“tavira, patrimónios do mar”

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1 MUSEU MUNICIPAL DE TAVIRA PALÁCIO DA GALERIA

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Catálogo da exposição “Tavira, Patrimónios do Mar”, patente no Museu Municipal de Tavira, entre 25 de Outubro de 2008 e 27 de Setembro de 2009.

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  • 1MUSEU MUNICIPAL DE TAVIRAPALCIO DA GALERIA

    264CMARA MUNICIPAL DE TAVIRA

    Tavira

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  • Cmara Municipal de TaviraMuseu Municipal de TaviraPalcio da Galeria

    2008

  • Museu Municipal de Tavira Palcio da Galeria

    Director/Programao Jorge Queiroz

    Exposio

    Comissariado Cientfico Jorge Queiroz, Rita Manteigas

    Produo e Coordenao Expositiva Lusa Ricardo

    Pesquisa de campo Marta Santos

    Servio Educativo Lusa Ricardo, Patrcia Gonalves

    Museografia Nerve, Atelier de Design

    Multimdia Samuel Roda/CriaActividade

    Maquetas Carlos Loureiro

    Filmes/montagens Lus Gameiro

    Vdeo Miguel Andrade

    Tradues Michelle Nobre Dias

    Fotografias e Digitalizaes Nerve Atelier de Design, Biblioteca Nacional, Sociedade de Geografia, Museu da Cidade-Cmara Municipal de Lisboa, Instituto dos Museus e da Conservao, Fundao Carmona e Costa, Museu-Biblioteca da Casa de Bragana/Palcio Ducal de Vila Viosa, Arquivo da Cmara Municipal de Tavira Lcio Alves (fotografia area)

    Conservao, Restauro e preparao peas Servio de Arqueologia e Restauro- CMT/Departamento de Urbanismo/DPRU: Celso Candeias, Jacquelina Covaneiro, Leonor Esteban, Sandra Cavaco, Susana GonalvesSociedade de Geografia de Lisboa (Projecto de Encanamento para a Barra de Tavira): Slvia Sequeira, Laura Moura Maria Joo Petisca (Peas Namban e Ex-voto 1977)

    Pesquisa Documental/Arquivo Municipal de TaviraIsabel Salvado, scar Caeiro Pinto

    Auxiliares de Museografia Carlos Pires, Jos Gregrio, Jos Fernandes, Jos Neves

    Montagem CMT/Departamento de Ambiente, Transportes e equipamentos, Carlos Encarnao e Nerve, Atelier de Design

    Transportes CMT/Departamento de Ambiente, Transportes e Equipamentos

    Seguros Allianz

  • Cincia na Cidade de Tavira um programa de promoo da cultura cientfica num contexto social alargado e integrado na vida cultural da cidade, conduzido pela

    Cmara Municipal de Tavira. Abrange iniciativas de divulgao do patrimnio histrico e natural, eventos culturais e educativos articulados com actividades de divulgao cientfica, apoiados por parceiros com experincia e especializao nestas reas.

    AgradecimentosBiblioteca Nacional, Campo Arqueolgico de Tavira, Cinemateca Portuguesa, Casa-Museu Dr. Anastcio Gonalves, ERA, Arqueologia/Conservao, Gesto e Patrimnio, Fundao Carmona e Costa, Hotel Vila Gal Albacora, Instituto dos Museus e da Conservao, Instituto de Gesto Financeira da Segurana Social, Museu da Cidade-Cmara Municipal de Lisboa, Museu de Marinha, Museu Martimo Almirante Ramalho Ortigo, Museu Nacional Soares dos Reis, Museu do Traje de S. Brs de Alportel, Museu-Biblioteca da Casa de Bragana/Palcio Ducal de Vila Viosa, Parquia de Santa Maria de Tavira, Parquia de Nossa Senhora da Luz de Tavira, Sociedade de Geografia de Lisboa

    Agradece-se ainda aAdalberto Brito, Alexandra Curvelo, Alexandre Pais, Ana Clara Rocha, Ana Cristina Leite, Ana Paula Faustino, Andr Almeida, Antnio Valera, Armando Jorge das Neves Silva, Arnaldo Casimiro Anica, Bruno Gonalves Neves, Carlos Ladeira, Carlos Nogueira Cardoso, Catarina Lopes Martins, David Sequeira, Dlio Lopes, Eduardo Lomba, Eduardo Taborda, Emanuel Sancho, Fernando Arajo Sequeira, Francisco Vieira, Gisela Rosenthal, Helena Grego, Ins Cordeiro, Joaquina Franco, Jorge Couto, Jorge Botelho, Jos Alberto Ribeiro, Jos Antnio Bastos, Jos Antnio Rodrigues Pereira, Lus Aires-Barros, Lus Fraga da Silva, Maria de Jesus Monge, Maria Joo Jacinto, Maria Joo Vasconcelos, Maria Joaquina Esteves Feijo, Maria Maia, Marina Pinto, Maria Teodora Marques, Nuno Rocha Prata, Ofir Chagas, Paula Carneiro, Paulo Barreiro, Pedro Baro, Pedro Velez, Rui Costa Salta, Rui Terremoto, Sara Moreira, Tnia Olim, Teresa Pinelo, Vasco Peres Galvo, Vtor Carmona e Costa

    Catlogo

    Coordenao Jorge Queiroz, Rita Manteigas

    Textos Alberto Corvo, Alexandra Curvelo, Alexandre Pais, Daniel Santana, Isabel Macieira, Jorge Queiroz, Jos Antnio Rodrigues Pereira, Manuel Maia, Marco Lopes, Maria Maia, Rita Manteigas

    CatlogoAlberto Corvo [AC], Alexandra Curvelo [A Cur.], Alexandre Pais [A. P], Daniel Santana [D S], Emanuel Andrade Sancho [EAS], Isabel Macieira [IM], Jacquelina Covaneiro [JC], Jorge Queiroz [JQ], Jos Carlos Vilhena Mesquita [JCVM], Lus Gameiro [LG], Marco Lopes [ML], Maria Antnia Pinto de Matos [MAPM], Maria Maia [MM], Miguel Soromenho [MS], scar Caeiro Pinto [OCP], Rita Manteigas [RM], Sandra Cavaco [SC]

    Fotografias e Digitalizaes Nerve Atelier de Design, Biblioteca Nacional, Sociedade de Geografia, Museu da Cidade-Cmara Municipal de Lisboa, Instituto dos Museus e da Conservao, Fundao Carmona e Costa, Museu-Biblioteca da Casa de Bragana/Palcio Ducal de Vila Viosa, Arquivo da Cmara Municipal de Tavira

    Design GrficoNerve, Atelier de Design

    ImpressoTextype-Artes Grficas , Lda

    Depsito Legal

    ISBN978-972-8705-28-2

    Tiragem

    283 692/08

    1000 exemplares

    Cmara Municipal de Tavira, 2008-10-09

  • 9ndice

    Presidente da Cmara Municipal de Tavira

    Apresentao

    Textos

    TerritrioTavira litoral, territrio em mudana Alberto Corvo

    Urbanismo e arquitecturas ribeirinhasA Ribeira de Tavira: dzimascordas, mastros, remosespeciariascarnes e versasIsabel Macieira e Rita Manteigas

    A longa vida da Armao do Medo das Cascas e o Portugus Suave do Arraial Ferreira NetoMarco Lopes

    Economias do quotidiano A pesca, o sal e as conservasTavira e o mar, na AntiguidadeMaria Garcia Pereira Maia

    Tavira e o mar em poca IslmicaManuel Maia

    A pesca e a Indstria do sal em Tavira poca medieval e moderna: Receita para o sucesso e prosperidade de uma terra algarviaMarco Lopes

    Tavira nas rotas europeias e asiticas dos sculos XV-XVIIITavira na Expanso PortuguesaJos Antnio Rodrigues Pereira

    Ecos do Norte e do Levante. Tavira na intercepo de rotas comerciais e artsticas nos sculos XV-XVIIIAlexandra Curvelo e Alexandre Pais

    Religiosidades e Devoes MartimasAo Glorioso S. Pedro Gonsalves, nosso Patrono, e PadroeiroCulto e devoes da igreja dos mareantes de TaviraDaniel Santana

    Ex-votos. O acervo de painis votivos de TaviraIsabel Macieira

    As novas funes do marTavira na transio do milnio: as novas funes do marJorge Queiroz

    Catlogo

    Crditos

    10

    12

    17

    35

    47

    59

    68

    75

    85

    94

    107

    116

    125

    152

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  • 10

    Tavira possui uma ancestral relao com o mar que marcou toda a sua histria.

    H sculos atrs foi, no perodo da expanso portu-guesa, uma das mais importantes cidades do Pas, com uma actividade porturia intensa. O porto de Tavira de-sempenhava funes militares, mercantis e piscatrias, com trfego de navios vindos de muitos lugares do Me-diterrneo, do Norte da Europa e da frica, das zonas mais distantes da sia ou da Amrica do Sul.

    A partir do sculo XVIII e at meados do sculo XX a pesca do atum assumiu um papel relevante na econo-mia e no emprego da cidade e da regio. Nos areais do litoral se fixaram os arraiais, onde viviam pescadores e as suas famlias, que no mar lanavam armaes donde provinha sustento das gentes e pescado para as fbricas.

    Hoje, numa nova fase da histria de Tavira, marcada

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    pelo turismo e por profundas alteraes nos modos de vida urbanos, as antigas actividades esto ainda fortemen-te presentes na memria social e patrimonial da cidade.

    A exposio Tavira, patrimnios do mar, uma das iniciativas que preparam o futuro Museu da Cidade, de-senvolve uma sntese cronolgica sobre a histria urbana na sua relao com a envolvente ribeirinha e ocenica. No Palcio da Galeria e durante os prximos meses o pblico poder viajar pela histria, ver maquetas da ci-dade turdetana e fencia, mapas e documentos, objectos artsticos, fragmentos de cermica, fotografias, filmes, ex-votos martimos,

    Esta exposio tem o contributo valioso de muitas Instituies e personalidades a quem a Cmara Munici-pal da Tavira e a cidade agradecem as colaboraes, em-prstimos de peas e documentos: Biblioteca Nacional,

    Campo Arqueolgico de Tavira, Casa-Museu Dr. Anastcio Gonalves, Cinemateca Portuguesa, ERA-Arqueologia/Conservao, Gesto do Patrimnio, Fundao Carmo-na e Costa, Instituto de Gesto Financeira da Segurana Social, Instituto dos Museus e da Conservao, Museu da Cidade - Cmara Municipal de Lisboa, Museu de Mari-nha, Museu do Traje de S. Brs de Alportel, Museu Ma-rtimo Almirante Ramalho Ortigo, Museu Nacional Soares dos Reis, Museu-Biblioteca da Casa de Bragana/ Palcio Ducal de Vila Viosa, Parquia de Santa Maria de Tavira, Parquia de Nossa Senhora da Luz e Sociedade de Geografia de Lisboa.

    Tambm aqui se agradece aos autores de investigao e dos textos do catlogo e s equipas do Museu Munici-pal de Tavira e exteriores que estruturaram e montaram Tavira, patrimnios do mar.

    Jos Macrio Correia Presidente da Cmara Municipal de Tavira

  • 12

    ApresentaoOs museus no so apenas as obras expostas, por

    mais significativas que sejam, mas modelos relacionais de intermediao visual, entre conhecimentos e pblicos, relao que o desenvolvimento educativo vai tornando cada vez mais participativa e questionante. exposio das coleces dos museus esto tambm ligadas impor-tantes e obrigatrias funes de investigao e educao, inventrio e conservao, educao e divulgao, a de-mocratizao do acesso dos cidados cultura.

    Tavira , como todo o Algarve, lugar de cruzamento de tradies culturais vrias: greco-latina, islmica, judai-co- crist europeia. Apesar da tentativa homogeneizadora de uma certa histria nacionalista que tentou sobretudo a partir do sculo XIX uma verso etnocentrica, essas razes milenares subsistem em muitos lugares e nas manifesta-es que nos sugerem a riqueza da heterogeneidade da nossa mestiagem e da sobreposio de temporalidades no espao comum.

    Num processo aberto pela deciso de criao de um Museu Municipal de Tavira e sendo a cidade elemento central deste programa que se vai construindo, revelou-

    se a necessidade de aprofundar conhecimentos, testar discursos, reconhecer melhor os objectos, sobretudo es-timular e acreditar no contributo de uma nova gerao de investigadores e tcnicos especializados, imprescindveis para a continuidade de um trabalho onde a museologia se encontra e enriquece na relao com outras disciplinas.

    A ausncia de uma abordagem sistemtica da matri-cial e histrica relao de Tavira com os patrimnios ma-rtimos, constitua partida uma evidncia.

    Muitas interrogaes e lacunas bibliogrficas torna-ram prioridade a organizao desta exposio-teste, que relaciona factos e presenas civilizacionais com os materiais expostos, mas que tambm coloca mui-tas questes de natureza cientfica e social e esperamos despertar novos e necessrios aprofundamentos. Uma exposio com objectivos exploratrios, sem pretenses conclusivas, que abre caminhos para outras percepes, enfoques e desenvolvimentos.

    As alteraes da linha de costa e as hidrodinmicas estuarianas tero provocado condies para assentamen-tos humanos mas sero tambm causa de (des)conhe-

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    cidas mobilidades internas. Percebem-se instabilidades e hiatos nas cronologias mais antigas sendo de reforar e confirmar o que se conhece e aprofundar melhor como os homens e mulheres que nos antecederam organiza-ram a cidade e como dela se utilizaram.

    A pea multimdia sobre o territrio uma tentativa de visualizao dessas mutaes, uma cronologia poss-vel das dinmicas fsicas e humanas que diversos traba-lhos referem, cooperao j habitual entre as geografias, a informtica e o multimdia.

    As maquetas da Tavira Turdetana, povo ibrico pr-romano que Estrabo considerava o mais culto dos ibe-ros e da Tavira Fencia representam, com fundamento nos dados da arqueologia, a primeira concretizao em formato tridimensional de explicitar as mais antigas fases da construo da cidade.

    Alguns elementos arquitectnicos caractersticos de Tavira so hoje genericamente explicados pela impor-tncia do antigo porto ou pela importao de modelos orientais resultantes das viagens dos portugueses, do mercantilismo crescente e da fixao na cidade de gente

    que fez vida e enriqueceu noutras paragens.Fragmentos de cermica decorativa e objectos utili-

    trios recolhidos em recentes escavaes arqueolgicas fornecem informaes e fundamentam a ideia de intensa actividade mercantil e porturia que se ter prolongado durante sculos at ao assoreamento da barra. O estudo comparativo e articulado com museus nacionais e estran-geiros poder fazer luz sobre vrias questes relacionadas com a utilizao do antigo porto de Tavira, como das liga-es terrestres da urbe com outros locais peninsulares.

    As pescas e o sal foram desde sempre importantes produes para a economia tavirense do litoral. Marca-ram profundamente a cidade os dois sculos de capturas intensivas do atum, a existncia de armaes e ar-raiais nos areais das ilhas e consequente estabelecimen-to j no incio do sculo XX de indstrias conserveiras. Causa alguma perplexidade o sbito declnio das pescas, o desaparecimento das espcies j em pleno sculo XX, atribudas a razes da biologia e desequilbrios provoca-dos nos ecossistemas ocenicos.

    As religiosidades so importantes marcadores

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    culturais, que permitem perceber atravs de registos ma-teriais e imateriais, continuidades entre o antes e o ps-ocupaes dos territrios.

    Tambm nestas, a heterogeneidade e a relao entre vencidos e vencedores resultaram na criao de sincre-tismos, novas manifestaes religiosas com integrao das anteriores, sobreposies de templos e formas rituais com origem no paganismo que, absorvidas pelo cristia-nismo, at ns chegaram.

    So Pedro de Telmo (sc. XII-XIII), sacerdote domi-nicano que pregou nas Astrias e Galiza, a quem se atri-buram diversos milagres martimos, surge em Tavira e noutras localidades litorais da Pennsula Ibrica como protector dos mareantes e pescadores inspirando con-frarias e sistemas de entreajuda .

    As coleces de ex-votos que, em algumas ermidas erigidas junto ao mar, sobreviveram ao abandono so

    preciosos textos informativos sobre essa relao de temor e promessa nas horas de grande perigo.

    Se o mar to antigo como o mundo, haver certa-mente formas votivas e manifestaes religiosas a decifrar e compreender melhor e que estaro na origem de com-portamentos sociais e cultos que connosco convivem.

    As grandes peregrinaes da Idade Mdia e da Idade Moderna promoveram deslocaes de centenas de milha-res de pessoas, em rotas de devoo como o caminho de Santiago (sc.IX) e foram percursoras do actual turismo cultural e religioso. No sculo XIX a viagem comeou a ser sinnimo de erudio e cultura, em pleno perodo ro-mntico o viajante era admirado e procurado pelas suas descries. O interesse antropolgico e etnogrfico nasceu desta curiosidade e da imaginao que lhe est associada.

    A extraordinria evoluo das vias de comunicao e dos meios de transporte, a alterao nas mentalidades

  • 15

    e a melhoria das condies de vida e de trabalho, o di-reito a frias, criaram no sculo passado um fenmeno novo: o turismo.

    O sculo XX transformou por completo a relao da cidade de Tavira com o mar.

    As actividades econmicas tradicionais que ocupa-vam parte significativa da populao local foram relega-das para segundo plano pela poderosa e multifacetada indstria do turismo.

    A populao do concelho duplica no Vero, milhares de pessoas em frias procuram as praias da Ria Formosa. O territrio e a paisagem vo-se alterando.

    Esta histria contempornea necessita tambm do Mu-seu da Cidade, para que seja registada, estudada e explicada, sob risco de perdas irreversveis no patrimnio colectivo.

    A concepo e execuo desta exposio, a sua ex-plorao educativa e pedaggica nos prximos meses,

    deve-se ao trabalho competente e dedicado de uma equi-pa pluridisciplinar que enriqueceu contedos com ml-tiplos contributos, na produo de textos escritos, filmes, vdeos, maquetas, peas multimdia e elementos grfi-cos: Rita Manteigas que coordenou parte significativa dos contedos, Lusa Ricardo, Alberto Corvo, Isabel Macieira, Maria Maia, Manuel Maia, Miguel Andrade, Lus Gamei-ro, Alexandre Pais, Alexandra Curvelo, Carlos Loureiro, Daniel Santana, Marco Lopes, Marta Santos, Patrcia Gon-alves, Rodrigues Pereira, Sandra Cavaco, Samuel Roda, Rui Gonalves, Vilhena de Mesquita.

    Tavira, patrimnios do mar uma homenagem s gentes do mar, s muitas geraes que nos antecederam e ajudaram a construir a cidade que conhecemos, que nos deram a oportunidade de a viver e visitar rodeados por ambientes e uma esttica to especiais.

    Jorge QueirozDirector do Museu Municipal de Tavira

  • 16

    Territrio

  • 17

    Tavira litoral, territrio em mudana

    1

    Alberto Corvo(Gegrafo)

    Nota prviaProponho-me aqui expor uma abordagem geogrfico-

    -histrica de alguns aspectos genticos e evolutivos da relao povoamento - territrio, entendido este como o espao fsico ocupado por um centro urbano - a cidade de Tavira - e a sua faixa litoral de influncia (administra-tivamente definida por concelho).

    Na relao com o territrio, como foram os homens condicionados pelo meio e como o condicionaram? Que marcas remotas podemos reconhecer nas paisagens, dos povos que as moldaram?

    No pretendo responder taxativamente a estas ques-tes. Pretendo antes dar um contributo reflexo sobre as mesmas, abordando, em diversos contextos histricos, aspectos pertinentes da relao dos povos com o territ-rio, numa perspectiva geogrfica, deixando aos historia-dores e arquelogos anlises mais sistematizadas e obvia-mente mais conhecedoras, da matria histrica.

  • 18

    Acerca das paisagens humanizadasAs paisagens que hoje observamos resultam da uma

    gnese geolgica e posteriores processos geomorfo-lgicos, climticos e biofsicos a que se sobrepuseram as sucessivas transformaes antrpicas, mostrando ao observador actual o resultado da adio de camadas de histria sobre um espao fsico: o territrio. Essa ac-o transformadora, dos povoamentos humanos sobre o meio, pode ser de tal forma avassaladora que, nas paisa-gens humanizadas, independentemente da sua antigui-dade, aquilo que observemos resulte frequentemente, mais da aco transformadora de um ser, que constitui um breve acidente temporal, comparativamente com a multimilenar escala de tempo geolgico, do que pro-priamente da gnese geomorfolgica do stio.

    O grau de transformao que cada civilizao impri-me ao espao que reocupa ou conquista anterior, ofe-rece ao nosso olhar, de forma mais ou menos bvia, as marcas de um passado multicultural ou, pelo contrrio, uma uniformidade montona que apenas reflecte a ocu-pao que marcou uma interveno mais intensa e que perdurou no tempo. Em casos mais dramticos reflecte a ocupao actual, porque de todas as anteriores foram aniquiladas as marcas histricas.

    O lugarTavira, como outros aglomerados urbanos exprime,

    pela posio do seu ncleo histrico, a escolha de um local de assentamento que combinava, para povos mui-to distintos mas com necessidades comuns, um ptimo stio defensivo com uma boa localizao porturia e comercial, a jusante do limite da rea de influncia das mars, de um rio navegvel. Sendo a posio recuada relativamente ao mar, comum a outras cidades de estu-rio, como Lisboa ou Setbal, que, beneficiando dessa posio abrigada, no expunham directamente os seus portos aos perigos da frente costeira, no caso de Tavi-ra esse abrigo era mais especfico, proporcionado pela existncia, em posio avanada e paralela costa, das ilhas-barreira, primeiro obstculo a ser vencido por quem, por via martima se aproximasse, com intuitos

    no amistosos. O prprio nome da cidade poder ter ori-gem na sua particularidade geogrfica (do rabe, Tabra = escondida)1. Permitia ainda a possibilidade de instalao de um sistema defensivo avanado, como veio a suceder com particular evidncia, nos sculos XVI e XVII. Aquela barreira natural proporciona ainda excelente proteco contra tempestades ou outos fenmenos destruidores, de origem ocenica, cuja mxima expresso se verifi-cou aquando dos violentos tsunamis de 1722 e 1755 de cujas memrias nos do conta os relatos da poca2, referindo destruies imensas de que foram vtimas as povoaes entre Quarteira e a Costa Vicentina e como foram relativamente poupadas a to graves danos as do Sotavento, particularmente as que esto protegidas pelas ilhas defronte.

    Quanto estrutura urbana, as necessidades defensivas obrigavam ao posicionamento estratgicamente alcan-dorado e amuralhado do centro poltico e militar e, em seu redor, ocupando as vertentes, certamente com uma certa hierarquia ditada pela maior ou menor riqueza e proximidade do poder, a populao cvil. No entanto, a necessidade de criao de estruturas relacionadas com a vocao mercantil e martima da urbe, empurravam necessariamente a expanso urbana para o sop e para as margens do rio, onde se desenvolviam as actividades porturias, comerciais e de explorao ou preparao de produtos de origem marinha. So exemplos elucidativos desta ocupao de espaos ribeirinhos, as salgas de peixe e armazenamento de nforas do perodo turdetano3, no porto, onde se localiza agora a praa da Repblica, ou, 14 sculos depois, durante a ocupao islmica, os ar-mazns e tercenas navais na margem direita, a jusante do permetro amuralhado e, imediatamente a montante da ponte, o Terreiro da Vila, espao de trocas comerciais, sob a sombra protectora da cerca amuralhada.

    E se, at certo limiar de crescimento, se estabelece intramuros, com excepo de actividades muito espec-ficas, essa hierarquia urbana diferenciada, a certa altu-ra, o dinamismo da vida de relao no pode mais, ou no necessita, ser acompanhado pela expanso de cer-cas protectoras e, em breve, a necessidade de expanso

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    urbana habitacional acaba por ditar a conquista de novos espaos: os arrabaldes, vulgarizados subrbios actuais. Na transio para o domnio cristo e sculos seguintes, este processo torna-se particularmente evidente, surgin-do inicialmente, alm das inevitveis reas de expanso extramuros, bairros especficos para os seguidores das outras crenas a quem a intolerncia no permite de-masiada proximidade, a mouraria e a judiaria (bairro de Malforo). sabido que tais separaes, ocultam frequen-temente, sob razes religiosas ou outras, a verdadeira motivao: a ocupao dos espaos mais apetecveis, a conquista do espao vital4, que se pode materializar, tanto escala de grandes naes como de pequenas cidades ou regies. (fig. 1a e 1b)

    Entretanto, com a completa transformao de mode-los estratgicos e a evoluo dos paradigmas de cresci-mento e desenvolvimento, o primitivo centro urbano vai perdendo a sua importncia funcional, mas nunca o seu simbolismo. Na cidade contempornea ganha estatuto de centro histrico, com motivaes identitrias, culturais e certamente tursticas. No imaginrio do comum cidado, ainda que pouco saiba de histria, ali se localiza o bero da cidade, o tal stio gentico.

    A interessante expresso stio gentico, utilizada por Orlando Ribeiro5, no sei se original do prprio, posteriormente adoptada por diversos autores e hoje de uso comum entre investigadores e estudiosos que se debruam sobre a histria de Tavira, por vezes com a variante colina gentica, faz referncia ao stio que de facto marca a gnese do povoamento de um lugar. A colina, actualmente conhecida por Alto de Santa Ma-ria, teve, luz dos conhecimentos actuais, na Idade do

    1 KHAWLI, A. (2003), Tavira Islmica. Novos dados sobre a sua Histria,

    in: Tavira, Territrio e Poder, C.M. Tavira e Mus. Nac. de Arqueologia, Lisboa,

    pp. 131-146.2 COSTA, A. et al. (2005), 1755, Terramoto no Algarve, Centro Cincia Viva

    do Algarve, Faro.3 MAIA, M.G.P. (2004), Tavira Turdetana. Porto do Crculo do Estreito nos finais do

    sc. V a.C, in: Associao Campo Arqueolgico de Tavira, www.arkeotavi-

    ra.com/Estudos/PescaTavira.pdf 4 Conceito proposto pelo gegrafo alemo Friedrich Ratzel (1844-

    1904), definido como o espao necessrio para o domnio dos recur-

    sos e expanso territorial de um povo. Foi um dos conceitos base da

    poltica expansionista Hitleriana.5 RIBEIRO, O. (1992), Geografia e Civilizao. Temas Portugueses, 3

    ed., Livros Horizonte, Lisboa.

  • 20

    Fig. 2- Ponte romana sobre a ribeira do Almargem

    Bronze Final6 o seu mais antigo povoamento humano. Posteriormente, ali se fixaram fencios7 e turdetanos, a que se seguiu um aparente abandono de 14 sculos, at ocupao islmica, no princpio do sculo XI8, mas uma vez repovoada, consolidou-se, expandiu-se a partir dali, foi conquistada ao crescente pela cruz9 e perdurou at actualidade, enraizando-se entretanto na memria colec-tiva como o bero dentro do prprio centro histrico, ou dito por outras palavras: o stio gentico.

    No entanto, este processo de assimilao colectiva desse lugar simblico, no assenta no conhecimento. A presena do castelo, ou melhor, do conjunto castelo - igreja - torre do relgio, visveis de qualquer local da cidade, desempenham essa funo de marco identitrio, semelhana da ponte romana (ou do postal ilustrado ponte - Alto de Santa Maria) que afinal ter uma origem provvel medieval islmica, enquanto a verdadeira ponte romana a modesta e ignorada ponte do Almargem, a trs quilmetros de Tavira. Trata-se de um processo co-mum a muitas sociedades, mas mais marcado nas que atravessaram longos perodos de autocracia, em que o simbolismo do lugar de pertena, suplanta e dispensa, o saber. (fig.2)

    Os pioneiros?Europa, entre 120 000 e 35 000 anos BP10: a Norte

    comeavam a fazer-se sentir, sensivelmente a meio deste perodo, os rigores climticos, do Wrm, ltimo perodo glacirio; a Sul, mais precisamente no extremo Sudoeste da Pennsula Ibrica, o ambiente mantinha-se tempera-do a quente e hmido, propcio ao desenvolvimento de florestas e proliferao de grandes mamferos, entre os quais o elefante antigo (Elephas antiquus) e o leo das ca-vernas (Pantera Leo spelaea) que encontravam neste extremo do continente o seu derradeiro refgio climtico antes da extino11.

    Tambm outra espcie de mamfero, diferente dos outros, pela marcha bpede, pela especializao funcio-nal dos membros superiores e sobretudo por uma ca-pacidade cerebral nica entre todos os seres vivos, era empurrado pelos rigores climticos que se faziam sentir sobre sucessivas geraes medida que as grandes mas-sas geladas progrediam imparveis para Sul. Com o Norte da Europa j completamente subjugado ao interminvel Inverno, acantonava-se neste ltimo reduto peninsular, onde veio a desaparecer, h cerca de 35 000 a 30 000 anos, sem chegar a assistir s grandes transformaes que

  • 21

    vieram a ocorrer nos milnios seguintes, nos derradei-ros territrios por onde deambulou. Este ser, hoje conhe-cido por Homem de Neandertal (Homo neanderthalensis)12, deixou tambm para a posteridade vrios enigmas que tm ocupado numerosos investigadores, por enquanto sem respostas conclusivas. Porqu e em que condies se ter extinguido? Ter-se- encontrado com o Homem Moderno (Homo sapiens sapiens)? Se sim, ter-se-o cruzado geneticamente?

    Nesta faixa litoral, sobre a qual aqui nos debruamos, registaram-se alguns achados arqueolgicos, os mais an-tigos por enquanto conhecidos na regio, que testemu-nham da presena desses caadores-recolectores nma-das, nesse perodo, porque identificados com as culturas Mustierense13 e Mustieride14, vulgarmente associadas ao Paleoltico Mdio e ao Neandertal (apesar da comple-xidade dos respectivos quadros cronolgicos no permi-tir uma concluso to simplista15). O espao geogrfico que milnios mais tarde veio a conhecer o importante assentamento romano de Balsa, revelou essa ancestral presena, nomeadamente nos stios de Pinheiro16, Torre dAires17, Antas18, Arroio19 e, cerca de 2Km a Norte, no s-tio do Alto20. Registaram-se tambm ocorrncias do mes-mo perodo, prximo da foz da ribeira do Almargem, na sua margem esquerda, no stio da Canada21.

    Esta localizao geogrfica tinha uma particularidade que nenhum outro povoamento posterior veio a conhe-cer: a exposio directa ao mar Atlntico, sem qualquer ambiente lagunar intermdio. Estava ainda longe de ocorrer a formao das ilhas-barreira.

    O Wrm e a formao das ilhas-barreiraDurante a poca geolgica conhecida por Plistc-

    nico Superior, que abrange o perodo cronolgico entre 128000 e 10000 BP, coincidente com a fase mais recente do Paleoltico Mdio e todo o Paleoltico Superior, ocor-reu o ltimo perodo glacirio (no existem de momento evidncias se atravessamos, um perodo inter-glacirio, ou seja, se caminhamos ou no para novo perodo glaci-rio). As alteraes climticas acentuadas ocorridas nesse perodo tiveram uma forte influncia sobre todos os seres

    vivos e provocaram modificaes acentuadas nas paisa-gens. No entanto, no parece ter sido causa directa da extino do Homem de Neandertal, pois apesar de se ter

    6 MAIA, M.G.P. (2003), O Bronze Final Pr-Fencio no Concelho de

    Tavira, in: Tavira, Territrio e Poder, C.M. Tavira e Mus. Nac. de Arqueo-

    logia, Lisboa, pp. 39-47.7 MAIA, M.G.P. (2003), Tavira Fencia. O territrio para Ocidente do Guadiana,

    nos incios do I milnio a.C, in: Associao Campo Arqueolgico de Tavira,

    www.arkeotavira.com/Estudos/Tavira.pdf8 MAIA, M. (2003), Muralhas Islmicas de Tavira, in: Tavira, Territrio e

    Poder, C.M. Tavira e Mus. Nac. de Arqueologia, Lisboa, pp. 155-162.9 SERRO, J.V. (2001), Tavira um Percurso na Histria, in: Tavira Histria

    Viva, C. M. Tavira. 10 A sigla BP (Before Present) tem como referncia de presente o ano

    de 1950 dC (ano zero do radiocarbono). De utilizao comum para o

    tempo geolgico e para referncia a datas da pr-histria antiga (Pale-

    oltico e Mesoltico).11 CARDOSO, J.L. (1993) Contribuio para o conhecimento dos grandes mamferos

    do Plistocnico Superior de Portugal, Cmara Municipal de Oeiras, Oeiras; PAIS,

    J. (1989), Evoluo do coberto vegetal em Portugal no Neognico e no Quaternrio,

    Comun. Serv. Geol. Portugal, Lisboa. 12 Nome derivado das descobertas numa gruta junto ao rio Neander

    (Dussesdorf) em 1856, apesar de assinalado anteriormente em Engis,

    Blgica. cf. VALENTE M.J., in: http://w3.ualg.pt/~mvalente/pre-histo-

    ria.html13 Nome derivado das descobertas de G. Mortillet (1869) em Le

    Moustier, Dordonha, Frana. cf. VALENTE M.J., in: http://w3.ualg.

    pt/~mvalente/pre-historia.html 14 Difere do Mustierense por no apresentar preparao do talo no

    fabrico de instrumentos sobre lascas. cf. RAPOSO, L. (1993), Paleolti-

    co, in: Pr-Histria de Portugal, Universidade Aberta, Lisboa, pp. 71-73.15 Id., pp. 67-77. 16 VIANA, A.; ZBYSZEWSKI, G. (1949) apud MARQUES, T. et a.l. (1995)

    Carta Arqueolgica de Portugal Faro, Olho, Tavira, Vila Real de Sto Antnio, Castro

    Marim, Alcoutim, IPPAR, Lisboa, pp. 153-155.17 CARDOSO, J.L. (1987), Arqueologia, in: MANUPPELLA, G. (1987),

    Carta Geolgica de Portugal. Notcia explicativa da folha 53-B Tavira, SGP, Lisboa,

    pp. 31-32. 18 VIANA, A.; ZBYSZEWSKI, G. (1949) apud CARDOSO, J.L. (1987), Ar-

    queologia, in: MANUPPELLA, G., et al. (1987), Carta Geolgica de Portugal.

    Notcia explicativa da folha 53-B Tavira, SGP, Lisboa, pp. 31-32.19 VIANA, A. (1947), apud EMDEME (1992) Plano Director Municipal. Cma-

    ra Municipal de Tavira, Lisboa.20 CARDOSO, J.L., ob. cit., n.17, p.32.21 VIANA, A.; ZBYSZEWSKI, G. (1949) apud MARQUES, T. et a.l., ob.

    cit.,n.16, pp.149-151.

  • 22

    Fig. 3b- Mximo glacirio, com grande regresso marinha e formao de cordes arenosos, 18000 anos BP

    VALE DA ASSECA VALE DO

    ALMARGEM

    CACELA

    FUZETA

    TAVIRA

    CORDO ARENOSO NVEL DO MAR: 120 metros abaixo do actual

    CORDO ARENOSO

    0 4Km

    N

    Fig. 3e- Ilhas-barreira em posies sensivelmente prximas das actuais e vales fluviais muito inundados. Localizao de stios do Calcoltico, 2700 1800 aC

    Nora

    TAVIRA

    CONCEIO

    LUZ

    Antas

    0 1Km

    N

    Arrancada

    RIO SQUA

    RIBEIRA DO

    ALMARGEM

    ILHAS-

    BARREI

    RA

    Fig. 3c- Fase transgressiva, com formao de ilhas-barreira, 16000 BP

    VALE DA ASSECA VALE DO

    ALMARGEM

    CACELA

    FUZETA

    TAVIRA

    ILHA-BARREIRA

    NVEL DO MAR: 90 metros abaixo do actual

    0 4Km

    N

    ILHA-BARREIRA

    estrada/ruaponte

    horta urbana/cerca conventual

    edifcio novo

    stio/achado

    unidade hoteleiracaminho de ferro

    forte/atalaiaigreja/ermida

    moinho de mar

    estrutura de armao de pesca villa romana/necrpole

    localizao imprecisa/runa

    sapal e rea inundvel

    povoamento/rea urbana

    plancie litoral glaciria

    10-20m20-50m

    mar/rio/esturio/rea inundvelcurso de gua/linha de gua

    50-100m100-150m150-200m

    0-10m

    +200m

    ilha-barreira

    salinas/marinhas

    Legenda geral

    Fig. 3a- Fase pr-glaciria. Com localizao de stios, ou acha-dos, do Paleoltico Mdio

    Pinheiro

    Antas

    Arroio

    Alto

    Torre dAires

    Canada

    TAVIRA

    CONCEIO

    LUZ

    VALE DA ASSECA

    VALE DO

    ALMARGEM

    0 1Km

    N

    Fig. 3d- Grande recuo da linha de costa e migrao das ilhas- -barreira em direco ao continente, 11000 BP

    VALE DA ASSECA VALE DO

    ALMARGEM

    CACELA

    FUZETA

    TAVIRA

    ILHA-BARREIRA NVEL DO

    MAR: 40 m

    etros abai

    xo do a

    ctual

    0 4Km

    N

    ILHA-BAR

    REIRA

  • 23

    Fig. 1b- Tavila crist, sculo XIII-XIV

    RIO GILO

    Igreja deSanta Maria

    Igreja deSantiago

    Horta daBela Fria

    Horta dEl Rei

    Mouraria

    Ribeira

    Conventode S. Francisco

    Malforo

    Igreja deS. Lzaroe Leprosaria

    Cerca deS. Francisco

    Tavila

    N

    0 500 m

    Fig. 8- Sistema defensivo de Tavira nos sculos XVI e XVII e migrao da barra de Tavira para Leste

    0 1Km

    N

    Barra de Tavira - sc. XVII

    Barra de Tavira - sc. XVI

    Atalaia da Abbora

    AtalaiaPequena

    Forte de Santo Antnio 1573 (aprox.)

    Atalaia dosTrs Irmos

    AtalaiaGrande

    Torre deNunoPereira

    Torro doLastro

    Forte de S. Joo 1656

    Ilha das Lebres

    ILHA D

    E TAV

    IRA

    Ermida deSta. Luzia

    Igreja daConceio

    TaviraRio Gilo

    Fig. 10- Migraes das barras e evoluo do sistema de ilhas- -barreira entre Fuzeta e Cacela, no sculo XX

    1927

    1951

    1976

    2003

    0 4Km

    N

    Fig. 6- Manchas urbanas de Tavira e sedes de freguesia mais prximas, sistema lagunar da Ria Formosa e ilhas de Tavira e Cabanas, incio do sculo XXI

    CONCEIO

    CABANAS

    TAVIRA

    SANTA LUZIA

    LUZ

    ILHA d

    e TAV

    IRA

    ILHA d

    e CAB

    ANAS

    0 1Km

    N

    Fig. 1a- Tabira islmica, sculo XIII

    Jilla

    MesquitaMaior

    MesquitaMenor

    Tabira

    Horta dEl Rei

    RIO GILO Horta da Bela Fria

    Terreiroda Vila

    Tercenas da ribeira

    N

    0 500 m

  • 24

    feito sentir em fora no Norte da Europa, aproximada-mente a partir de 80 000 BP, no Sul da Pennsula Ibrica, o clima manteve-se temperado (semelhante ao actual) at ao desaparecimento ainda inexplicado da espcie.

    Com efeito, o perodo pleniglaciar, caracterizado por frio e humidade crescentes, apenas veio a ocorrer nesta regio entre 32000 e 22000 BP e o mximo glaci-rio foi atingido h 18000 anos22. Nessa poca, as calotes glacirias atingiam na Europa os 50 N de latitude. A re-teno de grandes volumes de gua nas calotes glacirias e nos glaciares de montanha provocou uma descida do nvel do mar que em Portugal atingiu entre 120 a 140 metros abaixo do nvel actual. No litoral do actual con-celho de Tavira, ocorreram durante esse perodo extraor-dinrias transformaes: em consequncia da regresso marinha, a linha de costa avanou uma a duas dezenas de quilmetros, situando-se ento prxima do limite da plataforma continental23. Nas plancies litorais, vastssi-mas, dominadas por vegetao herbcea, os rios que co-nhecemos actualmente, eram muito caudalosos, sobretu-do na Primavera, aquando da fuso estival dos gelos24, entalhavam vales profundos, dezenas de metros abaixo dos actuais antes de desaguarem nas frias guas ocenicas que chegavam a atingir menos de 4C, enquanto a tem-peratura do ar era cerca de 7C abaixo da actual e o vento soprava impiedoso.

    No Sotavento algarvio, prximo do bordo da pla-taforma continental, nas terras emersas, formaram-se ento cordes arenosos paralelos costa, que estiveram na origem da formao do sistema de ilhas-barreira da Ria Formosa25.

    Aps o mximo glacirio, ocorre uma inverso cli-mtica e inicia-se um perodo transgressivo caracteriza-do pela fuso das grandes massas geladas e consequente subida global do nvel do mar. escala regional, ocorre a inundao de parte da plancie litoral entre o conti-nente e os cordes arenosos, que ficam assim isolados, constituindo-se em ilhas. A elevao geral do nvel do mar, que ento se iniciou e s viria a terminar entre 5000 e 3000 BP, quando foi atingido o ptimo Climtico e o nvel do mar atingiu um nvel prximo do actual, no

    ocorreu de forma linear e constante. Passou por fases transgressivas mais ou menos intensas e inclusivamente por uma rpida mas importante fase regressiva devida a uma inverso climtica, o Dryas Recente26, h 11000 anos. Terminado este curto episdio, h 10000 anos, termina tambm a glaciao do Wrm e inicia-se o cha-mado Holocnico27, marcado por uma fase transgressiva (a transgresso Flandriana), muito intensa nos dois pri-meiros milnios e mais suave nos seguintes, mas sempre no sentido da elevao do nvel do mar e, consequente-mente, no recuo da linha de costa .

    Respondendo s transgresses e regresses mari-nhas, todo o sistema de ilhas-barreira sofreu migra-es transversais sobre a plataforma continental at relativa estabilizao sensivelmente prxima da posio actual atingida h cerca de 5000 a 3000 anos. (fig. 3a a 3e) Depois do ptimo Climtico, at actualidade, tm-se registado alternncias de tendncias regressi-vas e transgressivas, com consequentes migraes das ilhas-barreira num ou noutro sentido28, mas muito sen-sveis quando comparadas com as grandes regresses e transgresses wurmianas.

    E o Homem Moderno?Enquanto ocorreram as fantsticas transformaes

    climticas e geomorfolgicas do litoral, j outro Homo, o sapiens sapiens, tambm chamado Homem (anatomicamen-te) Moderno, colonizava diversos territrios do continen-te europeu, onde entrou, vindo do Prximo Oriente h cerca de 40000 anos, admitindo-se que se tenha encon-trado, desconhecendo-se em que circunstncias, com o Neandertal antes do desaparecimento deste. A Sul do Tejo, um dos stios arqueolgicos mais significativos, a Gruta do Escoural29, foi ocupada pelas duas espcies de Homo, provavelmente em continuidade; no Algarve, em Vila do Bispo, decorrem desde h dez anos, trabalhos arqueol-gicos no stio Paleoltico de Vale de Boi30 onde se regis-tam ocupaes regulares entre 30000 e 6000 anos BP; na regio de Tavira, esto referenciados dois stios, Pi-nheiro31 e Canada32, identificados com a cultura Lan-guedocense (Mesoltico Inicial), j referidos a propsito

  • 25

    do Paleoltico Mdio. No sendo possvel arriscar-se uma continuidade de povoamento, porque h um grande lapso de tempo entre as culturas Mustierense e Languedocense, no deixa no entanto de ser curiosa a coincidncia geogrfica.

    Se o Homem Moderno deixou vestgios da sua pre-sena na vasta plancie litoral wurmiana deste terri-trio, entretanto submersa, um enigma que fica sem resposta, mas, cruzando conhecimentos atrs exemplifi-cados e acrescentando as possibilidades de um ambiente meridional menos desfavorvel vida, podemos perfei-tamente supor que sim. O clima, mesmo em plena gla-ciao teve vrias fases temperadas (interstadiais) e nas fases mais frias era, apesar de tudo, o menos frio do con-tinente europeu; o coberto vegetal alternou entre fases de domnio de herbceas e arbustivas e fases de domnio de espcies arbreas e formao de florestas; a fauna era abundante, incluindo os grandes mamferos do Plistoc-nico que encontraram no Sul o derradeiro refgio cli-mtico e, sendo os recursos animais aquticos (peixes e moluscos) importantssimos recursos alimentares, faz todo o sentido supor que a distribuio geogrfica dos grupos humanos acompanhasse a evoluo da linha de costa, e dos cursos de gua.

    Convm aqui recordar que os homens (no o Ho-mem) no correm frente das grandes alteraes cli-mticas e geomorfolgicas. Falamos de escalas temporais muito diferentes. parte alguns episdios ou perodos climticos mais sbitos, e processos geomorfolgicos mais dinmicos, em regra, as grandes alteraes, da ordem dos milhares da anos, vo sendo sentidas e as-similadas por longas sucesses de geraes que herdam das precedentes e transmitem s seguintes a capacidade de adaptao.

    Depois do dilvioCom a transgresso marinha ps-glaciria, ocorreu

    a inundao dos vales estuarinos e o desenvolvimento de um sistema lagunar entre o continente emerso e o sistema de ilhas-barreira, criando-se condies naturais propcias ao desenvolvimento de ecossistemas de alta

    produtividade biolgica e correlativamente propcias instalao de grupos humanos neste territrio, o que de facto veio a ocorrer, independentemente de ter aconteci-do ainda em fase transgressiva ou mais tardiamente.

    Os troos terminais dos vales, muito entalhados aquando da grande regresso marinha, inundados pe-las guas invasoras, originavam uma paisagem alagada permanente, que podemos hoje imaginar quando, em cheias excepcionais nos vales da Asseca e Almargem, as guas cobrem as plancies aluviais e banham as bases das vertentes.(fig. 4)

    As influncias litorais, que se fazem sentir at ao li-mite mximo de oscilao das mars, penetravam rapi-damente para montante. No entanto, ocorria ao mesmo tempo para jusante um intenso enchimento aluvial queempurrava em sentido contrrio as influncias da salini-

    22 DIAS, J.M.A. (2004), A histria da evoluo do litoral portugus nos

    ltimos vinte milnios, in: TAVARES, A.A., TAVARES, M.J.F., CARDOSO,

    J.L., eds., Evoluo geohistrica do litoral portugus e fenmenos correlativos: Geologia,

    Histria, Arqueologia e Climatologia, Lisboa, pp. 157-170. 23 As plataformas continentais constituem as margens submersas dos

    continentes. Apresentam declive suave at ao limite, a profundidades

    variveis entre 120 e 360 m, onde sofrem uma quebra abrupta de de-

    clive para as grandes profundidades ocenicas.24 DAVEAU, S. (1980), Espao e tempo: evoluo do ambiente de Portugal ao longo dos

    tempos pr-histricos, Clio, n2, INIC, Lisboa.25 DIAS, J.M.A. (1988), Aspectos Geolgicos do litoral algarvio, Geonovas, vol.

    10, APG, Lisboa.26 DIAS, J.M.A., ob cit., n. 22, p. 164.27 Na escala do tempo geolgico, a poca do Holocnico decorre de

    10 000 BP at actualidade. Na Europa corresponde aos tempos pr-

    histricos do Mesoltico, Neoltico e Calcoltico.28 DIAS, J.M.A. (1993), Estudo de avaliao da situao ambiental e propostas de

    medidas de salvaguarda para a faixa costeira portuguesa (Geologia costeira), Liga para

    a Proteco da Natureza, Lisboa., in: UALG, http://w3.ualg.pt/~jdias/

    JAD/indexeB.html29 Fonte: http://www.ippar.pt/monumentos/sitio_escoural.html30 Resumo do projecto de investigao, A tale of two seas: Upper Paleolithic

    ecology in Vale Boi, southwestern Algarve (Portugal), coord. Nuno Bicho, UALG

    DHAP, in: http://www.fchs.ualg.pt/Departamentos/DHAP/outras_pa-

    ginas/investigacao_e_projectos/31 VIANA, A.; ZBYSZEWSKI, G. (1949) apud CARDOSO, J.L., ob cit., n.

    18, pp. 31-32.32 Id., ibid.,pp.31-32.

  • 26

    Fig. 4- Cheia do rio Squa, com inundao de toda a plancie

    aluvial, em Dezembro de 1992

    dade, estabelecendo-se um certo equilbrio de fluxos. Enquanto os assoreamentos no se tornaram excessivos, as ribeiras que hoje conhecemos, secas at foz nos me-ses secos, apresentavam um regime hdrico similar ao que conhecemos hoje no Squa e Almargem, que, no perodo de estiagem, no so mais que braos de mar estendendo-se at ao limite mximo das mars. Da para montante, o caudal, de gua doce, insignificante ou mesmo nulo, nos anos mais secos.

    Enfim, estabilizada (entre 5000 e 3000 BP) a frontei-ra fsica entre terra e gua, um interveniente vivo, cuja presena antes no provocava mais impacte na natureza que qualquer vulgar animal, vir a ter da em diante uma influncia determinante sobre os espaos naturais em que se vai fixar.

    Vejamos ento onde nos deixaram marcas da sua pre-sena, nesta faixa litoral, os protagonistas pr e proto-his-tricos ps-diluvianos: na Notcia Explicativa da Carta Geolgica de Portugal, O. Veiga Ferreira refere ...alguns objectos neolticos encontrados avulso e provenientes de antigos povoa-dos ou sepulturas destrudas33.; do Calcoltico, referenciado no mesmo documento e pelo mesmo autor, o Tholos da Nora, entretanto desaparecido, cuja localizao en-

    tre Cabanas e Conceio, penso corresponder ao stio da Nora Branca, hoje quase totalmente urbanizado e, ainda, sepulturas j destrudas de Antas, Arrancada e Cascalhos; da Idade do Bronze esto referenciados stios (ou acha-dos) em Luz34, Bernardinheiro35, Quinta dos Passos36, Ca-nada (ou Arrancada)37 e, eis ento o stio gentico, Alto de Santa Maria.

    Os trabalhos arqueolgicos realizados em 1998 e 1999 confirmam que a Colina Gentica de Tavira conheceu uma ocupao extensa, durante os ltimos momentos do Bronze Final (taas carenadas, com decorao geomtrica brunida, na face interna, na externa ou em ambas), ou nos incios da Idade do Ferro. (...) identificmos sectores de fundos de cabana, com lareiras estruturadas, em cuja base de fogo esto includos robustos fragmentos de olaria brunida, juntamente com pedras, algumas de origem eruptiva, fragmentos de nfora e de pratos de engobe vermelho e, pelo menos em trs casos, de ampolas de base plana, que datamos da segunda metade do sc. VIII a.C.38.

    Apertam-se as margensNo processo progressivo de humanizao do territrio,

    cedo se fizeram sentir profundas transformaes da paisa-gem e os primeiros impactes ambientais, nomeadamente

  • 27

    sobre os cursos de gua. Ao transporte sedimentar natu-ral, responsvel por assoreamentos nos troos finais dos vales fluviais, a que atrs aludi, vieram a juntar-se gran-des depsitos sedimentares, resultantes da forte aco erosiva das guas de escorrncia sobre solos desprotegi-dos devido a aces antrpicas, nomeadamente as primi-tivas queimadas para conquista de terras para pastoreio e o arroteamento de terras para agricultura, iniciado no Neoltico, continuado em todas as ocupaes posteriores e culminado nas Campanhas do Trigo, iniciadas no fi-nal do sculo XIX e intensificadas j em pleno sculo XX com o medieval Estado Novo. Nos perodos de maior prosperidade, crescimento urbano e expanso marti-ma, o abate de rvores para construo cvil e naval e para exportao tambm foi muito significativo.39 Outras transformaes antrpicas importantes, vindas do antigo povoamento do territrio e agravadas em pleno sculo XX, so os aterros progressivos das margens e a artificia-lizao das mesmas, sobretudo nas reas urbanas.

    Acerca deste fenmeno, atente-se no seguinte: apesar do nvel do mar actual ser sensivelmente idntico ao do ptimo Climtico ps-glacirio, se compararmos o mapa relativo ao Calcoltico com o mapa actual, fica a sensao que o nvel do mar de ento era superior ao actual, tais so as diferenas de reas inundadas e de largura do leito normal (comparem-se as fig. 3e e 6). Simplesmente, o que a cartografia nos mostra so as diferenas provocadas pelos aterros e assoreamentos, provocados desde os pri-meiros povoamentos, intensificados a partir do domnio islmico e mais intensificados nos sculos XIX-XX.

    Estes fenmenos tm fortes impactes sobre o meio e so responsveis por repercusses negativas, nomeada-mente riscos acrescidos de cheias e consequentes inun-daes peridicas catastrficas, que no so mais que o rio a reclamar o seu espao natural. Alis, as cheias em si nada tm de catastrfico, s o passam a ter a partir do momento em que se rompe o equilbrio entre povoa-mento e espao fsico e as guas encontram as coisas dos homens na sua corrida imparvel para o oceano.

    Obviamente, os ensinamentos histricos no foram devidamente assimilados, seno como se explicaria que,

    com conhecimento cientfico, o fenmeno se tenha am-pliado substancialmente no sculo XX e continue no pre-sente, agravado ainda pelo entupimento deliberado de linhas de gua e excessiva impermeabilizao dos solos urbanos com consequente reduo da infiltrao e au-mento do escoamento superficial.

    Enfim, alheio s coisas dos homens, a montante da cidade, serpenteando preguioso entre colinas calcrias do barrocal de afloramentos rochosos esbranquiados e matagais de fragrncias mediterrneas, corre o Squa, que mais a montante, fora da rea de influncia das ma-rs, recebe as guas da ribeira da Asseca vinda do Barro-cal e da ribeira de Alportel, vigorosamente entalhada nos xistos da Serra. A, no chamado vale da Asseca, tal como no Almargem, as cheias peridicas so encaradas como sempre o foram: uma inevitabilidade natural. peque-na escala regional so o Nilo ou oTejo que fecundam os campos das plancies aluviais com a nata em suspenso nas guas transbordantes.

    33 FERREIRA, O.V. (1987), Arqueologia, Ps-Paleoltico, in: MANU-

    PPELLA, G., et al. (1987), Carta Geolgica de Portugal. Notcia explicativa da folha

    53-B Tavira, SGP, Lisboa, p. 32.34 Id. Ibid., p.32.35 GOMES, M.V.; CALADO, D.; NIETO, J.M. (2004), Machado, de bron-

    ze, de Bernardinheiro (Tavira), Revista Portuguesa de Arqueologia, Lisboa, 7:2,

    pp. 119-124.36 MARQUES, T. et a.l. (1995) Carta Arqueolgica de Portugal Faro, Olho, Tavira,

    Vila Real de Sto Antnio, Castro Marim, Alcoutim, IPPAR, Lisboa, pp. 141-143.37 MAIA, M.G.P. (2003), Ob. cit., n. 6., p. 44.38 MAIA, M. G. P., Ob. cit., n. 7., p. 9.39 RIBEIRO, O., Ob. cit., n. 5, p. 62.: ... a Serra algarvia, ainda hoje cober-

    ta de arvoredos, nas vertentes dos seus barrancos mais entalhados, pro-

    duziu sempre muita madeira e lenha, exportada pelo porto de Silves,

    segundo o testemunho do gegrafo rabe Edrici, no sculo XII, e, por

    exemplo, pelo de Tavira, ainda nos meados do sculo XIX, para Gibral-

    tar.; id., ibid., p. 88.: ... uma proviso rgia impedia que se fizessem

    casas ao longo da ribeira e mandava reservar este espao s construes

    navais. Estas eram to importantes e to considerveis, por causa delas,

    as devastaes nas matas do concelho, que foi proibido (1562) cortar

    mais rvores para esse fim.

  • 28

    Fig.5- Rio Squa, entre o Alto de Santana (sobre a margem esquerda) e o Alto de Santa Maria (na margem oposta)

    Labirintos de guaMenos de um sculo depois do impulso fundador

    de Maom e cerca de trs anos volvidos da entrada de Tarique no al-Andalus, j o povo do crescente ocupava a mesma estratgica colina de onde se haviam retirado os turdetanos cerca de 14 sculos antes. Mas, tambm na margem oposta do rio, na colina onde se ergueu cerca de quatro sculos mais tarde a ermida crist de SantAna, se localizaria uma alcaria de nome Gilla40 de que ter possi-velmente resultado o nome Gilo, assim como, do mes-mo povo poder vir o nome Asseca (as-sica, o caminho ou a via)41. (fig. 5)

    Aps to longo interregno, ser em torno do primi-tivo stio gentico que se ir consolidar um importan-te centro urbano do sudoeste do Gharb. Entretanto, no stio da outrora grandiosa urbe romana que dali dista uma lgua para ocidente, no restaro mais que caticas memrias de pedra, dispersas por um espao ruralizado e o curioso nome de stio das Antas que h-de ser men-cionado, sculos mais tarde, como o stio onde se soltou a fasca que os novos conquistadores aguardavam para atear o incndio42.

    Ultrapassados os preconceitos que uma matriz crist

    de muitos sculos e uma longa e recente ditadura, apo-logista de um nacionalismo beato, enraizaram no senso comum, hoje amplamente reconhecida a valiosssima herana histrica e cultural que os cinco sculos de pre-sena islmica nos deixaram. Neste territrio perdura-ram algumas, vagas, evocaes dessa presena ainda que as mltiplas assimilaes e transformaes nem sempre permitam uma observao muito bvia das mesmas. Na matriz urbana do centro histrico, nas muralhas, sobre-tudo em troos que deixam ver a utilizao da taipa, nas ruas estreitas, irregulares e recatadas, nas ainda resistentes portas de reixa, nas hortas que envolviam a cidade e que motivavam dos viajantes, descries extraordinrias, per-sistem ecos distantes da povoao mourisca. Na periferia rural, apesar da runa quase generalizada, resistem ainda algumas noras e aquedutos, testemunhos fundamentais da herana de uma civilizao que era na poca do seu domnio, a mais inovadora, engenhosa e ousada.

    Tambm na relao com o mar, ficaram desse povo, heranas a que os conquistadores deram continuidade e desenvolvimento, demonstradas no texto do muito cita-do Foral de 1266 de D. Afonso III43. Interessa aqui referir, pela sua importncia em termos de organizao espacial

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    do territrio e de transformao da paisagem do sistema lagunar, os moinhos de mar e as salinas. Uns e outros, no so mais que o simples aproveitamento de dois re-cursos: a fora motriz das guas e o sal contido na gua marinha, que a natureza oferece ao Homem e este s tem que saber aproveitar.

    As construes dos moinhos de mar e das salinas implicaram uma interveno profunda na rea lagunar hoje conhecida por Ria Formosa, especialmente nas de-sembocaduras do rio Gilo e das ribeiras do Almargem e Livramento. Avanando sobre extensas reas de sapal, construiu-se o imenso labirinto de caldeiras, salinas e marinhas, autntico prodgio do engenho humano para moldar a natureza s necessidades civilizacionais.

    Por conhecimento do local, por fotografia area ou pela cartografia, observe-se o amplo espao entre a pe-riferia da cidade, os troos finais do Gilo e Almargem e o canal navegvel da Ria Formosa e, num exerccio de imaginao, retire-se todo o intrincado xadrs das mari-nhas e substitua-se por imensos espaos de sapal alto44, cobertos de densa vegetao halfita45, esteiros e peque-nos canais de mar muito ramificados, numerosas ilhotas de sapal baixo cclicamente cobertas e descobertas pela mar e, na transio para as margens, densa vegetao ar-bustiva e arbrea, menos tolerante salinidade, caniais e juncais. Essa paisagem, ainda existente em diversos locais da Ria Formosa, e que ali s pode ser imaginada, seria a existente antes de to profunda transformao pelo en-genho humano, ocupando uma rea hmida compara-tivamente superior ao somatrio da rea que hoje ocu-pam as manchas urbanas de Tavira, Cabanas, Conceio e Santa Luzia. (fig. 6) Em documentos cartogrficos de Sande Vasconcelos46, na transio entre os sculos XVIII e XIX, conseguimos ainda adivinhar, em parte, aqueles espaos, pois, apesar da existncia de numerosos moi-nhos de mar e importantes reas ocupadas por salinas, prximo da foz do Almargem (as Rgias) e na margem direita do Gilo, no limite da rea urbana (as do Desembar-gador), existiam ainda extensas reas por ele classificadas com sapaes e morraaes. Esta curiosa distino, que no cartografada com rigor (no teria interesse para os

    objectivos pretendidos) poderia hoje ser entendida, em termos fitogeogrficos, como sapal alto (os sapaes) e sapal baixo (os morracaes).

    Os moinhos de mar, apesar da engenhosa comple-xidade de concepo, baseiam-se num princpio extre-mamente simples: a reteno de guas num reservatrio a montante do moinho, a caldeira, durante a enchente e a sua libertao durante a vazante atravs de canais onde se encontram as rodas motrizes (rodetes ou rodzios) que vo transmitir o movimento de rotao necessrio ao funcionamento das ms. No sistema lagunar encon-traram-se as condies ideais instalao dos moinhos. As ilhas-barreira proporcionam proteco contra tem-pestades e ondulaes fortes, a morfologia dos esteiros e canais de mar propcia construo das caldeiras e circulao de gua e, a grande vantagem sobre os moi-nhos de vento ou as azenhas: as mars variam de ampli-tude mas so garantidamente regulares, ao contrrio dos ventos e dos caudais de rios ou ribeiros, caracterizados pela irregularidade e incerteza.

    39 KHAWLI , A., apud MAIA, M.,ob. cit., n.8, p. 155.40 KHAWLI, A. Ob. cit. n. 1, p. 132.42 Coronica de como Dom Payo Correa Mestre de Santiago de Castella

    tomou este Reino do Algarve aos Mouros, transcrita por ANICA, A.C.,

    publicada em apndice a: VASCONCELOS, D.A.B.V. (1999), Notcias

    Histricas de Tavira 1242/1840, 3 ed., C. M. Tavira, pp. 293-304.43 Transcrita por ANICA, A.C., publicado em apndice a: VASCONCELOS,

    D.A.B.V., ob. cit. n. 42, pp. 305-306.; acerca do mesmo assunto ver RI-

    BEIRO, O., ob. cit. n. 5, pp. 81-82.44 A distino entre sapal alto e sapal baixo, reside essencialmente nos

    tempos de submerso a que esto sujeitos, o que condiciona os solos,

    as plantas e o grau de salinidade. O primeiro s fica submerso nas

    preiamares de mars vivas e colonizado por vegetao arbustiva e

    herbcea; o sapal baixo, fica submerso em todas as preiamares e a sua

    vegetao herbcea, dominada pela morraa (Spartina martima ou Sparti-

    na densiflora), da advindo o termo morraal. A morraa, importantssi-

    ma na fixao dos bancos de sapal, constituiu tambm um importante

    recurso para alimentao do gado45 Halfitas: plantas adaptadas ao ambiente salgado e s grandes varia-

    es de salinidade do solo.46 Planta da cidade de Tavira de 1800 (IGP); Borro de Campo de

    huma lgoa dsuburbios orientaes de Tavira s.d., (BN, C-par-42).

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    Fig. 7a- Moinho Velho, ou Moinho do Vau(?), prximo da foz da ribeira do Almargem, 1993

    Fig. 7b- Antigo Moinho da Forca, na margem esquerda do Gilo, no limite do permetro urbano, 1996.

    As caldeiras ocupavam uma rea entre trs e cinco hectares47, delimitadas por muros de terra, o que nos permite de forma muito simplista calcular uma rea mdia total de quarenta hectares para uma dezena de moinhos e respectivas caldeiras que provavelmente exis-tiriam no sculo XVI48, distribudos pelos sapais das duas margens do Gilo e margem direita da ribeira do Almar-gem. Em 1823 h registo de pelo menos 13 moinhos49 e no principio do sculo XX, j em grande declnio, cerca de oito, mais o do Livramento. Superados pela moagem industrial e esvaziados das suas funes, rapidamente foram reconvertidos em armazns de sal, habitao ou, a maioria, simplesmente deixados runa. Bem vis-ta da cidade, no seu limite jusante, prximo da fbrica Balsense, o antigo Moinho da Forca vai-se desfazendo, mas, demoradamente, como que a querer mostrar o excelente centro de interpretao ou ecomuseu pblico que ali se poderia instalar. Mas, como dizia o Professor Agostinho da Silva: a propriedade privada , sobretudo, aquela que priva os outros de terem propriedade. (fig. 7a e 7b)

    O fim da laborao dos moinhos de mar, ultrapas-sados pela moagem industrial, motivou um crescimento da rea de salinas, pois as caldeiras, uma vez inteis para

    os fins originais, foram, quase na generalidade, reconver-tidas em salinas. A extraco de sal prosperou no decorrer do sculo XX, o que se reflectiu em termos espaciais na conquista do mximo espao possvel aos sapais, de tal forma que estes ocupam no espao lagunar entre Santa Luzia, Tavira e Cabanas, practicamente apenas as reas mar-ginais aos limites das salinas, margens dos canais de mar e a transio entre o canal navegvel e as ilhas-barreira.

    Se a importncia de algo se pode medir pelo esfor-o que fazemos para a obter, esta grande transformao operada pelos tavirenses de muitas geraes e de diferen-tes crenas e costumes, mostra a importncia, alimentar e econmica, que para eles tiveram o sal e o po.

    As paisagens de marinhas, apesar de na sua gnese terem implicado destruies de ecossistemas de elevado significado biolgico, tm particularidades interessantes a vrios nveis: do ponto de vista ambiental, articulam-se perfeitamente com a dinmica do sistema lagunar, sem introduzir elementos estranhos ao meio e representando para muitas espcies, nomeadamente de avifauna, espa-os vitais; a nvel paisagstico, so por ns percepcionadas quase como espaos naturais, pois apesar de serem espa-os construdos, no existem ali (nas salinas tradicionais)

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    estruturas fixas pesadas que nos faam entend-las como elementos agressivos ao meio e, a envolvncia do espao lagunar, a penetrao de canais de mar ramificados, as manchas de vegetao e a presena constante das aves aquticas, reforam-nos essa percepo; do ponto de vista cultural, constituem uma importantssima herana da relao dos nossos antepassados com o territrio que povoaram e moldaram; finalmente, ao nvel do ordena-mento do territrio, podem funcionar como zonas de tampo ao avano urbanstico sobre as reas sensveis do sistema lagunar, algo como uma cintura de transio entre espao natural e espao urbanizado.

    Vicissitudes de um sistema natural dinmicoO sistema de ilhas-barreira, que confere costa do

    Sotavento algarvio uma originalidade geogrfica inte-ressante e da qual os povoadores da regio tm tirado, ao longo da histria, inmeros proveitos, so costitu-dos actualmente por um conjunto de cinco ilhas e duas pennsulas, a saber: nos extremos ocidental e oriental do sistema, situam-se respectivamente, as pennsulas de Anco e Cacela; entre estas, de ocidente para oriente, as ilhas de Barreta, Culatra, Armona, Tavira e Cabanas. Referi actualmente porque nem sempre assim foi, devido grande dinmica que caracteriza este sistema, traduzida nas diversas modificaes histricas que tm ocorrido e que ho-de continuar a ocorrer.

    Sendo um sistema de uma grande dinmica geo-morfolgica, tambm caracterizado por um equilbrio frgil e delicado, onde as interferncias antrpicas facil-mente provocam desiquilbrios, geralmente com conse-quncias que se fazem sentir a curto ou mdio prazo, o que tambm demonstrativo do dinamismo do sistema, porquanto sabido que algumas intervenes do Ho-mem sobre meios menos dinmicos tm consequncias nefastas mas a longo prazo e frequentemente no ob-servveis pela gerao causadora da interferncia. Neste caso a causa-efeito pode ser verificada pelo causador.

    Essencialmente, verificam-se dois tipos de migraes neste sistema de ilhas-barreira: migrao transversal, a que j fiz referncia no captulo acerca da gnese do sis-

    tema, actualmente em direco ao continente, respon-dendo a uma elevao sensvel do nvel do mar que se verifica h pelo menos um sculo50 (fase transgressiva) e migrao longilitoral (ao longo da linha de costa) da maior parte das barras. Esta, exponho-a, sucintamente, nas palavras de DIAS, J.M.; FERREIRA, .; MOURA, D.51:

    Tm naturalmente tendncia para migrar de poente para nascente at atingirem uma posio limite, na qual comeam a assorear, abrindo-se ento, no decurso de um temporal maior, nova barra a ocidente, iniciando-se assim novo ciclo.

    Nas ilhas de Tavira e Cabanas, a ocorrncia deste ciclo dinmico em dois momentos histricos distintos, mere-ce especial relevncia pelas repercusses que teve sobre a vida local, ao nvel da defesa martima, das actividades econmicas e da segurana das populaes.

    Cerca do ano de 1570, apesar de j se constatar a decadncia iminente daquela que foi, no incio desse s-culo, a principal cidade do Algarve, ordenou D. Sebastio que se construisse, para defesa das naus grossas que entrassem dentro dela52, frente barra de Tavira, um forte, porque a cobia de corsrios e piratas espreitava na costa. E assim se fez: na Ilha das Lebres, uma ilhota insalubre junto foz do Gilo, distncia de um tiro de canho da dita barra, foi construdo o Forte de Santo Antnio, cujas obras o prprio D. Sebastio veio a visitar aquando da sua passa-gem por Tavira, em 1573. Poucas dcadas depois, tam-bm as foras da natureza se encarregavam de mostrar o que tinha aquele soberano de visionrio...

    Em 1617/1618, no seu levantamento para a Des-cripo do Reino do Algarve (1620) j Alexandre Mas-sai informava da inutilidade do forte, pois a barra j nose situava ali, mas mais a Nascente. Menos de um sculo

    47 SANTOS, L.F.R. (1992), Os Moinhos de Mar da Ria Formosa, PNRF, Faro.48 Id., ibid. pp. 62-66.49 ANICA, A.C. (1993), Tavira e o seu Termo. Memorando Histrico, Cmara Mu-

    nicipal de Tavira, pp. 246-249.50 DIAS, J.M., FERREIRA, ., MOURA, D. (2004), O sistema de ilhas-

    barreira da Ria Formosa, in: II Reunio cientfica rede CYTED-XVII. 3 SIPRES

    Simpsio interdisciplinar sobre processos estuarinos. Livro Guia da Excurso, Faro.51 Id., ibid., p. 2.52 RIBEIRO, O., ob. cit., n.5, p. 89.

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    volvido, em 1656, sob as ordens de D. Pedro II, novo forte se conclui, para defesa da mesma barra, trs quil-metros a Nascente do Forte de Santo Antnio, prximo do stio onde menos de um sculo depois h-de nascer o arraial de Cabanas da Armao, apoio terrestre da arma-o de pesca do atum Medo das Cascas53 e stio gentico da povoao de Cabanas. (fig. 8) O novo forte, baptizado de S. Joo, foi de facto de maior utilidade na defesa da barra que o anterior, no entanto, a migrao da barra de Tavira, no se ficaria por a. Na Carta Corogrfica do Reino do Algarve, publicada por Silva Lopes em 1841 mas baseada em levantamentos cartogrficos militares da dcada de 20, j a designao barra de Tavira surge no extremo oriental da ilha de Tavira, frente a Cacela, onde tambm se tinha construdo um forte no sculo XVI, enquan-to a barra frente ao forte de S. Joo, muito assoreada e inutilizada para a navegao surge com a designao de barra perdida. Com o fecho total desta, a Ilha de Tavira constituia-se como um corpo continuo entre Fuzeta e Cacela e completava-se um ciclo migratrio. O processo imparvel, antes de terminar um ciclo, j os seguintes esto a acontecer, com o transporte das mais insignifi-cantes partculas. Simplesmente, o fenmeno s se torna importante quando ganha dimenso capaz de nos afectar. Nessa medida, pode dizer-se que o ciclo seguinte se ini-ciou no sculo XX, induzido por aco antrpica.

    Em 1926-27, aps quase um sculo de diligncias in-consequentes do poder local, foi finalmente aberta uma barra artificial, no mesmo local onde existiu a primitiva barra que o forte de Santo Antnio, ou do Rato, era su-posto ter defendido. Tavira tinha finalmente facilitado o acesso ao mar por um canal navegvel em frente da foz do Gilo e a histria terminava? No! Iniciava-se uma nova histria. Sem o saber (?), os decisores e construto-res da obra provocavam ali um efeito borboleta, um novo ciclo natural de construo/destruio seria acele-rado a partir daquela obra e, nas dcadas seguintes, a his-tria natural da evoluo das ilhas-barreira iria cruzar-se com a histria das armaes da pesca do atum que nesta poca laboravam em pleno, lanando nos mares ao largo das ilhas, as complexas teias submarinas que penetravam

    no Atlntico mais de cinco quilmetros, enquanto sobre a frgil jangada de areia exposta aos humores do gigan-te azul, os seus arraiais prosperavam, na ilusria solidez da pedra e cal, onde antes eram rudimentares cabanas. De Nascente para Poente, assim se nomeavam: Abbora, Medo das Cascas, Barril e Livramento.

    Trs anos depois da abertura da barra, j se tinha fe-chado a passagem para o mar junto a Cacela, formando-se a Pennsula de Cacela, cujo extremo Poente era separa-do da Ilha de Tavira precisamente pela nova barra. No ano seguinte (1931) comeam a fazer sentir-se os primeiros efeitos nefastos da abertura do canal: os sedimentos trans-portados pela deriva litoral de Oeste, retidos no obstculo que constitui o molhe da nova barra, comeavam a faltar nas praias a Este da mesma, que entravam assim em pro-cesso de fragilizao, o que comeou a fazer-se sentir de forma preocupante no arraial da armao de Medo das Cascas, localizado imediatamente a Nascente da barra. Ali foram colocadas, pesadas estruturas de proteco, mas, em 1941, um violento ciclone arrasou completamente o arraial. Hoje, as sobreviventes estruturas de defesa, ra-ros vestgios de paredes de alvenaria e o gargalo de um poo de pedra que descobre na baixa-mar, constituem um autntico memorial audcia humana mas tambm pequenez perante a fria dos elementos. (fig. 9)

    O mesmo ciclone provocou ali mesmo, a Nascente do arraial destrudo, a abertura de uma nova barra, (chama-da do Cochicho) que se alargou bastante, comeando de imediato a sua progresso natural para Leste, enquan-to a nova barra de Tavira ficou completamente assoreada. Sensatamente, o novo arraial da Armao Medo das cas-cas, baptizado de Arraial Ferreira Neto foi construdo, em 1945, na antiga e mais resguardada Ilha das Lebres, ago-ra terra firme, a cerca de 500 metros do velho Forte do Rato. Como que a confirmar tal sensatez, assistiu-se, oito anos depois, destruio total do Arraial do Livramento, localizado no extremo ocidental da Ilha de Tavira, vti-ma da progresso natural da barra da Fuzeta no sentido geral das migraes cclicas (entre 1951 e 1976 a exten-so da ilha foi reduzida em 2,5 quilmetros). A mesma sorte teve o Arraial da Armao da Abbora54, tambm

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    Fig.9- Poo do arraial da armao de pesca do atum Medo das Cascas, destrudo pelo mar em 1941 (a altura da seco do poo a descoberto superior a 2 metros), 1993

    localizado sobre a ilha, a Sueste do Forte de S. Joo, atin-gido em 1961-62 pela progresso da barra do Cochicho, que entretanto deixou completamente exposta fria do mar, a povoao de Cabanas, seriamente ameaada pelo temporal de 1961. Nesse mesmo ano foi reaberta artifi-cialmente a barra de Tavira. (fig. 10)

    Em duas dcadas estava consumada a destruio da maioria das estruturas terrestres de apoio s almadravas, que as companhias ousaram assentar em to frgil fm-bria de terra. Apenas o Arraial do Barril, por estar situado num local de maior robustez da ilha e longe dos extre-mos da mesma, resistiu at extino das armaes e foi posteriormente reconvertido a utilizao turstica, no final da dcada de 60, mantida ainda hoje. A barra natural progrediu at ao Lacm (Barra de Cabanas ou Barra do Lacm), continuando no entanto com a mesma tendn-cia migratria; a Ilha de Tavira continua a robustecer-se junto barra devido acumulao dos sedimentos trans-portados e, a agora chamada Ilha de Cabanas, reconsti-tuiu-se mas apresenta uma enorme fragilidade (conti-

    nua a faltar-lhe a alimentao sedimentar), podendo a qualquer momento, numa situao de mar tempestuoso coincidente com preia-mar de mars vivas, sofrer galga-mentos ocenicos e rupturas.

    Lanando um olhar para l desta ilha, para a frente ur-bana junto ria, concluo: como a dinmica natural das ilhas-barreira, a escrita tambm pode ser cclica, afinal re-gresso ao incio do texto, reflexo acerca das paisagens humanizadas. Observo a malha urbana continua: Cabanas - complexos tursticos - urbanizaes novas - Conceio, enquadrada por floresta... de gruas metlicas. Procuro distinguir ali marcas da histria, originalidade do lugar, enquadramento paisagstico. No consigo, talvez o sculo XX no tenha sido suficientemente esclarecedor.

    53 ANICA, A.C., ob. cit., n.49, pp. 52-57.54 O apoio terrestre s armaes do Livramento e Abbora, passou a

    fazer-se em Tavira, junto fbrica de conservas da Companhia Balsense,

    proprietria das duas armaes. in: COSTA, F. (2000), A Pesca do Atum nas

    Armaes da Costa Algarvia, Editorial Bizncio, Lisboa, p. 77.

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    Urbanismo e arquitecturas ribeirinhas

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    A Ribeira de Tavira: dzimas cordas, mastros, remos especiarias carnes e versas

    Isabel Macieira e Rita Manteigas(Historiadoras de Arte)

    Ainda rabe, a cidade de Tavira j se expandira para alm das muralhas, descendo em direco ao rio, ao lon-go do qual se vo enformando novos quarteires, que al-bergariam construes ligadas s actividades econmicas e reas de habitao.

    Com efeito, existiriam j estruturas porturias im-portantes, visto que neste perodo o comrcio martimo, bem como uma srie de outras actividades ligadas ao mar: a pesca, as conservas e a extraco de sal, serem j um factor de peso na economia da cidade. Diz-nos Ab-dallah Khawli que, desde o sculo X, a posio estratgica da cidade e seu termo possibilitou que esta adquirisse uma importncia como centro produtor e exportador de produtos diversificados e que o seu porto, () foi o elemento dinmico e central do desenvolvimento econ-mico e social da cidade (),1 com os seus () arre-baldes de pescadores e comerciantes, certamente implan-tados a juzante da ponte, junto aos areais onde abicavam as pesadas barcas de mercadorias e os rpidos veleiros de

    Fig. 1- Parte da vista de Tavira publicada no jornal O Panorama onde se pode observar a zona da Ribeira, esquerda da ponte

    1 Abdallah Khawli, Tavira Islmica, Novos dados sobre a sua Histria,

    in Tavira, Territrio e Poder, catlogo de exposio, Lisboa, Ed. Museu

    Nacional de Arqueologia e Cmara Municipal de Tavira, p. 143.

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    corso2 (fig. 1 e 2). Este movimento de extravaso da mu-ralha ter comeado ainda durante o perodo almorvida quando, por factores polticos, se d um fenmeno de migrao de opositores ao novo regime almada para a cidade de Tavira3.

    Com a Reconquista Crist as actividades e riquezas que a cidade detinha passaram, de imediato, para a coroa real, integrando aquilo a que se ir chamar o Reguengo de Tavira, ou seja, o conjunto de todos os bens que D. Afonso III toma para si e seus sucessores. De entre os bens enumerados, contam-se uma srie de estruturas de apoio actividade martima como armazns, fangas e aougues entre outros, que se situavam na rea ribeiri-nha, entre a que vir a ser a Praa da Ribeira e a zona das teracenas reais. 4

    A descida e alargamento da cidade para as zonas ex-tra-muralha ter sido, j em pleno domnio cristo, im-pulsionada por acontecimentos de grande importncia no plano nacional, com os quais esta esteve ligada de perto. Assim, logo em 1415, a Conquista de Ceuta e as estratgias da Expanso para a costa do Norte de Africa, trazem uma nova relevncia a Tavira, dada a sua posio tctica face nova poltica expansionista. Este factor ir marcar a histria da cidade, que assumir, durante mais de um sculo, preponderncia no panorama nacional, obtendo por vezes prerrogativas igualveis s de Lisboa, capital do Imprio.5

    neste contexto que D. Manuel I ir, em 16 de Mar-o de 1520, elevar Tavira a cidade, atravs de carta rgia em que enaltece e engrandece a urbe, seus habitantes e enumera os seus feitos na Expanso, de modo muito elo-gioso, respondendo assim s expectativas dos seus mo-

    radores que lho vinham requerendo desde h anos. Esta eleio trar certamente cidade um novo impulso de desenvolvimento urbano que se ter manifestado sobre-tudo na zona da Rua Nova Grande; a, cerca de 1522, ser construdo um novo edifcio para onde se muda a cmara; de acordo com uma imagem ainda existente, podemos observar neste a tipologia usual das Casas de Cmara e Cadeia que se construram durante o sculo XVI por todo o espao portugus.6

    Na dcada de quarenta do mesmo sculo e nas ime-diaes deste novo eixo, a Misericrdia mandar erguer a sua igreja, que contrata com o mestre pedreiro Andr Pi-larte, dando origem ao arranjo urbano da chamada Porta de D. Manuel (que consideramos deveria j existir ten-do sido nesta altura enobrecida) e ao eixo virio da Rua Nova Pequena, de ligao Corredoura e Rua Direita do Corpo Santo, encabeada pela igreja do mesmo nome.7

    As denominadas Ribeiras de todas cidades do reino, das quais Tavira a mais meridional, comearam por ser espaos, sempre na margem de um rio ou beira-mar, onde acontecia tudo o que se preteria na zona nobre. Eram arrabaldes, fora da cerca, logo desprotegidos, onde ocorriam aterros muitas vezes provocados por despejos de lixo do interior e habitados, nas proximidades, por gente humilde ligada s actividades do mar. A Ribeira era tambm um local dessacralizado onde no existia uma igreja ou capela.8

    interessante observar tanto na cartografia como na documentao sobre Tavira, a apropriao desta realidade (a Ribeira) que se vai complexificando e consolidando durante os sculos XV e XVI. Assim, de um conceito gene-ralista de ribeira enquanto espao ainda margem, onde

    Fig. 2- Vista contempornea correspondente zona enquadrada na figura 1

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    se doam pardieiros em 1287,9 passamos afirmao de um espao identificado na cidade, a () praa da ribeira ()10 onde, em 1454, j se formalizavam testamentos e, finalmente, expanso habitacional da zona, agora privi-legiada, confirmada pela estadia, em 1573, de D. Sebastio nas Casas da famlia Corte Real no bairro da Ribeira.11

    A relao intra/extra muros torna-se inversa ainda no primeiro quartel do sculo XVII conforme a Descripo do Reino do Algarve feita por Alexandre Massay, entre 1617 e 1618, na qual este refere que dentro dos muros de Tavira no moram mais do que 100 vizinhos e que fora dos ditos muros existem 900.12

    So j do reinado de D. Joo I, provavelmente do princpio do sculo XV, as notcias que temos sobre os equipamentos que este monarca mandou construir na Ribeira, para substituio e melhoramento de outros an-teriores a existentes;13 estes so descritos na Sentena da Rellao das Boticas da Praa Assougues e Famgas. Serem do Concelho,14 outorgada por D. Manuel I no ano de 1504, na sequncia de um longo processo de acerto de contas entre o Con-celho e o Contador do Rei.

    Neste extenso documento so descritas as obras man-dadas fazer pelo seu antecessor, delas fazendo parte () huns assougues que erao na Praa da Rybeira que partiao com as Teree-nas e com a Rua pubrica que saya da Praa e hia contra a Povoao da dita Rybeira, e partia da otra parte com (a) agoa da Rybeira que vinha do Mar e per comseguinte o dito Rey mandara fazer humas famgas que era o Pao mui honrado em que se vendia o pao e partiam com a dita Rybeira e com a Pontte,().15 Para alm dos equipamentos 2 Cludio Torres e Santiago Macias, O Legado Islmico em Portugal, Crculo de

    Leitores, Lisboa, 19983 Abdallah Khawli, ob. cit., p. 142.

    4 Cf. Arnaldo Casimiro Anica, Tavira e o seu Termo, 1993, vol. I, Ed. CMT,

    p. 240.5 Paula Maria de Carvalho Pinto da Costa, Tavira nos sculos XII a XV

    a ocupao crist in Tavira, Territrio e Poder, catlogo de exposio, Lisboa,

    Ed. Museu Nacional de Arqueologia e C. M. de Tavira, p. 189.6 Este edifcio foi demolido cerca dos anos vinte do sculo passado, para

    dar lugar ao actual edifcio dos Correios. Dele existe ainda um registo

    fotogrfico, que se encontra publicada no livro de Damio de Brito Vas-

    concelos Notcias Histricas de Tavira, 1242/1840, ed. CMT, 1989, p. 312.7 Actualmente Igreja de S. Pedro Gonalves Telmo ou de Nossa Senhora

    das Ondas.8 Segundo Carlos Caetano, A Ribeira de Lisboa, na poca da Expanso Portuguesa

    (Sculos XV a XVIII), Pandora, 2004, pgs. 44-479 Como se pode ver, na doao por parte de D. Dinis a Joo Domingues,

    de um pardieiro, na Ribeira, que foi do Alcade do mar de Tavira, in J. Martins da

    Silva Marques, Descobrimentos Portugueses, vol. III, 1971, p. 15.10 Conforme Damio Vasconcelos, ob.cit., 1989, p. 12811 Conforme o cronista Joo Gasco: Domingo 1 de Fevereiro Ouuiu El Rey

    Missa na Cidade de Tauira em huma ermida da aduocao de N. Sra. Do Loureto, que

    est nas prprias casas em que El Rey pouzou in Alberto Iria, Da Importncia Geo-

    Poltica do Algarve, na Defesa Martima de Portugal, nos sculos XV a XVIII, Academia

    Portuguesa de Histria, Lisboa, 1976, pg.114; sabe-se que esta capela

    pertencia ao Palcio da Famlia Corte Real, demolido em finais do s-

    culo XIX para dar lugar ao Jardim Pblico que ladeia o Rio Gilo (ver

    ainda Arnaldo Casimiro Anica, O Hospital do Esprito Santo e a Santa Casa da

    Misericrdia da Cidade de Tavira, Tavira, 1983, pg.85).12 Conforme Alexandre de Massay, Descripo do Reino do Algarve, 1621, Mu-

    seu da Cidade de Lisboa, Tavoada da Primeira Parte, folhas n7 a 10.13 Sabe-se que em 1338, aquando de um cerco perpetrado pelo rei cas-

    telhano tero sido queimadas as Tercenas ento existentes, que seriam

    ainda, provavelmente, as mesmas instalaes deixadas pelos rabes. Cf.

    Arnaldo Casimiro Anica, ob.cit., 1993, p. 74.14 Sentena da Rellao das Boticas da Praa Assougues e Famgas. Serem do Concelho,

    Livro 1, Tombo da Cidade de Tavira, Arquivo Municipal, fl. 84. Agrade-

    cemos a Arnaldo Casimiro Anica a ajuda prestada na transcrio deste

    documento.15 Idem, ibidem, fl.84

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    descritos, Terecenas, Aougues e Famgas, d-nos o mesmo do-cumento, logo a seguir, a informao da existncia da Alfndega, embora no especifique, infelizmente, a sua localizao: (...) no nosso Livro do Tombo que andava na dita Al-famdega ().16

    Com efeito, tal como a Ribeira de Lisboa, modelo para as restantes quer no Reino quer no Imprio Ultramarino, verifica-se em Tavira a associao dos vrios equipamen-tos porturios ao espao do mercado quotidiano. Carlos Caetano na sua obra A Ribeira de Lisboa, na poca da Expanso Portuguesa, sculos XV a XVIII, refere que (...) o aparecimen-to da Ribeira quase um barmetro do grau de desenvol-vimento das vilas e cidades ()17, concluindo que uma das caractersticas comuns destes espaos , com efeito, a sua multifuncionalidade: praia, porto, estaleiro naval, armazm, mercado.18

    Retomando a anlise do documento acima citado, o mesmo descreve-nos tambm a existncia do espao da Corredora ligado Praa por uma rua pblica, como era alis usual designar nesta poca os eixos virios,19 ilus-trando uma area urbana que se estava a estruturar; d-nos ainda, para alm disso, indicaes sobre as formas arqui-tectnicas dos Aougues e transformaes sofridas nestes: () avia setenta annos e mais que pellos Reis passados fora feita mere dos Assougues da dita villa (que) assim compartiao com o mar, vindo de lomgo das Tereenas atte a Rua que hia da Corredoira e com a Praa (),20 especificando-se, a seguir, () que demtro do dito Alpendre dos ditos Assougues avia huns Arcos muito pequenos em que se cortava a Carne para mantimento desta villa antre as molheres que vendiao pao e fruita ()21 sendo estes () to compridos como as ditas Tereenas per igual parte atte chegarem a agoa do Ryo e quamdo os ditos Assougues foram dados lhe foram dados feitos e apostados com marcos de ladrilho em que estavao Talhos de Carne ficando todavia Alpemdre em que vemdiao como agora vemdem pao fruta e ortallias ()22. Mais frente, ainda neste mesmo documento especificado que, () quando o uso dos ditos Assougues fora dado ao dito Concelho tinham hy feitas os Reis passados duas Boticas convem a saber a logea sobradada que fora aforada a Pero Gonalves Malhana a qual socedera Fi-lipha Gonalves sua filha e a trazia Rodrigo de Mouras, e a segunda era otra loja sobradada que soya ser aforada a Marcos Judeu espicieiro e despois a ouvera Moeallgardim e despois a trazia Joo Coresma ().23

    A mincia descritiva deste documento confirma-nos que, logo na primeira metade de Quatrocentos, se fazem grandes melhoramentos na Praa da Ribeira; esta come-a ento a adquirir protagonismo urbano face ao centro intra-muros. Nela se centram as actividades comerciais (boticas sobradadas), martimas (terecenas) e se faz o mercado dirio ao ar livre com zonas que, embora na mesma rea, se tendem a demarcar - para os vegetais, carnes (aougues) e po (fangas), sendo que se verifica a tendncia de construir melhores instalaes para a venda de po/trigo (em gro ou farinha) e, como iremos ver, para o corte das carnes. O adossamento de alpendres a edifcios era recorrente como se pode observar no azu-lejo presente no Museu da Cidade de Lisboa, que ilus-tra a Praa da Ribeira desta cidade, localizada em frente actual Casa dos Bicos, e onde se pode observar uma correnteza de alpendres de madeira sob os quais se ven-diam produtos passados que exigiam a proteco que os produtos do dia, como a hortalia, a fruta ou o peixe fresco, dispensavam.24

    A Sentena da Relao... foi, como referimos, produzida cerca de um sculo depois das edificaes e melhora-mentos levados a cabo por D. Joo I, que logo cede o seu uso ao Concelho. Relata-nos que, volvidos cerca de trinta anos, ou seja por volta da dcada de trinta do sculo XV, () os Assougues com a dita carne estarem de mistura eram tantas as moscas com o pao e a fruita que a gente se anojava disso e ainda era pouca honra pera a villa, e que ento emgendarao e acordarao todos os do dito Concelho e Povo fazerem no Cabo do dito Alpemdre dos ditos Assougues huma muito honrrada Caza apartada e serrada sobre sy onde demtro nella tinhao feitos sinco Talhos onde muito honradamente e com grande limpeza se cortava a dita carne () e que por nobrecimento da Terra serrarao os ditos Arcos e os derao a algumas pessoas com alguma conheensa para o dito Concelho e asim as ditas pessoas fizeram dy Bo-ticas em as quais vemdiao de sorte muintos panos e mercadorias outras do que todo pagavao a ns nosso direito per tal modo que omde a ns do dito Alpendre, e Arcos dassougue soyamos daver em cada hum anno dos nossos direitos sincoenta mil reis agora aviamos em cada hum ano cem mil reis e mais que por a merce que tnhamos feita ao dito Concelho do dito Alpendre e Assougues a ns pertencia somente aver nosso direito de todallas as couzas que se hy vendessen ().25

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    interessante salientar-se a preocupao que ressal-ta neste documento de se tornar a Vila mais honrada e enobrecida, facto que se insere numa poltica de reorde-namento e melhoramento do territrio que, comeada durante o sculo XIV, atingir o seu auge com as refor-mas manuelinas da cidade de Lisboa efectuadas entre os finais de Quatrocentos e o princpio da centria seguinte, de onde ser, a partir da, exportada para todo o territ-rio portugus;26 estes modelos aproximam-se em tudo ao que se foi desenvolvendo em Tavira, o que demonstra o quanto desde muito cedo esta cidade se ligou directa-mente ao que de mais importante e moderno se fazia no reino.

    Neste contexto, j nos referimos s fangas da cidade como um edifcio autnomo e bem construdo ao p da ponte (tal como ir acontecer com o Terreiro do Trigo em Lisboa que na poca manuelina se renova, com nova localizao, junto ao Tejo) assim como aos novos Aou-gues, com um novo edifcio feito de raiz. A poltica de melhorias pblicas prolongar-se-ia ainda sob o reinado de D. Joo III, como se pode observar pelo edifcio que o Infante D. Lus manda construir em Beja -uns belssimos aougues que iro dar origem, posteriormente, Igreja da Misericrdia.

    Retirada ainda da mesma Sentena da Relao, est a in-formao de que sensivelmente na mesma altura ter ru-do o edifcio do Pao do Concelho, tendo este mudado as suas instalaes para os novos aougues acabados anos antes: () e que semdo feitos asim os ditos Assougues poderia aver simcoenta annos que o Pao do Concelho onde se fazia audiencia cayra e fora todo derrubado pera se fazer de novo e neste tempo o dito Concelho fizera hum de partimento no cabo do Alpemdre dos ditos Assougues contra o Rio com huma pequena de (sic) parede e grades de paoo ();27 na continuao do mesmo documento especifica-se ainda que () o dito Concelho costumava bem vinte annos fazer audiencia no dito de partimento, atte que poderia aver dezouto annos que viera Brs Affono a dita villa com alsada e fizera acabar o dito Pao do Concelho e pimtar e mandara levar os assemtos e cadeiras ao dito Pao e () que tanto a audiencia se mudara ao dito Pao do Concelho logo os oufficiais mudarao os Talhos da carne que estavam nos Assougues ao lomgo da parede das Taracenas e fizerao quatro Talhos de carne no dito departimento

    omde se fazia audiencia e os ditos Arcos ficarao vagos e semdo proprios nossos o dito Concelho os dera de foro a certas pessoas ().28

    Assim, depois de terem ficado definitivamente livres os () assougues velhos ()29 ter-se- a Cmara decidido () a fazer nove Boticas nos ditos Assougues e as apropriaram asy aforandoas e alogandoas como se forao suas com as quais tolheram o uso ao Povo, e a ns nosso direito e tanto que fizerao aquellas nove Boticas lanssarao mao pellas outras duas Boticas antigamente feitas e comearao logo a arrendar e aforar todas as onze Boticas como se fora sua propria herana ().30

    Sendo que este foi o cerne da questo que ops o Contador do Rei ao Concelho de Tavira, interessa-nos antes focar a ateno sobre os dados construtivos que o processo vincula. Referindo-se associao aougues/boticas, vrios so os documentos da poca Moderna atravs dos quais nos apercebemos que adossadas ou aproveitando os vos/arcarias disponveis de edifcios de referncia se constituam pequenas vendas, por vezes so-bradadas. Tal como se pode constatar em Tavi