tatuagens e histórias de vida:o personagem na construção ... · e construir identidades,...

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016 Trabalho apresentado no GT PRÁTICAS INTERACIONAIS E LINGUAGENS NA COMUNICAÇÃO, no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016. www.compos.org.br / page 1/30 / Nº Documento: 8E100713-0995-4311-B8D1-79C795190D4D Tatuagens e Histórias de Vida:o personagem na construção da identidade [1] Tattoos and Life Stories: the character in the construction of identity João Batista Freitas Cardoso I I Doutor, USCS; Mackenzie. Contato: [email protected] Resumo: Quando alguém faz uma tatuagem, geralmente, pretende preservar a memória de algo que considera importante. A prática de tatuar personagens de histórias em quadrinhos ou desenhos animados, ainda que não seja muito comum, revela um modo de expressão de um grupo específico. Tendo esses pressupostos, o presente texto visa discutir como o portador de tatuagem de personagem faz uso desse tipo de signo para narrar suas histórias e construir sua identidade. Para isso, identificamos traços comuns no comportamento dos portadores desse tipo de tatuagem e verificamos como eles fazem uso dos personagens para narrar suas histórias. A pesquisa utilizou técnica de revisão bibliográfica, análise documental e entrevista em profundidade. Verificamos que, ainda que os entrevistados compartilhem o mesmo interesse pelo tema, existem diferentes formas de uso dos personagens como tatuagens e essas formas são definidas em razão da história que se deseja contar. Palavra chave: tatuagem, personagem, narrativa, linguagem visual, história de vida Abstract: When someone has a tattoo done, the intention is usually to preserve memories of something that they consider important. The practice of tattooing comics or cartoon characters, though not very common, reveals a specific group’s way of expressing themselves. Based on this assumption, the present text aims to discuss how individuals with character tattoos make use of this kind of sign to narrate their stories and construct their identity. To this end, we identified common traits in the behavior of those with this kind of tattoo and verified how they make use of the characters to narrate their stories. The research used such techniques as literature review, documentary analysis and in-depth interviews. We noticed that although the interviewees share the same interest in the theme, there are different ways characters are used as tattoo and these are defined according to the story they want to tell. Keywords: tattoo, character, narrative, visual language, life story Introdução No segundo semestre de 2015, o jogador de futebol Emerson Sheik (Figura 1) chamou a

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Trabalho apresentado no GT PRÁTICAS INTERACIONAIS E LINGUAGENS NA COMUNICAÇÃO, no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal deGoiás, 07 a 10 de junho de 2016.

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Tatuagens e Histórias de Vida:o personagem na construção daidentidade [1]

Tattoos and Life Stories: the character in the construction ofidentity

João Batista Freitas Cardoso I

IDoutor, USCS; Mackenzie. Contato: [email protected]

Resumo: Quando alguém faz uma tatuagem, geralmente, pretende preservar amemória de algo que considera importante. A prática de tatuar personagens dehistórias em quadrinhos ou desenhos animados, ainda que não seja muito comum,revela um modo de expressão de um grupo específico. Tendo esses pressupostos, opresente texto visa discutir como o portador de tatuagem de personagem faz usodesse tipo de signo para narrar suas histórias e construir sua identidade. Paraisso, identificamos traços comuns no comportamento dos portadores desse tipo detatuagem e verificamos como eles fazem uso dos personagens para narrar suashistórias. A pesquisa utilizou técnica de revisão bibliográfica, análise documentale entrevista em profundidade. Verificamos que, ainda que os entrevistadoscompartilhem o mesmo interesse pelo tema, existem diferentes formas de uso dospersonagens como tatuagens e essas formas são definidas em razão da históriaque se deseja contar.

Palavra chave: tatuagem, personagem, narrativa, linguagem visual, história devida

Abstract: When someone has a tattoo done, the intention is usually to preservememories of something that they consider important. The practice of tattooingcomics or cartoon characters, though not very common, reveals a specific group’sway of expressing themselves. Based on this assumption, the present text aims todiscuss how individuals with character tattoos make use of this kind of sign tonarrate their stories and construct their identity. To this end, we identifiedcommon traits in the behavior of those with this kind of tattoo and verified howthey make use of the characters to narrate their stories. The research used suchtechniques as literature review, documentary analysis and in-depth interviews. Wenoticed that although the interviewees share the same interest in the theme, thereare different ways characters are used as tattoo and these are defined accordingto the story they want to tell.

Keywords: tattoo, character, narrative, visual language, life story

 

Introdução

No segundo semestre de 2015, o jogador de futebol Emerson Sheik (Figura 1) chamou a

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atenção de parte da imprensa nacional ao expor em um treino do Flamengo suas novas

tatuagens: Tio Patinhas, Pato Donald, Mickey, Pateta, Scobby-Doo, Jerry, Pica-Pau,

Patolino, entre outros personagens. Em muitas das matérias e notas publicadas no período

de 7 a 11 de outubro, os títulos, de maneira geral, referem-se às figuras tatuadas pelo atleta

como representações infantis: “Emerson Sheik mostra tatuagens infantis” (ego.globo.com);

“Emerson Sheik eterniza personagens infantis com tatuagens no braço” (foxsports.com);

“Emerson Sheik aparece com braço coberto com tatuagens de desenhos infantis”

(esportes.r7.com); “Emerson Sheik mostra tatuagens com personagens infantis”

(180graus.com); “Emerson Sheik tatua desenhos infantis nos braços em homenagem à

infância” (odia.ig.com.br); “Inusitado! Emerson Sheik exibe tatuagens com personagens

infantis” (newsrondonia.com.br). Como era de se esperar, a notícia gerou uma série de

postagens na internet: “Isso é sério?”; “Não pode ser real”; “Ele não fez de verdade né?!”;

“alguém pode me dizer se essas tatoos são verdadeiras?... na moral”; “tá de sacanagem?

Kkk é vdd isso?” (newsrondonia.com.br).

FIGURA 1 - Emerson Sheik em treino no Clube de Regatas Flamengo.

FONTE - site Fox Sport.

O fato de um atleta aparecer em público com novas tatuagens não é motivo para

surpreender a imprensa e público. De acordo com Mary Kosut (2006), estima-se que 50%

dos membros da National Basketball Association são tatuados. Provavelmente esse

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percentual é ainda maior entre os futebolistas brasileiros. O que causou tamanha estranheza

foi justamente a temática escolhida pelo atleta. Basta um rápido olhar no elenco dos

principais times brasileiros de futebol para perceber que predomina nesse grupo as tatuagens

de temáticas religiosas ou relacionadas à família. Mesmo em outros grupos, não é comum o

uso de tatuagens desse tipo. Uma pesquisa realizada no Programa de Pós-graduação em

Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA, IFCS,

UFRJ), em dois estúdios de tatuagens situados na cidade do Rio de Janeiro, mostrou que

menos de 1% dos clientes possuíam esse tipo de tatuagem (OSÓRIO, 2006).

Considerando que, independentemente da motivação, quando um sujeito faz uma

tatuagem ele pretende preservar a memória de algo que considera importante, é natural que

outras temáticas pareçam ser mais adequadas. Um salmo bíblico ou figura religiosa, o

escudo ou trecho do hino de um time de futebol, os nomes dos pais ou o retrato do filho,

demonstram laços firmados que, no imaginário coletivo, parecem naturais. Mesmo certos

ornamentos decorativos enraizados na tradição iconográfica da prática de se tatuar – como

um tribal, uma figura estelar, um dragão ou âncora – são mais bem aceitos. Entretanto, é

comum os tatuares recomendarem aos seus clientes que evitem imagens ou frases que

entendem serem provisórias ou sazonais, como as figuras de personagens ficcionais.

Se por um lado não é comum observar esse tipo de figura como tatuagem, por outro tais

imagens fazem parte do cotidiano de milhares de pessoas em peças de vestuário, adereços,

objetos de decoração, mobiliário, embalagens de alimento, material escolar, brinquedos etc.

O consumo desse tipo de imagem se deve, principalmente, ao interesse que um determinado

tipo de público tem pelas narrativas seriadas, veiculadas nos cinemas, TVs, games, livros e

histórias em quadrinhos.

Algumas dessas formas de apropriação, em especial no segmento de vestuário, servem

como modo de expressão para determinados grupos, que ao utilizarem tais imagens também

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comunicam suas preferências ou crenças – desfilam pelas ruas jovens e adultos que

debocham das normas sociais vestindo camisetas com a imagem de personagens da série Os

Simpsons; que demonstram seu perfil contestador com estampas do personagem Mafalda;

ou posicionamento político vestindo a máscara do personagem revolucionário da série V de

Vingança (Figura 2).

FIGURA 2 - Máscara do personagem V utilizada em passeata.

FONTE – site Extra Globo/Mundo.

Tendo em vista esse contexto, o presente texto pretende responder a seguinte pergunta:

como o portador de tatuagem de personagem faz uso desse tipo de signo para narrar suas

histórias e construir sua identidade? Para responder a esta pergunta será preciso: (1)

identificar elementos que permitem à personagem gerar sentido fora do contexto das

narrativas; (2) categorizar as formas de uso dos personagens como tatuagens; (3) observar

traços comuns de comportamento dos portadores desse tipo de tatuagem; (4) e analisar

como o portador de tatuagem faz uso do personagem para narrar suas histórias e construir

sua identidade.

Para compreender o personagem fora do contexto das narrativas e categorizar as formas

de uso dessas figuras como tatuagem, a pesquisa fez uso de revisão bibliográfica e análise

documental[2]. Para entender como as tatuagens são utilizadas para narrar histórias de vida

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e construir identidades, utilizou-se como base textos das áreas de filosofia, psicologia,

sociologia e antropologia. Por fim, visando identificar traços comportamentais comuns e

verificar como os portadores desse tipo de tatuagem buscam construir sua identidade por

meio dessas imagens, foram realizadas entrevistas em profundidade com pessoas que

possuem tatuagem de personagem.

Para as entrevistas, selecionamos pessoas que possuem pelo menos 50% de suas

tatuagens com figuras de personagens de histórias em quadrinhos ou desenhos animados.

Esse percentual se deve ao fato de entendermos que esse tipo de portador atribui uma

importância especial a esse tipo de signo. Nesta fase da pesquisa[3], realizamos duas

entrevistas em profundidade com indivíduos com perfil social distinto: um comerciante

brasileiro de 42 anos, casado, pai de dois filhos, que reside na cidade de Mauá, que

chamaremos de Personagem A (PA)[4]; e um estudante português de 21 anos, solteiro,

residente na cidade de São Paulo, que chamaremos de Personagem B (PB)[5]. As

entrevistas em profundidade permitiram obter acesso aos modos pelos quais os

entrevistados atribuem significados a esse tipo signo e as relações que estabelecem com

suas experiências de vida.

Seguindo os procedimentos comuns à entrevista em profundidade foi definido um

roteiro, a partir de uma entrevista prévia, com um primeiro grupo de perguntas relacionado à

infância do entrevistado e ao contexto sociocultural que envolve esse período. Visando criar

uma proximidade entre o entrevistado e o objeto de estudo, o segundo grupo de perguntas

foi introdutória ao tema, sobre os personagens nas narrativas e sobre o uso de tatuagens. O

terceiro e último grupo foi especificamente sobre as tatuagens de personagens e as

narrativas relacionadas a essas. A ordem das perguntas desse último grupo foi determinada

durante a entrevista, a partir da importância que o entrevistado atribuía a cada uma delas.

Essas entrevistas nos permitiram perceber que, ainda que os entrevistados compartilhem

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o mesmo interesse pelo tema, existem diferentes formas de uso dos personagens como

tatuagens e essas formas de uso são definidas em razão da história que se deseja contar.

Cada personagem no corpo de PB narra um aspecto particular de seus pensamentos ou

história. No corpo de PA, por sua vez, o sentido principal é gerado em função do conjunto

de personagens. No primeiro, predomina a lógica da singularidade como forma de narrar

momentos específicos de sua vida. No outro, a lógica da coletividade permite preservar

parte da infância.

1. O Personagem fora do contexto da narrativa

A personalidade do personagem, os aspectos visíveis que compõe seu caráter

individual, as qualidades que o diferenciam de outros personagens, é o que realmente

interessa a quem traz sua imagem no corpo. Tais características, que são análogas ao

conjunto de aspectos psíquicos ou comportamentais humanos, são desenvolvidas nas

narrativas. Nelas, o caráter individual do personagem é construído por meio dos discursos e

ações do protagonista, antagonista e personagens secundários. Na maior parte das narrativas

de histórias em quadrinhos ou desenhos animados, esses discursos e ações reafirmam

determinado traço da personalidade: a coragem de Asterix é frequentemente citada pelos

personagens gauleses e romanos e demonstrada por ele em suas lutas com esses últimos; as

ações do urso Zé Colmeia são regularmente criticadas pelo Guarda Belo e exaltadas por seu

amigo Catatau; a preguiça de Zé Carioca é reafirmada em cada fala dos personagens Nestor

e Rosinha. A repetição desses caracteres nos diálogos, monólogos e ações servem para

estruturar uma personalidade coerente e simplificada.

Ao tomar consciência dessa especificidade dos personagens, PA passou a se preocupar

em manter as figuras de uma mesma animação na mesma parte do corpo. Quando fez suas

primeiras tatuagens, o comerciante não tinha essa preocupação. As figuras do Recruta Zero

e do Sargento Tainha, por exemplo, encontram-se cada uma em um braço. No entanto,

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atualmente, ele organiza as imagens em áreas específicas do corpo, formando composições

planejadas – como os personagens do desenho Corrida Maluca, que circundam o mesmo

antebraço. Ele entende que as relações entre os protagonistas e os antagonistas permitem

rememorar com mais facilidade a estrutura narrativa. PB, por sua vez, não demonstra tal

preocupação. Referindo-se ao modo como seleciona a figura e determina o local do corpo, o

estudante diz: “são tatuagens minimalistas, muitas tatuagens em vários lugares. [...] quando

o braço tiver fechado, haverá várias tatuagens em todos os lugares, cada uma representará

uma coisa sem um sentido linear de história”.

Como os discursos, ações e conflitos tendem a se repetir nas histórias em quadrinhos ou

desenhos animados, é comum encontrarmos histórias que possuem estruturas narrativas que

se repetem: o personagem Little Nemo sempre é levado para uma aventura em Slumberland

e termina a narrativa caindo da cama e chamando pelos pais; o Coiote sempre prepara

armadilhas para capturar o Papa-Léguas, mas acaba sendo vítima delas; Cebolinha planeja

com os colegas táticas para roubar o coelhinho da Mônica, mas sempre termina apanhando.

Consequentemente, essas estruturas narrativas exigem do personagem uma regularidade de

comportamento. Algumas falas, gestos ou expressões se repetem em todas as histórias: a

expressão da personagem Mônica ao brigar com os meninos; a postura do Papa-Léguas ao

correr; ou o bordão “Medalha, medalha, medalha” do cachorro Mutley. Assim, não é apenas

a estrutura narrativa que se repete, mas também certas frases e a apresentação visual do

personagem.

Para manter o controle sobre a padronização visual dos personagens, as grandes

editoras, mainstream , utilizam modelos pré-estabelecidos (model sheets) para tentar evitar

que os desenhistas alterem certos traços previamente determinado. Esses modelos servem

como base para reprodução do personagem em outros suportes. Porém, mesmo os

personagens que não possuem estruturas narrativas tão rígidas também se apresentam em

situações ou cenas que se repetem, como, por exemplo, a troca de roupas do Superman em

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uma cabine telefônica ou a postura do personagem Billy Batson quando grita Shazam. São

justamente essas poses, gestos, expressões e falas, já conhecidos pelo público, que tendem a

definir a personalidade do personagem. Por isso, é natural que certos padrões de imagem

apareçam nas estampas de camisetas, mochilas e outros tipos de produtos em maior

quantidade. Nas tatuagens de PA e PB identificamos a recorrência maior de reproduções de

imagens já veiculadas em outras mídias. A figura do personagem Flash, tatuada no braço

direito de PB, é uma reprodução do personagem lançado na série Os Novos 52 (Figura 3); a

imagem dos personagens da animação Carangos e Motocas, nas costas de PA, é também

uma reprodução da ilustração de divulgação da animação (Figura 4).

FIGURA 3 - Imagem do personagem Flash: (A) como tatuagem no braço de PB; (B)

em ilustração de divulgação do personagem na série Os Novos 52.

FONTES - (A) do autor, 2015; (B) site MTV.

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FIGURA 4 - Imagem dos personagens da série Carangos e Motocas: (A) como

tatuagem nas costas de PA; (B) em ilustração de divulgação da série.

FONTES - (A) do autor, 2015; (B) site Hanna Barbera.

Além das características visuais e estrutura narrativa, outros tipos de signos são

importantes no processo de construção da personalidade do personagem. As mídias

audiovisuais (cinema, TV, games) agregam à personalidade do personagem elementos que

não estão presentes na imagem imprensa, como, por exemplo, o tom da voz ou movimento

do corpo. Provavelmente o leitor de Pato Donald considera na imagem estática, impressa na

página da revista, seu modo de falar e gesticular. Logo, é presumível que, ao ver uma figura

estampada em um produto licenciado (camiseta, capa de caderno etc.), ainda que o

personagem não esteja no contexto de uma narrativa, a personalidade construída nas

histórias em quadrinhos e nas mídias audiovisuais esteja presente de forma implícita. Da

mesma maneira deve ocorrer quando a figura se apresenta como tatuagem. Ou seja, esses

gestos, poses, maneiras de se expressar, discursos, formas de falar ou comportamentos, que

se apresentam em narrativas seriadas, consolidam uma personalidade que expressa certos

valores e princípios.

Entretanto, é o aspecto visível (conjunto de linhas, formas e cores) que permite ao

usuário de uma camiseta ou portador de uma tatuagem se apropriar das qualidades do

personagem para narrar a sua história de vida ou construir sua identidade. Entendemos que

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os personagens, embora sejam também moldados pela narrativa e pelos signos verbais e

sonoros, têm sua principal existência na imagem. É essa característica que faz com que esse

tipo de figura possa ser estampado em objetos diversos. No entanto, para manter-se como

elemento de significação fora da narrativa, os personagens precisam manter certas

características esquemáticas, unidades invariantes.

As formas, cores, estilos de traços, roupas, expressões, gestos, poses etc. funcionam

como invariantes imagéticas que possibilitam ao personagem “viver uma realidade

exterior”. Os estilos gráficos – como o tipo de linha, o uso de hachuras, sombras ou cores –,

além de servirem como traço identitário do artista e estabelecerem relação com o gênero,

acabam também por definir traços da personalidade do personagem (SANTOS; CARDOSO,

2015).

Em uma primeira classificação dos estilos é possível considerar o “nível de realismo”

do desenho. Em relação a esse aspecto, pode-se opor o estilo realista ao estilo cartunesco.

No primeiro, percebe-se o respeito aos cânones clássico da representação humana, no

desenho da anatomia e fisionomia, e a aplicação cuidadosa das técnicas de perspectiva no

desenho dos cenários; já no segundo, a opção pela deformidade da anatomia e cenário, em

desacordo com as proporções convencionais, visando à concisão e a simplicidade para por

em evidência o que se considera mais significativo. O tipo de traço apresenta-se como uma

segunda forma de categorização: linha fina em oposição à linha grossa. O primeiro, por

meio de linhas com mesma espessura, privilegia os contornos e clareza das formas dos

personagens e cenários, a legibilidade do quadro. Reforça essa intenção o uso econômico e

delicado das sombras, assim como a delimitação e contrastes das cores. O outro enfatiza a

dramaticidade da cena por meio de sombras e variações de espessuras nos contornos dos

personagens e cenários, que visam normalmente intensificar o sentido de uma ação. Por fim,

o tratamento estético limpo e o sujo podem também ser relacionados com os estilos e tipos

de traços. Os desenhos limpos predominam nas publicações mainstream , que mais

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comercializam os personagens para outros ramos de negócios, e os desenhos sujos, com

excesso de hachuras e sombras fortes que visam contrariar a estética comercial, nas

publicações alternativas. (SANTOS; CARDOSO, 2015)

Ao optar por um determinado estilo (realista ou cartunesco), por um tipo de traço (linha

fina ou grossa) e por um tratamento estético (limpo ou sujo), o desenhista acaba optando por

utilizar técnicas e materiais que permitem alcançar o resultado desejado – que pode ir dos

tradicionais lápis e tintas até recursos digitais, passando por colagens e materiais

alternativos (SANTOS; CARDOSO, 2015). Da mesma maneira, as questões técnicas

também precisam ser consideradas no momento de definir o desenho para uma tatuagem.

O tratamento predominante no desenho de uma tatuagem é o estético limpo. Ou seja, as

linhas finas privilegiam a clareza e legibilidade da figura. Ainda que existam sombras,

principalmente nas tatuagens em preto e branco, elas normalmente são suaves. Esse cuidado

se deve ao fato de que, com o tempo, a perda de elasticidade da pele e o desgaste provocado

pelo sol prejudicam a definição da figura. Assim, percebe-se que o tipo de linha da tatuagem

não é necessariamente o tipo de linha do desenho original. A preocupação com o resultado

da tatuagem se sobrepõe a intenção de representar com maior fidelidade o original. A

reprodução da arma do personagem Thor , o martelo Mjölnir , no braço direito de PB é

baseada na representação do artefato apresentado no cinema (Figura 5), no entanto,

pequenos ornamentos que existem no objeto cinematográfico foram eliminados na

tatuagem, pois não seria possível chegar ao mesmo detalhamento na pela.

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FIGURA 5 - Imagem do martelo Mjölnir: (A) no braço direito de PB; (B) representação

cinematográfica.

FONTES - (A) Do autor, 2015; (B) site Marvel-Movies Wikia.

No que se refere ao estilo, tanto as figuras realistas quanto as cartunescas aparecem nos

corpos de PA e PB. O estilo, nesse caso, é definido em razão da preocupação que se tem em

reproduzir da forma mais exata possível as imagens como elas se apresentam nas mídias.

Ou seja, o estilo não é determinado pela tatuagem em si, mas sim pelo interesse por esse ou

aquele personagem.

Fazendo um breve levantamento em sites especializados em tatuagens, observamos que

existem padrões recorrentes de uso dos personagens das histórias em quadrinhos como

tatuagens: cenas ou gestos que se tornaram populares; detalhes ou símbolos conhecidos

apenas pelos fãs; combinação das figuras dos personagens com frases de fontes literárias ou

musicais; relações estabelecidas entre tatuagens em diferentes partes do corpo; capas de

edições históricas de revistas; sequencias de quadros com a história completa; figuras dos

personagens alteradas que visam transgredir as normas de utilização das imagens; tatuagens

de diferentes personagens de uma mesma história que funcionam como vínculo afetivo entre

diferentes sujeitos. Acreditamos que cada um desses padrões mostra diferentes formas de

uso dos personagens que determinam distintos modos de narrar histórias.

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Nas tatuagens de PA predominam as imagens de personagens em cenas ou gestos que

os tornaram populares. O comerciante buscou as referências para fazer as tatuagens em

recortes de revistas:

Eu valorizava muito aquilo que eu encontrava... Então, independente de qualformato que estava, de qual posição, era ele. [...] eu não tinha assim a pretensãode querer explicar o porquê da posição, é por causa da imagem mesmo. O que euachava da época eu guardava e colocava.

Entre as tatuagens de PB, por sua vez, é possível observar detalhes ou símbolos

conhecidos apenas pelos fãs e combinação dos personagens com frases de fontes literárias

ou musicais: “O elmo do Magneto remete a um capacete meio romano e eu achei que essa...

o nome dessa banda [ We Came as Romans ] combinaria um pouco com o capacete do

Magneto” (Figura 6). A tatuagem do personagem Flash (Figura 3) também vem

acompanhada do título de uma canção, “I walk the line”, de Johnny Cash (1964).

FIGURA 6 - Imagem do elmo do personagem e inscrição abaixo.

FONTE - do autor, 2015.

As opções por determinadas formas de uso dos personagens, seguindo modelos

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consolidados em outros sistemas (em camisetas ou capas de cadernos, por exemplo) ou

criando novos sentidos na junção com códigos de sistemas diversos (como literatura ou

música), faz com que o portador de tatuagem construa sua própria narrativa.

2. Marcas da infância

De acordo com Charles Taliaferro e Mark Odden, as primeiras tatuagens de

personagens apareceram na metade do século XX: “Bugs Bunny, The Road Runner, Betty

Boop, Mickey Mouse, Might Mouse, Maggie e Jiggs, Mutt e Jeff, e até mesmo Pink

Panther” (2012, p. 6). Contudo, se comparada às outras temáticas (religiosas, orientais,

ameríndias etc.), a opção por fazer uma tatuagem com a figura de um personagem ainda é

muito pequena (OSÓRIO, 2006), o que indica tratar-se de um perfil restrito de consumidor.

De acordo com Osório, esse tipo de tatuagem ainda é visto, mesmo entre os tatuadores,

como uma “relação contraditória entre a fugacidade do sucesso de um produto de consumo

de massa e a permanência da tatuagem” (2006, p. 143).

Contudo, se há um grupo restrito que porta esse tipo de tatuagem, o que caracteriza esse

grupo? Quais são os traços comuns de crenças e comportamento dos portadores desse tipo

de tatuagem?

Tudo nos leva a crer que são pessoas aficionadas por histórias em quadrinhos. Esta

hipótese pode parecer óbvia em um primeiro momento, mas, se assim for, teremos que

acreditar que a motivação por qualquer temática está diretamente relacionada ao interesse

que a pessoa tenha pelo campo de conhecimento que envolve o tema. Ou seja,

acreditaríamos que todos que portam desenhos tribais em seus corpos possuem um

conhecimento profundo por culturas primitivas; ou pessoas que portam inscrições orientais

dominam a língua que trazem escrita em seus corpos. Sabemos que isso não corresponder à

realidade.

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Existem motivações diversas que fazem com que uma pessoa opte por tatuar uma

determinada imagem: laços afetivos com outras pessoas, crenças religiosas, valores sociais e

políticos, vínculos com agremiações esportivas, estética e moda etc. As relações existentes

entre os personagens das narrativas ficcionais seriadas e os portadores de tatuagens de

personagens revelam uma motivação particular.

Entendemos que as motivações do indivíduo que tatua em seu corpo a imagem de um

personagem de história em quadrinhos ou animação são próximas às motivações que fazem

com que certas pessoas optem por gravar em seus corpos imagens de celebridades ou frases

de canções. Esses últimos acompanham os artistas em apresentações ao vivo, pelas redes

sociais; consomem não só a produção artística (músicas, filmes, videoclipes etc.), mas

também conteúdos que tratam da obra e vida do artista. Da mesma maneira, o aficionado

por histórias em quadrinhos é, comumente, um colecionador das revistas onde são

veiculadas os seus personagens preferidos e, muitas vezes, coleciona também filmes, livros,

figurinhas, miniaturas, camisetas e todo tipo de objeto que estampa a imagem desses

personagens. Nesse sentido, era de se esperar que essas imagens ocupassem também espaço

em seus corpos.

PB, que possui oito tatuagens de super-heróis, reforça essa hipótese ao declarar: “a

decoração da minha casa é feita basicamente por super-heróis [...] e eu acho que eles estão

presentes o tempo inteiro na minha vida [...], em todos os lugares que eu vou e encontro

alguma coisa de super-heróis eu tento comprar”. Além do interesse pessoal por esse

segmento, PB é sócio em uma empresa que comercializa revistas em quadrinhos antigas

pela internet: “nós vamos aos sebos, vemos os quadrinhos que estão numa qualidade

melhor, pegamos esses quadrinhos e revendemos na internet [...]. Nós estamos abrindo

agora espaço para esse e-commerce através de publicações, informações sobre heróis”.

Assim como PB, PA, que possui mais de cento e vinte tatuagens de personagens (Figura 7),

coleciona objetos diversos relacionados ao tema e é proprietário de um estabelecimento

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comercial decorado com referências antigas da cultura midiática: fotos de filmes e seriados,

capas de revistas e discos de vinil, brinquedos e imagens de personagens animados da

televisão e de histórias em quadrinhos.

FIGURA 7 - Vistas do corpo de PA.

FONTE - do autor, 2015.

Muito desse interesse, que se mantém na idade adulta, inicia na infância. Segundo PA, a

motivação para realizar a primeira tatuagem de personagem está intimamente ligada à sua

infância.

[...] é uma infância meio trágica, de família, separação [...]. Então a única coisaque eu tinha mesmo era uma televisão. [...] e os desenhos animados era umaforma da gente ficar ali prendido na alegria. [...] o desenho era uma coisa quenão representava muita agressividade e que me fazia dar muita risada [...] eu meespelhava muito nisso.

O interesse das crianças por esse tipo de imagem é destacado por ambos os

entrevistados, que falam sobre a reação delas diante de suas tatuagens: “As crianças se

sentem muito fascinadas. Eu entro no elevador do meu prédio e todo dia uma criança, ‘oi

você já fez mais uma tatuagem de herói’” (PB);

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Eu fiquei mais a vontade em querer terminar algumas partes do meu corpo,muito mais pelo incentivo das crianças [...], eu percebo que elas acabamreconhecendo aquilo que elas estão vendo na televisão. Então, assim, ela não vêcomo uma coisa agressiva e vê como uma coisa legal. (PA)

Contudo, o vínculo dessas pessoas com os personagens não deve ser visto como uma

atitude infantil. Na realidade, ainda que grande parte da produção de histórias em

quadrinhos seja destinada ao público infantil, sua origem está diretamente ligada ao público

adulto. Inicialmente, nos Estados Unidos, as tiras de quadrinhos eram publicadas em jornais.

Isso fez com que diversos adultos, entre eles intelectuais e artistas, acompanhassem essas

produções. De acordo com Umberto Eco, até mesmo James Joyce lia as tiras cotidianas. Em

Finnegans Wake o autor “recorre a personagens das estórias em quadrinhos, como por

exemplo Mutt e Jeff” (ECO, 2010, p. 81) e, na mesma obra, teria também feito referência a

Mandrake e Gato Felix. Roberto Elísio dos Santos também lembra que:

[...] cineastas como Federico Felline e Alain Resnais, não somente renderamhomenagens às Histórias em Quadrinhos, como também as defenderam e asajudaram a ser aceitas entre os intelectuais. O diretor de cinema italiano foi,antes de se dedicar à sétima arte, quadrinhista. Já o cineasta francês incluiuimagens das histórias de Mandrake em seu curta-metragem ‘Tout la Memorie duMonde’, sobre a Biblioteca Nacional Francesa, feito na década de 1950, e, em1989, dirigiu ‘Eu Quero Voltar para Casa’/‘I Want to Go Home’ (com roteiro dodesenhista norte-americano Jules Feiffer), filme em que satiriza os preconceitoscontra os quadrinhos e a ‘Cultura de Massa’. (2002, p. 41)

Referindo-se especificamente às produções Disney, Santos (2002, p. 298) acredita que,

mais do que ser um produto voltado unicamente ao público infantil “e, consequentemente,

ingênuo”, as histórias em quadrinhos permitem “que o leitor reflita a respeito da

imperfeição humana e dos impasses de sua sociedade”.

Sob esse ponto de vista, não se pode considerar os personagens, em si, como imagens

infantis. Basta uma rápida visita a livrarias especializadas em quadrinhos – como a Comix

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Book Shop, em São Paulo, ou a Downtwon Comics, em Nova Iorque – para comprovar que

o maior número de frequentadores é composto por consumidores adultos; basta andar pelas

ruas para ver o número de adultos que vestem camisetas com imagens de personagens de

histórias em quadrinhos; basta consultar os preços das coletâneas editadas em formatos

especiais e das miniaturas de personagens esculpidas em resina para constatar que não são

produtos dirigidos ao público infantil.

De algum modo, tais imagens são marcas da infância, mas não devem ser

compreendidas como imagens infantis. No caso das tatuagens, fazem parte de uma história

de vida.

De acordo com Kyle Fruh e Emely Thomas (2012), a tatuagem se torna capaz de

unificar vertentes díspares de uma longa vida, unindo passado e futuro. O que isso sugere,

para os autores, é que a tatuagem pode ter um efeito de ancoragem, amarrando pontos entre

passado, presente e futuro na formação de uma resposta para a questão de quem eu sou. No

caso da tatuagem de personagem, tudo indica que é o desejo de preservar, ou superar, a

memória de uma infância: “quando eu tatuava e me olhava no espelho parecia que eu tinha

completado algo na minha vida. Tinha jogado fora algum problema pessoal lá de trás” (PA).

Contudo, é sabido que toda tatuagem, além de estar relacionada a traços particulares ou

fases de uma vida, revela vínculos coletivos, pois “no tipo de tatuagem há a eleição de

imagens que estão permeadas pela relação de afetividade e cumplicidade com os produtos

culturais massificados pela mídia” (PAVAN, 2010, p. 209). Antes de assumirem um valor

simbólico no corpo humano, tais figuras já expressam comportamentos ou valores morais.

Para PB, mais do que estar relacionado diretamente à sua infância, a imagem do

personagem Magneto (da série X-Man) que ele exibe no braço esquerdo, representa a luta

por causas que refletem “o que acontece na sociedade”.

Assim como outros indivíduos tatuados, o portador de tatuagem de personagem faz uso

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de um repertório para falar de si e sobre o que pensa do mundo. Contudo, essa forma de

apropriação, que não é comum ao campo da tatuagem, revela que seus afetos e experiências

de vida se sobrepõem às tendências estilísticas impostas pelo mercado de tatuagem e pela

sociedade. Como declaram PA e PB: “Não era uma questão de moda, eu queria fazer

alguma coisa que me lembrasse... que me fizesse feliz” (PA); “alguns professores olham e

falam ‘isso parece meio infantil’ [...] ainda existe um preconceito. [...] entre os alunos... ‘pô,

o cara tá com uma tatuagem de super-herói, é coisa de dez anos’ [...], mas isso pra mim tem

uma representação legal” (PB).

3. O corpo como álbum

Para Vitor Ferreira (2008, p. 145), de modo geral, as metáforas presentes nas tatuagens

remetem a “contextos sociais de pertença e de vivência ao longo da vida”. Entretanto,

conforme a prática de se tatuar passa a se tornar um projeto de construção de identidade e

estilo de vida, o cuidado com as afinidades estéticas e éticas das imagens selecionadas

aumenta e seu valor biográfico passa a ser considerado. É justamente essa coerência entre o

portador e a tatuagem que interessa a este estudo. Os aspectos estéticos, éticos e o valor

biográfico das imagens, para esses indivíduos, justificam o ato de marcar o corpo. Tais

aspectos, segundo eles, não são determinados por tendências, mas sim por fatores

intimamente relacionados às suas histórias de vida.

Contudo, como lembra Wendy Lee (2012), as histórias e eventos narrados por meio das

tatuagens não são sempre verdadeiros. Na realidade, nem precisam ser necessariamente

verdadeiros. Assim como a identidade é uma espécie de narrativa em curso, uma construção

de sentido formada ao longo do tempo (HALL, 2001), as histórias e eventos narrados são

concebidos por meio da memória e imaginário do portador. Para Clancy Smith (2012) as

memórias nunca serão permanentes como as tatuagens: “como podemos recordar o passado

tal como aconteceu quando o passado já não existe e nosso ato de lembrança é

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necessariamente sempre em fluxo?” (p. 110, tradução nossa). Para ele, mais do narrarem o

passado, as tatuagens dizem “quem nós somos agora”. Ou, de outro modo: “quem nós

queremos parecer ser agora”. Nesse sentido, ao tentar delinear sua identidade e narrar sua

história de vida, o indivíduo revela sua perspectiva sobre o mundo e sobre si mesmo

(FALKENSTERN, 2012).

PB, primeiramente, atribui à escolha das imagens tatuadas certos valores que ele

considera importantes: “eu criei a minha personalidade um pouco baseado nessa história de

ser o herói [...]. O mais importante é a transmissão do caráter dos heróis. [...] é um sentido

de que você está buscando uma força na sua vida”. Apontando para a imagem aquarelada de

Superman, tatuada em sua costela direita, e falando sobre sua infância, PB complementa:

“eu também fui de ferro [Superman é chamado de o “Homem de Aço”] algumas vezes. [...],

eu gostei de tatuar isso pra transmitir esse conceito” – a figura de Superman em seu corpo

mostra o personagem se levantando após uma provável queda. Para ele, Superman “é um

diplomata”, que, apesar de todas as dificuldades, procura sempre manter o bom senso e

tranquilidade. Ele associa o personagem Batman a qualidades que considera importante em

sua formação profissional: “Batman é o cara planejado é o cara estratégico, [...] eu estou

sempre lidando com estratégias, planos”.

FIGURA 8 - Tatuagem do símbolo de Batman no braço direito e figura aquarelada de

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Superman na costela direita.

FONTE - do autor, 2015.

Contudo, em outro momento da entrevista, PB procura explicar o sentido de suas

tatuagens recorrendo a relações metafóricas entre essas e temas de seu interesse. Para

justificar a tatuagem do martelo Mjölnir (Figura 5), do personagem Thor, ele afirmar

perceber algum tipo de relação entre esse personagem e Hamlet, personagem literário que

diz admirar. Para não tatuar uma frase de Shakespeare, que considera comum no campo da

tatuagem, optou por utilizar o personagem da Marvel Comics como metáfora. A tatuagem

do personagem Magneto, por sua vez, corresponderia ao naturalista Charles Darwin: “Eu

queria tatuar Darwin, só que eu falei ‘eu não vou tatuar Darwin’, eu vou tatuar o Magneto

porque defende uma causa de mutantes, de uma adaptação dos seres humanos”. Segundo

ele, foram as leituras das obras Hamlet e A Origem das Espécies que o motivaram a fazer

essas tatuagens.

Ou seja, em alguns momentos de seu depoimento, PB justifica a escolha de uma

imagem em razão das qualidades do personagem, que ele acredita compartilhar ou gostaria

de possuir. Nesse caso, os personagens servem como modelos de virtudes a serem seguidas.

Em outros momentos, ele gera um novo sentido para os personagens, que vai além das

narrativas das histórias em quadrinhos. Nesse caso, o personagem passa por um processo de

ressignificação.

Segundo Perez Fonseca (2014), ao tentar explicar ou justificar o sentido da figura

tatuada, o sujeito constrói, por meio de um conjunto de associações, suas próprias

narrativas. Desse modo, como afirma Lee (2012), tanto faz essas histórias serem verdadeiras

ou não. Grande parte das histórias contadas por meio de registro fotográfico, por exemplo,

não necessitam de um “valor de verdade”. Citando o texto Tattoo Philosophy and Passion,

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publicado por Spiderz em experienceproject.com , Lee lembra que o mais importante em

uma tatuagem é contar uma história, simbolizar algo importante na vida do portador.

Quando isso não acontece, ela apresenta-se como uma mera decoração: “Embora Spiderz

reconheça uma relação entre tatuagens e histórias, seu critério para o que conta como

‘válido’ é a problemática” (LEE, 2012, p. 159, tradução nossa). Ou seja, mais importante do

que ser uma história verdadeira é uma história ser contada. Para PB, as tatuagens

“representam uma fase da vida. [...] toda fase tem uma parte ruim... e a parte ruim nos ajuda

a lembrar [...] no que podemos melhorar. [...] toda tatuagem tem uma história”; PA,

recordando da primeira tatuagem e lembrando-se da infância, narra um momento vivido:

“eu não sabia o que fazer com minha primeira tatuagem, foi quando eu encontrei com um

amigo que me apresentou o desenho do Carangos e Motocas. Poxa, aí eu falei, ‘isso é muito

legal’ [...] ‘é isso o que eu quero pra minha vida’”.

No que se refere à construção da identidade, de acordo com Fruh e Thomas (2012), para

muitas pessoas as tatuagem não são simplesmente ornamentos nos corpos, elas são

elementos constitutivos do self, estão firmemente ligadas à identidade pessoal. A identidade,

sob esse ponto vista, é estruturada por meio de narrativas que estão relacionadas a

determinadas experiências de vida, também lembradas em forma de narrativas. Assim, a

construção de narrativas apresenta-se em um equilibro instável entre algo que se pretende

dizer sobre si e o modo como são lembrados os eventos ou fatos vividos. Por um lado elas

informam a pessoa que nos tornamos, por outro são construídas de modo que não se tornem

pura fantasia (FRUH; THOMAS, 2012).

Assim, PA e PB narram suas infâncias e contam, ou criam, suas histórias de como essas

tatuagens estabelecem relações com o passado e presente. Eles tentam, por meio de

referências da cultura midiática, preservar elementos do passado e construir suas

identidades. Brincam com o corpo como brincavam com a mídia.

Como lembra Roger Silverstone, a mídia é também o lugar da brincadeira: “brincamos

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com nossa mídia, por meio dela. Brincamos com ela e em volta dela” (p. 2014, 120). O

sujeito que porta esse tipo de tatuagem não brinca com a mídia, ou por meio dela, apenas

por interagir com os personagens em games , brinquedos ou por imitar seus gestos e falas.

Ele brinca com as mídias convencionais ao imprimir em seu próprio corpo esse tipo de

imagem; ao atribuir a essas figuras outros sentidos que vão além das narrativas midiáticas;

ao relacionar, a elas, partes de seu corpo, que, então, se converte em mídia. Nesse sentido,

parafraseando Silverstone, entendemos essa forma de brincar como uma atividade complexa

de construção da identidade e que faz parte da mecânica da cultura: “a brincadeira revela a

criança no adulto” (2014, p. 123). Se, quando criança, o prazer da brincadeira está também

relacionado aos personagens das narrativas midiáticas – transpostos para as mímicas, jogos

ou bonecos – é natural que na idade adulta algumas dessas lembranças façam parte de

nossas vidas. É assim que a tatuagem de personagem ancora o passado, narrando parte da

infância do portador, remetendo a uma passagem na construção de sua identidade.

Contudo, ainda que compartilhem o mesmo interesse por essa temática e aparentem

certo comportamento comum, ao tirar as imagens de seus contextos e atribuir a elas um

novo sentido, PA e PB apresentam duas propostas distintas de uso das personagens como

tatuagens.

PA assume estar mais preocupado com o conjunto. Ao afirmar “eu me considero um

álbum”, o comerciante revela que pretende tatuar o maior número de figuras possível, como

um álbum de figurinhas colecionáveis. Fazendo isso, entende que conseguirá resgatar parte

de sua infância e transmitir às crianças valores que considera positivo. PB, por outro lado,

aparenta seguir a lógica do álbum de família. Prefere preservar apenas algumas lembranças

do passado e registrar eventos do presente com vista à manutenção da memória futura.

Eu gosto de escolher minuciosamente as tatuagens. Tipo, uma por uma pradefinir determinadas fases da minha vida, o que representa cada uma, porque eume lembro do que se passava na minha vida; [...] quando o braço estiverfechado, haverá várias tatuagens em todos os lugares, cada uma representará

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uma coisa [...], porque cada uma representa uma fase da minha vida e é isso queeu acho mais interessante em tatuagem. (PB)

Considerações Finais

Os depoimentos de PA e PB nos revelam que as identidades podem ser construídas pelo

estabelecimento de diferentes relações simbólicas entre as escolhas dos personagens e suas

aplicações como tatuagens. Se para PA o conjunto de figuras representa a época de sua

infância, para PB cada imagem isolada representa um momento específico de sua vida. Ao

converterem seus corpos em mídia – em um meio destinado ao registro, preservação e

comunicação de suas memórias –, cada um a sua maneira, gera um novo sentido a esse tipo

de produto midiático. O primeiro, utilizando a metáfora do álbum de coleção, próprio para a

colagem de selos ou figurinhas, desvela outra metáfora, a do álbum de recordação, próprio

para colagem de retratos, anotações e registros de eventos vividos. Se a este último interessa

o registro em si, que permite narrar uma história em um tempo e espaço preciso, ao outro

interessa acumular o maior número possível de imagens. Se para PB a história e

personalidade do personagem são importantes para expressar o que ele deseja dizer, para PA

o mais importante é manter o rigor na escolha de personagens de um tipo específico, os que

aparecem nos desenhos animados veiculados na televisão brasileira nas décadas de 1970 e

1980, que remetem diretamente à sua infância. Se para o estudante português os espaços

selecionados para as tatuagens fazem parte de um planejamento de corpo que envolve

também tatuagens de outros tipos, para o comerciante brasileiro a escolha dos espaços se dá

em razão do melhor aproveitamento que permita inserir a maior quantidade possível de

personagens.

Contudo, ainda que os projetos sejam distintos com vista a atender objetivos

específicos, essa prática revela que existem padrões recorrentes de uso das imagens de

personagens. Entre os padrões identificados, encontramos em PA apenas a reprodução de

posturas e gestos já conhecidos. Em PB, além desse padrão, observamos a reprodução de

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detalhes ou símbolos conhecidos apenas pelos fãs – como o martelo de Thor ou o símbolo

de Nightwing – e a combinação das figuras com frases de outros sistemas – como o nome

de uma banda inglesa sob o elmo do Magneto ou o título da canção de Johnny Cash sob a

figura do Flash. Como se pôde observar, cada um desses padrões mostra diferentes formas

de uso dos personagens. O primeiro visa facilitar o reconhecimento das figuras. O outro

exige o conhecimento de elementos da narrativa e o estabelecimento de relação com

elementos de outros sistemas.

Para que sobreviva fora da narrativa ficcional, entretanto, é preciso o personagem

mantenha certas unidades invariantes. Nas tatuagens, ainda que certos traços sejam

alterados para privilegiar a clareza e legibilidade da figura no corpo humano, a manutenção

das unidades invariantes pode ser percebida nas tatuagens de PA e PB na reprodução de

modelos visuais predominantes, poses e expressões regularmente expostos em produtos

impressos ou audiovisuais.

Ainda que tenham propósitos diferentes, percebemos certos traços comuns entre os

portadores desse tipo de tatuagem. São pessoas aficionadas por histórias em quadrinhos e

desenho animado que, em grande parte, colecionam objetos diversos que trazem as imagens

de seus personagens favoritos. Para eles, o personagem é mais importante que a história. A

escolha da figura que será tatuada, então, é determinada por afinidades estéticas e valor

biográfico da imagem.

O interesse por esse tipo de produto cultural, nos casos estudados, parece estar

vinculado diretamente à lembrança da infância. Fazendo uso da metáfora de Fruh e Thomas:

como uma âncora, as figuras dos personagens ligam o fundo à superfície, amarram pontos

entre o passado, que não se enxerga com nitidez, e o presente, em constante movimento.

Além dessa função privada, essas tatuagens revelam vínculos coletivos, relações de

afetividade e cumplicidade tais produtos midiáticos. A prova disso é que esse sentimento se

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sobrepõe às tendências. Mesmo sujeitos à incompreensão e críticas, PA e PB assumem essa

prática como um projeto de construção de identidade e estilo de vida.

São esses laços que permitem ao personagem narrar uma história sobre seu portador,

mesmo quando essas histórias não são completamente verdadeiras. São esses laços que

permitem ao portador explicar ou justificar a figura tatuada, mesmo quando ele cria parte de

sua própria história. A tessitura das narrativas entrelaça elementos de vivência com

elementos do imaginário. Ao mesmo tempo em que colabora para o desenvolvimento de

uma identidade, revela como o portador entende a si e ao mundo.

Segundo Kosut (2006), nos Estados Unidos, a tatuagem passou a ter melhor aceitação

na década de 1990 quando celebridades do cinema, música e esporte passaram a expor

publicamente suas tatuagens. As tatuagens dessas personalidades públicas serviram como

modelo para milhares de jovens. Osório (2006) também relata ter observado, em um dos

estúdios visitados, fotografias de clientes que optaram por copiar a tatuagem da atriz Débora

Secco. Como bem lembra Perez Fonseca (2014), a iconografia utilizada nesse campo é

comumente reproduzida por diversos meios, como sites especializados ou catálogos dos

estúdios. Sendo assim, é de se esperar que as tatuagens de Emerson Sheik (Figura 1) possam

encorajar os fãs do esportista a decidirem por essa temática. Acontecendo isso, certamente,

a lógica de uso das tatuagens não será a mesma.

 

Notas

 

1. Auxílio: processo#2014/21537-5, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).2. Os resultados desse estudo foram apresentados no GT Comic Art no congresso da IAMCR, que aconteceu em

Montreal, julho de 2015. Os dados principais serão expostos aqui de forma resumida.

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016

Trabalho apresentado no GT PRÁTICAS INTERACIONAIS E LINGUAGENS NA COMUNICAÇÃO, no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal deGoiás, 07 a 10 de junho de 2016.

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3. Esta fase compreende o período de 01/02/2015 a 31/01/2016. O Período de Vigência da pesquisa é de 01/02/2015a 31/01/2017.

4. Entrevista realizada em 16 de setembro de 2015.5. Entrevista realizada em 28 de setembro de 2015.

 

 

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