tratamento diferenciado às pequenas empresas · acerca do tema, colacionando a divergência...

13
TRATAMENTO DIFERENCIAOD ÀS MICROEMPRESAS E EMPRESAS DE PEQUENO PORTE – DIVERGÊNCIAS NO ÂMBITO DO SISTEMA S Por Julieta Mendes Lopes Vareschini 1 1. Introdução. Recentemente, a Cartilha da CGU sobre a Gestão de Recursos do Sistema “S” foi atualizada, prescrevendo várias exigências aos Serviços Sociais Autônomos para a correta gestão das contribuições parafiscais. Dentre as recomendações, é possível inferir a preocupação da CGU com o cumprimento da Lei Complementar 123/2006, que estabelece o Estatuto das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte e, dentre outros, contempla um tratamento diferenciado a essas categorias quando da participação em licitações. Em face da recomendação da CGU, julga-se conveniente discorrer acerca do tema, colacionando a divergência existente na doutrina. Convém salientar que o tratamento diferenciado e favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte encontra-se previsto no art. 179 da Constituição Federal, que, visando incentivá-las, determina aos entes da federação a simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias. Na mesma esteira, o art. 170, IX, da Constituição 1 Sócia Fundadora do Grupo JML Consultoria & Eventos, empresa especializada em Direito Administrativo e que já capacitou mais de 30.000 profissionais na área de Licitações e Contratos. Mestre em Direito. Especialista em Direito Ambiental e Gestão Ambiental. Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba. Advogada e Consultora na área do Direito Administrativo, com ênfase em Licitações e Contratos Administrativos. Coordenadora técnica da JML Consultoria. Coordenadora e Professora do Curso de Especialização em Licitações e Contratos da UNIBRASIL. Professora do curso de Graduação em Direito da UNIBRASIL. Palestrante na área de Licitações e Contratos perante entidades da Administração Pública e Sistema S, com atuação em todo território nacional. Autora da obra Licitações e Contratos no Sistema S. 5. ed. Curitiba: JML, 2012 e da obra Discricionariedade Administrativa: uma releitura a partir da constitucionalização do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. Organizadora da obra Repercussões da Lei Complementar 123/06 nas Licitações Públicas: de acordo com o Decreto 6.204/07. Curitiba: JML Editora, 2008. Autora de diversos artigos jurídicos, dentre os quais: Gestão Planejada do Sistema de Registro de Preços. In: Diálogos de Gestão: novos ângulos e várias perspectivas. Curitiba: JML Editora, 2013.

Upload: doanthuy

Post on 11-Nov-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

TRATAMENTO DIFERENCIAOD ÀS MICROEMPRESAS E EMPRESAS DE PEQUENO PORTE – DIVERGÊNCIAS NO ÂMBITO DO SISTEMA S

Por Julieta Mendes Lopes Vareschini1

1. Introdução.

Recentemente, a Cartilha da CGU sobre a Gestão de Recursos do

Sistema “S” foi atualizada, prescrevendo várias exigências aos Serviços

Sociais Autônomos para a correta gestão das contribuições parafiscais. Dentre

as recomendações, é possível inferir a preocupação da CGU com o

cumprimento da Lei Complementar 123/2006, que estabelece o Estatuto das

Microempresas e Empresas de Pequeno Porte e, dentre outros, contempla um

tratamento diferenciado a essas categorias quando da participação em

licitações.

Em face da recomendação da CGU, julga-se conveniente discorrer

acerca do tema, colacionando a divergência existente na doutrina.

Convém salientar que o tratamento diferenciado e favorecido às

microempresas e empresas de pequeno porte encontra-se previsto no art. 179

da Constituição Federal, que, visando incentivá-las, determina aos entes da

federação a simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias,

previdenciárias e creditícias. Na mesma esteira, o art. 170, IX, da Constituição

1 Sócia Fundadora do Grupo JML Consultoria & Eventos, empresa especializada em Direito Administrativo e que já capacitou mais de 30.000 profissionais na área de Licitações e Contratos. Mestre em Direito. Especialista em Direito Ambiental e Gestão Ambiental. Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba. Advogada e Consultora na área do Direito Administrativo, com ênfase em Licitações e Contratos Administrativos. Coordenadora técnica da JML Consultoria. Coordenadora e Professora do Curso de Especialização em Licitações e Contratos da UNIBRASIL. Professora do curso de Graduação em Direito da UNIBRASIL. Palestrante na área de Licitações e Contratos perante entidades da Administração Pública e Sistema S, com atuação em todo território nacional. Autora da obra Licitações e Contratos no Sistema S. 5. ed. Curitiba: JML, 2012 e da obra Discricionariedade Administrativa: uma releitura a partir da constitucionalização do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. Organizadora da obra Repercussões da Lei Complementar 123/06 nas Licitações Públicas: de acordo com o Decreto 6.204/07. Curitiba: JML Editora, 2008. Autora de diversos artigos jurídicos, dentre os quais: Gestão Planejada do Sistema de Registro de Preços. In: Diálogos de Gestão: novos ângulos e várias perspectivas. Curitiba: JML Editora, 2013.

Federal destaca que o tratamento favorecido às empresas brasileiras de

pequeno porte é um dos princípios da ordem econômica.

Para dar atendimento a estes preceitos constitucionais é que foi

editada a Lei Complementar n° 123, de 14 de dezembro de 2006, instituindo o

Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte.

Não restam dúvidas, portanto, que a Constituição preconizou a

necessidade de uma política pública voltada a conferir benefícios às pequenas

empresas, no intuito de reduzir a desigualdade existente entre estas e as

grandes empresas. Com efeito, não se olvida que, antes do advento da Lei, as

pequenas empresas não conseguiam concorrer em critérios isonômicos com as

grandes empresas, cenário que mudou consideravelmente após o diploma

legal.

Dados divulgados pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão

e Ministério do Trabalho, em face da pesquisa realizada pelo SEBRAE

Nacional, em parceria com o Departamento Intersindical de Estatística e

Estudos Sócioeconômicos (DIEESE), atestam que desde o advento da Lei, em

2006, o acesso das pequenas empresas às contratações realizadas pelo

Estado aumentou consideravelmente, de 2006 para 2007, houve um

crescimento de 8% para 28%; de 2007 para 2008, chegou a 32%. Em 2011,

esse acesso cresceu 43,36%, em face da aplicação do tratamento diferenciado

consignado na Lei Complementar (www.comprasnet.gov.br, notícia veiculada

em 05.08.11).2

Estabelecida essa premissa, importa discorrer sobre a incidência da

norma nas licitações processadas pelo Sistema S.

2 JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses. O município contratando com a micro e pequena empresa: o estatuto da micro e pequena empresa fomentando a economia dos municípios. Brasília: SEBRAE, 2009. 107 p.

2. Aplicação da Lei aos Serviços Sociais Autônomos.

Já de plano, é preciso reconhecer que o tema é polêmico, comportando

argumentos plausíveis tanto para justificar a aplicabilidade, quanto para a não

incidência da norma no âmbito dos Serviços Sociais Autônomos. Em que pese

a divergência, por cautela, é preciso reconhecer, consoante será demonstrado

na sequência, que os órgãos de controle têm exigido a adoção do tratamento

diferenciado às pequenas empresas pelas Entidades do Sistema S.

Conforme já destacado, os benefícios concedidos às microempresas e

empresas de pequeno porte em licitações pela LC n° 123/06, decorrem de

preceitos esculpidos na Constituição Federal, que prescrevem o tratamento

favorecido a essas empresas como um dos princípios da ordem econômica.3

Nessa esteira, tendo esses benefícios status de princípio

constitucional, considera-se que as entidades integrantes do Sistema “S”

também se sujeitam a sua aplicação.

Nesse sentido foi o posicionamento externado pelo professor Jessé

Torres Pereira Júnior, em palestra realizada pela JML Eventos:

“A Lei Complementar nº 123, se aplica também a entid ades do Sistema “S”?

RESPOSTA:

Bem, como princípio penso que sim. A posição do TCU tem sido já há muito tempo a de entender que as entidades do Sistema “S” estão sujeitas ao princípio da licitação e que comporta regulamentos internos que disciplinem os procedimentos. Ora, você está aqui diante de uma Lei Complementar de norma geral, e norma geral se define como exatamente aquela que atua para a implementação de princípios. Então me parece que esta norma geral da Lei Complementar se aplica sim às entidades do Sistema “S”. Pela sua natureza principiológica;”.4

Tem-se, portanto, que a Lei Complementar consigna normas gerais,

vinculando a todos aqueles que estão incumbidos do dever de licitar.

Ainda que o art. 1° da Lei em comento assevere que este diploma

3 Art, 170, IX, da Constituição Federal. 4 Palestra proferida no evento “Seminário Nacional: capacitação de agentes públicos para o processamento eficaz das licitações”, realizado pela JML Eventos, nos dias 16, 17 e 18 de abril de 2007, em Curitiba, Paraná.

“estabelece normas gerais relativas ao tratamento diferenciado e favorecido a

ser dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte no âmbito dos

Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”,

induzindo à conclusão de que tal seria aplicado tão-somente à Administração

Pública, a nosso ver, a interpretação deve ser no sentido de que qualquer

pessoa no exercício da função pública de licitar deve submeter-se aos termos

desta lei, dando-se ampla efetividade ao princípio constitucional da ordem

econômica, que prega o tratamento diferenciado a ser despendido a essa

categoria.

Da mesma forma que tais entidades estão submetidas ao dever de

licitar, por força de preceito constitucional, também devem cumprir com o

primado da ordem econômica que exige o tratamento diferenciado às

pequenas empresas.

Seguindo essa linha, muito embora o artigo 1º da Lei não tenha

contemplado os Serviços Sociais Autônomos, cumpre destacar que o art. 77,

§§ 1º e 2º, da citada norma, expressamente estabeleceu o prazo de 01 (um)

ano para que as entidades paraestatais adaptassem seus regulamentos

próprios aos ditames da Lei.

Ainda que se vislumbre certa divergência doutrinária, prevalece a tese

de que os Serviços Sociais Autônomos integram o conceito de paraestatal,

estando sujeitos, portanto, ao cumprimento da Lei Complementar por força do

art. 77, anteriormente citado.

Ao conceituar os Serviços Sociais Autônomos, Hely Lopes Meirelles

expressamente os considera paraestatais:

“Todos aqueles instituídos por lei, com personalidade de Direito Privado , para ministrar assistência ou ensino a certas categorias sociais ou grupos profissionais, sem fins lucrativos , mantidos por dotações orçamentárias ou por contribuições parafiscais.

São entes paraestatais, de cooperação com o Poder Públi co, com administração e patrimônios próprios (...). Embora oficializadas pelo Estado, não integram a Administração direta nem a indireta, mas trabalham ao lado do Estado, sob seu

amparo, cooperando nos setores, atividades e serviços que lhes são atribuídos, por serem considerados de interesse específico de determinados beneficiários.”5 (grifos nossos).

Na mesma esteira é a orientação da Controladoria Geral da União:

“1 - Conceito de Entidades Paraestatais Antes de se definir entendimentos balizadores sobre o assunto o qual deverá servir de referência à CGU na avaliação das contas das entidades paraestatais, aqui representadas pelos Serviços Sociais Autônomos, gostaríamos de esclarecer que estas entidades não pertencem à estrutura da Administração Pública Federal. Entidades paraestatais são pessoas jurídicas de Direito Privado, cuja criação é autorizada por lei específica (CF/88, art. 37, XIX e XX), com patrimônio público ou misto, para realização de atividades, obras ou serviços de interesse coletivo, sob normas e controle do Estado. “Tratam-se de entes dispostos paralelamente ao Estado, ao lado do Estado, para executar cometimentos de interesse do Estado, mas não privativos do Estado. As entidades paraestatais prestam-se a executar atividades impróprias do Poder Público, mas de utilidade pública, de interesse da coletividade, e, por isso, fomentadas pelo Estado, que autoriza a criação de pessoas jurídicas privadas para realizá-las por outorga ou delegação e com seu apoio oficial na formação do patrimônio e na manutenção da entidade, que pode revestir-se de variadas formas: empresa pública, sociedade de economia mista, etc” A competência para instituir entidades paraestatais é ampla. Cabendo tanto à União, Estados e Municípios. Contudo, nada impede que o Poder Público as crie com formas próprias e adequadas às suas finalidades. Como exemplo dessas temos os Serviços Sociais Autônomos. 1.1 – Serviços Sociais Autônomos São entes instituídos por lei, com personalidade jurídica de Direito Privado, com a finalidade de ministrar assistência ou ensino a certas categorias sociais ou grupos profissionais, sem fins lucrativos, sendo mantidos por dotações orçamentárias ou por contribuições parafiscais. Essas entidades, embora oficializadas pelo Estado, não integram a administração direta nem a indireta, mas trabalham ao lado do Estado, cooperando nos setores, atividades e serviços que lhes são atribuídos, consideradas de interesse público de determinados beneficiados. Recebem, por isso, oficialização do poder público e autorização legal para arrecadarem e utilizarem, na sua manutenção, as contribuições parafiscais.”6

Há quem defenda, ao revés, que os Serviços Sociais Autônomos não

integram o conceito de paraestatal, restringindo-se este às empresas estatais

(empresas públicas e sociedades de economia mista). Ora, por evidente, é fácil

perceber que o legislador optou pelo conceito amplo de paraestatal, pois se o

objetivo fosse apenas vincular as empresas estatais, não teria porque

5 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 346. Nessa linha é a tese de Maria Sylvia Zanella Di Pietro e Celso Antônio Bandeira de Mello. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17. Ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 412-416. 6 Coletânea de entendimentos da SFC/CGU sobre os principais temas de gestão do Sistema “S”. Controladoria Geral da União. Secretaria Federal de Controle Interno. Brasília, 2004, p. 06-07.

mencionar em seu texto as duas figuras (tanto a administração indireta, da qual

as estatais fazem parte, quanto as paraestatais). Ao adotar essa redação,

certamente, entendeu o legislador que paraestatal abarca outras entidades,

além das aludidas estatais, utilizando o conceito amplo, do qual os Serviços

Sociais Autônomos fazem parte. Por mais este argumento, portanto, defende-

se a aplicabilidade da Lei Complementar 123/06 ao Sistema S.7

E esta tese prevaleceu no âmbito da Controladoria Geral da União, que

em sua recente Cartilha foi enfática:

“41. As disposições da Lei nº 123/2006 (Lei das Mic roempresas) é aplicável nas contratações de bens e serviços das entidades do Si stema “S”?

Sim. Até a adaptação dos regulamentos das entidades do Sistema “S”, cabe adotar as regras previstas no capítulo V da Lei Complementar nº 123/2006, visando a satisfação do interesse público e o alcance dos objetivos específicos reservados a micro e pequenas empresas”.8

Há que se considerar que os destinatários da norma são as micro e

pequenas empresas, que terão o direito de exigir esses benefícios, em

qualquer licitação, independentemente da natureza jurídica do ente

responsável pelo certame.

Sob outro prisma, consoante já alertado, o tema é polêmico e não

comporta uma única interpretação, havendo quem defenda a não aplicação

desta Lei Complementar aos Serviços Sociais Autônomos, sob o argumento de

que o diploma incide tão-somente para a Administração Pública, direta e

indireta. Assim, segundo essa linha de raciocínio, como art. 1º da Lei

Complementar não incluiu os serviços sociais, estes não estão submetidos aos

seus termos.

Nessa esteira é o posicionamento externado pelo professor Carlos

7 Sobre o tema, cumpre colacionar doutrina de Maria Sylvia Zanella Di Pietro: “no entanto, o sentido em que se vulgarizou a expressão entidade paraestatal é mais aquele utilizado por Hely Lopes Meirelles, de modo a abranger as entidades de direito privado que integram a Administração Indireta (empresas estatais de todos os tipos e fundações de direito privado), bem como os serviços sociais autônomos;”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17. Ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 414-416. 8 Entendimentos do Controle Interno Federal sobre a Gestão dos Recursos das Entidades do Sistema “S”, Brasília, 2013, p. 24-25.

Pinto Coelho Motta:

“Respondendo sucintamente à consulta formulada, entendo que as inovações dos arts. 42 a 49 da LC 123/06 somente serão aplicáveis ao Sistema “S” se as instituições componentes, em nível nacional, explicitarem tais diretrizes sob a forma de Regulamento, tal como se operou com a retrocitada Resolução SESC nº 949/98”.9

Também nesse viés é a doutrina de Edgar Guimarães e Jair Eduardo

Santana:

“A LC n˚ 123/06 consigna de forma clara a sua abrangência ao fixar as normas gerais relativas ao tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado às ME/EPP no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Não estão incluídos nesse rol os entes que compõem o Sistema “S”, pois, como dito anteriormente, mencionadas entidades não integram a estrutura organizacional da Administração Pública brasileira. Inexiste, portanto, qualquer comando normativo expresso que, de forma compulsória, obrigue o Sistema “S” a respeitar, por ocasião das suas licitações instauradas com recursos próprios, o regime jurídico favorecido a que se referem os artigos 42 a 45 e 47 a 49 da LC n˚ 123/06”.10

Porém, mesmo afastando a incidência dessa norma ao denominado

Sistema “S”, os professores Edgar Guimarães e Jair Santana reconhecem que

“fatalmente iremos nos deparar com um paradoxo, já que a LC n˚ 123/06

apresenta, substancialmente como finalidade nuclear, o incentivo e apoio à

ME/EPP, finalidade esta coincidente com a do SEBRAE. Sendo assim, qual

seria o fundamento para que o SEBRAE deixasse de implementar e observar

aquele tratamento diferenciado outorgado às ME/EPP em suas licitações?

Esta, sem dúvida alguma, é uma pergunta que não quer calar e que,

seguramente, deverá merecer uma reflexão mais aprofundada tanto por parte

da doutrina como também pelo Tribunal de Contas da União”.11

Em monografia específica sobre o tema, digna de premiação no

Encontro Nacional dos Advogados do SESI/SENAI (ENASS), Mariana Rocha

Urban também defende a não aplicação da Lei Complementar ao Sistema,

9 MOTTA, Carlos Pinto Coelho. Parecer: Sistema “S”. Serviços Sociais Autônomos e a LC n˚ 123/06. Revista JML de Licitações e Contratos, Seção Doutrina, setembro de 2007, p. 33. 10 GUIMARÃES, Edgar; SANTANA, Jair Eduardo. Licitação e o novo estatuto da pequena e microempresa. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 35. 11 GUIMARÃES, Edgar; SANTANA, Jair Eduardo. Licitação..., p. 34/35.

aduzindo que:

“Após análise dos fundamentos jurídicos de defesa das teses de ambas as correntes, entende-se que maior razão encontra-se com a segunda, que entende pela inaplicabilidade da LC 123/2006 aos serviços sociais autônomos. E várias são as razões que levam a esta conclusão.

A primeira delas está baseada na aplicação literal do disposto no “caput” do artigo 1º da LC 123, que direciona sua aplicabilidade aos “Poderes” da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

É cediço que as entidades do Sistema “S” não estão subsumidas no conceito de “Poder” de nenhuma das esferas federais indicadas pela norma. Não há, nesta Lei Complementar, nenhuma regra que imponha o seu cumprimento por todas as entidades obrigadas a licitar. Restringe sua aplicação aos entes indicados em seu art. 1º.

Portanto, entende-se que deve ser aplicado, neste caso, o mesmo entendimento manifestado quando da Decisão proferida pela Corte de Contas da União, em que assentou que os serviços sociais autônomos não deveriam seguir os regramentos previstos na Lei 8666/93, já que o art. 1º deste Diploma Legal não os prevê em seu rol taxativos de pessoas que lhe devem obediência.

Outra razão serve de fundamento à inaplicabilidade da LC 123/2006 ao SESI e SENAI: em alguns trechos da norma, há expressa remissão a dispositivos específicos da Lei 8.666/93 os quais, como já se viu, não se aplicam ao SESI e ao SENAI. As regras contidas na LC 123/2006 aplicam-se aos Poderes da União, Estados, Distrito Federal e Municípios porque são posteriores às normas contidas na Lei 8666/93. (...) Mais um fundamento socorre à defesa pela sua inaplicabilidade: como se viu, as regras previstas na LC 123/2006 são, em verdade, dispositivos direcionados ao alcance da igualdade real das pequenas empresas em face das demais. Tratam-se de normas baseadas em políticas de inclusão e tratamento privilegiado aos até então desfavorecidos, através de ações afirmativas.

E como é sabido, é ao Estado que, em primeiro plano, cabe a execução das ações afirmativas para garantir este benefício. O Estado, representado pelos Poderes da União, Estado, Distrito Federal e Municípios. As demais entidades somente são obrigadas a implementar ações afirmativas, por força de lei em sentido estrito (aplicação pura do princípio da legalidade). E neste caso, como se viu, não há lei que obrigue os serviços sociais autônomos a assim procederem.

Com o devido respeito à tese lançada, não há como entender que seja predominante o argumento trazido pelos defensores da aplicabilidade da norma complementar aos certames licitatórios promovidos pelo SESI e SENAI, baseado na idéia de que os benefícios concedidos às pequenas empresas decorrem de princípios da ordem econômica e, tendo tais benefícios status de princípio constitucional, as entidades do Sistema “S” estariam então sujeitas à LC 123/2006.

O SESI e SENAI, de fato, devem respeito incondicional a todos os princípios constitucionais, mormente aos constantes no art. 37, da Carta Magna, quando o fato versar sobre licitações e contratos.

No entanto, há vários modos de se respeitar o referido princípio constitucional, sem que seja necessária a aplicação das regras constantes na norma complementar. Lembre-se que o princípio da ordem econômica, que protege as pequenas empresas, pode ser aplicado de diversas formas. Na realidade, as entidades do Sistema “S” já vêm garantindo tratamento diferenciado às microempresas e empresas de pequeno porte, quando viabiliza suas participações em certames licitatórios na modalidade convite (com sua flexibilidade intrínseca e seu módico limite de valor), nas licitações por área, por lote e por itens. Também através de prestações de serviços, pelas entidades do Sistema “S”, nas diversas localidades dos Estados, dando preferência às pequenas empresas situadas nas regiões-alvo, que constituem a base do mercado interno. Também devem ser lembrados os constantes incentivos por parte das entidades formadoras do Sistema Indústria à presença das pequenas empresas nos Arranjos Produtivos Locais (APL).

É possível que o SESI e SENAI apliquem as regras constantes na LC 123/2006 em suas licitações. Porém, entende-se que as referidas regras devem ser adaptadas às suas condições específicas.

Logo, antes de aplicar os arts. 42 ao 49 da LC 123/2006 em suas licitações, ou antes de simplesmente reproduzir tais dispositivos em seus Regulamentos próprios, devem as entidades adaptar essas regras aos seus objetivos, que visam, sobretudo, ao crescimento da indústria como um todo. Há, no universo jurídico, grandes doutrinadores que defendem a inconstitucionalidade desta norma complementar, até porque pode vir a prejudicar, a médio e longo prazo, as empresas não inseridas nos conceitos de microempresas ou empresas de pequeno porte.

E esta é a oportunidade que têm o SESI e o SENAI de normatizar a matéria em benefício de todas as empresas, visando ao crescimento industrial, garantindo o benefício às pequenas empresas, mas não lesando aquelas que não se enquadram neste conceito.

Deve-se assegurar um tratamento diferenciado às pequenas empresas, de acordo com o próprio mandamento constitucional. Contudo, entende-se pela inviabilidade de manterem-se as regras previstas na LC 123, em seus estritos termos, sob pena de instaurar-se uma discriminação às avessas, em detrimento das empresas não subsumidas no conceito de microempresa ou empresa de pequeno porte, o que impedirá a consolidação dos objetivos institucionais do SESI e do SENAI12.

Em suma, a nosso ver e com o respeito àqueles que advogam tese

diversa, da mesma forma que tais entidades estão submetidas ao dever de

licitar, por força de preceito constitucional, também devem cumprir com o 12 URBAN, Mariana Rocha. Lei Complementar 123/06 e as licitações promovidas pelo Sesi e Senai. Prêmio ENASS de Trabalho Jurídico, 2007.

primado da ordem econômica que exige o tratamento diferenciado às

pequenas empresas. Essa, ademais, foi a opção do legislador ao exigir das

entidades paraestatais a adaptação das suas normas, nos termos do art. 77, §

1º e 2º, da Lei Complementar 123/06.

Assim, como as entidades possuem regulamentos próprios, estes

devem ser alterados, a fim de contemplar os benefícios que deverão ser

concedidos às pequenas empresas, respeitando-se as normas gerais

preconizadas na aludida Lei Complementar. Foi o que ocorreu no âmbito do

SEBRAE, que regulamentou o tema por meio da Resolução 166/08. Enquanto

não alterado o Regulamento dos demais, o tratamento diferenciado deverá ser

garantido, com fundamento na própria Lei, cabendo ao edital regulamentar a

matéria.

3. Síntese dos benefícios contemplados na Lei e van tagens de sua

concessão.

O objetivo deste estudo não é discorrer de forma exaustiva sobre os

benefícios previstos na Lei Complementar 123/06, mas sim apresentar a

divergência pertinente à aplicação ou não da norma aos Serviços Sociais

Autônomos. Sobre a análise pormenorizada acerca de tais benefícios,

recomenda-se ao leitor capítulo específico sobre o tema em nossa obra

Licitações e Contratos no Sistema “S”, 5º edição, 2012.

Em apertada síntese, a Lei Complementar 123/06 estabeleceu um

tratamento diferenciado às microempresas e empresas de pequeno porte

quando da participação em licitações que consiste no seguinte: a) possibilidade

de as pequenas empresas regularizarem, em momento posterior, falhas na

documentação fiscal; b) direito de preferência em caso de empate, entendido

este como as propostas das pequenas empresas que ficarem até 10% ou 5%

(no caso da modalidade pregão) acima da melhor proposta, caso esta tenha

sido apresentada por uma grande empresa; c) a realização de licitações

exclusivas à participação de pequenas empresas, para contratações de até R$

80.000,00; d) exigência de subcontratação de pequenas empresas, para

execução de até 30% do objeto; e) destinação de 25% dos itens da licitação,

em se tratando de objeto divisível, para participação apenas de pequenas

empresas.13

Importa frisar que, nos termos dos arts. 42 a 45 da Lei Complementar

123/06, os dois primeiros benefícios são autoaplicáveis, devendo ser inseridos

em todos os editais, ao passo que os três últimos dependem de

regulamentação específica da entidade, sendo que, em âmbito federal, tal

regulamentação foi feita por meio do Decreto 6.204/07 e, para o SEBRAE, na

Resolução 166/08. Ademais, nos termos do art. 47, esses três últimos

benefícios mencionados no parágrafo anterior objetivam a promoção do

desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, a

ampliação da eficiência das políticas públicas e o incentivo à inovação

tecnológica.

Fácil perceber, portanto, que o tratamento diferenciado poderá contribuir

para: a) promoção de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento local e,

este, por evidente, contribuirá para o desenvolvimento nacional; b) potencializar

a economia da região, auxiliando-a na ampliação da competitividade industrial

e tecnológica; c) estimular as empresas locais a melhorar a qualidades dos

bens, serviços e obras; d) incentivar parcerias, com ganhos para economia e

desenvolvimento locais; e) a ampliação da renda das famílias; e f) o

desenvolvimento do mercado local, aumentando a arrecadação tributária, o que

reverte em receita para programas e ações locais.14

E esse tratamento diferenciado, ao fomentar as microempresas e

empresas de pequeno porte locais, contribui para um ciclo de desenvolvimento

13 JUSTEN FILHO, Marçal. O estatuto da microempresa e as licitações públicas. 2. Ed. São Paulo: Dialética, 2007, p. 64-121. 14 JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses. Como comprar da micro e pequena empresa: o novo papel do comprador; preferência às micro e pequenas empresas; comentários às modalidades de licitação, inclusive pregão; procedimentos exigidos para a efetivação do tratamento diferenciado às micro e pequenas empresas. SEBRAE. Brasília: 2008, p. 13-15.

sustentável, pois há uma tendência que essas empresas também consumam

produtos e serviços do mercado local e regional.15

As estatísticas demonstram que as pequenas empresas geram seis

vezes mais empregos do que as médias e grandes empresas; são

responsáveis por número expressivo dos empregos formais no Brasil e, ainda,

representam 99% das empresas formalmente estabelecidas, sendo indubitável

concluir que o tratamento diferenciado nas licitações a essa categoria pode

contribuir de forma salutar para a erradicação da pobreza e diminuição das

desigualdades sociais, valores estes condizentes com os objetivos

institucionais dos Serviços Sociais Autônomos.16

Trata-se de política macroeconômica capaz de impactar no crescimento

do País, com maior geração de emprego, melhor distribuição da riqueza e

diminuição da desigualdade social, já que as pequenas empresas foram

responsáveis, em 2011, por 51,6% dos empregos formais privados não

agrícolas do País (Anuário do Trabalho na Micro e Pequena Empresa, 2012, p.

186, disponível em www.dieese.org.br). Segundo os dados da Relação Anual

de Informações Sociais (Rais), do Ministério do Trabalho, em 2011, as

pequenas empresas representavam 6,3 milhões de estabelecimentos

responsáveis por 15,6 milhões de empregos formais privados não agrícolas. De

2000 a 2011, essa categoria foi responsável por mais de 7,0 milhões de

empregos, o que comprova seu significativo papel na geração de postos de

trabalho. Ademais, tendo em vista que esses empreendimentos tendem a

concentrar-se em setores do comércio e de serviços, propiciam indicadores

positivos imediatos no padrão de consumo e distribuição de renda. (Anuário do

Trabalho na Micro e Pequena Empresa, 2012, p. 15, disponível em

www.dieese.org.br)

15 JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses. Como comprar..., p. 15. 16 JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses. Como comprar..., p. 16.

Com efeito, esse tratamento diferenciado tem por escopo permitir maior

acesso ao mercado de microempresas e empresas de pequeno porte,

considerando que elas não conseguem, por si só, concorrer em critérios de

igualdade com as grandes instituições. Trata-se, em última instância, de

concretização da própria isonomia, que consiste em tratar os desiguais de

forma desigual, a fim de permitir a igualdade fática.