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93 A prática da transdisciplinaridade no ensino superior TRANSFORMAÇÃO UM DEBATE ENTRE RELATIVISMO E UNIVERSALISMO CULTURAL NOS DIREITOS HUMANOS Suellen Abou El Hosn Ribeiro Malato 5 RESUMO O presente artigo aborda duas teorias acerca dos Direitos Hu- manos, o Relativismo e o Universalismo cultural. Apresenta uma reflexão teórica e prática, com o objetivo de buscar a afirmação dos Direitos Humanos por meio de um diálogo transcultural, propondo uma concepção multicultural desses direitos, de forma a reconhecê-los como universais, todavia, sem admitir a postura filosófica da universa- lidade imperialista de dado sistema regional ou local sobre os demais. PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos. Universalidade. Relativ- ismo Cultural. ABSTRACT This article deals with two theories of Human Rights, the Cultural Relativism and Universalism, much discussed today. Through a theoretical and practical, seeking the affirmation of human rights through a transcultural dialogue, offering a multicultural conception of human rights in order to recognize them as universal, however, without accepting the philosophical stance of universality imperialist system of data regional or local level on the other. KEY-WORDS: Human Rights. Universality. Cultural Relativism. 5 Advogada. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade da Amazônia – UNAMA. Professora de Direitos Humanos e Direitos Constitucional da Faculdade de Belém- FABEL. 21463________MIOLO_______REVISTA_CIENTIFICA_BELEM.indd 93 21463________MIOLO_______REVISTA_CIENTIFICA_BELEM.indd 93 21/05/2012 09:14:20 21/05/2012 09:14:20

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A prática da transdisciplinaridade no ensino superiorTRANSFORMAÇÃO

UM DEBATE ENTRE RELATIVISMO E UNIVERSALISMO CULTURAL NOS DIREITOS HUMANOS

Suellen Abou El Hosn Ribeiro Malato5

RESUMO

O presente artigo aborda duas teorias acerca dos Direitos Hu-manos, o Relativismo e o Universalismo cultural. Apresenta uma refl exão teórica e prática, com o objetivo de buscar a afi rmação dos Direitos Humanos por meio de um diálogo transcultural, propondo uma concepção multicultural desses direitos, de forma a reconhecê-los como universais, todavia, sem admitir a postura fi losófi ca da universa-lidade imperialista de dado sistema regional ou local sobre os demais.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos. Universalidade. Relativ-ismo Cultural.

ABSTRACT

This article deals with two theories of Human Rights, the Cultural Relativism and Universalism, much discussed today. Through a theoretical and practical, seeking the affi rmation of human rights through a transcultural dialogue, offering a multicultural conception of human rights in order to recognize them as universal, however, without accepting the philosophical stance of universality imperialist system of data regional or local level on the other.

KEY-WORDS: Human Rights. Universality. Cultural Relativism.

5 Advogada. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade da Amazônia – UNAMA. Professora de Direitos Humanos e Direitos Constitucional da Faculdade de Belém- FABEL.

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1 INTRODUÇÃO

A História mostra que as políticas dos direitos humanos estiveram em geral a serviço dos interesses econômicos e geopolíticos dos Estados capitalistas hegemônicos.

A internacionalização dos direitos humanos ganhou força após a Segunda Guerra, no entanto, com a guerra fria entre países capitalistas centrais e países socialistas, a bandeira dos direitos humanos tornou-se alvo mundialmente suspeito. Esse fato criou escolhos à emancipação global quanto aos direitos humanos, pois sob o pretexto de proteção dos direitos humanos, aqueles intervinham nestes, tendo, na verdade, interesses políticos e econômicos.

Esse fato ainda é verifi cado nos dias de hoje, não mais no combate ao socialismo, mas por interesses econômicos. Por exemplo, os Estados Unidos, escudados na falácia da democracia e no alto combate ao terrorismo, promovem guerra contra países árabes, procurando justifi car sua postura com ofensas infundadas aos direitos humanos, cortinando seu interesse econômico no petróleo desses países.

Dessa forma, é com lastro histórico que se observa a inadequação do procedimento de globalização hegemônica, pautado em uma postura ocidental de universalização dos direitos humanos, que, em vez de afi rmá-los e emancipá-los, destrói a sua legitimação e internalização pacífi ca.

Os Direitos Humanos passaram a ter grande importância a partir de herança histórica de grandes atrocidades ocorridas no mundo, principalmente na Segunda Guerra Mundial, que impossibilitava uma convivência digna dos seres semelhantes no ambiente comum. Em virtude dessas atrocidades, em meados do século XX, consolidam-se internacionalmente os direitos humanos, surgindo assim, a corrente universalista de proteção os Direitos Humanos.

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Diante disso, surge, como obstáculo ao Universalismo, a corrente Relativista, autorizando práticas que, para os universalistas, viola a dignidade humana, escudada no respeito à cultura de um povo. No entanto, para os Relativistas trata-se da própria legitimação da lei local, o reforço da manifestação cultural de um povo.

Contudo, para a emancipação dos direitos humanos, deve-se tentar superar o debate entre universalismo e relativismo cultural.

2 A FORÇA VINCULANTE DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE DIREITOS HUMANOS

O ponto de partida da discussão sobre a Universalidade de Di-reitos Humanos foi a própria Declaração Universal de Direitos Hu-manos, adotada por 48 Estados em 10 de dezembro de 1948, logo após a segunda Guerra Mundial, tida, portanto, como uma procla-mação de direitos. No entanto, embora tenha sido adotada pelos Es-tados como parte integrante de sua legislação, ainda há quem negue sua força vinculante (COMPARATO, 1999, p. 209)

A falta de força vinculante da Declaração Universal de Direi-tos Humanos, conquanto sustentada por parte da doutrina, lembram criticamente Comparato (1999), Trindade (2000) e Piovesan (1996), não signifi ca inexistência de conteúdo normativo de seus princípios, pois, segundo Alexy (2007), embora princípios não sejam regras (mandamentos defi nitivos), são espécies do gênero norma, possuin-do, portanto, conteúdo normativo como mandamento ou ordem de otimização, ou seja, determinam a otimização do sistema jurídico presente, tornando injuntivo não apenas o comando evolutivo concernente aos direitos humanos, como a imposição ao Legislativo e ao Poder Público em respeito aos princípios nela declarados, por serem inerentes à própria condição e dignidade humanas.

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O surgimento da Declaração Universal não nasceu com o propósito de possuir força de lei, já que não se deu por meio de um tratado internacional, mas sim através de uma resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas. Surgiu, portanto, com o propósito de esclarecer a expressão “direitos humanos e liberdades fundamentais”, assim como, promover o reconhecimento universal desses direitos, no pertinente ao reconhecimento e à promoção dos direitos humanos, assim como, à concretização de ações nesse sentido. Portanto, mesmo diante dessa falta de força normativa, ao menos os Estados membros da ONU têm a obrigação de respeitar os direitos proclamados por essa Declaração, já que dela fazem parte (DANTAS; LUCENA; LUCENA, 2009).

Ora, embora a Declaração Universal de Direitos Humanos não tenha surgido com força de lei e nem tenha sido constituída sob a forma de um tratado internacional, possui força normativa, dado seu caráter principiológico intrínseco à natureza e à dignidade humana. Tal conclusão, também se dá pelo fato de que a Declaração já integra os costumes internacionais e os princípios gerais do Direito Internacional (DANTAS; LUCENA; LUCENA, 2009).

Atualmente, essa discussão se queda quase desnecessária, pois os princípios proclamados na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), em sua totalidade ou em boa parte, não apenas infl uenciaram as constituições, legislações e jurisprudências de diversos Estados, sendo, inclusive, internalizados por muitos deles, como também foram internacionalizados por várias resoluções da ONU. Resta, ainda, sublinhar, que muitas decisões internacionais são fundamentadas por princípios expressos da DUDH, tornando-os cogentes a todos os Estados, mesmo àqueles não signatários dessa Declaração, pois ela passou a integrar o direito costumeiro internacional, sendo, ainda, segundo a professora Piovesan (1996), adotada como texto interpretativo da Carta das Nações Unidas.

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Com a idéia de que a DUDH seria adotada por todos, embora desprovida de força normativa, mas atrelada pelo seu caráter principiológico, nasce uma visão holística de todos os direitos humanos, historicamente, signifi cativa na medida em que supera as divisões ideológicas do mundo.

Consolida-se um verdadeiro consenso ético sobre valores de cunho universal a serem seguidos pelos Estados, razão porque Casin, apud Piovesan, afi rma como características básicas a amplitude e a universalida:

Seja-me presumido, antes de concluir, resumir as características da Declaração, elaborada a partir de nossos debates no período de 1947 a 1948. Esta Declaração se caracteriza, primeiramente, por sua amplitude. Compreende um conjunto de direitos e faculdades sem as quais o ser humano não pode desenvolver a sua personalidade física moral e intelectual. Sua segunda característica é a universalidade: é aplicável a todas as pessoas de todos os países, raças, religiões e sexos, seja qual for o regime político dos territórios nos quais incide. (PIOVESAN, 2006, p. 130).

Piovesan (2000), por sua vez, acentua que a inexistência de qualquer questionamento ou reserva feita pelos Estados aos princípios da Declaração, igualmente qualquer voto contrário às suas disposições, por si só conferem-lhe signifi cado de um código e plataforma de ação.

3 AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS

Os direitos humanos reconhecidos não foram positivados todos ao mesmo tempo, ao contrário, se deu em diferentes momentos históricos, conforme as próprias condições históricas de afi rmação dos direitos.

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Os direitos liberais foram afi rmados quando se fez possível afi rmá-los, os sociais o mesmo, e assim por diante, o que levou ao surgimento da ideia de gerações de direitos humanos, expressão costumeiramente utilizada para referir-se a determinado grupo de direitos, surgidos numa determinada época histórica, com características bem peculiares.

No entanto, a doutrina tem substituído o uso da palavra gerações pelo da palavra dimensões, ao fundamento de que a primeira passaria uma noção inadequada do processo evolutivo dos direitos humanos.

A palavra geração transmite a idéia de substituição de um objeto por outro, mais novo e diferente, de modo que, com o passar do tempo, uma geração é sempre substituída por outra, sendo a geração antiga abandonada pelo surgimento da nova.

Essa signifi cação não condiz com o processo histórico dos direitos humanos, eis que o reconhecimento de novos direitos não é feito para substituir, nem suprimir, os direitos já reconhecidos, de modo que uma “nova geração” não vem ocupar o lugar da “velha geração”.

Não há entendimento unânime quanto ao número exato de gerações existentes, se falando em três, quatro e até cinco gerações; mas, de todo modo, há certo consenso acerca das três primeiras gerações.

Lafer (1988, p. 131.) ainda consagra no processo de afi rmação histórica dos direitos humanos a existência de uma “terceira” e mesmo de uma “quarta” geração de direitos, associadas aos ideais de solidariedade ou fraternidade, voltados para a coletividade como um todo, objetivando valores abrangentes. (1).

Com efeito, criticando a separação estanque entre as “gerações” de direitos humanos, Comparato (1989, p. 47-49) recomenda observação mais acurada sobre essas classes ou gerações de direitos

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humanos, a fi m de que se perceba como as fronteiras entre umas e outras se esbatem e tendem a dar lugar à interpenetração funcional entre todos eles.

Dessa maneira, ganha força a idéia de que a primeira geração é composta de direitos individuais, cuja pretensão se exerce contra o Estado, constituindo, possivelmente, dogma da pregação liberal que afi rma ser o indivíduo tanto mais livre quanto mais direitos tenha contra a interferência estatal em sua vida privada.

A primeira dimensão de direitos humanos passa a ser afi rmada no período, compreendido entre a superação do Estado Absolutista e a implantação do Estado Liberal de Direito.

O reconhecimento da primeira dimensão de direitos surge com a conjugação de dois fatores. O primeiro representaria o questionamento da sociedade acerca do direito à liberdade, ora oprimido pelo monarca absolutista e, o segundo, as teorias contratualistas, que surgiram com os teóricos do absolutismo; Jonh Locke, Rousseau e Sieyés; afi rmando que os homens nascem livres e iguais, que são merecedores de direitos e, que se não os tem, é porque o Rei é um tirano que furtou suas liberdades. A somatória desses dois fatores resultou na Revolução Gloriosa da Inglaterra e no Processo de Independência Americano nos Estados Unidos, representando assim, o primeiro marco histórico no processo de afi rmação da primeira dimensão de direitos.

Diante do primeiro momento histórico, surge o reconhecimento dos direitos civis e políticos, como primeira dimensão de direitos humanos, fruto das revoluções liberais e da transição do Estado Absolutista para o Estado Liberal do Direito.

A característica central da primeira dimensão é o fato de os direitos possuírem características negativas, no sentido de que negam a intervenção estatal, limitando o poder de atuação dos governantes.

Nesse primeiro momento, promove-se uma separação entre o Estado e a sociedade: de um lado o Estado, do outro a sociedade, sendo

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que qualquer intervenção do Estado na vida privada das pessoas seria considerada medida de opressão, uma tentativa de resgatar o período absolutista.

A idéia de que determinados direitos dos homens seriam naturais e não poderiam deixar de ser reconhecidos impulsionou as revoluções liberais, culminando na derrota do Estado Absolutista e na implantação do Estado liberal de Direito.

A segunda dimensão de direitos humanos compreende os direitos da igualdade, que são; os direitos sociais, econômicos e culturais, fruto da transição do Estado Liberal para o Estado Social. A característica central desses direitos é o fato de serem direitos positivos, isto é, prestacionais, no sentido de que obrigam o Estado a atuar positivamente, intervindo no domínio econômico e prestando políticas públicas de caráter social.

A afi rmação do direito à igualdade retrata um momento histórico no qual se reclamava a necessidade de o Estado intervir no domínio econômico e distribuir riqueza por via da prestação de determinados serviços essenciais, como saúde e educação, que não eram acessíveis a toda à população, mas somente àqueles que tinham condições econômicas.

Os grandes marcos históricos dessa geração são a Revolução Mexicana, de 1910, e, principalmente, a Revolução Russa, de 1917, que levou à implantação do Estado Socialista na Rússia e impactou profundamente o cenário político mundial.

A terceira dimensão de direitos humanos têm como valor os direitos da fraternidade ou solidariedade; que são os direitos difusos; dos povos, da humanidade. Essa dimensão é fruto do pós Segunda Guerra Mundial, e nela se discute a compreensão que se tem do ser humano em relação aos seus semelhantes, diferentemente da primeira dimensão, que trata da idéia da posição do Estado em relação ao individuo. Surge aqui, o discurso universalista dos Direitos

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Humanos, onde a proteção desses direitos deve ser assegurada em todo e qualquer lugar, independente de raça, sexo, cor e religião.

Bobbio já afi rmava, desde 1990, como se infere de sua obra “A era dos Direitos”, a existência de direitos de quarta geração, referentes aos efeitos da pesquisa biológica e da manipulação do patrimônio genético das pessoas. (SIQUEIRA; PICCIRILLO, 2008).

Bonavides também afi rma a existência de novas gerações, e chega a falar em cinco gerações de direitos, sustentando que a quarta geração compreenderia o direito à democracia e a quinta geração o direito à paz, afi rmando que a democracia deixou de ser um mero regime político para se afi rmar como um verdadeiro direito humano, o mesmo ocorrendo em relação à paz, que deixa de ser um mero propósito para ser elevada à categoria de direito das pessoas. (REIS, 2006).

Uma concepção ampla de Direitos Humanos nasceu com a Declaração Universal, adotada por 48 Estados logo após a 2a Guerra Mundial, em 10 de dezembro de 1948.

Instituiu-se uma visão holística de todos os direitos humanos, como assim prescreveu Trindade (1997), historicamente signifi cativa na medida em que superava as divisões ideológicas do mundo. (2)

Consolidou-se um verdadeiro consenso ético sobre valores de cunho universal a serem seguidos pelos Estados, tendo como características básicas a amplitude e a universalidade.

Em um único documento, pela primeira vez na história, consagraram-se os chamados direitos civis e políticos de “primeira geração”, artigos 3o a 21, com os direitos sociais, econômicos e culturais de “segunda geração”, artigos 22 a 28, representando, dessa maneira, um marco na área dos direitos humanos.

O artigo 5o da Declaração de Viena de 1993 reafi rmaria a interdependência entre as “gerações” dos direitos humanos,

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consolidando que esses direitos são universais, indivisíveis, in-terdependentes e inter-relacionados, devendo a comunidade interna-cional tratá-los globalmente de forma justa e equitativa.

Dessa maneira, os direitos humanos compõem uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos ao catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais.

Piovesan (2004) caracteriza a universalidade como um clamor pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a dignidade e titularida-de de direitos, e a indivisibilidade, em razão da garantia dos direitos civis e políticos, uma condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais ou vice-versa. Quando um deles, portanto, é violado, os demais também se tornam violados. (3).

No facho da acusação de que a Declaração Universal ensejaria um produto do imperialismo e do etnocentrismo ocidental, surgiram movimentos que foram denominados de “Relativismo Cultural”, face à resistência que ofereciam à indivisibilidade e à universalidade dos direitos humanos.

4 RELATIVISMO CULTURAL E DIREITOS HUMANOS

A visão relativista dos direitos humanos, oposta à universalista, entende que não devem existir critérios mínimos para o diálogos entre culturas, ou seja, direitos humanos são relativos, dependendo de cada povo. Por isso, não há como universalizar direitos, já que cada cultura tem liberdade de considerá-los ou não. Nessa concepção dos direitos humanos não se pode falar em direitos universais, pois cada povo é livre para estabelecer seus próprios valores e direitos. Logo, não existe a possibilidade de proteção internacional dos direitos humanos nessa visão (REIS, 2005, p. 3).

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O movimento relativista, que, contrapõe-se ao universalismo cultural, volta-se assim aos ideais da Revolução Francesa e da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, que efetivamente não foram concretizados na maior parte do mundo.

A celeuma entre essas duas vertentes culturais se revigora quando a questão perpassa pela internacionalização dos direitos humanos, uma vez que esse movimento produz uma fl exibilidade no que diz respeito à soberania nacional e jurisdição local gerando, portanto, um padrão mínimo de proteção dos direitos humanos, ao quais os Estados devem se adequar.

As particularidades culturais, políticas, econômicas, sociais e morais de uma determinada sociedade formam, em conjunto, uma noção peculiar do direito. Essa noção de direito, específi ca àquela sociedade, posto que circunstâncias culturais e históricas assim o produziram, se objeta à formação de uma moral universal em virtude do pluralismo cultural criado pela diversidade social.

Imperioso, portanto, é o respeito que se deve às diferenças culturais de cada sociedade.

Essa visão relativista sustenta-se em três premissas básicas: a moral varia de lugar para lugar; é necessário estar inserido na sociedade a qual se pretende compreender sua diversidade da moral; o contexto cultural valida as reivindicações morais de cada sociedade. (VINCENT, 2001, p. 37-38).

A partir desta pluralidade cultural, não há que se falar em universalidade, uma vez que cada cultura produz seu próprio valor.

Essa concepção relativista resulta de uma constatação antropológica da existência de um multiculturalismo. Os antropólogos apresentam estudos sobre as diversas culturas dos inúmeros povos distribuídos sobre a superfície do planeta. Mediante estudos etnográfi cos, sob perspectivas teóricas, procuram entender e explicar certos costumes existentes entre grupos de seres humanos.

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Geralmente costumam esposar valores e práticas em nome da valorização da tradição e da cultura. Dessa forma, não se permite o estabelecimento de normas universais de comportamento social, sob pena de caracterizar a destruição da diversidade cultural.

No entanto, quando o assunto focaliza os direitos humanos, ou seja, direitos que produzem efeitos no quadro da legislação nacional, relativos não somente aos cidadãos nacionais, mas a todas as pessoas, busca-se a fundamentação ética, racional e moral desses direitos, que justifi quem a sua pretensão a uma validade universal. Habermas (1996, p. 89), por sua vez, posiciona-se para a universalidade dos Direitos Humanos.

Assim, pelo relativismo cultural, não há como universalizar direitos, já que cada cultura tem liberdade de considerá-los ou não. “Nessa concepção dos direitos humanos não se pode falar em direitos universais, pois cada povo é livre para estabelecer seus próprios valores e direitos. Logo, não existe a possibilidade de proteção internacional dos direitos humanos” (REIS, 2005).

5 UNIVERSALISMO CULTURAL E DIREITOS HUMANOS

A concepção universalista signifi ca que toda e qualquer cultura deve respeitar um conjunto mínimo de valores. Embora, exista várias idéias, o importante é que seja respeitado esse mínimo.

A cultura dos direitos humanos universais, com mais de cinqüenta anos de idade, surge como possibilidade ética na era da globalização, inserindo-se em rica tradição de idéias sobre verdadeira política medieval de uma Cristandade unida, pela visão islâmica de uma comunidade mundial, pelo compromisso iluminista coma razão universal, pelos ideais universais de igualdade, liberdade e fraternidade da Revolução Francesa, pelo movimento comunista internacionalista, pela visão budista de integração cósmica da

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humanidade e muitas outras utopias globais.

Os críticos da concepção universal dos direitos humanos apresentam uma visão excessivamente territorialista de comunidade humana, de solidariedade humana e de afi nidade social. Prendem-se de maneira conservadora à noção historicamente construída de Estados e culturas.

As questões culturais advindas com a globalização não admitem concepções de cultura e do direito limitadas somente a realidade dos Estados Nacionais. No âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, há quem defenda (BECK, 2000, p. 22-26) que a reorientação conceitual exige a superação de posições extremadas entre relativistas e universalistas.

A concepção universalista reafi rma-se a partir de algumas visões críticas.

A primeira situa-se no posicionamento de que “o universalismo baseia-se em visão essencialista da natureza humana”, refutando-se a visão de que os homens partilham a mesma natureza. A segunda enfatiza que o universalismo dos direitos humanos é ideologia a serviço dos valores ocidental; A terceira visão é a de que a universalidade produz a pobreza da pasteurização cultural; e, a quarta, por sua vez, afi rma que a universalidade dos direitos humanos é um equívoco porque não existem valores universais.

Na primeira visão crítica, exemplifi ca pela tradição jusnaturalista, assentada no argumento tautológico, segundo a qual, independentemente do direito positivo, existe um direito natural, derivado da natureza divina em que todos estão afeitos tal como a afi rmação de que uma pessoa seria titular de direitos humanos pelo simples fato de ser humana.

O professor Fernandez (2000, p. 52), conduz que o fato é biológico, e que os seres humanos são todos membros da mesma espécie: dependentes todos de uma mesma linha dentro da história

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recente, compartilhando mais de 999.000 genes, todos possuindo cérebros que, ao nascer, poderiam ser intercambiados sem que ninguém notasse.

Booth (1995, p. 52), ensina que “devemos ter direitos humanos não porque somos humanos, mas para nos fazermos humanos” dentro de uma sociedade de direitos fundamentais.

Observa bem o professor Klautau Filho (2004, p. 56) que o desenvolvimento de uma cultura de direitos humanos é fundamental porque é um dos meios para que os fi sicamente humanos possam inventar os socialmente humanos de maneira apropriada na era da globalização.

Na segunda visão crítica, o universalismo dos direitos humanos é ideologia a serviço dos valores ocidentais, levantados frequentemente por países como a China e os islâmicos, calcados no excesso do imperialismo ocidental.

O surgimento de uma cultura dos direitos humanos no Ocidente, como observa o professor Klautau (2004, p. 57), é apenas o começo de uma história muito recente que ainda não determina seu desenvolvimento, marcando, por ora, o início de uma discussão mais importante acerca de como devem viver os seres humanos.

O problema não se resume às relações de espaço, considerando que condição humana é o destino, tampouco as associadas relações materiais e políticas, considerando que a expansão de uma cultura de direitos humanos compreende o universo existencial como um todo.

Na terceira visão crítica, o universalismo imporia uma generalização da cultura, desconstituindo-a e transformando-a em amálgama indefi nido, perdendo-se de suas origens.

Contudo, afi rma Booth (1995, p. 52), o universalismo, fruto da democracia, estabelece padrões que contribuem para a diversidade cultural, mas não implicam em homogeneidade. A alegada “pasteurização” dos acadêmicos, parece trivial e paternalista

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se comparada ao problema, por exemplo, enfrentado por mulheres diante do patriarcado. A proliferação do feminismo enfraquece a universalidade transcultural do patriarcado.

Como enfatiza o supracitado mestre, as vítimas de determinadas práticas universais ou locais, questionadas sobre a natureza desses atos, observam a solidariedade universal muito mais como esperança do que como ameaça.

Na quarta visão crítica, sustentam seus observadores (ARNAUD, 1999) a inexistência de valores universais constituindo o grande equívoco formulado pela área de direitos humanos, pois também não existe uma comunidade ética universal que permita se falar em direitos universais.

Essa visão desconsidera o atual consenso internacional em termos de direitos humanos, e o próprio grau de comum mensurabilidade de valores que existe entre comunidades, sugerindo que o comportamento moral não é traço cultural, e sim predileção.

Acredita-se, ainda, que o nacional é o natural e que é uma utopia a concepção de humanidade comunitária. Observa o professor Klautau (2004, p. 56) que o nacionalismo e a soberania estatal são poderosas idéias universais, mas não são naturais, tampouco primordiais, e sim invenções recentes na história.

Booth (1995, p. 62-64) utiliza o termo human wrongs para fatos sociais universais facilmente reconhecidos em todas as sociedades, constituindo um desafi o para o mundo globalizado. Outros dois argumentos apresentam-se, qual seja a existência universal de uma comunidade ética, com destaque às vítimas de violação dos direitos humanos, e a empatia geral de todos quantos existirem perante alguma dessas violações.

Trindade (1991, p. 173) avalia que a Declaração dos Direitos Humanos de Viena, 1993, abstraiu o conceito de universalidade enriquecida pela diversidade cultural, “a qual jamais pode ser invocada

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para justifi car a denegação ou violação dos direitos humanos” em nome de um relativismo cultural.

Santos defende o diálogo entre as culturas, o equilíbrio “entre a competência global e a legitimidade local” (PIOVESAN, 2006, p. 147), que permitirá, assim, a construção de uma concepção multicultural dos direitos humanos.

Segue essa tendência, Flores (2004, p. 7) quando defende um universalismo de confl uência, de ponto de chegada, ou seja, universalismo como resultado de processos confl itivos, discursivos, refl exivos e não de superposição de propostas.

Destarte, na perspectiva do equilíbrio, o caminho trilhado para alcançar uma cultura de direitos humanos, calcado no entendimento do “mínimo ético irredutível”, decorre da abertura do diálogo entre as culturas, baseado no respeito à diversidade, sem, no entanto, perder de vista o reconhecimento pleno da dignidade e direitos do outro.

Diante da visão relativista que pode ocultar e justifi car violações à dignidade da pessoa humana e da posição universalista emperrada no formalismo inócuo e no idealismo ingênuo surge, então, o diálogo transcultural como abordagem construtiva objetivando a expansão de posicionamentos em busca de uma afi rmação internacional de direitos humanos.

6 CONCLUSÃO

O debate entre universalistas e relativistas continua a ser o ve-lho problema do alcance das normas de direitos humanos, ainda que a Declaração tenha lhe oferecido uma concepção universal.

Para os relativistas, a noção de direito encontra-se relacionada ao sistema político, econômico, cultural, social e moral. Os relativis-tas crêem que o pluralismo cultural impede a formação de uma moral universal, sendo necessário que se respeitem diferenças culturais que cada sociedade apresenta, igualmente seu específi co sistema moral.

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Vincent (2001, p. 37-38) ensina que a doutrina do relativis-mo cultural sustenta que as regras sobre moral variam de lugar para lugar. Para melhor compreensão dessa diversidade, é necessário a co-locação do intérprete dentro do contexto cultural em que se afi rma. Segundo o autor, as reivindicações morais são derivadas de um con-texto cultural que lhe oferecem validade.

Não haveria moral universal, já que a história do mundo é a história de uma pluralidade de culturas. Buscar, portanto, uma uni-versalidade, ou mesmo o princípio da universalidade defendido por Kant como critério de toda moralidade, seria uma visão imperialista generalizando valores de determinada cultura (2001, p. 37-38).

Observa Donnely (2002, p. 109-110) haver diversas correntes relativistas, uma delas, a do relativismo cultural radical, a qual esta-belece que a cultura é a principal fonte de validade de um direito ou regra moral.

Piovesan (2006, p. 147) bem observa que, em sendo assim, qualquer afronta ao chamado “mínimo ético irredutível” que comprometa a dignidade humana, ainda que em nome da cultura, importará em violação a direitos humanos. Segundo ela, para dialogar com Donnely, poder-se-ia sustentar a existência de diversos graus de universalismos, dependendo do alcance do “mínimo ético irredutível” que a própria defesa apontaria para a corrente universalista, ainda que a um universalismo radical forte ou fraco.

Os instrumentos internacionais de direitos humanos, anota a professora, são claramente universalistas, uma vez que buscam assegurar a proteção universal dos direitos e liberdades fundamentais, adotando termos generalizados como para estabelecer direitos consagrados do tipo “todas as pessoas têm direito à vida e a liberdade”, ou mesmo “ninguém poderá ser submetido a tortura”, contidos no artigo 2º e 5º da Declaração Universal, respectivamente.

Ainda que a prerrogativa de exercer a própria cultura seja direito fundamental da própria Declaração Universal, nenhuma

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concessão é feita às “peculiaridades culturais” quando houver risco de violação a direitos humanos fundamentais. Dessa maneira, para os universalistas, o fundamento dos direitos humanos é a dignidade humana, constituindo-se como valor intrínseco para a condição humana (PIOVESAN, 2004, p. 144).

A idéia da universalização dos direitos humanos, para os relativistas, é concepção puramente ocidental em franca destruição da diversidade cultural. Nesse sentido, pretender a universalidade dos instrumentos legais simbolizaria a arrogância do imperialismo cultural do ocidente, na tentativa de universalizar suas próprias crenças.

Os universalistas, por sua vez, alegam que esse posicionamento revela o esforço de justifi car graves casos de violações dos direitos humanos baseados numa identidade relativista que se julgaria fora do controle da comunidade internacional.

Barreto (s/d) aponta para uma postura fi losófi ca na solução do debate:

Verifi camos, assim, que não se encontra uma mesma resposta sobre a natureza dos direitos humanos, quando fi camos prisioneiros da experiência cultural e particular de cada povo. Trata-se de uma questão que deverá ser solucionada no plano propriamente da refl exão fi losófi ca e não no terreno da pesquisa social empírica, onde casos particulares per se não confi rmam, nem desmentem, a possibilidade ou não da universalidade de valores e normas.

A possibilidade de se adotar uma solução através da refl exão fi losófi ca é prejudicial à emancipação dos direitos humanos.

Uma vez que nenhuma cultura é completa, podemos afi rmar que o relativismo cultural eiva-se falso. Toda cultura será relativa, portanto, trata-se de uma concepção falsa. Contudo, o relativismo

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cultural, adotado como atitude fi losófi ca, queda-se incorreto, implicando dizer que se toda cultura é relativa, os direitos humanos também são, logo, não haveria necessidade de emancipá-los ou globalizá-los.

O relativismo cultural imporia como postura procedimental: que cada cultura regulasse o seu próprio sistema de direitos huma-nos, no entanto, isso implicaria a manutenção do status quo, visto que, se toda cultura embora pense ser completa, é, na verdade, incom-pleta, ela não buscaria como evoluir e se otimizar mais rapidamente permanecendo no remanso em que se fada encontrar.

Tal posicionamento, de se ter o universalismo cultural, como atitude fi losófi ca, também é prejudicial à emancipação dos direitos humanos, já que impõe o risco do desrespeito às diferentes culturas.

A solução encontra-se em uma concepção multicultural, con-forme propõe usa Santos (1997) que permita diálogos interculturais sobre preocupações isomórfi cas, ou seja, uma interação entre as di-ferentes culturas de forma que todos possam falar a mesma língua, como se fosse o esperanto, preservando a cultura interna de cada um.

Santos (1997), ao propor um multiculturalismo para os Direi-tos Humanos, o faz por meio de uma hermenêutica diatópica.

O respeito mútuo, devido no diálogo intercultural, facilita conhecer a cultura alheia pelos respectivos topoi, propondo ampliação do círculo de reciprocidades dos direitos humanos com base no conhecimento e respostas dadas pela cultura que se lê, sem a ingerência de outras culturas, a não ser para, no cotejo, verifi car-se a incompletude de cada cultura, pois é muito difícil que se enxerguem as incompletudes e as falhas de cada qual, olhando apenas para dentro de si, sem uma leitura sobre as demais culturas pelo fato de cada cultura tender a se considerar completa e sufi ciente.

É inegável que essas concepções de Direitos Humanos (relativismo e universalismo) afetam o tratamento da Comunidade

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Internacional, pois se adotarmos a postura relativista, estamos autorizando atos como o terrorismo sob a justifi cativa de libertação de determinada cultura e, por conseguinte, não violação a direitos humanos. Da mesma forma, imaginemos que adotemos uma postura universalista, onde se proíba o ataque terrorista em que se faz uso do próprio corpo contra a morte, sua e de milhares de pessoas, não estaríamos impedindo o direito que aquela pessoa tem, fertilizado em sua cultura, de poder dispor de seu corpo em nome de uma causa que para eles é considerada muito maior, a de morrer em combate? Nessa concepção, o cidadão preferiria morrer desta forma do que em uma cama de hospital, e digo mais, não só preferiria, como estaria respeitando a vontade de Deus, pois assim o é e se encontra escrito nos livros sagrados. No entanto, adotar tal postura (relativismo) seria uma violação aqueles direitos que são inerentes a toda e qualquer pes-soa, direitos que já nascem intrinsecamente enraizados na condição de pessoa e que em hipótese alguma poderiam desvirtuar-se.

Por isso se propõe uma concepção multicultural, pois através desta, num diálogo transcultural, se consegue internalizar aqueles direitos universais, respeitando a cultura de cada povo.

Notas:

1 Estes direitos têm como titular não o indivíduo na sua singularidade, mas sim grupos humanos como a família, o povo, a nação, coletividades regionais ou étnicas e a própria humanidade”. LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos: Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 131.

2 Em perspectiva histórica, é altamente signifi cativo que a Declaração Universal de 1948 tenha propugnado uma concepção necessariamente integral ou holística de todos os direitos humanos. Transcendendo as divisões ideológicas do mundo de seu próprio

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tempo, situou assim no mesmo plano todas as “categorias” de direitos – civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Esse enfoque seria retomado duas décadas depois, na I Conferência Mundial de Direitos Humanos (1993). Os direitos proclamados compreenderam os de caráter pessoal, os atinentes às relações do indivíduo com grupos e o mundo exterior, as liberdades públicas e os direitos políticos, assim como os direitos econômicos, sociais e culturais”. TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Texto da conferência proferida pelo Autor na sessão de abertura do Encontro Preparatório do Cinquentenário da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Declaração Americana sobre Direitos e Deveres do Homem, realizado no Congresso Nacional (Auditório Nereu Ramos) em Brasília, dia 03 de dezembro de 1997, sob o patrocínio da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.bibliojuridica.org/libros/1/107/4.pdf>. Acesso em 30/out/2010.

3 PIOVESAN, F.. Palestra, “Direitos sociais, econômicos e culturais e direitos civis e políticos”, proferida em São Paulo, em 27 de maio de 2003, no 3º Colóquio Internacional de Direitos Humanos, que teve como tema central “Estado de direito e a construção da paz”. Sur, Revista internacional dos direitos humanos. v.1 n.1 São Paulo, 2004.

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