sob o signo de capricÓrnio: a jornada do herÓi no...
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UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS
ADRIANO LUÍS FONSACA
SOB O SIGNO DE CAPRICÓRNIO: A JORNADA DO HERÓI NO
QUADRINHO CORTO MALTESE, DE HUGO PRATT
DISSERTAÇÃO
CURITIBA
2018
ADRIANO LUÍS FONSACA
SOB O SIGNO DE CAPRICÓRNIO: A JORNADA DO HERÓI NO
QUADRINHO CORTO MALTESE, DE HUGO PRATT
Dissertação apresentada como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre em
Estudos de Linguagens, pelo Programa de
Pós-Graduação em Letras: Estudos de
Linguagens (PPGEL) – na linha de pesquisa
Estéticas Contemporâneas, Modernidade e
Tecnologia, da Universidade Tecnológica
Federal do Paraná (UTFPR).
Orientador: Prof. Dr. Márcio Matiassi
Cantarin
Coorientadora: Profa. Dra. Juliana Sousa
CURITIBA
2018
AGRADECIMENTO
À minha noiva Claudia, sempre presente, companheira de todas as horas e
incentivadora de mais essa jornada em minha vida. Obrigado, minha amada.
À minha família por continuar me dando suporte na vida, inclusive num
momento tão decisivo.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Márcio Matiassi Cantarin, pelos ensinamentos,
pelo apoio à minha formação, pela dedicação e pela amizade.
À minha coorientadora, Profa. Dra. Juliana Sousa, por ter me auxiliado durante o
período de ausência do orientador.
Aos membros da banca, Profº. Dr. Marcelo Fernando de Lima e Profº. Dr. Hertz
Wendel de Camargo, pelas importantes contribuições para o aprimoramento desta
dissertação, bem como por seus auxílios.
Aos meus grandes amigos desde a infância ou adolescência – e fonte de
inspiração e admiração –, Luiz, Cristian, Carlos, Filippi, Filipi (sim, dois Filip-p-is em
minha vida), Bruno, Marcelo, Leonardo (citados em ordem cronológica de quando nos
conhecemos para não haver desentendimentos) e, é claro, meu irmão e sempre amigo
Cassiano.
Aos demais professores do mestrado, pela entrega com que lecionam e pelo
empenho em nos ajudar a trilhar o caminho do conhecimento.
Aos meus colegas de turma, pelo aprendizado em conjunto e por todo suporte.
Ulisses
O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo -
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.
(PESSOA, 1934)
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RESUMO
A presente pesquisa teve por objetivo principal compreender como uma narrativa moderna
apresenta o mito e seus arquétipos, além disso a maneira pela qual representa a jornada do
herói. Para executar a análise, utilizou-se a história em quadrinhos Corto Maltese: Sob o
Signo de Capricórnio, do cartunista italiano Hugo Pratt. Para chegar ao resultado, foi feito
inicialmente o questionamento: De que modo a jornada do herói marca sua presença e se
manifesta na linguagem da HQ Corto Maltese e como os mitos são revelados por meio do
olhar do autor, um estrangeiro à maioria das nações sobre as quais escreve? Após a
verificação da revisão bibliográfica de variados temas relacionados às narrativas e aos
quadrinhos, chegou-se ao caminho de análise que entrelaçou as teorias mais adequadas para
a proposta. A obra foi analisada por meio do mito do homem moderno, ou seja, como um
produto e um personagem criados sob o olhar de um estrangeiro às culturas das quais a
história trata. Não só a história de Corto atualiza os mitos, bem como satisfaz os anseios do
homem moderno que, afinal, é um viajante por natureza (em sentido figurado ou não). Por
fim, com o método de análise da jornada do herói proposto por Christopher Vogler, foi
identificado que esse aparente padrão arquetípico está também presente na referida obra, a
qual é um produto cultural do homem advindo da modernidade e suas tecnologias.
Palavras-chave: Corto Maltese, Hugo Pratt, Jornada do Herói.
8
ABSTRAC
This research aims to understand how a modern narrative exhibits the myth and its
archetype as well as how the hero‟s journey is represented. In order to fulfill this objective,
the comic Corto Maltese: Sob o Signo de Capricórnio, made by the Italian cartoonist Hugo
Pratt, was analyzed. As a methodology, the following question was proposed as guide: In
which way the hero‟s journey is presented and manifested in the language of HQ Corto
Maltese: Sob o Signo de Capricórnio and how the myths are revealed by the perspective of
author, an outsider in relation of the countries he wrote about? After the literature review
about some themes concerning narratives and comics, it was possible to formulate the paths
of analysis which connected the most appropriate theories for fulfill the goal of this
research. The comic book was analyzed by the perspective of the modern men‟s myth: as a
product and a character created by a man who was an outsider to the cultures he talks about.
Not only does the comic‟s history retell myths by a modern view, but also it satisfies the
aspiration of modern man who, after all, is a traveler by nature (figuratively speaking or
otherwise). Finally, using this method of analysis suggested by Christopher Vogler, it was
possible to identify that the hero‟s journey archetype is present in the Hugo Pratt‟s comic
book, a cultural product, made by men, which comes from modernity and its technology.
Keywords: Corto Maltese, Hugo Pratt, Hero‟s journey.
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LISTA DE IMAGENS
IMAGEM 1 – HUGO PRATT.............................................................................................. 11
IMAGEM 2 – FOTO DE HUGO PRATT.............................................................................12
IMAGEM 3 – HUGO PRATT...............................................................................................13
IMAGEM 4 – WILL EISNER...............................................................................................19
IMAGEM 5 – HUGO PRATT...............................................................................................20
IMAGEM 6 - HUGO PRATT ............................................................................................. 21
IMAGEM 7 – COLUNA TRAJANO....................................................................................23
IMAGEM 8 - ART SPIEGELMAN......................................................................................26
IMAGEM 9 - NOBUHIRO WATSUKI.............................................................................. .29
IMAGEM 10 - SCOTT MCCLOUD.................................................................................... 32
IMAGEM 11 - YOSHIHIRO TOGASHI............................................................................. 32
IMAGEM 12 - SCOTT MCCLOUD...............................................................................33-34
IMAGEM 13 - SCOTT MCCLOUD...............................................................................34-35
IMAGEM 14 – HUGO PRATT.....................................................................................……36
IMAGEM 15 – HUGO PRATT.............................................................................................44
IMAGEM 16 – MARVEL COMICS.....................................................................................48
IMAGEM 17 – HERGÉ........................................................................................................51
IMAGEM 18 – HUGO PRATT.............................................................................................52
IMAGEM 19 – RENATA FARHAT BORGES....................................................................54
IMAGEM 20 – HUGO PRATT............................................................................................ 56
IMAGEM 21 – HUGO PRATT.............................................................................................57
IMAGEM 22 – JOSEPH LÉON RIGHINI............................................................................58
IMAGEM 23 – HUGO PRATT.............................................................................................59
IMAGEM 24 - HUGO PRATT.............................................................................................59
IMAGEM 25 - ELLIPSE ANIMATION...............................................................................61
IMAGEM 26 – HUGO PRATT.............................................................................................64
IMAGEM 27 - HUGO PRATT.............................................................................................67
IMAGEM 28 - HUGO PRATT.............................................................................................78
IMAGEM 29 - HUGO PRATT.............................................................................................80
IMAGEM 30 - HUGO PRATT.............................................................................................81
IMAGEM 31 – HUGO PRATT.............................................................................................82
IMAGEM 32 - HUGO PRATT.............................................................................................84
IMAGEM 33 - HUGO PRATT.............................................................................................87
IMAGEM 34 - HUGO PRATT.............................................................................................87
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 11
1. SOB O SIGNO DOS QUADRINHOS: LINGUAGENS E TEORIAS .................. 18
1.1. Discurso narrativo e quadrinhos ...................................................................... 31
2. SOB O SIGNO DA ANÁLISE ............................................................................... 39
2.1. Viajantes e começo de um mito ....................................................................... 39
2.2. O formato que aventura um marinheiro ........................................................... 46
2.3. Análise Mitológica Simbólica ......................................................................... 62
2.4. A jornada do herói em Corto Maltese .............................................................. 78
3. FÓRMULA? UMA CONCLUSÃO ........................................................................ 92
REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 94
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INTRODUÇÃO
A presente pesquisa, desenvolvida entre 2016 e 2017 no âmbito do Programa de
Pós-Graduação em Estudos de Linguagens da Universidade Tecnológica Federal do
Paraná (UTFPR), teve por objetivo geral investigar a jornada mítica do herói presente
no volume Sob o Signo de Capricórnio (2006), da série de histórias em quadrinhos
Corto Maltese1 do cartunista italiano Hugo Pratt, com vistas a compreender como uma
narrativa moderna apresenta o mito e seus arquétipos.
Corto Maltese foi concebido e desenhado em 1967. A primeira história e
aparição do personagem foi na série Una Ballata del Mare salato ou A Balada do Mar
Salgado em português, impressa em 10 de Julho na Revista Sgt. Kirk. Essa edição
versa sobre contrabandistas e piratas nas Ilhas do Pacífico na época da Primeira Guerra
Mundial.
Imagem 1 – Capa da primeira edição de Corto
Maltese publicada em italiano.
Fonte: Hugo Pratt, 1967.
Corto Maltese é marinheiro da Marinha Mercante e, vez ou outra, intitula-se
como um Cavalheiro da Fortuna ou Cavalheiro de Sorte (depende da versão da
tradução). Ele é filho de um marujo da Royal Navy, originário da Cornualha, e de uma
1 Sempre que o termo “Corto Maltese” se referir à série como um todo, e não ao personagem em si, ele
será grafado em itálico.
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cigana natural de Sevilha. Nasceu em La Valletta, ilha de Malta, em 10 de Julho de
1887 e possui nacionalidade britânica. Segundo seu passaporte, vive em Antígua e
Barbuda, nas Antilhas, mas sua única residência conhecida nas histórias é em Hong
Kong.
Em suas aventuras cheias de referências históricas, Corto se encontra com
personagens reais, como o escritor Jack London, o piloto alemão Barão Vermelho, o
cangaceiro Corisco, dentre outros. Ele participa de diversas aventuras e conflitos em
variadas regiões do mundo, do oriente distante ao oriente próximo, da Europa às
Américas.
Muitas histórias do personagem se passam na América Latina e, sobre o Brasil,
Pratt escreveu a história Corto Maltese: Sob o Signo de Capricórnio, volume que
sucedeu A Balada do Mar Salgado. Nela, o personagem, que teria por volta de 26 e 30
anos de idade, aventura-se pela Bahia e nordeste brasileiros, onde também encontra
personagens reais, como o já citado Corisco de São Jorge (cujo nome verdadeiro era
Cristino Gomes da Silva Cleto, nascido em 1907, foi cangaceiro do grupo de Lampião e
morto em 1940 por soldados da volante), além de figuras fictícias baseadas em tipos
históricos. Macumbeiras, visões oníricas e figuras míticas, como Ogum Ferreiro e
Iemanjá, também estão presentes na narrativa.
Imagem 2 – Foto de Hugo Pratt (SOLO, 2010).
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Imagem 3 – Capa da edição brasileira e portuguesa de Sob o Signo de (do) Capricórnio.
Fonte: PRATT, 2006 e 1997.
Assim como seu personagem, Hugo Pratt também conheceu o mundo e teve uma
vida de aventuras. Nascido na cidade de Rímini, na Itália, passou a infância em Veneza.
Ainda jovem, foi morar na Etiópia com seus pais onde teve contato com diversas
culturas e línguas locais. Com um empregado da família, aprendeu a falar abissínio e
swahili, bem como se iniciou na cultura do país.
Em 1941, Pratt foi preso durante a repressão aos grupos que brigavam pela
independência da Etiópia por defender a emancipação do país e deportado à Itália; após
três anos, em Veneza, nova prisão, agora pela SS alemã, da qual posteriormente fugiu.
Então, uniu-se às tropas aliadas, assumindo o cargo de intérprete e organizador de
espetáculos para os soldados.
Após a Guerra, começou sua carreira como desenhista de HQs na revista Albo
Uragano, fazendo parte do Grupo de Veneza, composto também por Alberto Ongaro,
Bellavitis, Dino Battaglia, Fernando Carcupino, Ivo Pavone, Paolo Campani e Rinaldo
D‟Ami. Tendo como referência o desenho de Milton Caniff, do qual sempre foi um
grande admirador, produziu seus primeiros quadrinhos. Para a obra idealizada pelo
roteirista Alberto Ongaro, criou o conceito visual para o herói Asso di Picche, um
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jornalista que, à noite, combate o crime em Nova Iorque. Além disso, Pratt fez outros
pequenos trabalhos.
Com a maioria dos autores do Grupo de Veneza, em 1949 imigrou para a
Argentina, país no qual trabalhou por mais de uma década. Lá, fez uma frutífera
parceria com o roteirista Hértor Oesterheld, que culminou nos memoráveis Sargento
Kirk (1953), Ticonderoga (1957) e Ernie Pike (1957). Na Argentina, também produziu
suas primeiras obras solo: Ana de la Jungla (1959), El Capitán Cormorant (1962) e
Wheeling (1962).
Regressou à Itália, onde fundou a já mencionada revista Sgt. Kirk, na qual iria
surgir Corto Maltese. Isso após um breve período na Inglaterra onde criou histórias
sobre guerra para a Fleetway Publications (VERGUEIRO, 2003). No Brasil, ajudou
Enrique Lipszyc na criação da Escola Pan-americana de Arte. Possui uma filha de um
relacionamento com uma brasileira, aparentemente de uma índia xavante, e participou
de diversas palestras no grupo Abril (PRATT, 2006).
Após esse período, basicamente dedicou-se somente a Corto Maltese. No ano de
1970, Pratt mudou-se para a França onde produziu, por quatro anos, várias histórias de
20 páginas para a revista Pif gadget. Publicou também em outras revistas conceituadas,
como Linus, Europeo, A Suivre e Corto Maltese, posteriormente essas histórias foram
compiladas em álbuns luxuosos. Hugo Pratt seguiria com o herói até sua última
narrativa, Mu, a Cidade Perdida, publicada em 1989, seis anos antes de seu
falecimento.
Fora do universo de Corto Maltese, Pratt também produziu a história Os
Escorpiões do Deserto (1980). Inspirada em fatos reais, conta as desventuras de um
grupo da elite militar britânica liderada pelo polonês Koinsky, também fez grande
sucesso e possui em sua narrativa a atmosfera do onírico, tema querido por Pratt e
sempre presente em suas obras. Possui alguns trabalhos feitos em colaboração com o
também cartunista italiano Milo Manara, dentre eles The Ape, para a Heavy Metal
revista cult do início dos anos 1980, Verão Índio (1983) e El Gaucho (1992).
Sua carreira ficou mundialmente marcada justamente pelo personagem que
desenhou na maior parte de sua vida, Corto Maltese, que influenciou diversos artistas ao
redor do globo. Por essa influência, como homenagem, no quadrinho The Dark Knight
Returns, o artista Frank Miller criou uma ilha chamada Corto Maltese, a qual
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recentemente também apareceu no seriado Arrow, baseado no herói Arqueiro Verde da
DC Comics, do canal estadunidense The CW.
Assim como outras histórias em quadrinhos, Corto foi adaptado para animação,
esta produzida pelo estúdio Ellipse Animation (Doug Funnie, As Aventuras de Tintim,
Babar, dentre outros) em parceria com os canais televisivos franceses Canal + e France
2; também possui um jogo para computador, intitulado Corto Maltese - Secrets of
Venice.
Nas influências ficcionais de Pratt, figuram autores da literatura mundial, tais
como Joseph Conrad, Robert-Louis Stevenson, Hermann Hesse, Ernest Hemingway,
Jack London, Rudyard Kipling e André Malraux.
Com toda essa biografia, torna-se compreensível que estudar Hugo Pratt e seu
personagem é de vital importância para a academia, afinal “como escreve Umberto Eco
sobre Corto, o fato é que foi Hugo Pratt quem marcou a imaginação que trespassa as
fronteiras do espaço e da imaginação (LOUÇÃ, 2017).”
A ideia para essa pesquisa partiu de uma inquietação advinda da leitura do
quadrinho. Nele, nota-se que a narrativa se isola em um padrão arquetípico e que as
influências literárias do autor, bem como suas experiências de vida, refletem-se em sua
obra. Aqui, essa relação entre autor, viagens e sua obra já nos encaminha aos objetivos
específicos de uma análise.
Estudar quadrinhos no Programa em Estudos de Linguagens visa contribuir com
o leque do aprendizado dentro da estética e da linguagem nas narrativas ficcionais. Con-
firmamos também o aporte aos estudos literários, pois encontramos nos quadrinhos
“leitura” em um “sentido mais amplo que o comumente aplicado ao termo” (EISNER,
1989, p.7). A singular combinação da palavra e da imagem que “os modernos artistas
dos quadrinhos vêm desenvolvendo no seu ofício (EISNER, 1989, p.8)” fez com que
conseguissem durante o processo “uma hibridação bem-sucedida de ilustração e prosa
(EISNER, 1989, p.8)” o que nos leva a entender a importância de se estudar HQ de um
modo geral. Logo, pelos quadrinhos serem um produto derivado das artes, mas pautado
nas mídias de uma sociedade globalizada e de massas, outros pesquisadores de áreas,
como as da antropologia, artes, comunicação, mídia e sociologia, encontrarão, em seus
estudos, um amplo campo de possibilidades de interesse.
Mesmo que estejamos vivendo a era do streaming, dos seriados televisivos e das
webséries, a história em quadrinho mantém forte seu espaço na cultura midiática. Como
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um produto de consumo, seu tamanho no mercado tem crescido novamente. Hoje em
dia, alguns leitores adquirem HQs pelo meio digital, mas a participação desse segmento
ainda é tímida, e as vendas físicas superam em muito as digitais, além de estarem em
crescimento (OVANDO, 2017). Também é perceptível que existe o leitor veterano,
aquele que compra HQs desde o século XX continuando a consumir esse tipo de
literatura por ser um “público do próprio formato”, mas também temos o leitor jovem
que entrou em contato com as HQs por outros meios. Indiferentemente ao acesso, é
notável a força que os quadrinhos exercem na cultura atual ao lembrarmos
simplesmente que, há quase duas décadas, eles vêm ditando fortemente as regras nas
produções cinematográficas hollywoodianas.
No mercado estadunidense, as grandes editoras DC e Marvel mantêm o mono-
pólio das vendas dos quadrinhos e, em 2016 com cerca de nove milhões de HQs
vendidas, fez seu melhor número de vendas desde 2003. Todavia, ainda não consegue
bater o recorde histórico ocorrido em 1993, quando 48 milhões de HQs foram consumi-
das em abril daquele ano (HESSEL, 2016). Já o quadrinho independente, se olharmos
aqui para o Brasil como exemplo, também tem movimentado o mercado geek por meio
de feiras e eventos com seus variados estilos e formatos, as pessoas não têm mais
“medo” de consumir o estilo (CASARIN, 2015).
Corto Maltese se diferencia por se situar no universo do quadrinho europeu e por
ser de um período histórico anterior ao nosso. O mercado Europeu de HQ está entre os
três maiores junto com o dos Estados Unidos e Japão. No mercado franco-belga, a
realidade do formato, distribuição e periodicidade é diferenciada dos demais.
Geralmente lançados em álbuns de 50 páginas, cada edição europeia pode levar um ano
ou mais para ser produzida (COSTA NETO, 2016).
Sabemos que “um dos primeiros traços do procedimento científico é que ele não
exige a observação de todas instâncias de um fenômeno para descrevê-lo; ele procede
antes por dedução” (TODOROV, 2010, p.8), logo, com esse e todos os outros fatores
anunciados, chegamos então ao ponto de identificar o caminho metodológico a ser to-
mado a fim de lidarmos com os dados e propostas da pesquisa da melhor forma
possível. Para tanto, tendo em vista o objeto de estudo, o mais pertinente a ser
explorado é a análise de conteúdo. As proposições de Christopher Vogler (2006) foram
tomadas como aporte metodológico e, a partir delas, foi possível identificar a jornada
mítica do herói presente no objeto, além de cerca de 7 arquétipos básicos que estão
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presentes, segundo o autor, nas narrativas contemporâneas. Lembrando que essas
narrativas incluem a literatura, o cinema e o quadrinho, tais arquétipos se encontram
justamente entre esses estilos. Vale salientar que o cinema também é uma arte
sequencial2 ou sequência de planos, assim como a televisão. Esse método, somado à
revisão bibliográfica sobre o mito, arquétipo e símbolo, forma a metodologia.
Então, têm-se como problema central: De que modo a jornada do herói marca
sua presença e se manifesta na linguagem da HQ Corto Maltese?
Pensar como os mitos são manifestados por meio do olhar do cartunista italiano
Hugo Pratt, um estrangeiro à maioria das nações sobre as quais escreve, é outro
importante objeto de reflexão.
Para responder o principal questionamento, outras preguntas deverão ser
exploradas: Os 12 passos propostos por Vogler podem ser encontrados em Corto
Maltese: Sob o Signo de Capricórnio? Algum não está presente? Por quê? Qual a
função de cada arquétipo no quadrinho?
No capítulo 1, temos abordados os temas e as teorias que definem os caminhos
deste trabalho. Nele, são tratados temas pertinentes às narrativas, linguagens e histórias
em quadrinhos. Sobre HQs, são perpassados os temas técnicos e históricos do estilo,
bem como as narrativas com foco nos quadrinhos, no discurso narrativo, na hibridização
cultural dentre outros.
No capítulo 2, a análise do objeto em si é feita. Temos a análise de como Hugo
Pratt produz tecnicamente seus quadrinhos, seus padrões estilísticos, o que lhe
diferencia de outros autores e de onde advêm suas referências e inspirações. Também
encontramos a mitologia, literatura de viagem e arquétipos, assim como comentamos
sobre como essas teorias se entrelaçam em Corto Maltese através da jornada do herói.
Como resultado, verifica-se a presença dos arquétipos e da jornada do herói em
Corto Maltese: Sob o Signo de Capricórnio e, por fim, tecem-se considerações finais
sobre a descoberta.
2 Imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada destinadas a transmitir informações
e/ou a produzir uma resposta no espectador (MCCLOUD, 2005, p. 20).
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1. SOB O SIGNO DOS QUADRINHOS: LINGUAGENS E TEORIAS
A mistura especial entre imagens e escrita não é nova. Sua justaposição é
experimentada desde tempos antigos. No ocidente, a inclusão de enunciados nas
pinturas que retratavam pessoas, de modo geral, foi deixada de lado somente após o
século XVI. Artistas começaram a concentrar seus esforços em traduzir essas
proposições, que outrora eram na forma de escrita, por meio de expressões faciais,
posturas ou cenários simbólicos. Depois, no século XVIII, a escrita reaparece em
panfletos e publicações populares. Os artistas que se preocupavam em contar histórias
para o público de massa buscavam
criar uma Gestalt, uma linguagem coesa que servisse como veículo para a expressão
de uma complexidade de pensamentos, sons, ações e ideias numa disposição em
sequência, separadas por quadros. Isso ampliou as possibilidades da imagem
simples. No processo, desenvolveu-se a moderna forma artística que chamamos de
histórias em quadrinhos (EISNER, 1989, p.13).
Apesar de originar-se de um mesmo local, a HQ é lida com esses dois
dispositivos, imagens e palavras, o que, segundo Will Eisner, decerto são consideradas
em separado por mera arbitrariedade. Todavia, a separação “parece válida, já que no
moderno mundo da comunicação esses dispositivos são tratados separadamente”
(EISNER, 1989, p.13).
As escolhas das palavras capazes de comunicar o que o autor deseja são cruciais
para a criação da narrativa num quadrinho, pois elas aparecem em menores quantidades
na obra se compararmos com a literatura. McCloud, mesmo após afirmar que acredita
ser capaz de histórias em quadrinhos serem criadas sem palavras, deixa claro que
Na maioria das boas histórias em quadrinhos, esse equilíbrio (entre palavras e
imagens) é dinâmico. Por vezes, as palavras assumem a frente, outras vezes são as
imagens... mas ambas atuam juntas para impelir a história para a frente
(MCCLOUD, 2008, p.128).
William S. Burroughs tratava a escrita como tecnologia, se olharmos que
palavras são feitas de letras e que elas são símbolos derivados de imagens comuns
refinadas até o ponto de se tornarem simplificadas e abstratas, podemos identificar que
essa afirmação é válida. Para elucidar, Will Eisner diz, por exemplo, que, no
desenvolvimento histórico dos pictogramas japoneses ou chineses, temos a imagem
visual tornando-se secundária e atribuindo importância central à execução prática do
19
símbolo. Por meio desse desenvolvimento, a arte da caligrafia evoluiu para uma técnica
que, na sua individualidade, assoma beleza e ritmo (EISNER, 1989, p.14). Essa lógica
pode ser também notada nos quadrinhos, onde “o estilo e a aplicação sutil de peso,
ênfase e delineamento combinam-se para evocar beleza e mensagem (EISNER, 1989,
p.14)”.
A seguir, na Imagem 4, nota-se que seja pela escrita que virou abstração ou pelo
desenho ilustrativo, o significado se exprime por meio de um símbolo.
Imagem 4 – Comparação entre pictogramas e representações cartunescas.
Fonte: EISNER, p. 15, 1989.
Uma série de outras técnicas norteia a criação de um quadrinho, por exemplo, o
enquadramento que, como no cinema, delimita o ângulo de visão da cena que está sendo
apresentada, mas por diferença necessita congelar um momento específico. Isso para
que uma imagem combine com a próxima a fim de gerar, na mente do leitor, ações e
noção de tempo. Também díspar do cinema, nas HQs os autores precisam lidar com a
possibilidade, sempre presente, de a visão do leitor se desviar ou se adiantar ao
andamento da narrativa. Logo, a disposição da página precisa encaminhar a leitura da
forma mais fluída possível.
Eisner passa à noção técnica de requadro o recorte do quadro. Nele, o autor
delimita se a totalidade de uma imagem será apresentada ou só parte dela, o restante
será preenchido pela mente do leitor por meio de suas noções sensoriais. Como recurso
narrativo, o requadro ajuda a criar diversas sensações, como emoções explosivas, noção
de altura, ilusão de ameaça ou delimitação de espaços.
Funcionando como um palco, o quadrinho controla o ponto de vista do leitor, o
contorno do quadrinho torna-se o campo de visão do leitor e estabelece a perspectiva
a partir da qual o local da ação é visto. Essa manipulação permite ao artista
esclarecer a atividade, orientar o leitor e estimular a emoção.
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A “posição” do leitor é pressuposta ou predeterminada pelo artista. Em cada caso o
resultado é a visão que o leitor terá (EISNER, 1989, p.88).
Na imagem a seguir, vemos uma página de Corto Maltese, edição As Célticas.
Nela, identificamos somente quadros como contêiner, o layout mais básico oriundo das
tiras dos jornais onde as limitações de produção eram maiores. Apesar das variações do
tamanho dos quadrinhos, eles basicamente só delimitam a disposição das imagens e da
ação, ali não há requadros para auxiliar na expressão da narrativa. As imagens e o texto,
quando presentes, são os principais responsáveis pela narrativa. Enfim, podemos notar
também as escolhas estilísticas do autor.
Imagem 5 – Página diagramada com quadrinhos em forma de contêiner.
Fonte: PRATT, 1980, p.10.
21
Percebemos como todo o emaranhado de técnicas utilizadas para a confecção
dos quadrinhos traduz-se em seu estilo. A escolha dos quadros, requadros, tipo de
impressão e outros são os responsáveis pela criação o que perpassa pelo
“desenvolvimento inexorável da tecnologia das comunicações (servindo) para
universalizar imagens da experiência humana comum (EISNER, 1989, p.100)”.
Imagem 6 – Corto Maltese cita Arthur Rimbaud.
Fonte: PRATT, 1979b, p. 32.
Quando, na imagem acima, Corto Maltese cita o poeta Arthur Rimbaud,
podemos já imaginar a forte ligação que os quadrinhos têm com a literatura. Não
somente por causa da referência do autor, mas também por causa de todo texto escrito
em Corto Maltese e da sua linguagem visual, podemos encarar a HQ como um romance
que pede diversos “tipos de leitura” por parte leitor, a narrativa brinca com a
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imaginação e traz sérias reflexões sobre o humano e a vida, tendo aqui um valor
equivalente ao da literatura como expressão humana e artística.
Corto Maltese não está isolado em si, as HQs como um todo atraem cada vez
mais a atenção de críticos, conquistando prêmios outrora só ofertados para livros da
literatura canonizada e alcançando seu patamar como arte séria e de qualidade
intelectual e estética.
Se pensarmos na estética da arte como não dissociada da sociedade e suas
mudanças, mas sim embutida nelas, os quadrinhos também não estão afastados de
outras áreas do conhecimento humano, afinal eles se utilizam de vários elementos já
criados pelo intelecto humano. Quando Canclini nos lembra de que
As histórias em quadrinhos se tornaram a tal ponto um componente central da
cultura contemporânea, com uma bibliografia tão extensa, que seria trivial insistir no
que todos sabemos de sua aliança inovadora, desde o final do século XIX, entre a
cultura icônica e literária (CANCLINI, 2013, p. 339),
conseguimos notar a importância cultural das HQs e como elas estão inseridas na
cultura contemporânea.
Scott McCloud, assim como Eisner, lembra-nos de que essa “aliança inovadora”
do final do século XIX é uma criação mais remota e primordialmente híbrida do que se
imagina. Os profissionais da área costumam acreditar que a primeira HQ surgiu no final
do século XIX, na revista estadunidense Truth. The Yellow Kid, desenhada pelo artista
Richard Felton Outcault é, em alguma medida, considerada a inspiração para a criação
dos quadrinhos modernos, no entanto, como mostra McCloud, em Desvendando os
Quadrinhos, a técnica de sugerir movimento por meio de imagens estáticas é bem mais
antiga do que se pensa. Esse equívoco ocorre porque não houve um estudo aprofundado
do assunto até o momento, pois “a maioria dos livros sobre quadrinhos começa pouco
antes da virada do século” (MCCLOUD, 2005, p.8). Como o autor também demonstra
nas páginas dez a vinte de seu livro, a arte sequencial, forma artística que se utiliza de
imagens inseridas em sequência para narrar um enredo ou passar informações, já estava
presente em pinturas pré-colombianas, entalhes egípcios, tapeçaria francesa, arabescos
japoneses, dentre outros. Um dos exemplos mais conhecidos é a Coluna de Trajano,
monumento construído na cidade de Roma em comemoração às campanhas militares
em Dácios. Com cerca de trinta metros de altura e construída em blocos de mármore,
em forma de espiral, com figuras em baixo relevo, ela conta várias vezes a história da
23
tal guerra. Técnicas revolucionárias para a época foram utilizadas, como a separação de
cenas através da figura de uma árvore e a própria forma rudimentar dos quadrinhos,
logo uma arte sequencial.
Imagem 7 – Coluna de Trajano e detalhe.
24
Como nas histórias em quadrinhos a movimentação das figuras se dá por meio
de imagens sequenciais atuantes na imaginação do leitor que se combinam ao texto
escrito, geralmente em formato de balões ou caixas, vemos propriedades ditas de outras
áreas aglutinadas em uma única. Scott McCloud mostra a existência dessa aglutinação
de tipos artísticos que as HQs possuem ao pontuar que essa combinação precisa ser
adequada para a narrativa funcionar no formato. Ele diz ainda que quando palavras e
imagens se combinam sem emendas é que os quadrinhos encontram sua melhor forma
(MCCLOUD, 2008, p. 149). Essas emendas seriam rupturas ou falta da combinação
(hibridização) adequada que criariam o formato “correto” dos quadrinhos. Esclarecemos
aqui a necessidade de combinação de aparentes díspares formas artísticas a fim de
formar algo novo e coeso.
A diferença entre os quadrinhos e outras obras de arte que, em um primeiro
momento, pareçam similares está nas ferramentas e procedimentos de trabalho, mas os
objetivos desse formato diferenciado seriam os mesmos em quaisquer artes: conquistar
a mente do leitor (MCCLOUD, 2008, p. 151). McCloud defende que o público deve ser
conquistado, todavia obviamente algum quadrinista pode ter objetivos díspares para
com sua obra como criar “arte pela arte” ou outras acepções. Mesmo que feita para as
massas,
a cultura veiculada pela mídia não pode ser simplesmente rejeitada como um
instrumento banal da ideologia dominante, mas deve ser interpretada e
contextualizada de modos diferentes dentro da matriz dos discursos e das forças
sociais concorrentes que a constituem (KELLNER, 2001, p. 27).
Toda a reflexão sobre a cultura, mídia ou arte no geral não pode ser reduzida a
grupos seletos de produções humanas. Afinal, entender
o que é arte não é apenas uma questão estética: é necessário levar em conta como
essa questão vai sendo respondida na intersecção do que fazem os jornalistas e os
críticos, os historiadores e os museógrafos, os marchands, os colecionadores e os
especuladores (CANCLINI, 2013, p. 23).
Já o híbrido, segundo Néstor García Canclini, é “(...) processos socioculturais
nos quais estruturas práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam
para gerar novas estruturas, objetos e práticas.” (CANCLINI, 2013, p. XIX). Logo, a
HQ seria resultado de combinações que os processos socioculturais fizeram eclodir em
artistas nas suas formas de se expressarem além das hibridizações de estilos artísticos.
Afinal, “a incerteza em relação ao sentido e ao valor da modernidade deriva não apenas
25
do que separa nações, etnias e classes, mas também dos cruzamentos socioculturais em
que o tradicional e o moderno se misturam” (CANCLINI, 2013, p. 18).
Para Canclini, as HQs também seriam um gênero impuro. Apesar do tom
pejorativo que o autor parece utilizar com essa palavra, ele não deixa de ter razão
levando em conta o que sabemos sobre a hibridização e as mesclas estéticas que os gibis
fazem para chegar a seus objetivos. Ademais, Canclini é categórico ao afirmar que
existem gêneros constitucionalmente híbridos, como os quadrinhos (CANCLINI, 2013,
p. 336).
Todavia, se pensarmos a fundo, praticamente toda arte não seria impura e uma
mescla de várias expressões humanas? Os quadrinhos não seriam, então, a principal
forma de arte constituída em um período de criações culturais híbridas? Perguntas para
serem pensadas, mas devemos primeiro voltar para as pessoas das sociedades que
permeiam essas reflexões.
No nosso mundo globalizado, as culturas têm se entrelaçado de diversas formas.
Essa mescla de bens culturais e simbólicos tem trazido à tona diversas discussões sobre
o rumo de nossa cultura. Por sua vez, as respostas que as HQs trouxeram aos anseios da
sociedade a partir da modernidade, especialmente para jovens e grupos que precisavam
ser ouvidos, sobretudo a partir do século XX, podem ser percebidas como fenômeno de
mídia provindo da hibridização cultural, além de ser uma resposta para os anseios da
contracultura que buscava questionar os valores e práticas das culturas dominantes.
Sobre esse assunto, Douglas Kellner nos esclarece ao dizer que a cultura da mídia cria
alegorias que articulam os temores, anseios e esperanças de classes sociais e grupos
contemporâneos (KELLNER, 2001, p. 125). Assim, a fantasia e o entretenimento são
bons instrumentos para análise de estudos culturais.
É possível perceber como as histórias em quadrinhos foram fortemente
importantes na contracultura se lembrarmos de alguns exemplos que questionaram a
censura e inovaram não só artisticamente, mas também politicamente (CASSONI,
2016). Na década de 1950 e 1960, nos EUA, a revista MAD, criticava a censura imposta
pelo governo que, embasados pelo psiquiatra Fredric Wertham, propagavam que as HQs
deturpariam a mente dos jovens. Já Trashman, questionava a luta de classes ao
apresentar um futuro distópico em que a polícia fascista controlava rigidamente a
sociedade.
26
Já no romance gráfico Maus, o autor sueco Art Spiegelman narra os efeitos
geracionais que aconteceram em sua família por causa da luta que seu pai empreendeu
para sobreviver ao holocausto através de um formato fabuloso em que os oprimidos são
ratos e os opressores são gatos.
Imagem 8 – Quadro da primeira página da revista Maus.
Fonte: Art Spiegelman, 1980.
Sair de casa e se deslocar por um período de tempo até chegar à ópera, esta a
quilômetros de distância de sua casa, ou ir ao teatro itinerante na praça, este um pouco
mais próximo. Claro que você só poderia fazer isso caso não morasse milhares de
léguas de centros culturais ou espaços onde as expressões artísticas eram propagadas.
Quem sabe lhe sobrariam histórias contadas por bêbados nas tabernas locais ou por
anciões da vila na beira de uma fogueira como em um tempo remoto. Festas folclóricas
e religiosas também seriam opções. Todavia, esse cenário remonta a outra época da
humanidade.
27
Desde os anos de 1950, os principais meios de acesso a bens culturais e
simbólicos, além da escola, são os meios de comunicação de massas. Para Canclini, esse
fato é percebido especialmente na América Latina.
Ao mesmo tempo, a escola vê reduzir-se sua influência: primeiro a mídia de massas
e, recentemente, a comunicação digital e eletrônica multiplicaram os espaços e
circuitos de acesso aos saberes e à formação cultural. (...) Também se aprende a ler e
a ser espectador sendo telespectador e internauta (CANCLINI, 2008, p.24).
Por sua vez, Lucia Santaella, pesquisadora de semiótica e mídias
contemporâneas, encara como fenômeno globalizado o papel central que os meios de
comunicação começaram a ter nas sociedades contemporâneas. A multiplicidade das
mídias resultou no aumento do processo de misturas entre meios de comunicação, algo
que se tornou mais forte a partir dos anos de 1980. Para a autora, a raiz dessa
hibridização de linguagens já existia em suplementos literários ou culturais
especializados de revistas e jornais, em revistas de cultura e arte, no telejornal etc
(SANTAELLA, 2007, p.125). Já as sementes começaram a germinar no século XX
graças ao
surgimento de equipamentos e dispositivos que possibilitaram o aparecimento de
uma cultura do disponível e do transitório: as fotocopiadoras, o controle remoto, a
TV a cabo, os videocassetes e aparelhos para gravação de vídeos, os equipamentos
do tipo walkman e walktalk, acompanhados de uma remarcável indústria de
videoclips e videogames, juntamente com a expansiva indústria de filmes em vídeo
para serem alugados nas videolocadoras (SANTAELLA, 2007, p. 125).
Fica então perceptível como a mídia de massas foi fator determinante no mundo,
em particular a partir do século XX, para moldar culturas e responder a anseios de
grupos sociais ou indivíduos, um verdadeiro caldeirão cultural se formou a partir de
então. Após a massificação, o consumo das mensagens ficou mais personalizado. Para
Santaella, essa lógica cultural que chama de cultura das mídias permitiu ao público
escolher a mensagem que quer receber e não ficar somente incorporando o que é
propagado pelas massas (SANTAELLA, 2007, p. 125). As várias nuances de variações
culturais, que acabam por se apropriar de diferentes linguagens, é o que atualmente se
chama de hibridização cultural.
Santaella nos traz outra reflexão para a questão de hibridização ao refletir sobre
o tema que
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Não deve haver adjetivo mais fartamente utilizado na cultura contemporânea do que
“híbrido”. De fato, não poderia haver melhor qualificação do que “híbridas” para as
misturas entre as mídias, sob o nome de “multimídia”, e para as misturas entre
sistemas de signos diversos e linguagens distintas, configuradas em estruturas
hipertextuais, sob o nome de “hipermídia” (SANTAELLA, 2007, p. 132).
Levando em consideração que a miscelânea de temas e estilos artísticos seria a
considerada hibridização na contemporaneidade, então outras obras de arte ou culturas
que se uniram e criaram novidades, antes das culturas de massa e do frenesi advindo no
século XX, seriam algo a parte? De um ponto de vista geral, não. Todavia, da forma que
as culturas são propagadas e absorvidas por nichos ou tribos urbanas, pequenos grupos
de pessoas que se unem em prol de gostos em comum a fim de manter relações de
amizade e troca de experiências, como os punks, parece algo próprio dessa novidade na
história humana moderna que a sociedade de massas ainda é.
Aqui percebemos que o termo híbrido nos coloca novamente diante de dilemas:
Existiriam artes puras? O cinema e os quadrinhos, por exemplo, seriam meramente
produtos de uma mescla de cânones artísticos humanos? As respostas talvez não
existam, mas os quadrinhos sabem para que vieram.
Scott McCloud, já nos deixou claro que os quadrinhos vêm de uma concepção
antiga provinda da vontade de criar movimento e contar histórias por imagens
utilizando a arte sequencial (MCCLOUD, 2005, p. 12).
O momento híbrido pelo qual começamos a passar a partir do século XX foi o
ambiente perfeito para o desenvolvimento das HQs. Em paralelo com o cinema que
misturou imagens, sons e movimentos, os quadrinhos misturavam imagens sequenciais,
texto e cores. O objetivo final, basicamente, é o mesmo. Contar uma narrativa
visualmente objetiva que possa se utilizar de linguagem específica para trazer
experiências únicas aos expectadores que são diferentes das encontradas, por exemplo,
no teatro, justamente pelo leitor, no caso das HQs, possuir o domínio do tempo e espaço
em que a obra é propagada. Somente a mente do leitor pode decidir o ritmo que os
quadros e balões são lidos, bem como as lacunas de quadro a quadro são preenchidas
justamente pela imaginação de quem lê, assim como técnicas empregadas na confecção
da obra, como o enquadramento, servem para situar o leitor dos espaços em que ocorre
a narrativa (MCCLOUD, 2008, p.19). Todavia, é claro, em algum nível o ritmo da obra
é ditada pelo criador. Grandes quadros com desenhos detalhados podem suscitar a
necessidade de pausa para contemplação ou análise por parte do leitor, por exemplo.
29
Na imagem 9 abaixo, ilustração do quadrinista nipônico Nobuhiro Watsuki,
autor do famoso e premiado manga, Rurouni Kenshin, vemos como as imagens são
projeções objetivas do que o narrador quis mostrar, mas a ação ocorre na dinamicidade
da leitura. Vale salientar que nos mangas, HQs japonesas, a narrativa é lida da direita
para a esquerda, no eixo horizontal, e de cima para baixo no eixo vertical. Então, os
enquadramentos sugerem os espaços em que a ação acontece e os detalhes importantes
da situação apresentada. Já os espaços entre os quadros deixam de mostrar intervalos
entre uma ação e outra, que são preenchidas pela mente do leitor. Se lido em ritmo
diferente, por exemplo, a interpretação por parte do leitor pode ser outra mesmo que
parcialmente.
Já, narrativamente, vemos a história de um samurai que espera o golpe de seu
adversário enquanto fuma até, por fim, receber um golpe que corta seu cigarro e o faz
ter de acender outro. Essa cena é praticamente toda contada através dos desenhos, mas é
notável como o texto surge em sua forma verbal em onomatopeias para expressar
sentimentos do personagem. Torna-se claro que, como diz Almeida no artigo
Arquitetura da história em quadrinhos Vozes e linguagens, que “na HQ, a função
narrativa é exercida em grande parte através do desenho. Embora vez por outra o
discurso do narrador se apresente sob a forma verbal, ele é materializado
preferencialmente sob a forma icônica” (ALMEIDA, 2001, p.116).
Imagem 9 – Rurouni Kenshin: Tokuitsuban
Fonte: WATSUKI, 2016, p. 86 e 87.
30
Aqui, na cultura do século XXI, as HQs estão inseridas ainda mais dentro da
lógica da sociedade das mídias que é fortemente pautada pelas absorções de valores
culturais e ideológicos. Aparentemente um produto de entretenimento e consumo, os
quadrinhos foram, especialmente até os anos de 1990, mais uma arte de nichos e grupos
específicos. Apesar de os super-heróis americanos como Batman e Homem-Aranha
estarem dentro da lógica de mercado e venderem o suficiente para serem considerados
produtos de massas, até mesmo esses exemplos respondiam a anseios de um grupo
específico da população: os jovens. Se pensarmos no caso de histórias em quadrinhos
que buscavam ser resistência frente às culturas impostas ou serem objeto de crítica
social, aí veremos mais claramente como o nicho é fundamental para compreendermos
os grupos que se formam em torno dos quadrinhos. Obviamente, todas as produções
artísticas possuem públicos específicos, mesmo as que são massificadas, pois nada
abrange toda a diversidade cultural humana. Todavia, quando pensamos o segmento do
público em nichos, é notório como esses grupos estão dentro da lógica dos Sistemas
Midiáticos que
consistem em tecnologias comunicacionais e nas mais variadas práticas econômicas,
políticas, institucionais e culturais que crescem com eles. A emergência de um novo
sistema não desloca o que veio antes, mas adere como uma nova camada, tornando a
ecologia midiática ainda mais estratificada. Os autores reconhecem que, na lista
acima, falta a cultura visual. Mas sua história remonta já ao tempo da cultura oral;
tapeçarias e vitrais fizeram a ponte entre a cultura oral e a impressa; os quadrinhos
existem dentro da cultura impressa, mas também aparecem nos meios de massa, e
assim por diante. (SANTAELLA, 2007, p.122).
O quadrinho seria então uma nova camada que aderiu a cultura e a emergência
do sistema atual. Um possível reflexo dessas incertezas da modernidade que trouxe
anseios de criar e consumir um tipo de produção artística mais dinâmica e facilmente
reproduzível.
Nesses meios de consumo de entretenimento ou artes massificadas é onde
encontramos, hoje, os quadrinhos. Todavia, galerias alternativas e suburbanas também
consomem independentemente certas HQs como arte popular. Um produto? Arte
popular? Cânone artístico? Chegamos ao ponto de crer que os quadrinhos são tudo isso.
31
1.1. Discurso narrativo e quadrinhos
Para entendermos os quadrinhos, a análise das narrativas de uma forma geral
também se faz obviamente necessária. Para verificarmos o que caracteriza uma narrativa
Roland Barthes nos traz uma perspectiva acerca do que seriam narrativas ao dizer que
Inumeráveis são as narrativas do mundo. Há em primeiro lugar uma variedade
prodigiosa de gêneros, distribuídos entre substâncias diferentes, como se toda
matéria fosse boa para que o homem lhe confiasse suas narrativas: a narrativa pode
ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, fixa ou
móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas estas substâncias; está presente
no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopeia, na história, na
tragédia, no drama, na comédia, na pantomima, na pintura (recorde-se a Santa
Úrsula de Carpaccio), no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait
divers, na conversação. Além disso, sob estas formas quase infinitas, a narrativa está
presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a
narrativa começa com a própria história da humanidade; não há, não há em parte
alguma povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm
suas narrativas, e frequentemente estas narrativas são apreciadas em comum por
homens de cultura diferente, e mesmo oposta: a narrativa ridiculariza a boa e a má
literatura: internacional, trans-histórica, transcultural, a narrativa está aí, como a
vida. (BARTHES, 1973, p. 19)
Também segundo Barthes, para analisarmos uma narrativa precisamos antes
dividi-la por funções. Essas unidades mínimas existem em todos os segmentos das
histórias. Isso foi posto desde os formalistas russos. Ele também esclarece que “a função
é evidentemente, do ponto de vista linguístico, uma unidade de conteúdo: é „o que quer
dizer‟ um enunciado que o constituiu como unidade funcional não a maneira pela qual
isto é dito” (BARTHES, 1973, p. 29). Vale salientar que as funções de Barthes têm por
origem as funções propostas por Vladimir Propp para os contos maravilhosos.
Como Barthes nos mostra que as histórias em quadrinhos englobam o todo que
são as narrativas, podemos refletir sobre as funções com foco na análise desta
dissertação. As funções distribucionais, relacionadas à Propp, seguem um modelo
clássico no qual a unidade básica de uma ação, como comprar uma pá, terá um correlato
direto da ação que isso poderá desencadear, no caso, o uso dessa pá. Scott McCloud, ao
analisar a narrativa nos quadrinhos, também traz à tona como uma unidade básica de
ação pode gerar outra diretamente ligada à anterior e basicamente o desfecho óbvio do
que o ponto de partida sugeriu. McCloud chama isso, nos quadrinhos, de transições
ação a ação.
32
Imagem 10 – Desenhando Quadrinhos.
Fonte: MCCLOUD, 2008, p. 18.
Posteriormente, as funções integrativas compreendem os índices no sentido mais
geral do termo, pelas palavras de Barthes (1973, p.31). Ainda segundo o autor, neste
caso a unidade não é um ato de consequência, mas algo mais impreciso, importante ao
sentido da história. Aqui, não necessariamente a consequência direta a uma situação
será a que realmente ocorrerá. O acontecimento está mais relacionado à tipologia geral
dos agentes atuantes da ação, significa algo além do obviamente posto.
Imagem 11 – Yu Yu Hakusho.
Fonte: TOGASHI,2003, p.64 a 66.
Na Imagem 11 que possui leitura da direita para a esquerda, podemos notar
como, na primeira página, temos uma função distribucional, já que um soco leva ao
33
arremesso da criatura que levou o golpe. Na sequência, a função se torna integrativa,
pois vemos o aparente óbvio “desequilibrou-se da plataforma e caiu na lava”, mas na
verdade o personagem Kuwabara consegue se salvar, pois ficou pendurado por sua
atadura. Ali temos a tipologia do personagem concretizada, pois se sabe de antemão
nesta história que Kuwabara é desastrado, mas tem muita sorte.
Para entendermos como estas unidades diferentes se articulam umas às outras ao
longo do sintagma narrativo de um quadrinho e como sua sintaxe funcional se encadeia,
podemos pensar na sequência que é nucleada em uma série lógica unida em uma
“relação de solidariedade: a sequência abre-se assim que um dos seus termos não tenha
antecedente solidário e se fecha logo que um de seus termos não tenha mais
consequente” (BARTHES, 1973, p.39). A sequência de acontecimentos, em um
exemplo simples, é algo que vai desde uma pessoa acordar, tomar banho, vestir-se,
tomar café e sair de casa. Nos quadrinhos, essa sequência pode ser algo direto e
correlato como no exemplo que foi dado, ou podemos encontrar alguma outra forma de
sequencialidade mais complexa. Todavia, sempre haverá uma ordem de fatores que se
seguem, mesmo que aparentemente caóticos. Ao demonstrar as transições que quadro a
quadro podem ter em uma história em quadrinhos, McCloud deixa claro como um
possível caos ou desordem pode gerar sentido dentro de sua proposta de linguagem:
34
Imagem 12 – Desenhando Quadrinhos.
Fonte: MCCLOUD, 2008, p. 15.3
Sobre ações nos quadrinhos, por meio de Barthes podemos pensar a personagem
não como um ser, mas como uma participante. Ela é uma agente de uma sequência de
ações, ou seja, uma semente de dente-de-leão que voa por toda uma cidade até repousar
em um riacho, seria uma personagem atuante em uma narrativa. Em outro exemplo,
McCloud mostra como nos quadrinhos elementos são utilizados, no caso, podemos ver
como a chuva seria a protagonista da seguinte sequência:
3 No intuito de fazer a imagem original caber na página sem deixar espaços em brancos, ela foi cortada,
ficando, assim, um pedaço dela em uma página e outro em outra.
35
Imagem 13 – Desenhando Quadrinhos.
Fonte: MCCLOUD, 2008, p. 17.4
Já o problema do sujeito, para Barthes, não é algo muito bem resolvido segundo
o próprio autor. Uma série de análises e autores que ele cita, bem como a teoria da
psicanálise parece não darem conta de definir como um sujeito seria classificado através
de uma fórmula. Barthes mesmo diz que para ele “a verdadeira dificuldade ventilada
pela classificação dos personagens é o lugar (...) do sujeito em toda matriz actancial”
(BARTHES, 1973, p.45). Aqui, cabe salientar que os arquétipos junguianos se tornam
nossa resposta para uma busca pela classificação de tipos aparentemente específicos de
personagens em uma narrativa. Vide, por exemplo, em Corto Maltese: A Juventude
onde o personagem Rasputin age como a sombra do protagonista, o arquétipo “sombra”
é amplamente comum em narrativas. Todavia, Rasputin além de ser um facínora que
age pelos instintos mais violentos que possui o que representa a antítese de Corto,
também é companheiro de muitas viagens do marinheiro. Dessa forma, nas histórias de
Corto Maltese, é perceptível que a sombra do protagonista o acompanha e o provoca
4 No intuito de fazer a imagem original caber na página sem deixar espaços em brancos, ela foi cortada,
ficando, assim, um pedaço dela em uma página e outro em outra.
36
todo tempo, mas não é necessariamente um vilão a ser encarado e Corto convive com
isso.
Imagem 14 – Corto Maltese – A Juventude.
Fonte: PRATT, 2011, p.88.
Ainda em Análise Estrutural da Narrativa (1973), Barthes problematiza sobre a
questão da comunicação narrativa e a interação, básica até, que sabemos existir na troca
entre o interlocutor de um texto e o seu receptor. É interessante pensarmos em sua
afirmação que diz que os signos do narrador parecem ser mais óbvios e em maior
quantidade que os do leitor, mas na verdade o leitor só está mais disfarçado que o
narrador (BARTHES, 1973, p.47). A perda por parte do leitor está em ele acabar
ignorando um signo posto pelo autor durante sua interação com a obra. Podemos então
dialogar com Walter Benjamin que, em Magia e técnica, arte e política (1987), diz que
“a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os
narradores” (BENJAMIN, 1987, p.198). Posteriormente, ele defende também o papel da
narrativa escrita e que ela possui todo um escopo diferenciado da oral o que caracteriza,
por si só, uma interação e produção de sentido específica da qual, podemos crer, a
37
produção de sentido nos quadrinhos também possui. Nesse sentido, o que o leitor ignora
ou não em sua leitura caracteriza ponto-chave na comunicação narrativa. Cada pessoa
tem sua interpretação, e elas variam de pessoa para pessoa, por isso Barthes diz, ao
analisar o cinema, que “não é possível fazer com que a „massa‟ dos leitores e dos
espectadores compreendam uma narrativa.” (BARTHES, 1990, p.56).
Em definição, notamos que o nível narracional é “pois ocupado pelos signos da
narratividade, o conjunto dos operadores que reintegram funções e ações na
comunicação narrativa, articulada sobre seu doador e seu destinatário”. (BARTHES,
1973, p.51). É neste nível que encontramos o que pode ser lido ou não pelo apreciador
da obra.
Já o sistema da narrativa nos quadrinhos passa pelo texto, que precisa incluir
“„afastamentos‟ na sua língua (BARTHES, 1973, p.54)”. O texto e sua combinação são
vitais para a produção de sentido, mas nas HQs temos uma novidade; as imagens
produzem sentido juntamente com o texto ou até mesmo sem ele. Pensar a imagem
sozinha como linguagem poderia gerar polêmica, pois “uns pensam que a imagem é um
sistema muito rudimentar em relação à língua; outros, que a significação não pode
esgotar a riqueza indizível da imagem (BARTHES, 1990, p.27)”. Todavia, é necessário
lembrarmos também que
todas obras de comunicação de massa reúnem, por meio de dialéticas diversas e
diversamente performantes, a fascinação de uma natureza, que é a natureza da
narrativa, da diegese, do sintagma, e a inteligibilidade de uma cultura, refugiada em
alguns símbolos descontínuos, que os homens „declinam‟ sob a proteção da palavra
viva (BARTHES, 1990, p.42).
Nesse sentido, não só a articulação da língua seria imprescindível para o que o proposto
seja compreendido, mas também a leitura semiótica pictográfica, tanto por parte do
interlocutor como do receptor, se faz necessária. A integração dos elementos capazes de
gerar o sentido em uma narrativa não acontece tão facilmente e sua integração é uma
troca que envolve um jogo incessante de elementos e códigos. Logo, os afastamentos
nos quadrinhos acontecem tanto na linguagem verbal quanto na icônica ali presentes. O
que buscamos em uma narrativa é a paixão pela significação que exerça influência sobre
emoções, ameaças, triunfos e esperanças (BARTHES, 1973, p.60). Essa reflexão faz
novamente nos lembrar de Walter Benjamin, quando o autor comenta que a narrativa
possui um papel importante em nos contar histórias que surpreendam e nos enalteçam e
38
não somente sejam informações explicadas e divulgadas (BENJAMIN, 1987, p.203).
Nesse sentido, todos os autores parecem chegar a uma unanimidade sobre o significado
de narrativas para humanidade: a paixão pela significação e pelas histórias que
surpreendem e significam algo para nós.
Por fim, na tese da educadora Cristina Gonçalves, vemos em tópicos
(GONÇALVES, 2008, p.45) um consistente comparativo entre narrativas convencionais
e suas variações encontradas nas histórias em quadrinhos ou banda desenhada em
português de Portugal. A micro, macro e superestrutura do texto narrativo convencional
ou da história em quadrinhos possuem similaridades que dizem respeito a elementos
textuais que as compõem. Todavia, os textos nas HQs são isolados por causa dos
quadros e imagens os quais narram por meio da disposição de seus ângulos,
enquadramentos ou cores. O jogo entre texto e desenho traz a dinâmica do quadrinho,
diferenciando-o de outras narrativas ditas convencionais.
Conclui-se neste capítulo então que as reflexões de Barthes, bem como outras
que dizem respeito às narrativas de um modo geral, também podem ser encontradas nos
quadrinhos ao mesmo tempo em que necessitam dialogar com as teorias e necessidades
específicas dos quadrinhos.
39
2. SOB O SIGNO DA ANÁLISE
2.1. Viajantes e começo de um mito
Como já citado, Hugo Pratt teve uma vida de viajante singular, já que transitava
por lugares exóticos segundo o ponto de vista de um europeu nato. Esse contexto foi
algo extremamente impactante na vida do autor, talvez dissesse um psicólogo que o
analisasse. Tão impactante que suas experiências de viajante e até uma vontade por
novas aventuras foram temas amplamente trabalhados em sua obra. Talvez a forma
como os países são apresentados nas histórias de Corto Maltese não seja em si o que de
mais rico a narrativa possui, mas com certeza o contato de Corto com outras culturas e
civilizações faz parte crucial de suas aventuras. Aqui um mito pode estar se formando,
pois
O tema da viagem tem importância para o mito enquanto passagem ou mutação de
um estado a outro, como são, nos acima exemplificados, a viagem em busca da
imortalidade, a viagem de volta a Ítaca, a viagem a reinos ultraterrenos feito dessa
vez, diferentemente dos anteriormente citados, no estado de sonho que é território do
inconsciente, através de um lugar mítico, mais além: Inferno, Purgatório e Paraíso
(AFFATATO apud KLEIN & CAMARGO, 2017, p.130).
Viajar pode se tornar uma necessidade de vislumbre de nações e realidades
diferentes das quais somos oriundos. Esse é o tema abordado pelo autor Sérgio Cardoso
em seu texto O Olhar dos Viajantes. Ele também fala sobre o etnólogo que, dentro da
ciência, busca uma apreciação analítica e comparativa das culturas e das civilizações,
tendo assim capacidade para entender a dimensão da diversidade humana, o que lhe
permitiria caminhar por diversas sociedades e compreendê-las (CARDOSO apud
NOVAES, 1995, p.360). Hugo Pratt utilizou de suas experiências como uma espécie de
etnólogo amador, tendo consciência disso ou não, foi um observador das culturas e as
traduziu como artista na forma de seus quadrinhos. Esse olhar de etnólogo pode ser
encontrado em sua obra por começar pela temática.
Ademais, o filósofo Nelson Brissac Peixoto diz que esse olhar do estrangeiro,
seja ele provocado por experiências de alguém que não domina a cultura do local ao
qual se projetou ou não, será traduzido somente em uma linguagem do signo. Temos
uma generalização da imagem, arraigada no pensamento ocidental, que leva a essas
meras proliferações de imagens a serem tidas como real; a distinção entre fato e artifício
se torna difusa (PEIXOTO apud NOVAES, 1995, p.362). Em seu próprio texto, Peixoto
já se lembra de Walter Benjamin por este introduzir a problemática de um olhar que
40
possa ser correspondido, no sentido de alguém saber corresponder o que outrem pensa
ou vive. Se aí as dificuldades são imensas, elas só aumentam se pensarmos na tradução
de um olhar distanciado também por cultura e sociedade.
Ao refletir sobre o narrador, Benjamin já traduz como as experiências de
linguagem estão distantes, como “as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica
que continuarão caindo até que seu valor desapareça por todo” (BENJAMIN, 1987,
p.198). Essa troca tão cara a Benjamin, segundo ele, está se desmantelando cada vez
mais, desde o final da Primeira Guerra Mundial. Nesse ponto que o olhar ocidental cada
vez mais se contamina em níveis clichês e repetitivos, vale lembrar que o enredo de
Corto Maltese: Sob o Signo de Capricórnio se passa justamente durante esse período.
Essa reflexão leva a ter como signo, linguagem ou padrão a linguagem
inconsciente. Apesar de encontrarmos em várias facetas da sociedade atual as
inquietações e problemáticas acima abordadas, é notório como a sociedade atual busca
também preencher um vazio simbólico ou mitológico mesmo que por caminhos
tortuosos. Muitas situações humanas modernas que buscam preencher esse vazio estão,
sim, inseridas meramente em necessidades mesquinhas como vender produtos
massificados com o objetivo de acumular capital massivamente. Como acontece através
dos produtos de nosso tempo; narrativas criadas em publicidades, filmes
hollywoodianos que seguem padrões repetitivos e afins. Entretanto, muitas vezes, essa
tradução de expressões modernas que buscam preencher esse vazio mitológico dos
humanos pode estar criando novos épicos que simplesmente (ou até mesmo
naturalmente) estão inseridos na cultura atual no sentido de serem produtos do seu
tempo. Hertz Wendel de Camargo nos esclarece, ao falar de um sistema mítico formado
por narrativa, ritual, totem, tempo e magia, que
Esse conjunto, ou partes dele, se manifesta na mídia em diferentes suportes,
linguagens, gêneros, discursos, storytellings, narrativas. No entanto, verifica-se que
existe uma aderência “natural” entre mito e mídias essencialmente audiovisuais, tais
como o cinema e a televisão, características exploradas pela publicidade na
produção de filmes publicitários. (CAMARGO apud KLEIN & CAMARGO, 2017,
p. 264)
Lembrando como os quadrinhos foram utilizados pela contracultura e por grupos
que buscavam alternativas para o sistema social padrão, podemos notar que ainda
encontramos narrativas que significam algo para esses grupos da modernidade além de
somente servir ao sistema, como percebe Douglas Kellner em A Cultura da Mídia.
41
Essas obras dialogam e trazem significados com contornos mitológicos para
determinados nichos. Olhar para a fantasia de nosso tempo se torna importante, à
medida que
a descodificação dessas alegorias sociais possibilita um diagnóstico crítico, com boa
visão da situação de indivíduos pertencentes a várias classes e grupos sociais, como
a juventude. Assim, a fantasia e o entretenimento podem ser veículos de
diagnósticos seriíssimos de nossa época, coisas que os estudos culturais devem
analisar e interpretar (KELLNER, 2001, p. 164).
Os anseios do público e da juventude podem ser traduzidos a partir dos mitos
modernos. O que marca o ser humano pós-moderno, com raízes no moderno, é uma
vontade de liberdade enquanto a experiência de viver torna-se um jogo. Sobre isso,
Bauman diz que “a experiência de viver em tal mundo (...) é a experiência de um
jogador, e na experiência do jogador não há meio de se falar da necessidade de acidente
(BAUMAN, 1997, p. 112).” Mostra então que essa relação de jogo cria uma relação
dinâmica com a mesma intensidade, mas efêmera ao dizer que “manter o jogo curto
significa tomar cuidado com os compromissos a longo prazo (BAUMAN, 1997, p.
113).” Percebemos a relação com o pensamento de Kellner,
pois, que na cultura pós-moderna o sujeito se desintegrou num fluxo de euforia
intensa, fragmentada e desconexa, e que o eu pós-moderno descentrado já não sente
ansiedade (a histeria torna-se a típica doença psíquica pós-moderna) e já não possui
a profundidade, a substancialidade e a coerência que eram os ideais e às vezes a
realização do eu moderno (KELLNER, 2001, p. 298).
Lembrando-nos da contracultura, podemos refleti-la com o surgimento dos
quadrinhos como um movimento geral, global, que buscava contrapor o
conservadorismo paranoico dos anos de 1950. Nos EUA, um dos principais “problemas
sociais” refletidos giravam em torno da “delinquência juvenil” (CASSONI, 2016). A
sociedade queria frear o ímpeto jovem, logo, parar o espírito aventureiro das pessoas. Já
na Itália, país do autor de Corto Maltese, a partir dos anos 1960 até o final da década de
1980, o país passava por momentos turbulentos que os historiadores denominaram
como “anos de chumbo”. Nessa época, vários grupos paramilitares de direita e de
esquerda se enfrentavam em conflitos terroristas, e a tensão era generalizada.
Justamente nesse contexto global conservador e efusivo na Itália, Hugo Pratt cria Corto
Maltese. Nesse momento, o conceito de liberdade de indivíduo, liberdade interna, um
42
pensamento que norteava a contracultura (MACIEL, 2014, p.78) está claramente
incutido em Pratt e seu personagem notoriamente moderno.
Hugo Pratt recorreu a um movimento já contemporâneo e difundido em sua
época para dar vida às suas histórias. Movimento que possuía forte apelo intelectual na
Europa da época. Falar do quadrinho europeu pode ser uma tarefa um pouco difícil, pois
como Roberto Dias Costa Neto fala em artigo
Uma história abrangente ou em profundidade sobre os quadrinhos na Europa ainda
não foi escrita – ou pelo menos, ainda não foi traduzida para o inglês ou português.
Tal como está, aprender algo sobre a origem da arte e desenvolvimento é difícil. O
que sabemos é que as aventuras de Obadiah Oldbuck pelo cartunista suíço Rodolphe
Töpffer são, de acordo com Scott McCloud em Desvendando Quadrinhos, um dos
primeiros quadrinhos modernos e, como resultado, a história dos quadrinhos
encontra um ponto de apoio no continente europeu. Deve-se notar, no entanto, que
devido à dimensão do seu mercado, a cena de quadrinhos franco-belga domina a
história dos quadrinhos europeus, atraindo um número e calibre incríveis de
cartunistas. Este foco na França é especialmente prevalecente no discurso em língua
inglesa, uma vez que muita pouca história de cenas de quadrinhos em espanhol,
italiano ou alemão está disponível em outras línguas além de sua nativa (COSTA
NETO, 2016).
Apesar dessa dificuldade em se falar do quadrinho europeu, logo, mais
precisamente do contexto em que Hugo Pratt estava inserido, nota-se como Corto
Maltese, que inicialmente foi publicado na Itália, tem seu deslocamento para a França.
Isso traduz a forte produção e cultura quadrinista francesa. Afinal, até hoje, além do
grande mercado de HQs dos EUA e Japão, temos o franco-belga representando a
Europa como principal expoente (COSTA NETO, 2016).
Lembrando-se da história de vida de Hugo Pratt e de que ele escolheu as
histórias em quadrinhos para dar vida a Corto Maltese, torna-se curioso o fato de termos
textos e imagens juntas em um mesmo espaço, pois assim podemos comparar as HQs às
cadernetas que, antigamente, viajantes e marinheiros mantinham como diários onde
também desenhavam as coisas exóticas que avistavam durante suas viagens. Todo esse
contexto norteia o simbólico que ajudou Pratt a produzir sua obra.
Então, o simbólico nos quadrinhos que permeiam nosso mito moderno, pautado
numa suposta possibilidade de liberdade, é o que porventura marca a cultura desse
período. O próprio Corto Maltese pode ser percebido como um ser desse sistema. Ao
continuar suas reflexões, Bauman parece até definir o personagem que é Corto ao dizer
que “o horror e o fascínio, de igual modo, fazem a vida como peregrinação dificilmente
43
factível como uma estratégia e improvável de ser escolhida como tal. Não por muitos,
afinal de contas. E não com grande probabilidade de sucesso (BAUMAN, 1997,
p.113).” Corto, em suas histórias, é um ser liberto de amarras sociais e políticas, quer
viver por si só e, nesse ponto, parece conseguir o que quer e tem uma identidade sólida.
Todavia, sua vida não parece ter alcançado o sucesso merecido que a liberdade promete
como utopia o que acabaria por não responder aos anseios do marinheiro ao menos na
esfera pessoal. Continuando a “definir” Corto Maltese, Bauman diz que
a identidade durável e bem costurada já é uma vantagem; crescente, e de maneira
cada vez mais clara, ela se torna uma responsabilidade. O eixo da estratégia de vida
pós-moderna não é fazer a identidade deter-se – mas evitar que se fixe (BAUMAN,
1997, p.114).
Corto joga o jogo da mobilidade, ele é o turista do mundo onde “a duração da
estada em qualquer lugar mal chega a ser planejada com antecipação; tampouco o é o
próximo destino (BAUMAN, 1997, p.114)” ou ainda
as escalas são acampamentos, não domicílios. (...) Só as mais superficiais das raízes,
se tanto, são lançadas. (...) Acima de tudo, não há nenhum comprometimento do
futuro, nenhuma incursão em obrigações de longo prazo, nenhuma admissão de
alguma coisa que aconteça para se ligar com o amanhã (BAUMAN, 1997, p.115).
Tudo isso diz respeito da sensação, também atribuída ao turista segundo
Bauman, de se estar no controle de tudo, apesar de esse controle não ser nada mais que
meramente situação. Nesse ponto, Corto até consegue ser bem-sucedido em suas
empreitadas em alguns momentos, possui certo controle, mas depois tudo pode
desmoronar. É claro que Corto Maltese encarna mais o clichê do aventureiro romântico,
todavia, esses abalos que o homem pós-moderno sente em sua identidade parece estar
enraizado ali, num momento de turbulências onde homem moderno está em busca de
sua liberdade e de sua identidade.
O que está fora do lugar, da ordem vigente, é impuro para quem está
estabelecido em um local. Nesse ponto, o turista, estrangeiro ou outsider que está fora
de seu mundo comum, é visto como um “agente poluidor” ou ser que deve ser retirado
desse espaço ou não deveria estar ali (BAUMAN, 1997, p.14). Para confirmar, a
pesquisa de Norbert Elias mostra empiricamente como membros de uma determinada
44
comunidade justificam seu status elevado por acharem que “os grupos estabelecidos
veem seu poder superior como um sinal de valor humano mais elevado (ELIAS, 2000,
p.28)” onde a inferioridade de poder é também vista como uma inferioridade humana
(ELIAS, 2000, p.28). Não diferente da forma como Corto Maltese é tratado pelas
pessoas nos ambientes que visita. Muitas vezes ele precisa conquistar o respeito dos
indivíduos para ser levado a sério.
Imagem 15 – Corto, o europeu e Cush, o muçulmano.
Fonte: PRATT, 1979a, p. 46.
Em Corto Maltese: As Etiópicas, um muçulmano chamado Cush demora a ter
empatia com Corto, pois o marinheiro é um “infiel” segundo a religião mulçumana e
também um estrangeiro. Aqui, percebemos um paralelo entre uma pessoa pautada em
uma sociedade mais antiga e com identidade fixada versus o ser moderno de identidade
mais instável. Ao final do diálogo, nota-se como Cush, que tinha tendências ao
45
individualismo como Corto Maltese, finalmente cede um de seus dogmas; ele tomava
chá em várias situações do dia, mas Corto sempre insistia, para tirar sarro de seus
padrões, que o chá não deve ser tomado antes das cinco horas, como os ingleses fazem.
Ao mesmo tempo, Corto Maltese também cedeu, pois ele que pergunta se o chá não será
tomado naquele momento. Ambos estão aqui alinhados em uma identidade que se
mescla, pois
segundo a perspectiva pós-moderna, à medida que o ritmo, as dimensões e a
complexidade das sociedades modernas aumentam, a identidade vai se tornando
cada vez mais instável e frágil. Nessa situação, os discursos da pós-modernidade
problematizam a própria noção de identidade, afirmando que ela é um mito e uma
ilusão (KELLNER, 2001, p.298).
Encontramos nesse embate cultural entre Cush e Corto, seres humanos do início
do século XX no qual a questão da transformação da própria identidade se faz presente.
Ao mesmo tempo em que o estrangeiro enxerga com menos carga cultural o local ao
qual visita, ele tende a generalizar e não entender as nuances e diversidades culturais em
suas profundidades. Ainda neste exemplo, a absorção da cultura estrangeira que Corto
faz quando finalmente evoca uma tradição do muçulmano ao invés de ser sarcástico
com o mesmo, mostra como o estrangeiro pode chegar ao limite de não ser mais
meramente estrangeiro de uma terra distante, mas começa a absorver e entender um
pouco da cultura de fora como os residentes o fariam.
Outro lado dos estrangeiros, os turistas, que podem ser considerados também
vagabundos, afinal eles acabam por ser párias em uma sociedade no sentido de lhes
serem externos e nunca estarem totalmente alocados nem sequer minimamente, como
Corto fez no exemplo acima. Turistas e vagabundos são metáforas da vida
contemporânea e aparentemente opostos não distantes um do outro, Bauman nos
esclarece que “o vagabundo é o alter ego do turista – exatamente como o miserável é o
alter ego do rico, o selvagem o alter ego do civilizado, ou o estrangeiro o alter ego do
nativo. (...) O alter ego é o escuro e sinistro fundo contra o qual o eu purificado pode
brilhar (BAUMAN, 1997, p. 119).” Nesse momento podemos lembrar-nos do próprio
Hugo Pratt e de seu alter ego Corto Maltese. Bauman parece ter matado a charada e
demonstrado como a sociedade criou seres que, usando uma alegoria, encenam um
grande teatro no palco da vida. Onde a alternância de papéis se dá tanto na esfera do real
quanto do irreal, onde as pessoas incorporam seus papéis uns com os outros como
46
quando estão viajando, ou em manifestações criativas, onde materializam esses papéis
em uma obra de arte.
O individualismo moderno criou para si, afinal, mitos. Esse ser hedonista por
natureza, liberto para si próprio em uma grande jornada pelo mundo, é justamente do
que romances como Robinson Crusoé ou do que a psicologia moderna trata. O homem
está a explorar esse “novo mundo” com uma grande companhia, a si próprio. Não só um
romance ou um ser individual, esses personagens criam os heróis e mitos da atualidade
(WATT, 1997, p.13). Corto Maltese, nesse e em diversos outros níveis, não deixa de ser
um desses mitos e um grande herói.
O outsider pode encarnar o herói moderno que possui aversão à tecnologia, que
prega certa anarquia à máquina. Apesar de Corto Maltese não ser exatamente o homem
moderno que não entende ou ojeriza à máquina, sua busca romântica e bucólica por algo
que ele mesmo parece não saber, traz por si só uma negação à vida e aos modos
modernos de existência. Ele é um errante perante a sociedade e vive em constante
movimento, dissociado do que está estabelecido.
2.2. O formato que aventura um marinheiro
No que concerne ao formato da HQ de Corto Maltese, são notórios os
enquadramentos que costumam ter como eixo, quase sempre, a linha do horizonte. O
autor pode variar os ângulos em que vemos os personagens, mas poucas vezes o eixo de
toda imagem. Aqui parece haver um padrão técnico na forma de Hugo Pratt trabalhar o
qual deve existir por uma combinação de fatores, mas não por algum ditame, pois, como
não há regras na concepção, o autor pode escolher o caminho que bem entende desde
que tenha sucesso em expressar o que deseja (MCCLOUD, 2008, p.5). Percebemos
assim que, na estética de uma HQ, a forma e o conteúdo são importantes como em
qualquer outra obra, ainda mais porque
as histórias em quadrinhos, ao gerar novas ordens e técnicas narrativas, mediante a
combinação original de tempo e imagens em um relato de quadros descontínuos,
contribuíram para mostrar a potencialidade visual da escrita e o dramatismo que
pode ser condensado em imagens estáticas (CANCLINI, 2013, p.339).
Dentro dessa reflexão, a função estética é onipresente e responsável por
inovações lexicais em obras literárias. Pode-se perceber a flutuação que o personagem
47
vive em suas aventuras porque Corto está à mercê de uma sociedade e porque o mundo
o persegue. O dito corrobora com o mito do homem moderno.
Sobre forma e conteúdo da função estética, Mukarovsky diz que
muito mais que algo que flutua à superfície das coisas e do mundo. [...] Ela intervém
de modo importante na vida da sociedade e do indivíduo, tomando parte na gestão
da relação [...] entre indivíduo e a sociedade, por um lado, e a realidade em cujo
centro se situam, por outro (MUKAROVSKY, 1988, p. 38).
Logo, a função estética num quadrinho não estaria dissociada das mudanças sociais que
ocorrem em sua narrativa ou no contexto pelo qual o autor passou, mas sim embutida
nelas. Nesse quesito, o momento pelo qual o mundo passava enquanto Hugo Pratt
produzia sua obra, bem como suas viagens, realmente não estão dissociados no que
culminou seu trabalho.
A inserção de Corto, nesse contexto da aliança da cultura icônica com a literária,
combina com o já abordado movimento mundial que resultou nos quadrinhos e que
culminou no efusivo mercado Europeu.
Até o advento dos meios digitais, as HQs só poderiam ser veiculadas através de
sua forma impressa, logo elas foram um produto da revolução tecnológica promovida
por Gutenberg. Posteriormente, os quadrinhos digitais começaram a existir, mas sua
forma impressa ainda era o formato mais usual e difundido nesta década. Gibis
impressos em alta qualidade são consumidos como troféus pelo público apreciador do
estilo e até mesmo algumas dessas edições de luxo são feitas em grande ou média
escala, várias cópias do mesmo material. O original muitas vezes é comercializado, aí
sim, com exclusividade e grandes preços, mas ele não passa do molde para a versão
impressa; apesar de ser o material produzido primeiro, pela lógica do design, seguir
especificações técnicas que propiciem a impressão final, podemos entender somente o
produto impresso como o de fato original. Levando isso em consideração, os quadrinhos
são um produto autenticamente da era da reprodutibilidade técnica e são produtos
concebidos pela e para a reprodução.
Como já comentado, no geral a disposição dos quadros em uma HQ costuma ser
padronizada dentro de regras técnicas, temos a lógica de um quadro que se segue a
outro, sendo as quebras entre eles pequenas com no máximo um quadrado maior ou um
retângulo tomando forma na página. Todavia, ao longo do tempo, cada país acaba por se
especializar em um “estilo” único. Tal e qual podemos reconhecer em uma pintura o
48
movimento do realismo ou do surrealismo, por exemplo, nos quadrinhos podemos
reconhecer, pelo seu estilo, de qual região geográfica a obra é oriunda. As comics
estadunidenses, por exemplo, são bem coloridas e ricas em detalhes especialmente por
tratarem em larga escala do tema dos super-heróis. O traço dos personagens, apesar de
toda ficção contida nessas obras e uniformes (fantasias) espalhafatosos, puxa para um
estilo mais realista e menos caricato como em outros casos. No Japão, temos a singular
aparição do manga com suas peculiares características: quase sempre possuem
personagens desenhados com o tamanho da anatomia humana real, mas suas faces são
mais estilizadas e exageradas em suas características, como nos narizes ou nos famosos
“olhos grandes”. Tanto nas comics, como nos mangas, podemos notar refinamentos
específicos na linguagem quadrinística. Nela, encontramos quadros vazados, imagens
que se sobrepõem aos mesmos ou grandes páginas que tomam lugar dos quadros
sequenciais e buscam valorizar mais o desenho.
Imagem 16 – Massacre Marvel.
Fonte: Marvel Comics, 1998, p.6.
Notamos como na Imagem 16, página do quadrinho Massacre Marvel, além de
mudar a leitura para o eixo horizontal, que na maior parte desta edição é na vertical,
possui apenas dois pequenos quadros estilizados acima. No resto da página, a imagem
49
mostra várias situações em um único enquadramento, o que valoriza o desenho do
artista e busca trazer uma sensação de ação num todo.
É claro que existem várias exceções dentro dos padrões dos quadrinhos em cada
nação, afinal, cada mercado geográfico, ou poderíamos até chamar de “escola
estilística”, possui as suas. No entanto, olhamos neste momento por um panorama mais
geral a fim de entendermos, então, a Europa e o que Hugo Pratt absorveu do estilo
presente em sua região.
Ao longo do tempo, cada autor cria seus detalhes e traços únicos que se
transformam em suas assinaturas. Corto Maltese, apesar de suas singularidades, pode
inicialmente ser reconhecido como um quadrinho europeu. Os quadrinhos europeus,
mais precisamente os relacionados ao forte mercado franco-belga, possuem o formato
padrão tanto pelo jeito de serem desenhados, como pela técnica empregada nas
impressões de almanaques encadernados que medem 21 cm x 29 cm. Inclusive, essas
são exatamente as medidas e formato das publicações de Corto Maltese. Ademais,
exemplos europeus, como As aventuras de TinTim, Asterix e Obelix e Tex Willer,
mostram-nos uma particularidade estilística do quadrinho europeu: os quadros se
mantêm muito na linha do horizonte, têm poucas variações de ângulo das cenas ou
personagens o que evidencia um forte apego à tradição que criou os quadrinhos como
estilo no século XX. Afinal, desde os primórdios a maioria das HQs seguia essa lógica
que é advinda das tirinhas publicadas nos jornais. Cada linha de quadros em publicações
europeias realmente parece seguir uma estrutura de tiras. Por curiosidade, se seguirmos
essa lógica, dá para entender por que as histórias em quadrinhos desenhadas em
Portugal são chamadas de banda. Esses quadros também são carregados de muito texto
escrito, a história costuma ser contada muito mais pelo texto do que pelas imagens. Esse
é um traço que difere muito a HQ europeia do manga em cujos quadros existem muitos
silêncios textuais e as imagens buscam contar a narrativa abrindo mão do texto em
vários momentos, situação, já citada anteriormente, na qual as mudanças de imagens são
as responsáveis por narrar os acontecimentos, o que McCloud (2008, p. 18.) chama de
aspecto a aspecto. Aqui encontramos então as principais heranças estilísticas de Hugo
Pratt em relação ao mercado geográfico onde produziu sua obra.
A temática no quadrinho europeu também costuma ter uma recorrência de
gênero narrativo. Contexto que parece traduzir o período histórico pelo qual a Europa
passou desde o final do século XIX. Enquanto nas comics encontramos quase sempre
super-heróis com seus poderes sobre-humanos buscando suas redenções ou a salvação
50
de sua nação, nas narrativas europeias encontramos heróis que encaram aventuras,
muitas vezes perpassando pelo contexto de guerras, de exploração e descobrimentos,
um tema clichê que, por exemplo, podemos ver cravado por Hollywood na série de
filmes Indiana Jones. Todavia, esse tema do aventureiro que viaja por terras
desconhecidas já era recorrente na literatura ocidental do século XIX. Autores, como o
polonês erradicado na Inglaterra Joseph Conrad e suas histórias de marinheiros viajantes
ou o estadunidense Jack London e seus famosos textos de aventuras em terras selvagens
como The Sea Wolf, foram influenciadores das temáticas do movimento quadrinista
europeu no século XX. Inclusive esses autores citados são influências de autores como
o próprio Hugo Pratt.
Se pensarmos em Asterix, Tintim e Corto Maltese, verificamos essa similaridade
temática. Da mesma forma que Corto Maltese se aventura pelas selvas americanas,
deserto do Oriente Médio e Leste Europeu, Tintim também o faz em suas histórias.
Ambos acabam por se deparar com algum tipo de conflito ou intriga política no meio do
caminho. De uma forma mais descontraída, Asterix também enfrenta seu exército de
romanos enquanto desbrava outras terras e culturas.
A periodicidade das publicações é mais lenta na Europa se compararmos ao
mercado estadunidense ou japonês. As comics são concebidas por um autor, mas
produzidas por diversos artistas, e o desenhista de manga possui uma rotina de trabalho
absurda para conseguir dar conta da demanda comercial e prazos impostos pela editora,
o que muitas vezes prejudica a qualidade de seu trabalho e até mesmo de sua saúde.
Logo, aqui, poderíamos encarar o quadrinho europeu como o mais autoral de todos,
mesmo se pensarmos nos autores mais inseridos no mercado comercial.
Tendo em vista o posto, podemos encarar que a forma empregada na arte de
Pratt é uma expressão de seu tempo. Corto Maltese possui traços singulares e bem
delimitados nos personagens que ajudam a manifestar o mais importante do conteúdo
desse quadrinho: a jornada de uma vida.
Vale salientar que Corto Maltese dispunha, para a época, de “inovador aspeto
gráfico, a gestão dos silêncios e os diferentes planos são os principais aspetos que
tornam a sua obra inconfundível” (PORTO EDITORA, 2003).
Já em As Aventuras de Tintim, do quadrinista belga Georges Prosper Remi, mais
conhecido como Hergé, notamos a citada sequência recorrente nas HQs europeias dos
quadros e sua grande quantidade de texto nos primeiros quadros e a rara exceção nos
últimos.
51
Imagem 17 – As Aventuras de Tintim.
Fonte: REMI, 2008, p. 28.
Na Imagem 17, em um dos momentos de ação da edição encadernada 17 de As
Aventuras de Tintim, temos a recorrência do maior silêncio textual da publicação.
Momentos assim são raros em nessa HQ, e, no caso acima, o recurso foi utilizado
meramente para dar um efeito cômico. Em outras situações da edição, os silêncios são
utilizados momentaneamente somente para apresentar algum espaço ou acontecimento,
por exemplo, um avião que acabou de cair no deserto ou um vilão que atira com uma
arma.
52
Imagem 18 – A Juventude de Corto Maltese.
Fonte: PRATT, 2011, p.32.
Já na Imagem 18, da história A Juventude de Corto Maltese, notamos os
silêncios traduzindo situações mais refinadas; eles apresentam os personagens que
observam, de uma trincheira, soldados e estes que são observados. Na sequência,
pontuam um movimento do personagem da trincheira e a consequência de sua ação. No
fim, temos um quadro com diálogo de personagens sobre a situação. Aqui podemos
verificar que em Corto Maltese a gestão de silêncios foi sim um aspecto inovador
53
especialmente levando em conta o mercado geográfico no qual estava inserido e a época
em que foi publicado.
Apesar de também não tão recorrente em Corto Maltese, se pensarmos os
quadrinhos como um fenômeno mundial, essa gestão de silêncios entre os quadros faz
com que o leitor, enquanto sua interação com o suporte apresentado, perceba uma
necessidade maior de pausa durante a leitura naquele momento ou tenha noção de
passagem de tempo dentro da narrativa. Aqui vemos as imagens se sobrepondo ao texto
e, assim, diferenciando-se mais ainda de narrativas somente escritas. Manusear esse
material no qual Corto foi impresso e lidar com essas pontualidades dos silêncios
trazem um ritmo diferenciado das demais mídias ao texto da HQ. Lembrando-nos dos
sistemas midiáticos de Lucia Santaella, esse ser inserido na cultura das mídias, leitor da
atualidade, possui um forte repertório multimidiático, todavia essa inserção pode não
necessariamente interferir na forma como a interação com o material impresso se dará.
Possivelmente a técnica do quadrinho cria por si só a ilusão de movimento na mente do
leitor, a despeito de, hipoteticamente, existir hoje esse leitor acostumado com o
audiovisual sempre em grande movimento.
Voltando para o texto escrito, normalmente a leitura de um livro é corrida e
somente as palavras que ditam as regras. Na literatura, podemos acabar encontrando
textos que pareçam frenéticos e outros que sejam lentos, mas a escrita do autor é quem
decidirá tudo. Claro que o modo como o leitor interpretará o que lê e qual ritmo
empregue em sua leitura também exercerá importante função nesta situação. Todavia, a
“atenção” que as imagens puxam para si, como na Imagem 17, traz um ritmo narrativo
que será fortemente ditado pela vontade do narrador. Apesar de o leitor também
influenciar o ritmo da narração, os quadros exercem maior influência deixando a
velocidade da ação mais clara.
Se o leitor não tivesse a interação com o suporte físico, o quadrinho impresso, as
mudanças de páginas ou o andamento que os quadros encaminham durante a leitura não
seriam os mesmos, logo, a experiência poderia ser outra. Uma reprodução simples do
quadrinho no meio digital talvez aproxime a experiência da original, mas caso o suporte
fosse outro, por exemplo, uma animação, a experiência e a inteiração seriam totalmente
diferentes.
O suporte é aquilo que medeia a interação entre expectador/leitor e objeto. Do
mesmo modo que a experiência de assistir a um filme adaptado de um livro não é a
mesma de ler o próprio livro, ler um quadrinho difere de ler literatura. Cada formato
54
apresenta suas particularidades e diferenças, o que, por fim, guia a experiência
específica de cada leitor.
Como exemplo, o projeto Clássicos em HQ (2013) visou “traduzir” clássicos da
literatura para os quadrinhos, como o Conto de Escola de Machado de Assis. Seja por
querer incentivar a leitura de clássicos ou por tentar trazer uma nova estética a uma obra
originalmente publicada em outro formato, podemos enxergar com esse exemplo a
diferenciação que o formato de leitura implica por si só, apesar de esse projeto não visar
a uma adaptação, mas basicamente a acrescentar imagens aos textos originais. No
quadrinho, o ritmo é outro, e a simples existência do desenho traduzindo o que, na
literatura, seria preenchido ou não pela imaginação leva a um novo tipo de leitura.
Imagem 19 – Conto de Escola, versão HQ.
Fonte: BORGES, 2013, p.114.
55
Vale lembrar também que as HQs “são uma mídia de fragmentos – um pouco de
texto aqui, uma figura recortada ali – mas quando dão certo, seus leitores combinam
esses fragmentos conforme leem e experimentam sua história como um todo contínuo”
(MCCLOUD, 2008, p.129). Tudo isso nos leva a pensarmos sobre as versões e os
suportes da obra de Hugo Pratt.
Corto Maltese, em suas primeiras edições, foi integralmente publicado em preto
e branco, somente as últimas edições produzidas, como A Juventude de Corto Maltese,
foram originalmente publicadas em colorido. Posteriormente, temos reedições de luxo
de histórias que acabaram sendo colorizadas (PORTO EDITORA, 2003). Além das
HQs e suas versões, a obra de Hugo Pratt foi adaptada para animação televisiva no ano
de 2003 pelo estúdio Ellipse Animation em parceria do canal italiano Rai Fiction, os
canais franceses Canal + e France 2, e foi distribuído pela Mediatoon.
Vale salientar que a escolha do preto e branco para a coloração dos quadrinhos
segue uma necessidade da época, pois, segundo o pesquisador em comunicação Lauro
Henrique de Paiva Teixeira,
Além do preto e do branco com suas variantes de cinza, o uso de cor na mídia, em
sua plenitude de recursos é relativamente novo. No caso dos meios impressos o uso
de cor antes da década de 1990 era mais restrito por dificuldades orçamentárias e
limitações técnicas que nem sempre permitiam resultados satisfatórios. (TEIXEIRA,
2006, p.1099)
Vamos comparar, logo abaixo, um trecho da edição original em P&B de Corto
Maltese: Sob o Signo de Capricórnio e o mesmo trecho em sua versão colorizada. Dá
para notarmos que o texto escrito está diferente, pois a versão P&B é brasileira, e a
colorida, portuguesa, mas não nos concentraremos nesta questão, no momento somente
nas imagens:
57
Imagem 21 – Corto Maltese: Sob o Signo de Capricórnio.
Fonte: PRATT, 1997, p.24 e 25.
Para a colorização, o traço não foi alterado. A luz e a sombra utilizadas por Pratt,
para dar volume e perspectiva aos seus desenhos, foram mantidas. As cores, em uma
paleta mais pastel, buscam somente preencher espaços em branco. Nesse sentido, as
versões coloridas de Corto Maltese acertaram em manter a essência do original, pois no
preto e branco geralmente o leitor tem uma sensação imagética mais neutra. Aqui,
provavelmente, foi levado em conta o raciocínio de lidar com a cor seguindo a lógica
das capas das versões originais, única parte que era colorida no original. Pela
perspectiva da semiótica, cores pastéis passam sensação de época antiga em uma
narrativa visual, pois
58
O modo de informar o passado através de cores pelos tons pastéis amarelados, como
variantes do palha, do ocre e do sépia, pode ter sua raiz biofísica nos registros
históricos envelhecidos pelo tempo, como papéis e tecidos. (...) As cores são usadas
com determinados valores simbólicos, que ao serem apreendidas, antecipam a
informação. Isso acontece quando o leitor já está familiarizado com o seu uso em
um processo de reconhecimento do contexto no qual aquela cor foi inserida. Todo o
processo termina e recomeça no receptor, pois é ele quem retroalimenta o sistema
informativo contribuindo com suas experiências e criatividade para que o signo se
sustente ou sofra alterações. As cores tomam forma levando-se em conta seus
significados coletivos em uma determinada cultura, organizações do código
linguístico e sensações biofísicas que atuam independentes da intencionalidade do
homem. (TEIXEIRA, 2006, p.1098)
Os quadros dispostos em quatro tiras por página com a perspectiva voltada para
a linha do horizonte e poucas variações de ângulo, evidenciam uma forte característica
de vontade de representação do “que é observado” por parte de Hugo Pratt. Podemos ler
claramente como sendo a visão do viajante, sempre analisando fortemente o externo.
Pinturas, como a do italiano radicado no Brasil Joseph Léon Righini, mostram essa ideia
da visão de quem procura retratar o que é de fora. Paisagens acabavam por ser pintadas
dessa forma, pois aqui o que importa é o retrato do espaço em que se está.
Imagem 22 – Arredores da Cidade, 1862.
Fonte: Joseph Léon Righini – Acervo da Pinacoteca.
59
Imagem 23 – Corto Maltese: Sob o Signo do Capricórnio.
Fonte: PRATT, 1997, p. 39.
Notamos como é forte a característica paisagista nos desenhos de Pratt. Mesmo
quando o autor lida com pessoas e ângulos mais fechados, busca retratar os elementos e
evidencia fortemente seu aspecto de observador, especialmente quando mostra
ambientes mais naturais. Em espaços fechados, podemos encontrar somente o desenho
dos personagens e um branco (cor mais neutra) ao fundo, mostrando como só o diálogo
importa nesses momentos, mas quando estamos em, por exemplo, florestas, o ambiente
é desenhado a fim de trazer a sensação do ambiente.
Imagem 24 – Corto Maltese: Sob o Signo do Capricórnio.
Fonte: PRATT, 1997, p.75.
60
Na Imagem 24, é perceptível como a evidencia do espaço por meio do desenho,
ainda mais com os muitos elementos da mata, objetiva sensação ao leitor, no caso até
mesmo uma sensação de sufocamento pela floresta. Barthes, ao analisar a pintura como
expressão através da imagem e suas implicações de leitura, diz que
Não se trata evidentemente, de restringir a escrita do quadro à crítica profissional de
pintura. O quadro, qualquer um o pode escrever, só existe na narrativa que o
„escritor‟ lhe dá: ou ainda: na soma e na organização das leituras que dela se pode
fazer: um quadro nunca é mais elo que sua própria descrição plural. (BARTHES,
1990, p.136).
Nesse momento, vale também frisarmos que, mesmo o cangaceiro sendo o
personagem que transita historicamente pela região do semiárido, aqui, Pratt os retrata
em meio a uma vegetação exuberante, mais típica da floresta amazônica. Parece se
tratar de uma necessidade pelo exotismo que o estrangeiro busca aqui e que, neste caso,
não deixa de ser uma deturpação e inverossimilhança.
Falando agora da animação, ela procura se manter fiel ao quadrinho quase sendo
uma “tradução” do mesmo, mas, como em toda adaptação encontramos diferenças
significativas na abordagem, isso pode até mesmo levar a uma experiência
completamente diferenciada. O desenho animado de Corto Maltese difere de outras
animações que variam mais os enquadramentos, aqui um traço da aproximação com o
estilo do quadrinho, mas ela modifica em outras questões a essência da visão de Pratt. O
desenho animado também costuma lidar com recursos orçamentários que podem não ser
muito grandes e, a fim de utilizá-los da melhor forma possível, acabam por reaproveitar
certos desenhados já produzidos em algumas cenas semelhantes. Como muitos quadros
por segundo precisam ser desenhados, muitas vezes encontramos variações de ângulos
ou zooms para reaproveitamento de trabalho. Aqui já há uma padronização e constância
estilística, diferentemente das variações que o desenho numa HQ pode gerar. Segue
exemplo da mesma situação mostrada nas Imagens 20 e 21, mas agora na animação:
61
Imagem 25 – Animação de Corto Maltese.
Fonte: Ellipse Animation.
Além dos enquadramentos, notamos também que a cor mudou drasticamente e
existem muitos acréscimos nos detalhes dos desenhos, como o cenário ao fundo que é
quase inexistente na versão impressa. Nos quadrinhos, é comum, no modo de Pratt
trabalhar, ser somente desenhado o que mais importa para contar a história. Se em
62
algum momento o cenário seria meramente um fundo desfocado (em um audiovisual) e
não importaria para contar a história naquele dado momento, ele não é desenhado.
Ademais, o design do próprio Corto Maltese mudou drasticamente, ele foi estilizado e
está mais jovem e belo pensando nos padrões estéticos da atualidade.
2.3. Análise Mitológica Simbólica
Com isso, o fim das bifurcações do caminho dessa jornada que nos leva a uma
única estrada, que nos guiará para uma luz, começa em refletirmos sobre em que nível
Corto Maltese responde aos anseios individuais de seus leitores na esfera do simbólico e
em pensarmos o quadrinho sob as perspectivas da psicologia e semiótica. Assim, é de
vital importância entendermos como as questões relacionadas aos arquétipos e à
mitologia relacionam-se com o âmago das pessoas.
Primeiramente, vale pontuarmos a diferença entre símbolo e arquétipo. Um
símbolo representa um tipo de signo em que o significante (realidade concreta) equivale
a algo abstrato (nações, quantidades de matéria, tempo etc.) por força de convenção,
semelhança ou contiguidade semântica (como no caso do yin-yang que simboliza a
totalidade do universo para o taoísmo). Arquétipo, numa rápida definição, representa
ideias que são moldes de cada coisa existente, segundo a concepção de Platão. Portanto,
é o primeiro modelo ou imagem de algo, ou seja, antigas impressões sobre alguma
coisa.
A partir da era moderna, um enredo carregado desses conteúdos arquetípicos
pode ser capaz de transmitir uma mensagem que signifique algo na vida de quem
absorve a narrativa; por meio da mídia, portanto, das HQs, essas mensagens tornam-se
significantes nas vidas de determinados grupos de pessoas. Se pensarmos o conto de
fadas como exemplo importante da literatura fantástica, logo, uma narrativa tanto
arquetípica e quanto mitológica, podemos ver que “o primeiro narrador verdadeiro é e
continua sendo o narrador de contos de fadas. Esse conto sabia dar um bom conselho,
quando ele era difícil de obter, e oferecer ajuda, em caso de emergência (BENJAMIN,
1987, p.215)”. Ao falar do narrador do conto de fadas, Benjamin nos lembra das
definições de literatura fantástica que, segundo Todorov,
refere-se a uma variedade de literatura, ou, como se diz comumente, a um gênero
literário. Examinar obras literárias a partir da perspectiva de um gênero é um
empreendimento absolutamente peculiar (TODOROV, 2010, p.7)
63
ainda conclui que
O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais,
face a um acontecimento aparentemente sobrenatural.
O conceito de fantástico se define pois com relação aos de real e imaginário: e estes
últimos merecem mais do que uma simples menção (TODOROV, 2010, p.31).
Com nosso objeto, Corto Maltese: Sob o Signo de Capricórnio, o autor
curiosamente fez o subtítulo possuir um contexto que nos leva a pensarmos nos signos.
Segundo Charles S. Peirce (2005, p.46) "um signo [...] é aquilo que [...] representa algo
para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria-se na mente dessa pessoa, um signo
equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido." Se pensarmos nas histórias em
quadrinhos e consequentemente em Corto Maltese, seu formato seria então um
construtor de signos que se formam por sua expressão artística e estilística própria. A já
citada combinação entre desenhos e texto é o que traz o significado e os arquétipos que
estariam ali embutidos.
Corto Maltese, o personagem, é um homem complexo, que pode ser um canalha
por usar golpes baixos em brigas físicas ou pode também se apegar rapidamente a uma
pessoa, mesmo sem admitir, demonstrando-lhe simpatia, gratidão e até cumplicidade.
Todavia, ele só demonstra esse apego caso as ideias defendidas por estas pessoas lhe
sejam simpáticas, viáveis ou rentáveis. Nota-se como Corto é muitas vezes levado a sair
de seu status quo graças às necessidades de outras pessoas; ele é impelido pelo destino
para uma região desconhecida onde precisará passar por provações na esteira do
enunciado por Campbell (2007, p. 66). Essa situação é corriqueira nas histórias do
marinheiro, ele sempre está “vivendo tranquilamente” em algum local aparentemente
paradisíaco até que alguma situação o impele a sair desta situação habitual. Corto
Maltese encarna o arquétipo maior do aventureiro romântico, que nos lembra de
personagens da literatura, como o Robinson Crusoé.
A aventura de Sob o Signo de Capricórnio se desencadeia justamente quando
um jovem chamado Tristan Bantan encontra-se com Corto. Tristan precisa de ajuda para
achar sua irmã Morgana que mora no Brasil e é fruto do segundo casamento de seu pai.
A trama leva o enredo à Bahia e revela toda uma espiritualidade em cima de ritos
brasileiros, como a macumba e o tarô cigano, ainda que estes sejam descritos de
maneira superficial e mistificada. Temos manifestações aparentemente sobrenaturais ou
64
inexplicáveis na narrativa, nas quais o devaneio apresenta-se como realidade. Os
simbolismos que indicam caminhos aos personagens geralmente ocorrem em sonhos ,
mas algumas situações são configuradas durante a vigília.
Simbolicamente, é notório como Tristan Bantan encara figuras arquetípicas
oriundas do inconsciente coletivo. Aqui, pensando em "como o aspecto exterior e
interior de uma única e mesma realidade [...] se esconde por trás das aparências"
(JUNG, 2008, p.352), encontramos relação deste pensamento proposto por Jung
juntamente com a reflexão de Campbell (2007, p.64) de que o desconhecido,
surpreendente e até assustador inconsciente projeta o herói ou um personagem de
encontro ao seu destino. Afinal, Tristan precisa enfrentar seus demônios e é impelido,
pelo mundo inconsciente, a seguir um caminho.
Imagem 26 – Corto Maltese: Sob o Signo do Capricórnio.
Fonte: (PRATT, 1997, p.53).
Corto Maltese possui o ideal de individualismo romântico e tenta levar uma vida
calma, geralmente em paraísos tropicais, mas enfrenta muitos problemas por não
conseguir encarar seus dramas do passado por ainda viver em um período de conflitos
armados e por quase sempre ser um estrangeiro. Corto viaja por inúmeros países e
conhece diferentes culturas, aprende a ter respeito e a olhar sem preconceitos para elas.
65
Analogamente, demonstra essa sua qualidade sendo irônico com os dogmas das
sociedades que visita. Isso faz de Corto uma pessoa livre de prejulgamentos sobre
outros povos, raças e culturas. Com essas características, o papel de Corto em suas
aventuras pode ser encarado como sendo o do herói-libertador ou o do homem divino
que possui uma força "sobre-humana", algo que pode remeter a Hércules ou outras
histórias lendárias (CAMPBELL, 2001, p.83).
Todo esse idealismo de Corto, um homem real em seus sofrimentos, mas um
herói nos conflitos que encara e supera, traz à tona arquétipos milenarmente
identificados pelos seres humanos e contados por meio de alegorias narrativas. No
mundo moderno, as referências a várias outras histórias ou a mitos que já exploraram o
tema poderiam ser percebidas, mas Corto consegue significar profundamente, trazer
reflexão e identificação ao ser humano em seu individualismo moderno. Os fãs de Corto
fazem de sua narrativa um simbolismo metafórico, assim tiram lições para suas vidas
como outrora aquela pessoa sentada à beira da fogueira o fazia ao ouvir a história
contada por outro indivíduo. Como diria Eliade,
Poder-se-ia quase dizer que o conto se repete, em outro plano e através de outros
meios, o enredo iniciatório exemplar. O conto reata e prolonga a “iniciação” ao nível
do imaginário. Se ele representa um divertimento ou uma evasão, é apenas para a
consciência banalizada e, particularmente, a consciência do homem moderno; na
psique profunda, os enredos iniciatórios conservam sua seriedade e continuam a
transmitir sua mensagem, a produzir mutação. Sem se dar conta e acreditando estar
se divertindo ou se evadindo, o homem das sociedades modernas ainda se beneficia
dessa iniciação imaginária proporcionada pelos contos. (ELIADE, 1986, p.174).
Ou seja, antigamente, o conto fantástico, normalmente contado próximo a uma
fogueira, servia para levar o ser humano a refletir sobre sua condição e a trazer
significado para a vida em níveis do imaginário. Hoje, nossos mitos estão em nossos
produtos culturais. O mito está na mídia. O pânico e a liquidez da sociedade estão
encarnados no mito na atualidade, onde ele “é a própria dessincronização da vida
moderna; da vertiginosa velocidade e fragmentação na urgência da vida nos centros
urbanos” (CONTRERA, 1996, p.61).
Para Jung, arquétipo é uma efígie apriorística encravada profundamente no
inconsciente coletivo5 da humanidade, projetando-se em diversos meandros da vida,
5 Jung diz que “é o mundo da mente primitiva que se mantém profundamente inconsciente enquanto tudo corre bem na vida, mas
que emerge dessa profundeza assim que algo de funesto se apresente à consciência. A esta camada impessoal da alma dei o nome de
inconsciente coletivo. É "coletivo" porque não se trata de nada que tenha sido adquirido pessoalmente. É como que o funcionamento
da estrutura herdada do cérebro, a qual em seus traços gerais é a mesma em todos os seres humanos, e de certo modo até mesmo em
66
como nos sonhos e até mesmo nas artes. Ele explica que "no concernente aos conteúdos
do inconsciente coletivo, estamos tratando de tipos arcaicos - ou melhor - primordiais,
isto é, de imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos" (JUNG,
2000, p.16). Essas imagens universais estariam circundando todas as esferas do
humano, culminando em seu desenrolar nas narrativas ficcionais criadas pelos mesmos
seres humanos.
Ainda sobre o tema, C. G. Jung esclarece sobre onde encontramos as
representações arquetípicas a partir do conceito de que
deriva da observação reiterada de que os mitos e os contos da literatura universal
encerram temas bem definidos que reaparecem sempre e por toda parte.
Encontramos esses mesmos temas nas fantasias, nos sonhos, nas idéias delirantes e
ilusões dos indivíduos que vivem atualmente. A essas imagens e correspondências
típicas, denomino representações arquetípicas. Quanto mais nítidas, mais são
acompanhadas de tonalidades afetivas vividas... Elas nos impressionam, nos
influenciam, nos fascinam. Têm sua origem no arquétipo que, em si mesmo, escapa
à representação, forma preexistente e inconsciente que parece fazer parte da
estrutura psíquica herdada e pode, portanto, manifestar-se espontaneamente por toda
parte (JUNG, 1994, p.352).
Aqui já podemos antecipar que esse fascínio que possuímos pelas referências
arquetípicas é o que nos leva a sermos tão contagiados por narrativas que se utilizam,
consciente ou inconscientemente, de figuras simbólicas capazes de trazer significados e
sentidos à nossa própria vida. O que está carregado de arquétipos e desses símbolos é
justamente o supracitado mito. Todavia, é necessário entendermos qual o caminho que
desvela como o simbólico se constrói nas personas em nível narrativo e discursivo, suas
representações verbais e não verbais assim como sua interação com o suporte em que a
narrativa é veiculada. A persona essa que, nas narrativas, pode ser interpretada como a
máscara ou a forma como arquétipos se materializam a fim de trazer a significação e a
representação de que foi falado anteriormente.
Ainda sobre o nível representativo da psique, Joseph Campbell, por sua vez, já
demonstra de qual modo os arquétipos se materializam simbolicamente em mitos ao
refletir que
Os arquétipos a serem descobertos e assimilados são precisamente aqueles que
inspiraram, nos anais da cultura humana, as imagens básicas dos rituais, da
mitologia e das visões. Esses „seres eternos do sonho‟ não devem ser confundidos
todos os mamíferos. O cérebro herdado é o resultado da vida de nossos antepassados. Consta dos sedimentos estruturais ou das
correspondências àquelas atividades psíquicas, que inúmeras vezes foram repetidas na vida de nossos antepassados. Em
contrapartida, constitui também o tipo existente a priori e aquilo que desencadeia a atividade correspondente. (JUNG, 1995, p. 106).
67
com as figuras simbólicas, modificadas individualmente, que surgem num pesadelo
ou na insanidade mental do indivíduo ainda atormentado. O sonho é o mito
personalizado e o mito é o sonho despersonalizado; o mito e o sonho simbolizam, da
mesma maneira geral, a dinâmica da psique. Mas, nos sonhos, as formas são
distorcidas pelos problemas particulares do sonhador, ao passo que, nos mitos, os
problemas e soluções apresentados são válidos diretamente para toda a humanidade.
(CAMPBELL, 2007, p.27)
No caso da referida história em quadrinhos de Corto Maltese, é perceptível
como os arquétipos se manifestam no nível narrativo por meio de personas imaginadas
pelo olhar de um estrangeiro, o autor europeu Hugo Pratt, que realmente caminhou sob
o signo de capricórnio da América Latina e os interpretou através de suas experiências e
de seu imaginário. A própria temática do onírico, que remete diretamente ao simbólico,
inconsciente e arquétipos, estão presentes em toda a obra de Pratt.
Imagem 27 – Corto Maltese: Sob o Signo do Capricórnio.
Fonte: PRATT, 1997, p.56.
A representação verbal e não verbal da narrativa em quadrinhos de Corto
Maltese manifesta-se pelo próprio formato das HQs. Ela cria processos específicos
através de seu traço, cor, texto escrito e layout, pois escrever roteiros de quadrinhos por
si só já pode caracterizar uma arte, mas é no momento que palavras e imagens se
combinam sem emendas que a HQ encontra sua melhor forma (MCCLOUD, 2008, p.
149). Aqui temos a síntese dos quadrinhos ao entender que a combinação estilística e
específica de imagem e texto gera um formato diferenciado e não somente uma mescla
de dois estilos artísticos. Também segundo o quadrinista Scott McCloud, “os
quadrinhos são uma linguagem secreta à parte, e dominá-la apresenta desafios diversos
dos enfrentados por qualquer prosador, ilustrador ou outros profissionais de criação”
(MCCLOUD, 2008, p.2). Apesar da licença poética do autor em encarar os quadrinhos
como uma linguagem “secreta”, pode-se notar através desta citação como McCloud já
deixa aparente que o conjunto resultante de uma hibridização, se considerar os
68
quadrinhos como uma soma de mais de um formato artístico – prosa e ilustrações – traz
características únicas a serem analisadas tanto por parte dos criadores do formato ou
quanto dos pesquisadores da área.
O formato utilizado pelo quadrinho para contar uma narrativa acaba
proporcionando uma determinada interação do leitor com a obra. As técnicas
empregadas para tal acabam por ser cruciais ao desenvolvimento de sua semiótica.
McCloud, explorando conceitos das histórias em quadrinhos, elucida alguns dos
princípios próprios da comunicação do formato ao
como eles (os princípios da clareza e da comunicação) governam o modo como
nossas histórias são ritmadas, enquadradas e representadas. Como o olhar do leitor é
guiado de quadrinho em quadrinho, e como sua mente é persuadida a dar
importância ao que vê (MCCLOUD, 2008, p.3).
Como o autor Hugo Pratt realmente viajou pela América Latina e Brasil, torna-
se extremamente singular o contexto de sua experiência pessoal versus sua narrativa
versus clichês resultantes do olhar de um estrangeiro e viajante sobre outras nações. Há
seres humanos que parecem imóveis e indiferentes às diferenças geográficas, mas
muitos possuem vontade de extrapolar essas barreiras invisíveis e são impelidos a
buscar algo além de seu mundo comum (CARDOSO apud NOVAES, 1995, p. 351). O
estrangeiro acaba por perder, em seu pensamento e arte, o sentido do que constituem a
imagem e a identidade de um lugar (PEIXOTO apud NOVAES, 1995, p. 363). Peixoto
também nos diz que “o estrangeiro toma tudo como mitologia, como emblema.
Reintroduz imaginação e linguagem onde tudo era vazio e mutismo” (PEIXOTO apud
NOVAES, 1995, p. 363). Apesar de essa falta de noção da verdadeira cultura e
realidade local na qual um estrangeiro se insere parecer algo ruim aos olhos de Peixoto,
curiosamente ele já nos deixa a resposta ao porquê desse acontecimento se remeter aos
níveis arquetípicos e simbólicos de Jung. O olhar que Hugo Pratt teve sobre o Brasil,
por exemplo, pode ser “clichê” a ponto de traduzir somente questões mais genéricas do
país, que saltam aos olhos de quem não é brasileiro e provavelmente não é a impressão
real que um nativo tem sobre sua nação, mas parece traduzir muito bem o viés
simbólico e torna uma “aventura em terras estrangeiras” uma narrativa quase épica, mas
com certeza com contornos mitológicos.
Desde que se conhece o homem como um ser social, o mito é fonte de
explicações para as mais diversas condições humanas ou da natureza. Sempre
69
relacionados a ritos, os mitos podem ser entendidos como narrativas de caráter
simbólico-imagético. Apesar de muitas vezes o mito ser encarado como uma realidade
possível por diversas culturas, ele acabou por se transformar em uma forma
inconsciente que aparece em narrativas ficcionais de todos os tempos, inclusive nas
contemporâneas.
Dentro do posto, remetemos inicialmente ao estruturalista russo Vladimir Propp,
que se especializou em estudar seu principal campo de interesse, o folclore. Pensando o
folclore como o conjunto de tradições e usos populares, encontramos a narrativa
mitológica em seu cerne. Mesmo parecendo que Propp estuda um tema muito
específico, é notório que, segundo o pesquisador Ruy Matos Ferreira,
não é de se surpreender que, mesmo sendo dirigida quase que exclusivamente para o
folclore, a produção teórica de Propp tenha se prestado a uma larga e fecunda
aplicação nos mais diversos ramos de estudos literários (FERREIRA, 2014).
Vladimir Propp propõe uma metodologia de investigação do conto de magia ao
definir que esse tipo de narrativa, em relação à sua composição e construção, não aos
temas, possui uma possível padronização (FERREIRA, 2014). Define também que cada
uma das várias funções, que seriam os estágios de uma jornada das narrativas, possui
um signo combinatório em si (FERREIRA, 2014). Segundo ainda Ruy Matos, Propp
sugere que a sequência em que as narrativas se encadeiam é padronizada mesmo que
nem todas as funções existam ou se repitam. Isso fica claro ao Propp afirmar em seu
livro, Morfologia do Conto Maravilhoso, que “o conto maravilhoso atribui
frequentemente ações iguais a personagens diferentes. Isto nos permite estudar os
contos a partir das funções dos personagens” (PROPP, 2006, p.16).
Aqui podemos dialogar entre Propp e Jung. Para o fundador da psicologia
analítica, esse padrão pode ser ainda mais relativo. Apesar de os arquétipos encontrados
em toda literatura universal terem seus traços gerais e repetitivos, o que se pode fazer
com esses aparentes padrões é encaixar acontecimentos mitológicos, reais ou ficcionais
em uma forma (antigo fôrma), mas a combinação das funções (para Propp) ou imagens
arquetípicas (para Jung) pode ser tão arbitrária dentro de um conjunto de fatores
psicológicos e sociais ao ponto de não ser insolúvel. Em suas reflexões, Jung já dizia
que
70
é muito comum o mal-entendido de considerar o arquétipo como algo que possui um
conteúdo determinado; em outros termos, faz-se dele uma espécie de
“representação” inconsciente, se assim se pode dizer. É necessário sublinhar o fato
de que os arquétipos não têm conteúdo determinado; eles só são determinados em
sua forma e assim mesmo em grau limitado. Uma imagem primordial só tem um
conteúdo determinado a partir do momento em que se torna consciente e é, portanto,
preenchida pelo material da experiência consciente. Poder-se-ia talvez comparar sua
forma ao sistema axial de um cristal que prefigura, de algum modo, a estrutura
cristalina na água-mãe, se bem que não tenha por si mesmo qualquer existência
material. Esta só se verifica quando os íons e moléculas se agrupam de uma suposta
maneira. O arquétipo em si mesmo é vazio; é um elemento puramente formal,
apenas uma facultas praeformandi (possibilidade de preformação), forma de
representação dada a priori (JUNG, 1994, p. 352).
Propp, por estar arraigado ao movimento formalista busca definir que existe um
formato padrão e reproduzível em seus contos maravilhosos. Propp foi então capaz de
fazer uma hábil catalogação de contos. Podemos entender isso através do próprio Jung
quando este diz que
Não devemos entregar-nos à ilusão de que finalmente poderemos explicar um
arquétipo e assim “liquidá-lo”. A melhor tentativa de explicações não será mais do
que uma tradução relativamente bem-sucedida, num outro sistema de imagens
(JUNG, 1994, p. 353).
Apesar de Campbell também encaminhar reflexão similar a de Propp, na qual as
jornadas heroicas possuem similaridades e padrões em si, ele bebe mais da fonte da
psicologia de Jung que não encara possíveis estruturas coincidentes como uma forma
intrinsicamente rígida e quase imutável. Essas “coincidências” seriam histórias básicas
inspiradas por arquétipos “que inspiraram, nos anais da cultura humana, as imagens
básicas dos rituais, da mitologia e das visões” (CAMPBELL, 2007, p. 15).
As padronizações que o psicoterapeuta revelou sobre a imagem arquetípica
podem ser entendidas como “um símbolo psicológico, produzido espontaneamente, que
aparece universalmente tanto em sonhos como em mitos e ritos (JUNG apud
CAMPBELL, 2001, p. 157)”.
Em termos de linguagem, símbolos rapidamente nos remetem à semiótica e seus
estudos de significantes. Segundo Ana Claudia de Oliveira, é notório que conjuntos
significantes e seus agrupamentos são o cerne da investigação do tema, pois
a escolha da palavra semiótica para designar o campo de investigação que se dá
tentando circunscrever não é inocente. Seu uso implica em admitir que os rabiscos
que cobrem as superfícies utilizadas para tal fim constituem conjuntos significantes
e que as coleções destes conjuntos significantes, cujos limites ficam por precisar,
são, por sua vez, sistemas significantes. Eis aí uma hipótese forte que justifica a
71
intervenção da teoria semiótica e que, logo de início, não permite que nos
satisfaçamos como uma definição que só leve em conta a materialidade dos traços e
das regiões (“plages”) impressas num suporte (OLIVEIRA, 2004, p.76).
Ou seja, a semiótica se propõe a investigar fenômenos culturais como sistemas
de significação. As formas de manifestações, linguísticas ou não, fazem parte de sua
teoria geral. Os arquétipos são justamente o sistema significante capaz de traduzir
aspectos de uma mitologia ou narrativa.
Numa palavra, o mito se interioriza. Quero dizer com isto que o mito ganha um
espaço dentro do ser humano. Ele passa a ser reflexo de múltiplos movimentos de
interiores. O mito é o produto do inconsciente. Neste lugar se origina, neste lugar se
processa. Nele, também, se realiza. Ainda mais, é do inconsciente uma forma de
expressão. (ROCHA, 1991, p.40)
O relato fantástico que é o mito
implica portanto não apenas a existência de um acontecimento estranho, que
provoca hesitação no leitor e no herói; mas também numa maneira de ler, que se
pode por ora definir negativamente: não deve ser “poética”, nem “alegórica”.
(TODOROV, 2010, p.38)
O mito não ficou em um passado longínquo, ele é uma narrativa arquetípica
presente em todas as sociedades e tempos, mas na era moderna ele ganhou os contornos
de quem os propaga, a mídia. Ao falar do hábito de ler um jornal, Contrera diz que
nos chama a atenção é a dimensão verdadeiramente ritual que esse hábito adquire, já
que entendemos por ritual um acontecimento que estabelece um ritmo sincronizador
e que se instaura por meio de uma repetição que tem por função pontuar, estabelecer
um ritmo, garantindo a eficácia dessa pontuação, usando procedimentos que nos
remetem à dimensão arquetípica da cultura (CONTRERA, 1996, p.56).
Ler um jornal ou um website de notícias diariamente, adquirir um quadrinho em
um evento em que os fãs compartilham suas experiências, fantasiar-se da personagem
famosa daquele videojogo ou se deslocar ao cinema; todos esses são exemplos de
repetições, enfim rituais modernos. Neles temos o mito do herói presente, pois, segundo
Contrera, ao falar do cinema,
Esse belíssimo ritual (re-atual) do mito do herói apresentado pelo cinema de maneira
absolutamente atual e de forma a corresponder às expectativas do público (vide
índices de audiência) conta, dessa maneira, uma das mais antigas e universais
narrativas, a mesma já contada há muitos séculos (CONTRERA, 1996, p.108).
72
A matéria-prima do mito é o arquétipo. O mito é a matéria-prima das narrativas
(literárias, cinematográficas, publicitárias e, claro, das HQs). Teríamos assim uma
relação entre os temas que pode ser resumida no seguinte esquema:
Mito > narrativas midiáticas > arquétipo dentro do mito e dentro do
inconsciente coletivo > narrativas midiáticas, entre elas a HQ > revivem,
rememoram ou reatualizam os mitos/arquétipos.6
Como personagem literária, Corto veicula um significado cultural que
representar o homem em busca de autoconhecimento e autorealização ou como o
homem que se esconde por trás de uma máscara de aventureiro, cuja busca,
arquetipicamente falando, é por algo que não está no exterior. Se pensarmos no
arquétipo, pode ter um significado cultural e até psíquico relacionado ao trickster a
figura do “herói trapaceiro” que seria aquele que figura por ambos os lados de uma
história. Além de um viajante no mundo, o trickster também transita por entre os
mundos ou espaços, pois não pertence a um só lado. Em Corto Maltese isso é
claramente identificado, pois na época da Primeira Guerra Mundial que o personagem
vive, não é difícil encontra-lo do lado alemão ou inglês.
Vale pontuarmos também a questão do monomito e mitema. O monomito,
segundo Campbell, é a ideia da jornada do herói que poderia ser reduzida
primordialmente nos estágios de partida, iniciação e retorno. Onde algo ou alguém
precisa se deslocar de um espaço, caminhar e retornar. Já o mitema, para correntes
estruturalistas, é a partícula essencial do mito, enfim o elemento irredutível e imutável
do qual todos os mitos chegariam a uma origem.
Então, poderíamos então identificar que o mito do herói está presente nos
quadrinhos e, consequentemente, em Corto Maltese? Graças ao “fantástico permite
franquear certos limites inacessíveis quando a ele não se recorre” (TODOROV, 2010, p.
167) e conforme Campbell parece que sim. Aqui, vamos recorrer a um método de
análise.
Christopher Vogler, roteirista e pesquisador das ideias propostas por Campbell, é
de grande auxílio à reflexão de como encontramos a jornada do herói e arquétipos em
6 Esquema proposto pelo professor Dr. Hertz Wendel de Camargo no Exame de qualificação.
73
narrativas contemporâneas. Em seu livro, A Jornada do Escritor, o autor faz uma
espécie de manual com um apanhado geral de como os arquétipos e a jornada do herói
estão inseridas em narrativas e como um escritor poderia colocá-las em seu roteiro.
Todavia, é notório que essa espécie de compilação dos pensamentos de Jung, Campbell
e Propp serve para refletirmos não só sobre roteiros cinematográficos, mas também
sobre outras obras narrativas modernas que possuam estruturas similares como as dos
quadrinhos.
Diz Vogler, já na introdução de seu livro, que seu texto é: “(...) uma missão de
descoberta para explorar e mapear os limites fugidios entre o mito e a narrativa moderna
de histórias” (VOGLER, 2006, p. 35). Sua pesquisa estuda tanto os conceitos narrativos
de produções audiovisuais modernas quanto seus métodos. Por meio de análises
deroteiros e trabalhos de consultorias ligados a estúdios de cinema estadunidenses,
Christopher coletou um amplo leque de informações e mostra, a partir dos últimos
trabalhos, como as narrativas modernas são construídas com a mesma base comum de
qualquer outra história humana bem-sucedida no sentido de propagação. Vogler analisa
as estruturas míticas citando a figura e o papel do herói ou protagonista. “O propósito
dramático do Herói é dar à plateia uma janela para a história. Cada pessoa (...) é
convidada, nos estágios iniciais da história, a se identificar com o Herói, a se fundir com
ele e ver o mundo por meio dos olhos dele” (VOGLER, 2006, p. 76).
Sempre remetendo principalmente ao trabalho de Campbell, Vogler também nos
introduz ao tema da jornada do herói. Esta, basicamente, é uma estrutura de construção
narrativa, mal comparada às vinte seis letras do alfabeto; as quais, dependendo de suas
correlações, formam uma infinidade de palavras em uma língua. Aqui podemos nos
lembrar de Propp e suas funções do conto maravilhoso. Sendo assim, as doze etapas da
jornada heroica podem se relacionar de diversas maneiras a fim de criar uma infinidade
de narrativas:
1 – Mundo Comum – O herói é mostrado em sua vida cotidiana a fim de causar
identificação com o público.
2 – Chamado à Aventura – Algum motivo instiga o protagonista a sair de seu mundo
comum para resolver uma situação.
3 – Recusa ao Chamado – A figura heroica teme as mudanças e reluta em seguir em
frente com uma mudança.
74
4 – Encontro com o Mentor – O herói se depara com uma figura que lhe dá condições
ou encaminhamentos para se aventurar.
5 – Travessia do Primeiro Limiar – É quando o herói aceita o chamado e está prestes a
participar de algo que o mudará, mas enfrenta oposição de alguma força.
6 – Testes, Aliados e Inimigos – Aqui ele passa por testes que o tornam apto a continuar,
encontra aliados e se definem seus inimigos.
7 – Aproximação da Caverna Oculta – Forças opostas se levantam a fim de não deixá-
lo chegar ao seu objetivo.
8 – Provação – O herói chega em seu objetivo, a provação que o mudará como pessoa,
aqui ele enfrenta a maior resistência dos inimigos.
9 – Recompensa (Apanhando a Espada) – Consegue finalmente cumprir seu objetivo.
10 – Caminho de Volta – Ainda enfrenta resistência no caminho que o leva de volta ao
mundo comum.
11 – Ressurreição – Momento em que o herói morre metaforicamente e ressurge
mudado (juntamente de toda a experiência que adquiriu durante a jornada que agora está
fixa dentro de si).
12 – Retorno com o Elixir – Volta ao seu mundo comum (primeira etapa) com seu
objetivo concretizado e mudado como pessoa.
Não necessariamente uma obra seguirá essa ordem, bem como poderá não ter
todas as etapas da jornada, mas algumas delas sempre estarão lá. Estas, segundo Vogler,
aparecem em narrativas humanas capazes de nos cativar. Hamlet de Shakespeare, por
exemplo, está num dilema moral entre lutar ou não contra o assassino de seu pai. Sua
jornada heroica estaria voltada para a luta e para a recusa a este chamado como na etapa
três. Apesar de conseguir avançar, morre vítima da jornada e não tem como seguir aos
estágios dez, onze e doze; no entanto, fica implícito que era sua intenção e que estava
heroicamente disposto a morrer por isto. Contudo, todas as outras etapas estão presentes
nesta peça seja em ações físicas como ao nível simbólico, sendo suficientes para criar
empatia para com o expectador/leitor.
O padrão pode ser explicado também com uma metáfora: “Sabendo o que é a
espécie de tigre, podemos daí deduzir as propriedades de cada tigre particular; o
75
nascimento de um novo tigre não modifica a espécie em sua definição” (TODOROV,
2010, p. 10). Já Vogler vai mais longe ao dizer que a jornada existe na vida humana real
e que todos passam por jornadas heroicas. Afinal, esta jornada pode se manifestar
fisicamente, mas ela é uma imagem da nossa jornada psíquica. Um exemplo real
comum seria alguém que necessita encontrar um emprego. Primeiro sai de sua condição
de desempregado e decide procurar trabalho. Para isto precisa ser empurrado pela figura
de um mentor, seja uma pessoa que cumpre este papel ou uma necessidade pelo qual
nosso herói da realidade está passando. Ele enfrenta testes ao decidir se aprimorar para
conseguir tal emprego, também ganha amigos que podem ser reais, meramente ideias ou
figuras oníricas assim como adquire inimigos, cansaço, falta de tempo etc. Resolve
procurar o tal trabalho e assim está próximo da caverna oculta, o local onde será
provado para ver se é digno do trabalho. Conseguindo este, volta para casa satisfeito,
mas ainda pode enfrentar resistência questionando-se se é o emprego certo, se tudo
ficará bem. Passa o tempo e ele finalmente se acostuma com a nova atividade, gosta do
que faz e entende como funciona o local onde trabalha. Voltando para morada onde as
pessoas o conheciam na primeira etapa, mostra-se alguém mudado em relação à vida
profissional. Christopher Vogler admite que existem protagonistas que se aventuram
sem sentir resistência, como aqueles que falham fatalmente; o homem do exemplo
poderia ter errado a escolha profissional e passado a vida em agonia até se aposentar.
No entanto, só a jornada não é suficiente para termos uma base narrativa
completa, por isso os arquétipos de Jung estão presentes em todo o percurso. Esses
arquétipos são energias psíquicas contidas em todo o ser humano, mas que se
manifestam em momentos e etapas diferentes da vida. Na jornada do herói é onde esses
papéis acabam sendo definidos: cada personagem manifesta determinado arquétipo de
uma forma maior que os outros, mas isso também depende do ponto de vista da
narrativa. Segue um resumo dos arquétipos de Carl G. Jung:
Herói – O protagonista, aquele que tem um objetivo a cumprir e luta para obtê-lo,
mesmo que não o queira muito. Pode ser aquele que busca satisfazer as necessidades do
grupo a que pertence ou pode ser um anti-herói, é egoísta e não se importa com os
outros. Durante a jornada, um anti-herói pode mostrar características de herói ou vice-
versa, como também acontece de um arquétipo terminar a jornada como outro tipo.
Todos são heroicos em suas próprias histórias de vida. Segundo Vogler, mesmo o
inimigo de uma narrativa, é o herói de sua própria história.
76
Mentor – É a energia psíquica que ensina, dá capacidade para o herói enfrentar a
jornada.
Guardião de Limiar – É a figura que protege a saída do herói de seu mundo comum.
Sua função psíquica não é evitar que o protagonista se aventure, mas provar se é capaz
de sair, ou seja, se tem o que é necessário para sobreviver ao início da jornada fora de
seu cotidiano.
Arauto – É o arquétipo que lança o desafio ao herói ou anuncia a mudança que está por
vir.
Camaleão – Traduz a energia em movimento, são os arquétipos que mudam sua
condição física e/ou psíquica constantemente. Também se relaciona ao disfarce, quando
se precisa fingir para obter alguma coisa. Não deixa de ser um arquétipo que traduz a
condição entre homem e mulher, pois o sexo oposto pode sempre parecer um camaleão
por um não entender o outro completamente.
Sombra – É o arquétipo que se opõe completamente ao objetivo do herói. Na psique
humana, são todas as emoções e ideias que vão contra os objetivos de alguém, mas
estão na sua própria mente. Muitas vezes a sombra é a tradução de desejos reprimidos
que são positivos, porém, por algum valor moral, as pessoas tentam afastá-los.
Pícaro – É a figura arquetípica que questiona o status quo. Segundo Vogler “Incorpora
as energias das vontades de pregar peça e do desejo de mudança. Todos os personagens
de uma história que são principalmente palhaços ou manifestações cômicas expressam
esse arquétipo” (VOGLER, 2006, p. 129)
Estas, por assim dizer, manifestações psíquicas podem ocorrer internamente, na
psique de um ser, ou se manifestarem fisicamente como alguém ou algo. Na jornada, as
principais manifestações, até mesmo mais recorrentes ou clichês, seriam o herói e a
sombra/antagonista que precisa derrotar. Esta pode se manifestar como um vilão físico
que traduz tudo aquilo que o herói não quer ser. Analisando profundamente, a jornada
do herói acaba, sem querer, dando suporte à teoria marxista, já que uma melhora na
condição do protagonista acontece por meio de um choque entre ideias. Estas podem ser
de uma pessoa com ela mesma, entre pessoas, entre grupos ou classes sociais e mesmo
entre sociedades. Guerras não são nada mais que heróis de suas próprias histórias e suas
contrapartes lutando para um se sobrepor ao outro. Lembrando-se aqui, é claro, de que
77
essa visão heroica não é maniqueísta, já que eleva a sombra à condição de parte do
herói, contudo, que não é aceita por este.
Herói esse que, como pudemos ver, representa a própria saga humana, a trama nar-
rativa cuja matéria-prima viva é ao mesmo tempo a própria espécie, e cada
indivíduo, ele mesmo. Trama narrativa que tem como universo possível os textos da
cultura – espaço de realização de linguagem (CONTRERA, 1996, p. 120).
Ainda sobre o tema do mito moderno, Eliade nos mostra a importância do
enredo e de uma aventura ficcional para o ser humano ao dizer que
Embora, no Ocidente, o conto maravilhoso se tenha convertido há muito tempo em
literatura de diversão (para as crianças e os camponeses) ou de evasão (para os
habitantes das cidades), êle ainda apresenta a estrutura de uma aventura
infinitamente séria e responsável, pois se reduz, em suma, a um enredo iniciatório:
nêle reencontramos sempre as provas iniciatórias (lutas contra o monstro, obstáculos
aparentemente insuperáveis, enigmas a serem solucionados, tarefas impossíveis,
etc.), a descida ao Inferno ou a ascensão ao Céu (ou – o que vem a dar no mesmo – a
morte e a ressureição) e o casamento com a Princesa (ELIADE, 1986, p. 173).
Por essa necessidade de uma narrativa que introduza temas à psique que as
pessoas são tão cativadas por essas histórias. E não temos uma única narrativa que sirva
infinitamente à humanidade, mas sim várias atualizações em um ciclo permanente de
renascimento, pois “dentro do espírito e do organismo social deve haver (...) uma
contínua „recorrência de nascimento‟” (CAMPBBELL, 2007, p. 26).
Em Corto Maltese, podemos já em um olhar inicial identificar que a jornada
acontece Sob o Signo de Capricórnio. Geralmente as narrativas costumam colocar um
arquétipo predominante em cada personagem, fazendo os demais serem secundários,
assim como a jornada costuma ser apenas do protagonista. Todavia, muitas vezes esse
sistema pode se alterar e temos, assim, grandes mudanças de arquétipos e de
relacionamentos entre personagens, mas nosso (anti-)herói, Corto Maltese, segue um
papel fixo em Sob o Signo de Capricórnio, ao menos até a página 94 e antes do início
do capítulo V (consideremos aqui a versão brasileira de 2006), pois depois temos uma
mudança de ambiente e, apesar de a história estar continuando, a narrativa e seus
conflitos seguem outros caminhos isolados, disto será falado posteriormente. O papel
fixo de Corto é o de protagonista, mas ele “pega uma carona” na aventura de outra
figura. Na história analisada nesta dissertação (com a devida ressalva de até a página
94), Corto toma para si a jornada do personagem Tristan Bantan e o auxilia em uma
78
aventura. Dessa forma, podemos encarar Corto como um herói e protagonista, mas seu
arquétipo encarna a figura de mentor.
Em outras histórias, como em Corto Maltese A Juventude (PRATT, 2011), Corto
acaba por ter uma função diferenciada, pois nessa história ele aparece somente após
metade da narrativa e não cumpre com o papel de protagonista da ficção. Todavia,
acaba por “roubar a cena” ao final. Temos ali um deslocamento de herói e protagonista
em uma mesma edição. Por outro exemplo, em A Balada do Mar Salgado (1982), temos
uma jornada que conta a aventura do próprio Corto Maltese do início ao fim. Inclusive a
apresentação do personagem “crucificado” e abandonado no mar (Imagem 28)
escancara essa questão, pois remetemos a um clichê explorado à exaustão nas narrativas
modernas ocidentais, o do herói salvador que nos lembra do messias da religião cristã,
Jesus Cristo.
Vale salientarmos que, dentre tantas abordagens metodológicas de análise
narrativa, a jornada do herói uma possibilidade entre tantas outras. Todavia, ela sempre
está lá. Até hoje, para essa linha, nenhuma barreira se tornou incontornável.
Imagem 28 – Corto Maltese: A Balada do mar Salgado.
Fonte: PRATT, 1982, p. 9.
2.4. A jornada do herói em Corto Maltese
Em Sob o Signo de Capricórnio, como a primeira linha textual sugere, a história
começa com Corto Maltese descansando preguiçosamente na varanda de uma pensão na
capital da Guiana Holandesa (atual Suriname) e nos apresenta rapidamente ao mundo
comum do personagem, segundo o termo utilizado por Joseph Campbell e Christopher
Vogler. Isso até o destino lhe impelir para o caminho que traçará posteriormente o que
Vladimir Propp classifica como função do afastamento quando o personagem é
79
distanciado de sua situação inicial e impulsionado a uma mudança (PROPP, 2006, p.
19). A calmaria de Corto já parece ter fim com a aparição do personagem de Jeremiah
Steiner que é expulso bem ao lado de onde Corto buscava relaxar. Professor da
Universidade de Praga, Steiner é amargo com a vida o que lhe tornou um bêbado.
Apesar da rispidez com que Corto Maltese trata o professor, o mesmo não se sente
ofendido e continua depressivo. A personagem da Madame Java, que está com Corto,
conta um pouco da história de Steiner e também é respondida com sarcasmo pelo
protagonista. Pontuada aqui a personalidade egocêntrica de Corto isso nos leva a crer,
neste momento, que o protagonista encarna um típico anti-herói. Posteriormente, fica
mais claro que o Professor Steiner faz o papel de mentor nesta edição de Corto Maltese,
pois apesar de suas peculiaridades e problemas com o álcool, é ele quem sabe explicar
lendas e indicar caminhos aos personagens. É claro que, como já mencionado, Corto é
também mentor para outros personagens, ele é o herói-mentor. Em mais uma
comparação com a HQ de Tintim, Steiner faz o mesmo tipo do Capitão Haddock. Esse
encontro inicial de Corto com o professor chega a ser decisivo para uma ação futura de
Corto. Nela, este o ajudará a lutar contra valentões, situação a qual desencadeia as ações
já demonstrada nas Imagens 18, 19 e 23. Mesmo que Corto nunca fuja de uma boa briga
e pareça pensar somente em si por causa de seu sarcasmo com as situações da vida, ele
se mostra preocupado com os outros e é impelido, por vontade própria ou não, a ajudar
os indefesos. Agora podemos pensar Corto mais como um herói, egocêntrico e não cem
por cento ético e moral, logo, mais humano.
Na sequência aparece Tristan Bantan, personagem central em Sob o Signo de
Capricórnio e quem possui a demanda por uma aventura. Aqui encontramos o destino,
o chamado à aventura de Corto Maltese que o leva além de sua varanda, local onde
descansava preguiçosamente. Temos o conflito principal revelado e o que fará quase
toda a história de Sob o Signo de Capricórnio funcionar: Tristan é filho de um velho
amigo de Madame Java e está procurando pelo misterioso reino de Mú, pois é
atormentado por visões e vozes que lhe encaminham para essa busca. Todavia, nesse
momento, Corto acha que não é de seu interesse e recusa ao chamado, sai rumo ao seu
barco e é então que ele se envolve na já citada briga e acaba por salvar o Professor.
Aqui, graças a uma pergunta sarcástica de Steiner, eles acabam definindo que tipo de
herói o personagem é:
80
Imagem 29 – Corto Maltese: Sob o Signo de Capricórnio.
Fonte: PRATT, 2006, p. 13.
Na Imagem 29, notamos como Steiner indaga por qual motivo Corto Maltese o
salvou, este é sarcástico na resposta, mas o Professor responde na mesma moeda. Essa
situação evidencia que Corto é um herói que não gosta muito de sua condição
messiânica devido ao seu passado sombrio no qual foi um herói que buscou utopias,
mas falhou nessas jornadas e, por isso, foge da realidade. Provavelmente essa situação
se deve ao período histórico em que a narrativa se desenrola, um mundo instável em
razão da Primeira Guerra Mundial. Aqui, um dos toques de realismo na narrativa, pois
nem sempre todos saem ilesos ou mesmo vivos nas aventuras de Corto e poucas vezes
os objetivos são conquistados, logo é impossível uma jornada acabar utopicamente feliz.
O que importa para Corto e sua sombra e colega muitas vezes presente, Rasputin, é a
jornada. “Nesse sentido, mais do que nunca o que importa é o percurso percorrido, que
se confunde com o objetivo em si; ou seja, o caminho é o único fim possível, apontando
naturalmente para um recomeço” (CONTRERA, 1996, p. 112) ou ainda “o herói
mitológico não é patrono das coisas que se tornaram, mas das coisas em processo de
tornar-se” (CAMPBELL, 2007, p. 324). Inclusive, a importância da jornada em
detrimento de uma ilusão de fim, cai como uma luva para obras seriadas como os
quadrinhos, nas quais geralmente temos várias edições e arcos narrativos que se iniciam
e terminam.
Voltando à análise, além do encontro que Corto Maltese teve com Steiner, temos
uma nova fase de encontro com o mentor, quando Madame Java solicita que Corto ouça
a história de Tristan (PRATT, 2006, p.15). É então que Tristan conta que foi chamado
por vozes e por um nome de uma figura mítica, o orixá Ogum Ferreiro (PRATT, 2006,
p. 16). Logo em seguida, a mensagem do chamado é confirmada pela Baianinha que
traz informações sobre Morgana, a irmã de Tristan (PRATT, 2006, p. 17). Ela encarna o
81
arquétipo do arauto, conforme proposto por Vogler (2006), pois é quem lança o desafio
que está por vir para o herói. Por fim, Corto que até então parecia ser somente o mentor
dessa história de Tristan, começa cada vez mais a ser impelido para a aventura pela
baiana que anuncia que Corto Maltese também está em perigo, segundo revelação de
Iemanjá, após Olhos de Sapo atirar em Tristan (PRATT, 2006, p. 19). Na sequência, o
barco de Corto, com Steiner adormecido dentro, é queimado por bandidos e o
protagonista finalmente nota que faz parte dessa aventura mesmo recusando o chamado
brevemente nesse momento (PRATT, 2006, p. 22).
Imagem 30 – Corto Maltese: Sob o Signo do Capricórnio.
Fonte: PRATT, 1997, p.34.
Nesse momento vale uma pausa do andamento da jornada do herói para
lembrarmos que a estrutura da jornada e suas fases estão acontecendo, mas em uma
ordem um pouco diferente da estabelecida por Vogler com algumas quebras e até quase
supressão de um dos estágios. Tivemos a apresentação do mundo comum, encontro com
o mentor Professor Steiner, Tristan já se aventurando, uma breve recusa da parte de
Corto por não ter interesse, um novo encontro com mentor no qual Corto Maltese é
definido como herói-mentor, chamado da aventura para Tristan e Corto e, por fim, uma
abreviada e verdadeira recusa ao chamado pela parte de Corto. As jornadas do
marinheiro e do jovem Tristan Bantam enfim se unem e notamos praticamente como a
82
jornada do herói e os arquétipos estão ali formando esse mito moderno, mas que ela
realmente não é uma estrutura rígida e imutável apesar de as partes se fazerem
presentes. Nesse trecho que se passou, também fomos apresentados à visão do
estrangeiro e de como Hugo Pratt retrata os clichês por meio dos quais os europeus
enxergam as religiões brasileiras de matriz africana.
Imagem 31 – Corto Maltese: Sob o Signo do Capricórnio.
Fonte: PRATT, 2006, p.17.
Percebe-se nitidamente como o olhar do estrangeiro é superficial e mistificador
da religião brasileira ao associar, sem maiores ressalvas, o candomblé (que também será
tratado como “macumba”) ao ritual do vodu, que é haitiano. Além disso, percebe-se
uma tentativa um tanto desastrada de sincretizar o Candomblé ao Espiritismo
Kardecista, como se tivesse sido psicografada uma mensagem ditada por Ogum, o que
não é possível na religião afro-brasileira, uma vez que os orixás só se comunicam por
meio do jogo de búzios.
83
Dando sequência, Corto Maltese procura pelos meliantes responsáveis pela
tentativa de assassinato de Tristan e pela queima do seu barco (PRATT, 2006, p. 23),
aqui, observa-se claramente a travessia do primeiro limiar onde um guardião precisou
ser superado. Também encontramos aqui uma singularidade repetida muito pelo mito do
herói moderno, Corto Maltese encarna, segundo Campbell, o herói guerreiro;
geralmente retratado como aquele cuja lança aponta contra o dragão, este tipo de herói
supera desafios físicos. Ainda diz que “o local de nascimento do herói, ou a terra remota
de exílio de onde ele retorna para realizar suas tarefas de adulto entre os homens, é o
ponto central ou centro do mundo” (CAMPBELL, 2007, p. 322). Corto não é o herói
que se aventura em um total desconhecido, mas é sim um velho conhecedor do mundo
que visita terras remotas para realizar fainas ou, em outras histórias que não estamos
analisando profundamente no momento, volta também para seu local de nascimento.
Poderíamos encará-lo, segundo termo de Campbell, como um senhor de dois mundos
(CAMPBELL, 2007, p. 225), pois ele parece transitar entre esse mundo dos homens e
um mundo mais elevado, no qual já encontrou respostas, mas não um fim.
Após uma aula sobre hieróglifos que Steiner ministra a Tristan e Corto, numa
espécie de referência metalinguística aos quadrinhos e à linguagem de um modo geral
(PRATT, 2006, p. 26), os três se lançam à busca pelo desconhecido. A partir do início
capítulo II, “Encontro na Bahia”, começa a fase de testes, aliados e inimigos. Segundo
Vogler (2006, p. 204), é aqui que o herói encara o contraste com o mundo comum,
passa por provações, encontra quem o ajuda e forma uma equipe e encontra com seus
antagonistas. Levando em conta que Corto Maltese é um senhor de dois mundos, ele
passa por todas essas fases juntamente de Tristan, exceto pelo choque cultural que é
exclusivo do menino, pois Corto é um viajante e enxerga as culturas de fora, mas esses
ambientes já lhe são conhecidos e muitos ele já acessou anteriormente. A interpretação
sob um ponto de vista exótico perpassa Tristan que indaga o motivo de sua irmã estar
rodeada de “estranhas feiticeiras”, já Corto, ao dizer que a irmã de Tristan cresceu numa
“parte do mundo tão diferente da sua Inglaterra” (PRATT, 2006, p. 31), ensina o
menino fazendo-o refletir sobre o fato de o mundo ser um lugar de contrastes. No caso
da equipe, encontramos a resposta à questão Corto e Tristan serem ambos heróis, pois
“muitas histórias apresentam heróis múltiplos, ou um herói apoiado em uma equipe de
personagens com habilidades ou qualidades específicas” (VOGLER, 2006, p. 207).
84
Temos então encontro com aliados na figura do ex-presidiário Caiena e alguns
índios que apontam caminhos aos personagens (PRATT, 2006, p. 34). Na sequência, os
personagens encontram-se enfim com a irmã de Tristan, Morgana. O rapaz passa por
um choque ao notar que ela é negra, mas Steiner e Corto, ambos no papel de mentores,
falam para ele não ter preconceitos.
Imagem 32 - Corto Maltese: Sob o Signo do Capricórnio.
Fonte: PRATT, 1997, p. 51.
Nesta altura da jornada, é comum que personagens adentrem locais
movimentados como bares ou saloons (VOGLER, 2006, p. 209) como quando Luke
Skywalker está sem rumo definido em sua aventura e se encontra com Han Solo no
filme Star Wars Episódio IV: Uma Nova Esperança, mas isso é uma situação pouco
corriqueira nas aventuras de Corto Maltese. Normalmente, ele só encontra-se com
alguns grupos de pessoas que lhe auxiliam de alguma maneira, como aqui em Sob o
signo de Capricórnio.
Chegamos ao sétimo estágio descrito por Campbell, a aproximação com a
caverna oculta. Tristan encontra muitas respostas desconhecidas com sua irmã
Morgana (PRATT, 2006, p. 40), então forças do inconsciente se levantam contra Tristan
(vide imagens 24 e 25). Aqui temos uma antecipação do décimo primeiro estágio para
85
Tristan (a ressurreição), pois ele passa por uma morte e um renascimento simbólicos,
por meio dos quais teve experiências que o mudarão. É então que a sombra de Tristan,
seu antagonista e advogado da família, aparece como provação no oitavo estágio, o da
provação (PRATT, 2006, p. 45). Tristan clama pelo seu herói salvador: “gostaria que o
senhor Corto Maltese estivesse no meu lugar” (PRATT, 2006, p. 45), e, então, Corto
aparece salvando-o do advogado responsável pela morte de seu pai e, na sequência, com
tudo resolvido, o crânio de Tezcatlipoca aparece misteriosamente na porta da casa de
Morgana caracterizando o nono estágio, o da recompensa. Os personagens são então
encaminhados à Ilha de Maracá, onde Boca Dourada e o início do caminho de volta,
décimo estágio, avistam-se.
Todavia, é notável que aqui vemos uma inversão de caminhos na narrativa, pois
Tristan estava perseguindo as anotações de seu pai em relação ao reino perdido de Mú
(PRATT, 2006, p. 16) e o inconsciente lhe levava para essa demanda, mas o final de sua
jornada, ao menos em Sob o signo de Capricórnio, torna-se uma espécie de vingança ou
justiça feita pela morte de seu progenitor. Aqui vale pontuar uma característica da obra
de Hugo Pratt na totalidade: várias tramas ou subtramas ficam em suspenso para abrir
caminho a outras, sendo que algumas delas retornam em edições posteriores ou já
haviam sido abordadas em anteriores, dando uma característica de saga à obra. Na
última edição produzida e publicada por Pratt, Mu a Cidade Perdida, o próprio Tristan
volta a aparecer anos mais tarde na vida de Corto justamente para auxiliá-lo a procurar o
continente perdido de Mu, mas ali a jornada já é outra e Tristan é só um personagem
coadjuvante. As várias jornadas de cada edição de Corto e outros personagens se
entrelaçam em um grande emaranhado, maior do que cada narrativa, formando um todo
do qual optamos, neste momento, por isolar a história narrada em Sob o Signo de
Capricórnio.
No capítulo III, “Samba com Tiro Certeiro”, Corto e os demais se encontram
com Boca Dourada, uma mulher misteriosa que aparentemente tem muitos anos a mais
de vida do que um ser humano comum conseguiria ter. Aí temos uma mudança de foco
e da aventura, Tristan só está acompanhando Corto que, afinal, toma para si só o papel
de herói e se afirma como protagonista ao aceitar uma demanda de Boca Dourada. O
marinheiro assume a proposta aparentemente só pelo lucro monetário (PRATT, 2006, p.
56). O grupo formado por Corto, Tristan e Steiner dirige-se então ao cangaço e lá
participam da jornada dos cangaceiros mostrando claramente a quebra de tema e início
86
de uma nova jornada (vide imagem 22). Após fazer uma leitura de como era o governo
brasileiro no início do século XX (PRATT, 2006, p. 59), Corto se torna responsável
pelo nascimento de um novo chefe político, segundo o Professor Steiner: Tiro Certeiro
foi encaminhado por Corto Maltese. Essa mescla de figuras históricas ou semi-
históricas reais na narrativa do marinheiro é constante na maioria de suas aventuras,
mais um traço de Hugo Pratt. Após ajudar os revoltosos a se livrar do coronel corrupto,
Corto unge Corisco de São Jorge como o novo chefe dos cangaceiros (PRATT, 2006, p.
72), pois Tiro Certeiro morreu na empreitada. Aqui, novamente numa analogia à Bíblia,
Corto encarna novamente o mentor numa figura facilmente identificada com João
Batista e Corisco seria o futuro salvador, o nosso Jesus Cristo.
No quarto capítulo, “A águia do Brasil”, temos novamente Boca Dourada
encaminhando os personagens a uma aventura. Tristan continua como coadjuvante e
Steiner como conselheiro e aqui temos, enfim, as demandas do próprio Corto Maltese
postas em pauta: a busca por tesouros ou segredos. Tudo culmina no último capítulo
relacionado com a aventura que se iniciou na varanda da pensão de Java, “... E
Falaremos mais uma vez dos Cavalheiros da Fortuna”. Vale lembrar que, apesar de
fazerem parte de um todo que se fecha em si, Sob o Signo de Capricórnio muitas vezes
foi publicado em edições menores o que pode ter acarretado a inclusão de capítulos
posteriores à aventura de Tristan, sejam elas o fechamento do enredo iniciado com o
jovem inglês atrás de sua irmã Morgana ou não.
Apesar de continuar cronologicamente, o último capítulo contido no álbum Sob
o signo de Capricórnio, “Por Causa de Uma Gaivota”, é uma história totalmente isolada
e sua pequena trama não remete diretamente a nada acontecido anteriormente, ela só é
uma espécie de introdução para o que está por vir na edição, Corto Maltese: Sempre Um
Pouco Mais Distante.
No quinto capítulo, Tristan chega a ser abandonado pelo autor e desaparece após
as páginas iniciais. É aqui que, finalmente, Corto Maltese é posto à prova ao se
encontrar com Rasputin. Inúmeras vezes, o parceiro de viagens de Corto é Rasputin, um
sociopata russo que, arquetipicamente e dentro da jornada heroica de Corto como um
todo, além de amigo, faz o papel de sua sombra. Corto é avesso à maneira de agir de
Rasputin que costuma ser muito violento e inescrupuloso, matando qualquer um que
esteja em seu caminho, apesar de o russo buscar as mesmas coisas que Corto, ser um
Cavalheiro da Fortuna. Essa singular relação entre os dois significa que o herói
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“descobre e assimila seu oposto (seu próprio eu insuspeitado), quer engolindo-o, quer
sendo engolido por ele. (...) Então, descobre que ele e seu oposto são, não de espécies
diferentes, mas de uma mesma carne” (CAMPBELL, 2007, p. 110).
Imagem 33 – Corto Maltese: Sob o Signo de Capricórnio.
Fonte: PRATT, 2006, p.103.
Corto Maltese sempre entra em conflito com Rasputin, chegando ao ponto da violência,
vide a imagem abaixo. Curioso como Rasputin é inconstante, hora parece prestes a
matar Corto, hora o encara como seu único amigo. Nesse ponto, ele é também a figura
que encarna o arquétipo do camaleão.
Imagem 34 - Aventuras de Corto Maltese na Sibéria: II – Ungern da Mongólia.
Fonte: PRATT, 1979b, p. 21.
88
Após inúmeros percalços, a busca por um tesouro perdido e o encontro com a
figura do pícaro encarnada no louco da ilha que também exerce um antagonismo a
Corto (PRATT, 2006, p. 105), a narrativa enfim tem seu décimo primeiro estágio da
jornada, ressurreição, quando Corto e Rasputin se tornam um dos poucos sobreviventes
de um tiro de canhão (PRATT, 2006, p. 112). Tragicamente e ironicamente, temos
também aqui o estágio da recompensa para Corto, que recebe seu tesouro através de
um tiro, mas isso que lhe trará também mudanças, sua verdadeira recompensa (PRATT,
2006, p. 111).
Apesar de o estágio de ressureição para Corto ser simples, mais para ilustrativo e
não tão grandioso quanto o de um salvador da humanidade como Buda, é ele que
encaminha a mudança e a reflexão no herói, pois ironicamente, a munição era
justamente o tesouro que procuravam e Corto Maltese é quem prontamente identifica
esse acaso triste, mas risível (PRATT, 2006, p. 114). Aqui, mesmo não conseguindo
conquistar o que queria materialmente, Corto foi mudado espiritualmente por toda sua
jornada. O décimo segundo e último estágio da jornada, retorno com o elixir, está
cravado com uma última ironia na qual a informação necessária para tudo ter sido
diferente chega atrasada (PRATT, 2006, p. 116).
Corto não retorna ao seu mundo comum, não com a coisa material pretendida,
mas com uma soma de experiências. O seu barco e o mar, afinal, cravam o mundo
comum de Corto: um mundo do homem moderno, com uma vida em trânsito, sua casa é
a viagem e o deslocamento, não um espaço físico e imutável.
Temos aqui mais uma característica marcante de todas as histórias de Corto
Maltese de um modo geral, afinal o que sempre importa é o percurso da jornada, as
experiências que dela se conquista e não o seu breve e efêmero fim.
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Agora podemos visualizar o resumo da jornada do herói em Corto Maltese: Sob
o Signo de Capricórnio através da tabela a seguir:
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3. FÓRMULA? UMA CONCLUSÃO
Aqui, foram abertas as cortinas para caminhos e possibilidades referentes aos
estudos sobre a linguagem das HQs. O estudo dos quadrinhos e da arte sequencial
engloba um grande grupo de narrativas presentes na cultura de hoje, como o cinema,
videojogos, seriados, novelas etcs. Logo, seu estudo pode interessar diversas áreas que
se preocupem em estudar narrativas, mitos, contemporaneidade, dentre outros tantos
temas. Corto Maltese é um exemplo pertinente de ser observado, especialmente pela
falta de literatura sobre o tema no Brasil mesmo Hugo Pratt sendo um autor tão
próximo, ao menos como um viajante, de nós.
Apesar de aparentemente caótica, comprovamos que a jornada do herói,
seguindo os passos de Vogler, ocorre em Corto Maltese: Sob o Signo de Capricórnio.
Dessa maneira, parece-nos notável como padrões arcaicos reaparecem nos textos
que se propõem mais contemporâneos, apontando assim para a questão do tempo
mítico como sendo o tempo que atua na comunicação cultural, que se dá mesmo na
atualidade que se diz vanguarda e, aparentemente, despreza o passado. Afinal, para o
mito, apenas o que se relaciona às origens da vida é criativo, e esse retorno às
origens e ao tempo original se dá sempre por meio do processo ritual (CONTRERA,
1996, p. 70).
Os estudos referentes à mitologia e a narrativa contemporânea parecem afirmar o
que Contrera diz e temos hoje a mídia e seus produtos culturais como os substitutos dos
antigos mitos e seus ritos. Num caminho similar ao de Benjamin e Bauman que, como
já citado encontram o valor dos significados se desmantelando para as pessoas e para as
sociedades, Campbell parece um tanto desesperançoso quanto ao desaparecimento dos
rituais e do significado simbólico do herói no mundo moderno (CAMPBELL, 2007, p.
372). Todavia ele mesmo, em entrevista que concede ao jornalista Bill Moyers na série
de documentários, O Poder do Mito, parece animado com o panorama que o mito na
mídia, desde que através de produtos midiáticos com um viés mais profundo e artístico,
pode conferir ao ser humano moderno. Para exemplificar, ele cita o filme Star Wars de
seu amigo, o cineasta George Lucas. Nele, a jornada presente traz significado até
mesmo ritualístico aos expectadores. Hoje, com o recente Os Últimos Jedi, notamos que
as legiões de fãs consumindo os produtos e fazendo dos ensinamentos da narrativa seus
ensinamentos de vida continuam fortes, transgeracionais e sem data de validade. Star
Wars já ultrapassa quatro décadas no imaginário das pessoas com sua narrativa principal
(filmes) ou subprodutos (livros, jogos eletrônicos etc.).
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O certo é que o desejo pelo contato com uma mitologia é uma constante na vida
humana, afinal “o poderoso herói, dotado de poderes extraordinários (...) é cada um de
nós: não o eu físico, que podemos ver no espelho, mas o rei que se encontra em nosso
íntimo” (CAMPBELL, 2007, p. 352). Essa experiência de alteridade e de um norte para
nossas vidas se faz necessária à medida que “o herói, por conseguinte, é o homem ou a
mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas pessoais e locais e alcançou
formas normalmente válidas, humanas” (CAMPBELL, 2007, p. 28). Nesse ponto, Corto
Maltese traduz esses anseios em um mito moderno, com as talvez inefáveis condições
do homem moderno, mas com certeza com a luta e a busca justamente por essa
superação e o entendimento de como se aventurar pela vida. Assim, “nem sequer
teremos de correr os riscos de nos aventurarmos sozinhos; pois os heróis de todos os
tempos nos procederam; o labirinto é totalmente conhecido” (CAMPBELL, 2007, p.
31).
Mas existe, afinal, um padrão imutável nas narrativas arquetípicas e os
quadrinhos como linguagem e narrativa estariam, logo, fadados a sempre estarem
inseridos nesse padrão? Depende do ponto de vista. Como Todorov sabiamente nos
exemplificou com a metáfora do tigre e da espécie, o mito e os arquétipos são um
complexo que necessitam ser analisados por diferentes espectros. Vogler, Jung,
Campbell, Contrera e outros autores nos mostraram um norte para a narrativa
arquetípica em um produto da mídia moderna, mas o que realmente causa empatia e
identificação deve continuar a ser explorado por diversas reflexões e objetos que, afinal,
são os responsáveis pela mitologia e significação individual das narrativas e de cada um
de nós.
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