Benjamin fundamentasse a sua noção de experiência. Essa experiência, como

apresentamos, entrou em declínio, pois a capacidade de narrar, sendo coletiva, foi atrofiada

pela falta de memórias a compartilhar dos que voltavam da guerra silenciosos. Outro fator foi

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o isolamento do homem moderno, uma vez que os meios de comunicação levavam

informações até ele, de forma a enfraquecer o senso comunitário das narrações.

Por esses motivos é que, em Benjamin, a fragmentação do tempo industrial rompe

com a faculdade da memória ligada à experiência com um tempo original, artesanal, em que

contar e ouvir histórias era um modo de reconhecer experiência nelas. O individualismo, a

fragmentação do trabalho, favoreceram a vivência, ligada a um tempo particular. Assim, se os

homens caminhavam para o esquecimento de um senso comunitário, sua dívida com os

vencidos que ficaram para trás aumentava. A memória assume a quebra de um elo com o

passado. Ligamos, dessa forma, a memória à sua visão de história, que também aponta para o

esquecimento das ruínas, os vestígios de um passado contínuo. Contudo, essa incompletude

temporal da memória não é de todo negativa, já que pode impelir o historiador à ação, a

desvendar nas ruínas uma força rejuvenescedora.

Concluímos, com essas idas e vindas sobre a história e a memória, que as ruínas

aparecem no pensamento de Benjamin como imagens dialéticas, aquelas construídas por

ambivalências, ambiguidades. Elas incorporam uma fisionomia alegórica, em que o passado

“morto” e incompleto traz à tona a possibilidade de ser redimido. Os jogos de ambivalência

entre passado e presente, morte e vida, caracterizam o que chamamos de dialética das

imagens. Essa noção dialética foi muito rica para entendermos como a teoria fotográfica, com

seus autores clássicos, falam também desses jogos. Passamos a chamá-los de “duplos”, já que

que se tratam de estados diferentes mas que existem numa única ideia. Foi então sob a ótica

dessa construção ambivalente (que, acima de tudo, não encara o tempo passado como

encerrado), que passamos a perceber a fotografia como ruína.

Pequenas fotografias do pensamento

Trouxemos, ao longo do trabalho, imagens que, de alguma forma, relacionam-se com

nossa ótica dialética da ruína. Fotografias que, como rastros temporais, confirmam que são

objetos parciais, extraídos de uma linearidade histórica para dialogar como uma crítica

presente e uma reinvenção do tempo passado. Ora, se para o historiador, a tarefa de questionar

a “verdade” do passado é permanente, os fotógrafos/artistas de que falamos ao longo dos

capítulos se empenham nessa tarefa. E como alegóricos, lidam com as ruínas de forma a não

encarcerá-las no passado, mas trazendo-as para a atualidade.

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Vimos, como benjaminianas, imagens de Eugène Atget, Christian Boltanski e

Rosângela Rennó. Nomes que, embora atuem em lugares e tempos distintos, muito

incorporam a crítica do tempo em que vivem. Eles, como colecionadores, arquivistas ou

simplesmente fotógrafos, atuam no caráter incompleto da imagem, de modo a expressar a sua

dialética. Não por acaso, então, passamos a abordar, também com base na teoria fotográfica e

com auxílio de historiadores, os “duplos” advindos dessa característica de incompletude ou

parcialidade da fotografia: passado/presente, morte/vida, presença/ausência,

aparência/ocultação, congelamento/mobilidade, verdade/mentira e lembrança/esquecimento.

Dentre os discursos sobre a imagem fotográfica, sublinhamos o da fotografia como

traço de um real. Assumimos que ela é uma imagem incompleta e que serve a diferentes

intenções. Reportamo-nos, então, a Barthes, Dubois e ao próprio Benjamin, que se dirigem à

imagem fotográfica como sendo um rastro, um vestígio ou traço de um real passado. Os

duplos passado/presente, morte/vida e presença/ausência aparecem de forma enfática. Sendo

um traço do que esteve presente diante da câmera, a fotografia guarda um rastro do referente –

o seu “certificado de presença”. Entretanto, esse rastro só está ali como uma pegada, que

indica, além de uma presença, a ausência, a “morte” desse instante passado. O famoso “isso

foi” barthesiano, como destacamos, versa sobre esses duplos. Pudemos extrair do que é

colocado como sendo uma fotografia o diálogo direto com as ambivalências da imagem

dialética.

Eugène Atget foi um fotógrafo que se dedicou a registrar uma Paris que nem todos

viam: ruas vazias, parques, cafés, personagens que se dedicavam ao comércio de rua, assim

como ciganos à margem da cidade. Vimos em suas imagens o empenho do surrealista de

preparar “uma saudável alienação do homem com relação ao seu mundo ambiente”, conforme

expõe Benjamin (1994a, p. 102). Fugindo do retrato representativo burguês, o fotógrafo, ainda

que registrasse pessoas, essas não eram da burguesia. Eram pessoas anônimas de uma cidade

em acelerada expansão, vivendo entre o que é visível e o que se esconde. Não por acaso,

identificamos, nas imagens de Atget, ruínas. São fragmentos que remontam à dialética da

presença/ausência assim como da aparência/ocultação. O que uma cidade empurrava para as

margens, querendo ocultar, Atget as trazia para a “iluminação dos pormenores”.

Outra noção importante que se constrói na teoria fotográfica e faz ligação com os

duplos da imagem dialética benjaminiana é o corte. Demos ênfase à forma abrangente que

Dubois dedica ao assunto. O corte fotográfico, como expomos de forma detalhada, acontece

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por uma interrupção temporal, “uma experiência de corte radical da continuidade”. Para

Dubois, a fotografia é uma fatia espaço-temporal. Ou seja, é parte de um todo que está do lado

de fora da câmera, e aquilo que nela penetra é, por essa razão, a interrupção de uma ação

contínua, uma duração. Foi inevitável para nós não compararmos esse jogo de interrupção e

continuidade com o que vimos sobre história descontínua em Benjamin. A temporalidade do

clic do fotógrafo muito fala ao tempo do “salto” da história. O “salto” é a interrupção no vir-

a-ser dos acontecimentos, rompe com a linearidade do tempo. Desprendemos disso a

possibilidade de a fotografia, como corte, apresentar-se como imagem descontínua, pelo

menos temporalmente. Pelo clic, o fotógrafo congela uma cena, extraindo-a de uma duração,

para que, apenas depois, possamos descongelá-la mentalmente e redefinir seu percurso. Daí

falarmos do “efeito Medusa” indo em direção a um “instante movente”.

Fazendo cortes da realidade, o fotógrafo está o tempo todo congelando pedaços do

fluxo temporal que não cessa, que é movimento. Chegamos ao duplo

congelamento/mobilidade. A realização de uma fotografia parte de um mobilidade

seccionada, detida, para daí mover-se mentalmente depois desse corte. Dentre os caminhos

que apontamos como possibilidade de mobilidade das imagens no pensamento é a memória.

Ao recordar, estamos movimentando fotografias. E, na visão benjaminiana da história, a

percepção da imagem do passado é veloz, tal como um clic fotográfico. Esse clic necessita

despertar para a memória dos oprimidos, espezinhados pelo tempo “homogêneo e vazio dos

vencedores”.

Não tivemos intenção de forçar comparações entre Benjamin e a imagem fotográfica.

Elas surgiram naturalmente ao longo das leituras. Foi bastante enriquecedor aprofundarmo-

nos nesses duplos da fotografia para também melhor elucidar as ambivalências

benjaminianas. Um pensador como ele não deixou de ser influenciado pelas tecnologias da

imagem. Percebemos que a fotografia, além de ser o assunto de alguns de seus escritos, figura

como imagem do seu pensamento, principalmente, ao considerarmos os duplos que

apontamos. Seria forçoso ignorar essas semelhanças já que elas aparecem visivelmente. Sendo

parte de nosso interesse de pesquisa fazer uma analogia entre fotografia e ruína, foi bastante

proveitoso perceber as imagens como dialéticas.

Interrupção e fugacidade, especialmente, fazem parte de uma análise específica, feita

por Mauricio Lissovsky. Essa análise foi uma das poucas sobre o assunto que encontramos. O

autor discute fotografia e história em Benjamin sob o signo do clic, do instantâneo

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fotográfico. Expomos no texto do trabalho como ele destaca essa manifestação instantânea.

Contudo, vale recordar que “o historiador e o fotógrafo são ambos regidos pelo signo do tigre

– o totem interruptor, o animal sagrado do clic. No salto do tigre sobre a presa, o

acontecimento é imobilizado, ‘cristaliza-se como mônada’” (LISSOVSKY, 1998, p. 23). Por

outro lado, a fugacidade da lontra parece exigir um modo de nos fazer ver o futuro. “Signo

das coisas fugidias, dos ‘confins do zoológico’, a lontra estende seus domínios pelo território

mais vasto: os ‘lugares que têm’ o ‘poder’ de ‘nos fazer ver o futuro’, onde ‘parece ser coisa

do passado tudo o que nos espera’” (id., ib., p.24). A dialética do tigre e da lontra, da

interrupção e da fugacidade, convidou-nos a abrir os olhos para esse instante fotográfico

fugaz, instável: instante movente.

A noção de documento também foi trabalhada a partir do olhar dialético. Christian

Boltanski e Rosângela Rennó, como vimos, questionam os documentos e suas historicidades.

O que está além da aparência fotográfica? Que rastros nos são deixados pelas imagens e como

podemos reinventá-los? Artistas não conformados com uma postura passiva em relação ao

passado, criam, elaboram outra temporalidade para as imagens, a partir da desconfiança do

documento como prova do real. Enquanto vestígios, os documentos possuem aparências e

ocultações. Muitas vezes, eles precisam ser criticados de forma a salientar a “mentira” que

neles existe, como destaca Le Goff. Boltanski e Rennó assumem esse empenho de enfatizar

no documento seu caráter ficcional, ainda que concretizem obras distintas.

Boltanski, conforme expomos com base em imagens de suas obras, atua nas “pequenas

memórias”, aquelas dos anônimos, à margem do que se conta nos livros. Tendo o Holocausto,

a memória, a morte e a ausência como temas imbricados aos seus trabalhos, o artista desafia a

fragilidade de nossas lembranças. Pudemos ver como o vazio, o apagamento dos rostos

mostrados, a multiplicidade de pessoas comuns lançam luz à crítica do passado. Os vestígios

que são trabalhados em suas instalações, como vestimentas e fotografias figuram como

lembranças de esquecimentos. É nesse jogo entre aparência e ocultação, verdade e mentira,

presença e ausência, lembrança e esquecimento, que Boltanski traz a obra para um diálogo

atual, rompendo as fronteiras sequenciais de um tempo histórico contínuo. Ele assume a

postura do alegorista, que passa a significar os fragmentos dando vida a eles.

Sem nos esquecermos de dar ênfase ao empenho do historiador dialético em escavar o

passado, desnudando ocultações e apagamentos, discutimos como a noção de “documento-

mentira” colabora para um questionamento da fotografia enquanto prova do real,

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“documento-verdade”. Na sua incompletude e fragmentação, como diz Kossoy, o documento

cria realidades. Nesse sentido, debruçamo-nos sobre o documento/monumento que se trata de

encarar o documento como algo edificado, construído intencionalmente sob uma aparência

trapaceira. Le Goff, Foucault e Nora nos ajudaram a entender o perigo da pretensão de

verdade de um documento/monumento. Eles alertam para uma desconstrução dessa

“monumentalização”. O termo monumento, inclusive, embora disperso no que lemos sobre

Benjamin, está também relacionado com a dialética das imagens que se colocam ao

historiador. “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento

da barbárie” (BENJAMIN. 1994a, p.225). Ou seja, nunca houve memória preservada sem

atrocidade, falta de humanidade, vencidos “espezinhados”.

Rosângela Rennó também põe em xeque essas vidas arruinadas no transcurso do

progresso historicista. Mostramos obras em que seres humanos são levantados do sono em

que se encontravam. São rostos anônimos, fragmentos que, deslocados de seu contexto

original, voltam a murmurar depois do silêncio que se lhe impuseram. Rennó retira deles a

mordaça que, por tanto tempo, impedia-os de terem voz. As fotografias se libertam da amarra

documental para atuarem como rastros atemporais, com várias camadas ainda por desvendar.

Sendo também uma colecionadora, a artista investe na significância dos objetos fadados ao

desuso, à banalidade. Libertando os objetos e as imagens do seu peso de “morte”, de vida

passada, pelo que expomos, ela atua na “frágil força messiânica” do passado.

Assim, caminhando para o ponto final de nosso trabalho, sublinhamos que a imagem

fotográfica é rastro ou deixa rastros para que, com eles, outras narrativas possam ser pensadas.

Foi nesse intuito que nosso aporte teórico em Benjamin enriqueceu nossa abordagem da

fotografia como imagem dialética, ou do pensamento dialético. O próprio filósofo deixou uma

obra que só parece ter sentido como um mosaico, uma junção de fragmentos descontínuos. A

nosso ver, a natureza de imagem que mais condensa seu pensamento é a fotográfica, que,

como clics, “acumula incansavelmente ruína sobre ruína e a dispersa a nossos pés”.

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