tortura e sintoma social - maira rita kehl
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TORTURA E SINTOMA SOCIAL
Maria Rita Kehl
Em um livro escrito em 2004 [1] eu me referi ao ressentimento como um dos
sintomas mais representativos da relao ambivalente da sociedade brasileira com os
poderes que, em tese, deveriam representar e defender interesses coletivos. Fruto dos
abusos histricos que aparentemente perdoamos sem exigir que opressores e
agressores pedissem perdo e reparassem os danos causados, o ressentimento instalouse
na sociedade brasileira como forma de revolta passiva (Bourdieu) ou vingana
adiada (Nietzsche), ao sinalizar uma covarde cumplicidade dos ofendidos e oprimidos
com seus ofensores/opressores. A mgoa irreparvel do ressentido indica que ele
sabe, mas no quer saber, que aceitou se colocar em uma condio passiva diante dos
abusos do mais forte; por covardia, por clculo (mais tarde ele h de reconhecer e
premiar meu sacrifcio) ou por impotncia autoimposta, o ressentido acaba por se
revelar cmplice do agravo que o vitimou.
importante ressaltar, entretanto, que o ressentimento no abate aqueles que
foram derrotados na luta e no enfrentamento com o opressor, e sim os que recuaram sem
lutar e perdoaram sem exigir reparao. O expediente corriqueiro por m-f ou mal-
entendido? de chamar de ressentidos aqueles que no desistiram de lutar por seus
direitos e pela reparao das injustias sofridas no passa de uma forma de desqualificar
a luta poltica em nome de uma paz social imposta de cima para baixo. Nossa
tradicional cordialidade, no sentido que Srgio Buarque de Hollanda tomou emprestado
de Ribeiro Couto, obscurece a luta de classes e desvirtua a gravidade dos conflitos
desde o perodo colonial.
No que toca relao do ressentimento com o tema deste simpsio, vale lembrar
que, no final da dcada de 1970, o Brasil foi o nico pas da Amrica Latina que
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perdoou os militares sem exigir da parte deles nem reconhecimento dos crimes
cometidos nem pedido de perdo. No me proponho aqui a discutir as condies da
anistia ampla, geral e irrestrita articulada pelos militares antes de deixar o poder. Mas
me espanta que, na atualidade, quando o ministro Tarso Genro e o secretrio de Direitos
Humanos Paulo Vannucchi propem a reabertura do debate sobre a tortura no perodo
militar, o engajamento da sociedade parea tbio sobretudo em comparao com a
violenta reao de alguns setores militares.
O esquecimento da tortura produz, a meu ver, a naturalizao da violncia
como grave sintoma social no Brasil. Soube, pelo professor Paulo Arantes, que a polcia
brasileira a nica na Amrica Latina que comete mais assassinatos e crimes de tortura
na atualidade do que durante o perodo da ditadura militar. A impunidade no produz
apenas a repetio da barbrie: tende a provocar uma sinistra escalada de prticas
abusivas por parte dos poderes pblicos, que deveriam proteger os cidados e garantir a
paz.
Para a psicanlise, o esquecimento que produz sintoma no da mesma ordem
de uma perda circunstancial da memria pr-consciente: da ordem do recalque. Somos
ento obrigados a nos indagar se possvel se falar em um inconsciente social cujas
representaes recalcadas produzem manifestaes sintomticas.
A ideia de sintoma social controversa na psicanlise. A sociedade no pode ser
analisada do mesmo modo que um sujeito; por outro lado, o sin toma social no tem
outra expresso seno aquela dos sujeitos que sofrem e manifestam, singularmente ou
em grupo, os efeitos do desconhecimento da causa de seu sofrimento. O sintoma social
se manifesta por meio de prticas e discursos que se automatizam, independentes das
estruturas psquicas singulares de cada um de seus agentes. Assim como ocorre quando
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o sinto ma individual se torna crnico, sem tratamento, tambm o sintoma social tende a
se agravar com o passar do tempo.
possvel afirmar que todo agrupamento social padece, de alguma for ma, dos
efeitos de sua prpria inconscincia. So inconscientes, em uma sociedade, tanto as
passagens de sua histria relegadas ao esquecimento por efeito de proibies
explcitas ou de jogos de convenincia no de clarados quanto as demandas
silenciadas de minorias cujos anseios no encontram meios de se expressar. Excludo
das possibilidades de simbolizao, o mal-estar silenciado acaba por se manifestar em
atos que devem ser decifrados, de maneira anloga aos sintomas dos que buscam a
clnica psicanaltica. Mas mesmo os sintomas relatados, um a um, nos consult rios dos
psicanalistas, so muito menos individuais do que se pode supor. Lacan, na conferncia
Funo e campo da palavra e da linguagem em psicanlise escreve que a
originalidade do mtodo psicanaltico est em abor dar no o indivduo, mas o campo
da realidade transindividual do sujeito [...] O inconsciente aquela parte do discurso
concreto enquanto transin dividual que no est disposio do sujeito para restabelecer
a continuida de de seu discurso consciente[2].
Por que as formaes do inconsciente ultrapassam a experincia dita individual
do sujeito? Porque o sujeito no um indivduo, no sentido radical da palavra;
dividido desde sua origem, a partir de seu pertencimento a um campo simblico cuja
sustentao necessariamente coletiva. As formaes do inconsciente, como fenmenos
de linguagem, so tributrias da estrutura desse rgo coletivo, pblico e simblico que
a lngua em suas diferentes formas de uso. Na perspectiva analtica, escreve Marie
Hlne Brousse [3], a oposio individual/coletivo no vlida, e o desejo que o su
jeito visa a decifrar sempre o desejo do Outro. No Seminrio 14: A lgica do
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fantasma, Lacan radicalizou esta relao ao propor a frmula o inconsciente a
poltica[4].
Toda realidade (social) produz, automaticamente, uma espcie de universo
paralelo: o acervo de experincias no includas nas prticas falantes.
Experincias loucas, desviantes, proscritas ou simplesmente doentias. Pois mesmo
aquilo que temos de mais singular, o modo de cada um padecer e adoecer, nem sempre
pertence exclusivamente a ns. Por vezes a doena, sobretudo a chamada doena
mental, no passa de um fragmento do real, um pedao excludo da cultura e o doente
seu cavalo, como se diz no candombl. O doente o lugar (social) onde a doena
encontrou uma brecha para se manifestar. Nietzsche acertou ao afirmar que a doena
institui um ponto de vista privilegiado sobre a realidade.
Nesse universo paralelo das experincias no compartilhadas pela
coletividade, experincias excludas das prticas falantes e (consequentemente) da
memria, vivem tambm, pelo menos parcialmente, os que tiveram seus corpos
torturados nos subterrneos da ordem simblica ou sofreram a perda de amigos e
parentes desaparecidos, vtimas de assassinatos nunca reconhecidos como tais por
agentes de regimes autoritrios. No Brasil, os opositores do regime militar que
sobreviveram tortura, embora circulem normalmente entre ns, vivem em um universo
parte no apenas em funo da radicalidade da dor e da despersonalizao que
experimentaram, mas tambm porque as prticas infames dos torturadores nunca foram
reconhecidas e reparadas publicamente. A sensao de irrealidadeque acomete aqueles
que passaram por formas extremas de sofrimento como no caso dos egressos de
campos de concentrao fica ento como que confirmada pela indiferena dos que se
recusam a testemunhar o trauma.
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Sabemos que nem tudo, do real, pode ser dito; o que a linguagem diz define,
necessariamente, um resto que ela deixa de dizer. O recorte que a linguagem opera
sobre o real, pela prpria definio de recorte, deixa um resto resto de gozo, resto de
pulso sempre por simbolizar. Nisto consiste o carter irredutvel do que a psicanlise
chama de pulso de morte. No h reao mais nefasta diante de um trauma social do
que a poltica do silncio e do esquecimento, que empurra para fora dos limites da
simbolizao as piores passagens da histria de uma sociedade. Se o trauma, por sua
prpria definio de real no simbolizado, produz efeitos sintomticos de repetio, as
tentativas de esquecer os eventos traumticos coletivos resultam em sintoma social.
Quando uma sociedade no consegue elaborar os efeitos de um trauma e opta por tentar
apagar a memria do evento traumtico, esse simulacro de recalque coletivo tende a
produzir repeties sinistras.
Silncio, esquecimento e repetio
O que acontece quando uma sociedade admite, na prtica, formas atrozes de um gozo
que no pode ser nomeado, reconhecido e barrado pela lei que rege a vida pblica?
Quais os efeitos dos restos desse gozo e do tormen to que a ele corresponde, quando
ambos so condenados a permanecer co mo dejetos do simblico?
Em primeiro lugar, importante observar que as vtimas dos abusos da ditadura
militar, no Brasil, nunca se recusaram a elaborar publicamente seu trauma. Nos ltimos
trinta anos, no faltaram iniciativas de debater o perodo 1964-1979 nas universidades e
em outros espaos pblicos, assim como no faltaram textos de reflexo, denncia e/ou
resgate da memria, de autoria de sobreviventes da luta armada, de parentes de
desaparecidos e das prprias vtimas de abusos sofridos nos pores do regime. No
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cinema, a dcada de 1980 viu surgirem os primeiros filmes de crtica ao pero do
militar, como o corajoso Pra frente, Brasil, (Roberto Farias, 1982), ou a atualizao
cinematogrfica da pea de Guarnieri, Eles no usam black-tie, (Leon Hirszman, 1981),
perodo concludo com o assassinato do operrio Santo Dias em So Paulo. Nos ltimos
vinte anos, tivemos uma produo expressiva de filmes que levaram para um pblico
mais numeroso, do que o dos leitores de livros e frequentadores de debates, histrias de
jovens que resistiram ditadura, de suas (poucas) vitrias e muitas derrotas, com cenas
violentas retratando a tortura e o assassinato de muitos heris brasileiros daquele
perodo.
Ou seja: os opositores da ditadura militar, vitimados ou no pela prtica corrente
da tortura, no deixaram de elaborar publicamente sua experincia, suas derrotas, seu
sofrimento. No deixaram de simbolizar, na medida do possvel, o trauma provocado
pelo encontro com a atroz crueldade de que um homem capaz quando a prpria fora
governante (no caso, tambm ela fora da lei) o autoriza a isso.
Em 1994, um ano antes de o governo Fernando Henrique Cardoso instituir
indenizaes pagas pelo Estado s famlias dos desaparecidos durante o regime militar,
a professora Maria Lgia Quartim de Moraes, da Unicamp, viva de um militante
desaparecido, organizou naquela univer sidade um debate sobre a tortura e os
assassinatos polticos da ditadura. Na mesa redonda sobre testemunhos de mulheres
torturadas, da qual tive a honra de participar, pude observar que o ato de tornar pblicos
o sofri mento e os agravos infligidos ao corpo (privado) de cada uma daquelas
mulheres, poderia pr fim impossibilidade de esquecer o trauma. Da mesma forma, os
(as) companheiros (as) e filhos (as) de desaparecidos (as) polticos, na ausncia de um
corpo diante do qual prestar as homenagens fnebres, s puderam enterrar
simbolicamente seus mortos ao velar em um espao pblico a memria deles e
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compartilhar com uma assembleia solidria a indignao pelo ato brbaro que causou
seu desaparecimento. O filme documentrio 15 filhos (Maria Oliveira e Marta Nehring,
1996), veio se somar a essas iniciativas.
O legado da clnica psicanaltica alcana aqui o sintoma social: assim como o
endereamento que o neurtico faz de suas questes mais ntimas a um estranho o
analista o primeiro passo num processo de cura, o ato de tornar pblicas as
experincias e as lutas que a histria esqueceu e/ou recalcou fundamental na
elaborao dos traumas sociais.
No entanto, apesar do simpsio na Unicamp e de muitos outros eventos isolados
(havia pouca gente na Universidade de So Paulo, em 2004, nos debates a respeito dos
quarenta anos do golpe de 1964), no levamos nossa vontade de reparao at o fim. Foi
espantosa a displicncia, diria mesmo a frivolidade, que caracterizou a maior parte do
ambiente crtico dos anos 1980: como se a ditadura por aqui tivesse terminado no com
um estrondo, mas com um suspiro j que os estrondos foram inaudveis para os
ouvidos dos que nada queriam escutar. Como se pudssemos conviver tranquilamente
com o esquecimento dos desaparecidos. Como se nosso conceito de humanidade
pudesse incluir tranquilamente o corpo torturado do outro, tornado a partir de uma
radical desidentificao nosso dessemelhante absoluto. Aquele com quem no temos
nada a ver.
Mas se vtimas dos torturadores, apesar da resistncia geral, no se recusaram a
elaborar publicamente sua experincia, de que lado est o apagamento da memria que
produz a repetio sintomtica da violncia institucional brasileira?
A resposta imediata: do lado dos remanescentes do prprio regime militar, seja
qual for a posio de poder que ainda ocupam. So estes os que se recusam a enfrentar o
debate pblico com a espantosa conivncia da maioria silenciosa, a mesma que
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escolheu permanecer alheia aos abusos co metidos no pas, sobretudo no perodo ps-
AI5. Muita gente ainda insiste em pensar que a prtica da tortura teria sido (ou ainda )
uma espcie de mal necessrio imposto pelas condies excepcionais de regimes
autocr ticos, e que sob um regime democrtico no precisamos mais nos ocupar
daqueles deslizes do passado.
A respeito do carter supostamente excepcional da tortura, o cientista poltico
Renato Lessa esclarece, em artigo publicado na revista Cincia Hoje:
Quando pensamos no modo concreto e material de operao de um regime autocrtico,
necessrio ultrapassar uma percepo difusa que diz que nele as liberdades pblicas
so suprimidas. certo que o so: esta, mesmo, uma condio necessria para sua
afirmao como forma poltica. No entanto, para que as liberdades sejam suprimidas
deve operar uma exigncia material precisa: necessrio que o regime autocrtico tenha
a capacidade efetiva de causar sofrimentos fsicos aos que a ele se opem. [5]
A tortura no seria, segundo Lessa, uma prtica excepcional tolerada em
condies extremas, mas o prprio fundamento do regime autocrtico. Este, de forma
no declarada, assentase exatamente na relao entre o torturado e o torturador: lugar
de uma crueldade e de um sofrimento que ultrapassam propsitos pragmticos de
extrao de informao (grifo meu). Nesse caso, todo cidado est potencialmente
sujeito tortura, sendo tal dessimetria aterrorizante entre dominadores e dominados a
prpria base dos regimes de exceo. Em outro artigo, publicado no jornal O Estado de
S. Paulo, Lessa complementa o raciocnio anterior ao lembrar:
a vulnerabilidade de imensos contingentes da populao brasileira violncia policial.
Se somarmos a isto a desproteo desses mesmos segmentos diante do domnio de
grupos paramilitares, nos quais a presena de agentes da ordem no infrequente,
temos um cenrio de baixa concretizao de direitos funda mentais. A cultura policial
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no pas [...] no mnimo porosa a hbitos de pilhagem e de crueldade [...] que abrangem
tanto a pequena extorso de infratores como a prtica de chacinas e assassinatos
justificados por autos de resistncia. [...] o tema da tortura que segue vigente. A
presena renitente da tortura e da crueldade fsica como prtica das foras da ordem,
apesar da Constituio que temos, resulta de seu carter anistivel. [6]
Depois de algumas consideraes sobre o carter sofstico de quinta categoria
que estabeleceu a mesma Lei de Anistia para torturadores e militantes de esquerda,
Lessa conclui: a pseudoanistia a torturadores revela uma dificuldade bsica em lidar
com os efeitos da crueldade produzidos pelo sistema de poder, em qualquer tempo[7].
O trauma tambm tem efeitos sobre o torturador
A afirmao que se segue pode parecer hipcrita ou demaggica a alguns ouvidos, mas
insisto em colocla prova diante desse plenrio: a reabertura do debate sobre a tortura
no Brasil, com o eventual julgamento e punio de alguns torturadores comprovados,
no curaria somente a sociedade civil dos efeitos da violncia generalizada no pas.
Curaria tambm as prprias instituies policiais. No pelo simples expurgo dos maus
elementos: dcadas de prticas abusivas impunes fizeram das polcias brasileiras um
verdadeiro educandrio a reproduzir indefinidamente a formao de maus elementos.
Ocorre que a licena para abusar, torturar e matar, acaba por
traumatizar tambm os agentes da barbrie. No se ultrapassam certos limites im postos
ao gozo impunemente. Assim como certas experincias extremas com a droga e com o
lcool traumatizam o psiquismo pelo encontro que promovem com o gozo da pulso de
morte, o convvio normal com a crueldade traumatiza o sujeito que se autorizou a ser
cruel e imagina beneficiar-se disso. O sentimento de realidade que para o homem
sempre uma construo social se desorganiza, assim como o sentimento de identidade
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do sujeito. No fcil efetivar a passagem do sou um homem para sou um assassino
de outros homens ela tem um preo alto. O efeito, para o prprio sujeito, to
aterrorizante que ele se v impelido a repetir seu ato mortfero at assimilar de vez sua
nova hedionda identidade.
No por acaso, somente algumas adeses fanticas a crenas e rituais religiosos
so capazes de redimir alguns assassinos cruis, sejam eles policiais ou bandidos
comuns: s a f em uma instncia onipotente capaz de ressignificar a lei, quando esta
foi desqualificada em sua funo de barrar o gozo e organizar o gozo dos corpos
individuais nos termos permitidos pelo corpo social.
Sejamos sensatos: se a possibilidade de gozar com a dor do outro est aberta
para todo ser humano, por outro lado a tortura s existe porque a sociedade, explcita ou
implicitamente, a admite. Por isso mesmo, porque se inscreve no lao social, no se
pode considerar a tortura desumana. Ela humana: no conhecemos nenhuma espcie
animal capaz de instrumentalizar o corpo de um indivduo da mesma espcie, e alm do
mais gozar com isso, a pretexto de certo amor verdade. Sabemos que combater o
terrorismo com prticas de tortura j adotar o terrorismo; terrorismo de Estado, que
suspende os direitos e liberdades que garantem a relao livre e responsvel pelos
cidados, perante a lei. Que verdade se pode obter por meio de uma prtica que destri
as condies de existncia social da verdade?
Quando no meio de gozo, a dor infligida ao outro deveria nos provocar dor
psquica. Um dos traos que distingue o ser humano de outros animais a capacidade
de identificao com a dor do outro. Por que, ento, parece que o corpo torturado no
diz respeito maioria de ns?
Um corpo torturado um corpo roubado ao seu prprio controle; corpo
dissociado de um sujeito, transformado em objeto nas mos poderosas do outro seja o
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Estado ou o criminoso comum. A tortura refaz o dualismo corpo/mente, ou
corpo/esprito, porque a condio do corpo entregue ao arbtrio e crueldade do
outro separa o corpo e o sujeito. Sob tortura, o corpo fica to assujeitado ao gozo do
outro que como se a alma isso que, no corpo, pensa, simboliza, ultrapassa os
limites da carne pela via das representaes ficasse deriva. A fala que representa o
sujeito deixa de lhe pertencer, uma vez que o torturador pode arrancar de sua vtima a
palavra que ele quer ouvir, e no a que o sujeito teria a dizer. Resta ao sujeito preso ao
corpo que sofre nas mos do outro o silncio, como ltima forma do domnio de si, at o
limite da morte. E resta o grito involuntrio, o urro de dor que o senso comum chama de
animalesco.
Por que animalesco, se um homem que urra? Talvez porque o grito de dor no
represente mais o sujeito/homem, mas apenas o que agora nele carne em sofrimento.
O urro de dor no mais expresso do sujeito assim como a palavra extorquida pelo
torturador tambm no. Mas talvez seja um mero preconceito chamar de animalesca a
expresso extrema desse homemcorpo. Talvez ele evoque o terror a tal ponto que seja
conveniente considerlo animalesco para no corrermos o risco de nos identificar com
ele.
Quando se trata de experincias limite, preciso escutar os poetas. Torquato
Neto, por exemplo: Leve um homem e um boi ao matadouro; aquele que berrar o
homem. Mesmo que seja o boi.
Por fim: hoje ningum desconhece a existncia da tortura no Brasil nem do
passado nem do presente. No podemos assimilar nossa indulgncia para com os
torturadores de ontem e de hoje como se fosse efeito de desconhecimento do fato. Mas
se ns aceitamos com certa tranquilidade a existncia da tortura e a impunidade dos
torturadores, o que que teria ficado recalcado, silenciado, depois da nossa
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pseudoanistia, e que ainda hoje produz sintomas sociais de violncia policial com
frequncia ainda maior no presente do que durante a ditadura? No o fato de ter
havido e haver tortura que ficou recalcado, e sim a convico de que ela intolervel. O
argumento da tortura como mal necessrio parece convincente ainda a grandes parcelas
da populao brasileira.
Ns nos esquecemos que o outro torturado nos diz respeito; que se a tortura
separa corpo e sujeito, cabe a ns assumir o lugar de sujeito em nome daqueles que j
no tm direito a uma palavra que os represente. Como na cano de Milton
Nascimento: Morte, vela, sentinela sou/ do corpo desse meu irmo que j se foi [...].
No nos esquecemos nem por um dia de nossa violncia social, passada e
presente. Convivemos com ela o tempo todo, preocupamonos com ela e a tememos. O
que ficou recalcado na sociedade brasileira, desde a tal pseudoanistia, que somos ns
os agentes sociais a quem cabe exterminar a tortura. Esquecemos de que possvel
viver sem ela. S que esta mudana no se dar sem enfrentamento, sem conflito. A
tortura resiste como sintoma social de nossa displicncia histrica.
O que no podemos esquecer est expresso no poema introdutrio ao
livro Rquiem, de Anna Akhmtova, sobre o perodo dos expurgos e das prises na
Rssia sob a ditadura stalinista:
No, no foi sob um cu estrangeiro
Nem ao abrigo de asas estrangeiras.
Eu estava bem no meio do meu povo
L onde meu povo em desventura estava.[8]
Notas:
1 Maria Rita Kehl, Ressentimento (So Paulo, Casa do Psiclogo, 2004).
2 Jacques Lacan, Funcin y campo de la palabra y del lenguaje en psicoanlisis (1953), em Escritos (trad. Toms Segovia, Madri/Mxico, Siglo Veintiuno, 1994, v. 1),
p. 227310.
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3 Marie Hlne Brousse, Conferncia 1, O analista e o poltico, O inconsciente a poltica (So Paulo, Seminrio Internacional da Escola Brasileira de Psicanlise, 2003),
p. 17.
4 Jacques Lacan, Seminrio 14: A lgica do fantasma. Disponvel em: .
5 Renato Lessa, Sobre a tortura, Cincia Hoje, n. 250, jul. 2008. 6 Idem, Quanto vale a vida dos outros..., O Estado de S. Paulo, Caderno Alis, 7/9/2008.
7 Idem.
8 Lauro Machado Coelho, Anna, a voz da Rssia vida e obra de Anna Akhmtova (So
Paulo, Algol, 2008).