trabalho final de instituições - bruno macchiute

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Instituições Internacionais Professora: Monica Herz Aluno: Bruno Macchiute Trabalho de conclusão de curso (2012.2) Introdução: Este trabalho possui dois objetivos principais. O primeiro deles é o de realizar uma revisão das teorias de regimes, representadas pelas obras de Krasner, Keohane, Ruggie e Young. Com isto, pretendemos obter uma visão mais clara sobre as propostas teóricas que circundam o tema dos regimes internacionais. O segundo objetivo deste trabalho é o de propor uma explicação para as transformações no regime internacional de propriedade intelectual, especialmente no que tange a criação da OMPI e a mudança de foro da OMPI para o GATT (OMC) no final da década de 80 e início da década de 90. Porém, antes de começar uma discussão sobre a teoria de regimes propriamente, gostaríamos de fazer algumas observações sobre o conceito de “instituições” com o objetivo de esclarecer qual é a relação entre instituições e regimes, assim como apontar uma diferença fundamental que existe dentro das teorias de relações internacionais no que diz respeito à concepção de instituições e a sua influência na política mundial. Da forma mais básica possível, podemos afirmar que instituições são nada mais do que ações ou comportamentos padronizados que se estendem no espaço e no tempo. Porém, ao nos defrontarmos com esta definição, é certamente legítimo se perguntar sobre a sua utilidade, tendo em vista que, de tão genérica que ela é, o conceito de instituições enquanto comportamentos padronizados abarca absolutamente toda e qualquer ação humana identificável e passível de ser descrita. Sob esta égide, já que tudo se transforma em instituição, o estudo das instituições em nada acrescentaria. Conforme vamos argumentar nesta introdução, existem três “saídas” para esse dilema que representam três tradições de pensamento nas relações internacionais. A primeira é o realismo estrutural “tradicional” de Kenneth Waltz; a segunda é o neoliberalismo institucional de Keohane; e a terceira é o construtivismo de Onuf e Giddens. O realismo estrutural tradicional desmerece o conceito de instituições baseando-se na ideia de que as instituições são simplesmente o reflexo das relações de poder subjacentes. O neoliberalismo institucional afirma que nem todos os comportamentos padronizados são instituições, já que alguns deles, como o mercado e a soberania, são padrões “naturais” e invioláveis da conduta humana (e dos estados). Logo, o neoliberalismo institucional defende a

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Instituições Internacionais Professora: Monica Herz

Aluno: Bruno Macchiute

Trabalho de conclusão de curso (2012.2)

Introdução:

Este trabalho possui dois objetivos principais. O primeiro deles é o de realizar uma

revisão das teorias de regimes, representadas pelas obras de Krasner, Keohane, Ruggie e

Young. Com isto, pretendemos obter uma visão mais clara sobre as propostas teóricas que

circundam o tema dos regimes internacionais. O segundo objetivo deste trabalho é o de

propor uma explicação para as transformações no regime internacional de propriedade

intelectual, especialmente no que tange a criação da OMPI e a mudança de foro da OMPI para

o GATT (OMC) no final da década de 80 e início da década de 90.

Porém, antes de começar uma discussão sobre a teoria de regimes propriamente,

gostaríamos de fazer algumas observações sobre o conceito de “instituições” com o objetivo

de esclarecer qual é a relação entre instituições e regimes, assim como apontar uma diferença

fundamental que existe dentro das teorias de relações internacionais no que diz respeito à

concepção de instituições e a sua influência na política mundial.

Da forma mais básica possível, podemos afirmar que instituições são nada mais do que

ações ou comportamentos padronizados que se estendem no espaço e no tempo. Porém, ao

nos defrontarmos com esta definição, é certamente legítimo se perguntar sobre a sua utilidade,

tendo em vista que, de tão genérica que ela é, o conceito de instituições enquanto

comportamentos padronizados abarca absolutamente toda e qualquer ação humana

identificável e passível de ser descrita. Sob esta égide, já que tudo se transforma em

instituição, o estudo das instituições em nada acrescentaria.

Conforme vamos argumentar nesta introdução, existem três “saídas” para esse dilema

que representam três tradições de pensamento nas relações internacionais. A primeira é o

realismo estrutural “tradicional” de Kenneth Waltz; a segunda é o neoliberalismo institucional

de Keohane; e a terceira é o construtivismo de Onuf e Giddens.

O realismo estrutural tradicional desmerece o conceito de instituições baseando-se na

ideia de que as instituições são simplesmente o reflexo das relações de poder subjacentes. O

neoliberalismo institucional afirma que nem todos os comportamentos padronizados são

instituições, já que alguns deles, como o mercado e a soberania, são padrões “naturais” e

invioláveis da conduta humana (e dos estados). Logo, o neoliberalismo institucional defende a

ideia de que as instituições são formas planejadas e propositivas de comportamento

padronizado que alteram o calculo de custo benefício que os atores realizam ao perseguir um

determinado objetivo. Por fim, a abordagem construtivista afirma que não faz sentido

distinguir entre instituições “naturais” e “artificiais” já que ambas são o produto da interação

social humana. Além disso, as abordagens construtivistas afirmam que as instituições se

tornam relevantes na medida em que são reflexivamente monitoradas. Ou seja, as instituições,

assim que são identificadas, passam a ser reflexivamente monitoradas pelos agentes e tornam-

se objeto de planejamento e intervenção da ação humana. Por esse motivo, as instituições

atuam tanto na constituição dos atores, quanto são constituídas por esses atores que agem de

forma reflexiva.

O primeiro elemento que devemos atentar na obra de Onuf1 é a afirmação que este

autor faz de que o realismo estrutural de Waltz é, na realidade, uma reedição do pensamento

liberal clássico aplicado aos estados em lugar dos indivíduos. Quanto à relação entre o

pensamento liberal e o realismo de Waltz, Onuf afirma que:

“Any assessment of the way that liberal scholars in IR today understand institutions must also

take realists into account. […] Their world consists of independent, goal-oriented, calculating

and highly competitive entities called states. This is, of course, a liberal point of view

rigorously applied to states as if they were human individuals” (Onuf, 2002, p. 220).

Tendo em vista que o realismo estrutural é, em suma, uma reedição do pensamento

liberal aplicado aos estados, podemos fazer a seguinte pergunta: de que forma o liberalismo,

de acordo com Onuf, conceitualiza as instituições? Para responder a esta pergunta, Onuf

retorna ao pensamento de Friedrich Hayek, um acadêmico liberal austríaco defensor enfático

do liberalismo. De acordo com Hayek, as instituições podem ser classificadas em dois tipos:

(1) aquelas que emergem espontaneamente como o produto da ação de muitos homens, mas

que não são planejadas por nenhum deles; e (2) aquelas são intencionalmente planejadas com

o intuito de ordenar a relação entre indivíduos em uma sociedade.

A divisão de Hayek entre instituições “naturais” que emergem espontaneamente e

instituições “artificiais”, que emergem por convenção se reflete no debate político, de acordo

com Onuf, da seguinte forma:

“Either one believes that institutions are too important to be left to chance because they limit

people’s choices, for good or bad. Political arrangements exemplified by the modern state fit

1 Onuf, N. (2002). Institutions, intentions and international relations. Review of International Studies .

this description. Or one believes that it is important to leave institutions alone because they

give people the room that they need to make rational choices. Markets illustrate the point”

(Onuf, 2002, p. 212).

A partir desta exposição podemos compreender, portanto, que o sistema internacional

imaginado por Kenneth Waltz não possui espaço para instituições. Isso acontece porque,

seguindo o pensamento liberal, as instituições artificiais limitam o raio de ação do indivíduo

racional – o qual, no realismo estrutural, é igualado aos estados. Neste pensamento, as

instituições não só são desnecessárias como são também perigosas pois tenderão à refletir os

interesses dos agente mais poderosos e limitar a ação dos agentes mais fracos. Por outro lado,

percebemos também que esta divisão se reflete no pensamento de Keohane e em seu

neoliberalismo institucional. Para Keohane, as instituições são “importante demais para serem

deixadas ao acaso”, já que elas possuem o poder de impor limites à liberdade de ação dos

estados e podem ser manipuladas (planejadas) de forma à atenderem melhor os objetivos dos

mesmos.

Não entraremos no debate, neste trabalho, sobre a melhor forma de instituição; não

discutiremos se as instituições espontâneas são mais ou menos eficientes do que as

planejadas. Isso porque, fundamentalmente, concordamos com a visão de Onuf que a

dicotomia entre “natural” e “artificial” é falsa. Conforme afirma Onuf, “para que possamos

pensar as instituições à parte da natureza, seria necessário que nós também fossemos capazes

de pensar em nós mesmos à parte da natureza2”. Dessa maneira, instituições são espontâneas

da mesma forma como são também planejadas, assim que se tornam reflexivamente

monitoradas pelos agentes.

Apesar de concordarmos com Onuf, não podermos perder de vista o fato de que tanto

o neorrealismo de Kenneth Waltz quanto o neoliberalismo institucional de Keohane

conceitualizam as instituições como sendo ou de ordem natural e espontânea ou de ordem

artificial e planejada. É por este motivo que estas duas correntes observam as instituições da

soberania, da anarquia e da auto-ajuda como sendo “naturais”. Ou seja, padrões de

comportamento que emergem espontaneamente da interação entre estados. O realismo

estrutural e o neoliberalismo institucional diferenciam-se na medida em que: (1) o realismo

estrutural afirma que as instituições enquanto formas artificiais serão sempre o reflexo da

distribuição de poder e, portanto, não possuem qualquer influência nos resultados; e (2) o

neoliberalismo institucional afirma que as instituições possuem alguma autonomia e emergem

2 Onuf, 2002, p. 214

enquanto ordens propositivas que objetivam “melhorar” e tornar o sistema “natural” da

anarquia mais eficiente.

Se admitirmos, seguindo a proposta de Onuf, que não existe qualquer dicotomia entre

instituições naturais e artificiais, o cenário torna-se muito mais complexo. Mas por que o

cenário se torna mais complexo? Ora, porque, ao aceitar que determinadas instituições são

“naturais”, tanto o realismo estrutural quanto o neoliberalismo institucional anulam uma

possível variável na equação causal. Em outras palavras, estas teorias afirma que, se

determinado comportamento é natural e inexorável, então não faz qualquer sentido

problematizá-lo. Ao escolher transformar todas as instituições em variáveis (ou seja, que

podem variar de acordo com o comportamento), tem-se um cenário de muito maior

imprecisão no sentido de que é mais difícil determinar as cadeias causais explicativas de um

determinado fenômeno. Por este motivo, uma das tarefas que o construtivismo – e

especialmente o construtivismo de Onuf – se propõe a fazer é especificar os elementos que

compõe as instituições e classificá-las de acordo com estes elementos. Por exemplo, como

veremos a seguir, instituições são compostas de regras. Porém, existem variados tipos de

regras que possuem “funções” diferentes dentro da estrutura institucional. Regras, ao mesmo

tempo que criam as instituições, criam também os agentes, que, por sua vez, monitoram

reflexivamente as instituições e atuam sobre elas, modificando-as.

Como afirmamos anteriormente, instituições são um conjunto de comportamentos

padronizados. Não importa se estes comportamentos padronizados são o resultado não

intencional das ações realizadas por indivíduos racionais ou se são planejadas

propositivamente; o que nos interessa aqui é reconhecer que as instituições são compostas por

um determinado conjunto de regras que guiam e informam o comportamento dos agentes. A

soberania, por exemplo, é uma instituição porque incorpora regras sobre a natureza dos

participantes (estados soberanos) e o seu papel, ou seja, aquilo que se espera que um estado

soberano faça (criam expectativas). Na terminologia de Giddens, regras podem ser

constitutivas – regras que constituem e definem o que é o “jogo” – ou podem ser reguladoras

– regras que determinam como os agentes previamente definidos pelas regras constitutivas

devem se comportar. Definir as instituições como um conjunto de regras nos possibilita

compreender de que forma as instituições se relacionam com os agentes de um dado sistema

social. Além do mais, regras nos permitem entender porque os comportamentos padronizados

se reproduzem no tempo e no espaço.

Giddens, em seu livro A Constituição da Sociedade3, apresenta o termo “estrutura”

exatamente como regras e recursos que condicionam a agencia humana e que propiciam, desta

maneira, a reprodução dos sistema sociais e das suas instituições. O que se quer dizer com isto

é que a agência não ocorre “fora” da estrutura (ou seja, constrangida por ela), mas ela

acontece “por meio da” estrutura. Neste sentido, instituições não existem à parte do

comportamento dos agentes. Muito pelo contrário, as instituições são compreendidas

enquanto regras que guiam a agência e que, consequentemente, contribuem para a sua

reprodução e transformação.

Faz-se necessário notar que, de acordo com Giddens, sistemas sociais não possuem

estruturas propriamente ditas, mas apresentam propriedades estruturais. Essa afirmação

deriva do fato de que as propriedades estruturais não existem independentemente da agência.

Ou seja, as propriedades estruturais se reproduzem pela agência de atores sociais. Portanto, a

afirmação de que a estrutura, ou as instituições, restringem e limitam a ação dos indivíduos é

amplamente falsa. Como vimos, a estrutura pensada como princípios estruturais é constituída

pela própria agencia humana. Isso não significa, porém, que do ponto de vista do indivíduo

isolado as instituições não se apresentem como constrangimentos à liberdade de sua ação.

Porém, temos que lembrar que as instituições são nada mais nada menos que a ação de outros

agentes, e não uma força ou lei natural que existe além da capacidade de controle humana.

Dessa forma, a estrutura (ou as instituições) são compreendidas como formas tanto de coerção

quanto de facilitação, já que é por meio delas que o individuo se torna um agente. Em outras

palavras, é por meio das instituições que o agente se torna um ator político.

Para deixar claro um elemento que diz respeito à relação entre estrutura e instituições,

Giddens afirma que:

“Como acontece comumente com seu uso nas ciências sociais, o termo ‘estrutura’ tende a ser

ligado com os aspectos mais duradouros dos sistemas sociais em mente, e não quero perder

esta conotação. Os mais importantes aspectos da estrutura são as regras e os meios

recursivamente envolvidos em instituições. As instituições são, por definição, os aspectos

mais duradouros da vida social. Ao falar das propriedades estruturais dos sistemas sociais

refiro-me às suas características institucionalizadas, proporcionando ‘solidez’ através do

tempo e do espaço” (Giddens, 1989, p. 28).

Ou seja, Giddens concebe as instituições como “aspectos mais duradouros da vida

social”, evidentemente estabilizados pelas regras e pelos recursos envolvidos em sua

reprodução e transformação.

3 Giddens, A. A Constituição da Sociedade. São Paulo; WMF Martins Fontes, 1989.

Dito isso, podemos nos perguntar de que forma o pensamento de Giddens se relaciona

com a nossa discussão prévia sobre a naturalidade ou artificialidade das instituições? Ora, se,

como vimos, toda ação humana acontece por meio da estrutura, e se as estruturas são

pensadas enquanto regras, assim como instituições, então podemos concluir que qualquer

ação humana é altamente institucionalizada pois ocorre dentro de um grande e complexo

sistema de regras e instituições. O que queremos dizer com isso é que a ação humana, ou a

agência, só pode ser compreendida enquanto uma ação estruturada, organizada por regras e

recursos, e necessariamente institucionalizada.

Gostaríamos, neste momento, de comentar mais dois pontos sobre a teoria de Giddens.

O primeiro é a ideia de reflexividade. Em nosso entendimento, o caráter reflexivo da agência

é a pedra fundamental de Giddens. Para este autor, todo ser humano possui a capacidade de

monitorar reflexivamente aquilo que acontece ao seu redor. Nas palavras do autor,

“O monitoramento reflexivo da atividade é uma característica crônica da ação cotidiana e

envolve a conduta não apenas do indivíduo mas também de outros. Quer dizer, os atores são

só controlam e regulam continuamente o fluxo de suas atividades e esperam que outros façam

o mesmo por sua própria conta, mas também monitoram rotineiramente aspectos, sociais e

físicos, dos contextos que se movem” (Giddens, 1989, p. 6).

É por conta da monitoração reflexiva que qualquer atividade padronizada - em outras

palavras, atividades guiadas por regras - se torna clara e identificável para os atores sociais.

Nesse sentido, mesmo admitindo que determinado padrões de comportamento emergem

espontaneamente, eles assim que são identificados – ou seja, traduzidos enquanto regras –

passam a ser objeto da ação intencional dos atores. Dessa forma, podemos admitir, por

exemplo, que o mercado efetivamente surgiu a partir da interação de indivíduos auto-

centrados que buscavam egoisticamente o bem próprio. Porém, desde o momento em que este

padrão foi determinado, ele passou a ser levado em consideração na conduta estratégica dos

demais atores. É por este motivo que, na reconstrução do sistema monetário internacional do

pós-segunda guerra, Keynes propôs uma série de medidas interventivas que objetivavam

“corrigir” algumas imperfeições do livre mercado. A ação de Keynes só pode ser explicada a

partir da ideia de que os atores monitoram tanto as suas condutas diárias quanto as dos demais

atores e que, a partir da monitoração, capacitam-se a atuar sobre as instituições.

A segunda ideia que gostaríamos de destacar é a afirmação de que existem dois tipos

fundamentais de regras. As regras constitutivas são aquelas que constituem os atores que

participam de um determinado sistema social. As regras constitutivas contribuem, portanto,

para a constituição do significado da ação social. Por outro lado, as regras reguladoras

determinam o que um dado ator deve fazer. As regras reguladoras estão em estreita conexão

com as sansões sociais, já que elas devem estipular uma “punição” para o caso de um

comportamento desviante.

Para os fins deste trabalho, gostaríamos de fazer a seguinte proposta: em primeiro

lugar, deve-se notar que todas as regras são tanto constitutivas quanto reguladoras. Porém, há

uma diferença de ênfase; enquanto algumas regras são essencialmente constitutivas, outras

são mais voltadas para a regulação da ação. Em segundo lugar, notamos que as regras

possuem graus diferentes de durabilidade (dimensão temporal) e alcance espacial. Da mesma

forma, regras possuem graus diferentes de aceitação social – por exemplo, a prática do

nepotismo é amplamente reproduzida, porém trata-se de um padrão social repreensível. O que

queremos dizer é que uma regra pode ser violada – algumas mais do que outras – sem que

deixe de ser regra.

Tendo em vista o que foi exposto acima, propomos que tanto o realismo estrutural

quanto o neoliberalismo institucional tratam a (1) anarquia, (2) a soberania, e (3) a auto-ajuda

como regras constitutivas do sistema internacional. Dessa forma, estas correntes escolhem

não problematizá-las já que imaginam que estas três instituições são amplamente aceitas e

sólidas o suficiente para não serem frequentemente violadas. Em outras palavras, como estas

regras possuem alto grau de amplitude espaço-temporal, não se faz necessário questioná-las.

Por outro lado, os regimes internacionais são caracterizados como regras reguladoras. Ou

seja, regimes são instituições compostas por regras que objetivam regular a interação de

atores previamente constituídos por outras regras mais profundas e enraizadas nas práticas

sociais. Em suma, o que propomos é que existam “dois níveis” de instituições: aquelas que

são constitutivas e aquelas que são reguladoras. O sistema internacional é formado por um

conjunto de regras constitutivas; os regimes, por um conjunto de regras reguladoras.

A teoria da estabilidade hegemônica e a demanda por regimes:

Segundo Stephen D. Krasner4, regimes podem ser definidos como “princípios, normas,

regras e procedimentos entorno das quais as expectativas dos atores convergem em uma

determinada área de concentração” (issue area, no original). Esta definição é frequentemente

utilizada por outros autores que tratam do tema de regimes internacionais. Nesta visão,

regimes são instituições sociais – entendidas como uma série de práticas sociais padronizadas

e reconhecidas como tal - que intervém em uma cadeia causal modificando os resultados dos

4 Krasner, Stephen, D. (coord.), International Regimes, Ithaca, Cornell University Press, 1983.

processos e também as expectativas dos atores. Podemos resumir esta abordagem da seguinte

maneira:

Imagina-se, a princípio, que o sistema internacional seja composto por estados

soberanos que relacionam-se entre si em um ambiente de anarquia. A abordagem estrutural

modificada, associada ao pensamento de Robert O. Keohane5, aceita as premissas de que os

estados são os principais atores na política mundial (1); que o sistema internacional é

descentralizado. Ou seja, sua estrutura é anárquica no sentido de que lhe falta uma autoridade

suprema (2); e que, por fim, dadas as circunstâncias acima, o comportamento de “auto-ajuda”

é o que prevalece entre os atores políticos (3). Em outras palavras, aceita-se a visão de

Kenneth Waltz sobre o sistema internacional. Porém, como fica claro na obra de Keohane, o

sistema internacional não vive em um constante estado de guerra, como sugeririam as

premissas descritas pelo sistema de Waltz. Muito pelo contrário.

Para o autor, a política mundial deve ser entendida tanto pela anarquia da relação entre

estados quanto pela institucionalização destas mesmas relações. Ou seja, nas palavras de

Keohane, “boa parte dos comportamentos são reconhecidos pelas participantes como o

reflexo de regras, normas e convenções, e o seu significado é interpretado à luz destes

entendimentos6”. Em suma, o autor sugere que existe algo a mais neste sistema internacional

do que “bolas de bilhar”, que se chocam livremente em um limbo institucional.

Acreditamos que a seguinte passagem de Keohane é bastante clara sobre a sua posição

em relação à teoria realista estrutural:

“The theoretical analysis of international regimes begins with what is at least an apparent

anomaly from the standpoint of realist theory: the existence of many ‘sets of implicit or

explicit principles, norms, rules, and decision-making procedures around which actor

expectations converge’, in a variety of areas of international relations” (Keohane, 1989, p.

101).

Temos, portanto, dois elementos. Por um lado, as teorias tradicionais sobre regimes

aceitam a existência do sistema internacional anárquico de Waltz. Por outro lado, estas teorias

afirmam que o desenho básico deste sistema internacional não é o suficiente para explicar o

comportamento dos estados. O sistema de Waltz não prevê a possibilidade de cooperação e a

existência de normas e regras comuns. Um novo elemento, é, portanto, introduzido na forma

de uma variável interveniente. Este “elemento” são as instituições sociais, ou, mais

precisamente, os regimes internacionais. Como afirma Krasner, “regimes podem ser

5 Keohane, Robert, O., International Institutions and state Power, Westview, Boulder Co, 1989. 6 Keohane, op. cit., 1989, p. 1.

concebidos como variáveis intervenientes que se colocam entre variáveis causais básicas

(principalmente poder e interesse) e os resultados (outcomes) e comportamentos”7.

A visão de Krasner e Keohane suscita duas perguntas fundamentais: (1) por que os

regimes surgem?; e (2) como os regimes se transformam?

Quanto à primeira pergunta – por que os regimes surgem – duas possíveis respostas

são apresentadas por Keohane. A primeira resposta se fundamenta na ideia de que a

concentração de poder em uma unidade do sistema fará com que esta unidade estabeleça uma

série de regimes internacionais (normas, regras e procedimentos) com a intenção de

“estabilizar” a sua posição dominante. Ou seja, estes regimes vão institucionalizar práticas

que são, em suma, benéficas aos interesses da potência hegemônica.

Um argumento semelhante pode ser encontrado na obra de John Ikenberry, After

Victory8. De acordo com este autor, ao fim da segunda guerra mundial, a posição hegemônica

dos Estados Unidos frente aos demais países do mundo permitiu aos norte americanos

escolher o que fazer com o seu novo poder adquirido:

“The question is: what does this state do with its new abundance of Power? It has three

choices. It can dominate – use its commanding material capabilities to prevail in the endless

conflicts over the distribution of gains. It can abandon – wash its hands of postwar disputes

and return home. Or it can try to transform its favorable postwar power position into a durable

order that commands the allegiance of the other states within the order […] After 1919 and

1945, the leading state has resorted to institutional strategies as mechanisms to establish

restraints on indiscriminate and arbitrary state power and ‘lock in’ a favorable and durable

postwar order” (Ikenberry, 2001, p.4).

O que nos interessa reter desta passagem transcrita acima é a ideia de que uma

potência hegemônica possui efetivamente a capacidade de escolha; ela pode “limitar” o uso

do seu poder com o objetivo de garantir uma ordem estável e duradoura. A

institucionalização, portanto, pode perfeitamente ser entendida como uma “camada a mais” na

estrutura do sistema internacional realista. Regimes, desta maneira, pode ser entendidos como

uma “camada” institucional criada e fomentada pela potência hegemônica com o intuído de

consolidar uma ordem duradoura e favorável.

Ainda sobre a primeira pergunta – por que os regimes surgem – podemos encontrar

uma outra resposta dentro da obra de Keohane. Trata-se da teoria da estabilidade hegemônica.

Esta teoria possui duas variantes fundamentais. Primeira tem suas origens na obra de Charles

Kindlberger e possui caráter econômico. O argumento de Kindelberger é ancorado na ideia de

7 Krasner, 1983, p. 5. 8 Ikenberry, G. John. After Victory, New Jersey, Princeton University Press, 2001.

que o mercado mundial apresenta falhas sistêmicas. Para que o mercado e a economia

mundial se estabilize, é necessário que exista uma potência hegemônica disposta a atuar de

maneira anticíclica, garantindo a liquidez – quanto há a escassez de dinheiro – e garantindo a

demanda constante para mercadorias produzidas nos demais países. Além do mais, a potência

hegemônica também possui a responsabilidade de zelar pelo controle das balanças de

pagamento, garantindo que todos os países adotem políticas econômicas liberais (não

protecionistas)9.

A segunda variante da teoria da estabilidade hegemônica é a que mais nos interessa

neste momento. Segundo Keohane, a estabilidade hegemônica diz que “mudanças nas

capacidades relativas de recursos disponíveis para os estados mais poderosos explicam as

mudanças nos regimes10

”. Esta teoria deriva do entendimento realista do sistema

internacional. Logo, ela afirma que um sistema será mais estável na medida em que o poder se

encontre mais concentrado. De acordo com Keohane:

“[The theory of hegemonic stability] holds that hegemonic structures of Power, dominated by

a single country, are most conductive to the development of strong international regimes

whose rules are relatively precise and well obeyed. According to the theory, the decline of

hegemonic structures of power can be expected to presage a decline in the strength of

corresponding international economic regimes” (Keohane, 1989, p. 75).

Vemos, portanto, que, para a teoria da estabilidade hegemônica, a força de um regime

está diretamente relacionada à concentração de poder no sistema internacional. Quanto mais

concentrado estiver o poder, mais fortes serão os regimes. Por outro lado, na ocorrência da

erosão do poder de uma potência hegemônica, a teoria prevê que os regimes também se

enfraquecerão.

Por conseguinte, podemos ver que a teoria de Keohane afirma (1) que os regimes

internacionais surgem em decorrência da concentração de poder relativo em uma potência

hegemônica; e (2) que os regimes mudam refletindo o padrão da distribuição de poder entre

as unidades do sistema.

Gostaríamos de fazer duas observações neste momento. Como a posição de Keohane

deriva fundamentalmente de uma visão estrutural realista das relações internacionais, não é

estranho que encontremos a afirmação de que a distribuição de capacidades entre as unidades

do sistema determine o comportamento dos atores. A única diferença, porém, é que, para

Keohane, esse comportamento se encontra institucionalizado na forma de regimes. Estes

9 A obra de Kindelberger apresenta um argumento bastante diferente daquele utilizado pelas variantes realistas da teoria da estabilidade

hegemônica. Porém, uma explicação mais detalhada do argumento de Kindelberger ficará reservada para um trabalho subsequente. 10 Keohane, 1989, p. 75.

regimes, por sua vez, influenciam o comportamento e o calculo de interesse das unidades. A

segunda observação fundamental de Keohane é que a distribuição de poder no sistema

internacional não resulta imediatamente na construção de regimes. É necessário, além da

concentração de poder, que exista a vontade, por parte do hegemon, de estabelecer um

regime. Como pudemos observar em Ikenberry, o hegemon possui, em última análise, a

escolha entre usufruir de seu excedente de poder imediatamente ou escolher por utilizar este

mesmo poder para estabelecer condições adequadas para um domínio prolongado no tempo.

Até agora vimos como o estruturalismo modificado de Keohane, e, particularmente, a

teoria da estabilidade hegemônica, explica a formação e a mudança de regimes internacionais

como um reflexo da concentração ou difusão de poder dentro do sistema internacional.

Porém, como reconhece Keohane, o que vimos até agora não explica as diferenças entre os

regimes, nem mesmo o por quê de determinados regimes serem mais duradouros e resistirem

melhor a mudanças nas configurações de poder do que outros. Para solucionar este problema,

Keohane faz uma afirmação interessante: a teoria da estabilidade hegemônica explica, em

suma, a existência da oferta de regimes internacionais, mas não explica a demanda. Ou seja,

ela explica por que as potências hegemônicas escolhem oferecer/construir um regime, mas

não explica porque os demais estados aceitam e, em grande medida, demandam o

estabelecimento de regimes.

Tal afirmação nos chama a atenção para dois pontos. Em primeiro lugar, devemos

reconhecer que os regimes não são simplesmente impostos unilateralmente pelas potências

hegemônicas. Pelo contrário, um regime necessita de algum grau de aprovação entre os

demais estados, caso contrário, não resistirá por muito tempo. Em segundo lugar, precisamos

atentar para o fato de que regimes possuem uma função. Ou seja, devemos entender que a

criação de regimes é, de alguma maneira, uma ação intencional e propositiva, e não

simplesmente o resultado não intencional derivado da distribuição de poder no sistema

internacional. Tal reconhecimento nos permitirá explicar, como faremos mais tarde, por que

determinados regimes mudam mesmo sem que tenha havido qualquer mudança na

distribuição de poder. Podemos imaginar, a priori, que regimes precisam desempenhar uma

dada função. Ao falhar nesta tarefa, o regime tenderá a ser abandonado em favor de um outro

que seja mais eficiente. Para Keohane, regimes existem porque o sistema internacional

anárquico possui falhas, assim como mercados também possuem. Os regimes, portanto, serão

pensados como instrumentos que objetivam superar as falhas do sistema internacional. Trata-

se de uma visão utilitarista, sem sombra de dúvidas.

Ao expor a teoria da estabilidade hegemônica, Keohane se sustentou nas bases do

realismo estrutural. Neste momento, porém, para tratar da demanda por regimes, veremos o

lado mais liberal deste autor. Esta análise baseia-se, fundamentalmente, “na tradição da teoria

de microeconomia, focando nos constrangimentos e nos incentivos que afetam as escolhas

feitas pelos atores11

”. Em suma, Keohane afirma que “mudanças nas características do

sistema internacional alteram os custos de oportunidade para os atores em vários cursos de

ação possíveis”. Em outras palavras, os regimes são entendidos como forças que alteram o

estado “natural” do sistema internacional, modificando a relação de custo/benefício para os

atores envolvidos. A ideia de “regimes como variáveis intervenientes” é bastante precisa para

descrever esta relação.

Para entendermos a “diferença” que os regimes fazem, é necessário antes entender o

contexto “natural” das relações entre os atores na ausência de regimes. Para Keohane, “duas

características do contexto internacional são importantes: a política mundial não possui

instituições governamentais impositivas, e é marcada pela constante incerteza12

”. Logo,

podemos presumir que a demanda por regimes busca minimizar (1) a falta de um governo

supranacional autoritário, e (2) a incerteza quanto as expectativas dos atores. Para Keohane,

“Within this setting, a major function of international regimes is to facilitate the making of

mutually beneficial agreements among governments, so that the structural condition of

anarchy does not lead to a complete ‘war of all against all’” (Keohane, 1989, p. 106).

Para Keohane, a política mundial pode ser comparada a um mercado. Em condições

perfeitas, nenhum tipo de regulação se faz necessária para que se obtenha um resultado ótimo.

Em casos como este, a simples operação de um sistema de “auto-ajuda” resultará em ganhos

mútuos e na estabilidade do sistema (assim como afirma a teoria liberal clássica). Entretanto,

segundo o autor, não é isto o que se observa empiricamente. Se tal proposição fosse

verdadeira, não haveria demanda para a construção de instituições e regimes internacionais.

Mais especificamente, ao invés de regimes, teríamos uma profusão de acordos ad hoc que

refletiriam um conjunto de interesses pontuais.

Keohane sugere que o sistema internacional, assim como concebido pela tradição

neorrealista, apresenta similaridades com a teoria de mercados imperfeitos, ou “Market

failure”. Ou seja, em sua forma “nua e crua” o sistema internacional oferece constrangimentos

que aumentam os custos da cooperação. Logo, em função da anarquia do sistema

11 Keohane, 1989, p. 103. 12 Keohane, 1989, p. 106.

internacional surge a necessidade de criação de regimes que reestabelecem as condições de

segurança, informação e previsibilidade necessárias para que acordos possam ser firmados e

cumpridos.

Quais são, então, as funções que um regime deve cumprir? Para explicar esse ponto,

Keohane recorre ao trabalho de Ronald Coase. Segundo este autor, existem três condições que

permitem a realização pareto-ótima dos fatores de produção no funcionamento do mercado. A

primeira condição é a existência de um “framework” legal, presumivelmente estabelecido por

uma autoridade governamental, que garanta o cumprimento dos contratos entre as partes; a

segunda condição é a existência de “informação plena” (ou seja, os atores sabem

perfeitamente suas intenções mútuas); e a terceira condição é a ausência de custos de

transação13

.

De acordo com Keohane, “If all these conditions were met in world politics, ad hoc

agreements would be costless and regimes unnecessary. At least one of them must not be

fulfilled if international regimes are to be of value, as facilitators of agreements, to

independent utility-maximizing actors in world politics” (Keohane, 1989, p. 111).

Ocorre, porém, que nenhuma destas condições existe na política mundial. Isso

significa que, em qualquer hipótese, a existência de regimes é uma precondição para a

realização exitosa de acordos entre estados. Segue deste raciocínio, portanto, que a função dos

regimes na política mundial deve ser a de garantir (1) a existência de um “framework” legal;

(2) a promoção do monitoramento mútuo das ações dos atores (informação); e (3) a redução

dos custos de transação. A demanda por regimes ocorre exatamente porque os atores sabem

que, nas condições normais do sistema internacional, o estabelecimento de acordos entre

estados é, na melhor da hipóteses, um evento raro e, presumivelmente, de curta duração.

Tentaremos sumarizar o que foi dito até agora. Regimes são “princípios, normas,

regras e procedimentos entorno das quais as expectativas dos atores convergem em uma

determinada área de concentração”. De acordo com a teoria da estabilidade hegemônica, o

surgimento e a mudança de regimes reflete as dinâmicas da distribuição de poder no sistema

internacional. Além disso, vimos que os regimes não são simplesmente uma imposição

unilateral das potências hegemônicas sobre os demais estados. Há, efetivamente, a

necessidade de estabelecimento de regimes internacionais para que a cooperação entre estados

possa ocorrer14

.

13 Não entraremos em maiores detalhes sobre a teoria de Ronald Coase. Este trabalho se encontra melhor definido em After Hegemony, do

próprio Keohane. 14 Em After Hegemony, o argumento de Keohane é mais complexo. Para este autor, a criação de regimes internacionais prescinde

inexoravelmente de uma potência hegemônica. Contudo, após terem sido estabelecidos, os regimes podem continuar a existir mesmo após a

Regimes espontâneos, negociados e impostos:

Vejamos agora, rapidamente, como é a visão de Oran Young15

sobre a formação e a

evolução de regimes. Para Young, regimes são nada mais que instituições sociais. Assim

como qualquer instituição social, regimes são definidos pela sua capacidade de produzir

padrões de comportamentos previsíveis e, consequentemente, contribuir para a consolidação

das expectativas dos atores envolvidos. Mais especificamente, “regimes internacionais são

aqueles que pertencem a atividades que interessam aos membros do sistema internacional16

”.

Young trabalha com a ideia de que qualquer atividade social padronizada, sendo

reconhecida como tal, influencia as expectativas dos atores com relação ao comportamento.

De forma geral, podemos afirmar que as instituições sociais, inclusive regimes internacionais,

“constituem uma resposta a problemas de coordenação ou situações nas quais a busca pelos

interesses individuais leva a resultados socialmente indesejáveis17

”. Esta visão é similar à de

Keohane quanto a demanda por regimes.

Estas atividades padronizadas, enquanto instituições sociais, podem ser de três tipos:

elas podem ser ordens espontâneas, ordens negociadas ou ordens impostas.

Ordens espontâneas são aquelas que emergem de um comportamento natural, e que

não são planejadas pelos atores que a constituem. O mercado – entendido pela perspectiva

liberal – é uma ordem espontânea porque emerge do comportamento egoísta de inúmeros

indivíduos e não é planejado por nenhum deles. Estes indivíduos, comportando-se de maneira

não coordenada, reproduzem comportamentos padronizados sem qualquer intenção de fazê-lo.

Outro exemplo de ordem espontânea, desta vez, a partir do pensamento realista, é a balança

de poder. Similarmente ao mercado, o sistema internacional anárquico também gera

espontaneamente comportamentos padronizados, como a balança de poder18

.

Ordens negociadas, por outro lado, são “regimes caracterizados pelo esforço

consciente para chegar a acordos sobre problemas comuns”. Ordens negociadas, em suma,

expressam o consentimento explicito dos atores envolvidos sobre os problemas comuns e as

possíveis soluções a estes problemas. Young sugere que ordens negociadas podem ser de tipo

erosão do poder do hegemon. As condições para que um regime possa sobreviver “após a hegemonia” são aquelas descritas por Keohane

como “o lado da demanda” por regimes. 15 Young, Oran, R. Regime dynamics: the rise and fall of international regimes, In: Krasner, Stephen, D. (coord.), International

Regimes, Ithaca, Cornell University Press, 1983. 16 Young, 1983, p. 93. 17 Young, op. cit., 1983, p. 97. 18 Do ponto de vista marxista, o mercado não é considerado uma ordem espontânea. Isso porque o funcionamento do mercado depende da

existência de uma autoridade que garanta (1) a inviolabilidade da propriedade privada, e (2) a inviolabilidade dos contratos. Tais elementos

não nascem espontaneamente. Da mesma forma, podemos criticar a visão realista de que o sistema internacional nasceu de forma

espontânea. O princípio da soberania, por exemplo, é uma ordem, na melhor das hipóteses, negociada, e na pior da hipóteses, imposta, como

argumenta a tradição neo-marxista e “descolonial”.

constitucional, na qual todos os atores diretamente afetados pelas decisões participam das

negociações; ou elas podem ser “barganhas legislativas”. Nestes casos, os atores envolvidos

na negociação tomam decisões que afetam atores que não estão diretamente envolvidos. De

forma geral, para este autor, as ordens negociadas são as mais frequentes na política mundial.

Por este motivo, é igualmente frequente que estudiosos do assunto se esqueçam de que

existem outras formas de ordem que não são negociadas.

Ordens impostas diferem das demais porque são criadas com o intuito de beneficiar

apenas os atores mais poderosos do sistema. Nas palavras de Young,

“In short, imposed orders are deliberately established by dominant actors who succeed in

getting others to conform to the requirements of these orders through some combination of

coercion, cooptation, and the manipulation of incentives […] overt hegemony occurs when the

dominant actor openly and explicitly articulates institutional arrangements and compels

subordinate actors to conform to them” (Young, 1983, p. 100).

Ordens impostas, em outras palavras, obviamente derivam da disparidade de poder

entre as unidades do sistema internacional. Todavia, não se deve imaginar que as ordens

impostas se fundamentam somente na coerção pura e simples. É bem sabido que a imposição

unilateral aberta, baseada na força explícita, não possui condições de se sustentar por longos

períodos. Em função disso, a maior parte das ordens impostas não se apresentam como tal.

Segundo Young, “hábitos de obediência por parte dos subordinados emergem com o tempo”.

Portanto, a dominação contínua no tempo tende a adquirir o status de legitimidade19

.

Porém, o mais relevante neste tipo de ordem é a sua vulnerabilidade à mudanças nas

estruturas de poder. Qualquer modificação na distribuição de capacidades entre os atores pode

levar a uma dissolução da ordem imposta causando (1) a emergência de um período de

anarquia e caos (como foi o período entre guerras) ou (2) a emergência de uma nova ordem

liderada por um outro ator mais poderoso.

Para Young, é importante distinguir entre as formas de ordem porque cada uma delas

leva a resultados comportamentais diferentes. Ordens espontâneas são extremamente

eficientes: elas produzem resultados com baixos custos de transação, não necessitam de

organizações formais nem de códigos de conduta que restringem a liberdade individual. Por

outro lado, ordens negociadas são custosas e implicam na redução da liberdade dos atores.

Ordens impostas, por sua vez, servem aos interesses dos atores mais poderosos e resultam em

arranjos pouco eficientes se comparados com as ordens espontâneas e negociadas.

19 “regimes that arise in the form of imposed orders are sometimes increasingly accepted as legitimate with the passage of time, so that it

becomes less necessary for the dominant actors to coerce others into conforming with their requirements” (Young, 1983, p. 102).

Enfatizaremos dois pontos da argumentação de Young. Em primeiro lugar, Young

afirma que “a incidência de ordens negociadas tenderá a variar de acordo com o grau de

centralização do poder e da autoridade em uma sociedade”. Quanto mais descentralizados

forem o poder e a autoridade, maior será a chance de emergirem ordens negociadas. “Ao

mesmo tempo, a proeminência de ordens impostas tenderá a variar inversamente em relação

ao grau de interdependência”. Segue deste raciocínio que o aumento na interdependência

favorece a emergência de ordens negociadas, enquanto a diminuição da interdependência

favorecerá o surgimento de ordens impostas.

Para os fins deste artigo, gostaríamos de propor a seguinte interpretação: o conceito de

ordem negociada pode ser muito bem descrito pela ideia de Keohane sobre a demanda por

regimes internacionais. Nesse sentido, regimes emergem a partir do cálculo racional dos

atores, que procuram coordenar as suas ações para atingir o ponto pareto-ótimo de utilização

dos fatores de produção. Por outro lado, o conceito de ordem imposta pode muito bem ser

associado à teoria da estabilidade hegemônica. Dessa forma, regimes internacionais emergem

na política mundial como o reflexo do poder discrepante do hegemon e tenderão a favorecer

os interesses deste mesmo hegemon. Em suma, enfatizaremos, por fim, a ideia de que ordens

negociadas apresentam mais probabilidade de existir em ambientes com alto grau de

homogeneidade e convergência de interesses. Por outro lado, ordens impostas tendem a surgir

quanto existe grande disparidade de poder e divergência de interesses.

Conforme argumentaremos mais adiante, a mudança do regime de propriedade

intelectual da OMPI para a OMC, na década de 90, poderá ser entendido destas duas

maneiras. (1) O aumento na interdependência da política mundial nas últimas décadas do

século XX aumentou a necessidade de criação de uma ordem negociada mais abrangente, que

refletisse as novas condições de convergência de interesses entre norte e sul; e (2) a

disparidade de poder entre países do norte, especialmente os Estados Unidos, Alemanha e

Japão, em relação aos países do sul – acrescido da falta de convergência dos interesses destas

duas partes - favoreceu a emergência de um regime de propriedade intelectual imposto, ao

invés de negociado.

Nosso trabalho se fundamenta fortemente na teoria da estabilidade hegemônica.

Devido a isso, achamos interessante avançar algumas críticas feitas a essa teoria.

Apresentaremos o trabalho de Guzzini20

e Ruggie21

. Escolhemos estes dois autores em função

20 Guzzini, Stefano. From (alleged) unipolarity to the decline of multilateralism? A power-theoretical critique. In: Newman, Edward

(ed.) et. al. Multilateralism under challenge? Power, international order, and structural change, United Nations University Press, 2006.

de sua importância para a disciplina de relações internacionais e, fundamentalmente, porque

suas críticas são consideravelmente construtivas. Ou seja, esperamos que após a análise destas

críticas, reapresentaremos o argumento de forma mais completa e sólida.

Críticas à teoria da estabilidade hegemônica:

Como vimos na seção anterior, a teoria da estabilidade hegemônica afirma que uma

mudança na distribuição de poder no sistema internacional resultará em uma mudança nas

formas institucionais, no nosso caso, regimes internacionais, que vigoram entre os estados.

Esta teoria é claramente guiada pela ideia de que o poder (e a sua distribuição) é a variável

que explica o comportamento dos atores em um dado sistema. De forma geral, podemos

afirmar que a teoria da estabilidade hegemônica é uma extensão das teses realistas que

afirmam que quanto maior for o diferencial de poder, maior será a estabilidade do sistema

internacional. É evidente, também, que a potência hegemônica usará este diferencial de poder

para avançar instituições internacionais que assegurem os seus interesses próprios.

Segundo Guzzini, na década de 80, a teoria da estabilidade hegemônica (TEH)

afirmava que o declínio do poder norte americano causava o declínio do multilateralismo. Em

outras palavras, os Estados Unidos agiram de forma unilateral exatamente porque sua

capacidade de liderar as instituições multilaterais estava fraquejando. Entretanto, a TEH

afirma que, no período do entre guerras, a falência da ordem liberal internacional era

associada à falta de uma liderança hegemônica. Além do mais, atualmente, associa-se o

unilateralismo da política norte americana com a preponderância de seu poder no sistema

internacional. O argumento, para deixá-lo mais claro, é que a existência ou não de uma

potência hegemônica não pode ser causalmente ligado ao comportamento dos estados,

principalmente ao fenômeno do unilateralismo ou multilateralismo. A unipolaridade pode

resultar em multilateralismo, como pode também resultar em unilateralismo.

Para Guzzini esta incoerência acontece porque a TEH depende, em última análise, da

capacidade de “medir” e comparar o poder das unidades. Contudo, Guzzini afirma que o

poder não é fungível. Em outras palavras, o poder não pode ser medido, e, portanto, não pode

ser utilizado como uma variável explicativa para o comportamento. O poder, segundo

Guzzini, é um conceito relativo e multidimensional. Isso significa que o poder não pode ser

analisado nem como recursos, nem como resultados. Segundo o autor, “since power is not

measurable, claims to a specific unipolarity cannot be independently checked to save the

21 Ruggie, J. G. International regimes, transactions, and change: embedded liberalism in the postwar economic order. In: Krasner,

Stephen, D. (coord.), International Regimes, Ithaca, Cornell University Press, 1983.

causal links of a systemic power analysis going from unipolarity to the decline of

multilateralism”.

O que acontece, portanto, de acordo com Guzzini, é que uma determinada concepção

de poder que seja compartilhada pelos atores de um determinado sistema acaba funcionando

exatamente como se tal poder efetivamente existisse. Isso significa que a TEH, no final das

contas, colabora para a perpetuação da percepção de que os Estados Unidos (1) são a maior

potência; (2) de que o sistema internacional é unipolar; e (3) os Estados Unidos possuem a

“missão” de liderar unilateralmente o mundo, pois sem a sua ajuda o sistema internacional

mergulharia no caos.

Nas palavras do autor:

“A particular conception of power, if shared, has an actual effect on world order. Precisely

because the distribution of power resources does not determinate outcomes, but are often

understood to do so, the capacity to shape the definitions of power is not mere semantics, but

has political effect” (Guzzini, 2006, p. 120).

“If it were true that the US enjoys a very large power and superiority, then it is only natural

that it assumes a large responsibility for international affairs. Insisting on the special power of

the US triggers and justifies a disposition for action” (Guzzini, 2006, p. 129).

“The political implications are clear. The more observers stress the unprecedented power of

the US, the more they mobilize the political discourse of agency and responsibility tying it to

the US and the US alone, and the more they can exempt US action from criticism, since it

responds to the ‘‘objective’’ (power) circumstances of our time” (Guzzini, 2006, p. 130).

Concordamos com Guzzini em sua crítica ao discurso que procura representar os

Estados Unidos como um líder natural que se esforça em promover, por vias unilaterais, o

bem comum. Acreditamos que propostas como estas servem apenas para reproduzir as

práticas autoritárias e “policiais” por parte dos EUA ao redor do mundo. Concordamos que a

TEH pode, sim, ser utilizada como uma “desculpa científica” para reproduzir situações de

dominação e exploração.

Porém, devemos sempre estar atentos para o fato de que se os Estados Unidos não

possuíssem efetivamente o poder para realizar tais ações unilaterais, não seria a imaginação

compartilhada que os capacitaria à tais feitos. Afirmar que o poder não é fungível, que ele não

pode ser genericamente descrito e determinado não significa que ele não exista e que ele não

influencie a política mundial. Por exemplo, na ocasião da negociação dos acordos TRIPS, no

final da década de 80, os Estados Unidos se utilizaram, como mostra o trabalho de Susan K.

Sell22

e Christopher May23

, amplamente da “seção 301” para pressionar países em

22 Sell, Susan, K. Private Power, Public Law, New York, Cambridge University Press, 2003.

desenvolvimento à assinar um acordo que seria, em última análise, maléfico aos próprios

interesses destes países. É virtualmente impossível explicar esse comportamento sem

imaginar que o poder de barganha norte americano foi fundamental para a criação do TRIPS.

Supor o contrário seria imaginar que os países em desenvolvimento são absolutamente

incapazes de legislar e negociar por si próprios acordos internacionais.

Concordamos com Guzzini no sentido de que não é possível utilizar o conceito de

poder como uma variável sem qualquer preocupação em mencionar o que é este poder e

porque este poder é compreendido como poder pelos demais participantes de um processo

social. No caso da “seção 301”, o que constituía o poder norte americano era a sua

desproporcional capacidade produtiva e de consumo frente aos demais participantes da

negociação. Nas termos de Marisa Gandelman, o que constituía o poder da “seção 301” era a

capacidade dos Estados Unidos de negar o acesso tanto à tecnologias quanto ao seu mercado

interno aos demais estados24

. Porém, somente esta capacidade não bastava; era necessário

fazer com que os demais países reconhecessem que a “seção 301” constituía uma instância de

poder. Ou seja, era necessário fazer com que os demais países temessem serem alvos da

“seção 301” para que então ela pudesse ser utilizada como um arsenal na mesa de

negociações. Era este elemento, neste caso sim, “imaginado” que constituía o poder norte

americano na negociação dos TRIPS. Era exatamente o medo de ser alvo de uma retaliação

por meio da “seção 301” que proporcionou uma vantagem comparativa aos Estados Unidos.

Esse medo, porém, não era somente imaginado; ele era muito bem fundamentado na

disparidade de recursos que os Estados Unidos ostentavam frente aos demais estados,

principalmente frente aos países em desenvolvimento.

A forma e o conteúdo dos regimes internacionais:

John Gerard Ruggie25

, assim como os demais autores analisados neste estudo, define

regimes internacionais como “instituições sociais em torno das quais as expectativas dos

atores convergem em uma determinada áreas das relações internacionais”. Dessa forma,

regimes possuem duas características fundamentais: em primeiro lugar, eles constrangem as

ações dos atores limitando o escopo de suas escolhas em uma determinada área. Em segundo

lugar, regimes conformam as expectativas mútuas dos atores de maneira intersubjetiva. Logo,

Ruggie afirma que regimes internacionais podem ser comparados à uma “linguagem dos

23 May, Christopher. A Global Political Economy of Intellectual Property Rights: The New Enclosures?, London, Routledge, 2000. 24 Gandelman, Marisa. Poder e Conhecimento na Economia Global, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2004. 25 Ruggie, J. G. International regimes, transactions, and change: embedded liberalism in the postwar economic order. In: Krasner,

Stephen, D. (coord.), International Regimes, Ithaca, Cornell University Press, 1983.

estados”. Em outras palavras, é a partir dos regimes que os estados comunicam o seu

entendimento sobre o sistema internacional e constituem suas expectativas sobre o

comportamento dos demais estados. Para Ruggie, portanto, regimes não são somente uma

série de regras e procedimentos, mas são, além disso, princípios subjacentes de ordem e

significados compartilhados pelos atores de um dado sistema. Em suma, regimes possuem um

determinado propósito intersubjetivo (princípios e normas) e uma determinada forma (regras

e procedimentos).

Além do mais, enquanto formas institucionais, regimes manifestam o que o autor

chama de “internacionalização da autoridade política”. Isso porque eles são a manifestação de

um conjunto compartilhado de princípios e significados sobre o entendimento dos atores a

respeito do que é legítimo, dos direitos e das obrigações políticas dos estados. Regimes são,

portanto, uma gramática que confere significado à ação dos estados. Regimes compreendem

uma série de concepções sobre o que é a ordem; sobre os princípios que guiam as ações dos

estados; e sobre quais os instrumentos legítimos a serem adotados para a garantia do

funcionamento suave do sistema internacional.

O autor avança três argumentos fundamentais no que diz respeito à teoria de regimes.

O primeiro deles é um complemento à TEH. De acordo com Ruggie:

“Whatever its institutional manifestation, political authority represents a fusion of power with

legitimate social purpose. The prevailing interpretation of international authority focuses on

power only; it ignores the dimension of social purpose. The problem with this formulation in

that power may predict the form of the international order, but not its content” (Ruggie, 1983,

p. 198).

Como havíamos observado, a forma da ordem internacional significa as regras e os

procedimentos; o conteúdo desta ordem refere-se aos princípios e as normas. A TEH afirma

que a estabilidade do sistema internacional depende da existência de um hegemon. Porém, a

TEH nada diz sobre o conteúdo que esta ordem promoverá. Por exemplo, durante a

hegemonia britânica, no século dezenove, os princípios que guiavam a ordem internacional

eram os do liberalismo ortodoxo. Em contraste, a ordem que emerge sob a hegemonia norte

americana após a segunda guerra mundial se fundamenta no princípios do “embedded

liberalism”. Segundo Ruggie, estas duas ordens são completamente diferentes no que diz

respeito ao conteúdo (princípios e normas). A TEH, apesar de ter algum valor para explicar a

formação e a mudança de regimes, não é capaz de diferenciar entre o conteúdo da ordem

liberal ortodoxa e o da ordem liberal “embedded”.

O segundo argumento de Ruggie é uma crítica ao determinismo da TEH. Para o autor,

as teorias estruturais tradicionais relacionam causalmente a hegemonia com a ocorrência da

transnacionalização de capitais. Para Ruggie, esta ligação causal não pode ser feita porque

regimes dizem respeito à relação dos estados com outros estados e dos estados com o

mercado. Os regimes internacionais não influenciam o mercado em si. O que importa para

nós, neste trabalho, é que, segundo Ruggie, regimes internacionais não determinam as

relações do mercado, porém eles possuam a capacidade de criar um ambiente permissivo ou

restritivo para as relações no mercado. Em suma,

“That is to say, international economic regimes provide a permissive environment for the

emergence of specific kinds of international transactions flows that actors take to be

complementary to the particular fusion of power and purpose that is embodied within those

regimes […] These regimes, then, are neither determinative nor irrelevant, but provide part of

the context that shapes the character of transnationalization” (Ruggie, 1983, p. 199).

O terceiro argumento de Ruggie diz repeito à ocorrência de mudanças nos regimes.

Para o autor, “o modelo prevalecente [a TEH] postula apenas uma fonte de mudança de

regime, a ascensão ou declínio de hegemons, e duas direções de mudança de regime, maior

abertura ou fechamento”. Ou seja, quando há a ascensão de um hegemon, a tendência é que

surjam regimes abertos, liberais; e quando há o declínio de hegemons, a tendência é que os

regimes liberais enfraqueçam, dando lugar a posturas mais nacionalistas e protecionistas no

que diz repeito ao comércio. Ruggie sugere que, além do poder, outra variável também deve

ser considerada; isto é, devemos observar a variação do propósito do regime.

Portanto, temos um modelo que aceita que uma variação negativa no poder (ausência

de um hegemon) pode mesmo assim resultar em um regime forte em função de uma variação

positiva nos propósitos compartilhados entre os atores do sistema internacional. Para Ruggie,

isto significa que, havendo a convergência de interesses entre os estados, regimes e

instituições podem emergir e se manter funcionando. Dessa maneira, Ruggie afirma que o

(suposto) declínio da hegemonia americana na década de 70 não resultou no fim da ordem

liberal “embedded” porque havia grande convergência de propósito entre os estados do

sistema internacional. O que aconteceu, neste caso, ao contrário da mudança ocorrida na

virada do século dezenove para o século vinte, foi uma mudança no regime guiada pelas

normas. Ou seja, mudaram os instrumentos de ordenação do regime (regras e procedimentos),

mas mantiveram-se os princípios e normas intactas.

O que nos importa no trabalho de Ruggie é a ideia defendida pelo autor de que

regimes não são simplesmente o reflexo do poder e da hegemonia. Regimes, funcionando

como uma “linguagem dos estados”, refletem uma série de princípios e expectativas que os

atores possuem sobre o comportamento político legítimo; regimes conferem significado às

ações dos estados em um ambiente internacional.

As mudanças no regime de propriedade intelectual:

Em geral, os autores que tratam do tema de regimes de propriedade intelectual

costumam situar as raízes deste sistema na segunda metade do século XIX. Isso acontece

porque, de acordo com Christopher May, até este momento “a regulação da propriedade

intelectual era um assunto inteiramente nacional26

”. Isso significa que o sistema de patentes

era válido somente em solo nacional e aplicável somente à conteúdos produzidos por cidadãos

residentes. Cada estado possuía seu próprio sistema e não intervia no sistema dos demais.

O fato de as políticas para a propriedade intelectual, até a metade do século XIX,

serem assuntos exclusivamente domésticos indica que, para os estados, não havia qualquer

necessidade de coordenação mútua para atingir os fins desejados. O padrão de comportamento

seguindo as concepções institucionais mais básicas, como a soberania e o direito à

propriedade particular, eram suficientes para garantir o funcionamento de um sistema

econômico cujas mercadorias não necessitável ser protegidas imaterialmente para poderem

ser comercializadas com sucesso. Tudo isso começa a mudar na segunda metade do século

XIX em função do avanço tecnológico que diz respeito, por um lado, aos processos

produtivos industriais; e, por outro lado, ao mercado editorial de livros.

Porém, é preciso lembrar que o debate sobre propriedade intelectual não é, nem nunca

foi, consensual. No século XIX, este debate girava em torno das tensões que existiam entre

aqueles que viam a proteção da propriedade intelectual como uma forma de criação de

monopólios e aqueles que viam a proteção como um estímulo à inovação e ao

empreendedorismo. Christopher May afirma que:

“In the 25 years between 1850 and 1875 an international controversy developed between those

seeking to defend the protection of innovation and invention through the patent system, and

those who contrasted this protection with the needs and demands of an international system of

free trade. Debates centered on the tension between free trade and intellectual property that

stems from the limitations on commercial practice that the recognition of one party’s IPRs

puts on another party’s activities, thereby limiting free trade. Free trade liberals criticized the

monopoly aspect of intellectual property and tried to undermine the patent system by arguing

that invention was social and a product of technological change, rather than the result of

individual genius” (May, 2007, p. 15).

26 Christopher May, The World Intellectual Property Organization, London, Routledge, 2007, p. 15.

Este debate continua até hoje. Todavia, como vamos argumentar mais adiante, com a

ratificação dos acordos TRIPS, a ideia de que a propriedade intelectual atua como um

fomento à construção de monopólios foi praticamente abandonada. Deve-se ter em mente,

entretanto, que, no século XIX, as patentes eram conceitualizadas como concessões que o

estado fazia com o intuito de estimular a produção de novidades. O debate entre defensores

dos sistemas mais densos de patentes e os que criticavam o aspecto monopolista das patentes

girava em torno do balanço adequado entre monopólio e livre comércio.

Tendo em vista o que foi dito acima, em 1883 e em 1886 foram criadas as Convenções

de Paris e de Berna, respectivamente. A convenção de Paris estabelecia parâmetro de proteção

à patentes relacionadas a processos industriais. A Convenção de Berna estabelecia parâmetros

para os copyrights (ou seja, direitos relativos à obras literárias). Em função da proximidade

entre estas duas convenções, em 1893 elas foram unificadas sob um único secretariado

sediado na Suíça, chamado Bureaux Internationaux reunis pour la protection de la propriété

intellectuelle (BIRPI).

Quanto aos princípios defendidos pelo BIRPI, Christopher May afirma que:

“The underlying principles of both these initial multilateral intellectual property agreements

were non-discrimination, national treatment and the right of priority, offering protection to the

first to invent or create, rather than the first to file or reproduce. Under this system, states were

free to pass legislation of their own design, but were obligated to extend their legislative

protection to foreigners of member states. These conventions neither created new substantive

international law nor imposed new laws on member states; rather, they reflected a consensus

among member states that was legitimated by domestic laws already in place” (May, 2007, p.

18).

Podemos concluir, portanto, que o sistema de proteção à propriedade intelectual

representado pelo BIRPI era pouco intrusivo, limitando-se a garantir que os estados membros

estendessem a concessão de patentes tanto para cidadãos nacionais quanto para estrangeiros.

Além do mais, as Convenções de Paris e Berna não pretendiam ampliar o conceito de

propriedade privada, mas apenas fazer com que ela fosse aplicada para as relações entre

estados assim como já era aplicada em âmbito doméstico. Como afirma Marisa Gandelman, o

BIRPI foi criado repeitado as leis domésticas e esforçando-se em adequar-se à elas, e não ao

contrário. Por outro lado, no sistema do TRIPS, são os estados que devem se adequar às leis

supranacionais, modificando as seus respectivas legislações domésticas27

.

O BIRPI continuou a exercer a sua função de supervisionar as Convenções de Paris e

Berna até 1970, quando a OMPI foi oficialmente criada. De início, podemos perceber que a

27

Marisa Gandelman, op. cit., 2004.

criação da OMPI para substituir o BIRPI já significou em si uma mudança na estrutura e na

distribuição de poder no sistema internacional ao final da década de 60.

Segundo Christopher May, o período de descolonização que se seguiu ao fim da

segunda guerra mundial provocou uma mudança sensível no perfil dos países membros do

BIRPI. Fundamentalmente, os países menos desenvolvidos, agora em maior número do que

antes e livres dos laços coloniais, passaram a reivindicar uma mudança na forma como a

propriedade intelectual era tratada pela instituição. Os países menos desenvolvidos exigiam

que as regras sobre a propriedade fossem direcionadas ao desenvolvimento. Ou seja, que elas

fossem flexibilizadas para propiciarem aos países consumidores de tecnologia o acesso mais

barato à estes bens. Além disso, a quantidade de países membros também havia crescido

consideravelmente, fato que exigia um aumento também da estrutura institucional do BIRPI.

Outro fator que impulsionou a transformação do BIRPI foi a crescente necessidade de

universalizar o alcance dos sistemas de proteção à propriedade intelectual. Ou seja, os países

produtores de tecnologia se beneficiariam, evidentemente, com o crescimento do regime.

Para atender a esta demanda, o BIRPI – que até então era gerido pelo próprio governo

suíço – remodelou sua forma organizacional para refletir aquela utilizada pela ONU. Em

1974, quatro anos após OMPI ter sido estabelecida, ela foi integrada formalmente à ONU

como uma agência especializada. A integração da OMPI ao quadro de agências da ONU

significou, além da evidente mudança no status da instituição, que o regime de propriedade

intelectual passaria a ser orientado pelos mesmos princípios que norteavam a ação da ONU;

ou seja, a OMPI ganhou, neste período, um foco formalizado para desenvolvimento e a

promoção da distribuição do conhecimento. Nas palavras de May;

“However, although independent organizationally, as a specialized agency of the UN, the

WIPO was, and is, required to work in accordance with the UN’s overall developmental

mission […] Explicitly, the WIPO was obliged to work with the UNCTAD, the UNDP

(United Nations Development Program) and the UNIDO (United Nations Industrial

Development Organization) to promote and facilitate ‘the transfer of technology to developing

countries in such a manner as to assist these countries in attaining their objectives in the fields

of science and technology and trade and development’. This question of how the WIPO’s

activities have interacted with, and have often differed from, developing countries’ priorities

has become a major element in the criticisms leveled at the WIPO” (May, 2007, p. 25-26).

Podemos perceber, portanto, que, por um lado, para os países exportadores de

tecnologia, a criação da OMPI representou um ganho no que diz respeito ao alcance do

regime. Enquanto uma agência especializada da ONU, a OMPI ganhou mais legitimidade e

ampliou a sua base de membros. Isso significa que mais estados estariam dispostos a

reconhecer as Convenções de Paris e Berna e trabalhar dentro das limitações que elas

impunham em troca do acesso à tecnologia dos países desenvolvidos. O que queremos dizer é

que os países exportadores de tecnologia ganharam, com a criação da OMPI, um mercado

maior para os seus produtos tecnológicos protegidos por patentes. Por outro lado, para os

países consumidores de tecnologia, a OMPI significou um ganho pois ela representava um

foro no qual os estados mais fracos possuíam, apesar de suas capacidades reduzidas, voz

política. Porém, foi exatamente a voz política destes países menos desenvolvidos que

contribuiu para “emperrar” as negociações no âmbito da OMPI.

De acordo com Marisa Gandelman, “os países consumidores de tecnologia estrangeira

entendiam que o monopólio criado pelo sistema de patentes [...] era a principal ferramenta de

impedimento à realização de suas políticas de desenvolvimento28

”. Por outro lado, os países

da OCDE “entendiam que os problemas enfrentados pelos países em desenvolvimento eram

de natureza complexa [...] um contexto socioeconômico tão complicado que as mudanças no

regime não iriam resolver29

”. O resultado dessa cisão fundamental foi o impasse que se

manifestou durantes as conferências de revisão do acordo de Paris, entre 1980 e 1984. Foi

neste contexto que os países desenvolvidos, liderados pelos Estados Unidos, começaram a

forçar a mudança de foro do âmbito da OMPI para o GATT, durante a Rodada do Uruguai.

Desde o início da década de 80, grupos associados com empresas produtoras de

tecnologias se mostravam cada vez mais insatisfeitos com o rumo das negociações no âmbito

da OMPI. Juntas, estas empresas formaram o Intellectual Property Committee (IPC) visando

oferecer suporte legal para a proteção da propriedade intelectual, assim como pressionar o

governo dos Estados Unidos para promover sansões mais pesadas sobre os países que

violavam as patentes das industrias americanas. De acordo com May, porém, as ações do IPC

não se restringiam somente ao solo estadunidense.

“Crucially, the IPC’s influence was not limited to US trade negotiators: it also worked hard to

convince industrial associations in Europe and Japan that a new governance regime for IPRs

was possible, and then mobilized them to support its quest to include intellectual property

protection in the Uruguay Round” (May, 2007, p. 28).

O principal objetivo deste grupo era o de convencer os negociadores de que o melhor

foro para as negociações concernentes à propriedade intelectual não era a OMPI, mas sim o

GATT. Isso se deve, principalmente, a dois motivos: em primeiro lugar, a OMPI não oferecia

mecanismos de sansão nos casos de violação de patentes, assim como também não

possibilitava a retaliação cruzada, associando violação de direitos de propriedade intelectual

28 Gandelman, 2004, p. 184. 29 Gandelman, 2004, p. 192.

com outras pautas comerciais. Em segundo lugar, para o IPC, as decisões da OMPI estavam

saturadas com a influência dos países do Grupo dos 77, e não mais respondiam às

necessidades dos países exportadores de tecnologia. De acordo com Susan Sell30

;

“The IPC emphasized that WIPO, while at that time charged with administering various IP

conventions, was no longer adequate to the task. The problem, according to the IPC, was

WIPO’s identification with the special interests of developing countries. As a part of the UN

system with a one-state one-vote process, WIPO was destined to uphold the interests of the

majority of developing countries ‘who abet the theft of intellectual property’ (Pratt, quoted in

Ostry, 1990: 24). While recognizing the value of WIPO as a technical body involved with IP

issues, the IPC argued that since intellectual property was essentially a trade and investment

issue that it rightly belonged in the GATT” (Sell, 2003, p. 105).

Um instrumento crucial para o sucesso dos grupos que desejavam o endurecimento das

medidas de proteção à propriedade intelectual foi a seção 301. A seção 301 é um instrumento

legal da legislação americana que prevê o uso unilateral de sanções contra aqueles países

identificados como perpetradores de violações de patentes norte americanas. Ao longo da

década de 80, este instrumento passou a ser fundamental para pressionar os países menos

desenvolvidos, que são, não por acaso, os maiores violadores de patentes. Neste trabalho,

consideramos que a seção 301 constitui uma fonte de poder estrutural por parte dos EUA. É

por meio do uso, ou a ameaça do uso, destas sansões que muitos países, inclusive o Brasil, se

viram impossibilitados de resistir às pressões para a mudança de foro da OMPI para o GATT.

Em suma, ao serem pressionados com a perspectiva de retaliação, os países consumidores de

tecnologia passaram a preferir efetivamente que as negociações fossem transferidas para o

GATT, já que nesta organização a retaliação unilateral dos EUA poderia ser impedida. Susan

Sell oferece um exemplo da utilização da seção 301 contra o Brasil, em 1989;

“The PMA initiated a Section 301 case against Brazil for its failure to provide patent

protection for pharmaceutical products. After Brazil refused to alter its domestic IP policy, in

1989 the United States placed a 100 percent retaliatory tariff (totaling $39 million) on imports

of Brazilian pharmaceuticals, paper products, and consumer electronics” (Sell, 2003, p. 108).

O resultado desta pressão foi a aquiescência dos países menos desenvolvidos. Na

prática, como afirma Susan Sell, estes países reconheceram que a escolha não era entre a

OMPI ou o GATT, mas entre o GATT e a seção 30131

. A partir de então, os países menos

desenvolvidos retiraram suas demandas e aceitaram a transferência de foro sem maiores

problemas.

30 Sell, Susan, K. Private Power, Public Law, New York, Cambridge University Press, 2003. 31 “While they initially posed the choice of forum as one between WIPO and GATT, developing countries came to realize that in reality the

choice was between GATT and USTR” (Sell, 2003, p. 110)

“By April 1989, leading developing countries had accepted that GATT could have jurisdiction

in intellectual property, and that the TRIPS group could negotiate a comprehensive code of all

trade-related aspects of IP rights” (Sell, 2003, p. 109).

Para Christopher May32

, duas razões levaram os países menos desenvolvidos a assinar

o acordo TRIPS. A primeira delas é o fato de que algumas elites dentro destes países eram

favoráveis à criação de um sistema de proteção à propriedade intelectual mais forte. O

segundo motivo foi uma política de “carrot and stick” estimulada principalmente pelos

Estados Unidos. Por um lado, a “cenoura” significava a liberalização do comércio em áreas

importantes para os países menos desenvolvidos – ou seja, um incentivo; por outro lado, o

“chicote” significava as sanções unilaterais impostas majoritariamente por meio da seção 301

contra os países que não “respeitavam” a propriedade intelectual alheia.

Ao final de 1989, a única concessão que os países menos desenvolvidos conseguiram

foram os períodos de 5 a 10 anos (artigos 66 e 65) para ajustamento de suas leis domésticas

aos requerimentos dos TRIPS. Tendo o “problema” dos países do sul sido resolvido, as

negociações mudaram de foco e passaram a ser concentradas nas questões relativas aos países

produtores de tecnologia, como Japão, Alemanha e Estados Unidos. De acordo com Susan

Sell e Christopher May, os países desenvolvidos efetivamente impuseram tudo o que

desejavam nas negociações dos TRIPS, cedendo apenas do que diz respeito ao tempo de

ajustamento concedido aos países menos desenvolvidos.

O acordo final firmado em 1995 representou uma diferença fundamental na forma

como as patentes e os direitos autorais eram pensados. Até a década de 80, havia uma

permanente tensão entre aqueles que viam a propriedade intelectual como uma forma de

monopólio e, portanto, como uma restrição ao livre comércio; e aqueles que viam a

propriedade intelectual como uma forma de incentivo aos produtores de tecnologia e cultura.

Na prática, porém, o regime da OMPI era fundamentado nesta dialética constante entre estas

duas ideias; ou seja, o regime tinha a intenção de estabelecer o equilíbrio ideal entre proteção

e livre comércio – entre propriedade intelectual e monopólio. Porém, com a assinatura dos

TRIPS, o que ocorre é uma virada completa nos princípios do regime. Não se pretende mais

estabelecer o balanço ideal com vistas à utilização mais eficiente dos fatores de produção.

Muito pelo contrário, o que o TRIPS estabelece é que qualquer objeto ou ideia pode ser

“apropriável”, e que isso é o mais correto a ser feito. Tudo deve transformar-se em

propriedade provada, segundo esta visão. Segundo a visão dos TRIPS – e contra a visão que

norteava a OMPI – não existe qualquer contradição entre propriedade intelectual e monopólio.

32 Christopher May, The Global Political Economy of Intellectual Property Rights: The New Enclosures?, London, Routledge, 2000.

Em suma, segundo o TRIPS, a propriedade intelectual passa a ser uma pré-condição para o

livre mercado. É por isso mesmo que Christopher May se refere aos acordos TRIPS como

uma nova “enclosure of commons”, em referência à ideia de Marx sobre a acumulação

primitiva do capital.

Gostaríamos de chamar atenção para três “momentos” particulares na história do

regime de propriedade intelectual. O primeiro momento é a gênese do regime, no século XIX,

com a Convenção de Paris e Berna e a subsequente criação do BIRPI, em 1893. O período

entre a criação do BIRPI e a sua transformação em OMPI foi marcado pelo debate entre os

liberais que defendiam o livre comércio acima de tudo e os liberais que defendiam o estímulo

à produção de novidades. Com o fim da descolonização, novos atores ingressaram no sistema

internacional e outros que já existiam antes ganharam independência. O resultado deste

processo foi a criação de um bloco de países que reivindicavam mais igualdade econômica e

política. Neste período, o BIRPI tornou-se uma agência independente do governo suíço e

ampliou sua base de membros. É importante notar que, na OMPI, em função dos “novos

membros”, o debate relevante passou a ser entre países da OCDE e países menos

desenvolvidos. Ou seja, a negociação sobre o regime de propriedade intelectual girava em

torno da questão Norte-Sul. Consequentemente, o regime acabou ficando preso no impasse

entre estas duas partes. Ao longo da década de 80 – que também ficou marcada pelo

conhecido “consenso de Washinton” – os países produtores de tecnologia, com a ajuda das

sanções unilaterais impostas pelos EUA, conseguiram mudar o foro de negociações do regime

de propriedade intelectual da OMPI para o GATT. No GATT (OMC) houve uma mudança

dramática no regime, conforme descrito no parágrafo anterior.

Conclusão:

Ao longo deste trabalho vimos que a teoria da estabilidade hegemônica (TEH) afirma

que a estabilidade do sistema internacional depende da existência de um hegemon. Além

disso, vimos também que os regimes tendem a refletir os interesses dos atores mais poderosos

do sistema internacional. Como a TEH é uma teoria que deriva do entendimento neorrealista

sobre a natureza do sistema internacional, entende-se que qualquer mudança nos regimes será

o resultado de uma mudança na distribuição de poder entre as unidades do sistema. Por outro

lado, conforme afirma Ruggie e também, em alguma medida, Keohane, regimes também

dependem de algum grau de convergência de interesses. Para Ruggie, especificamente, a

distribuição de poder explica somente a forma, mas não o conteúdo do regime.

Neste trabalho, concordamos com a hipótese de que regimes são variáveis

intervenientes. Porém, deve-se destacar que para podermos imaginar os regimes como

variáveis intervenientes, é necessário imaginar o que seria o comportamento “natural” dos

atores. Vimos, contudo, na introdução, que não existe um comportamento que possa ser

chamado de “natural”, em oposição à um comportamento “artificial”. De qualquer maneira,

escolhermos tratar os comportamentos associados ao sistema internacional anárquico de

Waltz como “naturais”, já que eles são instruídos pelas regras constitutivas (regras que

constituem os atores), que são, por sua vez, profundamente enraizadas e apresentam grande

estabilidade no espaço e no tempo. Nesse sentido, regimes são regras reguladoras; ou seja,

regras que determinam o que os atores previamente constituídos podem ou devem fazer.

As Convenções de Paris e Berna, enquanto unificadas no secretariado do BIRPI,

refletiam o interesse dos países produtores de tecnologia. Estas convenções tinham como

objetivo possibilitar, ou facilitar, o comércio internacional de mercadorias com tecnologia

entre os países signatários das convenções. Não se pode perder de vista que o propósito do

regime do BIRPI era o de facilitar o comércio, e não o de restringi-lo. O objetivo do regime

não era o de negar o acesso aos bens carregados de valor imaterial, mas sim o de permitir que

a sua comercialização fosse benéfica tanto para o consumidor quanto para o produtor da

tecnologia. É neste sentido que afirmamos que regimes são uma tentativa de regular a

interação entre atores previamente constituídos.

Na década de 60 e 70, o debate Norte-Sul significou efetivamente uma mudança na

distribuição de poder entre os atores do sistema internacional. Esta nova distribuição de

capacidades significou tanto uma mudança no perfil dos membros da OMPI quanto uma

mudança nos propósitos do regime de propriedade intelectual. A questão do desenvolvimento

estava em voga naquele momento, e os países dos G77 pressionavam para que o regime

atentasse para as demandas dos países menos desenvolvidos, que reivindicavam acesso à

tecnologia a preços mais módicos de forma a possibilitar o seu desenvolvimento econômico.

O resultado, porém, não foi a mudança do regime em si, mas a estagnação. O impasse nas

negociações, evidentemente, demonstrava a erosão da capacidade norte americana em fazer

valer os seus interesses particulares sobre os interesses dos demais países. Neste momento, o

que podemos observar é um cenário com pouca hegemonia e muita divergência de propósitos.

O cenário permaneceu desta maneira até 1984. A partir de então33

, os norte

americanos, insatisfeitos com o pouco avanço nas negociações da OMPI, partiram para uma

33

Não por acaso, Ronald Reagan foi eleitos nos Estados Unidos em 1984.

política mais agressiva, argumentando que o debate sobre a propriedade intelectual era uma

questão comercial e, logo, deveria ser discutida no âmbito do GATT. Na prática, este

movimento significou a disposição por parte dos EUA em criar um novo regime que

atendesse às suas demandas por um sistema mais restritivo de propriedade intelectual. O uso

unilateral da seção 301 foi fundamental para a aquiescência dos países menos desenvolvidos.

O regime que emerge na década de 90, porém, é absolutamente distinto daquele que

existia sob a tutela da OMPI e do BIRPI. O que queremos dizer com isso é que a

desproporção de poder que havia entre os Estados Unidos e as demais unidades do sistema

realmente determinou a mudança de foro da OMPI para o GATT. Porém, somente a

hegemonia americana não explica o conteúdo deste novo regime que surgiu em 1995.

Conforme argumenta Marisa Gandelman, o regime da OMPI era pouco intrusivo e

procurava se ajustar tendo como base a soberania de cada país membro. No regime TRIPS,

são os estados que devem se ajustar aos padrões supranacionais, sob a pena de pesadas

sanções comerciais. O tênue equilíbrio que havia entre liberais que defendiam o livre

comércio e aqueles que defendiam as patentes e direitos autorais como forma de estímulos à

produção de novidades deu lugar à hegemonia do pensamento neoliberal. No regime TRIPS

não há, fundamentalmente, este debate. Isso acontece porque o pensamento neoliberal

concebe o mundo como um conjunto de interações entre “coisas” que são, invariavelmente,

propriedades privadas. Logo, a analogia proposta por Christopher May entre o TRIPS e as

enclosures de Marx é perfeitamente válida.

Para Marx, as enclosures não significaram – do ponto de vista liberal – a expropriação

e a criação de monopólios sobre a terra. Muito pelo contrário, as enclosures marcaram o

início do capitalismo e do mercado liberal. Da mesma maneira, o regime de propriedade

intelectual firmado da década de 90 não concebe a concessão de patentes e direitos autorais

como a criação de monopólios, mas sim como a criação das condições de possibilidade para a

emergência do mercado neoliberal.

Para concluir, apontamos que houve uma grande mudança nos princípios e nas normas

do regime internacional de propriedade intelectual. Ou seja, no vocabulário de Krasner, houve

uma mudança de regime, ao passo que na transição do BIRPI para a OMPI o que aconteceu

foi uma mudança no regime, já que as transformações foram somente nas regras e nos

procedimentos.

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