sujeito de direito e interpelação ideológica
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Sujeito de Direito e Interpelação IdeológicaTRANSCRIPT
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Rio de Janeiro, Vol. 06, N. 10, 2015, p. 49-70 Celso Naoto Kashiura Jr. DOI: 10.12957/dep.2015.12742| ISSN: 2179-8966
Sujeito de direito e interpelao ideolgica: consideraes sobre a ideologia jurdica a partir de Pachukanis e Althusser Legal Subject and Ideological Interpellation: considerations on legal ideology based on Pashukanis and Althusser
Celso Naoto Kashiura Jr.
Mestre e doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP. Professor das Faculdades de Campinas (FACAMP). Membro do Grupo de Estudos Althusserianos do Centro de Estudos Marxistas (CEMARX) da UNICAMP. Autor de Crtica da igualdade jurdica: contribuio ao pensamento jurdico marxista (Quartier Latin, 2009) e Sujeito de direito e capitalismo (Outras Expresses/Dobra, 2014). E-mail: [email protected]
Artigo recebido em 09/09/2014 e aceito em 26/11/2014.
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Resumo
O mecanismo prprio de funcionamento da ideologia , segundo Louis
Althusser, a interpelao do indivduo como sujeito. A forma sujeito de
direito, objeto da crtica de Evgeni Pachukanis, constitutiva, na
sociedade burguesa, dessa subjetividade engendrada pela interpelao.
A aproximao entre Pachukanis e Althusser pode, assim, lanar alguma
luz sobre o funcionamento da ideologia jurdica.
Palavras-chave: Ideologia jurdica. Interpelao. Sujeito de direito.
Abstract
The interpellation of individuals as subjects is, according to Louis
Althusser, the proper mechanism of ideology. The legal subject, target of
Evgeni Pashukanis criticism, is constitutive, in bourgeois society, of the
subjectivity engendered by the interpellation. Thus, the rapprochement
between Pashukanis and Althusser would make possible to understand a
little further about legal ideology.
Keywords: Legal ideology. Interpellation. Legal subject.
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Introduo
Os indivduos constitudos (ou, noutras palavras, interpelados) como
sujeitos pela ideologia andam por si mesmos, afirma Louis Althusser no texto
de 1969 sobre os aparelhos ideolgicos de Estado. Andam por si mesmos,
prossegue, porque o indivduo interpelado como sujeito (livre) para que se
submeta livremente s ordens do Sujeito, isto , para que aceite (livremente) o
seu assujeitamento, isto , para que realize por si mesmo os gestos e os atos
de seu assujeitamento.1
Esse movimento que implica simultaneamente subjetivao e
assujeitamento, o movimento da interpelao, conceito central da teoria da
ideologia de Althusser, guarda ntima conexo com a forma essencialmente
burguesa do sujeito de direito:2 o indivduo , na sociedade burguesa,
constitudo como sujeito de direito precisamente para que, por si mesmo, no
pleno uso de sua autonomia da vontade, realize o seu assujeitamento. A
iluso de sua liberdade, que ao mesmo tempo marca a sua condio de
sujeito e permite a sua submisso ao capital, , antes de tudo, uma iluso
jurdica.
As linhas que seguem tm por escopo lanar alguma luz sobre essa
iluso jurdica, mais especificamente com vistas a investigar, ainda que de
modo parcial, o papel desempenhado pela forma sujeito de direito no
movimento da interpelao ideolgica. Trata-se, noutras palavras, de mostrar
algumas importantes conexes entre a subjetividade que se constitui pela
interpelao e a subjetividade jurdica.
Para tanto, faz-se necessrio enfrentar, em primeiro lugar, a prpria
subjetividade jurdica e suas determinaes, especialmente a questo da sua
1 ALTHUSSER, L. Idologie et appareils idologiques dtat. In: Positions. Paris: ditions Sociales, 1976, p. 121. (Traduzi.) 2 Althusser, no entanto, desconhece ainda o lugar preciso do sujeito de direito e da ideologia jurdica no movimento da interpelao em Ideologia e aparelhos ideolgicos de Estado (1969), passando a consider-lo claramente (e ainda assim com vacilaes) a partir de Resposta John Lewis (1973). A esse respeito, cf. os textos de Nicole-dith Thvenin (O itinerrio de Althusser e Ideologia jurdica e ideologia burguesa) reunidos em: NAVES, M.B. (org.). Presena de Althusser. Campinas: IFCH-Unicamp, 2010.
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especificidade histrica. A referncia essencial para uma tal investigao o
pensamento de Evgeni Pachukanis, sobretudo aquele desenvolvido em A
teoria geral do direito e o marxismo (1924), bem como os desenvolvimentos
posteriores da crtica do direito no interior da teoria marxista. Ser assim
possvel, a seguir, voltar a ateno, em especfico, para a teoria da ideologia de
Althusser e buscar nela o lugar, ainda que implcito, a ser ocupado pelo sujeito
de direito.
1. Sujeito de direito e capitalismo
Na contramo do pensamento jurdico tradicional, que concebe o sujeito
de direito como condio natural do homem (por exemplo, no
jusnaturalismo) ou como produto de uma determinao puramente
normativa (por exemplo, num positivismo jurdico radical como aquele de
Hans Kelsen), Pachukanis encontra a raiz do sujeito de direito no interior da
estrutura social correspondente ao modo de produo capitalista. Longe,
portanto, de uma suposta naturalidade alheia histria ou do carter
secundrio de categoria decorrente de uma normatividade primria, o
sujeito de direito concebido como forma histrica, intimamente vinculada ao
advento de uma forma histrica de sociedade, e, mais ainda, como a forma
fundamental do fenmeno jurdico como um todo, com relao qual a norma
jurdica mesma no seno um momento derivado.3
3 A respeito da primazia do sujeito de direito quanto norma jurdica, Pachukanis afirma: A dogmtica jurdica conclui, ento, que todos os elementos existentes na relao jurdica, inclusive o prprio sujeito, so criados pela norma. Na realidade, a existncia de uma economia mercantil e monetria naturalmente a condio fundamental sem a qual todas estas normas concretas no possuem qualquer significado. somente sob esta condio que o sujeito de direito possui um verdadeiro substrato material na pessoa do sujeito econmico egosta que a lei no cria, mas que encontra diante de si. Onde inexiste este substrato, a relao jurdica correspondente , a priori, inconcebvel. PACHUKANIS, E.B. A teoria geral do direito e o marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 63-64. Ainda a esse respeito, v.: NAVES, M.B. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. So Paulo: Boitempo, 2000 (especialmente cap. 2). KASHIURA JR., C.N. Crtica da igualdade jurdica: contribuio ao pensamento jurdico marxista. So Paulo: Quartier Latin, 2009 (especialmente cap. 1.2).
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Pachukanis prope, com slido fundamento em Marx, uma aproximao
entre as categorias do direito e o processo de troca. O sujeito de direito se
desvela, assim, como o outro lado da mercadoria: se a circulao mercantil
exige, por um lado, que os objetos da troca nela figurem sob a forma social
idntica de mercadoria, pura materializao de trabalho abstrato, suporte
abstrato do valor, exige tambm, por outro lado, que os agentes da troca
uma vez que as mercadorias no podem realizar a troca por si prprias, como
lembra Marx4 nela se reconheam reciprocamente sob a forma social
idntica de guardies de mercadorias, proprietrios abstratos, sujeitos de
direito.
A relao de troca se realiza, portanto, entre coisas sob a qualidade
idntica de mercadorias, imediatamente mensurveis umas em relao s
outras em termos de valor, e entre pessoas que se reconhecem como
igualmente portadoras de mercadorias (ou seja, de valores), sob a qualidade
idntica de sujeitos de direito. Noutras palavras, a relao de equivalncia
(valor) entre mercadorias se realiza por intermdio da relao jurdica entre
sujeitos de direito relao que aparece aqui como contratual, na qual os
sujeitos de direito se reconhecem reciprocamente como iguais e livres,
portadores de vontade autnoma que habita as mercadorias e que as pe
em movimento na troca.
O segredo da forma sujeito de direito se encontra, ento, na prpria
materialidade do processo de troca de mercadorias:5 o sujeito de direito
constitudo em funo da troca de mercadorias, a atribuio de uma vontade
livre por meio da qual o sujeito de direito se coloca numa relao de igualdade
4 V. MARX, K. O capital. Vol I. So Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 79 (livro I, cap. II). 5 A esse respeito, diz Pachukanis: As categorias mais caractersticas do direito burgus o sujeito de direito, a propriedade, o contrato etc. antes de mais nada e mais claramente do que tudo, revelam a sua base material no fenmeno da troca. A categoria do sujeito de direito corresponde categoria do valor-trabalho. Os atributos da mercadoria, impessoalidade, generalidade e mensurabilidade, so completados pelos atributos formais da igualdade e da liberdade, os quais os proprietrios das mercadorias conferem uns aos outros. PACHUKANIS, E.B. A teoria marxista do direito e a construo do socialismo. In: NAVES, M.B. (org.). O discreto charme do direito burgus: ensaios sobre Pachukanis. Campinas: IFCH-Unicamp, 2009, p. 142-143.
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perante outro sujeito de direito uma exigncia da troca de mercadorias. A
vontade autnoma do sujeito de direito no determina a relao de
equivalncia entre as mercadorias que o prprio sujeito conduz para a troca,
mas , na realidade, determinada por ela. A vontade autnoma, o
reconhecimento recproco, a igualdade e a liberdade jurdicas no provam,
assim, qualquer qualidade superior intrnseca ao homem, qualquer
disposio imanente para a moralidade, qualquer determinao espiritual
que situaria a pessoa (como agente da troca, sujeito) acima da coisa (como
objeto da troca, mercadoria): a subjetividade jurdica constituda para a troca
mercantil, como condio para que o valor consubstanciado no corpo das
mercadorias se realize na esfera da circulao em ltima instncia, para que
o movimento de valorizao do valor, determinado desde a produo
capitalista, que aparece e no aparece na circulao, tenha lugar.
O vnculo social enraizado na produo [pode, ento, concluir
Pachukanis] apresenta-se simultaneamente sob duas formas absurdas, de um
lado, como valor mercantil e, do outro, como capacidade do homem ser
sujeito de direito.6 Essas duas formas absurdas, cujo espao privilegiado ,
sem dvida, a circulao mercantil, exprimem, cada uma a seu modo, as
exigncias e as determinaes e, assim tambm, as contradies
historicamente especficas do modo de produo capitalista. O seu carter
absurdo , em ltima anlise, reflexo do carter absurdo da produo
capitalista mesma.
A produo capitalista implica, como se sabe a partir de Marx, a relao
de capital, relao entre classes sociais mediada pelos meios de produo,
relao na qual o trabalho se subsume ao capital, na qual o trabalho
explorado pelo capital. Mas essa relao de explorao, cuja realizao prtica
se d no interior do processo de produo (curtume), exige antes o encontro
entre trabalhador e capitalista na esfera na circulao (den dos direitos do
homem), encontro que se expressa juridicamente como relao contratual
6 PACHUKANIS, E.B. A teoria geral do direito e o marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 85.
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entre sujeitos de direito.7 Se, nesse sentido, a qualidade de portador de
mercadoria o que torna o homem sujeito de direito, essa relao contratual
surpreende um dos seus sujeitos, o trabalhador, como portador de uma
mercadoria muito peculiar: a fora de trabalho.
A fora de trabalho a prpria capacidade de trabalho do trabalhador,
ou seja, o que o trabalhador aliena ao capitalista no contrato de trabalho a
utilizao de suas foras vitais, no processo de produo, durante um intervalo
de tempo determinado. Trata-se, ento, de uma mercadoria peculiar porque,
antes de tudo, a fora de trabalho , em certo sentido, o prprio trabalhador:
ao alienar um tempo determinado de utilizao da sua fora de trabalho, o
trabalhador aliena um tempo determinado de utilizao de suas prprias
foras corpreas e intelectuais. Trata-se, mais ainda, de uma mercadoria
peculiar porque a fora de trabalho contm em si a especificidade de, uma vez
consumida, isto , uma vez posta em movimento no processo de produo
propriamente dito, gerar uma quantidade de valor superior quela dispendida
como seu equivalente a ttulo de salrio: essa diferena (mais-valor)
apropriada pelo detentor dos meios de produo, o capitalista.
O trabalhador , portanto, constitudo como sujeito de direito na
medida em que figura como guardio da mercadoria fora de trabalho, o que
significa dizer: na medida em que figura como guardio de si mesmo como
mercadoria. O sujeito de direito que aliena a sua fora de trabalho se realiza
duplamente nessa relao: como sujeito de direito (igual e livre perante outros
sujeitos de direito) que aliena e, ao mesmo tempo, como objeto de direito
(mercadoria equivalente perante outras mercadorias) que alienado.8 Pode-se
ento afirmar que a elevao do trabalhador direto, expropriado dos meios de 7 Refiro-me aqui passagem de O capital em que Marx ope, com essa analogia ( den dos direitos humanos vs. curtume), o momento da celebrao do contrato entre trabalhador e capitalista na circulao e o momento da execuo do contrato no processo de produo. V.: MARX, K. O capital. Vol I. So Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 145 (livro I, cap. IV). 8 Edelman nomeia esse movimento aparentemente paradoxal de decomposio mercantil do homem em sujeito/atributos, por meio do qual o sujeito pode, no pleno uso de sua liberdade (isto , sem comprometer a sua condio de sujeito), alienar os prprios atributos. V.: EDELMAN, B. O direito captado pela fotografia: elementos para uma teoria marxista do direito. Coimbra: Centelha, 1976.
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produo, condio de sujeito de direito decorre da sua reduo, na
sociedade burguesa, condio de mercadoria.
O escravo [diz Pachukanis] totalmente subordinado ao seu senhor e precisamente por esta razo que a relao de explorao no necessita de nenhuma elaborao jurdica particular. O trabalhador assalariado, ao contrrio, surge no mercado como livre vendedor de sua fora de trabalho e por isso que a relao de explorao capitalista se mediatiza sob a forma jurdica de contrato.9
Trabalhador assalariado e capitalista celebram um contrato apenas por
meio do pleno uso de suas liberdades: ambos so e se mantm, portanto,
sujeitos de direito plenamente livres e iguais. O trabalhador elevado
condio de sujeito de direito precisamente para que realize, de forma
plenamente voluntria, numa relao jurdica de igualdade e liberdade, a sua
prpria submisso ao capital, isto , a entrega voluntria de si prprio, das
suas prprias foras, explorao pelo capital.
, no fim das contas, a prpria dinmica do capital que exige a mediao
das figuras do direito, mediao que se interpe precisamente entre o
momento em que o capital aparece e o momento em que o capital no
aparece na circulao mercantil. Assim, toda a explorao e todo o domnio
de classe inerentes ao modo de produo capitalista so necessariamente
mediados pela igualdade e pela liberdade jurdicas. Toda a desigualdade
econmica e todo o despotismo do curtume em que se produz o mais-valor
so mediados por uma relao voluntria entre sujeitos de direito que
necessariamente antecede o consumo efetivo da fora de trabalho, uma
relao jurdica contratual que reproduz em sua plenitude as representaes
deste den jurdico que a circulao mercantil.
Pode-se compreender, nesse sentido, que a aproximao promovida
por Pachukanis entre as figuras do direito, sobretudo o sujeito de direito, e a
9 PACHUKANIS, E.B. A teoria geral do direito e o marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 82.
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circulao mercantil no negligencia a produo capitalista. Pelo contrrio, se a
equivalncia mercantil e a igualdade e liberdade jurdicas se colocam
plenamente na esfera da circulao, isto ocorre precisamente por
determinao da produo capitalista. Nesse sentido, como prope Mrcio
Bilharinho Naves, [] verdade que h, para Pachukanis, uma relao de
determinao imediata entre a forma jurdica e a forma da mercadoria, como
vimos, mas a determinao em Pachukanis , a rigor, uma
sobredeterminao.10 Mais precisamente:
O direito imediatamente determinado pelo processo de troca mercantil, mas, considerando que a esfera da circulao estruturada segundo as exigncias das relaes de produo capitalistas, o direito tambm experimenta essa mesma determinao, mas de modo mediado, em ltima instncia. Ou seja, a existncia da forma jurdica depende do surgimento de uma esfera de circulao que s o modo de produo capitalista pode constituir.11
O prprio Mrcio Bilharinho Naves fornece, em obra posterior, a chave
para a compreenso dessa determinao em ltima instncia ao fixar a gnese
da forma sujeito de direito na subsuno real do trabalho ao capital. , de fato,
com a subsuno real do trabalho ao capital que o trabalho abstrato se realiza
na prtica12 isto , configura-se na prtica como dispndio de uma energia
laborativa efetivamente indiferenciada, desprovida de qualquer contedo de
habilidade especfica , o que, por outro lado, significa que o trabalhador se
reduz na prtica a mero apndice da mquina, ou seja, inteiramente
espoliado de todas as condies objetivas e tambm das condies subjetivas
da produo. A realizao na prtica do trabalho abstrato implica, portanto,
uma realizao na prtica da abstrao constitutiva do sujeito de direito:
10 NAVES, M.B. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. So Paulo: Boitempo, 2000, p. 72. Note-se que a posio de Mrcio Bilharinho Naves conduz a uma refutao cabal da crtica circulacionista frequentemente dirigida contra Pachukanis. 11 Ibid., p. 76-77. 12 V., a esse respeito: LA GRASSA, G. Valore e formazione sociale. Roma: Riuniti, 1975.
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Podemos chamar a isso de uma equivalncia subjetiva real, justamente por ela se realizar concretamente, praticamente, inscrita materialmente na prtica de atos de troca que a capacidade volitiva autoriza ao homem realizar na condio de sujeito, ou seja, a igualdade se transforma em uma realidade objetiva, como observa Marx.13
Isto permite concluir, de modo radical, que s h direito em uma
relao de equivalncia na qual os homens esto reduzidos a uma mesma
unidade comum de medida em decorrncia de sua subordinao real ao
capital14 o que, por sua vez, significa que a subjetividade jurdica , em
sentido rigoroso, uma forma historicamente especfica. Apenas no interior do
modo de produo especificamente capitalista que esto dadas as suas
condies de existncia. Apenas no interior do modo de produo
especificamente capitalista a abstrao do sujeito de direito se impe com
fora objetiva aos homens, com um sentido preciso: a constituio de uma
subjetividade jurdica universal que permite uma submisso universal,
inteiramente voluntria e igualitria (do estreito ponto de vista do direito),
do trabalhador ao capital.
2. Ideologia jurdica e interpelao como sujeito
Em Por Marx, mais precisamente no texto sobre Marxismo e
humanismo, Althusser define esquematicamente a ideologia como um
sistema (que possui lgica e rigor prprios) de representaes (imagens, mitos,
ideias ou conceitos, conforme o caso) dotados de uma existncia e de um
papel histricos no interior de uma sociedade dada. Logo adiante, esclarece
13 NAVES, M.B. A questo do direito em Marx. So Paulo: Outras Expresses/Dobra, 2014, p. 68-69. 14 Ibid., p. 87. A radical concluso de Mrcio Bilharinho Naves inviabiliza por completo uma linha de leitura da teoria marxista do direito e tambm uma linha de crtica a essa teoria que se apoia numa suposta evoluo meramente quantitativa, linear, da forma sujeito de direito na histria.
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que a ideologia profundamente inconsciente e acrescenta que a ideologia
trata de uma relao de segundo grau:
Na ideologia, os homens exprimem, de fato, no suas relaes com suas condies de existncia, mas o modo como vivem sua relao com suas condies de existncia: o que supe, ao mesmo tempo, relao real e relao vivida, imaginria. [] Na ideologia, a relao real inevitavelmente investida pela relao imaginria [].15
Esse conceito de ideologia posteriormente desenvolvido e, em parte,
revisto por Althusser em textos como Ideologia e aparelhos ideolgicos de
Estado (1969), Resposta a John Lewis (1973), Elementos de autocrtica
(1974), entre outros num percurso certamente no isento de vacilaes e de
contradies (a respeito do qual no faria sentido, contudo, aprofundar-se
aqui). Assim, parece razovel, em vista dos limites aqui propostos para a
investigao e com o objetivo de simplificar a exposio, seguir o sumrio
preciso e claro das caractersticas centrais da teoria da ideologia de Althusser,
tal como apresentado por Francisco Sampedro:16
1) A ideologia possui uma dinmica inconsciente. (Althusser incorpora
ao materialismo histrico, para a compreenso do mecanismo da ideologia, a
descoberta do inconsciente por Freud, bem como os desenvolvimentos
propostos por Lacan.)
2) A ideologia possui uma funo matricial que responde
necessidade de representao da totalidade social por parte do sujeito. Tal
funo , no entanto, sobredeterminada nas sociedades de classes, de modo
que a ideologia passa a responder preponderantemente necessidade de
manter, com vistas reproduo das relaes de produo, o indivduo no
preciso lugar a ele determinado na/pela estrutura social.
3) A ideologia possui uma existncia material. No se trata, portanto, de um simples conjunto de ideias, mas, acima de tudo, de um conjunto de
15 ALTHUSSER, L. Pour Marx. Paris: La Dcouverte, 2005, p. 238-240. (Traduzi.) 16 SAMPEDRO, F. A teoria da ideologia de Althusser. In: NAVES, M.B. (org.). Presena de Althusser. Campinas: IFCH-Unicamp, 2010, p. 37 et seq.
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prticas inscritas materialmente no processo social. Mais ainda, a ideologia se materializa em instituies, os aparelhos ideolgicos de Estado (que atuam em conjunto com o aparelho repressivo de Estado na reproduo das relaes de produo).
As ideias [diz Althusser] desaparecem como tais (como dotadas de uma existncia ideal, espiritual), na exata medida em que fica claro que a sua existncia est inscrita nos atos das prticas reguladas pelos rituais definidos em ltima instncia por um aparelho ideolgico. Fica claro, ento, que o sujeito atua na medida em que atua sobre ele o seguinte sistema (enunciado na sua ordem de determinao real): ideologia existente num aparelho ideolgico material, que prescreve prticas materiais reguladas por um ritual material, prticas que existem em atos materiais de um sujeito que age em plena conscincia segundo a sua crena.17
Surge, assim, aquela que Althusser apresenta como a noo ideolgica
fundamental, a noo de sujeito. O sistema material da ideologia que atua
sobre o indivduo de modo a prescrever as prticas que o indivduo deve
desempenhar, as prticas correspondentes ao lugar designado para o
indivduo na reproduo da estrutura social, atua de modo a impor uma
evidncia primeira, a evidncia de que o indivduo sujeito (que todos os
indivduos se reconheam como os sujeitos de seus atos). E Althusser assim
conclui: a categoria sujeito constitutiva de toda ideologia, mas simultnea e
imediatamente acrescento que a categoria sujeito no constitutiva de toda a
ideologia seno na medida em que toda ideologia tem por funo (e isto o
que a define) constituir os indivduos concretos como sujeitos.18
O mecanismo preciso pelo qual a ideologia constitui os indivduos como
sujeitos nomeado por Althusser como interpelao e esse mecanismo a
prpria ideologia em seu funcionamento prtico. A ideologia, pode-se ento
afirmar, interpela os indivduos como sujeitos e existe materialmente (como
ideologia) precisamente no movimento dessa interpelao. Essa interpelao
que constitui indivduos como sujeitos , ao mesmo tempo, uma imposio da
17 ALTHUSSER, L. Idologie et appareils idologiques dtat. In: Positions. Paris: ditions Sociales, 1976, p. 109. (Traduzi.) 18 Ibid., p. 110. (Traduzi.)
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estrutura social sobre o indivduo, imposio que designa ao indivduo qual o
seu papel no processo social. A interpelao constitui sujeitos, portanto, em
duplo sentido, explicitando a ambiguidade j encerrada no prprio termo
sujeito: constitui o indivduo como sujeito de seus atos, como livre, capaz e
responsvel por seus atos, e, ao mesmo tempo, constitui o indivduo como
assujeitado, como submetido a uma estrutura social que se impe
independentemente de sua escolha. Trata-se daqueles sujeitos que andam
por si mesmos a que me referi na abertura deste escrito, dos sujeitos que
promovem livremente (no pleno exerccio de sua condio de sujeitos) o seu
prprio assujeitamento (as prticas fixadas pela ideologia). No h sujeitos
[diz Althusser, com muita clareza] seno para e pelo seu assujeitamento. por
isso que eles andam sozinhos.19
Tendo isso em vista, pode-se acrescentar que esse sujeito livre promotor
de seu assujeitamento , antes de tudo, um sujeito de direito. Como nota
Sampedro, [a] categoria jurdica de sujeito constitui [para Althusser] a noo
ideolgica nuclear.20 A interpelao ideolgica tem por eixo fundamental uma
forma determinada de subjetividade, a subjetividade jurdica.
digno de nota, porm, que o prprio Althusser vacila, ao longo do
percurso de construo de sua teoria da ideologia, no que diz respeito
concepo do preciso papel do sujeito de direito. Isto tem consequncias
sobretudo no que tange historicidade da ideologia, em vista de uma
compreenso aparentemente parcial da historicidade da prpria forma
sujeito.21 Uma anlise mais detida de tais vacilaes, com todo o seu itinerrio
19 Ibid., p. 121. (Traduzi.) 20 SAMPEDRO, F. A teoria da ideologia de Althusser. In: NAVES, M.B. (org.). Presena de Althusser. Campinas: IFCH-Unicamp, 2010, p. 50. Ainda nesse sentido, v.: THVENIN, N.-. Ideologia jurdica e ideologia burguesa (ideologia e prticas artsticas). In: NAVES, M.B. (org.). Presena de Althusser. Campinas: IFCH-Unicamp, 2010. EDELMAN, B. O direito captado pela fotografia: elementos para uma teoria marxista do direito. Coimbra: Centelha, 1976, p. 129 et seq. NAVES, M.B. A questo do direito em Marx. So Paulo: Outras Expresses/Dobra, 2014, p. 89 et seq. 21 Remeto, a respeito das mencionadas vacilaes de Althusser quanto subjetividade jurdica, s referncias j indicadas na nota n 2 acima. No que diz respeito s consequncias apontadas, de se notar que a especificidade histrica do sujeito de direito impede a proposta de uma interpelao ideolgica transistrica, inerente a qualquer forma de sociedade. Pode-se falar propriamente numa interpelao como sujeito (de direito) no interior da sociedade capitalista,
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de avanos e retrocessos, fugiria, contudo, ao objeto de anlise aqui proposto.
Basta, por ora, ter em conta que as indicaes j contidas em Althusser, ainda
que o prprio Althusser no as tenha teorizado suficientemente, que
franqueiam acesso a uma compreenso da subjetividade jurdica como eixo
fundamental, na sociedade capitalista, da interpelao ideolgica.
Posso responder ento [prope, nesse sentido, Edelman] questo aberta por Althusser: se verdade que toda ideologia interpela os indivduos como sujeitos, o contedo concreto/ideolgico da interpelao burguesa o seguinte: o indivduo interpelado como encarnao das determinaes do valor de troca. E posso acrescentar que o sujeito de direito constitui a forma privilegiada dessa interpelao, na exata medida em que o direito assegura e assume a eficcia da circulao.22
Isto significa que a subjetividade jurdica constitutiva do mecanismo da
ideologia, determinante daquela subjetividade constituda pela interpelao
no interior da sociedade burguesa. Como consequncia, a ideologia jurdica
deve ser compreendida no apenas como mais uma dentre as vrias ideologias
mas no se pode supor, conforme proposto na seo I deste escrito, que esse mesmo mecanismo opere em sociedades pr ou ps-capitalistas. Em semelhante sentido, Nicole-dith Thvenin: Ora, se a ideologia no tem histria, na medida em que ideologia (efeito necessrio de iluso de um modo de produo), a categoria sujeito tem histria. Ela no existiu sempre enquanto tal. Ela nasce com a produo mercantil, e s se torna dominante, isto , ela s intervm como interpelao ideolgica privilegiada, com a produo capitalista, isto , com o nascimento e a reproduo do trabalhador livre. Se, portanto, estamos de acordo com a anlise althusseriana do funcionamento da ideologia, e de sua interpelao, o contedo histrico dessa interpelao precisa ser definido a cada vez. THVENIN, N.-. Ideologia jurdica e ideologia burguesa (ideologia e prticas artsticas). In: NAVES, M.B. (org.). Presena de Althusser. Campinas: IFCH-Unicamp, 2010, p. 71. Por outro lado, necessrio considerar a crtica de Donald Martel, dirigida a Edelman, segundo a qual no se pode negligenciar a distino entre ideologia regional (histrica) e ideologia em geral (sem histria), restando a categoria sujeito ligada, segundo o prprio Althusser, a esta ltima: [] o prprio Althusser mostra que, se a designao do indivduo como sujeito histrica (no mesmo sentido empregado por Edelman), tambm verdade que a categoria sujeito pode funcionar sob outras denominaes. Por isso, impossvel atribuir uma origem histrica ao sujeito. MARTEL, D. Lanthropologie dAlthusser. Ottawa: ditions de LUniversit dOttawa, 1984, p. 129. (Traduzi.) Em vista disso, importa destacar que as consideraes tecidas ao longo do presente texto dizem respeito ao funcionamento da ideologia jurdica como ideologia regional dominante da ideologia burguesa, ou seja, como forma historicamente especfica de ideologia. A questo relativa transistoricidade da ideologia em geral e sua relao com um sujeito (em geral) tambm supostamente transistrico exigiria desdobramentos crticos maiores que no poderiam ser desenvolvidos adequadamente nesse espao. 22 EDELMAN, B. O direito captado pela fotografia: elementos para uma teoria marxista do direito. Coimbra: Centelha, 1976, p. 135-136.
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regionais que compem a ideologia burguesa, mas como a ideologia regional
dominante, isto , como aquele setor da ideologia a partir do qual todo o
complexo da ideologia burguesa se estrutura.
Com efeito, a constituio de uma subjetividade pelo movimento da
interpelao tem, como se viu, o preciso sentido de estabelecer sujeitos livres
promotores de seu assujeitamento, isto , sujeitos que realizam
autonomamente, de maneira voluntria, as prticas correspondentes s
posies que objetivamente lhes so impostas pela estrutura social. Esse
recrutamento dos indivduos como sujeitos, como prope Sampedro:
[] se faz tambm sob o disfarce da autonomia, de maneira que o sujeito no percebe como imposta a funo-suporte. O sujeito, segundo Althusser, unicamente livre para submeter-se livremente ocupao do posto e do lugar que a diviso tcnico-social do trabalho (mscara da diviso em classes) lhe atribui na produo, assegurando o mecanismo de reproduo das relaes de produo.23
, portanto, uma imposio da estrutura social que constitui os
indivduos como sujeitos e isto precisamente para que os indivduos, como
sujeitos livres, realizem autonomamente o papel a eles atribudo tambm
por uma imposio da estrutura social. Essa autonomia constituda no sujeito
para o seu assujeitamento essencialmente uma autonomia jurdica. A
sociedade capitalista constitui, de fato, os indivduos como sujeitos de direito
como sujeitos reciprocamente iguais e livres, capazes de realizar os atos
voluntrios da troca de mercadorias, sobretudo o ato voluntrio de disposio
da prpria fora de trabalho e isto, em ltima instncia, precisamente para
que os indivduos, no pelo exerccio de sua igualdade e liberdade jurdicas,
realizem voluntariamente esse papel essencial: a sua submisso, pela
mediao de um ato jurdico contratual, ao capital.24
23 SAMPEDRO, F. A teoria da ideologia de Althusser. In: NAVES, M.B. (org.). Presena de Althusser. Campinas: IFCH-Unicamp, 2010, p. 52. 24 O prprio Pachukanis antev, de certa maneira, essa inverso da ideologia jurdica pela qual o indivduo constitudo como sujeito de direito por uma imposio da sociedade capitalista e, ao mesmo tempo, presenteado com autonomia da vontade para promover livremente a sua
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a forma sujeito de direito [afirma Mrcio Bilharinho Naves] que constitui o fundamental da ideologia, dessa representao da relao imaginria dos indivduos com as suas condies reais de existncia. Segundo a interpretao de Althusser, por meio do mecanismo da interpelao, os indivduos so constitudos enquanto sujeitos, ganham uma identidade, a de sujeitos-proprietrios dotados de capacidade jurdica para a prtica de atos de troca mercantil. Essa identidade jurdica que a interpelao ideolgica fornece vivenciada pelos indivduos como o exerccio da liberdade e da igualdade, elementos comuns a todos os outros sujeitos, o que ajuda a reforar continuamente a autoevidncia de sua condio subjetiva.25
A forma sujeito de direito historicamente determinada, como se viu
acima: a sua constituio se d, em ltima instncia, com a subsuno real do
trabalho ao capital, na qual se estabelecem as condies para a realizao de
uma equivalncia subjetiva real. O portador da fora de trabalho, liberto dos
meios de produo e livre proprietrio de si mesmo, pode ento aparecer
como fornecedor de uma capacidade de trabalho efetivamente indiferente
trabalho abstrato realizado na prtica , como sujeito de direito plenamente
capaz dos atos jurdicos caractersticos da esfera da circulao, como sujeito de
direito equivalente perante outros sujeitos de direito. A realizao na prtica
da abstrao constitutiva da subjetividade jurdica se d, portanto, por
determinao de uma imposio objetiva do modo de produo
especificamente capitalista, com a submisso cabal do trabalhador ao sistema
de mquinas. Essa imposio constitui, ao mesmo tempo, o trabalhador como
sujeito capaz de promover, por si mesmo, a sua submisso ao capital: como
sujeito de direito que celebra um contrato e que, assim, cede to somente por
submisso. o que se pode depreender, por exemplo, da seguinte passagem: Aps ter cado em uma dependncia do escravo face s relaes econmicas que nascem sua frente sob a forma da lei do valor, o sujeito econmico recebe, por assim dizer, em compensao, agora, enquanto sujeito jurdico, um presente singular: uma vontade juridicamente presumida que o torna totalmente livre e igual entre os proprietrios de mercadorias. PACHUKANIS, E.B. A teoria geral do direito e o marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 86-87. 25 NAVES, M.B. A questo do direito em Marx. So Paulo: Outras Expresses/Dobra, 2014, p. 89-90.
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livre e espontnea vontade, em troca do equivalente a ttulo de salrio, o uso
por tempo determinado de sua fora de trabalho.
A subjetividade jurdica assim determinada que constitui a evidncia
primeira, a evidncia do sujeito, a partir da qual opera a interpelao. a
subjetividade jurdica, antes de tudo, que constitui o indivduo como livre,
capaz, responsvel para o seu prprio assujeitamento , portanto, a
partir da forma sujeito de direito que a interpelao recruta os indivduos
como sujeitos e lhes impe, na iluso (jurdica) da liberdade, o seu lugar no
processo social. certo ento [prope Thvenin, na leitura de Althusser] que
a forma-sujeito [] s pode ser compreendida sob a Forma sujeito de
direito. Desse modo, todos os sujeitos em ao nas ideologias da ideologia
dominante so apenas formas diversas de um mesmo sujeito, o sujeito
jurdico.26
Essa evidncia primeira engendrada a partir da subjetividade jurdica
constitui, numa outra perspectiva, a representao de um sujeito livre criador
de sua prpria histria, uma essncia original, irredutvel, constitutiva que se
estabeleceria como ponto de partida necessrio de toda teoria e de toda
filosofia. Da a ideia do homem como ponto de partida absoluto, perspectiva
dominante do pensamento burgus. Aqui a teoria da ideologia de Althusser se
encontra com a sua radical crtica do humanismo (que resulta, por exemplo, na
categoria althusseriana de processo sem sujeito) e o seu ponto exato de
interseco , no por acaso, a categoria sujeito de direito: todo o pensamento
que parte do homem ou de um sujeito como essncia, que se desenvolve a
partir da perspectiva do humanismo, s pode se desenvolver no interior da
ideologia burguesa.27 O sujeito no pode ser um ponto de partida
26 THVENIN, N.-. O itinerrio de Althusser. In: NAVES, M.B. (org.). Presena de Althusser. Campinas: IFCH-Unicamp, 2010, p. 26. 27 Foi com finalidades ideolgicas precisas que a filosofia burguesa tomou a noo jurdico-ideolgica de sujeito para fazer dela uma categoria filosfica, a sua categoria filosfica n 1, e para propor a questo do Sujeito do conhecimento (o ego cogito, o sujeito transcendental kantiano ou husserliano etc.), da moral etc., e do Sujeito da histria. Essa questo ilusria tem certamente um propsito, mas, em sua proposio e sua forma, ela no tem nenhum sentido para o materialismo dialtico. Este a rejeita pura e simplesmente, como rejeita (por exemplo) a
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precisamente porque no a causa primeira: necessrio compreender,
antes, a estrutura social que produz sujeitos, o mecanismo pelo qual os
sujeitos so produzidos compreende-se muito precisamente, por esse ponto
de vista, em que sentido o prprio Marx recusa o homem como ponto de
partida terico e se refere, em O capital, aos indivduos como meros
suportes (ou portadores) de relaes sociais.
Concluses
Os indivduos andam sozinhos, na sociedade burguesa, porque so
interpelados, antes de tudo, como sujeitos de direito. A subjetividade jurdica
, portanto, constitutiva daquela subjetividade para o assujeitamento que
caracteriza o movimento da interpelao: o indivduo , antes de tudo,
constitudo como sujeito de direito para que realize por conta prpria isto ,
por meio da autonomia inerente subjetividade jurdica , atravs da
circulao mercantil de si mesmo como mercadoria, a sua submisso ao
capital.
Assim, aquela representao da relao imaginria dos indivduos para
com suas condies reais de existncia que, segundo Althusser, define a
ideologia , na sociedade burguesa, uma representao essencialmente
jurdica, porque essencialmente a iluso, determinada objetivamente, de
uma autonomia para a prtica dos atos jurdicos que, em ltima instncia,
constituem a mediao necessria das relaes de produo capitalistas. Esse
carter constitutivo da subjetividade jurdica para a ideologia implica, por sua
vez, que a ideologia jurdica atua como ideologia regional dominante no
interior da sociedade capitalista.28
questo da existncia de Deus. ALTHUSSER, L. Rponse a John Lewis. Paris: Maspero, 1973, p. 93-84. (Traduzi.) 28 A ideologia jurdica ocupa, portanto, o lugar ocupado anteriormente, na sociedade feudal, pela ideologia religiosa. Essa a concluso expressa j em: ENGELS, F.; KAUTSKY, K. O socialismo jurdico. So Paulo: Boitempo, 2012. Ainda nesse sentido: Se a ideologia religiosa assegurou a reproduo das relaes de produo feudais, o direito que, hoje, tendo conquistado pouco a
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O resultado prtico da atuao da ideologia jurdica como ideologia
regional dominante a fixao das condies tpicas do terreno privilegiado
sobre o qual se movimentam os sujeitos de direito, o terreno da circulao
mercantil, como evidncias que os indivduos apenas reconhecem, como
condies naturais, como realidade final, definitiva da sociedade burguesa.
Ao apresentar a relao de capital apenas pela sua mediao, isto , pela
relao jurdica entre sujeitos de direito por meio da qual se d a compra e
venda da fora de trabalho, relao em que a equivalncia mercantil e a
igualdade e a liberdade jurdicas se realizam em sua plenitude, a ideologia
jurdica obstrui o acesso produo capitalista propriamente dita, como
relao cuja lgica profundamente diferente daquela da circulao e como
relao efetivamente determinante do papel social do indivduo que vende a
sua fora de trabalho.
Noutras palavras, ao tomar partido da circulao mercantil, ao fixar o
ponto de vista da circulao mercantil como ponto de vista caracterstico
do sujeito de direito , a ideologia jurdica esconde, sob a mscara do
voluntarismo e da equivalncia, aquele outro terreno em que se realiza a
explorao do trabalho, a desigualdade de classe entre o trabalhador e o
detentor dos meios de produo, a produo do mais-valor o terreno
oculto da produo. A representao imaginria aqui vivida pelo indivduo
a representao jurdica da relao real (de produo) a relao de
produo vivida como relao jurdica, o real investido pelo imaginrio
das figuras do direito, pelo imaginrio da subjetividade jurdica livre no
mbito da circulao mercantil.
A ideologia jurdica obstrui, nesse sentido, para o indivduo, ao interpel-
lo como sujeito de direito, a compreenso do seu preciso lugar na relao de
pouco todo o espao econmico/social/poltico, porque o Estado se apoderou de todas as esferas da produo e da reproduo, regula o inconsciente e o consciente da produo mercantil capitalista, ou melhor, o direito que, regulando o processo do capital, regula o consciente e o inconsciente dos sujeitos desse grande Sujeito: o Capital. THVENIN, N.-. Ideologia jurdica e ideologia burguesa (ideologia e prticas artsticas). In: NAVES, M.B. (org.). Presena de Althusser. Campinas: IFCH-Unicamp, 2010, p. 71.
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produo, a compreenso do seu papel na reproduo das relaes de
produo, a compreenso da sua funo na estrutura social correspondente
ao modo de produo capitalista. Ao indivduo como sujeito de direito resta,
ento, a autonomia da vontade como, de fato, um presente singular:
autonomia para vender a sua prpria fora de trabalho, para colocar-se
voluntariamente disposio do capital, para inserir-se livremente no interior
de um processo de produo do qual ele simplesmente no pode escapar. a
ideologia jurdica, portanto, que pe o indivduo para andar sozinho como
sujeito de direito para andar sozinho at o curtume, para realizar, na
iluso de sua liberdade, essa prtica to necessria ao modo de produo
capitalista: levar a prpria pele para o mercado.
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