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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO – UEMA
CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS – CECEN
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA
CURSO DE HISTÓRIA
JOSÉ ROBERTO VIEIRA SANTOS
“DUELO DE TITÃS”: CURANDEIRISMO, RELAÇÕES DE PODER E A
CRISTALIZAÇÃO DE UM UNIVERSO PARALELO EM SÃO LUÍS (1912-
1947).
São Luís – MA
2016
2
Santos, José Roberto Vieira.
“Duelo de titãs”: curandeirismo, relações de poder e a cristalização
de um universo paralelo em São Luís (1912-1947) / José Roberto
Vieira Santos. – São Luís, 2016.
... f
Monografia (Graduação) – Curso de História, Universidade
Estadual do Maranhão, 2016.
Orientador: Profa. Dra. Tatiana Raquel Reis Silva.
1.Curandeirismo. 2.Exclusão social. 3.Executores do poder.
4.Paradigmas civilizacionais. I.Título
CDU:930.85”1912/1947”(812.1)
3
JOSÉ ROBERTO VIEIRA SANTOS
“DUELO DE TITÃS”: CURANDEIRISMO, RELAÇÕES DE PODER E A
CRISTALIZAÇÃO DE UM UNIVERSO PARALELO EM SÃO LUÍS (1912-
1947).
Aprovado em: ____/_____/______
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Profª. Drª. Tatiana Raquel Reis Silva (orientadora)
________________________________________
1º Examinadorª
________________________________________
2º Examinadorª
São Luís – MA
2016
4
AGRADECIMENTOS
Primeiramente à minha mãe de coração, Nilza, por não fazer a menor ideia do
que seja a graduação e, ainda assim, ter me apoiado incondicionalmente, ou seja, ainda
que não fosse alfabetizada, me deu a educação necessária. Ressalto, também, a minha
mãe biológica, que sem ela isso tudo não seria possível e as minhas irmãs Janice e
Ivelize.
A minha amiga Lucinda Castro que me foi de muita valia durante o processo
seletivo vestibular, dedico os meus agradecimentos, pois, durante esse período as suas
palavras serviram de sustentáculo na dura rotina de estudos.
Aos meus amigos Leandro, Kelly, Francielma (fofinha), Franckciane, Carlos
Eduardo (Carlinhos), Julieta, Barbara, Magno, Maria Simoa e seu esposo senhor Walter
pela amizade de anos, o meu muito obrigado.
Às minhas primas Anniessilene, Annietiene, Annieliese, e ao meu primo
Raniere, por terem contribuído para o meu crescimento como pessoa. Aos meus amigos
mais recentes Carlos Matos (Carlinhos), Jocineide (Jo) e sua mãe Dona Maria, Shayane,
Gerlane, Ducely, Diego, Domingas, Jeane, Mayane, que puderam participar desse
processo com os seus apoios morais.
Não menos importante e, em especial, aos meus amigos quase pós-graduados e
graduados Flávio Poeta, Frank e Alex, pelo quarteto fantástico. Durante o período em
que estivemos juntos em sala de aula ou não, seja discutindo, ou até mesmo, brigando,
tenham a certeza de que nada disso foi desperdiçado, ou melhor, tudo foi aproveitado
para o meu crescimento profissional.
Aos meus outros amigos de curso Camila que inicialmente tivemos algumas
hostilidades, mas, com o passar do tempo foram exterminadas pelo convívio pacífico e
de amizade, a serelepe Rackell, Marla Jéssica, Marla Rafaela (Marla Potter), Aimé,
Paulo Mucilon, Pablo, Gugu, a todos o meu muito obrigado por tê-los conhecido.
Agradeço ainda aos meus colegas de trabalho Euzineth, Josinaldo, Marcos,
Gracelane, Rudi, Eduardo, Michael, Joelce e Lana, por tornar esses dez anos de serviço
um fardo mais ameno.
5
Aos meus queridos professores Henrique Borralho que me instigou ao
pensamento mais solto e descontraído, Ana Lívia, Adriana Zierer, Ximendes, Milena,
Nielson, Beth, Reinaldo e, especialmente, a Fábio, Helidacy e Julia Constança onde os
ensinamentos de ambos foram muito relevantes para a construção deste trabalho.
A minha orientadora Tatiana que me deu as devidas orientações e teve a árdua
missão de me aturar durante um largo tempo.
A todos vocês e aos demais que por ventura não me recordo deixo os meus
grandes e sinceros agradecimentos e, também, é a vocês que dedico esse trabalho.
6
RESUMO
O curandeirismo é muito recorrente em São Luís na primeira metade do século XX, e os
periódicos concernentes a esse período descreviam minuciosamente as consecutivas
batidas policiais aos terreiros de pajelança. Nesse contexto histórico, São Luís não fugia
da realidade de muitas cidades brasileiras, onde ocorria, teoricamente, um processo
acelerado de modernização. Contraditoriamente, o que se podia perceber era o caminhar
de uma cidade de braços dados com a pobreza da maioria da população, com a
imensurável exclusão social, com a gente mestiça de origem portuguesa, africana e
indígena. Sendo assim, foi possível notar uma relação de força entre o curandeirismo e
os “agentes do poder” do Estado como os jornais, a polícia, e o poder judiciário. Nesse
sentido, o objetivo desse trabalho consiste na ênfase e reflexão sobre os discursos dos
“executores do poder” estatal ludovicense, vinculados aos novos paradigmas
civilizacionais da primeira metade do século XX, assim como, a análise da reação da
população menos abastada, especificamente, dos adeptos do curandeirismo aos novos
métodos organizacionais emanados da medicina.
Palavras-chaves: Curandeirismo. Exclusão Social. Executores do Poder. Paradigmas
Civilizacionais. Medicina Científica.
7
ABSTRACT
The faith healing is very recurrent in St. Louis in the first half of the twentieth century,
and periodic concerning this period thoroughly described consecutive raids on religious
communities of shamanism. In this historical context, St. Louis would not run away
from reality in many Brazilian cities, which occurred in theory, an accelerated process
of modernization. Contradictorily, which I could see was the walk of a city arm in arm
with the poverty of the majority of the population, with the immeasurable social
exclusion, with the mestizo people of Portuguese, African and indigenous origin. Thus,
it was possible to notice a power relationship between faith healing and the "power
brokers" of the state as newspapers, police, and the judiciary. In this sense, the objective
of this work is the emphasis and reflection on the speeches of the "power of executing"
state ludovicense linked to the new civilizational paradigms of the first half of the
twentieth century, as well as the analysis of the reaction of the less well-off population,
specifically, of faith healing fans emanating from the new organizational methods of
scientific medicine.
Key-words: Faith Healing. Social Exclusion. Executors of Power. Civilizational
Paradigms. Scientific Medicine.
8
“Na verdade nossos termos "civilizado" e ''incivil" não constituem uma antítese do tipo
existente entre o ‘bem’ e o ‘mal’', mas representam, sim, fases em um desenvolvimento
que, além do mais, ainda continua. É bem possível que nosso estágio de civilização,
nosso comportamento, venham despertar em nossos descendentes um embaraço
semelhante ao que, às vezes, sentimos ante o comportamento de nossos ancestrais.”
Norbert Elias
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................11
1. CURANDEIRISMO E RELAÇÕES DE PODER EM SÃO LUÍS.....................18
1.1. “Duelo de Titãs”: embate entre curandeirismo e medicina oficial....................18
1.2. A Cura Oficial e Tradicional: uma breve contextualização histórica...............24
1.3. Hospitais Populares: discurso médico-oficial e o paradoxo do contexto citadino
ludovicense.....................................................................................................................31
2. CURANDEIRISMO E RELIGIÃO: REPRESENTAÇÃO RELIGIOSA,
COERSÃO CULTURAL E RESISTÊNCIA SOCIAL............................................39
2.1. A Religião por Trás das Representações do Universo Mágico-religioso do
Curandeirismo...............................................................................................................39
2.2. Marcas do Passado: coerção aos “atos abomináveis” nos periódicos
ludovicenses...................................................................................................................43
2.3. Relação Mina-pajelança e Resistência ao Saber Científico-
medicinal........................................................................................................................55
3. A NATUREZA DO CURANDERISMO: OS COSTUMES E O UNIVERSO DE
REPRESENTAÇÕES DE VIDA................................................................................62
3.1. Práticas e Costumes Populares: alguns apontamentos sobre a cura tradicional
contemporânea..............................................................................................................62
3.2. A Cristalização de Um Universo Paralelo: justiça brasileira, costumes
afrodescendentes e relações de poder..........................................................................67
3.3. O Habeas Corpus de Demétrio Santos e Seus Assistentes: antagonismos
práticos e históricos do processo de modernização de São Luís...............................78
3.4. O Inquérito Criminal de Maria Pereira de Sousa: exercício ilegal da medicina
e a segunda natureza do homem..................................................................................84
10
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................92
FONTES E REFERÊNCIAS........................................................................................97
ANEXOS.......................................................................................................................100
11
INTRODUÇÃO
O curandeirismo é muito recorrente em São Luís do século XX, e os periódicos
concernentes à primeira metade deste século como os jornais descreviam
minuciosamente as consecutivas batidas policiais aos terreiros de pajelança. O objetivo
da força policial se dava em função de reprimir as práticas ilegais de cura, pois, este
processo era fundamentado pelos artigos 156, 157 e 158 do Código Penal de 1890.
Naquela conjuntura, São Luís não fugia da realidade de muitas cidades
brasileiras, onde ocorria, teoricamente, um processo acelerado de modernização. No
entanto, o que se podia perceber era o caminhar de uma cidade de braços dados com a
pobreza da maioria da população, com a imensurável exclusão social, com a gente
mestiça de origem portuguesa, africana e indígena. Essas tônicas irão porfiar nas
literaturas concernentes ao tema curandeirismo.
Sendo assim, foi possível notar uma relação de força entre o curandeirismo e os
braços do Estado como os jornais, a polícia, e o poder judiciário. Dessa forma, o
objetivo desse trabalho consiste na ênfase e reflexão sobre os discursos dos “executores
do poder” estatal ludovicense vinculados aos novos paradigmas civilizacionais da
primeira metade do século XX, assim como, a análise da reação da população menos
abastada, especificamente, dos adeptos do curandeirismo aos novos métodos
organizacionais implementados pela medicina alopática.
O nosso recorte temporal (1912-1947) foi escolhido em função das poucas
mudanças do cenário político e sócio-econômico, decorrentes do processo
modernizador. Pois, foram notórias as incoerências dessas mudanças em virtude da
formação histórico-social brasileira, principalmente, no que se refere à aplicação de uma
terapia médico-científica num panorama bastante dominado por outra terapia médica
antagônica.
Os documentos escolhidos para a análise constituem os jornais de época dos
anos de 1915, 1940, 1941 e 1947, e os documentos oficiais e jurídicos como: uma
licença para baile de tambor de mina de 1912, emitida, possivelmente, por uma
delegacia de polícia, um habeas corpus de 1940, expedido pelo Tribunal de Apelação
do Estado do Maranhão, e um inquérito criminal de 1940, originário da Chefatura de
Polícia do Maranhão.
12
Os periódicos serviram para se observar a visão elitista e intelectual da época
em relação às práticas e costumes do curandeirismo. Nas entrelinhas são disferidos
incessantes ataques às manifestações de matriz africana, pois, as discriminações e os
preconceitos lançados por esses jornais foram de crucial importância para se destacar as
relações de forças emolduradas pela lógica modernizadora adotada.
No palco dos conflitos entre o discurso médico-oficial e o tradicional, os
periódicos ludovicenses serviram como arma de combate à pluralidade medicinal,
principalmente, a de ordem afrodescendente. Os articulistas, empenhados em defender
uma ideologia que pretendia privar as manifestações de cura tradicional, promoveram
expressivamente a discriminação às religiões de matriz africana e indígena,
especificamente.
Dentre os jornais pesquisados temos A Pacotilha, fundado em outubro de
1880, pelo jornalista Victor Lobato, no contexto das discussões do processo
abolicionista. A intenção primordial era de cunho popular, abolicionista e republicano, e
não era, pelo menos na teoria, atrelado a partidos políticos. “Em janeiro de 1881 parou
de circular para reiniciar em abril do mesmo ano, reformulado e de tamanho igual aos
demais jornais diários” 1.
Em 1930 deixou de ser editado para retornar, mais uma vez, em 1934, no
entanto, em 1938 deixou de circular definitivamente. À frente de A Pacotilha se
destacaram jornalistas tradicionais pretensamente liberais, provindos de famílias de
proprietários rurais como António Lobo e João da Mata de Moraes Rego.
Este jornal explorava, sobretudo, notícias policiais e atraía uma gama de
leitores, dessa forma, a empresa era obrigada a fazer uma segunda edição. “Para mexer
e despertar a atenção do público o jornal colocava, do lado de fora, com um fio
amarrado na janela, cartazes com os títulos chamativos, o que aglomerava um bom
número de curiosos” 2.
1 PEREIRA, Josenildo de Jesus. Imprensa, ética e ideias abolicionistas no Maranhão na década de
1880. Fortaleza: ANPUH, 2009. P. 3. ANPUH - XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA.
Disponível em:
www.google.com.br/Imprensa/éticaescravistaeidéiasabolicionistasnoMaranhãonadécadade1880. Acesso:
22/12/2015; 14h44 min. 2 Um jornal com 84 anos de história. Disponível em:
www.observatoriodaimprensa.com.br/umjornalcom84anosdehistoria. Acesso: 21/12/2015; 19h06 min.
13
Outro periódico analisado foi O Globo que lançou sua primeira edição no dia
29 de julho de 1925. Irineu Marinho, seu proprietário fundador, tinha como meta lançar
um periódico identificado com a vida carioca. Sua origem se encontra numa série de
negociações fracassadas, O Globo veio tomar o lugar que antes era do jornal A Noite.
“Um dos princípios editoriais do vespertino era buscar a notícia em todos os setores da
cidade, marca que permaneceu ao longo de toda a sua história” 3.
No maranhão, a sua circulação se iniciou em 1939 e seguia a mesma proposta
da ética do formato carioca. A sua atuação desenhou os traços da perseguição às
práticas de negro e de pobre em São Luís. A defesa dos costumes da elite branca foi a
sua tônica. Quando se tratava da participação de abastados nas sessões de cura, O Globo
sempre acenava para a rede de enganações e atraso cultural emanados dos terreiros de
cura.
Os jornais, portanto, se configuravam como o outro lado da balança, um
micropoder do Estado, onde, num duelo de forças com o curandeirismo, como uma
espécie de duelo de gigantes, populares e abastados interagiam mutuamente. A
perseguição ao curandeirismo, embutida nos artigos jornalísticos não exerciam outro
trabalho além de evidenciar a larga utilização do curandeirismo e o seu recrudescimento
na capital maranhense, tanto no centro urbano, quanto no interior da ilha.
Foram nos relatos policiais que curandeiros e pacientes tiveram suas
identidades reveladas, alcunhado de feiticeiros e charlatães, dentre outras depreciações.
Neles os articulistas proferiam os desejos da classe dominante no sentido de, num
primeiro momento, execrar das cercanias do centro de São Luís tudo aquilo que
remetesse à herança colonial, para, num segundo momento, reprimir e extirpar da
sociedade em geral tais práticas.
A licença para funcionamento de um tambor de mina, de 1912, no atual bairro
da Madre Deus, em nome de Agostinha Silva da Conceição é um documento primordial
para se refletir como era intensa a perseguição aos terreiros de pajelança. Porém, em
momento algum é citada alguma referência ao curandeirismo. Portanto, a análise de
outras documentações, e as diversas literaturas analisadas nos permitiu fazer algumas
considerações concernentes à associação entre o tambor de mina e a pajelança.
3 O Globo é lançado. Disponível em: http://www.memoria.oglobo.globo.com. Acesso: 03/09/2015;
18h10 min.
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O habeas corpus de 1940, de Demétrio Santos, um pai-de-santo, e seus
assistentes José Santos, Raimundo Buna e Simão Rodrigues relata a prisão desses
indivíduos por exercício ilegal da medicina, em São Luís. Esse documento nos forneceu
muitos vestígios sobre a ação do poder judiciário maranhense diante das práticas e
costumes da gente excluída da capital.
A documentação nos auxilia na compreensão da forma como eram
representados os adeptos da prática tradicional de cura. Essas características se aplicam
perfeitamente ao inquérito criminal de 1940, de Maria Pereira de Sousa, proprietária de
uma pensão de meretrizes, que realizou o parto de uma de suas inquilinas, logo, foi
acusada de exercício ilegal da medicina, por não ser habilitada para realizar tal mister.
Essas evidências nos permite refletir sobre o quanto era pernicioso exercer um ofício
ilegal e tradicional preferido por grande parte da população pobre e, com menos
intensidade, pelos escassos abastados, em detrimento de uma prática oficial.
Mediante a documentação apresentada procuramos apregoar o quão intensa
eram as relações de poder entre curandeirismo e Estado. Nesse sentido, a medicina
científica, a força judiciária e os relatos jornalísticos se apresentaram como premissas
para se pensar que estes órgãos poderiam ser braços desse Estado. No entanto, não
utilizamos como metodologia uma história da constituição da política do Estado
brasileiro, muito menos, uma história da medicina. Ao embarcarmos numa breve
contextualização histórica da medicina, o nosso objetivo recai no sentido de demonstrar
os principais argumentos utilizados pelas forças governamentais no combate ao
curandeirismo.
Utilizamos exaustivamente uma metáfora para designar as relações de poder
entre curandeirismo e Estado. A intensão de discorrer sobre o tema curandeirismo
utilizando uma metáfora se constitui numa tentativa de tornar esse trabalho mais
atraente ao leitor. A linguagem de fácil acesso e a empolgação, contidas aqui vem em
consonância com os escritos de Peter Burke.
Ele analisa em História e teoria social a relação da história com a teoria social
e, ressalta a relação convergente destas duas entre si e com outras disciplinas
humanísticas como a antropologia, a geografia, a filosofia, dentre outras áreas.
15
Peter Burke tem como maior desafio evidenciar a teoria social como
ferramenta ou suporte capaz de ampliar a imaginação do historiador, no sentido de se
estabelecer perguntas e possíveis respostas a conflitos resultantes da análise dos fatos
históricos. Essa afirmativa vem em detrimento do que ele chama de paroquialismo, uma
espécie de limitação de horizontes dos historiadores.
Os historiadores correm risco de paroquialismo no sentido quase literal do
termo. Ao se especializarem, como em geral o fazem, em uma região
específica podem acabar considerando sua ‘paróquia’ completamente única, e
não uma combinação única de elementos que, individualmente, tem paralelos
em outros lugares. Os teóricos sociais demonstram paroquialismo em um
sentido mais metafórico, mais vinculado ao tempo do que ao lugar, sempre
que generalizam sobre a ‘sociedade’ com base apenas na experiência
contemporânea ou discutem a mudança social se levar em consideração os
processos de longo prazo4.
Ao utilizarmos Burke pretendemos comparar o embate entre curandeirismo e
Estado como a guerra entre deuses olimpianos e os titãs. Segundo a mitologia grega
houve uma grande batalha na antiguidade entre essas denominações divinas pela
hegemonia do universo. Longe de apontar os vencedores e os vencidos, a nossa intensão
é possibilitar ao leitor uma visão metafórica da queda de braço entre os procedimentos
medicinais da população desprivilegiada de assistência médico-hospitalar e das
coerções dos “donos do poder”.
Assim constituiu, em suas linhas gerais, o nosso trabalho, que se encontra
dividido em três capítulos. O primeiro utiliza a supracitada metáfora para distinguir o
embate entre a medicina científica e o curandeirismo. Associamos ambas as terapias à
figura de dois segmentos divinos mitológicos, ou seja, com métodos diferentes, as duas
medicinas disputaram na longa duração a preferência da população.
Num primeiro momento, o curandeirismo se beneficiou da escassez de médicos
cientistas ou oficiais, para noutro instante, concorrer rigorosamente à clientela. Passados
os estágios de dominação colonial, as peças foram mudando de lugar e foi notória a
percepção de que aos poucos a medicina oficial foi ganhando espaço, ainda que à custa
das parcas e defasadas determinações metropolitanas.
Nesse embate conseguimos abstrair uma tentativa do Estado brasileiro de
sucumbir a medicina mágico-religiosa. Como consequências gerais, foi possível notar
antagonismos práticos e históricos, pois, num paradigma onde a cultura europeia
4 BURKE, Peter. História e teoria social. 3. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2012. P. 17.
16
pretendia agir rigorosamente, os conflitos concernentes a essa realidade deram seu grito
de existência.
Para a construção do texto foi de extrema importância recorrer a um
embasamento teórico pautado nos debates sobre exercício de poder. Os escritos de
Michel Foucault nos instigaram a uma ampla possibilidade de entendimento, logo, as
literaturas científicas de Paula Montero serviram para a percepção de como foi difícil
execrar a pluralidade medicinal mediante o processo de urbanização das grandes
metrópoles nacionais. Yvonne Maggie evidencia o recrudescimento do curandeirismo a
despeito das restrições governamentais e Lilia Schwarcz destaca a ineficiência do
processo de embranquecimento social brasileiro diante de uma sociedade tipicamente
mestiçada. Alceu Maynard enfatiza uma união entre a medicina científica e o
curandeirismo, Andréa Loyola assevera que diante de uma sociedade hierarquizada,
médicos e curandeiros disputaram a preferência da população de nova Iguaçu, no Rio de
Janeiro. Com base nesses trabalhos pudemos destacar as relações de força entre o
curandeirismo, mesmo com os avanços científicos do século XX.
O segundo capítulo constitui uma tentativa de inserir o fenômeno religioso
como mecanismo de engessamento das práticas culturais da população de São Luís.
Pois, pudemos notar o quanto a religião fomentou o curandeirismo praticado pelas
pessoas que o tinham como método de cura física e espiritual. As consequências se
circunscreveram num processo conflituoso que pretendia eliminar, das entranhas da
sociedade, toda e qualquer manifestação alheia aos princípios da política “progressista”
estatal.
As literaturas foram escolhidas de acordo com o nosso propósito. Aos nos
debruçarmos, superficialmente, na teoria sociológica durkeiminiana, as obras
anteriormente mencionadas ainda se fizeram necessárias por coadunar referências
relativas ao universo religioso do curandeirismo. Puderam-se notar as raízes do
fenômeno religioso em vários procedimentos do curandeirismo e, foi destacada ainda, a
importância da ligação entre este método medicinal e a pajelança.
No terceiro capítulo objetivamos apregoar os costumes da gente pobre como
cristalizador de um universo paralelo àquele pretendido pela sociedade dominante. Não
que nos capítulos anteriores não tivemos esse intuito, no entanto, o que se pretendeu foi
demonstrar de forma mais direta a associação entre esses costumes e os mecanismos de
17
dominação das classes desfavorecidas, ainda que esse processo se consistisse
involuntariamente.
As obras supracitadas se demonstraram, mais uma vez, importantes, pois,
associadas aos escritos de Ana Lúcia Schritzmeyer a respeito das teorias antropológicas
e sociológicas que sustentaram as determinações do poder judiciário no combate ao
curandeirismo, e as teorias de Edward Thompson e Norbert Elias pudemos entender
como os costumes puderam ser decisivos no engessamento cultural da população menos
abastada, e com menos intensidade, da elite de São Luís.
Outras informações colhidas em sites confiáveis foram decisivas para a
construção desse trabalho, no sentido de auxiliar e complementar informações contidas
nas literaturas científicas anteriormente mencionadas.
18
1. CURANDEIRISMO E RELAÇÕES DE PODER EM SÃO LUÍS.
1.1. “DUELO DE TITÃS”: EMBATE ENTRE CURANDEIRISMO E MEDICINA
OFICIAL.
Segundo a mitologia grega, os titãs eram seres extraordinários antecedentes dos
deuses olimpianos. Essas divindades são progenitores de Urano que personificava o céu
e Gaia que representava a terra. Em geral, eram representados como seres gigantescos
que temendo perder o domínio do universo travaram uma grande batalha com seus
descendentes, os deuses olimpianos Zeus, Hera, Poseidon, Ades, dentre outros, que
utilizando suas armas mágicas venceram e baniram eternamente os titãs para o Tártaro.
Quaisquer informações existentes desse mito são versões preexistentes e
narradas por pessoas encarregadas em transmitir as narrativas dos grandes feitos
heroicos da antiguidade. Isso ocorre principalmente em função do imaginário fértil dos
poetas e da credulidade dos povos. “É importante citar, também, que o mito não
funciona apenas como uma história de aventura é, também, uma ferramenta cultural.
Um mito, por mais esdrúxulo que pareça, possui um significado mais profundo” 5.
Não procuramos o significado ontológico desse mito, e longe de apontar os
vencedores e os vencidos, a intenção de nos referir aos titãs da mitologia grega é aludir
uma batalha, para um duelo de forças entre dois vastos campos de conhecimento
medicinal, o curandeirismo e a medicina científica, a ponto de evidenciar as relações de
poder entre essas duas terapias no Brasil.
Temos o curandeirismo, assim como a medicina oficial como dois titãs, logo,
eram largamente utilizadas pela população desde o Brasil colonial. Pois, é a partir da
evidência na utilização de suas terapias, estabelecendo uma corrida pela preferência de
suas práticas, que se dá a produção deste capítulo.
O curandeirismo e a medicina europeia, desde que se estabeleceram como
práticas recorrentes no Brasil sustentaram uma relação de força que adentrou a
contemporaneidade. Nesse contexto histórico pudemos ver que as duas terapias
disputaram acirradamente a clientela e tornaram-se protagonistas de um amplo processo
de formação nacional brasileira.
5 A mitologia por traz de god of war-guerra entre titãs e deuses. Disponível em:
www.iluminerds.com. Acesso: 03/09/2015; 00h05 min.
19
Para entendermos com maior precisão essa relação de força é de
imprescindível necessidade que entendamos as principais correntes teóricas que tratam
das relações de poder e as literaturas que abordam a temática do curandeirismo e da
medicina oficial. Nesse caso, trabalharemos com as relações de poder explanadas pelo
filósofo e historiador Michel Foucault na sua obra Microfísica do poder, por dialogar
com maior precisão com a nossa pesquisa.
Este livro trata das manifestações de poder nas sociedades capitalistas, e
assegura que “o poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma pratica social e, como
tal, constituída historicamente” 6. Nesse sentido, o poder não é algo que se possa ter nas
mãos, que se possa centralizar, a despeito da noção equívoca de que o Estado é o centro
emanante de poder. Este é, necessariamente, um exercício de práticas, de relações.
De forma alguma, esta obra trata da ineficácia do Estado em manter relações de
poder, pelo contrário, ele teria sim os seus mecanismos de controle, de adestramento
social. O que Foucault evidencia é que o fenômeno social caracterizado como poder é
algo que não está em lugar algum, não é algo se se possa ter nas mãos, é um fenômeno
que paira sobre a sociedade, que está muito além dos limites do Estado, mas que nem
por isso, este mesmo Estado, deixa de exercê-lo.
Há poderes que estão desprendidos das entranhas estatais, que podem ou não
caminhar concomitantemente com o Estado, pois, são os micro-poderes, os poderes
moleculares. Eles não foram absorvidos e criados pelo Estado, nem mesmo nasceram
fora dele. Pois, são essas forças sociais que se tornam objeto específico para Foucault.
“O que aparece como evidente é a existência de formas de exercício de poder diferentes
do Estado, a ele articuladas de maneiras variadas e que são indispensáveis inclusive a
sua sustentação e atuação eficaz.” 7. Pois nem mesmo o seu extermínio, “é suficiente
para fazer desaparecer ou para transformar, em suas características fundamentais, a rede
de poderes que impera em uma sociedade” 8.
Podemos identificar as características supracitadas em diversas literaturas
como em Da doença a desordem: a magia na umbanda que traz significativa
informação sobre uma série de terapias populares no Brasil. “Da doença a desordem
6 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 16. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2001. P. X.
7 Ibid. P. XI.
8 Ibid. P. XIII.
20
constitui uma rigorosa análise das práticas terapêuticas da Umbanda e da cosmovisão
que inspira a sua interpretação etiológica da eclosão de moléstias” 9.
O cerne deste livro aponta para a coabitação de várias práticas medicinais
disponíveis aos brasileiros, ainda que o processo de urbanização pressuponha a
decadência dessas práticas populares de cura. Paula Montero assevera que o
curandeirismo recrudesceu mesmo com o avanço da modernidade, desfazendo a ideia de
que este fenômeno é um resquício do mundo rural.
Um ponto forte de sua pesquisa é a afirmação de que o curandeirismo não se
constitui fora do eixo da medicina científica, pelo contrário, esta terapia popular se
inscreve nos moldes científico-medicinais, ainda que represente uma retaliação aos
princípios científicos. Enquanto a medicina científica tenta suprimir a forma tradicional,
esta última, ainda que reflita resistência, toma como referência terapêutica as práticas da
primeira.
A obra Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil de Yvonne
Maggie se debruça sobre as relações de poder do Estado brasileiro diante das práticas
mágico-religiosas no Rio de Janeiro após a instauração da república. O recorte temporal
é de 1890 a 1985. Segundo a autora, esta data foi escolhida devido à riqueza de
documentos recolhidos no Arquivo Nacional, no Museu da Polícia do Rio de Janeiro, na
Secretaria de Segurança Pública e em delegacias. Essas fontes evidenciavam a criação
de vários artigos, leis e processos criminais com a finalidade de regulamentar, reprimir e
conter o avanço do curandeirismo, do espiritismo e do charlatanismo. Na medida em
que passam os anos, os órgãos e artigos judiciais tomavam novas formas a fim de conter
e reprimir tais práticas.
Crença é uma palavra chave dentro deste trabalho, na medida em que “valoriza
as fontes históricas no trabalho antropológico, ao utilizar os processos criminais para
estudar as formas de combate e perseguição às religiões mediúnicas e para analisar a
maneira pela qual a crença na feitiçaria se constitui e se organiza” 10
.
9 MONTERO, Paula. Da doença a desordem: a magia na umbanda. — Rio de Janeiro: Edições Graal,
1985. (Biblioteca de Saúde e sociedade; v. n. 10). P. 9. 10
MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 1992. P. 17.
21
O objetivo geral da obra é investigar as relações entre a crença na magia
benéfica e maléfica, as acusações de feitiçaria e charlatanismo e os mecanismos sociais
que as regulam. Yvonne Maggie mergulha em diversas teorias antropológicas,
sociológicas e determinista-evolucionistas que tentam explicar como se constitui e é
representado o sistema de crenças nas práticas mágico-religiosas. Segundo ela, essa
crença enche (e encheu) deste o período colonial brasileiro as casas dos curandeiros,
centros, terreiros, as casas de benzedeiras, espíritas e médiuns, de toda forma. A
credulidade na magia também norteou a atuação de juízes, promotores, advogados e
policiais.
A sua hipótese está ancorada na premissa de que as mais variadas formas de
repressão do Estado à magia deram origem a novas formas de cultos mágico-religiosos
e recrudesceram as que já existiam no Rio de Janeiro. Essa afirmação se inscreve no
fato de que era preciso conhecê-las para discipliná-las e socializá-las, pois, eram
conhecidas como práticas de negro e de pobre.
No processo de conhecimento e correção disciplinar, juristas e fiéis acabaram
se entrelaçando, consequentemente, foram influenciados pelo mesmo sistema de
crenças, afinal, “poder e saber caminham juntos e só se pode dominar se há
conhecimento, saber, sobre as práticas dos dominados” 11
.
No complexo emaranhamento sócio-cultural, práticas de branco e de negro
acabam se inscrevendo umas nas outras. Pois, as questões raciais foram alvos de
sucessivos debates na virada do século XIX para o XX, no sentido de se apagar as
marcas do passado colonial, uma vez que a pretensão de médicos e advogados, os
homens de ciência, era desenvolver mecanismos de embranquecimento social.
Nesse contexto e, na tentativa de buscar um entendimento para a questão da
miscigenação racial brasileira no processo de formação da identidade de um Brasil
moderno, Lilia Moritz Schwarcz em O espetáculo das raças: cientistas, instituições e
questão racial no Brasil, explana historicamente as principais teorias positivo-
deterministas advindas da Europa no período de 1870-1930. Esse enfoque é conduzido
pela abordagem social, com o propósito de se entender “como o argumento racial foi
política e historicamente construído nesse momento, assim como o conceito raça, que
11
Idem. P. 29.
22
além de sua definição biológica acabou recebendo uma interpretação sobretudo social.”
12.
O recorte temporal foi escolhido devido à falência do sistema escravocrata e
consequentemente, à sua extinção em 1888, e ao advento republicano em 1889, onde era
necessário estabelecer novos padrões sociais. Pois, essa tarefa ficou a cargo dos
principais intelectuais brasileiros que se beneficiaram das correntes teóricas
evolucionistas genuínas da Europa e escreveram, na história brasileira de finais do
século XIX e início do século XX, os princípios paradigmáticos sociais.
O Brasil, em inícios do século XX, ainda passava por transformações
decorrentes dos ideários ocidentais, onde fatores como a urbanização, as questões
raciais, as práticas de negros, como o curandeirismo, eram largamente discutidos. Havia
um movimento que pretendia remover das entranhas sociais brasileiras as heranças
desse passado.
No Maranhão a discussão sobre o tema não foge da realidade do restante do
país. Nesse sentido, a obra Pajelança do Maranhão no século XIX: o processo de
Amélia Rosa, organizada por Mundicarmo Ferretti se debruça sobre a discriminação, o
preconceito e a intolerância contra o negro e a religião afrodescendente no Maranhão,
na segunda metade do século XIX, após analisar o processo-crime de Amélia Rosa,
datado da década de 1870 (1877-1878) em São Luís do Maranhão.
Ao analisar esse processo-crime, Mundicarmo Ferretti evidencia uma tendência
das autoridades em hostilizar a pajelança. Pois o depoimento das acusadas de
curandeirismo e maus tratos a uma escrava, era vertiginosamente sucumbido pelos
efeitos da intolerância religiosa. A necessidade de condenar Amélia Rosa se inscreve na
tentativa de barrar toda e qualquer prática que se encaminhe ao universo
afrodescendente, neste caso, a justiça pretendeu cortar o “mal” pela raiz.
Esse panorama permeia a vida do negro e os seus ritos durante o período
colonial, inclusive, há relatos de casos de intransigência religiosa promovida pela
Inquisição no Maranhão. No entanto, a “caça às bruxas” nesse período não se aplicou
exclusivamente aos negros. Portugueses e índios também eram perseguidos por
12 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. P. 17.
23
praticarem rituais inconcebíveis à Igreja Católica. “Uma das vítimas da intolerância da
Inquisição ligadas ao Maranhão foi o padre Antonio Vieira que, em 1667, foi impedido
de escrever e de pregar por algum tempo” 13
.
Ao fim da inquisição, período que se aproximava da Independência do Brasil,
esperava-se que as práticas religiosas do negro fossem mais aceitas, no entanto, o que se
viu foi a continuação da intolerância às suas manifestações culturais, ou melhor, “[...]
essa liberdade teve de ser conquistada palmo a palmo, pois a preocupação com a
feitiçaria continuou muito forte e o negro continuou a ser visto como feiticeiro, mesmo
quando era procurado para ‘curar ou desmanchar feitiço’ [...]”14
.
O século XX foi o período áureo das transformações urbanas, da Medicina
Científica, do Direito, sendo esses dois últimos, os pilares da república brasileira. A
intolerância contra as práticas culturais afrodescendentes se exacerbaram
consideravelmente com a criação de órgão públicos de repressão, além de uma enorme
burocracia para o funcionamento de terreiros.
Neste momento, com o discurso de sanear o país, Raimundo Nina Rodrigues
programou uma verdadeira perseguição aos terreiros de “macumba”, fantasiada de
fiscalização. “Se é verdade que em seus textos ele procurava mostrar o quão perniciosa
era a influência dos negros na população brasileira – o que estava em absoluta
consonância com as ideias de seu tempo...” 15
.
Carlúcio Baima de Brito, no seu trabalho de conclusão de curso “Toda cura
para todo mal”: Discurso médico e práticas curativas no tratamento de doenças e na
conservação higiênica de São Luís (1880-1905) ressalta a batalha entre o discurso
médico e as práticas curativas no tratamento de doenças e na conservação da higiene de
São Luís.
A principal problemática deste trabalho consiste no paradoxo da aplicação de
uma conduta sanitária numa cidade onde o processo higienização ainda era muito
incipiente. Dessa forma, no sentido de curar as diversas doenças causadas pelo ambiente
insalubre citadino, a maioria da população, sobretudo, aquela mais humilde, se
13
FERRETTI, Mundicarmo. (org.). Pajelança do Maranhão no século XIX: o processo de Amélia
Rosa. São Luís: CMF/FAPEMA, 2004. P. 19. 14
Ibid. P. 20. 15
Raimundo Nina Rodrigues e a garantia da ordem social. Disponível em:
http://www.usp.br/revistauspmarizacorrea. Acesso: 20/08/2015; 20h35 min.
24
beneficiavam das terapias tradicionais disponíveis, já que a medicina oficial estava
restrita a uma pequena parcela da população de São Luís.
O diálogo com as literaturas supracitadas serviu para estabelecer uma reflexão
sobre as relações de poder existentes no Brasil entre o curandeirismo, que se configurou
como uma herança colonial, e a medicina herdada dos portugueses. Essa tônica será
muito evidenciada nos discursos jornalísticos da primeira metade do século XX em São
Luís do Maranhão no sentido de homogeneizar a sociedade aos moldes civilizatórios.
1.2. A CURA OFICIAL E TRADICIONAL: UMA BREVE
CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA.
Como seriam as nossas vidas sem a medicina? Afinal de contas, de onde ela
vem? Quem foi o seu criador? Como ocorreu a sua difusão pelo mundo? Essas
perguntas rondam o nosso imaginário, no sentido de se entender como surgiram as mais
variadas formas de cura humana.
A medicina referenda a arte de curar, é promovida por agentes que se lançam
na função de sanar os males do mundo humano. Nesse ínterim, medicinas tradicionais
que ultrapassavam a forma corporal, atingindo a instância espiritual, eram praticadas a
mais de 10.000 anos (dez mil anos a.C). Esses rituais eram chamados de trepanações “e
provocavam pequenos buracos nos crânios dos indivíduos para a saída dos espíritos que
possivelmente seriam a causa de suas doenças.” 16
.
As informações mais condizentes sobre a medicina provêm da antiguidade
egípcia, com as mumificações dos corpos. “Este povo fez grandes avanços na medicina
graças ao seu sofisticado processo de mumificação de corpos. Os mumificadores, ao
abrirem os corpos dos faraós para retirar as entranhas, conseguiam muitas informações
sobre a anatomia humana.” 17
, como é o caso de Imhotep.
Imhotep foi um egípcio considerado o primeiro arquiteto, engenheiro e médico
da história. Além de um famoso construtor de pirâmides, era reconhecido como um
exímio médico e, como o fundador da medicina. Ele é autor de um tratado médico
16
A História da Medicina. Disponível em: http://www.brasilescola.com. Acesso: 15/08/2015; ás 00h36
min. 17
História da Medicina. Disponível em: http://www.suapesquisa.com. Acesso: 15/08/2015; ás 00h48
min.
25
muito importante reconhecido hoje em dia como Papiro de Edwin Smith (1700 a.C),
contendo observações da anatomia humana, doenças e curas.
Por ter se tornado o médico mais importante da história egípcia, fato este
ocasionado pela salvação do príncipe egípcio Djoser e sua mãe, “anos mais tarde, ele foi
recompensado por suas ações pelo faraó Djoser que o designou como seu vizir,
sacerdote, arquiteto chefe e astrólogo” 18
.
Devido aos seus inúmeros talentos o povo pressupôs que apenas alguém com
tamanhas qualidades e estreitas ligações com as divindades poderia ter grandioso
reconhecimento. Após sua morte, Imhotep foi deificado, uma escassa ocorrência por ter
sido um mortal não-faraó que se tornou um deus.
Esse fato fere os preceitos ocidentais que apontam a Grécia como sociedade
“mãe” da medicina. No entanto, não pretendemos confrontar tais correntes teóricas,
pretendemos, apenas, utilizar essas duas teorias para evidenciar o quão antiga é essa
terapia.
Sabia-se que os gregos haviam tomado a dianteira nos estudos dos sintomas
das doenças. Por volta de 2.500 (dois mil e quinhentos anos a.C) Hipócrates e Galeno
iniciaram os estudos das doenças e do corpo humano. Após esses dois, poucos avanços
tiveram os estudos medicinais.
Na idade média os médicos utilizavam as sangrias, pois, o uso de sanguessugas
era muito comum. Mas, essas práticas eram grandiosamente limitadas devido às
influências da Igreja Católica que condenavam as pesquisas científicas. O Renascimento
Científico, ainda na idade média, rompeu com as limitações do clero e proporcionou
consideráveis avanços científicos. “Movidos por uma grande vontade de descobrir o
funcionamento do corpo humano, médicos buscaram explicar as doenças através de
estudos científicos e testes de laboratório.” 19
.
Os estudos do corpo humano ganharam novas feições no século XIX com a
invenção do microscópio acromático. Com essa descoberta o cientista Louis Pasteur
18
Estatueta de Imhotep. Disponível em: http://medicineisart.blogspot.com.br/2010/10/estatueta-de-
imhotep.html. Acesso: 08/01/2016; 16h00min. 19
Ibid. História da Medicina. Disponível em: http://www.suapesquisa.com. Acesso: 04/10/2015;
17h18min.
26
revolucionou a medicina com a descoberta de que eram as bactérias as causadoras da
maioria das doenças.
No Brasil, desde os primeiros anos de colonização se têm notícias do uso da
medicina indígena e, décadas depois, da medicina africana. Ao longo de todo período
colonial a junção entre essas duas terapias travou árdua batalha com a medicina advinda
de Portugal, acentuando-se gradativamente com o passar dos séculos para então, na
segunda metade do século XIX encontrar o seu ápice com a oficialização da medicina.
Durante os três primeiros séculos de história do Brasil, isto é, durante o período
colonial, a medicina de cunho tradicional exercia-se soberanamente sobre aqueles
conhecimentos medicinais trazidos de Portugal.
Com efeito, muitas vezes garrafadas
e benzeduras eram preferidas e gozavam de maior prestigio social
do que as sangrias e ventosas aplicadas pelos barbeiros. "E melhor
tratar-se a gente com um tapuia do sertão que observa com mais
desembaraçado instinto, do que com um médico de Lisboa", observa
o bispo do Para, Dom Frei Caetano Brandão20
.
Esse panorama na preferência pela medicina tradicional pode ser explicado
pela existência de um irrisório número de profissionais com formação na ciência
hipocrática. Essa característica provocava de forma acentuada a preferência pela
pluralidade medicinal.
A inexistência de escolas de formação científica no Brasil atendia de antemão
aos interesses da coroa portuguesa. Sendo assim, quem desejava trilhar o caminho da
medicina, tinha que atravessar o oceano atlântico até as escolas mais renomadas de
Portugal, especificamente, as de Coimbra. “Até o século
XIX, o número de médicos diplomados é, portanto, mínimo, não
chegando, segundo os dados obtidos por R. Machado, em nenhum
momento, durante os séculos XVII e XVIII, a dez profissionais” 21
.
Soma-se ainda a questão do extrato social que gozavam os profissionais
médicos que eram oriundos das camadas populares metropolitanas e desfrutavam de
pequenos rendimentos. Esses profissionais em sua maioria eram escassos cirurgiões
barbeiros e aprendizes de boticário que vieram nas expedições dos donatários das
capitanias. Os profissionais portugueses gozavam de pouco prestígio social, não eram
20
MONTERO, Paula. Da doença a desordem: a magia na umbanda. Op. Cit. P. 25. 21
Ibid. P. 25.
27
considerados “homens bons”. Durante os dois primeiros séculos foram classificados
entre os homens-de-ofício, socialmente inferiores aos nobres e burgueses.
Esses profissionais eram em sua maioria humildes
imigrantes, judeus e, cristãos novos que, ao instalar-se o Santo
Oficio em Portugal, em 1547, deixaram o país para escapar aos
pesados tributos e as acusações de heresias anunciadas
continuamente pelos tribunais da Inquisição. Esses homens não
pertenciam portanto a estrutura de poder da colônia.22
A medicina sofreu poucos avanços durante os séculos XVII e XVIII, logo, ela
chegava ao Brasil, bastante desatualizada. Os livros eram insuficientes e desatualizados
e os poucos que havia, os escassos profissionais não os detinham devido aos altos
preços.
A falta de escolas era um fator que proporcionava a indistinção entre
curandeiros e médicos-oficiais. Mas, esse cenário mudará no início do século XIX,
especificamente, a partir de 1808, com a vinda da Família Real Portuguesa para o
Brasil. Esse momento é marcado pela invasão de Portugal pelas tropas de Junot,
obrigando D. João VI a embarcar com a maior parte da sua coroa para o Brasil. Dessa
forma, o estabelecimento do império brasileiro fundará instituições centralizadoras que
reproduzirá “de forma perfeita o antigo domínio colonial” 23
.
Formava-se concomitantemente com o domínio imperial uma classe ilustrada
que ora dependia da administração imperial, e ora deflagrava certa autonomia no que
tange a legitimação de um discurso dominante, sendo este, alinhado aos interesses
metropolitanos.
O pós-independência propiciará aos médicos-oficiais maior notoriedade, uma
vez que o centro das decisões políticas passará do campo para a cidade e a fundação das
primeiras escolas de medicina do império legitimará parcialmente a profissão de
médico.
Vinculado de maneira mais ou menos diretas às elites econômico-financeiras
do país, esse primeiro grupo de intelectuais brasileiros, até meados do século
XIX, conformava um perfil bastante homogêneo em termos de formação e
carreira.
A partir desse momento, porém, certas diferenças regionais e mesmo
profissionais começam a ser percebidas. Primeiramente, com o
22
Ibid. P. 26-27. 23
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no
Brasil. Op. Cit. P. 23.
28
fortalecimento da produção cafeeira durante a década de 50 e a concomitante
mudança do eixo econômico do país - da Região Nordeste para a Sudeste -,
ocorre uma paralela diversificação entre as várias instituições científicas. Ou
seja, os estabelecimentos situados nas cercanias dos novos centros
econômicos do país foram progressivamente mais bem aquinhoados do que
os demais24
.
Na segunda metade do século XIX veremos uma nova transformação no
cenário político brasileiro. A chegada tardia das principais correntes teóricas europeias
permeará o pífio ideário científico da década de 1870. Essas teorias absorvidas
tardiamente adentrarão as faculdades de medicina e direito e, consequentemente, esses
dois ofícios se autolegitimarão como os encarregados de conduzir a política brasileira.
Esse novo ideário foi decorrente das transformações sociais consequentes da decadência
do sistema escravocrata e sucessivamente, do seu fim, associado ao advento
republicano.
O evolucionismo social, o positivismo, o naturalismo e o social darwinismo
conformarão uma ideologia onde era necessário que se rompesse com as antigas
concepções coloniais e metropolitanas. “Guardadas as especificidades de cada
disciplina, o que se pode afirmar é que em todos os lados reformulavam-se concepções
científicas arraigadas e faziam-se das pesquisas e experimentações procedimentos de
contestação às antigas concepções” 25
.
O século XX não proporcionou significativas mudanças para a medicina.
Mesmo com os avanços do final do século XIX, o que se via ainda era o misto de
práticas oriundas da antiga medicina europeia mescladas às práticas da medicina de
ordem afro-indígena, e a busca por legitimação fomentou uma relação de forças durante
todo o processo histórico brasileiro entre essas respectivas terapias medicinais e
adentrará o século XX com novas feições, mas, sem significativas transformações para a
medicina científica.
Seguindo essa lógica, A obra Medicina rústica26
de Alceu Maynard Araújo é
baseada numa pesquisa datada da década de 1950, na cidade de Piaçabuçu, no Estado de
Alagoas, às margens do rio São Francisco. A tese central deste livro consiste na
tentativa de amalgamar duas formas bastante peculiar de tratamentos médicos: a
medicina tradicional e a medicina científica.
24
Ibid. P. 24-25. 25
Ibid. P. 30. 26
ARAÚJO, Alceu Maynard. Medicina rústica. 2. ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1977.
29
Os pressupostos de Alceu Maynard estão ancorados na estrutura social de
Piaçabuçu. Isto é, Piaçabuçu é uma cidade assim como várias cidades brasileiras de
meados do século XX, cujos habitantes careciam de melhor assistência política,
econômica e social. Onde o panorama da vida social “moderna” não possibilitou o seu
alvorecer. Medicina rústica trata profundamente da hostilidade da medicina científica
em relação às práticas tradicionais de cura, sendo assim, médicos e enfermeiros vindos
da cidade grande em muitas ocasiões chegavam até a ridicularizar as concepções e
práticas de cura da população residente nas distantes plagas da nação.
Já mencionamos que na relação entre dominadores e dominados há uma
inserção do primeiro grupo nos interstícios do segundo, ou, vice-versa. Essa mescla de
concepções possibilitava que as mesmas pessoas que pretendiam suprimir as práticas
tradicionais de cura sejam afetadas por esse sistema de crenças, o que nos possibilita a
compreensão de que os dois ideais de cura não formam um todo homogêneo. Essa
evidência aponta para o fato de que havia categorias de doenças que perpassavam as
fronteiras do compreensível e interagiam com concepções de cura “sobrenaturais”, logo,
não podiam ser compreendidas por esses médicos.
Em meados do século XX a medicina científica ainda era pouco difundida no
Brasil. A maioria das cidades, sobretudo, aquelas distantes dos grandes centros urbanos,
eram as mais atingidas pela falta de assistência médico-social. A medicina oficial ia
paulatinamente adentrando essas pequenas cidades, consequentemente, o principal
conflito após a chegada de médicos e enfermeiros em Piaçabuçu é decorrente da forma
pouco amistosa com que esses profissionais tratavam as variadas formas de cura. Por
isso, assegura Maynard, esta literatura se torna uma contribuição da antropologia social
à medicina.
Ele desenvolve um rico discurso apelativo para que a ciência antes de
evidenciar as suas metodologias na aplicação da sua terapia leve em consideração as
práticas rústicas de terapia da população de Piaçabuçu. As pessoas dessa cidade ainda
não teriam desligado as práticas mágicas das religiosas, assim como ainda não
conseguiram aceitar as práticas “modernas” de cura. Para aquelas pessoas, a medicina
tradicional associada às práticas mágico-religiosas, passada de geração para geração
ainda se configuravam como a forma mais eficaz de tratamento.
30
A intenção desta obra é oferecer um panorama, onde os médicos, assim como o
governo, possa melhor assistir a população de Piaçabuçu sem comprometer em grande
escala as suas práticas culturais. Ou seja, o autor sugere que haja um entrosamento entre
as práticas científicas e tradicionais da medicina e que se percebam as peculiaridades
das formas de cura dessa população.
A Medicina Social seria uma ideologia, uma visão no que tange o tratamento
médico, onde a medicina acadêmica levasse em conta as práticas da medicina
tradicional. Dessa forma, a população, ao invés de repudiar as práticas da medicina
científica, poderia ver que tais práticas seriam uma continuidade, um apoio às suas
práticas tradicionais.
Diante dessas questões, a obra Médicos e curandeiros: conflito social e saúde27
de Maria Andrea Loyola versa sobre o pluralismo medicinal presente na cidade de Nova
Iguaçu no inicio da década de 1980, especificamente, no bairro de Santa Rita, localizado
na periferia da cidade, no Estado do Rio de Janeiro.
Havendo enormes fatores sociais que impediam uma assistência de saúde
eficaz à população de Nova Iguaçu, sobretudo, aquelas pessoas que se encontravam nas
regiões periféricas da cidade, especialistas da medicina de diversas ramificações
disputavam a sua preferência. Esses embates, além de terem sido, em parte, resultados
da ineficiência assistencial do Estado diante de sua população, proporcionaram conflitos
sociais entre os próprios especialistas e, entre esses especialistas e a população.
De um lado, os médicos acadêmicos tentavam a todo custo legitimar a sua
prática medicinal frente ao avanço das práticas populares, do outro, especialistas
tradicionais ou populares exerciam uma importante função diante do ineficiente quadro
médico presente no sistema de saúde de Nova Iguaçu, sendo muitas vezes, as práticas da
medicina tradicional, a única forma de terapia disponível para a população.
Andrea Loyola acentua ainda que o fator econômico funcionava de modo a
afastar ou aproximar os procedimentos oficiais de cura das respectivas populações. Ou
seja, o poder aquisitivo ocasiona a bipartição populacional entre os que possuem poder
aquisitivo e os que não possuem. Os mais ricos tendem a se aproximar do universo
27
LOYOLA, Maria Andréa. Médicos e curandeiros: conflito social e saúde. Rio de Janeiro: DIFEL –
Difusão editorial s.a, 1982.
31
oficial da medicina e os menos abastados, do mundo tradicional da cura, ainda que
ambos sejam afetados pelos dois antagônicos sistemas de crenças. Os médicos, também,
são atingidos pelo mesmo fenômeno.
Assim, no topo da hierarquia médica, o subespaço da medicina oficial
concentrado no centro de Nova Iguaçu, o grau de inserção dos médicos nas
instituições profissionais sustentadas direta ou indiretamente pelo Estado
(hospitais, clínicas, etc.) está ligado ao volume do capital econômico, social e
escolar que possuem: quanto maior for o volume desses capitais, mais
importantes serão suas funções institucionais, mais sua prática será
institucionalizada, burocratizada e afastada da religião e menos sua clientela
será popular28
.
Como é possível observar, frente ao processo de legitimação das duas terapias
medicinais ambas acabam travando um duelo pelas suas legitimações desde o período
colonial, passando por poucas, mas, importantes transformações no decorrer da história.
A nossa intensão neste tópico foi fazer uma trajetória das duas terapias
medicinais. Pois, além de se confrontarem pelo campo de atuação, ambas defendem
rigorosamente os seus fundamentos. Mas, o que possibilitou que o curandeirismo
fincasse raízes tão profundas a ponto de subverter valores científicos que exercem o
poder de mando nesta sociedade? Essa interrogação será o ponto de partida para
entendermos esse universo de relações tão conflituosas.
1.3. HOSPITAIS POPULARES: DISCURSO MÉDICO-OFICIAL E O
PARADÓXO DO CONTEXTO CITADINO LUDOVICENSE.
São Luís, assim como a maioria das capitais brasileiras nas primeiras décadas
do século XX, tocava o ritmo de sua política baseada nas sociedades capitalistas
europeias. A ciência, mesmo incipiente, ordenava o caminhar, o adestramento, e o
controle sobre os homens se firmava em diversos segmentos.
A medicina social e, consecutivamente, a científica foi um mecanismo que
obteve o controle da sociedade. “O controle da sociedade sobre o indivíduo não se opera
simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo a corpo. Foi no
biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista”
29.
28
Ibid. P. 19. 29
Foucault, Michel. Microfísica do poder. Op. Cit. P. 80.
32
Desde o final do século XVI e início do século XVII as nações europeias se
preocupavam com o estado de saúde de sua população numa esfera política, econômica
e científica. Essa época foi caracterizada pelo domínio do mercantilismo, pois, se sabia
que junto com as embarcações havia homens, possivelmente carregando consigo,
enfermidades, e as mercadorias a serem comercializadas estavam propícias a
contaminações. Soma-se ainda a fome e as diversas epidemias que assolavam a Europa
e debilitavam a sua população. Nesse sentido, era necessário desenvolver uma medicina
de cunho social que atendesse diretamente os interesses nacionais como a Medicina de
Estado desenvolvida na Alemanha.
Com a organização de um saber médico estatal, a normalização da profissão
médica, a subordinação dos médicos a uma administração central e,
finalmente, a integração de vários médicos em uma organização médica
estatal, têm-se uma série de fenômenos inteiramente novos que caracterizam
o que pode ser chamada a medicina de Estado30
.
Na França se constituirá uma medicina social baseada no medo. O crescimento
das cidades promoverá uma multiplicação maciça das oficinas, o alargamento dos
cemitérios que cada vez mais se aproximam das residências, as construções cada vez
mais elevadas das casas correndo o risco de desmoronamento, o despejo gradativo e
acentuado dos esgotos, dentre outros, fez com que as autoridades desenvolvessem um
sistema médico-administrativo desses problemas. Esse amontoado de gente e animais
propiciou uma deflagração de epidemias, o que era algo bem comum na Europa do
século XVIII, e fomentará aquilo que Michel Foucault vai chamar de medo urbano ou
medo das cidades, pois, foi esse medo que possibilitou o surgimento da Medicina
Urbana francesa.
A Medicina Social tinha a incumbência primordial de atender o pobre, pois era
ele que se ocupava com os serviços gerais como os de carteiro, a mão-de-obra das
oficinas, a eliminação de dejetos e de utensílios móveis velhos, dentre outros. “Na
medida em que faziam parte da paisagem urbana, como os esgotos e a canalização, os
pobres não podiam ser postos em questão, não podiam ser vistos como um perigo. No
nível em que se colocavam, eles eram bastante úteis” 31
.
Com a criação de um sistema postal de entregas e de carregadores no século
XIX surgiu uma sucessão de revoltas populares. Foucault assegura que as diversas
30
Ibid. P. 84. 31
Ibid. P. 94.
33
dispensas de trabalhadores retirou do pobre a possibilidade de subsistência no complexo
e imóvel contexto social europeu.
Mas, os conflitos não pararam por aí, pois, foi na Lei dos Pobres que a
Inglaterra fundou a sua Medicina Social na medida em que era necessário que se fizesse
um controle médico do pobre. Essa característica irá favorecer a criação de bairros de
pobres e bairros de ricos, logo, anteriormente a esse evento, não havia uma preocupação
acentuada em delimitar as referidas áreas. Segundo Foucault, a Medicina dos Pobres
possibilita a análise de um leque de opções por suscitar resistência, não somente na
Inglaterra, mas, em diversos países do mundo.
Essa fórmula da medicina social inglesa foi a que teve futuro, diferentemente
da medicina urbana e sobretudo da medicina de Estado. O sistema inglês de
Simon e seus sucessores possibilitou, por um lado, ligar três coisa: assistência
médica ao pobre, controle de saúde da força de trabalho e esquadrinhamento
geral da saúde pública, permitindo às classes mais ricas se protegerem dos
perigos gerais. E, por outro lado, a medicina social inglesa, esta é sua
originalidade, permitiu a realização de três sistemas médicos superpostos e
coexistentes; uma medicina assistencial destinada aos mais pobres, uma
medicina administrativa encarregada de problemas gerais como a vacinação,
as epidemias, etc., e uma medicina privada que beneficiava quem tinha meios
para pagá-la. Enquanto o sistema alemão da medicina de Estado era pouco
flexível e a medicina urbana francesa era um projeto geral de controle sem
instrumento preciso de poder, o sistema inglês possibilitava a organização de
uma medicina com faces e formas de poder diferentes segundo se tratasse da
medicina assistencial, administrativa e privada, setores bem delimitados que
permitiram, durante o final do século XIX e primeira metade do século XX, a
existência de um esquadrinhamento médico bastante completo.32
A medicina científica, fruto da medicina social, promoveu a marginalização, a
exclusão das classes populares na Inglaterra. O completo e complexo sistema
organizacional de pobres e ricos, ao mesmo tempo em que desenvolvia métodos de
conter as epidemias, também servia para seccionar os pobres das áreas de atuação dos
ricos. Essa medida permitiu a eclosão de resistências, logo, os lugares destinados à
população menos abastada sofriam com sérios problemas sociais como violência, falta
de pavimentação e higienização urbana, prostituição, alcoolismo, assistência médica e
hospitalar, dentre outros problemas.
Ao nos determos nesses fatos é possível apreender que esse modelo foi adotado
pelo Estado brasileiro e, consequentemente, pelo Maranhão a partir da década de 1870,
como foi supracitado, que a partir dessa data uma gama de teorias positivo-
deterministas anacrônicas e alimentadas pelo processo abolicionista adentraram no
32
Ibid. P. 97-98.
34
Brasil. Essa nova era recrudesceu após o advento republicano. Logo, autoridades,
intelectuais e a população mais rica atribuíam à periferia toda espécie de discriminação
e preconceito como às conferidas às periferias inglesas. No entanto, é preciso que
compreendamos o contexto de São Luís. A capital maranhense segue uma lógica bem
diferente das cidades inglesas. O fator étnico-cultural afrodescendente é um mecanismo
decisivo para a compreensão da dinâmica progressista ludovicense.
Os jornais que circulavam na cidade se constituíam como o principal veículo
de acusação, pois, deflagravam uma incessante campanha discriminatória contra a
pajelança. O importante a ser notado nesses periódicos é a falta de análise crítica sobre
uma cidade paradoxalmente seguidora de um ideal erroneamente aplicado numa terra já
bastante mestiçada.
Em um artigo33
datado de 03/07/1915, o articulista denuncia a frequente
atuação de um curandeiro, alcunhado de José pé de bola, no perímetro central de São
Luís. A larga procura se daria por conta da fama do pajé em exercer a medicina mágico-
religiosa e de precedentes afro-indígenas. A denúncia se encerra fazendo um apelo às
autoridades policiais para que sejam tomadas as providências cabíveis, logo, o
curandeiro estaria exercendo uma prática ilegal.
Já comentamos que São Luís se espelhava no modo de vida das sociedades
ocidentais capitalistas. O modo de se vestir e de se portar diante dos outros eram
algumas características bastante acentuadas. No entanto, havia algo a ser questionado.
São Luís oferecia um misto de comportamentos típicos de uma região onde era
extremamente difícil aplicar uma lógica social fundamentada nos padrões europeus.
O caráter étnico-religioso da população foi um dos principais “agravantes” para
que a capital maranhense não pudesse desenvolver-se aos moldes europeus. A prova
disso está nos periódicos que circulavam pela cidade no primeiro quartel do século XX.
No artigo34
de jornal datado de 07/07/1915 o informante denuncia mais uma
prática de pajelança em São Luís. Na denúncia, aspectos como a cor da pele, a
33
A PACOTILHA. Pajelança. São Luís, 03/07/1915. Fonte localizada no Arquivo Público do Estado do
Maranhão, no centro histórico de São Luís. 34
A PACOTILHA. Pajelança. São Luís, 07/07/1915. Fonte localizada no Arquivo Público do Estado do
Maranhão, no centro histórico de São Luís.
35
ingenuidade das pessoas e exercício da feitiçaria são ressaltados no sentido de se
depreciar a prática de cura.
Outro aspecto evidenciado é a utilização de um órgão público tradicional como
a Escola dos Educandos Artífices do Estado, na qual mora Roza Guarda-mor, como
referência subsidiária para que a pajelança seja vista como algo pernicioso à sociedade,
haja vista que as sessões são bastante concorridas, explica o informante.
O contexto higiênico e sanitário de São Luís da primeira metade do século XX
era bem parecido com o da Europa dos séculos XVII e XVIII descrito por Michel
Foucault. As ruas eram infestadas de ratos, o esgoto corria a céu aberto e não havia
nenhuma espécie de tratamento sanitário, o que, em muitos casos, originava uma
sucessão de epidemias, como a peste bubônica.
Juntamente com a varíola, outra doença assolou o Maranhão, principalmente
a cidade de São Luís: a peste bubônica. Segundo o médico sanitarista carioca,
Dr. Vitor Godinho, formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro
em 1887, a epidemia ocorreu no período de 17 de outubro de 1903 a 30 de
maio de 190435
.
Essa situação perdurou por grande parte do século XX e, é nesse contexto de
epidemia que os hospitais populares ou terreiros de cura se mostravam eficientes
quando o assunto era o tratamento de populares e abastados. Eles eram recorrentemente
procurados por toda espécie de gente, do mais simples popular, ao mais abastado
ludovicense. Eram os responsáveis por perpetuar os costumes afro-indígenas, herdados
pela gente simples e marginalizada.
Em um artigo datado de 05/07/1915, o articulista evidencia brevemente o
exercício ilegal da medicina no centro da cidade. A utilização de artefatos “estranhos”,
como penas de aves, enxofre e chifres de animais são evidentemente condenados pelo
informante, e o pedido de ação da polícia no combate à pajelança, para ele, se faz
necessário.
Parece que os pajés estão em plena atividade.
Noticiamos, no sábado, a existência de um ao caminho da Boiada.
Disseram-nos agora que na caza nº 23, da rua de S. Pantaleão, ha também
qualquer panacéa idêntica.
35
BAIMA, Carlúcio de Brito. “Toda cura para todo mal”: Discurso médico e práticas curativas no
tratamento de doenças e na conservação higiênica de São Luís (1880-1905). São Luís: Editora da
UEMA, 2012. P. 46. Monografia de graduação.
36
Durante o dia os vizinhos são incomodados. Queimam-se chifres, breu,
enxofre, penas de aves, etc.
E’ um horror!
Pedimos a atenção da policia36
.
Nesse sentido, é possível observar que as autoridades ludovicense pouco se
importavam com as questões assistenciais da população. Quase não havia hospitais, e os
poucos existentes, seguiam a lógica dos hospitais da Europa setecentista, ou seja,
serviam mais como morredouros. Os abastados podiam, quando não estavam nos
terreiros de cura tradicional, pagar por um médico e, geralmente, faziam todo o seu
tratamento em casa.
Temos uma noção um tanto equívoca, numa concepção generalizada, de que o
hospital, durante parte do século XIX e no início do século XX, era um lugar para tratar
e curar as doenças, fazendo com que o paciente retornasse à sociedade com a saúde
restabelecida. Pois, as tecnologias promoveram algumas melhorias ao atendimento
hospitalar, mas ainda perdurava um imaginário provindo da idade média onde os
hospitais não se configuravam como lugares de cura, pelo contrário, eram lugares
funestos, aonde as pessoas iam para morrer.
Antes do século XVII, na Europa, o hospital era concebido como um lugar
onde o pobre ia buscar a salvação espiritual. O pobre precisava de assistência, pois,
como pobre, era portador de doenças, e como tal, era perigoso. Além de servirem como
morredouros, também, serviam para excluir os que deviam se afastar das cercanias
sociais. “O personagem ideal do hospital, até o século XVIII, não é o doente que é
preciso curar, mas o pobre que está morrendo [...]. Dizia-se correntemente, nesta época,
que o hospital era um morredouro, um lugar onde morrer” 37
. O pessoal incumbido de
prestar assistência, não era especializado na arte de curar, eram geralmente leigos que
prestavam serviços com intento não de promover a cura, mas a salvação espiritual.
No limiar setecentista europeu procurou-se primeiramente eliminar o
imaginário negativo dos hospitais, para depois atuar positivamente sobre o doente. Não
se preocuparam de imediato em atender à demanda de enfermos, mas, exterminar as
expressões fúnebres, como a de morredouros, de lugar de pobre e de doença. Foi
36
A PACOTILHA. Pajelança. São Luís, 05/07/1915. Fonte localizada no Arquivo Público do Estado do
Maranhão, localizado no centro histórico de São Luís. 37
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Op. Cit. P. 101.
37
necessário que se criasse uma série de mecanismos disciplinares e hierárquicos para
aperfeiçoar o espaço hospitalar. O médico apareceu como o encarregado dessa
organização, de acordo com Foucault, o poder disciplinar conferido ao médico se deve
às transformações científicas da época e da disciplinarização do espaço hospitalar,
ocasionando o aparecimento de uma medicina hospitalar.
É, portanto, o ajuste desses dois processos, deslocamento da intervenção
médica e disciplinarização do espaço hospitalar, que está na origem do
hospital médico. Esses dois fenômenos, distintos em sua origem, vão poder
se ajustar com o aparecimento de uma disciplina hospitalar que terá por
função assegurar o esquadrinhamento, a vigilância, a disciplinarização do
mundo confuso do doente e da doença, como também transformar as
condições do meio em que os doentes são colocados. Se individualizará e
distribuirá os doentes em um espaço onde possam ser vigiados e onde seja
registrado o que acontece. 38
Enfim, a Medicina Social não é necessariamente uma medicina do corpo, do
biológico, mas uma medicina das coisas, da água, do ar, e teve um papel fundamental
no engessamento da medicina científica. Afinal, “a inserção da medicina no
funcionamento geral do discurso e do saber científico se fez através da socialização da
medicina, devido ao estabelecimento de uma medicina coletiva, social, urbana” 39
.
A supressão, teoricamente, do curandeirismo se consolida dentro do universo
de concepções da medicina científica. Logo, a instauração de uma prática de cura de
ramificação positivista, oficializada pelo Estado tendeu a marginalizar as demais
terapias existentes, agregadas, ou não, ao contexto médico-hospitalar.
Na discussão sobre os mecanismos que possibilitam o exercício de poder, é
destacado o saber. Pois, saber e poder se implicam mutuamente, resguarda Foucault. Ele
é uma peça de um sistema que sem a sua existência não existiria o poder, nesse sentido,
o poder constitui novos campos de saberes. Aqui encontramos um conflito referente à
pluralidade medicinal, sendo assim, as duas medicinas, a de ordem oficial e a de ordem
tradicional pressupõem dois mecanismos para se entender os referidos universos de
saberes.
A otimização do ambiente hospitalar não atingiu o Brasil, assim como, o
Maranhão. O que se via era a quase inexistência de hospitais, e os poucos que haviam
destinavam aos populares a faceta de morredouro. Durante todo o século XX é possível
38
Ibid. P. 107-108. 39
Ibid. P. 92.
38
encontrar relatos da população em jornais, literaturas e em fontes orais afirmando a sua
preferência pelo tratamento nos hospitais populares ou terreiros de cura. A linguagem
adotada pelos pais-de-santo se aproximava da realidade do pobre, pois, ambos
compartilham do mesmo universo de representações.
39
2. CURANDEIRISMO E RELIGIÃO: REPRESENTAÇÃO RELIGIOSA,
COERSÃO CULTURAL E RESISTÊNCIA SOCIAL.
2.1. A RELIGIÃO POR TRÁS DAS REPRESENTAÇÕES DO UNIVERSO
MÁGICO-RELIGIOSO DO CURANDEIRISMO.
Na tentativa de fornecer algumas explicações plausíveis sobre religião, Émile
Durkheim discorre sobre a origem do fenômeno religioso. Os estudos sobre religião
pressupõe uma fase madura da teoria durkeiminiana. Em sua pesquisa, o estudo do
fenômeno religioso torna-se central, pois foi no seio desta abordagem que elegeu o
totemismo australiano como objeto de pesquisa e, neste, encontrou a forma mais
elementar, o substrato mais puro desse fenômeno, por ele, ser menos influenciado pela
ação humana. Uma das ferramentas que utilizou foi a disponibilidade de documentos
sobre a sociedade formada em clãs, como as sociedades aborígenes australianas. Para o
autor, quanto mais antiga for a religião, mais próxima da sua originalidade ela estará,
pois, ela dispensaria elementos de religiões antepassada e poderia revelar um caráter
essencial da vida humana.
Émile Durkheim, em As formas elementares da vida religiosa: o sistema
totêmico na Austrália se propõe a buscar a origem do fenômeno religioso, tendo como
base a análise do totemismo australiano e, encontra na sociedade, no pensamento
coletivo, a sua origem. Ele afirma que não é na efervescência das multidões que se
localiza a origem da religião, é simplesmente, o contrário, as comemorações, os rituais e
práticas coletivas só podem existir com o amparo da religião elementar. Conclui, dessa
forma, que não é no âmago da sociedade que se encontra a origem do fenômeno
religioso, mas, na anterioridade religiosa que se funda a sociedade.
A referida obra, em alguns momentos, apresenta algumas inconsistências, pois,
Durkheim, por mais que afirme que as representações religiosas é o fator que semeia o
sentimento social, se lança na função de afirmar tal teoria contraditoriamente.
Portanto, é nesses meios sociais efervescentes e dessa própria efervescência
que parece ter nascido a ideia religiosa. E o que leva a confirmar que essa é
bem a sua origem é que, na Austrália, a atividade propriamente religiosa está
quase toda concentrada nos momentos em que ocorrem as assembleias40
.
40
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. 3.
ed. São Paulo: PAULUS, 2008. P. 274.
40
À medida que surgem as sociedades são originadas representações, ideias que
lhes são inerentes, o que significa dizer que a ideologia é uma ferramenta indispensável
à constituição social, daí a escolha das sociedades elementares. Acredita que através do
totemismo seria possível obter um entendimento mais próximo do “real”, no que
concerne à originalidade social, no que tange a captação do substrato mais puro do
fenômeno religioso. As sociedades elementares ofereceriam um modelo de
uniformidade social. “Ora, a organização á base de clãs é a mais simples que
conhecemos. Ela existe, com efeito, com todos os seus elementos essenciais, desde que
a sociedade compreende dois clãs primários” 41
.
A obra dispõe de uma abordagem evolucionista, no entanto, Émile Durkheim
dispensa o sentido de progresso moral por acreditar que cada sociedade é composta por
códigos originais, o que desfaz a ideia de primitividade e evolução, concedendo, dessa
forma, ao caráter evolutivo, uma faceta justificável, o tomando apenas como base para
se entender o surgimento da religião. Ou seja, ele usa o evolucionismo apenas para
buscar na história das sociedades totêmicas o embrião da origem do fenômeno religioso.
Durkheim se debruça sobre a ciência e afirma que ela jamais poderia substituir
a religião. Há uma essência permanente na religião que o autor francês denomina de
mana. Esse fenômeno seria a ferramenta constituinte da moral coletiva, ou seja, algo
que a ciência não possui. “Se um povo não tem fé na ciência todas as demonstrações
científicas não terão influência sobre esses espíritos. Também hoje em dia, se a ciência
vem a resistir a uma corrente muito forte da opinião pública, correrá o risco de com isso
perder o seu crédito” 42
.
Os homens sentiram a necessidade de se dotarem de um fator decisivo que
pudesse fazer interligação com os outros. Pois, foi no caráter coletivo, nas práticas, nos
ritos e costumes que este homem encontrou aquilo que poderia o identifica-lo. Para
alcançar essa coletividade precisaram se dispor de um fator primordial, algo que não
fosse uma coerção moral, não fosse uma mera disciplina, teria que ser um fenômeno que
penetrasse em seus corpos e mentes sem os reprimir moralmente.
Segundo Émile Durkheim, foi assim que surgiu a religião. Um fenômeno que
adentrou coletivamente e sem opressão moral o universo humano, além de ter originado
41
Ibid. P. 215. 42
Ibid. P. 263.
41
a sociedade como estrutura que a conhecemos. “Mas ela é, antes de tudo, um sistema de
noções através das quais os indivíduos compreendem a sociedade de que são membros,
e as relações, obscuras mais íntimas, que mantêm com ela” 43
.
Com base no pensamento durkeiminiano, a obra maranhense Missa, culto e
tambor: os espaços da religião no Brasil discorre acerca dos estudos do catolicismo, do
protestantismo e das religiões afro-brasileiras. “Embora utilizando termos referentes ao
ritual de cada religião oficial esta obra discorre não somente sobre os rituais ou as
liturgias de cada segmento, mas sobre os sentidos destas vivências religiosas no
cotidiano dos sujeitos sociais, sob diferentes olhares” 44
.
Em outras palavras, este livro se refere aos ambientes ocupados por essas
religiões que, segundo Lyndon de Araújo Santos45
, num dado momento se apresentam
tão próximos e, ao mesmo tempo, tão distantes uns dos outros, além de serem bastante
sincretizados. “As religiões no Brasil ocupam territórios que ultrapassam as fronteiras
do próprio limite do que seja o religioso, invadindo o político e o cultural, permeando as
relações sociais e definindo atitudes e visões de mundo” 46
.
A dissertação de mestrado Navegando em duas águas: tambor de mina e
pajelança em São Luís do maranhão na virada do século XIX para o XX47
tem como
objeto de estudo o discurso modernista republicano de virada do século XIX para o
século XX que considerava o tambor de mina e a pajelança como infortúnios, por
estarem diretamente ligados a um passado ancestral negro e indígena.
Thiago Lima dos Santos trava um debate entre o discurso modernista do Estado
brasileiro pré-republicano e pós-republicano, e o discurso popular social no que tange às
práticas de negro no sentido de apregoar como estes discursos modernistas se
constituíram como um paradoxo à realidade social brasileira. A sua abordagem social e
religioso-cultural tem como objetivo central evidenciar como as práticas e os costumes
de negros, especificamente a pajelança e o tambor de mina, se consolidaram
43
Ibid. P. 281. 44
CARREIRO, Gamaliel da Silva; FERRETTI, Sergio Figueiredo. Et. al. (Orgs.). Missa, culto e
tambor: os espaços da religião no Brasil. São Luís; EDUFMA/FAPEMA, 2012. P. 5. 45
Doutor em História, Professor do Departamento de História da UFMA, Coordenador do Grupo de
Pesquisa História e Religião. Este professor e, pesquisador também é responsável pela escrita da
apresentação da obra em questão. 46
Ibid. P. 5. 47
SANTOS, Thiago Lima dos. Navegando em duas águas: tambor de mina e pajelança em São Luís
do maranhão na virada do século XIX para o XX. São Luís: Ufma, 2014. Dissertação de Mestrado.
42
paralelamente às normas do Estado, mesmo com as perseguições dos órgãos
reguladores.
A pajelança teria de forma direta e desprestigiada um lugar de destaque no
Maranhão por se configurar como única forma de terapia medicinal à população mais
carente e devido à sua procura. Essa prática perpassaria pelo universo religioso na
aplicação de uma medicina de cunho tradicional. Ou seja, a dimensão do curandeirismo
ou pajelança em São Luís pressupõe uma terapia de ordem natural e sobrenatural na sua
função terapêutica. Não se trata, apenas, de uma prática manipuladora de ervas
medicinais curativas, mas, de uma prática terapêutica natural associada a rituais mágico-
religiosos.
Pajelança. Informaram-nos que por traz do hospital militar moram dois indivíduos de
cor preta, de nomes Porfírio e Angelo, que vivem a engodar os ingenuos,
praticando feitiçarias.
Os seus dias de consultas são os sábados, à noite, e os domingos, de manhã e
à noite.
Durante as funções, têm a palavra a fumarada e o maracá.
Porfírio que é o mais velho e, por isso mesmo, pai do terreiro, vira santo do
fundo: o são verequete, e Angelo, carrega são João.
Hontem, à noite, efetuou-se uma meza de pajelança à rua 18 de Novembro,
na caza que fica quase em frente ao sitio onde foi a escola dos educandos
artífices do Estado, e na qual mora Roza Guarda-mór.
Essa sessão foi bastante concorrida48
.
A questão religiosa e étnica são duas características bastante evidentes neste
artigo. Além da discriminação e do preconceito latentes, os curandeiros em questão são
associados a exímios enganadores da população. Apesar da brevidade do artigo, ainda é
possível observar certo cuidado com as palavras ao descrever a complexidade da
“perniciosa” prática curativa, onde a religião sincrética afrodescendente é cognominada
de feitiçaria, uma espécie de prática diabólica.
Dessa forma, o objetivo geral de Thiago Lima dos santos é demonstrar que as
práticas de negros no Brasil e no Maranhão se consolidaram a despeito das perseguições
do Estado, graças à sua resistência às mudanças decorrentes do processo modernizador
que previa a urbanização, a higienização e a extinção de costumes considerados
ultrapassados. Ainda assim, esta resistência não se daria de forma consciente, como se
os praticantes dos rituais afrodescendentes tivessem plena noção de sua rebeldia. Ela
estaria inscrita no universo dos costumes sociais, religiosos e culturais de um povo que
48
A PACOTILHA. Pajelança. São Luís, 07/07/1915. Op. Cit.
43
consegue enxergar diversas modalidades de vida, alheias e, concomitantemente,
inscritas no paradigma oficial.
O embate entre essa prática de cura e a medicina científica fornecem algumas
informações sobre o amplo e complexo universo de concepções mágico-religiosas
adotadas pelos praticantes da cura popular. As tensões entre as referidas terapias
medicinais se constituem, apenas, como a ponta de um iceberg. Restringir as
perseguições, as discriminações, os preconceitos, as prisões de curandeiros e pacientes
apenas à resistência da população carente de assistência social a despeito de um Estado
opressor, seria decapitar a gama de possibilidades de entendimento desse fenômeno.
2.2. MARCAS DO PASSADO: COERSÃO AOS “ATOS ABOMINÁVEIS” NOS
PERIÓDICOS LUDOVICENSES.
As práticas de cura associadas à magia são muito recorrentes no Maranhão
desde os seus primórdios. Por muito tempo essa terapia vem disputando espaço e
legitimidade com a medicina oficial diante do vasto e burocrático mercado de clientes.
Em São Luís não é diferente, pois, os periódicos da primeira metade do século XX
vislumbravam a frequência em que ocorriam acusações e batidas policiais aos terreiros
de pajelança e a domicílios da população menos opulenta, na tentativa de surpreender e
apreender possíveis responsáveis pelos “atos abomináveis” 49
, pelos resquícios de uma
sociedade escravocrata, colonial e miscigenada.
Os jornalistas instigavam a intolerância às religiões afrodescendentes no
período que vai do final do século XIX à primeira metade do século XX. Esses
intelectuais participavam dos atos de preconceito e intolerância. “[...] muitas vezes
cobrando das autoridades maior rigor no cumprimento da lei e das determinações de
órgãos públicos, criados para atuar nas áreas de saúde pública e encarregados da
fiscalização dos terreiros” 50
.
49
Os atos abomináveis a que nos referimos são todas e quaisquer práticas, costumes e tradições dos
escravos africanos e dos ameríndios. O curandeirismo, por exemplo, se configura como um misto de
práticas consideradas resquícios da colonização, dessa forma, também, está inserido nos “atos
abomináveis”. 50
FERRETTI, Mundicarmo Ferretti. (org.). Pajelança do Maranhão no século XIX: o processo de
Amélia Rosa. Op. Cit. P. 22.
44
O real motivo de tal perseguição, certamente, se inscreve na tentativa de apagar
as marcas do passado, isto é, de extinguir os traços culturais afro-indígenas ligados à
magia herdados pela população maranhense.
A magia brasileira, desde a Colônia, dispõe de mecanismos reguladores das
acusações a bruxos e feiticeiros nos terreiros e locais de culto; e
diferentemente de muitas sociedades onde é forte a crença na feitiçaria, aqui
não se pune os feiticeiros com a morte. Foi a partir da República, no entanto,
com o decreto de 11 de outubro de 1890, que o Estado criou mecanismos
reguladores do combate aos feiticeiros, instituindo o Código Penal. No
Código introduziu-se três artigos referentes à prática ilegal da medicina, à
prática da magia e à proibição do curandeirismo.51
Esses costumes são rotulados de praga social pela imprensa ludovicense.
“Essas premissas culturais comuns constroem duas vertentes da noção de feitiçaria: uma
sociologizada, que vê o mal como produto da desorganização social e outra que acredita
nos poderes ocultos e sobrenaturais de produzir o mal” 52
. Nesse sentido, veremos nos
artigos a seguir, como os curandeiros eram representados, como as cognominações
alcoolismo, charlatanismo, prostituição, crendices, superstições, dentre outras, foram
largamente associada à cura alternativa.
No final da tarde do dia 10 de agosto de 1941, o chefe de polícia alcunhado de
Lemos, acompanhado de uma guarnição policial, seguiu um rastro de cura pelo lugarejo
denominado Sacavém. O articulista afirma que a batida policial foi coroada com êxito,
pois, o pai-de-santo João Pereira da Silva foi apreendido, trajado com vestimentas
próprias da pajelança.
A sessão era assistida por diversas pessoas que estavam ali em busca de
tratamento físico e espiritual, o que na visão jornalística era considerada uma afronta
aos ditames legais. Mas, a maioria dos relatos fica por conta da atividade do pai-de-
santo, visto como um representante do mal social, sendo o respectivo curandeiro, após
ser preso, encaminhado para o posto policial do Anil.
Consigo, foram encontrados alguns objetos essenciais para o ritual religioso,
dentre eles: “1 garrafa de cachaça, 2 maços de velas e 1 maracá” 53
. O extensivo uso de
álcool foi presenciado pelos policiais, afirma o articulista, algo a ser notado, também,
em outras sessões de cura relatadas pelos jornais da época.
51
MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Op. Cit. P. 22. 52
Ibid. P. 255. 53
O GLOBO. Macumba! Em pleno dia, no Anil. São Luís, 12/08/1941. P. 3. Fonte localizada na
Biblioteca Pública Benedito Leite, no centro da cidade de São Luís.
45
Torna-se imprescindível fazermos algumas observações a respeito desse artigo,
como a constante presença de populares nas sessões de cura. Essa característica pode ser
observada no contexto citadino e periférico da capital maranhense em meados do século
XX, onde diferentes corpos sociais eram tocados pelo mesmo sistema de crenças
difundido pelo curandeirismo, pois, nesse contexto, as identidades se tornam uma só.
O terreiro de cura, dessa forma, se constitui a partir da ideia de igualdade
perpetrada pelo universo da pajelança, onde os variados sujeitos são tocados por esses
signos e acabam compartilhando do mesmo universo de representações sócio-culturais.
Por isso, veremos mais à frente que diferentes e, muitas vezes, antagônicos estratos
sociais convergirão e se apropriarão dos mesmos valores culturais.
Em uma tarde de sábado de 30/04/1940, o chefe de polícia Flávio Bezerra
recebeu uma denúncia de que havia com frequência, sessões de pajelança bastante
concorridas, inclusive, por membros da elite ludovicense, nas matas do Olho D’água,
interior da ilha. O Chefe de Polícia organizou uma guarnição comandada pelo
comissário de polícia Benedito Valeriano Ribeiro e partiu às 11 horas da noite para o
referido lugar.
Por volta da meia noite, a sessão se formava, pois, o pajé Demétrio Santos
organizava o andamento dos trabalhos. Ao chegar, acompanhado de seus assistentes
José Santos, Raimundo Buna e Simão Rodrigues, vestiu-se com uma blusa de gorgorão
verde, pôs um cordão vermelho e branco sobre os ombros e empunhou um maracá. Em
movimentos típicos dos transes indígenas e africanos, o pai-de-santo recebe a entidade
Ogum. Após a incorporação, o pajé se lança na missão de curar o doente Ludgero. Em
seguida, a sessão foi interrompida, “quando estava ‘benzendo’ o ‘cliente’ batendo-lhe
com o maracá na cabeça, a polícia veio estragar tudo” 54
.
A chegada dos policiais provocou uma grande correria, ocasionando a prisão
de Demétrio Santos, de seus ajudantes e do doente Ludgero.
Apesar da sessão ser realizada nos matagais do interior da ilha, havia muitos
adeptos, em torno de cem pessoas, inclusive, “gente boa, algumas de responsabilidade”
55. Após a apreensão, os detidos foram interrogados. O pajé, ao ser questionado em tom
54
O GLOBO. Tire o pajé da roda: Preso o macumbeiro n° 1 da cidade. São Luís, 30/04/1940. P. 1-6.
Fonte localizada na Biblioteca Pública Benedito Leite, no centro da cidade de São Luís. 55
Ibid. P. 1-6.
46
irônico por Flávio Bezerra sobre a sua profissão, se declarou curador, ocasionando o seu
recolhimento ao cárcere imediatamente.
Ao ser interrogado, o paciente Ludgero surpreendeu o chefe de polícia ao
afirmar que não acreditava no poder da medicina legal, asseverando que a mesma não
valia nada. A reação do doente condiz com o cenário médico brasileiro desde os
primórdios da colonização até a metade do século XX. No entanto, a
contemporaneidade, quase nada proporcionou ao desenvolvimento tecnológico e
estatístico da medicina científica.
A necessidade de flexibilidade e adaptação das práticas e costumes também
pode ser pensada pela falta de uma assistência médica segura e capaz de
solucionar os incontáveis problemas da colônia. Já no período imperial,
houve uma perseguição a todo tipo de prática considerada ilegal, ou seja, que
não fosse autorizada pelas faculdades de medicina. A medicina não era um
campo homogêneo no final do século XIX. Era um campo de disputa que
dava espaço a uma ampla aceitação do curandeirismo (Sampaio, 2001). A
dificuldade encontrada pelos representantes da medicina em legitimar sua
influência perante o governo era justamente pela grande incidência das
práticas de curandeirismo, enraizadas e presentes nos diversos grupos sociais.
Em conseqüência dessa forte presença é que as pessoas ainda recorriam a
esses curandeiros. Pode parecer estranho, mas era comum indivíduos da alta
sociedade procurarem os cuidados de homens e mulheres que detinham a
habilidade de curar, independente da ritualização dessa prática ou não56
.
Lilia Schwarcz contribui para as afirmações de Carlúcio Baima, pois, garante
que durante todo o século XIX, a medicina científica era muito incipiente, se tratava
mais de uma retórica médico-científica do que de uma ciência experimental. “O que
aqui se consome são modelos evolucionistas e social-darwinistas originalmente
popularizados enquanto justificativas teóricas de práticas imperialistas de dominação”
57. Assim, se procurou divulgar os manuais e livros de ciência advindos da Europa, ao
invés de produzir e difundir obras originais. “A ciência penetra primeiro como ‘moda’ e
só muito tempo depois como prática e produção” 58
.
Essa literatura fundamentada essencialmente nas teorias de Darwin e Spencer e
irradiada em território nacional alimentará o embate entre a medicina legal e o
curandeirismo, justamente por causa da prática científica ainda pressupor uma igualdade
técnica, o que consequentemente, alarga o campo de atuação da terapia tradicional.
Dessa forma, o que se presenciou com a entrada do século XX foi a estruturação de uma
56
BAIMA, Carlúcio de Brito. “Toda cura para todo mal”: Discurso médico e práticas curativas no
tratamento de doenças e na conservação higiênica de São Luís (1880-1905). Op. Cit. P. 27. 57
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no
Brasil. Op. Cit. P. 30. 58
Ibid. P. 30.
47
prática medicinal científica muito rasteira, ou melhor, muito propagandista,
possibilitando a larga incidência das práticas de cura difusa pelos pais-de-santo.
Nem sempre a presença de policiais nos terreiros de cura de São Luís denotou
perseguição. Alguns artigos apontam para a presença e aceitação da polícia na arte
terapêutica popular. Isso apontaria para uma espécie de transgressão da conduta legal,
não somente dos oficiais, mas, da própria sociedade, pois, um agente defensor da boa
índole, da conduta moral prescrita corrompera um conjunto de códigos morais, como
resguarda o seguinte artigo.
Um articulista evidencia uma grandiosa e complexa manifestação de cura
dirigida pela mãe-de-santo Altina de Sousa, onde os policiais puderam apreender
diversos instrumentos musicais, livros suspeitos, bebidas alcóolicas e outros apetrechos
como maços de velas, faixas com inscrições apologéticas, maracás, dentre outros, num
lugar conhecido como Cutim Grande.
Não escapou ninguém das vinte pessoas que lá se encontravam inclusive o
soldado nº 341, da Força Policial, do destacamento do Anil, que
entusiasmado, assistia aos “prodígios” da macumbeira.
Interrogado, declarou o referido policial, ao chefe da Segurança, que ali se
encontrava com o consentimento do comissário José Gomes Filho
encarregado do Pôsto Policial do Anil, o qual tinha plêno conhecimento e, de
certo modo, prestigiava o “culto” 59
.
Esta fonte requer um pouco de atenção, sobretudo, por causa da participação de
um sujeito “fora de suspeitas” de praticar “atos abomináveis”. Segundo o redator, havia
menores, além disso, a presença de uma autoridade policial credenciada pelo comissário
de polícia José Gomes Filho, do destacamento policial do Anil escandalizou as
autoridades que ali chegaram.
No lugar, encontravam-se pacientes e assistentes, inclusive, menores de idade
entre 11 e 17 anos e um membro da polícia local. Flávio Bezerra, o chefe de polícia, não
poupou ninguém. Todos foram presos, inclusive, os menores e o policial presente na
sessão. Esse chefe de polícia ficou muito famoso nos discursos jornalísticos do jornal O
Globo e nos relatos orais durante o Estado Novo, pois, sua fama se dava por causa da
sua atuação rigorosa no combate à pajelança e ao tambor de mina, como resguarda o
59
O GLOBO. A polícia dá uma batida na macumba do Cutim Grande. São Luís, 30/07/1941. P. 6.
Fonte localizada na Biblioteca Pública Benedito Leite, no centro da cidade de São Luís.
48
artigo científico Tensões, interações e conflitos numa terra de voduns, encantados e
orixás.
Neste trabalho, António Evaldo Almeida Barros analisa documentos de época e
fontes orais com a finalidade de identificar como o vasto campo do curandeirismo no
Maranhão era representado e como os seus adeptos se posicionavam diante da sociedade
maranhense de meados do século XX, sobretudo, durante a atuação do Estado Novo.
Analisa-se a construção de ideias negativas acerca das práticas e
representações dos agentes envolvidos com os tambores e curas; legislações,
policiais e políticos, e suas diferentes relações com a Mina e a Pajelança; a
instituição do Tambor de Mina como uma “tradição maranhense” e símbolo
de cultura e religiosidade “afro-brasileira”, e o concomitante lugar social e
simbólico da Pajelança60
.
A forte presença do curandeirismo não atraia apenas os populares, pois,
diferentes sujeitos como os da alta sociedade também procuravam com frequência pelo
trabalho dos curandeiros. Isso significa que gente de destaque social, como o policial
presente na sessão de cura, “participam das mesmas premissas culturais. São blocos de
um mesmo edifício” 61
, ainda que diferentes formas de ver o mundo estejam
entranhadas nos renegados subterfúgios da cura alternativa.
A aproximação dos abastados propiciou privilégios ao mundo da cura em
determinados momentos, ainda que essas vantagens nem sempre conseguissem livrar os
curandeiros da prisão. Essas ocasiões indicavam a existência de tensões e conflitos, mas
perdurava o jogo de interesse dos envolvidos, sejam eles, de ordem material ou
espiritual, de vida ou de morte, onde diferentes identidades procuravam a mesma
solução para as suas vidas.
Pode-se afirmar que uma verdadeira multidão de pessôas de destaque em
nosso meio, compareceu à Chefatura, desde domingo, a pedir, a rogar que o
pagé Demetrio Santos seja solto.
Todas affirmam estar em divida para com o macumbeiro, que já as curou
desta ou daquella doença...
Os pedidos chovem:
60
BARROS, António Evaldo. Tensões, interações e conflitos numa terra de voduns, encantados e
orixás. ANPUH-BA. 2008. P. 2. Trabalho apresentado no IV Encontro Estadual de História – ANPUH-
BA. História: Sujeitos, Saberes e práticas. Disponível em: http://www.uesb.br. Acesso: 03/09/2015;
20h00 min. 61
MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Op. Cit. P. 235.
49
- Solte o pagé, doutor Flávio. Mas o Chefe da Segurança Publica foi
inflexivel. Não attendeu às supplicas adescabidas dos supersticiosos
“clientes” de Demetrio62
.
No dia 08 de Junho de 1947, por volta da 18 horas, esteve um repórter do
jornal O Globo numa sessão de curandeirismo na casa do afamado pajé Zé Malaquias,
localizada nas medições do Sítio do Físico, no interior da Ilha. Ao chegar, diz o
repórter, viu de imediato uma criança tocando tambor, umas mulheres novas e anciãs
dançando e, especificamente, o que lhe chamou bastante atenção foram os trejeitos
sexuais de gosto duvidosos de Zé Malaquias, a presença de menores, o ambiente
bárbaro típico da cultura africana e indígena e a licença da polícia para o funcionamento
de um tambor de mina.
Além da hostilidade com que descreve o ambiente, o repórter, disfarçado de
cliente, detalha de forma discriminatória e preconceituosa a aparência física de Zé
Malaquias.
Procuramos um garoto, que estava junto à porta de entrada, e dissemos-lhe
que desejávamos falar com “Zé Malaquias”. O “curandeiro” veiu até nós.
Olhamo-lo de perto, detidamente. Um bigodinho petelante, mal feito. Rosto
magro, baixo, franzino, feio. Fisionomia de um doente sexual. Levou o
repórter a uma sala secreta, onde também ficam os aposentos do “pagé”. O
repórter sentou sobre um caixão de querosene. O quarto era estreito. A um
canto uma mulher deitada em uma rede suja. Em outro canto, onde estavam
“Zé Malaquias” e o repórter, havia uma imagem de santo63
.
Em todos os artigos mencionados foram destacadas questões relacionadas à
sexualidade, sejam dos pacientes e, ou, dos curandeiros. Neste relato, houve uma
preocupação maior em ressaltar os “desvios” sexuais de Zé Malaquias. Essa
característica, normalmente é associada à loucura, à degeneração humana, á barbárie, ou
seja, a preocupação do periódico era lançar à caça e repressão, atos tão torpes.
A noção de sexualidade perpassa pela ideia de prostituição e desvios sexuais,
sobretudo, de Zé Malaquias, logo, os menores que se encontravam na sessão, tendo a
moral e o caráter ainda em formação, estariam propícios a cederem às artimanhas do
curandeiro. No entanto, discutiremos melhor e mais adiante essa problemática, assim
como, a associação do curandeirismo ao tambor de mina.
62
O GLOBO. São Luís, 30/04/1940. Op. Cit. P. 1-6. 63
O GLOBO. A macumba está sendo praticada abertamente no interior da ilha. São Luís, 9/06/1947.
P. 4. Fonte localizada na Biblioteca Pública Bendito, localizada no centro de São Luís.
50
As artimanhas dos pais-de-santo não recairiam somente sobre os menores, pois,
tanto os populares, quanto os abastados estariam envolvidos na rede de enganação
perpetrada pelo pajé, ou seja, “a associação de crimes e criminosos com macumba,
magia etc. também é comum” 64
.
Pouco sabemos, nós os civilizados que nos libertamos das perigosas
superstições dos nossos ancestrais – do índio e do preto –, sabemos que a
macumba é um mal social, de profundas raízes. Tanto crer nos poderes
sobrenaturais de um “pagé” um caboclo ignorante do interior da ilha, como
muitos cidadãos de gravata, bem colocado na vida, aqui na cidade. Assim, a
porta da tenda de exploração que muitos “curandeiros” da nossa ilha já foram
vistos automáveis de luxo. Gente de dinheiro, pessoas, mesmo de certo
destaque na sociedade, ao que sabemos, frequentam os centros de
“pajelança”, sempre que precisam recorrer aos “curandeiros”. E assim, a
macumba encontra campo aberto ao seu desenvolvimento, protegida por
homens influentes, profundamente supersticiosos65
.
Em um artigo datado de 22 de novembro de 1947, o articulista inicia a sua
matéria denunciando o recrudescimento do curandeirismo. Essa prática estaria em alta
devido à superstição da população em geral, ou seja, tanto os opulentos, quanto os
populares estariam envolvidos na rede de enganação dos pajés.
Este caso envolve uma denúncia de pajelança no João Paulo, na casa do
indivíduo Pio Fernandes, cognominado de Drº. em feitiçaria. Então, por volta das 23
horas, o chefe de polícia Homero Braúna, em voltas pelo referido local chegou à casa do
curandeiro, não o surpreendendo em atividade. Após uma breve conversa, Homero
Braúna apreendeu um livro onde estavam inscritos vários nomes de pessoas de renome
da capital, gente que supostamente seriam acometidos pelos poderes maléficos do
curandeiro.
Ao ser interrogado, o senhor Pio Fernandes se declarou curandeiro, mas,
ressalvou imediatamente que não praticava feitiço, pois, a sua profissão existia em
virtude do bem.
O “pagé” Pio Fernandes é cego e aleijado. Declarou ao sr. Homero Braúna,
ao ser interrogado sobre as suas atividades na macumba: ‘É a minha
profissão. Vivo disso, mas não faço o mal. Só faço o bem. Trabalho para
fazer casamento e reatar amizades, unir maridos e esposas que se
separaram’66
.
64
MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Op. Cit. P. 242. 65
O GLOBO. São Luís, 9/06/1947. Op. Cit. P. 4. 66
O GLOBO. O Chefe de Policia descobre um foco de macumba no João Paulo. São Luís,
22/11/1947. P. 4. Fonte localizada na Biblioteca Pública Bendito, localizada no centro de São Luís.
51
O suposto feiticeiro não foi detido pelo chefe de polícia. O articulista encerra
esse artigo protestando para que se faça lei, já que o curandeirismo é visto como mal
social por está diretamente ligado, à primeira vista, às classes mais humildes, pois, “a
expressão classes pobres, portanto, apresenta-se como sinônimo de classes perigosas”
67, o que deveria ser extinta de uma vez por todas das entranhas sociais.
Com muita frequência, os periódicos de São Luís trazem à tona a associação do
curandeirismo à feitiçaria. Paula Montero trata do assunto fazendo algumas distinções
entre o feiticeiro urbano e aquele do mundo rural. A autora se utiliza das descrições do
renomado médico maranhense, Nina Rodrigues, que classifica a magia urbana como a
“prática do feitiço e do contrafeitiço” 68
. Dessa forma, o pai-de-santo se torna um misto
de feiticeiro e sacerdote, ou seja, aquele que pratica a magia maléfica e exerce a função
de guia espiritual, consecutivamente.
Além de ser dotado de poderes maléficos, este curador também seria capaz de
reverter feitiços provocados por outros feiticeiros. Os seus sortilégios são beneficiados
pela fitoterapia, uma vez que para fazer ou desfazer o mal, são preparadas bebidas à
base de plantas. “No caso da cura de doenças, toda prática desses pais-de-santo se volta
para a prática do contra feitiço” 69
.
No sertão, os negros tiveram intervenção do cristianismo e foram obrigados a
assimilar forçadamente a lógica religiosa predominante do campo, “o catolicismo
popular” 70
. O africano, desde cedo abandonou parcialmente os seus costumes e
introduziu em seus rituais de magia as práticas advindas do universo indígena e
europeu. O resultado dessa conversão foi devido à origem de um curandeirismo
respeitado e a liderança do curandeiro como sacerdote espiritual possibilitou “sua
aceitação enquanto mestre catimbozeiro” 71
.
Já Yvonne Maggie trata do mesmo assunto ressaltando a perseguição aos
terreiros de cura em busca de supostos feitores de malefícios e charlatães. Ao analisar os
processos-crime, ela registra que além de haver participação dos personagens da trama
(curandeiros, populares, magistrados, policiais, dentre outros) no curandeirismo,
67
BAIMA, Carlúcio de Brito. “Toda cura para todo mal”: Discurso médico e práticas curativas no
tratamento de doenças e na conservação higiênica de São Luís (1880-1905). Op. Cit. P. 17. 68
MONTERO, Paula. Da doença a desordem: a magia na umbanda. Op. Cit. P. 41. 69
Ibid. P. 41. 70
Ibid. P. 42. 71
Ibid. P. 42.
52
observa também que a rede de repressão à feitiçaria se inscreve na própria feitiçaria, ou
seja, a própria repressão seria a principal originadora da feitiçaria.
Todos esses ângulos por onde se pode ler os processos apontaram para as
hipóteses gerais de inicio colocadas. Em primeiro lugar, os personagens da
trama parecem participar da mesmas premissas culturais. Em segundo lugar,
relativizando a hipótese repressiva, tudo leva a crer que a repressão não
barrou o desenvolvimento das crenças, ao contrário, parece ser fruto da
mesma rede histórica que funda o campo denominado de campo da
feitiçaria72
.
Dentro do complexo sistema cultural do curandeirismo estão circunscritos
tanto personagens da elite, quanto sujeitos das classes populares. Pois, como já
ressaltamos, a loucura é um mal social a ser evitada pelos órgãos reguladores, e a
feitiçaria, nesse caso, denota loucura e adentra o universo dos referidos personagens
causando distúrbios que ultrapassam as barreiras do racional. Dessa forma, o feitiço é
representado em duas linhas de raciocínio, uma material, e outra, sobrenatural.
Uma afirma que os malefícios mágicos atacam a vítima e produzem
consequências objetivas, perda do emprego, do amante, doença, morte e
loucura. Outra socializa a magia. Ou seja, a macumba, o candomblé, o
espiritismo alto ou baixo, produtos da anomia, acabam produzindo um mal
social: a loucura. 73
A versão material da magia maligna aponta para a ocorrência de problemas de
ordem física, a sobrenatural, inscrita no abstrato sortilégio da vida dos praticantes das
artes sobrenaturais, também teria como consequência, um mal material, ou seja, a
loucura. Portanto, a feitiçaria se estrutura de forma ambígua, material e sobrenatural, e
tem como consequência final, problemas relacionados à desorganização social e ao
desequilíbrio cósmico. Dessa forma, essa premissa nos encaminha para o entendimento
de que, ao praticarem o curandeirismo, o espiritismo, dentre outros, a clientela está
corrompendo com as normas preestabelecidas pela legalidade, é como se curandeiros e
pacientes estivessem praticando uma espécie de poluição e, ou, desintegração dos
códigos civilizatórios.
Os artigos 156, 157 e 158 do Código Penal de 11 de outubro de 1890 foram
criados durante a república brasileira com o intuito de regular a prática das profissões, e
o curandeirismo estando inserido no âmbito da ilegalidade foi drasticamente perseguido
por representar a alienação aos pressupostos da cientificidade, dessa forma, foi
cognominado de feitiçaria por utilizar a magia.
72
MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Op. Cit. p. 173. 73
Ibid. P. 176.
53
O Estado tomou para si, a partir dos últimos anos do século XIX, a tarefa de
reprimir toda e qualquer prática ligada à cura tradicional, sendo esta, na maioria das
vezes, rotulada de feitiçaria e charlatanismo, já que, segundo Maggie, para o Estado,
havia espertos enganadores da credulidade humana no seio da cura alternativa.
O Estado imiscuiu-se, dessa forma, nos assuntos da magia e interveio no
combate aos feiticeiros regulando acusações, criando juízos especiais e
pessoal especializado. À medida que os anos se passam, instituições iam
sendo criadas na polícia para regular o combate, identificar e punir os
produtores de malefícios. Essa função do Estado permanece até hoje, mas de
1890 a 1940, com a introdução de uma mudança importante no Código Penal,
o aparato jurídico se institucionalizou e passou a ser usado com mais
intensidade como instrumento de combate aos feiticeiros74
.
Mas, precisamos deixar claro que o que se queria nesse momento com a
perseguição e repressão à magia era dominar tais práticas, contendo-as, pois, “[...] a
elite brasileira, nela emaranhada, procurava administrá-la satisfatoriamente” 75
.
Notemos que um nome em comum foi muito ressaltado nos artigos
supracitados, interior da ilha. Este local, durante muito tempo se circunscreveu às
localidades alheias ao centro urbano de São Luís. Destaca-se o fato de que este centro se
compôs durante boa parte do século XX às mediações do atual bairro da Praia Grande,
ou seja, toda área que se encontrava fora desta localidade, era denominada de Interior da
Ilha.
Pois, o João Paulo, assim como o Cutim Grande, o Anil, o Sacavém, o Olho
D’água, dentre outros, em meados do século XX eram exemplos de regiões interioranas
da ilha do Maranhão, uma região periférica destinada à agricultura, à “escória” social,
ou, a tudo aquilo que precisava ser afastado do convívio citadino por representar a
estagnação social.
São também bastante lembradas em São Luís, pelas pessoas mais velhas, as
transferências de terreiros e de curadores para a periferia das cidades, devido
á repressão policial e à hostilidade de moradores que se instalaram mais
recentemente em suas imediações e consideravam a sua existência, ali, um
atestado de atraso cultural. 76
O Estado possui os seus mecanismos de poder, no entanto, há forças que estão
acima das suas possibilidades. Pois, como já asseveramos, são os poderes moleculares
trabalhados por Michel Foucault. Estes, ao mesmo tempo em que podem estar de acordo
74
Ibid. P. 23. 75
Ibid. P. 33. 76
FERRETTI, Mundicarmo. (org.). Pajelança do Maranhão no século XIX: o processo de Amélia
Rosa. Op. Cit. P. 22.
54
com os ditames estatais, também, podem se desviar das suas ideias. Enfim, é essa
afirmativa que norteia o desenvolvimento deste trabalho. Eleger uma expressão que
objetiva o exercício de poder alheio ao Estado como um grande oponente à sua
ideologia.
O curandeirismo e a sua nomenclatura cultural representa a possibilidade de
existência de um universo antagônico ao proposto pelo Estado, onde os excluídos
possam se sentir partícipes da sociedade, ainda que essa possibilidade não ultrapasse as
cercanias da retaliação inconsciente.
Evidentemente não nos enganamos quanto a possibilidade transformadora
das práticas populares. Sabemos que, sem condições reais que lhe permitam
uma atuação política efetiva que tornem essas crenças um todo coerente
capaz de "cimentar uma nova hegemonia", essa concepção de mundo se
encerra nas fronteiras do "vivido", no sentido de que não consegue extrapolar
os limites da compreensão individualizada das contradições77
.
De forma mais objetiva podemos apregoar as manifestações sócio-culturais
ligadas ao curandeirismo como uma expressão que pressupõe um poder molecular.
Logo, o curandeirismo, durante a primeira metade do século XX se estabeleceu como
tudo aquilo que o Estado queria exterminar. Essas manifestações, ao longo do período
estudado se consolidaram como práticas não agonizantes ou resistentes, e sim, viventes,
uma vez que, mesmo com tamanha perseguição, seja pela imprensa ou por autoridades
policiais, recrudesceram.
Ao denominarmos o curandeirismo como vivência, significa dizer que ele não
existe na forma de resistente. A resistência designa agonia, indica um estado de
sobrevida, no entanto, o curandeirismo aqui representado significa vivência, ou seja, é
uma prática que não se desfez nesse paulatino processo de modernização78
. Pelo
contrário, se reformulou de forma acentuada a entrar na pós-modernidade como grande
concorrente da medicina científica.
Dessa forma, os relatos, as denúncias, as súplicas dos periódicos de forma geral
evidenciavam a grande procura dos populares e abastados pelas formas tradicionais da
medicina. São Luís não oferecia uma estrutura médico-hospitalar adequada à crescente
avalanche populacional que se encontrava marginalizada no centro urbano e
disseminada, também, nas periferias da cidade.
77
MONTERO, Paula. Da doença a desordem: a magia na umbanda. Op. Cit. P. 22. 78
Essa afirmativa é um grifo nosso. Ela é resultante das nossas conclusões parciais sobre o objeto de
estudo.
55
A procura pelos pais-de-santo não aponta apenas para a ineficiência do Estado
em possibilitar uma rede de cuidados médicos à sua população. Assim como a medicina
e os periódicos, o curandeirismo, também expressa uma forma de saber. “Poder e saber
se implicam mutuamente: não há relação de poder sem constituição de um campo de
saber, como também, reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder” 79
.
Nesse sentido, ao negligenciarmos os conhecimentos advindos do campo do
curandeirismo estaremos mutilando a história, o processo de formação dessa sociedade,
logo, São Luís, como foi supracitado, é um recanto de descendentes afro-indígenas ou
mestiços. Essa população herdou de seus antepassados conhecimentos milenares ligados
à cura, seja ela de ordem material ou oculta.
2.3. RELAÇÃO MINA-PAJELANÇA E RESISTÊNCIA AO SABER CIENTÍCO
MEDICINAL.
A historiadora maranhense Christiane Mota desenvolveu uma pesquisa sobre
pajelança na Baixada Maranhense, em seu livro Pajés, curadores e encantados:
pajelança na Baixada Maranhense ela analisa as representações de saúde e doença
dentro do sistema de crenças mágico-religioso da pajelança no município de Bequimão.
O tema se faz oportuno por causa da abundância de recursos naturais como a flora e a
fauna associada à pajelança e ao uso da medicina popular como tratamento e cura.
Esse trabalho “analisa experiências de doença, saúde e cura vivenciadas pelos
pajés e pelos clientes que recorrem aos tratamentos pela pajelança, como é denominada
esta prática religiosa em grande parte do território maranhense e em Estados vizinhos”
80. A pajelança, segundo Christiane Mota, se configura como a amálgama entre a
medicina tradicional, que no Maranhão está visceralmente associada ao catolicismo
popular e ao tambor de mina.
Essa pesquisa assegura o quanto “as sessões de cura na pajelança são
frequentadas pelos moradores da região” 81
devido ao seu caráter festivo e recreativo,
pois, além das sessões, a música e a dança são acompanhantes indispensáveis. No caso
da cura das doenças, sejam elas físicas ou espirituais, são utilizadas ervas medicinais
devido à sua abundancia. “Durante o tratamento os pajés são auxiliados por entidades
79
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Op. Cit. P. XXI. 80
MOTA, Christiane. Pajés, curadores e encantados: pajelança na Baixada Maranhense. 1. ed. São
Luís: Edufma, 2009. P. 12. 81
Ibid. P. 12.
56
espirituais denominadas de encantados que fazem parte do universo da encantaria
brasileira” 82
. Os encantados são diversos: podem ser indígenas, nobres europeus como
o rei Sebastião e caboclos brasileiros ou animais encantados como aves, peixes, cobras e
jacarés.
Na primeira parte do livro Pajelança no Maranhão, Christiane Mota começa a
sua explanação definindo de que forma é constituída a pajelança, e assegura que as
caraterísticas religiosas e étnico-culturais dão a esta prática os seus devidos contornos.
No entanto, é de extrema importância que se tome cuidado com a expressão pajelança,
pois, “[...] não há como delimitar um modelo” 83
. Ao ser escolhida como tema de
pesquisa, devemos tratá-la com flexibilidade, atribuindo-lhe especificidades referentes à
área de estudo, somente dessa forma, poderemos caracterizá-la diante dessa diversidade
de crenças.
A pajelança se apresenta com características universais ligadas ao transe, a
fitoterapia, a crença em encantados, aos festejos e obrigações do pajé, dentre outros.
Mas, dependendo de cada região ela “[...] apresenta singularidades condizentes com sua
formação histórica” 84
. Um exemplo clássico é a pajelança cabocla amazônica. Esta, não
é a representação do xamanismo, mas, a singularidade de uma pajelança da região
amazônica.
Na obra é feita uma alerta para a legalização da medicina no final do século
XIX. Após a oficialização toda e quaisquer práticas alheia a esta foram rebaixadas ao
patamar pejorativo de curandeirismo e charlatanismo, a partir de então, curandeiros
começaram a serem perseguidos pelos aparelhos estatais reguladores.
O artigo Observações sobre concepções e práticas populares de cura em São
Luís de Madian Pereira se propõe a analisar as práticas curativas Mágico-religiosas da
medicina popular na zona urbana de São Luís através dos relatos de uma curandeira.
Entre os aspectos discutidos pela autora encontramos o caráter marginal dado à
medicina alternativa pelo saber Médico-científico. Ou seja, “os procedimentos
82
Ibid. P. 13. 83
Ibid. P. 44. 84
Ibid. P. 44.
57
empregados pelos especialistas da medicina popular não são reconhecidos pela
medicina oficial, colocando-a numa posição marginalizada” 85
.
O saber científico atribui ao curandeirismo um caráter rústico, pelo fato, dele
pressupor falta de cientificidade encontrada na primeira e, “[...], que se ainda
sobrevivem é pelo fato da ignorância está muito arraigada entre membros das classes
populares” 86
. Essa ideologia das classes dominantes deixa claro que “as variadas
expressões da medicina popular – fitoterapia, excretoterapia, simpatias, benzeções e
rezas, entre outras, estariam fadadas ao desaparecimento, devido ao processo de
industrialização das cidades [...]” 87
.
Essa característica vem na contramão do discurso de Yvonne Maggie e Paula
Montero, logo, como já mencionamos, mesmo com a urbanização e industrialização das
grandes cidades, e as coerções das autoridades, o curandeirismo não perdeu as suas
características, ou melhor, com o processo de urbanização, ele recrudesceu
consideravelmente.
Christiane Mota evidencia essa característica e apregoa que há alguns
curandeiros e adeptos de São Luís que compartilham desse pensamento. Pois, algumas
pessoas desses terreiros acreditam na falência da “verdadeira” pajelança. Isso estaria
ocorrendo devido ao aumento do atendimento médico especializado e científico na
capital, logo, a função de curandeiro estaria perdendo notoriedade. Caso contrário,
estaria acontecendo no interior do Maranhão, pelo fato de a Medicina Legal não
satisfazer as necessidades daquela população, nesse sentido, o pajé se mantém “puro”
por ser ele o “único” e “verdadeiro” detentor da arte de curar.
Percebemos que mesmo com o crescimento das cidades e, consequentemente,
do processo de sofisticação tecnológica da medicina oficial, recrudescem os terreiros de
cura na zona urbana das cidades, pois, se não considerarmos os valores por trás do
sistema de crenças do curandeirismo, “somos obrigados a descobrir, por trás dessa
aparente irracionalidade, um sistema lógico de conhecimento” 88
.
85
PEREIRA, Madian de Jesus Frazão. “Observações sobre concepções e práticas populares de cura
em São Luís”. In: NUNES, Izaurina Maria de Azevedo. (org.). Olhar, memória e reflexões sobre a
gente o Maranhão. São Luís: Comissão Maranhense de Folclore, 2003. P. 245. 86
Ibid. P. 245. 87
Ibid. P. 245. 88
MONTERO, Paula. Da doença a desordem: a magia na umbanda. Op. Cit. P. 13.
58
Se a medicina resiste é porque possui uma eficácia concreta a demanda de
saúde e também porque a medicina alopática, que se pretende “toda
poderosa”, não consegue diluir os diversos modos de curar, demonstrando
assim que há diferentes concepções de mundo, diferentes formas de viver, de
sentir e de agir dos agentes da cultura popular, que resistem culturalmente ao
saber erudito89
.
O discurso de Dona Raimunda, a curandeira entrevistada por Madian Pereira,
faz um alerta para a procura do curandeirismo na atualidade, logo, essa retórica se
constrói pelo fato do seu trabalho já ter alcançado diversas classes sociais. Parece-nos
que o prestígio da curandeira abrange inclusive a aceitação de alguns médicos
científicos que respeitam e utilizam o seu trabalho. Por quanto, tanto médicos
especializados na ciência, quanto, populares e abastados se beneficiam da fitoterapia de
Dona Raimunda como as garrafadas, chás e lambedores. Essa aceitação consiste no fato
dos médicos em questão serem médiuns espíritas, e acabam por compartilhar do mesmo
sistema de crenças desta curandeira.
A explicação diluída das causas das enfermidades dadas pela curandeira
promove uma aproximação e, consequentemente, uma veneração pelas práticas
curativas em questão. Ela explica ao doente simplificadamente qual a doença que ele
sofre, conjuntamente com as suas causas, utilizando-se de uma linguagem acessível e
explícita ao seu conhecimento, consequentemente, a relação de causa e efeito das
moléstias dentro do universo mágico-religioso se torna uma ferramenta indispensável
para a legitimação do curandeirismo.
As práticas da medicina científica, de alguma forma, despertam alguma repulsa
dos médicos populares. No caso de Dona Raimunda, ela tem respeito pelos médicos
oficiais, no entanto, “o que ela não gosta é quando alguém considera um médico quase
como um ‘Deus’, como se a sua palavra fosse a última verdade” 90
. Os saberes do
médico e do curandeiro são distintos, mas não antagônicos, pois, segundo ela, um não
invalidaria o outro.
Essa ocorrência pode ser, também, notada no trabalho de Andreia Loyola. Essa
autora afirma que os populares do bairro de Santa Rita, periferia de Nova Iguaçu, no
Rio de Janeiro preferem o tratamento dos curandeiros por causa da aproximação desses
profissionais com o seu mundo, com o seu modo de representar a saúde e a doença. Já
89
PEREIRA, Madian de Jesus Frazão. “Observações sobre concepções e práticas populares de cura
em São Luís”. Op. Cit. P. 246. 90
Ibid. P. 248.
59
os médicos oficiais se utilizam da sua formação universitária para impor uma
supremacia “fundamentada na desigualdade da competência técnica e não na distância
social” 91
entre eles e a população.
Na maior parte das vezes, a desqualificação feita pelos médicos das
representações que o doente das classes populares têm cerca de seu corpo e
de suas doenças visa, na verdade, atingir os especialistas da medicina
popular: se a ignorância daqueles doentes serve de explicação ou de
justificativa para muitos erros ou fracassos médicos, é porque na verdade ela
significa mais do que uma simples falta de saber; ela é também superstição,
ou seja, recursos à práticas mágicas e primitivas, que ‘não curam nada,
atrapalham o trabalho dos médios’ e ‘retardam a sua procura até um ponto
em que eles mais nada podem fazer’. Assim sendo, grande parte da
responsabilidade pelos altos índices de mortalidade e/ou incidência de certas
doenças é transferida para os agentes da medicina popular 92
.
Mundicarmo Ferreti faz algumas considerações a respeito da pajelança de
negros em São Luís no século XIX e da cura em terreiros do município de Cururupu, no
litoral ocidental do Maranhão. No trabalho Cura e pajelança em terreiros do maranhão
(Brasil), uma das principais problemáticas abordadas é o “Tambor de curador”, onde ela
enfatiza uma sessão de cura, onde o pajé, ou curador tenta curar uma pessoa com fortes
dores de cabeça.
Mundicarmo Ferreti se detém numa discussão no sentido de denominar
curandeirismo e pajelança, dessa forma, ela assegura que, no Maranhão, ‘cura’ e ‘mina’
são denominações diferenciadas, mas que durante o século XIX e primeira metade do
século XX, serão compreendidas a partir de um misto de representações mágico-
religiosas, resultando num sincretismo denominado pajelança. Isso teria se estabelecido
por causa da perseguição aos curandeiros e suas terapias medicinais ilegais.
Para mascarar a prática de cura, os curandeiros disfarçavam as suas sessões
como brincadeira, diversão de negros cognominada de Tambor de Mina. Nesse contexto
o curandeirismo é considerado uma prática ilegal de cura, e o Tambor de mina, uma
mera diversão religiosa, onde fiéis cultuavam suas divindades, dessa forma, a relação
mina-pajelança se configurava como uma tentativa de desviar as atenções das
autoridades.
Christiane Mota compartilha da mesma opinião de Mundicarmo Ferretti, pois,
ela afirma que há uma estreita relação entre tambor de mina e pajelança, na medida em
91
LOYOLA, Maria Andréa. Médicos e curandeiros: conflito social e saúde. Op. Cit. P. 23. 92
Ibid. P. 25.
60
que, sabe-se que por muito tempo os pais-de-santo foram perseguidos pela polícia e
encontraram na mina uma espécie de válvula de escape por esta manifestação religiosa
está associada à diversão de negros com seus batuques e suas danças. Já a pajelança não
teria desfrutado da mesma regalia por representar um misto de religiosidade e terapia
médica, ou seja, eram atos a serem desprestigiados por compreender uma gama de
fatores regulados pelo Estado, sobretudo, a medicina de ordem tradicional. Enfim, “a
intensa perseguição aos pajés seria uma das explicações sobre a relação mina-pajelança”
93, como demonstra o seguinte artigo.
“Zé Malaquias”, depois, mandou uma moçoila buscar uns papéis e mostrou-
nos a licença da Polícia para o funcionamento do “tambor de mina”. A
licença dizia mais ou menos assim: “Crescêncio Alves tem licença para
dansar “tambor de mina” nos dias 29, 30, 31, 2 e 3, tendo pago a taxa exigida
por lei”. Era duas licenças, uma datada de maio e ambas contendo a
assinatura do sr. Paulo A. Cunha, sub-delegado do João Paulo. Crescêncio
Alves é o pai de Malaquias, segundo nos afirmou êste. Ficamos, então,
sabendo: “Zé Malaquias” tem licença para dansar “tambor de mina” e paga
imposto, como qualquer dono de baile. Dai dizer que tem patente. Quando
examinamos os documentos apresentados por: Zé Malaquias”, várias pessoas,
todas praticantes da macumba, cercaram-nos, com um olhar apreensivo,
como se fossemos autoridades policiais. “Zé Malaquias” tranquilizou a todos,
dizendo, referindo-se ao repórter: “Ele também é da macumba” 94
.
A manifestação recreativa Tambor de Mina é um movimento religioso muito
recorrente no Maranhão. Mas, durante o século XIX e grande parte do século XX foi
muito perseguida por ser uma manifestação da cultura afrodescendente e por estar
diretamente associado ao curandeirismo.
Caso parecido ocorreu na emissão de uma licença95
para a realização de um
Tambor de Mina, em fevereiro de 1912, concedida pelo delegado de polícia Pereira
Junior a Agostinha Silva da Conceição, no bairro da atual Madre Deus. Os artigos do
jornal O globo da década de 1940 afirmam que o Tambor de mina era um disfarce para
a realização de sessões de curandeirismo. Ou seja, ao analisarmos este documento, é
possível entender que, na verdade, a licença concedida por Pereira Junior poderia,
perfeitamente, ser mais uma evidência de como era intenso o curandeirismo e a sua
perseguição na capital maranhense no início do século XX, pois, para serem realizadas
as suas sessões precisaria de uma escapatória.
93
MOTA, Christiane. Pajés, curadores e encantados: pajelança na Baixada Maranhense. Op. Cit. P.
53. 94
O GLOBO. São Luís, 9/06/1947. Op. Cit. P. 4 95
Arquivo Público do Estado do Maranhão-APEM/Autorização par licenças de bailes e saída de
presos (fevereiro-abril); Ano 1912.
61
Em algumas regiões do Estado, como é o caso da Baixada Maranhense,
Tambor de Mina e curandeirismo se mesclam. Por isso, mesmo pressupondo que as
realizações de Tambor de Mina autorizadas pela polícia poderiam ser uma forma do
curandeirismo passar despercebido pelos olhares da sociedade e da polícia, poderia, este
verdadeiramente, ser uma brincadeira. A grande questão é que no Maranhão, cura e
tambor de mina, dificilmente estão dissociados.
Mundicarmo Ferretti analisa a complexidade da pajelança ludovicense e
destaca, também, o curandeirismo no município de Cururupu. Pois, a religião é um
fenômeno bastante comum nesses terreiros e a doença é percebida não somente no
universo material, biológico, mas também, no abstrato, no sobrenatural, na magia, e
finaliza, apregoando que, para fugirem da fiscalização do Estado, curandeiros, por
muito tempo, se autolegitimavam espíritas, mineiros, umbandistas com o intuito de
serem representados como fiéis de uma religião e não como contraventores da lei.
Apesar do Maranhão ser conhecido como ‘berço’ do tambor de mina
(religião afro-brasileira muito conhecida no Norte do Brasil), muitos terreiros
maranhenses (casas de culto) são apresentados como “de curadores” ou
realizam rituais de cura ou pajelança, termos que traduzem sua função
terapêutica e sua origem indígena afirmada naquele campo religioso (apesar
da palavra pajé ter sido muito usada no Maranhão do século XIX, para
designar atividades médico-religiosas de populações negras) 96
.
96
FERRETI, Mundicarmo. Cura e pajelança em terreiros do maranhão (Brasil). São Luís: Ufma,
2008. Apresentado em 18/3/2008 no Curso de Aperfeiçoamento em Antropologia Médica – Universitá
degli Studi di Milano Bicocca – Itália. Retoma texto apresentado em Mesa Redonda do VIII Encontro da
ABANNE – São Luís, 1-4/7/2003 – intitulado: Tambor de curador e pajelança em terreiros maranhenses.
Publicado em I Quaderni del CREAM, v.8, 2008. Disponível em: www.gpmina.ufma.brpastasdocCura.
Acesso: 19/03/2014; 19h50 min.
62
3. A NATUREZA DO CURANDERISMO: OS COSTUMES E O UNIVERSO DE
REPRESENTAÇÕES DE VIDA.
3.1. PRÁTICAS E COSTUMES POPULARES: ALGUNS APONTAMENTOS
SOBRE A CURA TRADICIONAL CONTEMPORÂNEA.
O curandeirismo é constituído por uma série de práticas, dentre elas, a
fitoterapia. Ela é largamente utilizada nos rituais de cura como as benzimentos, os
banhos e as garradas. “Ela remonta a cerca de 8.500 anos a.C e apresenta origens tanto
na Etnobotânica quanto na etnofarmacologia” 97
. A estrutura bioquímica das plantas
possui princípios ativos capazes de curar diversas doenças e foi a partir do
conhecimento dessas propriedades terapêuticas que surgiu a medicina alopática
moderna.
Ainda que a medicina de Imhotep ou a hipocrática tenha se desenvolvido
consideravelmente na longa duração, a fitoterapia não deixou de existir. Poderíamos
atribuir esse fenômeno ao fato da medicina científica não atender à grande demanda
populacional espalhada pelas largas regiões do Brasil na contemporaneidade.
Entretanto, se nos detiver exclusivamente a esse aspecto, estaríamos também nos
limitando a considerar outros fatores como o fato da identidade dessas pessoas estarem
agregadas ao curandeirismo e a crença no potencial de cura da medicina natural, a falta
de políticas públicas, o fator econômico-educacional das novas gerações, dentre outros.
Sugerindo algumas respostas a esse problema, o trabalho Comunidades
ribeirinhas amazônicas: modos de vida e uso dos recursos naturais98
tem a finalidade
de relatar a experiência vivida por acadêmicos do último ano de Enfermagem da
Universidade do Estado do Pará (UEPA) em comunidades ribeirinhas amazônicas
localizadas às margens do rio Tapajós, nos municípios de Aveiro e Belterra, no Estado
Pará.
Essa população é quase sempre composta por famílias numerosas e sofrem
com a ausência governamental, pois, fatores como água potável, saneamento básico,
moradia digna, educação, trabalho e assistência médico-hospitalar são praticamente
97
Programa de plantas medicinais e Terapias não convencionais. Disponível em:
www.ufjf.b/proplamedatividadesfitoterapia. Acesso: 18/09/2015; 10h26 min. 98
FRAXE, Therezinha de Jesus Pinto; PEREIRA, Henrique dos Santos. Comunidades ribeirinhas
amazônicas: modos de vida e uso dos recursos naturais. Manaus: EDUA, 2007.
63
inexistentes. A precariedade que perdura nessas localidades revela a pobreza em que a
região está mergulhada e, quando se trata de saúde, as dificuldades encontradas são
mais perceptíveis, pois, quase não existem postos médicos, o que acaba contribuindo
para o surgimento de doenças tropicais como a cólera, a esquistossomose, a dengue, a
malária, a doença de Chagas, dentre outras.
As comunidades ribeirinhas da Amazônia têm nos últimos tempos, sido alvo de
várias pesquisas científicas que se interessam em conhecer e entender como é a vida das
pessoas dessa região, e um dos aspectos mais observados pelos cientistas é a
manipulação das plantas medicinais pela população local e o interesse da indústria
farmacêutica pela flora amazônica. As plantas, para a grande maioria dessa população
ainda se constituem como o único medicamento disponível, e o que faz com que isso
ocorra é consequência da perduração de um misto de costumes herdados dos
antepassados dessas pessoas, agregados a fatores econômicos e à chegada de uma nova
era social, a idade contemporânea, aquela onde os grandes fenômenos, sejam eles,
sociais, culturais ou políticos, ocorrem em grande velocidade, fazendo com que vários
costumes sejam fragmentados, como é o caso da chegada da medicina científica em
lugares remotos da Amazônia.
Encontramos no Brasil uma medicina hierarquizada de modelo tecnocrático,
onde, a figura do médico suprime a do paciente e as máquinas sobrepõem-se ao
conhecimento popular. Esse modelo pressupõe que as máquinas tem a exclusiva
finalidade de deliberarem e identificarem causas e efeito das doenças, pois, numa
tentativa de encontrar a cura o mais breve possível, o sistema de saúde brasileiro acabou
virando um “negócio lucrativo e de péssima qualidade” 99
. Dessa forma, surge um
embate entre o tecnicismo da medicina alopática fundamentado pela Organização
Mundial de Saúde (OMS) e o tradicionalismo da medicina popular que é entendida por
esta organização governamental como:
[...] o resumo de todos os conhecimentos teóricos e práticos, explicáveis ou
não, utilizados para diagnósticos, prevenção e supressão de transtornos
físicos, mentais ou sociais, baseado exclusivamente na experiência e
observação, e transmitidos oralmente ou por escrito de uma geração a outra.
Também considerada como uma firme mistura de prática médica ativa e
experiência ancestral, ou seja, semelhante ao conceito de fitoterapia100
.
99
Ibid. P. 112. 100
Ibid. P. 110-111.
64
A mecanização dos procedimentos médicos adotados pelo Estado tenta
desprestigiar amplamente as práticas tradicionais de cura, relegando-as ao descaso. Este
fator é consequência da “crescente pressão econômico-cultural da sociedade envolvente,
com consequências funestas para as culturas tradicionais” 101
. Portanto, há um
movimento social nas comunidades ribeirinhas que pretende criar métodos que
possibilitem o registro, o aprimoramento e a perpetuação dos conhecimentos da
medicina tradicional. “O conhecimento acumulado por estas populações através de
séculos de contato com seu meio ambiente, enriqueceria bastante o pouco que se sabe
sobre a flora tropical” 102
.
Há uma crescente inserção de medicamentos industrializados e de médicos-
cientistas nessas áreas. Isso pressupõe que as populações das comunidades ribeirinhas
se encontram em um grandioso dilema, pois, elas acreditam na eficiência das plantas
medicinais, ainda que os seus efeitos positivos demorem, no entanto, os medicamentos
sintéticos propagados pelas indústrias farmacêuticas instaladas na região se apresentam
como uma espécie de cura em curto prazo e com mais praticidade no preparo de
soluções. Ainda assim é possível notar a resistência de algumas pessoas em aceitarem
essas inovações tecnológicas.
Alguns aceitam as ideias científicas vindas de fora, embora ao mesmo tempo
receiem desfazer-se de suas crenças e práticas tradicionais e muitos
continuam tendo mais fé em seus curandeiros nativos do que no médico.
Numa crise “experimentarão” o último103
.
De acordo com essas ideias, Alceu Maynard desenvolve uma reflexão sobre o
processo de adaptação da medicina científica na cidade de Piaçabuçu, no Estado de
Alagoas, em meados do século XX. Ele discorre sobre a insistência popular em
continuar adotando os métodos curativos de uma medicina que o referido autor chama
de medicina rústica. O uso costumeiro de utilizar os benzimentos, as garrafadas, os
banhos, dentre outros costumes, associados às práticas mágico-religiosas são uma
espécie de essencialidade de uma população que desconhecia os modestos avanços
científicos de meados do século XX.
101
Ibid. P. 113. 102
Ibid. P. 113. 103
SILVA, Sheila Maria Garcia; NASCIMENTO, Keila Gardênia Silva. et al. “A ‘saúde’ nas
comunidades focais do Projeto Piatam: o etnoconhecimento e as plantas medicinais”. In: FRAXE,
Therezinha de Jesus Pinto; PEREIRA, Henrique dos Santos. (orgs.). Comunidades ribeirinhas
amazônicas: modos de vida e uso dos recursos naturais. Manaus: EDUA, 2007. Cap. V. P. 115.
65
Causas como deficiência governamental e arrogância profissional estão no topo
dos aspectos que dificultam uma aceitação popular da medicina alopática. Segundo
Alceu Maynard, os médicos e enfermeiros que se deslocam das grandes cidades do
Brasil em direção aos subúrbios nacionais, como é o caso de Piaçabuçu, carregam
consigo uma ideologia profissional “superior” com a intenção de submeter os
conhecimentos populares.
O objetivo geral de Alceu Maynard é proporcionar uma releitura sobre os
conceitos de saúde e doença da população de Piaçabuçu. Ou seja, que os médicos e
enfermeiros que se deslocaram àquela localidade levassem em conta os conhecimentos
daquela população sobre saúde e doença. Algo que ele vem a cognominar de Medicina
social, uma mescla de medicina científica e antropologia.
Aos médicos está reservado um papel espinhoso, pois é muito difícil
esquadrinhar o espírito de uma pessoa doente do que o da sã, daí a
necessidade da antropologia para que sua senda seja mais fácil de palmilhar,
amenizada. Precisa o médico infundir confiança, estabelecer um leal, afetivo
e amistoso rapport com o paciente que não raro é um adepto das práticas
espíritas, mágicas ou religiosas sobreviventes na cultura rústica no que
concerne à medicina. Para a melhor compreensão deste problema necessário
se torna o adestramento do médico nas disciplinas da metodologia
antropológica, para não criar resistências ou temores e atingir o alvo
colimado104
.
A flora amazônica representa para as populações e comunidades ribeirinhas a
essência da vida. São das matas que essas populações retiram o seu sustento e o remédio
para as enfermidades no decorrer de suas vidas. O conhecimento popular, ou, a
etnobotânica deu a possibilidade de valorização e reconhecimento desses costumes,
portanto, notamos um forte apelo pela preservação desse bem natural associado ao
desenvolvimento de técnicas que permitam a sua sustentabilidade, como é o caso do
plantio e do replantio de ervas medicinais.
O artigo de Maria do Rosário Santos Medicina popular: mística e cura na zona
rural ressalta o uso e a importância da medicina tradicional para o Maranhão. Destaca-
se nesse contexto, de forma específica, o seu uso na zona urbana e rural, além da
inserção de rituais místico-religiosos.
O uso da medicina popular no Maranhão vem crescendo muito nos últimos
anos. Na capital, assistimos à proliferação das farmácias naturistas, onde os
produtos, na sua totalidade, são manipulados industrialmente. Mas o
fenômeno ganha maior proporção no interior do Estado, onde os remédios
104
ARAÚJO, Alceu Maynard. Medicina rústica. Op. Cit. P. 13.
66
caseiros sempre estiveram presentes na vida do povo do campo, até mesmo
por ser a única forma de medicamento disponível e acessível às pessoas de
baixa renda105
.
Ao nos determos neste trabalho, observamos que o “progresso”, não se
constitui, meramente, como um agente de exclusão social, logo, o mesmo, possibilita o
estudo das plantas medicinais e, consequentemente, a sua revalorização. “A prática da
medicina popular, obviamente, é uma herança deixada por nossos antepassados, cuja
importância, pelo seu valor terapêutico e, também, pelo fator econômico vem
despertando interesse internacional” 106
.
Ainda que a medicina tradicional ganhe espaço na sociedade em questão
devido ao seu valor terapêutico, os seus procedimentos médicos e empíricos não são
enquadrados, ou, devidamente reconhecidos pelo sistema médico oficial. “Mas não
podemos negar que a medicina caseira, como prática milenar, vem resolvendo os
problemas de saúde das zonas rural e urbana, onde um significativo número de pessoas
a utiliza como fonte de soluções práticas no seu dia-a-dia” 107
.
As feições mágico-religiosas são largamente associadas às funções médico-
terapêuticas da medicina caseira no Maranhão. “Convém ainda ressaltar que essa prática
vem se desenvolvendo numa dinâmica própria, coerente com o contexto sociocultural e
religioso porque, está, também, ligada à natureza, envolvendo elementos místicos” 108
.
Sendo assim, a medicina alternativa do povo maranhense não caminha solitariamente,
pois, possui uma dinâmica própria, fruto das sociedades que a adota.
No interior do Estado, especialmente nos povoados, as plantas medicinais
possuem uma força vital por serem a única forma de medicamento ao alcance
dos usuários locados nas camadas populares, cujo poder aquisitivo limita seu
acesso aos produtos peculiares à sociedade de consumo. Daí a razão da
comunidade carente buscar o comprovante na “farmácia de Deus-criação
divina” ou “mãe natureza”, onde elementos extraídos da flora e da fauna
tornam-se indispensável na resolução dos problemas de saúde. Em alguns
casos, as doenças são desencadeadas através da mediunidade e, para alguns
curadores, a enfermidade redime e purifica o corpo através do sobrenatural.
Sabe-se também que os remédios caseiros tem um papel de fundamental
importância nos terreiros de minado Maranhão pela forma mitológica à qual
as ervas estão intimamente ligadas à natureza e são fontes de energia que
divinizam e atribuem valores específicos na forma de preparar o remédio ou
105
SANTOS, Maria do Rosário. “Medicina popular: mística e cura na zona rural”. In: NUNES, Izaurina
Maria de Azevedo. (org.) Olhar, memória e reflexões sobre a gente do Maranhão. São Luís: Comissão
Maranhense de Folclore, 2003. P. 253. 106
Ibid. P. 253. 107
Ibid. P. 253. 108
Ibid. P. 253.
67
banho, onde cada tipo de erva tem função determinada, assim como os
ingredientes usados no ato de defumar.
As casas de culto de origem afro são, antes de tudo, um espaço de
concentração de natureza ecológica, dado o respeito e a consciência que as
mineiras têm em preservar a natureza como fonte de energias positivas109
.
Feitas algumas reflexões, detectamos que a modernidade distanciou o homem
da natureza. Notamos, ainda, que os praticantes de costumes mágico-religiosos, por
estarem mais distantes dos grandes centros urbanos, ainda resistem e, dão algum valor a
elementos vindos da natureza, pois, os incorpora aos seus ritos costumeiros. Esse
pensamento pode ser aplicado perfeitamente aos curandeiros e adeptos do
curandeirismo em São Luís, no entanto, algumas peculiaridades podem ser notadas,
provavelmente, pelo fato destes últimos estarem mais próximos do “progresso”.
Este trabalho proporcionou à autora um contato gratificante com as pessoas das
áreas de invasão e periferia de São Luís, oriundas principalmente da zona rural, pois,
elas conservam e alimentam hábitos caseiros no que concerne ao cultivo e aquisição das
plantas medicinais.
Esse é um aspecto que, de acordo com Maria do Rosário Santos tornou este
trabalho coletivo, por ter sido construído baseado no modo de vida de pessoas comuns e
de baixa renda. Sendo assim, a real intenção dele é “mostrar toda a riqueza desse
maravilhoso universo, onde uma mistura de elementos materiais e espirituais se
constitui a base da diversificada medicina caseira e torna de domínio público as diversas
maneiras de cura utilizadas pela sabedoria popular” 110
.
3.2. A CRISTALIZAÇÃO DE UM UNIVERSO PARALELO: JUSTIÇA
BRASILEIRA, COSTUMES AFRODESCENDENTES E RELAÇÕES DE
PODER.
Desde as primeiras linhas deste trabalho estamos tecendo alguns comentários a
respeito da cura mágico-religiosa, da medicina oficial advinda de Portugal, das relações
de poder, das práticas e costumes de negros, dentre outros aspectos tangíveis. Nesse
percurso podemos notar a interferência judiciária no processo de legitimação do
curandeirismo com a finalidade de execrar das entranhas da gente mestiça, costumes
centenários herdados de outras gentes além-mar.
109
Ibid. P. 254. 110
Ibid. P. 255.
68
Nesse sentido, a obra de Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, Sortilégio de
saberes: curandeiros e juízes nos tribunais brasileiros (1900-1990) 111
é oportuna, pois,
nela a referida autora analisa os pressupostos que nortearam os julgamentos de casos de
curandeirismo encaminhados a instâncias superiores. Ou seja, casos de acusações de
curandeirismo que foram julgados mais de uma vez. Assim, podemos perceber como os
juízes elaboravam os seus discursos diante de acusações à prática de curandeirismo,
pois, é ressaltado como os juristas lidavam no início do século XX com a liberdade de
culto garantido pela constituição republicana brasileira concomitantemente com a
restrição às práticas mágico-religiosas existentes.
É ressaltado o quanto as faculdades de Direito e Medicina no Brasil se
beneficiaram das principais correntes teóricas antropológicas e sociológicas europeias e
da teoria do evolucionismo de Darwin. O discurso da primitividade das sociedades
servia como elemento crucial para que juízes, fundamentados numa tradição jurídica
brasileira do século XX julgassem práticas que agrediam os pressupostos progressistas
defendidos pelo Direito brasileiro da época. Dessa forma, foi possível identificar
charlatães, líderes poderosos e carismáticos com o fim de proporcionar ganhos em
benefício próprio e “alívio psicológico” 112
da população desinformada em geral, seja,
aquela humilde, ou, a abastada.
Ao contextualizarmos historicamente o desenvolvimento do processo de cura
no Brasil, ressaltamos a existência de uma pluralidade medicinal. No inicio, meio e fim
da colonização portuguesa variadas terapias concorriam à preferência da população,
uma vez que não havia uma modalidade terapêutica que pudesse se destacar com o
passar dos séculos, e já que não havia um propósito imediato dos colonizadores em
desenvolver um aparelho administrativo.
Essa coabitação proporcionou, desde cedo, um embate entre a medicina
tradicional praticada por negros, ameríndios e mestiços e, a de invento oficial praticada
por médicos vindos de Portugal quase sempre sem nenhuma formação acadêmica. Esse
conflito adentrou os séculos seguintes e anteriores ao advento imperial, fomentando
conflitos no sentido de serem reconhecidas. Pois, com a transferência do núcleo político
de Portugal para o Brasil, esse cenário ganhou novas feições.
111
SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. Sortilégios de saberes: curandeiros e juízes nos tribunais
brasileiros (1900-1990). São Paulo: IBCCRIM, 2004. 112
Ibid. P. 34.
69
A instauração do Império luso-brasileiro possibilitou uma notoriedade à
medicina de origem portuguesa com a criação das faculdades de Direito e Medicina,
logo, esta terapia, por mais que tenha ganhado status de oficial, teve que coabitar
conjuntamente com a terapêutica tradicional. Esta conjuntura sofreu modificações que
privilegiaram acentuadamente a medicina oficial, com a criação de legislações que
coadunavam com o processo de modernização advindo com a instauração da república.
O trabalho Feitiçaria e curandeirismo nos processos crimes-Caetité/BA- 1920
e 1939 trata dos diferentes sujeitos qualificados como curandeiros e feiticeiros nos
processos crimes movidos em Caetité, cidade localizada no sudoeste baiano, entre os
anos de 1920 e 1939. Adriana de Jesus investiga quem eram os sujeitos que praticavam
a cura em Caetité e quais eram os argumentos utilizados pelos outros profissionais das
áreas médica, jurídica, jornalística, dente outras, que, fundamentados nos artigos 156 a
158 do Código Penal de 1890 denunciavam e julgavam as diversas terapias naturais
como práticas perigosas à saúde pública. “A feitiçaria examinada na documentação
judiciária de Caetité era tratada como ‘coisa para fazer o mal’ e quem exercia prática de
cura era chamado de feiticeiro, bruxo e curandeiro [...]” 113
.
Ao analisar os processos-crime, a referida autora, tenta identificar nas
declarações dos acusadores, acusados e testemunhas as relações sociais originadas a
partir da crença em feitiçarias, forças ocultas, rituais mágico-religiosos e processos de
cura que havia naquele contexto daquele município. Restava ainda demonstrar as
tensões e conflitos ocasionados pelas relações de força do poder público com os
curandeiros.
Em variados trabalhos sobre as relações de força entre Estado e curandeirismo
é possível notar a participação de indivíduos “fora de suspeitas” nos terreiros de cura.
Anteriormente comentamos a respeito da participação de oficiais da força policial da
capital maranhense protegendo e até participando dos rituais mágico-religiosos
espalhados pela cidade. Mas, o que poderia levar tais “homens de bem” a lugares mal
vistos como esses? Seria unicamente devido à falta de hospitais? Adriana de Jesus
assevera que uma gama de pessoas distintas social e economicamente como lavadeiras,
funcionários públicos, artistas, lavradores, comerciantes, negociantes, inspetores de
113
SACRAMENTO, Adriana de Jesus. Feitiçaria e curandeirismo nos processos crimes- Caetité/BA-
1920 e 1939. [S.L]: ANPUH, [Entre 2010 e 2015]. Disponível em:
www.anpuhba.org.adrianadejesussacramento. Acesso: 19/03/2014; 17h28 min.
70
polícia, diaristas, damas distintas, dentre outros profissionais, enchiam as casas de cura,
possivelmente, em busca de tratamento médico ou médico-espiritual baseados pela fé na
cura tradicional. “Além disso, essas práticas curativas eram acessíveis para esses
segmentos sociais e não exigiam um tratamento prolongado e fora do ambiente
familiar” 114
.
O poder judiciário já demonstrava seu poder no século XIX, quando o
problema girava em torno da saúde e da oficialização profissional. Caso idêntico
aconteceu em Minas Gerais, no século XIX, como frisa o presente trabalho de pós-
graduação de Marcelo Rodrigues Dias, Repressão ao curandeirismo nas Minas Gerais
na segunda metade do oitocentos que analisa a influência do curandeirismo na
sociedade mineira da segunda metade do século XIX. Seu recorte espacial em
específico foram as cidades de São João Del-Rei, Oliveira e Pitangui. Suas fontes
documentais foram os processos-crimes e artigos de jornais que evidenciavam a
recorrência das práticas de cura popular em larga escala.
A abordagem enfatiza o jogo judiciário no sentido, deste, ora apontar, na
maioria das vezes, o curandeirismo como crime, prática ilegal, ora, como um fenômeno
fruto da ignorância intelectual da população. O curandeirismo era constantemente
perseguido devido ao amplo aceitamento da sociedade mineira, por coadunar práticas
populares e tradicionais comuns nas vidas daquelas pessoas. Diga-se de passagem, a
população referida aqui e, na maioria das vezes julgada, se trata dos menos abastados
que sem recursos financeiros que pudessem propiciar um atendimento mais “eficaz” de
cura valiam-se daquilo que estava ao seu alcance. A medicina oficial ministrada pelos
médicos licenciados constituía um crivo que separava da dessa terapia uma considerada
parte da população.
De fato, a medicina surgia como uma novidade das mais inusitadas nos
costumes das gentes. A assimilação do costume de ir ao médico tratava-se de
um processo lento, gradativo e cheio de resistências. A crença alimentada
pelas pessoas nas curas tradicionais e empíricas tornavam a incorporação da
medicina oficial no seio da sociedade muito difícil. Estas prestigiadas
terapêuticas tradicionais e ancestrais na sociedade oitocentista mineira
ajudavam a constituir um amplo universo sobre o qual a busca da cura
transitava na sociedade115
.
114
Ibid. P. 2. 115
DIAS, Marcelo Rodrigues. Repressão ao curandeirismo nas Minas Gerais na segunda metade do
oitocentos. São João Del Rei – MG: UFSJ, 2010. P. 17. Disponível em: www.ufsj.edu.brportal. Acesso:
19/03/2014; 17h27 min.
71
O confronto entre essas duas forças, onde o curandeirismo se torna um
universo de práticas execráveis, seria um mecanismo legitimador da perseguição por
parte das autoridades competentes aos praticantes da cura alternativa. Logo, o
curandeirismo era um oponente em potencial à medicina oficial. Portanto, fica claro
neste trabalho, que de forma alguma, médicos licenciados permitiriam o funcionamento
da livre terapia tradicional. Neste caso, o poder judiciário, se configura como algoz na
“caça as bruxas” no que se refere aos praticantes da terapia tradicional da sociedade
mineira oitocentista.
O certo é que esse novo panorama, pré-republicano e pós-republicano, tem em
suas raízes uma predisposição em anular os efeitos da colonização. O curandeirismo,
ainda que tenha sofrido represálias, manteve-se em desenvolvimento, logo, a ereção
desse Estado teria extrema dificuldade de apagar as marcas do passado, uma vez que,
os costumes herdados da população escrava e indígenas estavam ligados visceralmente
à sociedade em geral.
Falamos incessantemente em costumes, mas, qual será a influência dos
costumes herdados pela população descendente das diversas nações afrodescendentes
no processo civilizador brasileiro e maranhense? Qual o direcionamento dado por eles
às práticas de curandeirismo em São Luís?
Para fornecer algumas explicações plausíveis, é necessário que façamos
algumas observações sobre esse fenômeno. Para tanto, em Costumes em comum:
estudos sobre a cultura popular tradicional, Edward Palmer Thompson se debruça
sobre o desenvolvimento de uma história do trabalho na sociedade inglesa do século
XVIII, em pleno desenvolvimento do capitalismo. Ele analisa, sob um aspecto marxista,
os hábitos dos setores populares britânicos interligando campos de estudos de
abordagem social, cultural e antropológica no sentido de evidenciar os costumes e
tradições, as estratégias e as manipulações da lei, os cercamentos dos campos e,
consequentemente, o fim das terras comunais, estabelecendo teoricamente o confronto
dessa sociedade com o autoritarismo capitalista.
Thompson encara a história do trabalho inglês setecentista sob um panorama
de um capitalismo industrial “progressista” afirmando que os costumes se configuravam
como peças chave no intuito de se compreender como os mesmos eram frequentes,
atuantes e rebeldes. Pata tanto, a cultura é considerada pelo autor inglês como um
72
amarrilho de costumes e tradições, muitas vezes, contraditórios, mas, que servem como
parâmetro no que tange a análise dessas classes superiores e inferiores no processo de
transformação econômico-social.
Ele defende a ideia de que a consciência e os usos costumeiros eram
especificamente fortes no século XVIII. Alguns desses costumes seriam muito recentes
e representavam as reivindicações de novos direitos das classes trabalhadora e burguesa.
Ele questiona a tentativa de alguns historiadores que se ocupam dos séculos XVI e XVII
tender a ver o século XVIII como um período em que os costumes se encontravam em
declínio, seguido pela feitiçaria, pela magia, dentre outras superstições. Segundo essa
afirmativa, a população estaria sendo pressionada por mudanças vindas de cima, como
era o caso da suplantação da oralidade pela alfabetização, pois, as determinações
resultantes da chegada de uma nova era estariam escorrendo das camadas superiores em
direção aos estratos inferiores da sociedade.
Havia uma resistência no processo reformador da sociedade inglesa do século
XVIII, ou seja, para Thompson, as pressões que visavam uma reforma social, que
tendenciosamente pretendiam sucumbir, em particular, os costumes dos estratos sociais
inferiores encontravam imensurável resistência, o que proporcionava o surgimento de
uma lacuna, “uma profunda alienação entre a cultura patrícia e a da plebe.” 116
. Pois, nos
séculos anteriores, o termo “costume” teria sido empregado para caracterizar boa parte
do que hoje denota o termo ‘cultura’, “o costume era a segunda natureza do homem”.
117.
Caso parecido é discutido na obra O processo civilizador: uma história dos
costumes de Norbert Elias. O ponto de partida do livro é entender as diferenças entre os
conceitos de civilização e cultura. Os dois, de acordo com o autor, não são universais e
não são atemporais. Ambos os conceitos lidam com as realizações da sociedade, com a
sua organização política e econômica, com suas tecnologias, dentre outros. Mas há dois
movimentos a serem notados e contrários: cultura se referiria a um plano intelectual,
abstrato, enquanto civilização estaria ligada a um plano mais prático e concreto. Cultura
se refere à especificidade, ou seja, a cultura de um povo ou de uma sociedade, já
civilização se refere a um princípio de universalização, civilização seria aquilo que
116
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional.
São Paulo: Companhia das Letras, 1998. P. 13. 117
Ibid. P. 14.
73
todas as sociedades deveriam alcançar num dado momento, é um movimento da
“Humanidade”. Civilização seria algo em comum a todas as sociedades, é o potencial
dessas sociedades, é um fenômeno que visa o “progresso”.
A sociogênese dos conceitos de Kultur e Zivilization118
se inicia com a análise
da burguesia alemã. A época analisada é a da aristocracia cortesã, entre os séculos XV e
XVIII. Neste período, a burguesia alemã não detinha força política, não conseguia
cargos relevantes na administração do Estado e também não tinha acesso à sociedade de
corte.
A sociedade de corte era composta por aqueles que participavam das rotinas da
nobreza, assim como participavam de seus eventos e se submetiam às suas regras. O
que Norbert Elias analisa profundamente são os “modos civilizacionais”. A etiqueta da
corte. Os comportamentos e as relações que sua vigência tem.
A aristocracia alemã rejeitava a sua própria língua. A língua refinada era o
francês e as cortes a utilizavam. Havia um aspecto duplo: evitar as classes dominadas e
estabelecer um princípio de distinção. A burguesia alemã, por sua vez, tentava aprender
o idioma francês, na esperança de ter algum reconhecimento e conseguir alcançar
posições mais privilegiadas na estrutura social. Entretanto, com todas as limitações que
recaiam sobre esta classe, a única brecha encontrada foi o recrudescimento dos
princípios da intelectualidade.
Segundo essa ótica, o sujeito civilizado, seria burro e controlado socialmente,
culto era o indivíduo detentor de conhecimento, de cultura. A burguesia alemã evitava a
sociedade cortesã, rejeitava seus comportamentos “refinados” e superficiais, não
conseguia posições importantes na organização do Estado e não tinha nenhum poder
político, entretanto, via nas universidades a sua única saída.
Norbert Elias percebe que uma intelligentsia é formada na Alemanha tendo
como núcleo os escritores, artistas, filósofos, poetas, dentre outros, originados na
burguesia. A rejeição à aristocracia de corte começa a se firmar institucionalmente com
a formação de um corpo de intelectuais que reforçavam todo o campo cultural e
intelectual do país e o termo cultura se firmava como algo que valorizava aquilo que é
único. O termo cobre as estruturas econômicas e políticas, as invenções, as tecnologias,
118
Esses são os termos “Cultura” e “Civilização” na língua alemã.
74
mas, está sempre em uma esfera intelectual, em uma profundidade de conhecimento e
em um princípio de distinção. A “cultura” é o termo que a classe burguesa alemã usa
para legitimar sua distinção em relação à aristocracia. É um termo de autolegitimação.
Por sua vez, o termo civilização tem um processo longo dentro das classes
dominantes francesas. A mudança do termo é demarcada por Norbert Elias como
transformações históricas que podem ser vistas nas passagens dos termos distintivos das
classes dominantes de cortês, polido e até civilizado. Essas transformações são
demarcadas por novos padrões de refinamento e controle dos instintos. Norbert Elias
observa essas mudanças como algo mais ou menos homogêneo por toda a Europa. Não
necessariamente em todas as cortes, mas, pelo menos, no ideal que estas cortes trazem
para o que deveria se tornar uma sociedade de corte.
O impressionante no estudo de Norbert Elias é que, tomando como objeto de
estudo as sequenciais transformações dos comportamentos das sociedades cortesãs, os
livros e manuais de comportamentos, de bons modos, ele percebe que, de uma
perspectiva histórica, de um ponto de vista em longo prazo, há um movimento de
controle cada vez maior dos instintos. Esse é o processo civilizador. Um processo onde
as estruturas emocionais incorporam controles dos instintos cada vez maiores e se
modificam de acordo com as transformações que acontecem na própria sociedade.
Ele resume tudo em que a sociedade ocidental dos últimos dois ou três
séculos se julga superior a sociedades mais antigas ou a sociedades
contemporâneas "mais primitivas". Com essa palavra, a sociedade ocidental
procura descrever a que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se
orgulha: o nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o
desenvolvimento de sua cultura científica ou visão do mundo, e muito
mais119
.
Neste processo, por exemplo, é localizada historicamente a estrutura
psicológica descrita por Freud. Ego, Id e Superego fariam parte de uma estrutura que só
poderia realmente ter nascido em tempo de alto controle e repressão. Esta é uma
interpretação da estrutura psíquica que faz sentido e que explica os indivíduos da
sociedade por ser uma estrutura que tem lugar cativo para as contradições cada vez
maiores de impulso, de gozo e de refinamento, de repressão e controle.
119
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1994. P. 23.
75
Feitas algumas considerações sobre costumes pudemos notar como eles se
constituíram e constituem uma espécie de amarrilho de outros costumes, originando,
assim, o fenômeno social cognominado de cultura. No Maranhão este mesmo amarrilho
foi responsável por diversos conflitos entre autoridades governamentais e curandeiros
na primeira metade do século XX, como é o caso percebido por António Evaldo
Almeida Barros no artigo científico Nos (des) caminhos da cura.
Neste trabalho, ele pretende enfatizar através de fontes escritas, de jornais em
particular, a intensa difusão do curandeirismo no Maranhão em meados do século XX.
Ele ressalta que a prática de pajelança nesse período era intensa, dessa forma, em grande
parte foi desvalorizada e depreciada pela massa de intelectuais, pela polícia e grande
parte da sociedade, sendo associada à criminalidade, ao homossexualismo, a barbárie, a
degeneração fenotípica, ao atraso cultural do Maranhão, a práticas diabólicas, ao
alcoolismo, à prostituição infantil, dentre outras depreciações.
O mais notável nesse trabalho é o quanto a imprensa e grande parte da
sociedade maranhense, através dos jornais, Pequeno e, principalmente, O Globo,
apresentava o Maranhão como o avesso do universo civilizado. Seus rituais de cura
eram associados à magia primitiva, ou seja, as práticas e os costumes mágico-religiosos
dos pajés representavam a continuidade de um mundo “incivilizado”.
As mesas de cura se espalhariam por todo o Estado, através de um processo de
mobilização, interações e conflitos. Muitas vezes pessoas da própria elite participavam
das curas, evidenciando que as práticas de curandeirismo no Maranhão, por mais que
fossem definidas como práticas rústicas, de pobres, negros e caboclos, muitos abastados
maranhenses, personalidades da alta roda social, delas, participavam com frequência.
A exemplo do que ocorreu em diversos lugares do Brasil, como na Bahia e
em Pernambuco, e em outros países da América Latina, no Maranhão
também foi intensa a construção negativa das práticas e representações
relacionadas aos repertórios sociais identificados com África ou com os
povos nativos, particularmente aqueles nos quais eram realizadas Curas.
Dessa operação participaram membros de diferentes estratos sociais e
posições políticas, de diferentes cores, gêneros e gerações. Parte da imprensa,
laica ou religiosa, de direita e de esquerda, constituiu-se como o canal central
através do qual se deu a difusão massiva de estereótipos e preconceitos
referentes ao mundo dos encantados e das Curas ditas supersticiosas120
.
120
BARROS, António Evaldo Almeida. Nos (Des) Caminhos da Cura. Net, Porto Seguro – BA, [2007 e
2014]. P. 5. Trabalho apresentado no Fórum de Pesquisa “Terapeutas, cuidadores e curadores populares:
Uma interface entre Antropologia, cidadania e saúde popular” da 26ª. Reunião Brasileira de
76
O discurso religioso, concomitantemente com o jornalístico, o policial e o
médico-oficial, uniram-se numa vanguarda que tinha como principal objetivo eliminar
os terreiros de pajelança e seus adeptos de São Luís e, com menos intensidade, no
restante do Maranhão. Os curandeiros, dessa forma, eram associados a astutos
religiosos, que, pretensiosamente ludibriavam os extratos sociais em geral. Tanto
pobres, quanto, abastados estariam propensos a cair nas armadilhas dos curandeiros.
Essa característica é bastante espinhosa porque acaba por generalizar o
processo de “caça às bruxas”, ou seja, a história do curandeirismo em São Luís não é
emoldurada apenas como um fenômeno passível à vitimização. Diversas denúncias em
artigos de jornais, segundo António Evaldo Almeida, evidenciavam como curandeiros e
pacientes da cura tradicional conseguiram manter os seus terreiros em funcionamento,
mesmo com toda forma de ataque vindo de cima. Isto é, ainda que o Estado perseguisse
os curandeiros, este fenômeno mágico-religioso conseguiu manter-se em
desenvolvimento. Por diversas vezes, utilizando a sua própria denominação religiosa, os
pajés conseguiram escapar das garras da polícia, e foi muito decorrente, curandeiros se
beneficiarem de relações mais próximas com agentes da elite ludovicense.
Através de um processo de intensas e múltiplas mobilizações, interações e
conflitos, pajés ou curadores foram capazes de questionar e romper com
representações pejorativas que os emolduravam num mundo de passividade,
bestialidade e malignidade, e afirmaram-se como sujeitos sociais centrais
para a história do Maranhão121
.
Ao tratar das questões ligadas à sexualidade, António Evaldo Almeida destaca
as relações de gênero que envolvia a cura e o tambor de mina em meados do século XX.
Ele afirma que antes da década de 1950 não era comum que homens assumissem a
função de pais-de-santo ou dançassem o tambor de mina, logo, seriam vistos como
homossexuais ou afeminados. Mas, a partir desta data, continua enfatizando, alguns
curandeiros e dançarinos despontaram no cenário mina-pajelança no Maranhão, pois, ao
se submeterem a tal exercício, os homens dessa dualidade religioso-terapêutica
promoveram uma revolução no que tange o ideário sexual desse universo.
As funções masculinas dentro desse mundo se resumiam ao exercício de tocar
tambores, ou, pelo menos, deveriam exercer essa função. “De fato, até os anos 1950, o
Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de junho, Porto Seguro, Bahia, Brasil. Disponível em:
<http://www.abant.org.br/conteúdo/ANAIS/CDvirtual26RBAforunsdepesquisa/trabalhos>.htm. Acesso:
19/03/ 2014; 17h05 min. 121
Ibid. P. 37.
77
Tambor de Mina costumava ser dançado e chefiado principalmente por mulheres negras
ou mestiças, provenientes das camadas mais pobres da população maranhense.” 122
. Em
algumas situações, ressalva o escritor, alguns chefes de terreiros surgiram sem que fosse
necessário serem identificados como tal, ou que fossem pais-de-santo, como é o caso do
senhor Inocêncio Barbosa, que chefiava o terreio de sua esposa e mãe-de-santo Estelina
Barbosa.
Até sua morte, ele era o responsável por toda a organização das festas,
participando tanto das questões rituais quanto dos festejos externos,
realizadas no terreiro de sua esposa, fundado nos anos 1950. Era um
profundo conhecedor do universo místico da Pajelança e do Tambor de Mina.
Foi o senhor Barbosa quem levou sua esposa para ser preparada no santo,
pois não aceitava (como ocorrera algumas vezes) que ela caísse em terreiros,
por não estar preparada123
.
Que os mundos do tambor de mina e da pajelança são bastante complexos,
isso, todos nós já sabemos. Agora, resta fazer algumas considerações a esse respeito,
dessa forma, António Evaldo Almeida destaca as relações de poder existentes no
interior dessa dualidade. Essa afirmativa serve para uma reflexão de que não era
somente no antagonismo Estado-curandeirismo que havia relações de poder no que
concerne o engessamento social. Essa relação à Michel Foucault perpassava por um
entendimento de que havia diferenças entre o tambor de mina e a pajelança no
Maranhão em meados do século XX. Porém, “tal divisão não seria clara e distinta para
muitos sujeitos” 124
. Mas do que isso, essa situação se tratava mais de uma questão de
poder do que de verdade, afirma o referido autor.
Ainda que reconhecessem veladamente as diferenças entre essas duas práticas
mágico-religiosas as autoridades policiais, os médicos oficiais, os clérigos, sobretudo, a
imprensa, objetivavam a coagi-las, pois, estavam propensos a “perseguir não somente as
ditas manifestações mórbidas, mas tudo o que, em suas perspectivas, se aproximasse
dessas práticas.” 125
.
Destacamos o curandeirismo neste processo, porque, por mais que a maioria
das literaturas sobre o tema não dê ênfase consistente que permita a observação do
processo de legitimação deste na longa duração, as mesmas obras deixam margem para
brotarem posicionamentos pertinentes que afirmam a tentativa do curandeirismo de se
122
Ibid. P. 33. 123
Ibid. P. 33. 124
Ibid. P. 35. 125
Ibid. P. 35.
78
autolegitimar perante o avanço das ideias científicas advindas da Europa. Pois, feições
como os costumes dos afrodescendentes se apresentam como algum dos
posicionamentos para se pensar, não numa espécie de sobrevida das práticas e rituais de
negros no Brasil, mas, como, vivências, algo que se pronuncia a todo o momento como
uma estrutura rigorosamente engessada, um universo paralelo, uma sociedade que
coexiste com a sociedade “dominante”.
3.3. O HABEAS CORPUS DE DEMÉTRIO SANTOS E SEUS ASSISTENTES:
ANTAGONISMOS PRÁTICOS E HISTÓRICOS DO PROCESSO DE
MODERNIZAÇÃO DE SÃO LUÍS.
Como foi possível observar no tópico anterior existiu uma interferência
judiciária durante todo o período de desenvolvimento do curandeirismo em terras
brasileiras. No Maranhão a lógica se manteve, pois, na década de 1940, ocorreu a prisão
de um famoso pai-de-santo em São Luís.
No dia 30 de abril de 1940, o pajé Demétrio Santos e três assistentes, José
Santos, Raymundo Buna e Simão Rodrigues foram surpreendidos por uma Guarnição
Policial, chefiada pelo Comissário de polícia Benedito Valeriano Ribeiro no interior da
ilha. Apreendidos em flagrante exercício ilegal da medicina, afirma a guarnição policial,
os artigos de jornais da época126
e o Chefe de Polícia do Maranhão Flávio Bezerra, o
curandeiro e seus assistentes foram conduzidos para a Penitenciária Estadual sem um
julgamento prévio.
No mesmo dia é feito um pedido de soltura, impetrado pelo advogado das
vitimas Drº. Soares de Quadros ao Tribunal de Apelação do Estado do Maranhão,
presidido pelo Desembargador Raymundo Publio Bandeira de Melo. Analisado o
pedido de habeas corpus, é emitido um ofício ao Chefe de Polícia exigindo maiores e
melhores esclarecimentos sobre o ocorrido alegando de imediato a ilegalidade da prisão.
Em seguida, o supracitado Chefe de Polícia faz uma apelação com registro formal para
que seja repensada a ordem de habeas corpus.
Repensado e julgado os documentos, os acusados de curandeirismo são postos
em liberdade após a expedição de um alvará de soltura. Depois de concluídos os
126
A análise dos artigos de jornais onde estão contidas as informações referentes a essa documentação
está no segundo capítulo, tópico 2.2.
79
pareceres, tanto do Presidente do Tribunal de Apelação, quanto, do Chefe de polícia do
Estado, é feito um pedido pelo primeiro, para que o caso seja transformado em
diligência policial e nada a mais.
A nossa intensão é analisar essa documentação com o intuito de se perceber,
dentro do jogo de poderes judiciários, como são representados os agentes do
curandeirismo, sejam eles, curandeiros, pacientes, ou, simplesmente, adeptos dessa rede
de costumes, práticas e ritos mágico-religiosos.
A documentação é composta por cinco registros expedidos por repartições
públicas ligadas diretamente ao poder judiciário do Estado do Maranhão da década de
1940. Dentre as repartições estão a Chefatura de Polícia e o Tribunal de Apelação. O
primeiro documento a ser analisado é a ordem de Habeas corpus concedida pelo
presidente do Tribunal de Apelação do Estado do Maranhão Raymundo Publio Bandeira
de Mello referente ao pedido de soltura impetrado pelo advogado Dr. Soares de
quadros, o segundo é o Ofício 102 expedido, também, pelo Tribunal de Apelação, o
terceiro é a Resposta do Chefe de Polícia do Estado referente ao ofício 102, o quarto é a
Ordem de soltura expedida pelo Tribunal de Apelação, o quinto e último documento, os
Conclusos, se encontra dividido em duas partes que os chamaremos de Conclusos um, e
Conclusos dois, também, emitido pelo Tribunal de Apelação.
No primeiro documento Habeas corpus, datado de 30 de Abril de 1940,
intitulado de COLENDO TRIBUNAL DE APPELAÇÃO, o desembargador Raymundo
Publio Bandeira de Mello, Presidente do Tribunal de Apelação do Estado do Maranhão,
julga um pedido de soltura feito pelo Advogado Drº. Soares de Quadros em benefício
dos presos de justiça Demétrio Santos, José Santos, Raymundo Buna e Simão
Rodrigues, e em seguida concede parecer positivo para que sejam libertados do cárcere.
A justificativa de Raymundo Publio se baseia no fato de que os presos não
haviam praticado crime algum, uma vez que os mesmos estavam apenas em meio a uma
diversão de negro e de pobre, possivelmente, o tambor de crioula, já que esta
brincadeira não foi mencionada no presente documento, sem ofender a ordem pública,
estando as casa abertas e iluminadas, os presentes não estavam portando armas e,
estavam brincando com o máximo de respeito possível.
80
O desembargador segue a sua justificativa frisando o sensacionalismo da
imprensa de São Luís, onde os articulistas afirmam que os detidos estavam numa
reunião às portas fechadas, apontando para o fato, desta, ser uma prática criminosa, por
se tratar de um exercício profissional ilegal. Ele segue ainda informando, contrariando
os periódicos da época, que a reunião íntima e divertida não apresentava propósito
criminoso, pelo contrário, se tratava, na verdade, de uma reunião particular, ou melhor,
era apenas a realidade da população humilde da capital maranhense, que não tendo
outro modo para interagir socialmente com o seu meio, brincavam com o que havia
gratuitamente, a diversão cultural dos seus antepassados.
Ele ressalva que não havia motivos para a prisão, já que os encarcerados não
haviam sido surpreendidos em flagrante delito, como reforça a imprensa, no entanto, se
encontravam recolhidos injustamente à Penitenciária Estadual, sem que para isso,
houvesse um julgamento, configurando, assim, um ato inconstitucional. Ao mesmo
tempo em que se baseia no código criminal para inocentar os indivíduos, ele contraria
os periódicos que circulam pela cidade que afirmavam ser a referida brincadeira um ato
criminoso e de resquícios coloniais.
A prisão dos pacientes, pobres e pacatos lavradores que sem justo motivo ou
legal razão se encontram recolhidos a cellas da Penitenciária como si
criminosos fossem, ou sejam, não corresponde a qualquer dos requisitos de
legalidade exigidos no artigo 322 do Codigo do Processo Criminal, nem se
realisou por alguns dos meios prescriptos nos artigos 272 e 273 desse
Codigo. Em taes condições constitue constrangimento ilegal e o principio do
nosso Direito Politico é que “dar-se-á habeas-corpus sempre que algum
soffrer ou se achar na imminencia de soffrer violencia ou coação illegal na
sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar” (não
corrente).
Assim effectivamente dispõe a citada constituiçao, numero 16 ao artigo 122.
Requer, pois, o impetrante que o colendo Tribunal de appellação tome
conhecimento e processe o pedido recurso habeas-corpus, concedendo a
ordem em homenagem ao Direito e mercê à justiça127
.
O segundo documento, o Ofício 102, expedido pelo Tribunal de Apelação em
04 de maio de 1940 vem buscar informações sobre os motivos da prisão das vitimas,
para que seja julgado o pedido de habeas corpus.
127
MARANHÃO. Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Tribunal de apelação. Habeas
corpus. Soltura. Habeas corpus nº 393, São Luís, de 1940. Ordem de Habeas corpus. Documentos
encontrados na Coordenadoria da Biblioteca e Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão,
localizada na Rua Viveiros de castro, s/n, Alemanha, São Luís, Maranhão. São eles: Habeas corpus,
Ofício 102, Resposta do Chefe de Polícia do Estado, Ordem de soltura, Conclusos um e conclusos dois.
81
Neste documento, mais uma vez, o impetrante frisa a ilegalidade da prisão e
recolhimento à Penitenciária Estadual, por ordem de Flávio Bezerra, os acusados de
prática ilegal da medicina: Demétrio Santos, José Santos, Raymundo Buna e Simão
Rodrigues.
O terceiro documento, a Resposta do Chefe de Polícia do Estado, datado de 06
de maio de 1940, trata do julgamento de Flávio Bezerra à ordem de habeas corpus
executada pela Primeira Turma do Tribunal de Apelação do Estado. Nesse documento,
o Chefe de Polícia justifica que a prisão dos acusados foi ocasionada pelo flagrante
delito de prática de pajelança e consequente exercício de curandeirismo.
A justificativa de Flávio Bezerra vem se chocar com a do próprio Raymundo
Publio de Mello, onde o desembargador, influenciado pelo pedido de soltura do
Advogado dos presos, Drº. Soares de Quadros, afirma que os detidos não foram
surpreendidos em prática ilegal, ou criminosa, e sim, em uma brincadeira cultural. Ou
seja, enquanto o presidente do Tribunal de Apelação julga o caso como uma mera
diversão dos pobres da periferia de São Luís, o Chefe de Polícia considera que se tratava
não de uma festividade, mas, de um ato criminoso tanto a pajelança quanto o
curandeirismo.
O quarto documento, a Ordem de soltura, se refere ao alvará de soltura emitido
por Raymundo Publio de Mello ao administrador da Penitenciária Estadual do
Maranhão ou responsável competente, em resposta ao pedido de habeas corpus feito
pelo advogado Drº. Soares de Quadros para que sejam postos imediatamente em
liberdade, sob o julgo da lei, os presos de justiça Demétrio Santos, José Santos,
Raymundo Buna e Simão Rodrigues.
Na primeira parte do quinto documento, os Conclusos um, Raymundo Publio
de Mello conclui o relatório documental que coloca em questão a liberdade dos
indivíduos supracitados por práticas ilegais da medicina. O desembargador converte o
julgamento em diligência policial no sentido de se obter maiores informações sobre o
caso.
Na segunda parte, os Conclusos dois, o relator Costa Fernandes, por ordem do
presidente do Tribunal de Apelação conclui que seja executada a ordem de habeas
corpus referente ao pedido de soltura feito pelo Drº. Soares de Quadros em favor dos
82
presos anteriormente mencionados. As ressalvas resguardam mais uma vez que os
pacientes se achavam ilegalmente presos por vários dias, por ordem do Chefe de Polícia
do Estado, uma vez que não havia prova cabal de ato criminoso, configurando, dessa
forma, um ato inconstitucional.
A documentação deixa algumas fissuras que permitem a observação do jogo de
poderes entre o Estado e o curandeirismo, principalmente, no choque de opiniões entre
Flávio Bezerra e Raymundo Publio de Mello. Enquanto o Chefe de Polícia considera
que os envolvidos exerciam veladamente o exercício ilegal da medicina, o
desembargador considerava o fato ocorrido como uma diversão. Essas afirmativas
revelam a heterogeneidade de opiniões dentro do próprio aparelho de Estado.
Outro ponto capcioso é o fato de que Flávio Bezerra conduziu os acusados à
Penitenciária Estadual arbitrariamente, o que denota veementemente uma relação de
força entre dois ofícios da lei de grande destaque no Maranhão de meados do século
XX.
Ao analisar essa documentação, percebemos que a polícia, a imprensa e o
direito podem ser perfeitamente comparados a três forças moleculares aliadas do
Estado. No século XX, a polícia e o direito, se configuram como dois braços da lei que
entraram na vida social das pessoas no intuito de adestrá-las, pois, contrariamente do
que ocorre na contemporaneidade, na idade média, quando, tanto a polícia como o
direito, serviam mais como fiscalizadores das normas preestabelecidas pela sociedade,
cabendo ao serviço militar a contensão dos movimentos sediciosos.
A perseguição do curandeirismo praticado pelos acusados é consequência
daquilo que o historiador francês Michel Foucault vem chamar de emergência, pois, a
prática terapêutica, sendo em meados do século XX uma ilegalidade, se constitui no
interior da sociedade ludovicense como algo que precisava ser contido. Logo, as forças
de plantão, a polícia, o direito e a imprensa, se manifestam neste sentido, não somente
com a intenção de contê-lo, mas, sobretudo, de adestra-lo, discipliná-lo. Dessa forma, as
ações das três forças são, “o salto pelo qual elas passam dos bastidores para o teatro” 128
.
O que podemos asseverar é que, seja de maneira legal, ou não, a iniciativa da
Chefatura de Polícia conjuntamente com a imprensa local atendia a um desejo elitista
128
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Op. Cit. P. 24.
83
alinhado aos preceitos do processo modernizador que se iniciou na segunda metade do
século XIX, onde os costumes afrodescendentes representavam um universo de práticas
e ritos coloniais a serem lançados no esquecimento.
A superstição em nosso meio é uma das formas mais esquisitas de
exterioridade religiosa.
Povo tradicionalmente religioso, muitos maranhenses, por atavismo ou outros
quaesquer laços que não veem ao acaso, nesta simples reportagem, para as
suas manifestações de fé, não se lhe dão de frequentar “sessões em que
macumba e participar de outras extravagantes reuniões em que indivíduos
anormaes lhe exploram a sua crendice exagerada129
.
Enquanto isso, as determinações do jurista maranhense, baseada na
constituição brasileira “asseguravam” as recreações culturais de matriz africanas, desde
que não ultrapassassem o campo do ofício da medicina legal. Neste caso, o discurso de
Raymundo Publio Bandeira de Mello coaduna com o discurso de Michel Foucault:
O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que
ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia,
produz coisas, induz o prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se
considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social
muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir130
.
A apreensão de Demétrio Santos e seus assistentes, relatada nos documentados
analisados, serve para refletirmos sobre como eram representados os praticantes da
pajelança em São Luís em meados do século XX. Numa cidade em que discursivamente
se autolegitimava como adepta do progresso, reinava as contradições, ao ponto que a
Europa teve uma evolução histórica alheia à do Brasil. Aqui, as questões de raça e
cultura são tônicas recorrentes nesse processo, pois, os conflitos, as discriminações, os
preconceitos, dentre outros adjetivos, se inscrevem num panorama repletos de
antagonismos práticos e históricos.
A realidade de São Luís desde o limiar do século XX se manteve praticamente
inalterada. Imperava a pobreza da grande maioria da população conjuntamente com a
parca sociedade elitista. A urbanização caminhava a curtos passos, as ruas não possuíam
calçamento, não havia uma rede de esgoto e um fornecimento de água potável, ainda
assim, a classe abastada ludovicense, a maioria dos letrados, os profissionais em
destaque como médicos, advogados e jornalistas, e as autoridades competentes,
prosseguiam com o processo de exclusão social da população menos abastada.
129
O GLOBO. Tire o pajé da roda: Preso o macumbeiro n° 1 da cidade. São Luís, 30/04/1940. Op.
Cit. P. 1-6. 130
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Op. Cit. P. 8.
84
Os conflitos generalizados e costumeiros resultantes da exclusão social
explicam o cerne das contradições sócio-políticas e culturais no que concerne à saúde
pública, sobretudo, às práticas mágico-religiosas do curandeirismo, por este fenômeno
cultural representar uma gama de concepções de vida que caminham
concomitantemente com os ideais do Estado, ou melhor, que possuem vida própria.
3.4. O INQUÉRITO CRIMINAL DE MARIA PEREIRA DE SOUSA:
EXERCÍCIO ILEGAL DA MEDICINA E A SEGUNDA NATUREZA DO
HOMEM.
No último tópico do primeiro capítulo deste trabalho (tópico 1.3) reservamos
algumas considerações à ineficiência da assistência médico-hospitalar de São Luís no
primeiro quartel do século XX. Nos artigos de jornais analisados pudemos perceber a
frequente procura pelos terreiros de pajelança e as suas curas mágico-religiosas. Caso
parecido ocorreu em São Luís na década de 1940, onde uma mulher prestou socorro à
outra em trabalho de parto.
Maria Pereira era uma trabalhadora autônoma, proprietária de uma casa de
pensão, localizada no centro da capital maranhense. No mês de maio de 1940 abrigou
em seu convívio uma meretriz gestante e sem teto, cognominada Ozita Santos. Passado
algum tempo a respectiva inquilina de Maria Pereira sofreu um acidente doméstico.
Dois dias após o acidente Ozita Santos entrou em trabalho de parto e Maria Pereira
prestou-lhe prontamente os primeiros socorros realizando o seu parto com auxílio de
duas assistentes, Balbina Santos e Filomena Silva.
O recém-nascido nasceu com sérios problemas de saúde e veio a falecer no dia
seguinte. Essa consequência chamou a atenção das autoridades que instaurou um
inquérito criminal para ser solucionado o caso, onde foi ouvida a acusada por prática
ilegal da medicina Maria Pereira de Sousa, a suposta vítima e as assistentes.
Neste tópico analisaremos uma documentação policial referente a essa
ocorrência com a finalidade de reforçar o que foi proposto no tópico 1.3 do primeiro
capítulo, onde está evidente a proibição de práticas milenares de assistência médica
diante de um ineficiente quadro médico-hospitalar de uma cidade que se autolegitimava
adepta do progresso ocidental.
85
Os documentos são compreendidos em número de seis, expedidos pela
Chefatura de Polícia do Maranhão, onde são relatados, através de interrogatórios os
procedimentos utilizados por Maria Pereira de Sousa ao partejar Ozita Santos, e são eles
a Portaria, o Termo de Declarações um, o Termo de Declarações dois, o Termo de
Declarações três, o Termo de declarações quatro e o Relatório.
O primeiro documento, a Portaria, datado de 11 de junho de 1940, O Chefe de
Polícia Flávio Bezerra autua a mulher Maria Pereira de Sousa por partejar Ozita Santos.
No dia seguinte ao parto o recém-nascido veio a óbito, provavelmente, essa ocorrência,
chamou a atenção das autoridades.
A principal justificativa de Flávio Bezerra é que a referida parteira não era
licenciada a exercer a medicina, configurando, dessa forma, uma prática criminosa aos
olhos das autoridades competentes. Após a autuação, o Chefe de Polícia determina que
seja instaurado um inquérito criminal para que se possa saber as reais causas e
consequências do ato da parteira.
No segundo documento, que inicia o inquérito criminal, o Termo de
Declarações um, datado de 12 de junho de 1940, a depoente e acusada de prática ilegal
da medicina Maria Pereira de Sousa, doméstica, de trinta e nove anos de idade, natural
da cidade de Jerumenha, no Estado do Piauí, residente na Rua 28 de Julho, nº 483, em
São Luís, depõe perante o Chefe de polícia Flávio Bezerra. Ela afirma saber ler e
escrever e que em determinado dia do mês de maio, esteve em sua casa uma mulher de
codinome Ozita Santos pedindo-lhe abrigo. Ao ver o estado de gestação da futura
inquilina, a depoente estendeu-lhe a mão de imediato, sem que para isso tenha lhe
cobrado quantia alguma, nem mesmo a alimentação, pois a comida vinha da casa de
alguns parentes da gestante que moravam na Rua da Estrela, também, no centro da
cidade.
Segundo a acusada, Ozita Santos teria dito que foi dispensada da pensão de
meretrizes de Plautilha Castro, localizada nesta mesma cidade, porque, estando grávida,
não atendia aos interesses do estabelecimento.
Maria Pereira de Sousa cedeu um quarto sem cama, mas, com uma rede, pois, a
inquilina não estava exercendo a profissão de meretriz. Dessa forma, no dia sete de
junho, Ozita Santos ao se embalar na rede sofreu uma queda provocada pelo
86
rompimento de uma das cordas de sustentação. Ela teria caído batendo com as nádegas
no chão, mas, a acusada só ficou sabendo do ocorrido na noite do dia seguinte porque
encontrou a grávida com fortes contrações uterinas, mas, não se preocupou, pois a
gestante ainda não estaria em tempo de ser partejada.
Dois dias após a queda a depoente achava-se em seu quarto, quando
repentinamente os gritos de dores de Ozita Santos chamaram a sua atenção. Ela se
prestou prontamente a socorrê-la e, chegando ao quarto da grávida a encontrou aos
prantos, vomitando bastante, logo, desarmou a rede, fez uma rodilha com a mesma, pôs
ao chão e colocou a parturiente em posição de partejamento. Em seguida, assistida por
outra inquilina e, ajudante de cozinha chamada Balbina, partejou-a. Ozita Santos deu à
luz a um recém-nascido do sexo masculino, que veio ao mundo com um tom de pele
arroxeado e visivelmente arquejante.
Ao ser questionada pelo interrogador a acusada alegou que foi a única
intervenção médica que teria feito na sua inquilina. Porquanto, ela já teria feito mais de
vinte intervenções como essas em sua terra natal, pois, essa prática lhe teria sido
transmitida pela sua mãe, uma parteira experiente, e nas ocasiões que viajava para a sua
terra natal fazia partos naquele lugar. Em São Luís, residente há dezesseis anos,
declarou, foi a primeira vez que havia partejado, pois, não levou a parturiente ao pronto
socorro alegando que o mesmo não a atenderia, pelo menos, em tempo hábil.
Em sua justificativa final, Maria Pereira de Sousa se justificou afirmando que
além de não haver um local preciso que pudesse ter levado Ozita Santos para dar à luz
ao seu filho, o seu gesto foi de pura humanidade, pois, a sua inquilina além de não
dispor de meios cabíveis, foi atirada na rua por Plautilha Castro ao notá-la sem serventia
alguma.
[...] que deixou de chamar medico de Serviço do Prompto Socorro, em
virtude deles não atenderem; que o seu acto foi todo de humanidade, pois
tinha Ozita em sua residência em virtude dela não ter onde morar, e ainda ter
sido jogada na rua da casa de Plautilha Castro, residente à rua 28 de julho131
.
131
MARANHÃO. Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Chefatura de Policia. 1º Delegacia
Auxiliar. Inquérito Policial. São Luís, 1940. Documentos encontrados na Coordenadoria da Biblioteca e
Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, localizada na Rua Viveiros de castro, s/n,
Alemanha, São Luís, Maranhão. São eles: a Portaria, o Termo de Declarações um, o Termo de
Declarações dois, o Termo de declarações três, o Termo de Declarações quatro e, o Relatório.
87
O terceiro documento, o Termo de Declarações dois, datado de 25 de junho de
1940 é referente ao depoimento de Ozita Santos, maranhense, de dezoito anos de idade,
casada, meretriz, não-alfabetizada, residente na Rua 28 de Julho, nº 483, em São Luís,
Estado do Maranhão. Ela presta declarações ao Chefe de polícia Flávio Bezerra sobre a
acusada de prática ilegal da medicina Maria Pereira de Sousa. Em seu depoimento, ela
tornou verdadeiro o depoimento da acusada, afirmando que a mesma a socorreu em
momento difícil por caridade e humanidade, e finalizou alegando que não foi levada a
um hospital por falta de recursos financeiros e por não estar matriculada naquele serviço
médico.
O quarto documento, o Termo de Declarações três, datado de 25 de junho de
1940, relata o depoimento de Filomena Silva, de vinte e cinco anos de idade,
maranhense, solteira, meretriz, residente na Rua 28 de Julho, nº 483, nesta cidade, não-
alfabetizada. Segundo o escrivão, a depoente esteve diante do Chefe de Polícia Flávio
Bezerra e afirmou que no dia nove de junho se encontrava em um quarto da pensão de
Maria Pereira de Sousa quando foi surpreendida pelo chamado da mesma, que se
encontrava no quarto de Ozita Santos. Chegando ao destino encontrou a parturiente
gemendo de dores e vomitando. Em seguida, a acusada lhe teria pedido para que
desarmasse a rede no sentido de fazer uma espécie de forro para que a gestante pudesse
dar à luz.
Em ato contínuo, resguarda a depoente, Maria Pereira de Sousa chamou outra
inquilina, Balbina dos Santos, que a ajudou a fazer o parto. Ela presenciou o momento
do nascimento de uma criança do sexo masculino, porém, logo em seguida, retirou-se
do quarto e não teve a oportunidade de ver quando a acusada cortou o umbigo da
criança. Ao retornar ao quarto, observou que o recém-nascido estava arroxeado,
bastante agitado, arquejante e não chorava, estando ele em um berço vindo da casa da
irmã de Ozita Santos.
No dia seguinte, a criança veio a falecer e, assegurou que Maria Pereira de
Sousa havia feito tudo aquilo em benefício da humanidade, sem visar interesse próprio.
O quinto documento, o Termo de Declarações quatro, datado de 25 de junho
de 1940, discorre sobre o depoimento de Balbina dos Santos, de trinta e oito anos de
idade, maranhense, solteira, cozinheira, residente na Rua 28 de julho, nº 483, São Luís,
Maranhão, não alfabetizada. Ao prestar esclarecimentos, ela reproduz de forma
88
fidedigna ao Chefe de Polícia Flávio bezerra o que já havia sido declarado por Maria
Pereira de Sousa, Ozita Santos e Filomena Silva.
Ela acrescenta ainda que em alguns momentos, até a alimentação da gestante
ficou por conta da acusada Maria Pereira de Sousa e que a ajudou a fazer o parto, mas,
como tinha muito serviço à sua espera na cozinha da pensão, retirou-se logo em seguida.
Ao voltar momentos depois ainda encontrou a criança viva, no entanto, ela estava
arquejante, arroxeada e não chorava.
No sexto e último documento, o Relatório, datado de 06 de julho de 1940, é
relatado o passo a passo do caso ocorrido em São Luís onde a parteira Maria Pereira de
Sousa partejou sem autorização legal a Mulher cognominada Ozita Santos, resultando
na morte do seu recém-nascido.
Ao ser interrogada pelo Chefe de Polícia do Estado do Maranhão Flávio
Bezerra, a parturiente declarou que em indeterminado dia do mês de maio foi despedida
da pensão de Plautilha Castro, localizada em São Luís, em virtude de não mais poder
pagar. Por se encontrar em estado de gestação, procurou a pensão da acusada Maria
Pereira de Sousa para pedir-lhe abrigo, o que lhe ocorreu de imediato ao relatar o que
lhe havia acontecido. A parteira lhe teria estendido de imediato a mão oferecendo-lhe
abrigo e alimentação gratuitamente. No entanto, no dia 07 de junho de 1940, ela estava
deitada em uma rede quando repentinamente uma das cordas que a firmava se partiu
ocasionando a sua queda.
Ela assegurou que no início, nada sentiu, até que na manhã do dia 09 de junho
do mesmo ano, dois dias após a queda, começou a sentir fortes contrações uterinas, e
que essas dores teriam aumentado a partir das quinze horas, ocasionando vômitos.
Nesse momento a parturiente teria chamado por Maria Pereira de Sousa, que assistida
por uma inquilina chamada Balbina lhe socorreu imediatamente. Em ato continuo, após
o desarmamento da rede, fez uma rodilha com a mesma, Ozita Santos entrou em
trabalho de parto, dando à luz a uma criança do sexo masculino que com um tom de
pele arroxeado e arquejando, teria vindo a óbito no dia seguinte.
Flávio Bezerra ouviu as testemunhas que constataram serem verdades as
declarações da acusada, e ainda confirmaram a amizade entre a parteira e a parturiente.
89
Após o depoimento de Ozita Santos, o Chefe de Polícia interrogou a acusada.
Numa tentativa de autodefesa e legitimação da sua profissão de parteira, Maria Pereira
de Sousa asseverou que em sua terra natal já havia feito mais de vinte partos, e que
aprendeu esse ofício com a sua mãe que lhe ensinou a maneira exata de aparar a criança.
Afirmando tudo que antes foi relatado por Ozita Santos, a parteira relatou ainda
o motivo pelo qual não levou a parturiente ao pronto-socorro. Ou seja, Se a tivesse
levado ao hospital, não seria atendida, por isso, o seu socorro se definia como um ato de
humanidade, logo, Ozita Santos não tinha uma moradia condizente com o seu estado de
gravidez, e ainda a tinha como uma amiga.
Algo a ser observado é que as declarações de Maria Pereira e Balbina dos
Santos não fizeram menção à participação de Filomena Silva no Parto de Ozita Santos.
De alguma forma, esse problema torna as conclusões sobre essa documentação um tanto
obscura.
A análise da documentação mais uma vez abre o leque de informações a
respeito da saúde em São Luís. Como foi supracitada no início desse tópico, na década
de 1940, a assistência médico-hospitalar ludovicense caminhava paulatinamente como
no início do século XX. Agora, determinar que esse fator fosse consequência
unicamente da falta de hospitais é mutilar a gama de possibilidades de compreensão dos
fatos.
Pretensões à parte, geralmente as parteiras do Maranhão e, especificamente, em
São Luís, estão ligadas à pajelança. Neste caso, onde, Maria Pereira de Sousa é acusada
de exercício ilegal da medicina, não é feita qualquer referência às práticas mágico-
religiosas do curandeirismo. No entanto, a documentação é imensuravelmente objetiva
ao se tratar de procedimentos médicos que deveriam se prestados pelo serviço público
de saúde, mas, aí é que mora o problema. Como fornecer um serviço público a uma
classe social, já que os serviços médico-hospitalares eram insuficientes á população em
geral?
A acusada responde em alto e bom tom que não procurou um pronto socorro
porque não atenderiam Ozita Santos. Mais que isso, a própria parturiente relata que não
seria atendida por não estar matriculada naquele serviço médico, provavelmente, devido
90
às suas condições financeiras, logo, tais condições refletiam diretamente nas
impossibilidades em geral da população ludovicense menos abastada.
Outro fator a ser considerado é que, ainda que pudessem ir ao pronto socorro,
as pessoas em questão, dentre outras, muitas vezes preferiam ser atendidas em casas de
conhecidos ou em sua própria casa por se tratar de um ambiente familiar. Além disso,
“essa busca estava relacionada na crença da cura.” 132
.
No final do século XIX era muito comum que as pessoas procurassem os
cuidados das parteiras devido à confiança depositada nelas e aos seus cuidados médicos,
logo, a medicina e a farmacopeia brasileira ainda caminhavam lentamente. No
Regulamento Sanitário de 1894 era proibido às parteiras “realizarem algum tipo de
tratamento fora de sua competência” 133
.
Na década de 1940, a realidade no que tange a assistência médico-hospitalar se
mantinha praticamente inalterada, pois, cabia à justiça deflagrar o seu processo de
contenção da sedição social proveniente desse quadro. Neste caso, não somente às
resistências aleatórias ao paradigma estatal, mas, também, às ramificações culturais de
matriz africana. Dessa forma, uma das conclusões gerais observadas ao lermos a
documentação, é de que o inquérito criminal instaurado pela Chefatura de Polícia tinha
como obrigação moral recolher à prisão Maria Pereira de Sousa, pois, a parteira servia
como espelho para que outras pessoas praticassem a ilegalidade.
Ao discorrer sobre a prisão, Michel Foucault, afirma que ela consiste na função
de exercer sobre o indivíduo uma coerção moral, mas, que para isso, a pessoa não se
sinta obrigada a aceitar as suas decisões. É como algo que penetra no íntimo pessoal
sem agredi-lo moralmente, fazendo com que esse poder seja absorvido como algo
inerentemente.
O que é fascinaste nas prisões é que nelas o poder não se esconde, não se
mascara cinicamente, se mostra como tirania levada aos mais ínfimos
detalhes, e, ao mesmo tempo, é puro, é inteiramente “justificado”, visto que
pode inteiramente se formular no interior de uma moral que serve de adorno
a seu exercício: sua tirania brutal aparece então como dominação serena do
Bem sobre o Mal, da ordem sobre a desordem134
.
132
SACRAMENTO, Adriana de Jesus. Feitiçaria e curandeirismo nos processos crimes- Caetité/BA-
1920 e 1939. Op. Cit. P. 2. 133
BAIMA, Carlúcio de Brito. “Toda cura para todo mal”: discurso médico e práticas curativas no
tratamento de doenças e na conservação higiênica de São Luís (1880-1905). Op. Cit. P. 60. 134
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Op. Cit. P. 73.
91
De qualquer forma, seja pela ineficiência médico-hospitalar, ou, pela fé no
curandeirismo, o que se pode perceber é que as inovações moderno-científicas,
ancoradas em terras brasileiras ainda sofriam resistências devido à carga cultural da
maioria da população. A força autoritária do Estado que “impõe” resistências aos ritos
costumeiros da população é a mesma que os legitima, ao menos, imparcialmente. Assim
como a existência humana se constitui como a primeira vida, em Thompson, “O
costume era a segunda natureza do homem” 135
e, a primeira natureza do curandeirismo.
135
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional
Op. Cit. P. 14.
92
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após o vislumbre pelo universo mágico-religioso da cura era necessário
investigar detidamente esse fenômeno no sentido de se estabelecer as devidas
conjecturas. Nesse sentido, foi de real necessidade delimitar um espaço e um tempo,
pois, os conflitos referentes a essa abordagem sofrem influências de ordem
sóciocultural.
A principal problemática se conteve em apontar alguns antagonismos da
formação histórico-social de São Luís, elencar algumas contradições no processo de
coerção dos “atos abomináveis”, evidenciar a existência de uma relação de força entre a
medicina oficial e o curandeirismo, e apregoar algumas influências do fenômeno
religioso e dos costumes na cristalização desse universo de representações.
Lançados os devidos fundamentos, a nossa intenção foi proporcionar
veementemente a percepção da existência de um mundo alinhado e, ao mesmo tempo,
independente do proposto pelo Estado. De forma alguma pretendemos nos desfazer do
paradigma governamental, no entanto, foi de real importância indicar algumas
evidências da ação dos mecanismos de coerção étnico-cultural, logo, foi percebido que
esses braços do governo estavam prontamente afiados para subsidiar o desenvolvimento
de uma sociedade aos moldes das nações europeias.
Sem dúvida alguma, cada característica anteriormente mencionada poderia
satisfazer as necessidades básicas desse trabalho. No entanto, o nosso intento é de
proporcionar uma gama de possibilidades de informações e entendimentos que possam
ser desenvolvidas cuidadosamente em trabalhos futuros. Pois, as relações de poder, o
fenômeno religioso, e os ritos costumeiros são grandezas que podem ser discutidas
numa esfera mais abrangente, cada uma.
No maranhão, sobretudo, em São Luís, na primeira metade do século XX, a
população ainda procurava os terreiros de cura com muita frequência. Parece-nos que o
processo de modernização não alcançou o alvo colimado, principalmente, o que
concerne aos procedimentos médicos-científicos. O que se via ainda eram antagonismos
práticos e teóricos na política e na sociedade, pois, ao mesmo tempo em que se tentava
exterminar os terreiros, permitiam, também, a sua multiplicação.
93
Essa desproporcionalidade se deveu grandiosamente a vários fatores, dentre
eles, à permissividade corriqueira do exercício da medicina, até então, ilegal, a
determinados extratos sociais privilegiados como algumas autoridades policiais,
judiciárias, e abastados, ao afastamento da gente de santo para as periferias ou interiores
da Ilha do Maranhão, à crença na cura, e finalmente, mas, não o mais importante, à
carência de recursos médico-hospitalares.
O Estado tentou exercer de várias formas a sua autoridade diante do
curandeirismo praticado por grande parte da população. Pois, foram nessas relações que
ele pretendeu uma queda de braço no sentido de dominar as práticas ancestrais da gente
mestiça, e utilizou alguns mecanismos que, na lógica de Foucault, podemos chamar de
micropoderes.
A imprensa lançou mãos aos ataques contra os pais-de-santo e à gente pobre
que utilizava a terapêutica afrodescendente. Foram várias manifestações de preconceito
e discriminação que visava à coerção dos “atos abomináveis”. Os articulistas, moldados
numa lógica eurocêntrica, vinham em apoio à classe dominante e abastada da cidade e
reagiam, nem sempre, uniformemente, mas, paradoxalmente, contra as manifestações
religioso-culturais de matriz africana, alegando, serem estas, resquícios de um passado a
ser esquecido.
O processo-crime de Amélia Rosa, discutido por Mundicarmo Ferreti, é um
excelente exemplo para se pensar como eram tratadas as manifestações supracitadas, no
século XIX. Ela assegura que, em menor intensidade, houve inicialmente uma tentativa
de punir Amélia Rosa e as suas assistentes por maus tratos à escrava Joana. O que se
pretendia era conter e punir os atos “torpes” da curandeira, pois, numa sociedade como
a de São Luís de final de século XIX, tais manifestações se tornavam antagônicas ao
processo modernizador instaurado a partir da segunda metade desse século.
Cabia à força policial levar ao cárcere as pessoas que corrompiam essa
realidade, mas, o que se via era a inserção de agentes policiais nas rodas de “macumba”
disseminada por São Luís. Alguns oficiais, assim, como, parte da elite ludovicense,
compartilhavam do mesmo universo da encantaria afro-indígena maranhense. Essa
situação se inscreve perfeitamente na primeira metade do século XX, onde boa parte da
população ainda recorria frequentemente aos trabalhos dos pajés.
94
Grande parte das literaturas evidencia a carência de assistência médico-
hospitalar em São Luís como uma das principais causas da grande procura pelos
terreiros de cura. Isso nos parece verdade, mas, não unicamente a verdade, pois, a
crença na fé se apresenta, também, como um dos grandes obstáculos aos intentos do
Estado.
A pajelança estava associada visceralmente ao curandeirismo, pois, para
muitos literatos e, para a população irradiada no difuso universo mágico-religioso de
São Luís, pajelança afro-indígena e cura eram sinônimas. E longe de evidenciar as
liturgias dessa dualidade, a nossa intenção foi relacioná-la ao engessamento de um
universo paralelo agregado e, ao mesmo tempo, independente do Estado.
Christiane Motta desenvolve perfeitamente essa ideia ao enfatizar que na
Baixada maranhense, especificamente, na cidade de Bequimão, a população se apropria
dessa prática com o intuito de representar a dualidade saúde-doença. Em suas linhas
gerais, tanto a saúde, quanto, a doença para essas pessoas são resultantes do
rompimento de normas inscritas no mundo material e no universo sobrenatural.
Algumas doenças seriam causadas por desrespeito a algumas praticas que deveriam ser
levadas a sério com o mundo encantado, no entanto, outras doenças eram causadas pela
influência biológica. Algumas vezes elas estavam inscritas na amálgama das duas
denominações, da material e da sobrenatural.
Na tentativa de dar um tom mais enérgico a essa discussão, António Evaldo
Almeida Barros destaca que a associação da cura tradicional à pajelança não está ligada
inteiramente à resistência da gente pobre e mestiça do maranhão. Segundo ele, resumir a
pajelança à simples resistência seria mutilar uma extensão de possibilidades de
entendimento.
Além da crença na cura, as perseguições não são encontradas nas mesmas
proporções em todo o Estado. Haveria uma dinâmica que pretendia extirpar da
sociedade essa prática religiosa, e a força da repressão se acentuava nas cercanias da
capital e se amenizava em direção ao interior. E mais, esse processo se localizava com
maior ou menor intensidade em determinadas frações temporais.
Muitas vezes, as batidas policiais eram assessoradas por agentes que em graus
diferenciados pretendiam exterminar os terreiros de pajelança. De acordo com o autor, a
95
necessidade de coagir os pais-de-santo era mais uma medida em resposta às
reinvindicações das classes dominantes que não queriam se avizinhar com os barracões
de cura.
As manifestações de intolerância religiosa, também são percebidas num embate
entre a polícia e o poder judiciário. Ao analisarmos o pedido à ordem de habeas corpus
de Demétrio Santos, José santos, Raimundo Buna e Simão Rodrigues, acusados de
exercício ilegal da medicina, pudemos notar o grau de intolerância da polícia
ludovicense ás práticas de pobre. O Chefe de Polícia do Maranhão Flávio Bezerra
atesta que surpreendeu os acusados exercendo a medicina ilegal, logo, não estavam
licenciados para tal ofício.
Ainda que os acusados implorassem que não estivessem praticando o ato
“torpe” foram recolhidos arbitrariamente, sem um prévio julgamento às dependências
da Penitenciária do Estado. Vindo à contramão, o presidente do Tribunal de Apelação
do Estado Raimundo Publio Bandeira de Mello, ao examinar o pedido de habeas corpus
impetrado pelo advogado dos acusados, alegou que eles não foram surpreendidos em
exercício ilegal algum, pois, ambos, juntamente com outras dezenas de pessoas,
estavam em ato de diversão, expressando a sua religiosidade em meio à gente pobre da
periferia da cidade.
Em ato contínuo, foi possível apreender no inquérito criminal contra a parteira
Maria Pereira de Sousa, consequências semelhantes às dos acusados acima. Na tentativa
de salvar a vida de Ozita santos, Maria pereira foi acusada, também, de exercício ilegal
da medicina. Seu ato foi interpretado por Flávio Bezerra como uma infração aos artigos
156, 157 e 158 do Código Penal republicano que proibia o exercício ilegal de qualquer
profissão.
Ainda que pudessem pagar por atendimento médico-hospitalar, as classes
privilegiadas optavam pelo atendimento médico a domicílio. Eles não desejavam
abandonar os confortos proporcionados pelo ambiente familiar.
As práticas e costumes dos curandeiros e da gente pobre de São Luís, não
atendiam unicamente ao propósito da resistência social, pois, estavam inscritos num
universo ritualístico ancestral que caminhava concomitantemente com o paradigma
social vigente. O ato de fazer oferendas aos santos e caboclos, de participar dos festejos,
96
de cumprir com as obrigações religiosas, de entoar cânticos, de fazer e receber os
benzimentos, de fazer porções como as garrafadas e os banhos, de ir frequentemente ao
terreiro de cura em busca de soluções medicinais, de pedir proteção aos encantados,
dentre outros costumes satisfaz a percepção do grandioso universo de representações
inerentes ao curandeirismo ou pajelança.
Foram nos terreiros de “macumba” que pessoas de variados níveis sociais, de
variadas cores e etnias conseguiram ver as coisas sagradas e profanas por um mesmo
ângulo. Eram nesses locais que se sentiam membros de uma mesma família, de uma
mesma roda social, onde compartilhavam de interesses mútuos.
Para se orientarem em um período de rápida mudança social, muitas pessoas
sentem a necessidade crescente de encontrar suas raízes e de renovar os laços
com o passado, em especial o passado de sua comunidade – a família, a
pequena cidade ou aldeia, a profissão, o grupo étnico ou religioso136
.
Por ser uma terra imensuravelmente mestiçada, onde, se insere uma gama de
práticas e costumes herdados dos africanos e ameríndios, seria pertinente se pensar o
quão era difícil estabelecer normas baseadas no modelo de Estado europeu. A imprensa,
a polícia, dentre outros mecanismos de coerção, se tornam exemplos práticos desse
desnivelamento político-social.
136
BURKE, Peter. História e teoria social. Op. Cit. P. 38.
97
FONTES E REFERÊNCIAS
FONTES
JORNAL A PACOTILHA. Pajelança. São Luís, 03/07/1915.
______. Pajelança. São Luís, 05/07/1915.
______. Pajelança. São Luís, 07/07/1915.
JORNAL O GLOBO. Tire o pajé da roda: Preso o macumbeiro n° 1 da cidade. São
Luís, 30/04/1940.
______. A polícia dá uma batida na macumba do Cutim Grande. São Luís,
30/07/1941.
______. Macumba! Em pleno dia, no Anil. São Luís, 12/08/1941.
______. A macumba está sendo praticada abertamente no interior da ilha. São
Luís, 9/06/1947.
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100
ANEXOS
Artigos do jornal A Pacotilha transcritos
A Pacotilha. São Luís, 03/07/1915.
Pajelança
Disseram-nos que na quinta do Srº Manoel Castro, à rua da boiada, reúnem-se todas as
noites indivíduos, que tomam parte numa meza de pajelança, sob a prezidência do pajé
José de tal, vulgo José pé de bola.
A frequência é sempre enorme, devido à fama desse pajé que é tido em conta de bom
médico, tais as curas que tem praticado.
Pedimos a atenção da autoridade policial para o caso, afim de serem tomadas as
providencias devidas.
A Pacotilha. São Luís, 05/07/1915.
Pajelança.
Parece que os pajés estão em plena atividade.
Noticiamos, no sábado, a existência de um ao caminho da Boiada.
Disseram-nos agora que na caza nº 23, da rua de S. Pantaleão, ha também qualquer
panacéa idêntica.
Durante o dia os vizinhos são incomodados. Queimam-se chifres, breu, enxofre, penas
de aves, etc.
E’ um horror!
Pedimos a atenção da policia.
A Pacotilha. São Luís, 07/07/1915.
Pajelança.
Informaram-nos que por traz do hospital militar moram dois indivíduos de cor preta, de
nomes Porfírio e Angelo, que vivem a engodar os ingenuos, praticando feitiçarias.
Os seus dias de consultas são os sábados, à noite, e os domingos, de manhã e à noite.
Durante as funções, têm a palavra a fumarada e o maracá.
Porfírio que é o mais velho e, por isso mesmo, pai do terreiro, vira santo do fundo: o
são verequete, e Angelo, carrega são João.
Hontem, à noite, efetuou-se uma meza de pajelança à rua 18 de Novembro, na caza que
fica quase em frente ao sitio onde foi a escola dos educandos artífices do Estado, e na
qual mora Roza Guarda-mór.
Essa sessão foi bastante concorrida.
101
Artigos de jornais O Globo transcritos
O GLOBO. São Luís, 30/04/1940. P. 1-6.
Tire o pajé da roda: Preso o macumbeiro n° 1 da cidade.
A superstição em nosso meio é uma das formas mais esquisitas de exterioridade
religiosa.
Povo tradicionalmente religioso, muitos maranhenses, por atavismo ou outros quaesquer
laços que não veem ao acaso, nesta simples reportagem, para as suas manifestações de
fé, não se lhe dão de frequentar “sessões em que macumba e participar de outras
extravagantes reuniões em que indivíduos anormaes lhe exploram a sua crendice
exagerada.
Denuncia
Sabaddo, a tarde, o dr. Flávio Bezerra, chefe de Policia do Estado, recebeu uma
denuncia de que nas mattas do “Olho d’Agua” no logar Angelino, se realizavam, ,
frequentemente, “sessões” de pajelança.
O denunciante acrescentava que as “sessões” eram concorridíssimas e frequentadas por
muita “gente boa” da cidade...
A acção da Polícia
Sempre zeloso e cumpridor dos seus deveres, o dr. Flávio Bezerra, que vem, de há
muito, combatendo eficazmente os macumbeiros que infestam a cidade, organizou uma
diligencia composta por quatro investigadores e que partiu às 23 horas para o “Olho
d’Agua”, chefiada pelo commissário Benedicto Valeriano Ribeiro.
E a diligencia foi coroada de exito absoluto.
Sempre activa
Sempre activa e observadora, a nossa reportagem pode descrever, com todas as
minucias o que então se passou.
Sessão formada
A’ meia noite em ponto o “sessão estava formada.
A’ meia noite em ponto a “ses- de silêncio. Aguardava-se a chegada de Demetrio
Santos, o pagé.
Ele chegou. Veste uma blusa de gorgorão verde, casquette da mesma fazenda, um
cordão branco e encarnado sobre os ombros e tem um maracá nas mãos, cujos
“balangandans” se encontram na Policia.
Acompanham-no acolytos: José Santos, Raimundo Bona e Simão Rodrigues.
O macumbeiro olha para o alto. Bate com o pé esquerdo no chão, invocando o Ogun. E,
de subido agita o maracá, num gesto frenetico.
“Curando”
102
Cambaleando, contorcendo-se o pagé aproxima-se do logar onde o pedreiro Ludgero
Leite se encontra deitado.
Ludgero é o doente.
Vai ser “curado”
Tudo estragado
Demetrio chegou junto ao doente, sempre agitando o maracá. Braços e corpo
movimentando-se num rythmo verdadeiramente bárbaro.
E... quando estava “benzendo” o “cliente” batendo-lhe com o maracá na cabeça, a
polícia veio estragar tudo!
A diligencia organizada pelo dr. Flávio Bezerra tinha chegado.
Houve correrias e atropellos. E o pagé, com os seus acolytos e o doente, foram presos
em flagrante!
Cem espectadores
Cerca de cem pessoas assistiam à “sessão”. E entre ellas, “gente boa”, algumas de
responsabilidade, cujos nomes temos anotados, e que segundo nos disseram, são
“habituées” dessas reuniões... apezar delas se realizarem dentro do matto, a quinhentos
metros de distancia da estrada.
Na Policia
Ontem, pela manhã, o dr. Flávio Bezerra mandou vir o macumbeiro à sua presença. E
interrogou-o:
- Seu nome?
- Demetrio Santos.
- Profissão?
- Lavrador.
- Só?
- E “curador” também...
- E que é que você cura?
Demetrio Santos toma uns ares importantes:
- Eu curo “moléstias naturaes”
O dr. Flávio sorri:
- Pois eu quero que você me “cure” de uma grave moléstia que eu tenho...
E o pagé, rápido:
- A de não gostar de pagelança...
103
- Qual é, doutor?
- Pois se é assim, pode ficar certo de que vou curá-lo, doutor...
- sim; porém, antes, você vai ser identificado e aguardará processo, no xadrez
respondeu-lhe o Chefe de Polícia.
E lá se foi o macumbeiro recolido às “grades” de onde tão cedo Ogun não o livrará...
“Os medicos não valem nada”
O Chefe de Polícia manda buscar Ludgero Leite. E pergunta-lhe:
- E você, o que estava fazendo?
- Eu estava sendo “curado”.
- De que molestia?
- Rheumathismo. Há muito tempo que ando sofrendo. Procurei varios médicos aqui na
cidade. Qual, doutor! Os medicos não valem nada! não “deram volta” com a minha
doença! E agora, com “mestre” Demetrio é que já estou quase bom...
“Solte o pagé!”
O chefe de Polícia, está deveras escandalizado.
Pode-se afirmar que uma verdadeira multidão de pessôas de destaque em nosso meio,
compareceu à Chefatura, desde domingo, a pedir, a rogar que o pagé Demetrio Santos
seja solto.
Todas affirmam estar em divida para com o macumbeiro, que já as curou desta ou
daquella doença...
Os pedidos chovem:
- Solte o pagé, doutor Flávio. Mas o Chefe da Segurança Publica foi inflexivel. Não
attendeu às supplicas adescabidas dos supersticiosos “clientes” de Demetrio.
Este ficou, então, descansando no xadrez.
E os seus prosélitos, de certo, hão de star em casa, a esta hora, suplicando a todos os
“paes de santos:” – “Tire o pagé da roda!”
E a voz da razão responde: - “Não tiro!”.
O GLOBO. São Luís, 30/07/1941. P. 6.
A polícia dá uma batida na macumba do Cutim Grande.
É incontestável, digna de aplauso a atitude do dr, Flávio Bezerra à frente da nossa
Polícia Civil.
Medidas acertadas, são, diariamente, tomadas por aquelas autoridades que não mede
sacrifícios no sentido de bem zelar pela sociedade maranhense.
104
Ontem, por exemplo, o dr. Flávio Bezerra organisou e chefiou pessoalmente uma
deligência ao interior da ilha, na qual se fez acompanhar do tenente João Paulo e oito
investigadores.
Essa diligência tinha por fim fazer cessar uma movimentada macumba que se vinha
praticando no logar Cratéus, ao Cutim Grande, dirigida por Altina de Sousa, esposa de
Agostinho Sousa, ali residentes.
Os “trabalhos” de cura iam bem animados, quando as 11 horas da noite de ontem, o dr.
chefe de Polícia e a turma de policiais faziam o cerco da casa onde era realizado o
“brinquedo”.
Não escapou ninguém das vinte pessoas que lá se encontravam inclusive o soldado nº
341, da Força Policial, do destacamento do Anil, que entusiasmado, assistia aos
“prodígios” da macumbeira.
Interrogado, declarou o referido policial, ao chefe da Segurança, que ali se encontrava
com o consentimento do comissário José Gomes Filho encarregado do Pôsto Policial do
Anil, o qual tinha plêno conhecimento e, de certo modo, prestigiava o “culto”.
Depois de efetuar a prisão dos responsáveis por aquela prática nociva, o dr. Flávio
Bezerra apreendeu, no local da “cura”, o seguinte material: 1 faixa vermêlha com lêtras
brancas, contendo os dizeres: “Save o Barão de Coré”; 1 faixa branca com lêtras
encarnadas, ostentando a frase: “Salve o Rei São Sebastião”; 1 faixa vêrde com lêtras
amarelas, com a inscrição: “Salve o Príncipe Oliveira”; 1 manto de setim branco; 2
taquaris, 1 chicote, 1 pandeiro, 3 violões, 1 cavaquinho, 2 maços de velas, 3 garrafas de
cervêja, 4 de cachaça, 1 de vinho de genipapo, 1 maracá, 2 livros de preces, 2 cúias, 11
charutos, 1 almofada e tabaco moído.
E para maior agravante da situação, assistiam, à pajelança, menores de 11 a 17 anos de
idade.
Damos, a seguir, a relação dos presentes à “clínica” de d. Altina: - Maria José Rocha,
doente; Miguel silva, Francisca silva, de 17 anos, doente; Martinho Fernandes, doente;
Valentim Paulino Fernandes, Raimundo Santos, 14 anos, assistente; Marcelina Silva, 11
anos, assistente; Raimundo Santos, José Penha, Agostinho de Castro Costa, Maria
Cordeiro, Manoel dos Santos, Maria Azevêdo, Maria da Conceição Pires, Danilo
Castro, Francisco A. Dias, José Ribamar Pereira, Nidio Passos dos Santos, doente e o
soldado, também doente.
O dr. Flávio Bezêrra, ilustre chefe de Polícia, que vem dando tenaz combate à
macumba, ao ter conhecimento de que o Comissário José Gomes Filho permitia e até
mesmo, amparava a pajelança de Cratéus, já, permitindo o comparecimento de policiais
já levando pessoas conhecidas ao “brinquedo”, s. s. procurou, desde então, averiguar o
fato, terminando, ontem, por constatar a culpabilidade daquele funcionário em consentir
na prática perniciosa de tão condenável profissionalismo.
Adiantou-nos o dr. Flávio Bezerra que, hoje mesmo, dispensará aquele policial da
comissão de encarregado do Pôsto do Anil, transferindo-o para a Central de Polícia.
O GLOBO. São Luís, 12/08/1941. P. 3.
Macumba! Em pleno dia, no Anil.
105
Os macumbeiros do Anil, andam, agora, com “dôr de cabêça”, com as medidas adotadas
pelo chefe de polícia, para dar combate a essa verdadeira praga social.
Ante-ontem, por volta das 17, 30 horas, investigador Lemos, acompanhado por dois
outros policiais, meteu-se pelo caminho do Sacavém procurando os curandeiros obtendo
êxito na sua excursão, pois, decorrida meia hora, foi surpreendido no lugar denominado
“Floresta”, o individuo João Pereira da Silva, em trajes de rei na prática de tão abusivo
“metier”, assistido por vários “crentes” e “doentes”.
Com a chegada do investigador Lemos o “pajé” quis correr, sendo, porém, em vão a sua
tentativa.
Prêso o chefe, fôram encontrado em seu poder e conduzidos a Delegacia, 1 garrafa de
cachaça, 2 maços de velas e 1 maracá.
O “Pai do Santo”, que estava sensivelmente embriagado, foi conduzido para o pôsto de
Anil e dali, transportado para a central de polícia.
O GLOBO. São Luís, 9/06/1947. P. 4.
A macumba está sendo praticada abertamente no interior da ilha.
A macumba está sendo praticada abertamente no interior da ilha de São Luis. Foi o que
constatou, ontem, a nossa reportagem. As casas de pajelança são conhecidas de todos e
os curandeiros chegam mesmo ao cumulo de afirmar que tem licença da polícia para
desenvolver as suas atividades.
Pouco sabemos, nós os civilizados que nos libertamos das perigosas superstições dos
nossos ancestrais – do índio e do preto –, sabemos que a macumba é um mal social, de
profundas raízes. Tanto crer nos poderes sobrenaturais de um “pagé” um caboclo
ignorante do interior da ilha, como muitos cidadãos de gravata, bem colocado na vida,
aqui na cidade. Assim, a porta da tenda de exploração que muitos “curandeiros” da
nossa ilha já foram vistos automáveis de luxo. Gente de dinheiro, pessoas, mesmo de
certo destaque na sociedade, ao que sabemos, frequentam os centros de “pajelança”,
sempre que precisam recorrer aos “curandeiros”. E assim, a macumba encontra campo
aberto ao seu desenvolvimento, protegida por homens influentes, profundamente
supersticiosos.
Visitando um dos maiores focos
A reportagem de “O Globo” visitou, ontem, um dos maiores focos de macumba do
interior da ilha, localizado nas mediações do sítio do “físico” penetramos nos
“domínios” de “Zé Malaquias”, “curandeiro célebre”. Eram quase 18 horas, quando
chegamos a tenda de exploração de “Zé Malaquias”. A casa fica à margem da estrada.
Dansava-se o velho “tambor de mina”, num salão que ocupava dois terços da casa. No
tambor vimos uma criança de aproximadamente 12 anos. Havia no meio da sala um
grupo de dansarinas – duas velhas e umas mulheres nonas – formando um circulo. De
homem, só havia “Zé Malaquias” fumando charuto e requebrando-se qual uma
dançarina de cabaré. Vestia uma pijama de seda laquê encarnada. Uma pijama igual
àquelas usadas por mulheres de pensões livres.
Na sala secreta do falso pagé
106
A dança ia animada com o seu ritmo meio indígena e meio africano. Uma crioula,
moçoila de uns 17 anos, porfiava com Malaquias. Notava-se alguma coisa de sensual
nos seu gestos, ao som do “tambor de mina”. A criança, que tocava um dos tambores,
não olhava para ninguém: estava concentrada no seu trabalho.
Procuramos um garoto, que estava junto à porta de entrada, e dissemos-lhe que
desejávamos falar com “Zé Malaquias”. O “curandeiro” veiu até nós. Olhamo-lo de
perto, detidamente. Um bigodinho petelante, mal feito. Rosto magro, baixo, franzino,
feio. Fisionomia de um doente sexual. Levou o repórter a uma sala secreta, onde
também ficam os aposentos do “pagé”. O repórter sentou sobre um caixão de querosene.
O quarto era estreito. A um canto uma mulher deitada em uma rede suja. Em outro
canto, onde estavam “Zé Malaquias” e o repórter, havia uma imagem de santo.
Travou-se o seguinte diálogo:
O repórter: - “ZÉ Malaquias” é você que está fazendo cura?
“Zé Malaquias”, desconfiado: - cura, não! Aqui eu faço “tambor de mina”, com
permissão do Chefe de Polícia.
O repórter: - Espera, “Zé Malaquias”, eu sei que tu “curas”. Vim aqui para isso. Minha
mulher me largou. Estou só, quero que ela volte pra mim. Por quanto tu fazes o
“serviço”?
“Zé Malaquias” - Tu vem de algum sitio?
O repórter - Não. Moro na cidade.
“Zé Malaquias” – Quando ela te largou?
O repórter – Há um mês.
“Zé Malaquias – Quando tu pode vir aqui?
O repórter – Domingo.
“Zé Malaquias” – Não. Tu vem na quarta-feira à noite, que eu faço o “serviço”.
O repórter – está certo, eu venho quarta-feira à noite.
Ao sair da sala secreta com o “curandeiro”, o repórter fez algumas perguntas à mulher
que estava deitada numa rede?
- A senhora mora aqui?
- Não. Estou passando alguns dias.
A mulher tinha um aspecto doentio, o rôsto pálido, roupa suja, olhar e gestos esquisitos.
Quis o repórter fazer mais perguntas, porém, “Zé Malaquias” não deixou. Insistiu com o
repórter para que saísse do quarto, dizendo que aquela mulher viera da colônia dos
psicopatas.
Licença da Polícia
107
“Zé Malaquias”, depois, mandou uma moçoila buscar uns papéis e mostrou-nos a
licença da Polícia para o funcionamento do “tambor de mina”. A licença dizia mais ou
menos assim: “Crescêncio Alves tem licença para dansar “tambor de mina” nos dias 29,
30, 31, 2 e 3, tendo pago a taxa exigida por lei”. Era duas licenças, uma datada de maio
e ambas contendo a assinatura do sr. Paulo A. Cunha, sub-delegado do João Paulo.
Crescêncio Alves é o pai de Malaquias, segundo nos afirmou êste.
Ficamos, então, sabendo: “Zé Malaquias” tem licença para dansar “tambor de mina” e
paga imposto, como qualquer dono de baile. Dai dizer que tem patente.
Quando examinamos os documentos apresentados por: Zé Malaquias” , várias pessoas,
todas praticantes da macumba, cercaram-nos, com um olhar apreensivo, como se
fossemos autoridades policiais. “Zé Malaquias” tranquilizou a todos, dizendo,
referindo-se ao repórter: “Ele também é da macumba”...
Uma pose para a nossa objetiva
Quibemos bater uma fotografia do “curandeiro”. “Zé Malaquias” deu um sorriso
vaidoso. Quiz ser fotografado com algumas jovens macumbeiras. Batemos a chapa. Mas
já havia pouca luz e não dispúnhamos dd lampada de magnésio. Apenas tínhamos e mão
uma pequena “Codack”. Se prestar fotografia, estamparemos em mão uma pequena
“kodack”. Quadro pitoresco colhido em um dos maiores centro de pajelança da nossa
ilha.
A licença da polícia fomenta a macumba
Não há a menor duvida de que a licença pela policia para que se pratique o “tambor de
mina” fomenta a macumba. E isso porque onde há o “tambor de mina” há fatalmente a
macumba. Uma cousa não existe sem a outra; pelo que não se pode considerar o
“tambor de mina” uma diversão como outra qualquer. E, ao contrário, um meio de
exploração torpe, de depravação de costumes. “Zé Malaquias” tem todas as
características de um doente sexual, como já dissemos. Vive de explorar os
supersticiosos. Não trabalha e, segundo nos afirmaram, tem os seus amantes. Várias
crianças que assistem ao “tambor de mina”, estão crescendo naquele ambiente sórdido,
foco de prostituição, verdadeira escola do crime.
Enquanto isto, não há uma escola primária para mais de 60 crianças que habitam aquela
zona onde os pagés montaram a sua tenda de exploração.
O governo está com um problema sério, que se agrava dia a dia, com a licença dada por
autoridades policiais, como o sub-delegado do Anil, para a prática do “tambor de mina”.
No entender da gente ignorante, a macumba é uma cousa legal como outra qualquer. E
há rasão de se pensar assim.
O GLOBO. São Luís, 22/11/1947. P. 4.
O Chefe de Policia descobre um foco de macumba no João Paulo.
Por várias vezes temos nos ocupado do problema da macumba em São Luis. A feitiçaria
tem se desenvolvido consideravelmente, constituindo um meio de exploração de
indivíduos perniciosos que se localizam em pontos diversos do interior da ilha e mesmo
em alguns bairros da nossa capital. Os “pagés” são procurados por gente das mais
diferentes classes sociais, por todos aqueles que se deixam dominar por velhas
108
superstições. E, assim, os “curandeiros” fazem da macumba a sua profissão. Moram
sempre numa casa em que há uma grande sala para a dansa do “tambor de mina”. Há
muita cachaça, e a festa sempre se estende até a alta madrugada. Em uma visita que
fizemos a um dos focos de macumba do interior da ilha – conforme reportagem já
publicada por este vespertino – vimos jovens de 17 a 18 anos na festa do “tambor de
mina”, requebrando-se numa festa dirigida pelo “pagé” Zé Malaquias que fumava
cachimbo e estava vestido com uma pijama de seda laqué encarnada. A presença dessas
jovens mostra que o “tambor de mina” é um foco de prostituição. Os “pagés” usam o
“tambor de mina” para despistar as autoridades. Quando chegam pessoas estranhas, eles
afirmam que lá não se nenhuma macumba, apenas se dansa o “tambor de mina”, com
licença fornecida pela Policia.
O Sr. Homero Brauna descobre um foco de pajelança
Em face de uma denuncia, o sr. Homero Brauna titular da pasta da Segurança Publica,
de, anteontem à noite um bordo pelo João Paulo, descobrindo um foco de pajelança, à
rua da Cerâmica. Pouco depois das 23 horas, o Chefe de Policia deu com a casa do pagé
Pio Fernandes, conhecido por dr. Pio. Nunca se perguntou, no bairro, de que êle é
doutor. Mas, não é preciso. Todos sabem: é doutor em feitiçaria.
Um livro curiosíssimo
O Chefe de Policia não surpreendeu, infelizmente, o “pagé” em função. Estava tudo
calmo e não havia estranhos. Após uma hábil conversa, o sr. Homero Brauna conseguiu
apreender um livro curiosíssimo, contendo o nome de muita gente importante da cidade
– gente a quem devia o feiticeiro fazer mal, que seria bem remunerado. Algumas
pessoas cujo nome estava no livro deviam desaparecer, outras separar-se da família.
Enfim, estavam catalogadas no livro pessoas odiadas e de quem seus inimigos queriam
vingar-se, fazendo através do poder sobrenatural do “pagé”, as piores maldades.
Não vimos o livro, mas, ao que nos deu a entender o chefe de Policia, a divulgação do
conteúdo deste livro provocaria, sem duvida, um escândalo social.
“É a minha profissão”
O “pagé” Pio Fernandes é cego e aleijado. Declarou ao sr. Homero Braúna , ao ser
interrogado sobre as suas atividades na macumba: “É a minha profissão. Vivo disso,
mas não faço o mal. Só faço o bem. Trabalho para fazer casamento e reatar amizades,
unir maridos e esposas que se separaram”.
Um problema sério
Não resta duvida que o caso da exploração da macumba é um problema serio. A Policia
o que, no máximo pode fazer é prender os exploradores da superstição popular. Mas
continuará a superstição e surgirão outros exploradores. Não faltará quem acredite
nesses profissionais da feitiçaria. O problema de macumba constitue, portanto, um
problema de generalização social. Só dando ao povo uma educação bem orientada –
trabalho longo e penoso para um país onde é enorme o índice de ignorância popular.
Os pagés são protegidos té por pessoas de influencia, que mantêm essa herança atávica
da superstição.
109
Faça, entretanto, a Policia o que lhe compete: prender os exploradores. Pelo mens, a
medida terá a vantagem de restringir a exploração dos profissionais da feitiçaria.
110
Documento Do Tribunal de Apelação do Estado Maranhão
MARANHÃO. Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Tribunal de apelação.
Habeas corpus. Soltura. Habeas corpus nº 393, São Luís, 1940.
COLENDO TRIBUNAL DE APPELAÇÃO:
02 de abril de 1940.
Dentre os direitos assegurados na constituição de 10 de novembro se encontra o à
LIBERDADE, e à SEGURANÇA individual que é condição daquella, a modo que “a
excepção do flagrante delito, a prisão não poderá effectuar-se senão depois de pronuncia
do indicado, salvo os casos determinados em lei e mediante ordem escripta da
autoridade competente”, inscreve aquelle estatuto, no seu artigo 122, inciso 11. Todavia
a Policia desta Capital, à ordem do respectivo Chefe, prendeu e recolheu à Penitenciária
cidadãos pacatos e sem registro no cadastro criminal, ademais sem ordem de autoridade
judiciária, nem occorrencia da circunstancia de apanhados em flagrante pratica d’algum
crime ou mesmo contravenção punível a que não possa responder senão com sacrifício
de sua liberdade.
São victimas de tamanha violência os moradores do logarejo do interior da Ilha
denominado “Angelim” Demetrio Santos, José Santos, Raymundo Buna Simão
Rodrigues, de semelhante maneira privados de sua liberdade e moralmente massacrados
em chronicas policiaes dos jornais desde os primeiros minutos de domingo ultimo (28),
porque áquella hora tomavam parte numa brincadeira regional inofensiva à Ordem
Publica ou social, juntamente muitas dezenas de pessoas qualificadas, todos sem armas,
em perfeita ordem e maximo respeito reciproco, a portas abertas e casa illuminada.
Ora, como documenta o desenvolvido registro de imprensa (jornal incluso), ressalvado
o tom sensacionalista da reportagem, nada havia, na alludida reunião intima e divertida,
que, ao menos, denunciasse proposito criminoso. Era apenas a realidade do meio pobre
em noite de sabbado costumeiramente festiva em toda paragem de convívio humano.
Não havia motivo para a diligencia policial segundo o jornal organizada para aquelle
fim, cujo epilogo é a violência contra a qual o advogado abaixo assignado, por
solicitação dos próprios interessados, e faculdade legal e legitima, vem reclamar o
remédio constitucional de concessão de habeas-corpus, com a qual o colendo Tribunal
mais uma vez affirmará o império da Lei e do Direito.
A prisão dos pacientes, pobres e pacatos lavradores que sem justo motivo ou legal razão
se encontram recolhidos a cellas da Penitenciária como si criminosos fossem, ou sejam,
não corresponde a qualquer dos requisitos de legalidade exigidos no artigo 322 do
Codigo do Processo Criminal, nem se realisou por alguns dos meios prescriptos nos
artigos 272 e 273 desse Codigo. Em taes condições constitue constrangimento ilegal e o
principio do nosso Direito Politico é que “dar-se-á habeas-corpus sempre que algum
soffrer ou se achar na imminencia de soffrer violencia ou coação illegal na sua liberdade
de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar” (não corrente).
Assim effectivamente dispõe a citada constituiçao, numero 16 ao artigo 122. Requer,
pois, o impetrante que o colendo Tribunal de appellação tome conhecimento e processe
o pedido recurso habeas-corpus, concedendo a ordem em homenagem ao Direito e
mercê à justiça.
O impetrante afirma ser verdade quanto allega e espera deferimento.
112
Tribunal de Apelação.
Oficio nº 102.
4 de maio de 40
Exmº. Sr. Dr. Chefe de Policia
Local.
Tendo sido impetrada ao tribunal e appellação, uma ordem de “habeas-corpus” em favor
de Demetrio Santos, José Santos, Raymundo Buna e Simão Rodrigues, sob a alegação
de que os mesmos se encontram presos e recolhidos illegalmente à Penitenciária do
Estado de ordem de V. Excia., venho, em cumprimento ao deliberado pela Primeira
Turma, em sessão de hoje, solicitar de V. Excia. Informações a respeito para que possa
ser julgada a referida ordem de “habeas-corpus”.
Apresento a V. Excia. Os meus protestos de elevada estima e distincta consideração.
Raymundo Publio Bandeira de Mello.
Presidente do Tribunal de Apelação.
113
CHEFATURA DE POLICIA
S. Luis 6 de Maio de 1940.
Exmº Sr. Dez. Presidente do Tribunal de Appellação do Estado.
Satisfazendo a solicitação de V. Excia. Contida no officio n. 102, de 4 do corrente,
tenho a honra de informar que Demetrio Santos, José Santos, Raymundo Buna e Simão
Rodrigues, se acham presos, por terem sido surprehendidos na pratica de pajelança, e
consequente exercício da medicina illegal .
Da oportunidade me aproveito para reiterar a V. Excia. os protestos de minha elevada
estima e grande consideração.
Flavio Bezerra
Chefe de Policia.
114
Tribunal de Apelação. (obs. 2º via)
O Desembargador Raymundo Publio Bandeira de Mello, Presidente do Tribunal de
Appellação.
Pelo presente alvá, indo por mim assignado, mando ao sr. Administrador da
Penitenciária do Estado ou quem suas vezes fize que ponha imediatamente em liberdade
a Demetrio Santos, José Santos, Raymundo Buna e Simão Rodrigues, que ahi se
encontram presos ordem do dr. Chefe de Policia e em favor dos quaes foi pela 1ª Turma
do Tribunal de Appellação, em sessão de hoje, concedida uma ordem de “habeas-
corpus”. O que cumpra na forma e sob as penas da [lei].
Secretaria do Tribunal de Appelação, 6 de Maio de 1940.
Raymundo Publio Bandeira de Mello.
Presidente do tribunal de Appellação.
115
Conclusos
Vistos, relatados e discutidos os presentes autos de habeas-corpus requerido pelo
advogado Dr. Soares de Quadros em favor de Demetrio santos e outros, residentes nesta
Capital.
Mandou, na primeira Turma do tribunal de Appelação, converter o julgamento em
diligência para pedi informação ao Dr. Chefe de Policia.
São Luis, 4 de maio de 1940.
Publio de Mello.
Costa Fernandes relator.
116
Vistos, relatados e discutidos os presentes autos de habeas-corpus, da comarca da
Capital, impetrando o Dr. Soares de Quadros em favor de Demetrio Santos e outros.
Mandou, na primeira Turma do Tribunal de appelação, conceder a ordem impetrada, de
acordo com o parecer verbal do Dr. Procurador Geral do Estado, de vez que os
pacientes se acham presos há dias, sem que, no caso, houvesse prisão em flagrante, e
por despacho de Auctoridade policial competente.
Publio de Mello
São Luis, 6 de Maio de 1940.
Costa Fernandes relator.
117
MARANHÃO. Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Chefatura de Policia.
1º Delegacia Auxiliar. Inquérito Policial. São Luís, 1940.
PORTARIA
Tendo chegado ao meu conhecimento, que a mulher Maria Pereira de Sousa, partejou,
no dia 9 do corrente sem estar devidamente habilitada para tal mister, a mulher Ozita
Santos, resultando no dia seguinte, vir a falecer o recém-nascido, mando que autoada
esta, seja instaurado inquérito a respeito.
O que cumpra-se
CHEFATURA DE POLICIA DO ESTADO DO MARANHÃO, em São Luis, 11 de
junho de 1940.
Dr. Flavio Bezerra.
Chefe de Policia.
118
Termo de declarações.
Aos doze dias do mez de junho do anno de mil novecentos e quarenta, nesta Cidade de
São Luiz do Maranhão, na Chefatura de Policia, presente o Chefe de Policia Doutor
Flavio Bezerra, commigo escrivão abaixo declarado, compareceu Maria Pereira de
Souza, piauyense, solteira, serviços domésticos, de trinta e nove annos de idade,
residente à rua 28 de julho n. 483, sabendo ler e escrever e depois de prestar o
compromisso legal, disse: que é natural do Município de Jeromenia, lugar Juigui, no
Estado do Piauhy, que na sua terra natal fez vários partos, em numero superior a vinte,
pois sendo sua mãe Joanna Freire de Souza, ali residente, parteira proficional , ensinou-
lhe a maneira de aparar crianças; que reside nesta capital há cerca de dezeceis annos,
porem vai continuamente ao logar onde nasceu, passar temporada e em nessas ocasiões
que faz parto naquele lugar; que aqui em São Luiz, até antes de hontem ou traz
honteontem, não tinha feito nenhum parto; que tendo aberto, em Outubro do anno
passao, uma pensão de meretrizes, à rua indicada, onde reside, recebeu há unns dez dias
passados uma inquilina de nome Ozita Santos, que lhe pedira um quarto para morar, que
no mesmo dia em que recebeu a nova inquilina notou de logo que a mesma estava
gravida, circunstancia que outras suas inquilinas observaram também, que por isso
mandou Ozita ocupar um quarto, pelo qual nada cobrava, pois Ozita nada possue e até
mesmo s suas refeições veem da casa de unns seus parentes moradores à rua da Estrella;
que no quarto de Ozita não existe cama, dormindo a mesma em uma rêde, pois não
estava fazendo a vida; que na sexta feira ultima, dia sete do corrente, à noite, Ozita
estava se embalando na rêde, quando uma das cordas que a sustinha, arrebentou e Ozita
cahiu, sentada, batendo as nadegas; que veio a saber dessa queda, no dia dia seguinte à
noite, quando notando que sua inquilina referida estava deitada, com sintomas de se
achar doente, perguntou-lhe o que tinha e ella lhe contou; adiantando porem que não
receiava ter qualquer abalo, visto ainda não ser época de parto; que no domingo, dois
dias portanto da queda, as quatorze horas, achava-se a declarante em seu quarto, quando
Ozita poz-se a gritar pedindo-lhe que a fosse socorrer, pois estava sentindo dores; que
indo em auxilio de sua inquilina, e ao chegar ao seu quarto, encontrou-a vomitando e
extorcendo-se de dores; que indagando o que ella tinha, Ozita lhe respomdeu que estava
com dôres para ter criança; que desmanchando a rêde de Ozita, que se achava armada,
estendeu-a no chão, fel-a deitar-se sobre a rêde e partejou-a, que a sua ação consistiu em
coloca-la meio sentada sobre uma rodilha de pannos, mandando que sua inquilina
Balbina Santos sustentasse Ozita afim de melhor ella poder ter a criança; que acto
continuo ella teve a criança, porem esta nasceu estava arroxiado e arquejante , devido
certamente haver recebido um baque, quando da queda de Ozita, pois desde aquelle dia
a criança deixou de mexer no ventre de Ozita, conforme ella confessou a depoente; que
a unica intervenção da depoente nesse parto, pois marcou o cordão umbilical com a
distancia de treis dedos e cortal-o amarrando-o em uma tira de panno bem limpo, em
virtude de na ocasião, não ter a linha uzada para aquelle fim; que do umbigo a criança
deixou um pouco de sangue ralo, na mesma noite, falecendo na noite do dia seguinte;
que deixou de chamar medico de Serviço do Prompto Socorro, em virtude deles não
atenderem; que o seu acto foi todo de humanidade, pois tinha Ozita em sua residência
em virtude dela não ter onde morar, e ainda ter sido jogada na rua da casa de Plautilha
Castro, residente à rua 28 de julho. Nada mais disse. Lido e achado conforme, vai
assinado pela autoridade, pela depoente, commigo escrivão. Eu, Raymundo de Carvalho
Martins Ferreira, escrivão o escrevi e assigno.
Flavio Bezerra.
120
Termo de declarações.
Aos vinte e cinco dias do mez de junho do anno de mil novecentos e quarenta nesta
Cidade de São Luiz do Maranhão, na Chefatura de Policia, presente o Chefe de Policia,
Doutor Flavio Bezerra, commigo escrivão abaixo declarado, compareceu Ozita Santos,
Maranhense, casada, meretriz, de dezoito annos de idade, residente à rua 28 de julho nº.
483, não sabendo ler nem escrever e depois de prestar o compromisso legal, disse: que
em dias do mez de Maio, cuja data não se recorda, fora despedida por Plautilha Castro,
em virtude de não poder pagar a pensão; que foi ter a pensão de Maria Pereira Souza
aquem contou-lhe a sua situação e pediu que ella o tivesse ali; que Maria Pereira
atendeu, ficando a depoente em um quarto, sem pagar , pois o seu estado não permitia
fazer a vida, pois estava gravida; que ate refeição lhe dava Maria pereira, sem lhe
cobrar cousa alguma ; que no dia sete do corrente, cerca das vinte e duas horas, estava
se embalando na rede quando uma das cordas se partiu, cahindo a depoente no chão,
sentada; que não sentiu nada, apenas a criança deixou de mexer; que no dia seguinte
tambem nada sentiu; que no outro dia pelas quinze horas começou a sentir dores
pequena e por isso nada disse; que passando uma meia hora , começou sentir mais dor e
com vontade de vomitar; que gritando por Maria Pereira que o acordou, esta ao chegar
já encontrou a depoente vomitando; que Maria chamou Filomena Silva, que chegando
pediu que ella tirasse rede e colocasse no chão, para servil-a de cama, e fazendo uma
rodilha a depoente sentou-se, enquanto Filomena a segurava, digo Balbina a segurava
pelas costas; que feito isso a depoente teve logo a criança, que nasceu arroxiada e
arquejante, que Maria Pereira, cortou o umbigo i amarrou-o, que voltou [ilegível] a
criança deixar sangue ralo do umbigo, e no dia seguinte, isto é terça feira a noite ele
faleceu; que deixou de chamar medico porque não podia pagar, a o Prompto Socorro
não atendida em virtude da depoente não ser matriculada naquele serviço; que Maria
Pereira, partejou , fazendo isso, por humanidade, pois tem sido muito sua amiga,
fazendo tudo por si, sem lhe cobrar nada. Nada mais disse. Lido e achado conforme, vai
assignado pela autoridade, pelo Senhor Benedicto Antonio Marques, a caso da
depoente, por ser analfabeta, commigo escrivão. Eu, Raymundo Carvalho Martins
Ferreira, escrivão o escrevi e assigno.
Flavio Bezerra.
Benedicto Antonio Marques.
Raymundo Carvº. Martins Ferreira.
121
Termo declarações.
Aos vinte e cinco dias do mez de junho do anno de mil novecentos e quarenta nesta
Cidade de São Luiz do Maranhão, na Chefatura de Policia, presente o Chefe de Policia,
Doutor Flavio Bezerra, commigo escrivão abaixo declarado, compareceu Filomena
Silva, maranhense, solteira, meretriz, de vinte e cinco annos de idade, residente à rua 28
de julho nº 483, não sabendo ler nem escrever e depois prestar o compromisso legal
disse: que no dia nove do corrente, pelas quinze horas, foi chamada por Maria Pereira,
que se achava num quarto onde estava Ozita, e chegando lá, encontrou Ozita gemendo e
vomitando, tendo Maria Pereira, pedido a depoente que tirasse a rede, e colocasse no
chão o que fez; que Maria Pereira, chamando Balbina, para ajudar a sentar Ozita, em
cima de uma rodilha, e acto continuo Ozita teve uma criança do sexo masculino; que a
depoente retirou-se em seguida; que não assistiu quando Maria Pereira cortou o umbigo;
que quando voltou ao quarto de Ozita, já a criança estava bem roxa e agitada em um
berço que veio da casa da irmã de Ozita; que a criança arquejava e não chorava; que no
dia seguinte morreu; que Maria Pereira, fizera aquilo, sem visar interesse e sim por
humanidade, foi na amizade de Ozita; que de nada mais sabia. Lido e achado conforme,
vai assignado pela autoridade, pelo Senhor Buzalgo, digo Clovis Buzalgo, a caso da
depoente, por ser analfabeta, commigo escrivão. Eu, Raymundo de Carv. Martins
Ferreira, escrivão o escrevi e assigno.
Flavio Bezerra.
Clovis Buzaglo.
Raymundo Carv. Martins Ferreira.
122
Termo de declarações.
Aos vinte e cinco dias do mez de junho do anno de mil novecentos e quarenta nesta
Cidade de São Luiz do Maranhão, na Chefatura de Policia, presente o Chefe de Policia,
Doutor Flavio Bezerra, commigo escrivão abaixo declarado, compareceu Balbina dos
Santos, maranhense, solteira, cozinheira, de trinta e oito annos de idade, residente à rua
28 de julho, nº 483, não sabendo ler nem escrever depois de prestar o compromisso
lega, disse: no dia nove do mez passado, pelas quinze horas, estava trabalhando na
cozinha, da pensão de Maria Pereira, quando foi chamada por esta, que estava no quarto
de Ozita Santos; que lá chegando encontrou Ozita vomitando e com dores, pois esta
estava gravida; que nessa ocasião [ilegível] por Ozita de que esta cahira de rede, e
batera com as nadegas no chão, atribuindo que aquelle estado, foi devido a queda que
levara da rede, quando um dos lado, a corda repartiu; que ajudou Maria Pereira a
segurar Ozita, a qual foi colocada meio sentada em uma rodilha de pannos , tendo ella
tido logo uma criança do sexo masculino; que a criança não chorou, e estava
arquejando; que como tivesse serviço na cozinha , retirou-se, que mais tarde voltou ao
quarto de Ozita, já encontrando a criança no berço; que a criança estava com aspecto de
doente; que no dia seguinte a criança falleceu; que Maria Pereira, é amiga de Ozita, e
fez tudo aqui, por caridade, pois Ozita ali estava sem recurso e nada pagava pela sua
estadia, tendo Maria Pereira lhe dado ate comedoria . Nada mais disse. Lido e achado
conforme, vai assignado pela autoridade, e a caso da depoente ser analfabeta, o Senhor
José Lopes Sobrinho, commigo escrivão. Eu, Raymundo de Carvº. Martins Ferreira,
escrivão o escrevi e assigno.
Flavio Bezerra.
José Lopes Sobrinho.
Raymundo de Carv. Martins Ferreira.
123
RELATORIO
Deu margem à instauração deste inquérito a portaria de Fls. 2, pelo facto de ser Maria
Pereira de Sousa, partejado sem estar autorizada a mulher Ozita Santos, resultando a
vim falecer o recém-nascido.
Ouvida Ozita Santos, mãe do recém-nascido, declarou que, em dias do mês de maio,
cuja data, não se recorda, fôra despedida da pensão de Plautilha Castro, em virtude de
não poder pagar; que por isso procurou a pensão de Maria José Pereira, à qual, expondo
a sua situação, pedira hospedagem, o que lhe foi dado, sem que a depoente pagasse
coisa alguma, inclusive comedoria; que alem de tudo se encontrava gravida, sem poder
fazer a vida; que no dia 7 do corrente estava deitada na rêde, quando uma corda partiu,
caindo a depoente, e batendo com as nadegas no chão; que de começo nada sentiu, até
que no dia 9, pela manhã, começou a sentir dores; que pelas 15 horas, estas aumentaram
e a depoente começou a vomitar, e nesse estado gritou por Maria Pereira, que lhe
acodisse, o que prontamente, fez e chegando ali chamou Balbina, que desarmando a
rêde, colocou-a no chão e fizeram uma rodilha, onde a depoente conservou-se amparada
por Balbina, e acto continuo a depoente teve uma creança do sexo masculino; que
assistiu quando Maria Pereira, cortou o umbigo da creança, a qual ao nascer estava
arrocheada e arquejante; que no dia seguinte a noite, falecera.
Ouvidas testemunhas em número legal, confirmam as declarações acima citadas,
declarando, ainda, que, Maria Pereira de Sousa, era amiga de Ozita Santos.
Ouvida a acusada, declarou, que, na sua terra natal fez vários partos, em numero
superior a vinte, pois a mãe da depoente é parteira profissional, ensinando-lhe a maneira
de aparar a creança; que no dia 9 do corrente Ozita Santos, que estava hospedada em
sua casa, por motivo de ter sido expulsa da pensão de Plautilha Castro, tendo compaixão
dela e do seu estado, dera-lhe hospedagem e comedoria sem lhe cobrar coisa alguma,
isto desde uns dez dias antes; que acudindo, encontrou-a extorcendo-se de dôres e
vomitando, declarando nessa ocasião, ter caído da rêde, razão porque julgava julgava
que ia ter parto, em consequencia da queda recebida, e deitando Ozita, sobre uma
rodilha de pano, teve ela imediatamente a creança, a qual nascera arquejante, e um
pouco arrocheada; que cortou o umbigo medido trez dedos do cordão umbilical,
amarrando-o com uma tira de pano bem limpo, em virtude de não ter a linha usada para
aquele fim; que a creança deitou um pouco de sangue ralo do umbigo; que não chamou
o serviço de pronto socorro, em virtude deles não atenderem; que o seu acto foi de
humanidade, pois tinha Ozita em sua companhia, porque a mesma não tinha para onde
ir, e mesmo era sua amiga.
E, como esteja a acusada incursa no Art. 156, da consolidação das leis Penaes,
determino sejam estes autos enviados ao M.M. Sr. Dr. Juiz de Direito da 4ª. Vara, para
os devidos fins.
1ª Delegacia Auxiliar de Policia, 6 de Julho de 1940.
Dr. Flavio Bezerra.
Chefe de Policia.