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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”
PROJETO A VEZ DO MESTRE
ZARATUSTRA E A PEDAGOGIA DA ESCOLHA SOLITÁRIA
Por: MIRIAN ALVES FERREIRA
Orientador
Prof. Mary Sue Pereira
Rio de Janeiro
2007
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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”
PROJETO A VEZ DO MESTRE
ZARATUSTRA E A PEDAGOGIA DA ESCOLHA SOLITÁRIA
Apresentação de monografia à Universidade
Candido Mendes como requisito parcial para
obtenção do grau de especialista em Docência do
Ensino Superior
Profa. Prof. Mary Sue Pereira
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“...Eu quero que os ventos, que todos os ventos, que moram em mim deixem
minha alma despenteada...”
(Fátima Guedes)
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RESUMO
O que é a solidão para o homem contemporâneo? Este trabalho buscou na
resposta afirmativa dada por F. Nietzsche em seu livro Assim Falou Zaratustra
uma possibilidade que tirasse da solidão a perspectiva contemporânea que a
indica como um desamparo. Pois, por todo o seu percurso, o personagem
nietzscheano Zaratustra diz que a solidão é livramento do “instinto de rebanho”
que quer a preservação por medo do novo. É a solidão, para Nietzsche, que
diferencia o criador do rebanho. É a solidão o instrumento da transvaloração
dos valores. Ou seja, é a solidão que tem a capacidade de traspassar os
valores estabelecidos. Pois, para Zaratustra “estávamos somente em nossa
companhia”.
Assim, não seria a solidão causadora de um modo de vida, mas, o próprio
viver. A solidão enquanto autonomia seria, assim também, não o sentimento
melancólico, mas a atitude criadora. Ao lançar mão do Zaratustra de Nietzsche
para diagnosticar essa solidão, esta pesquisa o fez, pois neste texto a solidão
“é senhora”. Ou “interlocutor”. Zaratustra é o personagem nietzscheano que
usa a solidão como único meio de tornar-se o que se é. Desta forma, a solidão
antes de representar uma limitação pode, ao contrário, significar um encontro
com um novo horizonte existencial e libertário.
.Aplicada à prática docente esta perspectiva da solidão pode representar
a distinção entre a sala de aula como um lugar de desafio à criatividade e a
sala de aula como um “túmulo” feito para o amor próprio, a dignidade, a alegria
do trabalho. O entendimento da solidão na perspectiva do caminho do criador
pode significar ao professor um novo olhar para um novo caminho.
6
METODOLOGIA
Com o tempo previsto de dois meses, este trabalho individual foi produzido
a partir da metodologia da uma pesquisa bibliográfica que levou em conta
principalmente o foco filosófico. Partindo das visões do filósofo alemão do
século XIX F.Nietzsche esta pesquisa buscou uma ponte entre esta perspectiva
e nossa atual realidade docente brasileira.
Este trabalho contou ainda com as pesquisas, estudos, teses, etc que
tratam deste tema, de forma que foram os professores brasileiros e suas
vivências em sala de aula o verdadeiro sentido último do trabalho monográfico.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 08 CAPÍTULO I - NIETZSCHE: UM EDUCADOR 11 CAPÍTULO II - O ASSIM FALOU ZARATUSTRA 15 CAPÍTULO III - UM SIM Á SOLIDÃO 27 CAPÍTULO IV - A SOLIDÃO COMO PEDAGOGA 33 CONCLUSÃO 38 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 41 ÍNDICE 43 FOLHA DE AVALIAÇÃO 44
8
INTRODUÇÃO
"Eu escondia no fundo do coração o segredo
do meu destino"( Gide)
Segundo Foucault (2003, p71): “... O que os intelectuais descobriram
recentemente é que as massas não necessitam deles para saber (...). O papel
do intelectual não é mais o de se colocar um pouco à frente ou um pouco de
lado para dizer e mudar a verdade de todos (...). É por isso que a teoria não
expressará, não traduzirá; ela é uma prática...”. A solidão do professor na sala
de aula – aonde ele “decide” o que realmente fará com o conhecimento a ser
aplicado - trás em si a expressão deste conceito de Foucault.
Tendo a frente esta questão de tamanha complexidade lanço mão do
“Assim Falou Zaratustra” de F.Nietzsche (1888), que trata da solidão do
protagonista como uma forma pedagógica da criação. A esta perspectiva (da
solidão como promotora da criação e não da exclusão) conceituarei como: “A
Pedagogia da Escolha Solitária”.
Por todo o percurso de sua jornada Zaratustra se coloca como um
solitário. No capítulo “O regresso” dirá mesmo que a solidão é uma
companheira de reflexões1 e é com ela que travará seus diálogos e com ela
viverá seu conflito.
Zaratustra é um solitário por opção, isto vemos, por exemplo, no capítulo
“O prólogo” em que depois de ter vivido por dez anos longe dos homens,é dito
que sentindo saudade resolveu descer de sua montanha para vê-los. Estando
disposto a ensinar-lhes o que havia aprendido com sua solidão. Zaratustra vai
à praça. Lá chegando encontra homens que chama de “últimos homens” que a
1 Assim Falou Zaratustra, op.cit, O Regresso, p113: “No nos hacemos mutuas
preguntas, no nos recriminamos el uno al otro, nosotros atravesamos, abiertos uno para
el otro, puertas abiertas.Porque en ti todo es abierto y claro; y también las horas corren
aquϱ con pies mϝs ligeros.En la oscuridad, en efecto, se hace mϝs pesado el tiempo que
en la luz”.
9
tudo apequenavam2 , pois sua maior vontade era a de preservação3. A estes
chamará rebanho4.
Refletir sobre este “rebanho” nietzscheano pode significar olhar num
espelho. Esse rebanho, ou melhor: estes homens do rebanho, segundo o autor,
estavam tomados “por um hipnótico amortecimento geral da sensibilidade” e
buscavam uma vida equilibrada, pacificada. Nada de mais ou de menos - na
qual -, a ponderação nos humores era à busca de alívio e preservação de si.
Eles até aceitavam o sofrimento, o faziam, contudo, enquanto este tivesse um
sentido ou um objetivo5. Ao refletir o atual quadro da Educação brasileiro não
seria válido, então, a pergunta: “Será que os construtores do Conhecimento no
Brasil têm se tornado rebanho?”.
Para Zaratustra a conclusão sobre o rebanho era inevitável: A superação
– a qual dava o nome de super-homem, ou “o que está para além do homem” –
só poderia ser gerada por uma poderosa vontade, à vontade de potência.
Zaratustra pede aos da praça que olhassem para si e que vissem que sua
aceitação aparente à realidade, na verdade, escondia uma moral perversa que
era “vontade de nada”; representação de uma vida nula, a partir de ideais
inventados como forma de felicidade. O que é representado no livro “A
Genealogia da Moral” (do próprio autor) como um tipo de vontade gerada pela
anulação, ou seja: “Uma vontade humana(...) [que] preferirá ainda querer o
nada a um nada querer...”6 .
“... Todos os doentes, todos os doentios
buscam instintivamente organizar-se em rebanho na
ânsia de livrar-se do surdo desprazer e do
sentimento de fraqueza”7
2 idem 3 in: GENELOGIA DA MORAL, op.cit, Terceira Dissertação, & 13 4 Assim falou Zaratustra, op.cit, O Prólogo, p 8 5 idem, idem, &18 6 idem, idem, &1 7 idem, idem, & 1
10
Por mais absurda que seja esta imagem do rebanho, ela pode ser usada
analogicamente como ponto de reflexão da atualidade profissional docente no
Brasil. Ou poderíamos chamar por outro nome a busca por adequação a
propostas governamentais que muitas vezes ignoram quem somos? Ou será
que podemos chamar de ética uma moral de adequações? Para Zaratustra o
povo que se reunia na praça construía para si um mundo oco, metódico, de
valores estáveis em sua superficialidade solene e doentia. Zaratustra, contudo,
em sua solidão buscava outros ouvidos e os encontrou; porém ainda não eram
ouvidos certos para ouvi-lo. Até porque os ouvidos “certos” para o solitário
devem ser os ouvidos que queiram escutar as vozes da sua solidão.
11
CAPÍTULO I
NIETZSCHE: UM EDUCADOR
“...Livre de que? Que importa isso a Zaratustra? O teu olhar, porém, deve anunciar-se claramente: livre, pra quê?...”
(Do Caminho do Criador)
A filosofia de F. Nietzsche pode ser considerada como uma fonte
riquíssima de pesquisa e reflexão. Um de seus maiores objetos de estudo fi a
educação, até por ser ele mesmo um professor. Esta, além de aparecer, por
vezes implicitamente, em toda sua obra, pode ser vista inclusive como contrária
a própria educação. E isto porque para ele a educação fixava os elementos de
mediocridade nos alunos quando fazia deles meros reprodutores do sistema.
F. Nietzsche foi um crítico ácido do seu tempo, “embora apenas em seus
primeiros escritos ele trate especificamente do tema educação, a preocupação
em transmitir algo e ser compreendido segue aparecendo em toda sua
produção intelectual, sobretudo em seu Zaratustra”8.
Tendo a sua frente uma Europa decadente9, ele via o “fim” do Ocidente
pela “morte” da razão e do cristianismo enquanto identidades ocidentais. Para
examinarmos mais detidamente isto – niilismo, segundo o autor - precisamos
perceber que os valores questionados faziam parte de uma moral que buscava
em seus dualismos, negar a vida. Segundo o filósofo, uma moral negativa
gerada por forças reativas. Reação típicas dos ressentidos, ou aqueles que
“apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação”10 .
Este sentimento seria, segundo seu livro A Genealogia da Moral, típico
dos “escravos”: Os que viviam um “não” ao seu ato criador. Pois, “a moral
escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior para poder
8 NEUKAMP, Elenilton. As Críticas Do Professor Nietzsche À Educação De Seu Tempo, AS CRÍTICAS DO
PROFESSOR NIETZSCHE À EDUCAÇÃO DE SEU TEMPO.htm 9Nietzsche se debruçará sobre este tema quando fala do tempo do niilismo, ou o tempo do caos – ver no
Assim Falou Zaratustra o relato sobre o “último homem”, ou o homem do rebanho no Prólogo 10 Genealogia da Moral - primeira dissertação, § 10
12
agir; em absoluto - sua ação é no fundo reação”11 . Neste livro Nietsche fala da
História da moral ocidental fixando-se numa visão genealógica que se propõe a
uma leitura da sociedade humana a partir dos “pra quês” e não dos “por quês”
na construção da sua humanidade. Ou seja, o motivo da existência de uma
moral humana não seria motivado por uma “essência” a priore, mas, por sua
história contada por quem venceu. Na visão de Nietzsche: os fracos e
ressentidos.
Através do Zaratustra somos levados a entender que há uma vontade
negativa, e que esta, faz surgir forças reativas. Ou seja, há forças que formam
na vontade humana - quando esta se opõe ou se conjuga, quando se compõe
e se influencia - uma vontade de nada. Assim, “...a vontade humana,
[estruturada no] (...) seu horror vacui [ horror ao vácuo]; (...) preferirá ainda
querer o nada a nada querer”12. Ou seja, quando o nihilismo vence, a vontade
deixa de significar um poder positivo e ativo, e passa a significar um outro,
poder, negativo e reativo.
Por sentimento reativo, entenda-se, o reconhecimento de si como sendo
o bem em oposto à alteridade como sendo o mal. Esta moral seria, segundo
Nietzsche, a vitória dos fracos que por se tornarem vitoriosos se teriam como
fortes. E assim, o que é “baixo” será tido como nobre. Por isto “o ideal ascético
nasce do instinto de cura e proteção de uma vida que degenera. Uma vida que
luta contra si. Este artifício para preservação é o desejo de ser outro. É um
grande não a experimentação de si mesmo”13.
Pois, o asceta é um descontente e arrogante que nutre “um profundo
desgosto de si, da terra, de toda a vida” e que impõe a si mesmo “o máximo de
dor possível” pelo prazer da dor, “provavelmente seu único prazer”, pois “a vida
11 idem, idem - eu aqui não estarei me detendo neste tema e uso a Genealogia para respaldar o que
pretendo enfocar no Zaratustra; preciso contudo lançar mão da Genealogia pois no Zaratustra este
tema já está considerado co mo sabido - se é que poderíamos pensar assim - e Nietzsche já não o explica
mas o exemplifica nas reações dos últimos homens . 12 Genealogia da moral, terceira dissertação, § 1 13 Genealogia da Moral, terceira dissertação, § 13
13
ascética é uma contradição” aonde domina um ressentimento enorme de uma
vontade de poder que deseja “estancar a fonte da força”14.
Nietzsche através de seu Zaratustra propõe a isto a trasvaloração15 de
todos os valores pela vontade do leão do espírito que diz um sagrado “não” aos
valores existentes criando para si a liberdade para criar novos valores16. Pois a
vida não pode ser redutível a nada além de si própria. Daí, se uma vontade de
poder negativa leva ao ressentimento e a preservação, uma outra positiva
levará a uma nova cultura. Então, ao que se tinha como Razão e
Conhecimento absolutizados e detentores da verdade o personagem
nietzscheano propõe uma nova moral “trasvalorizada”. Um domínio de si, uma
vontade de superar-se, um transcender-se à imanência, um sentido novo: o
sentido da Terra.
“ Nietzsche é considerado geralmente como o filósofo da vida pois coloca-a como referencial para suas avaliações. Ele afirma que a sociedade pós-platônica estaria baseada em valores anti-vitais. Tal análise revela que a civilização ocidental, a partir de Platão, fundamentou seus valores a partir de uma visão dualista que cindia o homem e o mundo. Nesta visão, o homem estaria condicionado por uma série de dicotomias, como corpo/alma, essência/aparência, razão/instinto e o mundo em mundo inteligível/mundo sensível. Nessa perspectiva dicotômica, sempre um dos pólos: essência, razão, alma e mundo inteligível seria priorizado em detrimento do outro pólo: corpo, aparência, instinto, mundo sensível, respectivamente. Ao estruturar-se sobre tais valores, a sociedade ocidental, para Nietzsche, afastou-se paulatinamente da vida ao afirmar suas crenças em parâmetros metafísicos e, principalmente, por negar os critérios considerados pelo filósofo como vitais para o vigor de uma cultura: a afirmação do corpo, da terra, dos instintos e a exaltação da força plástica do homem.”17
14 idem, idem , § 11 15 conceito nietzscheano que diz respeito ao ir além da própria vida através de uma vontade afirmativa e criadora de novos valores 16 Assim Falou Zaratustra, Das três metamorfoses, p 13
17 ARAÚJO, Marinete da Silva . Sobre a Educação em si de Nietzsche, Revista Eletrônica em Ciências Humanas, Morpheus, on-line
14
Sua crítica a divisão paradoxal da sociedade ocidental se estendeu
definitivamente sobre a Educação ocidental. Para ele essa Sociedade doentia,
pela a anulação dos instintos humanos, era reprodutora de seus valores
através da escola:”...Para Nietzsche,(...)os valores passados pela tradição
(...)que são incutidos ainda na primeira infância, junto com o aprendizado da
língua materna.(...) Conforme as palavras de Nietzsche ‘Ninguém pode
construir no teu lugar a ponte que te seria preciso tu mesmo transpor no fluxo
da vida, ninguém exceto tu, somente tu’18”
Assim, Nietsche como filósofo que inaugurou a contemporaneidade
também redefiniu, ainda no seu tempo, o que mais tarde seria objeto da
Psicologia educacional. O que, infelizmente, nunca representou uma
“trasvaloração” dos sistemas humanos, conforme queria o filósofo.
18 idem
15
CAPÍTULO II
ASSIM FALOU ZARATUSTRA
“...Uma coisa é o abandono outra a solidão...” (O regresso)
Nos diz o Prólogo19, no primeiro parágrafo, que depois de viver dez anos
em uma montanha, Zaratustra, “certa manhã levantou-se com a aurora, foi para
diante do sol” despediu-se dele e desceu. Queria voltar a “ser homem”, queria
dar do que lhe “sobrava”. Diz o texto, ainda, que ele subiu levando consigo
cinzas - as suas próprias - e desceu dançando transformado
(metamorfoseado)20 em criança. Quem percebe esta mudança é um eremita
morador da floresta a quem Zaratustra chamará santo. Este tenta convencer a
Zaratustra a não continuar seu caminho rumo aos homens, pois estes temiam
os solitários.
Diz ele a Zaratustra que este deveria ficar na floresta e como ele se
elevar espiritualmente “de si para si”. É neste encontro que pela primeira vez
Zaratustra é reconhecido como um solitário. Ao se dirigir mais tarde ao seu
destino: o homem, Zaratustra se deparará com seu primeiro desafio: uma
multidão, que estava à espera de uma atração circense, um funâmbulo. Este
tipo de artista especializava-se em andar sobre uma corda suspensa entre dois
pontos altos e sem proteção para queda. A esta multidão Zaratustra dirige seu
primeiro discurso sobre o que Nietzsche intitulará: super-homem.
19 Primeiro capítulo do livro Assim falou Zaratustra
20 Nietzsche não fala de uma transformação social, neste livro, ou existencial, mas, em metamorfose; “Três transformações do espírito vos menciono: como o espírito se muda em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança” – primeira linha do primeiro capítulo da Primeira Parte. Ainda mais: “...Há o quer que seja pesado? — pergunta o espírito sólido. E ajoelha-se como camelo e quer que o carreguem bem. Que há mais pesado, heróis — pergunta o espírito sólido — a fim de eu o deitar sobre mim, para que a minha forca se recreie?(...) No deserto mais solitário, porém, se efetua a segunda transformação: o espírito torna-se leão; quer conquistar a liberdade e ser senhor no seu próprio deserto. (...)A criança é a inocência, e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um movimento, uma santa afirmação. (...)Sim; para o jogo da criação, meus irmãos, é preciso uma santa afirmação: o espírito quer agora a sua vontade, o que perdeu o mundo quer alcançar o seu mundo. (...)Três transformações do espírito vos mencionei: como o espírito se transformava em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança”.
16
“E Zaratustra assim falou ao povo: ‘eu vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser superado. O que fizeste para superá-lo? Todos os seres, até agora, criaram algo acima de si mesmo e vós quereis a baixa-mar dessa grande maré cheia e retrogradar ao animal, em vez de superar o homem?” 21
Duas coisas tentavam lhes dizer, a primeira é que o caminho natural -
enquanto caminho normal da natureza - fosse ele qual fosse deveria apontar
para a superação. A segunda coisa é que havia uma possibilidade de isto não
ser feito se não partisse de uma vontade ativa. A conclusão assim era
inevitável: a espécie que não se superasse teria uma condição “involutiva”. O
que no caso do ser humano seria a animalidade. “Que é o macaco para o
homem? Um motivo de riso ou dolorosa vergonha”22 . Esta aparente alusão a
Evolução na verdade esconde um parâmetro do que deveria ser a equiparação
do homem ao super-homem.
Aparentemente esta opção conceitual nietzscheana não s referia ao
Darwinismo, pois a solução para as espécies não seria de uma seleção natural,
ou do mais capacitado, ou algo que o valha. A superação do homem até ao
super-homem seria gerada pela vontade de potência - que é embate de forças
desiguais na luta de uma vida que quer mais vida. Esta superação, assim, teria
sua “sede” na vontade positiva que toma para si a própria força:
“...Percorreste o caminho que vai do verme ao homem, mas ainda tendes muito de verme. Foste macacos, um tempo, e também agora, o homem é ainda mais macaco do que qualquer macaco. mas o mais sábio dentre vós não passa de uma discrepância e de um híbrido de planta e de fantasma”.23
O povo, contudo, ria-se de Zaratustra achando que toda a cena fazia
parte do circo. Zaratustra, então, os olhou e percebeu que não “era boca para
estes ouvidos”24 . Depois de viver dez anos na solidão e como um camelo
levar fardos pesados até seu próprio deserto ele “resolveu dar do que lhe
21 Assim Falou Zaratustra , Prólogo § 3 22 idem, idem 23 idem, idem 24 idem, § 5
17
sobrava”25. Mas, agora, ali cercado por aquela multidão Zaratustra percebe
sua inadequação ou quem sabe a inadequação de seu discurso não alcançaria
ninguém naquela praça...
“Eles não me compreendem eu não sou a boca para esses ouvidos. Demasiado tempo, decerto, vivi na montanha, por demais escutei córregos e as árvores: falo com eles, agora, como os pastores de cabras. Serena está minha alma e clara como a montanha pela manhã. Mas, eles me acham frio e julgam-me um zombador que diz sinistras pilhérias. E olham para mim rindo e rindo ainda me odeiam. Há gelo no seu riso”26
Na perspectiva do abandono a solidão de Zaratustra é necessidade de
explicações e de aceitação. Mas, o que Zaratustra queria “dar”, não poderia
depender, assim, do receber. Por isto, ele vai muda seu discurso; até aqui o
santo da floresta tinha razão, porém Zaratustra prega a vontade do leão e esta
é rapina e um dar que rouba, portanto ele lhes falará ao orgulho, e falará deles
próprios, como aqueles que não passam de últimos homens. Pois, reunidos na
praça sem o menor desejo de entender e aceitar a diferença precisavam ouvir
sobre si.
Para Nietzsche o último homem é alguém onde “o solo está pobre,
esgotado, prestes a perder sua fertilidade, onde nenhuma árvore poderá
crescer”27.
“...Ai de nós! Aproxima-se o tempo em que o homem não mais arremessará a flexa do seu anseio para além do homem; em que a corda do seu arco terá desaprendido a vibrar! Eu vos digo: é preciso ter ainda caos dentro de si para poder dar à luz uma estrela dançante. Eu vos digo há ainda caos dentro de vós. Ai! De nós Aproxíma-se o tempo em que o homem não dará mais a luz a nenhuma estrela. Ai de nós! Aproxíma-se o tempo do mais desprezível dos homens, que nem sequer saberá mais desprezar-se a si mesmo. Eu vos mostro o último homem...”28
25 idem, idem 26 idem, idem 27 AFZ, Prólogo § 5 28 idem, idem
18
Este último homem “que tudo apequenava” tinha características
definidoras de sua atitude. Possuía uma vontade de preservação de uma vida
adoecida29, numa invenção de prazer e felicidade que traduzia a vida a partir
de uma atitude medíocre. Onde o calor por ser necessário era cultivado nas
amizades, onde o trabalho por ser necessário era mantido sem esforço, onde o
pecado era a desconfiança para o já estabelecido, onde os pequenos prazeres
eram cultivados juntamente com os pequenos venenos, mas, tudo com
moderação e “respeito” aos limites impostos30.
Estes a quem Zaratustra chamará rebanho, tomados por “hipinótico
amortecimento geral da sensibilidade” 31 , buscavam uma vida equilibrada,
pacificada nada de mais ou de menos, onde a ponderação nos humores era
busca de alívio e preservação de si. Este último homem que até aceitava o
sofrimento, contudo, enquanto este tivesse um sentido ou objetivo32.
Não se pode, porém, restringir o Assim Falou Zaratustra a uma crítica
dos ideais metafísicos - sejam eles quais forem – pois, a grande finalidade de
todo o livro é a afirmação da vida. Zaratustra propõe uma mudança nas raízes
estruturais que partissem de qualquer foco ideal para que a invenção de uma
ordem inversa fizesse com que o objetivo fosse o ser próprio que “mora no teu
corpo e é teu corpo”33. Ele prega um novo querer. Um querer positivo.
Isto fica claro quando observamos que os próprios valores da praça já
estavam desprezados pela “invenção de uma felicidade que era mediana”,
medíocre, “equilibrada”. Para examinarmos mais detidamente este nihilismo no seu sentido de
valor, precisamos perceber que os valores questionados por Zaratustra faziam
parte de uma moral que buscava em seus dualismos, negar a vida. Uma moral
negativa gerada por forças reativas. Para Nietzsche esta “reação” é típicas dos
ressentidos, ou aqueles que “apenas por uma vingança imaginária obtêm
29 Para uma Genealogia da Moral, terceira dissertação, § 13 30 Assim Falou Zaratustra, Prólogo, § 5 31 Para uma Genealogia da Moral, terceira dissertação, § 18 32 idem, terceira dissertação § 28 33idem, Dos Desprzadores do Corpo
19
reparação”34 . Este sentimento para o autor era típico dos “escravos”, os que
viviam um “não” ao seu ato criador, pois, “a moral escrava sempre requer, para
nascer, um mundo oposto e exterior para poder agir - sua ação é no fundo
reação”35
Duas espécies de forças se contraporão neste texto: as que agem e as
que reagem. O que Zaratustra levá-nos a compreender é que a vontade
negativa está ligada e faz surgir forças reativas. Assim as forças, na vontade,
se opõem ou se conjugam, se compõem e se influenciam. Zaratustra em
primeiro lugar mostra a possibilidade de uma vontade positiva que leva a ação
e em segundo a vontade negativa re-produtora de forças reativas. Este
movimento da vontade e força, contudo, não é compartimentado nem
hierárquico, é circular. Ou seja, é puro devir36.
O Assim Falou Zaratustra de F. Nietzsche é considerado seu livro da
maturidade onde todos seu conceitos pululam de forma completa. Neste livro o
objetivo principal do autor é o dizer de uma vontade afirmadora da vida: a
vontade de potência. Desta forma, Zaratustra chama lutadores e criadores para
a tarefa de viver sem medo e assim dizer “um sagrado sim” para o jogo da
criação37.
Contudo, este “sim à criação” vem sempre acompanhado de uma
superação. Isto é mostrado no capítulo “Do superar a si mesmo”, onde será
34 Genealogia da Moral - primeira dissertação, § 10 35 idem, idem - este tema na Genealogia da Moral é um dos principais; Nietzsche busca não uma história da moral, mas sua genealogia ou seja os seus “pra quês”; aqui não estarei me detendo neste tema e uso a Genealogia para respaldar o que pretendo enfocar no Zaratustra; preciso, contudo, lançar mão da Genealogia, pois no Zaratustra este tema já é considerado como sabido - se é que poderíamos pensar assim - e Nietzsche já não o explica, mas o exemplifica nas reações dos últimos homens . 36 Sobre as três metamorfoses do espírito presumo que apesar de sua leitura ser esclarecedora sua transcrição seria por demais longa ; porém , é importante situar o leitor desta dissertação que neste capítulo Das três metamorfoses dos espírito Nietzsche fala de como o “espírito” que é camelo ou suportador ou pensemos aceitador dos valores existentes, voltando-se para si se transformará, ou melhor se metarmofoseará, a partir da vontade de potência ativa ao leão que cria a liberdade de dizer “não”ao que o camelo aceita como “sim”, mais adiante a terceira e final a metamorfose - também causada pela vontade de potência mas agora no reconhecimento do esterno retorno - o espírito se tornará criança pois a criança é “esquecimento”, ou seja a capacidade de não mais ressentir ou recalcar (tomando este termo da psicanálise que diz de lembranças que se sobrepões calcando-se sobre si) e assim aceitar a vida no que ela é; tornando-se o que era em si, no seu sentido primeiro e inocente. 37 In: GENEALOGIA DA MORAL, Terceira Dissertação, § 18
20
dito pelo protagonista: “Onde encontrei vida encontrei vontade de poder, e
ainda na vontade do servo encontrei a vontade de ser senhor...38”. É esta
superação impregnada da “vontade de poder” (ou potência) que interessa a
esta pesquisa. Partiremos dela para entendermos que sentimento é este que
pode envolver o educador com a Pedagogia que precisa aplicar o “consigo
mesmo” do dia-a-dia e a sala de aula.
Esta “vontade de poder”, mesmo dentro da “vontade do servo” poderia
ser em última análise, aquilo que trazemos em nós. Pois, enquanto aqueles
que vendem sua força de trabalho - o que no caso do professor se equivale a
própria vida – também somos aqueles que podem interferir definitivamente na
vida de um jovem aluno. Desta forma, esta vontade de poder, ou de vida que
quer mais vida a partir de uma luta intestina com seus opostos, precisa superar
nossa apatia e desconforto com nossa competência e força interior. Assim, à
vontade de superação, afirmativa ou de potência será a poderosa pedagogia
que nos levará ao nosso destino.
Essa vontade poderosa neste livro se dá na solidão do criador. Por todo
o seu percurso, Zaratustra diz que a solidão é mais, é livramento do “instinto de
rebanho” 39 que quer a preservação por medo do novo. É a solidão, para
Nietzsche, que diferencia o criador do rebanho. É a solidão o instrumento da
transvaloração dos valores. Ou seja, é a solidão que tem a capacidade de
traspassar os valores estabelecidos. Pois, para ele “estávamos somente em
nossa companhia”40.Esta solidão, desta forma, não seria a causadora de um
modo de vida, mas, o próprio viver. Ao lançar mão do Zaratustra de Nietzsche
para diagnosticar essa solidão, o faço, pois neste texto a solidão a “solidão é
senhora”41, ou um interlocutor.
II.1- ZARATUSTRA UM VIÉS NO AVESSO
38 Assim Falou Zaratustra, Do superar a si mesmo, p 69 39 O rebanho neste livro configura a massa acrítica e manipulada. 40 Gaia Ciência, aforismo, 166 41 Caetano Veloso
21
Nossa cultura ocidental e tudo o que é e foi gerado por ela, instaurou
valores e ideais. Zaratustra pretende um “ viés no avesso” - sabendo que viés é
uma linha em direção obliqua, e avesso é o lado oposto à parte principal,
reverso, contrário, oposto do que deve ser - ou a reavaliação e morte do já
estabelecido como absoluto, percorrido pela idéia de uma vontade positiva que
não é um aceitar a vida, mas fazê-la. Uma vida sem desculpas ou refutações. A
vida que é aceita mesmo que fosse infinitamente repetida no que tem de
melhor ou pior e assim como disse o poeta popular “é bonita e é bonita”42.
Neste “viés” percebemos que em nossa Sociedade o solitário é tido por
“fracassado afetivo” e socialmente deslocado. Ou seja, aquele ou aquela que
“não têm ninguém pra si...” Mesmo nossos símbolos mais remotos nos dizem
isto; basta determos nosso olhar para personagens tais como a “Cuca” o
“Lobo-mau” o “Homem do saco” etc, para entendermos que desde de cedo
somos levados a vermos os solitários como maus ou por aqueles que pagam
por seus pecados. Criminosos, perniciosos, loucos são retirados do convívio
social. Avarentos, perversos, invejosos, ficam sós nos fins de novelas, filmes
etc. Até porque os “normais” casam-se têm filhos e vivem em família...
Só é permitida a solidão aos religiosos porque estes nunca estão a sós,
são cercados por miríades sobrenaturais. E assim inventamos clubes, grupos,
entidades religiosas, etc. E a Humanidade se salvou da extinção criando uma
Sociedade regida por leis comuns, e propriedades, e clãs, e famílias, etc. Desta
forma, no século XX “descobriu-se” “vida inteligente em outros planetas”. Não
queremos ficar sós. Apesar das guerras que percorreram todo o século
passado, apesar da fome que dizimou povos, inventaremos vida em outro lugar
para não estarmos sós.
A solidão nos dá medo...Mas, para não é assim para Zaratustra. Ele é a
representação do “avesso” dessa forma de se ver a solidão. Para ele a solidão
é o único caminho possível ao criador e só nesta perspectiva pode haver um
encontro consigo. No Assim Falou Zaratustra, a solidão é fonte de criação e só
42 Gonzaguinha
22
na solidão pode ser criada uma nova e grande saúde43. Só esta solidão pode
assegurar um olhar distinto. Ele mostrará que por ela, caminhará como um
amante solitário rumo à criação44.
“Os tipos modernos do cético e do romântico são as grandes antíteses de todas as designações às quais Nietzsche associou o projeto de transvaloração: o "além do homem", o "espírito livre", o "artista dionisíaco", o "imoralista" etc.; com elas, ele buscava precisamente expressar o ideal de um espírito que cria valores, porque tem dignidade e nobreza para tanto, e de um espírito que seja capaz de transbordar em alegria, de rir do saber trágico e da própria dor. Os limites do romantismo e do ceticismo são, respectivamente, a falta de dureza, para avaliar, e a seriedade e a falta de estilo, para rir e criar. Sabe-se que Nietzsche sentiu-se tentado pelos dois campos; mais do que isso, por vezes lançou sobre eles muitas das suas esperanças e disposições, como filósofo-artista e como filósofo-cientista, o que de modo especial talvez possa ser atestado nas obras O nascimento da tragédia e Humano, demasiado humano. Entretanto, buscou fazer suas rupturas com tais legados e trilhar a "sétima solidão" em busca do seu estilo, pois "uma coisa é necessária - 'dar estilo' a seu caráter - uma arte grande e rara! É praticada por aquele que vê tudo que sua natureza oferece de forças e fraquezas, e as ajusta a um plano artístico, até que cada uma apareça como arte e razão e também que a fraqueza ainda encante o olhar"45
II.2 SOBRE A SOLIDÃO
“...Eu sou uma floresta, sem dúvida, e uma noite de árvores escuras; mas quem não teme minha escuridão, encontra também roseirais, debaixo dos meus cipestres...” (Do Canto e Dnça)
43 A grande saúde é um conceito nietzscheano que diz respeito a uma saúde que existe apesar do corpo
doente; uma saúde que é uma atitude de vida. 44 Assim Falou Zaratustra, op.cit, “Do caminho do criador”, p37 45 NOBRE, R Freire. Nietzsche e a Estilização de um Caráter, UNESP, 2007
23
A solidão de que fala o Assim falou Zaratustra é um conceito46 e não se
restringe somente a um estado emocional do personagem central, nem está
restrita a uma disposição afetiva. Desta forma, o conceito solidão se relaciona,
nesta obra, com outros conceitos “nietzscheanos”. A solidão de que nos fala o
Assim falou Zaratustra, se mostra como “companheira de reflexão” com quem o
personagem Zaratustra dialoga efetivamente na subjetividade47.
A solidão normalmente tratada como falta, seria uma barreira
intransponível para a afirmação da vida, se esta se esgotasse na mera
percepção de sua necessidade. Mas, a solidão de Zaratustra antes de um
estado psicológico faz parte de um ato de vontade é também “um sagrado dizer
sim” à vida que se volta sobre si para sempre. Esta solidão também deve ser
afirmada e desejada. Ao enfermo, Zaratustra propõe uma grande saúde, ao
triste ele fala do riso e do canto e da dança. A solidão de Zaratustra quer
também eternidade. Ela é causadora de encontro, re-visão e criação.
Repousará em perspectivas novas para bases diferentes. É um estado de vida
que ignora as doenças humanas na forma que tiverem, pois, diz ser o estado
de saúde a determinação de uma vontade afirmadora da vida e não condição
de um corpo sadio.
Neste livro a solidão torna-se uma possibilidade pedagógica que visa a
criação. O criador para Nietzsche será sempre um solitário. Interessante
pensarmos que partindo deste ponto de vista a solidão não faria parte de “uma
falta”, mas pelo contrário seria parte fundamental do processo de libertação.
Zaratustra antes mesmo de falar sobre a criação, fala sobre a solidão. “Queres
46 Segundo o Dicionário de Filosofia (Japiassú/ Marcondes –1996): “Em seu sentido geral, o conceito é
uma noção abstrata ou idéia geral, designando seja um objeto suposto único(...) seja uma classe de
objetos(...). Em seu estilo matemático, o conceito é uma noção de base que supõe uma definição rigorosa
(...).Termo chave da Filosofia, o conceito designa uma idéia (...). Enquanto déia abstrata construída pelo
espírito o conceito comporta, como elementos de sua construção a compreensão ou conjunto de
caracteres e a extensão ou o conjunto dos elementos particulares(...)” 47 Por mais que se tome cuidado com o termo subjetividade, por entender-se que não existe em Nietzsche
a figura do sujeito e sim da pluralidade. Contudo, neste caso, a solidão se comporta como se possuísse um
eu/sujeito.
24
meu irmão refujiar-te na solidão? Queres procurar o caminho de ti mesmo? (...)
Todo se isolar é culpa assim fala o rebanho”48.
Contudo, antes de mostrar o caminho da criação ele diz que a voz do
“rebanho”49 amortece os sentidos. O reconhecer à voz do rebanho seria o
primeiro passo para entender o necessário “caminho da própria angústia” rumo
a si mesmo. Reconhecer a “voz do rebanho”, escondida em si, deveria ser não
escape, mas, a mola propulsora para um pensamento autentico e dominante;
longe da identidade anulada.
Contudo a voz do rebanho detectada não era fator suficiente para dar ao
“espírito de suportação”50 a liberdade para a criação de outros e novos valores;
pois para isto seria necessário a força do leão...
“Hoje, ainda sofres dos muitos tu que és um; hoje ainda tens toda a tua coragem e as tuas esperanças Mas algum dia sentirás o cansaço da solidão, algum dia, sentirás a tua altivez dobrar-se e a tua coragem ranger os dentes. Algum dia gritarás: ‘Estou só’(...) Há sentimentos que querem matar o solitário; se não o conseguem, eles mesmos, então, devem morrer. Mas és tu capaz disto: ser um assassino? “51
Os “bons e justos”, para Zaratustra, odiavam os solitários e a estes o
solitário deveria dar a pata do leão. Este caminho do criador se confunde,
48 Assim Falou Zaratustra, op.cit.,“O canto do criador”, p36 49 Esta figura que aparece no “Prólogo” do livro, referindo-se aos homens que estavam em uma praça, na
verdae é um poderoso conceito nietzscheano referente ao niilismo Ocidental, principalmente europeu de
seu tempo, aonde o filósofo diz ser “o rebanho” os resignados “que inventavam a felicidade” para nõ
correrem o risco da liberdade da escolha. 50 idem, “Das três metamorfoses” – neste canto (o livro é dividido em cantos), Nietzsche diz que a vida
poderia ser representada por “três espíritos”: o do camelo (ou oda suportação), o do leão (ou o do que
seria para além do ethos humano, ou “super-homem) e o da criança (representação do conceito do eterno
retorno , conceito que estaria ligado a confirmação da vida a partir dos conceitos a grande saúde (ou uma
vida para além do viver, ou seja, apesar de limites, doenças, etc), o amor fati (aceitação da vida sem
desculpas, do jeito que esta se apresentasse) e finalmente a vontade de potência (afirmação de uma vida
que luta por mais vida com forças sempre opostas ) 51 Assim Falou Zaratustra, op.cit.“O caminho do criado”, p 37
25
assim, com o caminho do solitário e este solitário percorre o caminho de quem
cria. E percorre o caminho de quem ama. “Vai para tua solidão com o teu amor
meu irmão e com tua atitude criadora”, dirá Zaratustra. O caminho do criador é
solitário e este caminho passa por si e os pelos próprios demônios, todavia o
criador que cria para si, deve conhecer seu ocaso e levar suas cinzas.52 Ou
seja, não deve ter medo nem dos seus limites, nem de sua frustração.
Criação como ato, então, equivale aqui, como vida como ato, ou seja, a
vida desta forma é vontade criadora53. A criação, assim, sai do parâmetro do
fazer algo a partir do não existente e se torna o próprio ato do fazer; criar é
assim vontade de potência como a vida o é. “Criar é atividade a partir da qual
se produz constantemente a vida”54. E desta forma, o termo criação é usado
para referir-se a algo que pressupõe o próprio ato de viver e com esta atividade
não se permitirá à preservação e para o criador dirá Zaratustra: “arder nas tuas
próprias chamas deverás querer, como pretenderias renovar-te se antes não te
tornasses cinzas!”55.
Zaratustra chama todos os “criadores” para irem além de si e criarem
para si um “si próprio” e criar para si este “si próprio” é o fazer novos valores
em novos princípios e leis próprias. A estes, que o fizessem, Zaratustra
chamou “companheiros de criação e ceifa” 56 . Zaratustra volta-se contra o
culturalmente estabelecido apontando o que havia de desencarnado e hipócrita.
Ele busca um criador de coragem explícita, aceitador da luta travada pelas
forças internas, onde as paixões não precisam ser desculpadas ou camufladas
ou mesmo ignoradas,
“E agora, o vosso espírito envergonhar-se de obedecer às vísceras e foge da sua própria vergonha por caminhos escusos e mendazes”. Seria ideal para mm, ‘assim fala consigo o vosso refalsado espírito’, contemplar a vida sem desejos (...) Ó hipócritas,
52 idem, idem 53 Nietzsche e a Música, Conceito de ato Criador, p 33 54 idem, idem p 35 55 Assim Falou Zaratustra , op.cit. “Do caminho do Criado”, p36 56 Idem , “Prologo”§ 9
26
melindrosos e lascivos! Falta-vos a inocência do desejo; e por isso, agora caluniais vosso desejo! (...) Onde há beleza? Onde eu, com toda à vontade, devo querer, onde quero amar e extinguir-me, para que uma imagem não permaneça somente imagem.
Ousai, primeiro acreditar em vós mesmos e nas vossas vísceras! Quem não acredita em si mesmo mente sempre”57
A vida que é desigual por ser plural é vontade de potência, pois não é
antecedida ou precedida por nada; é devir; é vida como poder contínuo,
potência dela mesma. O criador que cria a partir da solidão no Assim Falou
Zaratustra se supera para “redimir o passado e transformar todo ‘foi assim’ num
‘assim eu quis!”58
57 idem, canto “Do imaculado Conhecimento” 58idem ,canto “Da redenção”, p87
27
CAPÍTULO III
UM SIM Á SOLIDÃO
“Solitário! Corre o caminho que leva a ti mesmo!” (Do caminho do criador)
A solidão normalmente tratada como falta seria uma barreira
intransponível se esta se esgotasse na mera percepção de sua necessidade
como característica do criador. Mas, a solidão de Zaratustra antes de um
estado psicológico faz parte de um ato de vontade é também “um sagrado dizer
sim” á vida. Esta solidão também deve ser afirmada e desejada. Ao enfermo,
Zaratustra propõe uma nova saúde, ao triste ele fala do riso e do canto e da
dança.
Esta solidão que percorre por obra alinhavando como viés todos os atos
quer também eternidade. Ela é causadora de distanciamento, de encontro, e
re-visão e criação. Repousará em perspectivas novas e em bases diferentes. A
solidão no Assim Falou Zaratustra quer também um sim. Quer ser encontro,
quer desvelar-se. Distingue os timbres das várias vozes que acometem o
criador. Zaratustra oferece suas saídas não para quem precisa livrar-se da
solidão, mas, para que nela sejam adquiridas novas fronteiras. Zaratustra quer
o riso e o canto e a dança. Sua alma poderosa é a alma que criou para si uma
“nova saúde”.
“Porque apropriado é cantar para o convalescente e deixa o falar para o homem são. E se também o homem são quer cantos, quer cantos outros que os do convalescente!”. Ó farsantes realejos, calai-vos de uma vez(...) Como conheceis bem o consolo que inventei para mim! Que eu deva voltar a cantar - este consolo e esta cura inventei para mim(...) Porque, vê, Zaratustra! Para teus novos cantos precisos de novas liras”59
59 Assim Falou Zaratustra, Do Convalecente – falaremos adiante sobre esta “saúde”
28
O Assim Falou Zaratustra não é um livro sobre a solidão, mas um
ditirambo, uma solidão que se pode cantar e dançar. Uma música trágica, bela,
significativa que quer duendes porque é assim que se comporta a coragem:
rindo. Neste ditirambo 60 que constantemente é lembrança do sentimento
trágico61 onde a vida é exuberância e a dor é estímulo.
Como este personagem superou e recriou seus valores antepassados,
deveríamos fugir da nostalgia que o poderia nos levar do luto, ao nada e ao
caos. Contra este possível embrutecimento deveríamos reconhecer a
necessidade de uma autodisciplina que, contudo, não estivesse presa a leis
morais alienantes ou a objetivos idealizados. Esta autodisciplina seria o
conhecimento profundo da estrutura baseada na vontade afirmativa, partindo
da efetiva compreensão do nosso tempo. Precisamos ser estes novos homens
e mulheres de vontade libertadora que entendem, porém, o finito e o infinito
que permeia nossa profissão.
Podemos ser aqueles e aquelas que se superaram mesmo no paradoxo
da existência. Livres para nos formatar e nos recriar a partir de novas e
próprias perspectivas, assim como na Tragédia que unia a vontade de
superação da dor sem sublimações; aonde a dor humana se misturava de
forma completa à música, e a vida se reconquistava e se recriava; pois a vida
não estava na aparência, mas por dentro e através dela.
III.1 SOBRE UMA NOVA SAÚDE
“...E este segredo a própria vida me confiou: ‘Vê,
disse, eu sou aquilo, que deve sempre superar a si mesmo...”62
O capítulo “O convalescente” traz um movimento em direção ao
entendimento do que seria esta saúde. Partindo da palavra alemã genesen,
60 música da Tragédia Grega 61 Trágico: forma de representação teatral feita pelos gregos clássicos através de máscaras, representado
por um coro. 62 Assim Falou Zaratustra, Do superar a si mesmo,p 68
29
convalescer - cuja raiz remonta ao grego - temos a idéia de gênesis, criação,
recuperação63. No Assim Falou Zaratustra, esta seria uma saúde que estaria
para além do corpo e suas circunstancias. Zaratustra não usa o termo “Grande
Saúde”, mas fala desta de algumas formas. No livro a Gaia Ciência (também
do autor) vamos encontrar mais dados sobre esta saúde. Esta saúde nasce
na solidão e não é pausa ou sublimação da dor. Pelo contrário, nesta nova
saúde não há o medo da dor, mas a incorporação desta como coragem de
viver, mesmo o que não se desfaz com o tempo, mas, o percorrerá
incessantemente.
O primeiro discurso de Zaratustra, o Prólogo, fala de desprezadores da
vida, ou moribundos envenenados por seu próprio veneno. Nietzsche aponta
para as ruínas da civilização ocidental que, segundo ele, precisou inventar o
temor ao corpo. Identifica isto como enfermidade e desprezo da vida, ou um
olhar “desdenhosamente para o corpo”64 . O que queria mostrar com isto é a
existência de um sistema criado para a avaliação da vida que criava uma
diferenciação e uma hierarquia entre o corpo e a vida. De tal forma que o corpo
doente significava uma vida doente.
A vida traçada nesta perspectiva é enferma e patológica, formada por
um niilismo intransigente que tirou da vida seu valor real transferindo-o a um
valor alienígena, sintomático, ultramundano. Este niilismo é sinal da
decadência e da doença. Para Zaratustra este era um tempo perigoso onde se
caminhava para um “querer nada”65 estéril, onde em breve não se poderia ter-
se outra possibilidade que não fosse a total morte do sentir. O tempo do
inventar-se uma felicidade que não passaria do abandonar regiões onde a vida
é dura...
“...Inventamos a felicidade - dizem os últimos homens, piscando” o olho. Abandonaram as regiões onde era duro viver porque o calor é necessário. Cada qual ama seu vizinho e nele se esfrega: porque o calor é necessário.
63 Idem, O Desafio da Grande Saúde, p 15 64 idem, idem 65 Genealogia da Moral, terceira dissertação, § 1
30
Adoecer e desconfiar é pecado, para eles(...) De quando em quando um pouco de veneno(...). Ainda trabalham, porque o trabalho é um passatempo. Mas cuidam de que o passatempo não canse. Mas ninguém se torna rico ou pobre: por demais penosa são ambas as coisas. Quem ainda deseja governar? Quem ainda obedecer? Por demais penosas são ambas as coisas (...) Todos querem o mesmo. Todos são iguais(...) São inteligentes e sabem tudo o que aconteceu(...); zangam-se, ainda, mas logo reconciliam-se para não estragar o estômago. Têm seus pequenos prazeres para o dia e seus pequenos prazeres para a noite: mas respeitam a saúde”66
Zaratustra percorre a possibilidade de uma nova saúde para um mundo
sem restrições; é isto que nos indica a palavra alemã genesen67. O “gn” evoluiu
para “nes” que é o mesmo que gerar, gênesis, recuperação; e também traz a
idéia de escapar, sobreviver, retornar ao lar feliz. O prefixo “gn” tem o sentido
de integração e retorno à vida e totalidade. Ou seja, genesen seria um
movimento de integração, totalidade e recuperação e enfim a união deste ao
seu desdobramento grego significa retorno à vida de forma plena.68
O que precisa, assim, curar-se não é um indivíduo, mas o “eu”. É o “eu”
quem adoece que quer igualdade e pacificação. Este “eu” é representação do
“sujeito” que se torna, pela razão, protagonista de tudo. Este “eu / sujeito”,
porém, é a forma criada para deter-se à vontade de potência que envolve tudo.
Para Zaratustra, contudo não existia um “eu”, mas um “... corpo [que] é uma
grande razão, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma
paz”. Assim, o “eu” é sempre pluralidade e para o corpo não há o dizer “eu”
mas o fazer-se “eu”. Este ser próprio mora no corpo e é o corpo.69
O primeiro desafio para esta nova saúde é desta forma, entender o que
está enfermo no humano mais do que no próprio corpo. O movimento feito no
capítulo “O convalescente” é o movimento de recuperação da vida e não de 66 Idem, idem 67 Conforme está escrita à palavra saúde no original alemão 68 Assim falou Zaratutra, op.cit., Desafio da Grande Saúde, p 65. 69 Idem, idem
31
uma forma de viver. É um movimento de descontrole para uma Sociedade que
precisa de controle de todos os detalhes. É contrário ao ideal de tudo: de si, do
próprio corpo e da vida. É um deixar-se para trás a necessidade de uma
felicidade que escape do sofrimento ou que busque valores fixos como
segurança.
“Pois em si não existe saúde e todas as tentativas para dar esse nome a uma coisa abortaram miseravelmente. O que importa é conhecer tua finalidade, teu horizonte, tuas forças, teus impulsos, teus erros e, sobretudo o ideal e os fantasmas da tua alma. Pois em si não existe saúde, mesmo para teu corpo. Existem, portanto inumeráveis saúdes do corpo e quanto mais o se permita ao indivíduo, a quem não podemos nos comparar, que levante a cabeça, mais desaprenderá o dogma da igualdade entre os homens, mais necessário se fará que nossos médicos percam a noção de saúde normal, de uma dieta normal, do curso normal de uma moléstia.”70
Esta nova noção de saúde é baseada na noção de desigualdade entre
os seres humanos não está ligada a idéia de um corpo são. De forma contrária
à concepção de enfermidade, esta saúde “nietzscheana” não é algo “do”, ou,
“para” o corpo. É uma dimensão maior e faz parte do que em Zaratustra chama
de ser próprio - “que está no corpo e é o corpo”71 - pensando sempre que o
corpo em Zaratustra não é uma “coisa”, mas, poderíamos pensar, um lugar, um
sentido, um embate de forças desiguais. Esta nova saúde, então, é libertária,
não diagnosticável e é, em última análise, o reconhecimento da finitude
humana em seus altos e baixos, perdas e encontros. A “nova saúde” que
Zaratustra pretende é a aceitação dos limites e as transformações ou quem
sabe metamorfoses, destes mesmos limites em horizontes.
Esta saúde proposta por Zaratustra é aceitação corajosa do que se é e
nem por isto é aceitação passiva do que se é. É razão que conclama que
cresçamos em inocente amor por nós mesmos e que este amor inocente seja o
único rumo do nosso desenvolvimento. Esta saúde não é em hipótese alguma
70 Gaia Ciência, aforismo 120 71 Assim Falou Zaratustra, op.cit,, O Convalecente, p 65
32
resignação ante ao sofrimento, antes é o ato de caminhar entendendo “os
timbres da solidão”. Zaratustra não quer eliminações, dor e prazer são partes
de uma vida que não decepciona nunca. Não quer sublimação para a dor ou
para a perda, ele ama a transitoriedade e isto deve lembrar-nos que a idéia de
saúde que foi estabelecida pelos tempos é idéia de vida controlada pela fixidez
do equilíbrio. Isto é superar-se. Não a partir de um alvo ideal, mas do
conhecimento da própria finitude e de uma liberdade que é coragem para
entender os próprios desertos.
33
CAPÍTULO IV
A SOLIDÃO COMO PEDAGOGA
“...Eu vos digo: é preciso ter caos dentro de si, para dar à luz uma estrela dançante. Eu vos digo: há ainda caos dentro de vós. Ai de nós! Aproxima-se o tempo em que o homem não dará mais à luz a nenhuma estrela.”(Prólogo)
Freqüentemente debatemos a estrutura da escola brasileira como uma
construção que se esgota nas estruturas inumanas que corrompem os agentes
que estão no seu interior. Contudo, as estruturas de tijolos e concreto que
recebem o nome de escola escondem a verdadeira escola que está entre os
próprios professores e suas relações sociais com os demais servidores, alunos
e com a comunidade externa, sua cidade e suas noções de cidadania.
“...Acho que precisamos reconhecer que a verdade da nossa práxis imaginária está na práxis real. Não é por que se arroga o monopólio do saber sobre a realidade natural e social que o professor universitário deva deixar de ser estudado e interpretado como um burocrata típico que difunde os seus interesses específicos como se fossem universais, escondendo os bastidores de um cotidiano marcado pelas disputas mais mesquinhas e desleais. Competindo com os próprios pares e amigos, como um político hábil, o professor universitário é aquele que consegue conversar horas a fio, até com quem possui intimidade, sem deixar escapar suas reais intenções, suas estratégias para publicar, conseguir uma bolsa de estudos ou um convite para viajar ao exterior. Pode até soar antipático, mas vou recordar uma análise cortante do professor Milton Santos, para quem, no Brasil, “...a vida intelectual ainda está organizada em torno de clubes, de clãs e do enturmamento, sendo às vezes mais útil passar as noites em reuniões sociais com os colegas que mandam, do que “queimar as
34
pestanas”, como antigamente se dizia, em frente aos livros”.72
Este pensamento do professor Praxedes, infelizmente, reflete o que tem
acontecido não só na estrutura de 3º grau no ensino do Brasil, mas em toda a
estrutura acadêmica do nosso país, Relatos como este são ouvidos em
corredores de qualquer escola, seja ela do Ensino Fundamental, do Médio e
até nas estruturas dos cursos de Pós-Graduação, tanto Lato como Strictu
Sensos. Talvez porque a vida acadêmica acompanhe os padrões nacionais de
ética e cidadania, ou mesmo os defeitos dos políticos brasileiros, tão
acostumados aos “acordos” e a “troca de influência” como fatores
preponderantes de seus afazeres.
O mais triste, contudo, nesta relação alienadora, é o profundo
sentimento de solidão que surge para os que por um motivo ou outro não estão
dispostos a fazerem parte do mesmo. Aos que não querem ver o processo
educacional como uma “feira” popular aonde por um pouco de dinheiro pode-se
levar um “lote” de experiências docentes como se estas só valessem em nível
de estatística e não de vivência. Daí, quanto mais alienado 73 , maior a
frustração. Assim, somos afetados pelo sistema que deveria nos proteger
profissionalmente.
Desta forma, o professor se depara no dia-a-dia com uma realidade que
muitas vezes extrapola sua função: experimenta um certo desamparo do
sistema educacional viciado o que reflete obrigatoriamente nas suas relações
com seus alunos. Aonde a sala de aula é a arena que vivencia o docente em
seu esmagamento profissional e sua humanidade, muitas vezes,
desconsiderada por alunos que questionam sua identidade constantemente.
‘...Na tocante carta do filósofo do século XX, o alemão Martin Heiddegger à sua amante Hanna Arent este sentimento de profunda solidão aparece
72 in:PRAXEDES, Walter Lúcio De Alencar, A solidão do professor universitário, Revista Espaço Acadêmico (ano-nº
14/julho 2002) 73 Pensando na idéia marxista de alienação, que seria o conceito que diz respeito ao homem que faz de
sua identidade outra (do latim: alienus = outro), i.e., externa a si
35
no seguinte trecho: “Se em geral me retraio há um longo tempo, isso se dá porque me deparei em todo o meu trabalho com uma falta de compreensão aflitiva e não pude ter mais do que umas poucas experiências pessoais belas em minha atividade docente. Já perdi, aliás, há muito tempo o costume de esperar dos assim chamados alunos um agradecimento qualquer ou mesmo uma meditação sincera.”74
Contudo, Zaratustra, como vimos, diz ser a solidão o caminho do criador.
A criação é, assim, a saída para uma situação que se alastra, muitas vezes, até
que a frustração tire do professor a motivação e o interesse pelo que faz.
Aparentemente, os representantes do sistema educacional até percebem isto
quando dizem que vão “aumentar-lhe o salário” visando melhorar sua vida.
Porém, em todas as atuais entrevistas sobre a educação brasileira há um ponto
repetido constantemente: os professores serão melhores “preparados” para
sua função.
O que de maneira clara demonstra que o professor é visto apenas como
um profissional que tem “melhor” ou “pior” formação e que para o sistema
educacional brasileiro a “educação” melhora ou piora dependendo deste fator:
O professor bem preparado faz uma escola de sucesso, o mal preparado é
responsável pelas agruras que surgem em uma escola que não está dando
certo. O que leva, por analogia, ao professor, a responsabilidade do sucesso
ou fracasso da escola brasileira.
“ Qualquer professor gostaria de ter um aluno que: demonstrasse vontade de aprender e interesse pelo curso participando e questionando; revelasse envolvimento com o curso, estabelecendo ligação teoria-prática; que apresentasse respeito pelos colegas e professores, sem conversas paralelas, uso de celulares; que apresentasse valores éticos e senso crítico (situações com tonalidades agradáveis) alegria, vibração, animação, satisfação, desafio, encantamento, esperança.
74 in:PRAXEDES, Walter Lúcio De Alencar, A solidão do professor universitário, Revista Espaço Acadêmico (ano-nº
14/julho 2002)
36
Porém, sente-se desestimulado quando, na situação concreta de sala de aula, seu aluno: não participa, não se envolve com o curso; demonstra desinteresse, indiferença, apatia; não lê os textos, conversa alto enquanto o colega ou o professor está falando; atende ao celular; vê a aula como uma obrigação chata; demonstra descaso, distância, desrespeito, ausência de comunicação e contato; demonstra falta de reflexão crítica, visão estreita do mundo; interesse apenas por questões técnicas; reivindica compreensão dos professores para seus atrasos, faltas, pouca ou nenhuma leitura, sem dar nada de si; exige ser considerado “coitado”, “vítima”, para esconder seu pouco envolvimento com o curso e a formação.
Gostaria de ter, ainda: tempo para preparar melhor suas aulas; condições para chegar ao começo das aulas sem agitação ou atropelo; turmas menores; espaço para trocar experiências com seus pares; condições para ter maior e melhor contato com os alunos (...) ansiedade, irritação, tristeza, raiva, frustração, insegurança, desânimo, solidão.”75
E na solidão gerada neste “caldo” de frustração e “desamparo” o
docente, assim como Zaratustra, deve descobrir que tem a pata do leão76 . E
mais, deve descobrir a saúde que se esconde por dentro de seu “medo”,
cansaço ou possíveis doenças advindas de seu lidar com o dia-a-dia.
“ Nietzsche também tinha a solidão como sua companheira. Sozinho, doente, tinha enxaquecas terríveis que duravam três dias e o deixavam cego. Ele tirava suas alegrias de longas caminhadas pelas montanhas, da música e de uns poucos livros que ele amava. Eis aí três companheiras maravilhosas! (...)O estar juntos não quer dizer comunhão. O estar juntos, freqüentemente, é uma forma terrível de solidão, um artifício para evitar o contato conosco mesmos. Sartre chegou a ponto de dizer que “o inferno é o outro.(...) Mas, voltando a Nietzsche, eis o que ele escreveu sobre a sua solidão: ‘Ó solidão! Solidão, meu lar!... Tua voz – ela me fala com ternura e felicidade! Não discutimos, não queixamos e muitas vezes caminhamos juntos através de portas abertas. Pois onde quer que estás, ali as coisas são
75 Sentimentos e Emoções: Um Estudo com Professores do Ensino Superior, ALMEIDA, Laurinda Ramalho de –
PUC/SP. Psicologia da Educação / n.20. 76 Figura já citada no trabalho
37
abertas e luminosas. E até mesmo as horas caminham com pés saltitantes...”77
Talvez a solidão seja o melhor momento para se pôr em ordem muitas
coisas. Uma delas é a reavaliação das prioridades. É normal que a sala de aula
leve o professor a ter um foco aquém de si próprio. Diferente de quase todos os
profissionais, o professor quando está diante de seu “cliente” é o seu próprio
produto. Ou seja, ele não presta um serviço, ou vende algo; ele é o serviço que
presta e é a sua vida toda que será refletida quando transfere conhecimento.
Nunca é somente o profissional que dá uma aula, mas um homem inteiro ou
uma mulher inteira.
Seu instrumento é metafísico. Imensurável. Seu discurso não se esgota
no que aprendeu em um curso universitário, mas em toda a sua vida. Um
professor diferente de um médico ou um engenheiro não tem uma técnica
aprendida, mas é o produto de toda uma vida. Por isto é na sua solidão, aonde
tem a consciência que não tem um interlocutor e que deve ver-se, muitas vezes,
em sua impotência.
Mas, como um criador, deve saber, que se decidir poderá ser capaz de
dizer como Zaratustra: ““...E este segredo a própria vida me confiou: ‘Vê, disse,
eu sou aquilo, que deve sempre superar a si mesmo.78.
77 in:Rubem Alves, A Solidão Amiga, http://forum.cifraclub.terra.com.br/forum/11/141502/. 78 Assim Falou Zaratustra, op.cit, “Do supera a si mesmo”, p66
38
CONCLUSÃO
O grande legado que Nietzsche nos deixa é o de não termos medo da
nossa humanidade. Um de seus livros, mesmo, terá como título: “Humano,
Demasiado, Humano” aonde o autor trata da humanidade sem que esta precise
ser motivo de explicações. E é isto que este trabalho tentou apresentar até aqui:
Uma humanidade sem medo de si e de suas conseqüências.
Assim como Zaratustra usou sua solidão como instrumentalidade da sua
busca, assim também o que este trabalho quis foi trazer uma possibilidade
atual e objetiva de uma pedagogia buscada a partir dos momentos em que o
professor se depara consigo mesmo em sala-de-aula.
Talvez, mais que qualquer outro profissional o professor se depara com
seus limites afetivos durante todo o seu percurso. Todos conhecemos, contudo
os que dão suas aulas e depois de um banho quente dormem, só lembrando
de seus alunos quando os encontram de novo em suas classes. Porém, todos
os que são professores existenciais sabem que experimentam uma luta
constante entre o desejo da aceitação de seus alunos e suas necessidades
básicas como docentes tais como respeito, atenção, cumprimento do que foi
pedido, etc.
Atualmente, em nossa sociedade urbana e cada vez mais focada nos
seus egoísmos, o profissional docente se depara no seu dia-a-dia com lutas
que extrapolam suas necessidades de sala-de-aula. Cada vez mais ouvimos de
alunos que ignoram o professor enquanto educador, alunos que agridem seus
professores nas periferias das grandes cidades, professores que usam
uniformes colegiais para não pagarem passagem de ônibus, etc. E desta forma,
parece ficar mais claro nossa “inadequação” ante as dificuldades de um tempo
agressivo e extremamente paradoxal.
É cada vez mais constante, também, a cobrança da sociedade para que
a escola dê conta de uma estrutura social que extrapola seus limites
pedagógicos. E na ponta do ice Berg está o professor; muitas vezes
39
desprestigiado, frustrado, mal pago, infeliz, sem muitas saídas que apontem
algum caminho.
Ao se dirigir à escola como co-responsável pelo fracasso social de
alguns de seus agentes, a sociedade esquece que a escola não é um
organismo abstrato, mas um local de trabalho, aonde a única pré-ocupação
deveria ser a perspectiva da cultura e do ensino. Mas, esta escola,
aparentemente capaz de reinventar uma outra sociedade tem a sua frente, na
maioria das vezes, um profissional solitário: o professor.
No entanto, por todo o seu percurso, o personagem Zaratustra diz que a
solidão é livramento do “instinto de rebanho” - que quer a preservação por
medo do novo. Diferente do seu registro de desamparo a solidão, para este
personagem demonstra, que diferença entre o criador e o rebanho pode ser
justamente a solidão. Pois, é a solidão o instrumento da transvaloração dos
valores. Ou seja, é a solidão que tem a capacidade de traspassar os valores
estabelecidos. Até porque para Zaratustra, “estávamos somente em nossa
companhia”79.
O que se pode alcançar com este tema? Talvez a compreensão do que
se passa quando um professor está à frente de uma turma. Suas “defesas”,
suas possibilidades e como este profissional singular lida com a
responsabilidade dada pela Sociedade, sem que haja por parte do Estado
brasileiro um respaldo eficaz. As constantes cobranças externas e internas
podem, finalmente, fazerem perder a compreensão da sua identidade humana
que lida com a cobrança contínua de pelo menos 150 alunos por semana –
pensando em duas aulas semanais – e que, por ser humana, não precisa dar
conta de tudo.
Sendo vista desta forma, a solidão se torna pedagoga, pois, seu
encontro será marcado pelo vigor da criação. E assim, não seria a causada por
um modo de vida, mas, seria o significado do próprio viver. E aí o surgimento
do outro para mim e de sua presença continuada na minha vida - como
elemento constitutivo do meu mundo particular e, acima de tudo, como
elemento constitutivo do “mim mesmo” - se torna, em sua radical alteridade,
79 in: Gaia Ciência, aforismo, 166
40
não mais a instituição de um doloroso processo de auto-reconhecimento,
porém, de uma perspectiva que apesar de solitária é recriadora do meu “estar-
aí-no-mundo”.Geralmente, no entanto, isto se dá pela redução do outro ao
“mim mesmo”, pois a descoberta da diferença fatalmente requer a exclusão do
“eu absoluto” e a aceitação do “eu-compartilhado”.
Ao Identificar-se à relação existente entre o profissional docente e o ser
humano que se recria na sua solidão cotidianamente, pode significar um salto
para uma qualidade de vida que não se restrinja aos salários que nunca
chegam, ou às condições de trabalho que na maioria das vezes estão longe do
ideal. Esta “pedagogia” que se estabelece na solidão do professor e sua rotina
cotidiana pode, enfim, amenizar o processo sempre doloroso do reconhecer-se
no outro e não ser por ele “devorado” por sua não aceitação.
A solidão do professor em sala de aula, enquanto pedagoga, é desta
forma, sinônimo de autonomia. Não mais, então, o sentimento melancólico,
mas, uma atitude criadora. E este caminho para si mesmo - é para o professor
– se torna muitas vezes, uma longa jornada solitária. Um percurso que conhece
a frustração, o fracasso e a doença em suas mais diversas manifestações
somáticas ou não.
O que nos ensina a solidão? A proposta deste trabalho foi à busca de
pistas que se apresentassem, de maneira a levar os docentes ao encontro de
suas próprias limitações e de seus horizontes, profissionais ou existenciais. A
escolha de Zaratustra foi motivada por isto. Até porque na literatura raros
autores conseguiram criar um personagem que fosse capaz de propor que a
solidão é o único caminho que um criador pode tomar até se recriar. De uma
forma tal, que se lhes prepusessem voltar sempre aos mesmos momentos de
sua vida ele diria que sim mil vezes. Será que um dia a sala-de-aula nos levará
a isto?
41
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
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mailto:[email protected] NEUKAMP, Elenilton. As Críticas Do Professor Nietzsche À Educação De Seu Tempo, AS CRÍTICAS DO PROFESSOR NIETZSCHE À EDUCAÇÃO DE SEU TEMPO.htm
43
ÍNDICE
FOLHA DE ROSTO 02
AGRADECIMENTO 03
EPÍGRAFE 04
RESUMO 05
METODOLOGIA 06
SUMÁRIO 07
INTRODUÇÃO 08
CAPÍTULO I
NIETZSCHE: UM EDUCADOR 11
CAPÍTULO II
ASSIM FALOU ZARATUSTRA 15
I.1 Um Viés No Avesso 20
I.2 Sobre A Solidão 22
CAPÍTULO III
UM SIM Á SOLIDÃO 27
II.1 Sobre Uma Nova Saúde 28
CAPÍTULO IV
A SOLIDÃO COMO PEDAGOGA 33
CONCLUSÃO 38
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 41
ÍNDICE 43
FOLHA DE AVALIAÇÃO 44