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SEMINÁRIO SOBRE A CRISE FINANCEIRA

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SEMINÁRIO SOBRE ACRISE FINANCEIRA

MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES

Ministro de Estado Embaixador Celso AmorimSecretário-Geral Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães

FUNDAÇÃO ALEXANDRE DE GUSMÃO

Presidente Embaixador Jeronimo Moscardo

Instituto de Pesquisa em Relações Internacionais

Diretor Embaixador Carlos Henrique Cardim

A Fundação Alexandre de Gusmão, instituída em 1971, é uma fundação pública vinculada aoMinistério das Relações Exteriores e tem a finalidade de levar à sociedade civil informaçõessobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomática brasileira. Sua missão épromover a sensibilização da opinião pública nacional para os temas de relações internacionaise para a política externa brasileira.

Ministério das Relações ExterioresEsplanada dos Ministérios, Bloco HAnexo II, Térreo, Sala 170170-900 Brasília, DFTelefones: (61) 3411-6033/6034/6847Fax: (61) 3411-9125Site: www.funag.gov.br

Brasília, 2009

IV Conferência Nacional de Política Externa ePolítica Internacional - IV CNPEPI“O Brasil no mundo que vem aí”

Seminário sobre aCrise Financeira

Rio de Janeiro, 29 de maio de 2009

Copyright ©, Fundação Alexandre de Gusmão

Fundação Alexandre de GusmãoMinistério das Relações ExterioresEsplanada dos Ministérios, Bloco HAnexo II, Térreo70170-900 Brasília – DFTelefones: (61) 3411 6033/6034/6847/6028Fax: (61) 3411 9125Site: www.funag.gov.brE-mail: [email protected]

Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional conformeLei n° 10.994, de 14/12/2004.

Capa:XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX

Equipe Técnica:Eliane Miranda PaivaMaria Marta Cezar LopesCíntia Rejane Sousa Araújo GonçalvesErika Silva NascimentoTalita Castanheira TaticoJuliana Corrêa de FreitasJúlia Lima Thomaz de Godoy

Programação Visual e Diagramação:Juliana Orem e Maria Loureiro

Impresso no Brasil 2009

Conferência Nacional de Política Externa e PolíticaInternacional - III CNPEPI : (3 : Rio de Janeiro :2009). "O Brasil no mundo que vem aí" : Crisefinanceira. - Brasília : Fundação Alexandre deGusmão, 2009.80p.

1.Política externa - Brasil. 2. Política internacional -Brasil. I. Título. II. O Brasil no mundo que vem aí.III: Crise financeira.

CDU 327:33

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Apresentação

Este Seminário teve como objetivo pensar a crise financeira, sem aslimitações de tempo das análises jornalísticas. Com efeito, sob a pressãoimperiosa dos relógios, as análises de imprensa geralmente padecem dacondição de frutos de meditação insuficiente. A fim de permitir exame maisaprofundado da questão, o Ministro Celso Amorim, através da FundaçãoAlexandre de Gusmão, convocou o melhor do vetor do saber no campo daeconomia para pensar a crise desde uma perspectiva brasileira.

Eis o resultado.

Embaixador Jeronimo MoscardoPresidente da Fundação Alexandre de Gusmão

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Debates

— Embaixador Jeronimo Moscardo, Presidente da FUNAG:

Bom dia. Estamos aqui reunidos, na Casa do Barão. Há poucos meses,a Maria da Conceição Tavares teve um “Encontro com o Barão”. Aqui ehoje ela volta para um encontro ampliado, para falar sobre a crise financeira.Antes de começar os trabalhos, eu queria fazer um exercício de históriaconjectural. O que seria do Brasil sem a paixão de Maria da ConceiçãoTavares, sem as intervenções, sem as rupturas, sem as provocações de Mariada Conceição Tavares, de Carlos Lessa, de João Paulo de AlmeidaMagalhães? Até hoje, ninguém compreende por que Carlos Lessa deixou apresidência de um dos maiores bancos do mundo, que é o BNDES. É muitoconfortável continuar, é muito confortável adotar a Lei de Gerson e levarvantagem em tudo. Aqui, nós queremos agradecer especialmente, porqueMaria da Conceição Tavares tem uma contribuição extraordinária à Históriado Brasil. Talvez nós não tenhamos seguido o modelo do Menem, inclusive,de adotar o dólar como moeda nacional, também seguido pelo Equador, porcausa de Maria da Conceição Tavares. Ela gritou, inclusive, naquele tempojá passado, contra Roberto Campos, contra Bulhões, e, mais recentemente,vocês têm acompanhado a sua militância. Portanto, o Embaixador CelsoAmorim nos proporciona o privilégio de estarmos aqui reunidos para pensaro Brasil.

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Eu queria evocar também essas rupturas anti-Gerson, porque no Brasilvigora muito a Lei de Gerson, de levar vantagem em tudo. Eu queria lembrar,Samuel Pinheiro Guimarães, que fez a grande ruptura no Ministério, quandopresidiu o IPRI, para evitar a ALCA, nos valendo da colaboração do grandenegociador brasileiro, Embaixador Bahadian.

Eu quero dizer a todos vocês que esse centro aqui, esse think-tank quese forma aqui, sob o patrocínio do Barão do Rio Branco, não tem financiamentodas Nações Unidas, não tem financiamento de nenhuma ONG alemã, denenhuma fundação alemã, nem da CIA. Nós estamos aqui para pensarlivremente o Brasil, o livre pensar, o grande prestígio do vetor do saber. Coma palavra Maria da Conceição Tavares.

— Maria da Conceição Tavares, UFRJ:

Primeiramente, eu quero agradecer ao Embaixador Jeronimo Moscardo,que representa a Fundação Alexandre de Gusmão, e dizer que ele não temrazão em me atribuir o que seria o Brasil sem mim. Algum economista teriaque perguntar o que seria o Brasil sem o mestre Celso Furtado e os seusdiscípulos.

Agora, eu me honro de ser uma primeira discípula, de primeira hora, deCelso. Ele tem muitos discípulos, muitos companheiros de trabalho, muitosalunos que levaram a luta à frente. O Brasil é talvez o único país da AméricaLatina que tem um conjunto de economistas políticos que, desde a Ditadura,sempre enfrentaram a batalha. Enfrentaram a batalha na Ditadura, em situaçõesdifíceis, e depois, quando houve a abertura democrática, no período doneoliberalismo. Ninguém que está nesta mesa, que eu saiba, e alguns dosausentes, apoiou essa onda de loucura que invadiu o mundo a partir da décadade 80 e que nos conduziu a esse desastre dessa crise atual.

Evidentemente, vocês não acham que essa crise começou apenas com acrise dos subprimes. Isso foi apenas o detonador, que foi a demonstraçãoda loucura elevada ao limite.

Na verdade, não é que o Brasil queira levar vantagem em tudo. O Brasilé um país acomodado, acomodatício, até porque ele tem uma posiçãointernacional ambígua. Nós temos uma inserção internacional independente,até prova em contrário, embora estejamos ganhando crescente autonomianos últimos anos. Por outro lado, temos sempre a ideia de que é possível terum projeto nacional. Eu não tenho tanta certeza de que seja possível um

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projeto nacional, dada a fragmentação, tanto das classes dominantes quantodas classes dominadas. O Brasil não é um país que tenha uma hegemoniapolítica clara de nenhum setor. Não somos tão conservadores quanto osEstados Unidos. Ou seja, o que o conservadorismo brasileiro obrigou o Lulaa fazer não é nada comparado com o que o conservadorismo americano estáobrigando o Obama a fazer. Eu não tinha ilusões, não por falta de respeitopelo Obama, porque eu até o acho uma figura interessante, mas, obviamente,não tinha ilusões de que uma figura isolada fosse capaz de vencer aquelacorrelação de forças. Aliás, hoje, até a direita concorda com que a crisedecorra de uma aliança explícita (que agora não é mais só implícita) entre aoligarquia financeira privada e, obviamente, o poder público.

Essa crise não teria ocorrido, não fosse o fato, particularmente visível,desde o Governo Clinton, de que o FED e o Tesouro Nacional operaramsempre a favor da premissa de que nenhuma instituição financeira grandepodia, na verdade, quebrar. Acaba que quebrou. A outra premissa, que,evidentemente, era ideológica, era a de que o mercado resolvia tudo, e deque o Estado de bem-estar era incômodo para o mundo. Na verdade, cadaum deveria receber de acordo com o seu merecimento; isso é eficiência nomercado.

Tirando as boas ideias de justiça social — e nisso, obviamente, oPresidente Obama ainda tem muito a aprender com o Presidente Lula, que éveterano nessa luta, o que já é uma boa notícia —, se ele não conseguirmudar o núcleo do establishment americano, e, também, se ele se arruinar aponto de não conseguir se autorredefinir, vamos ter uma crise muito longa.Então, eu quero avisar o seguinte: quem detesta o capital financeiro, (e euseguramente sou uma das que detesta), é melhor não torcer para que sedesfaça de vez, na hipótese otimista e ingênua de que, se isso ocorrer, nósvamos para uma sociedade melhor. Nada garante que vamos para umasociedade melhor, e podemos ir para uma grande catástrofe, dado que nãose sabe que forças reacionárias virão, se a crise se agravar mais ainda. É issoque torna o horizonte tão incerto e gera a ambigüidade das políticas. A crisede 1930 era clara: sabia-se de onde surgiu, como se desenvolveu. Por outrolado, a crise de 1930 surgiu quando os Estados Unidos era a grande potênciafinanciadora do mundo, com a Inglaterra totalmente arruinada, e o padrãoouro idem. Agora, a crise atual não é assim. Essa crise surge de um dólar quetodo mundo achava, quando rompeu o sistema de Bretton Woods, que nãoiria a lugar nenhum e que se afirmou como moeda financeira do mundo.

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Passado o pânico da década de 70, em que muita gente achou, com razão,naquela altura, que a hegemonia estava em xeque, por várias razões(econômicas, políticas, financeiras e até culturais) se verificou uma reafirmaçãoda hegemonia americana nos anos 80, e, particularmente, nos 90, semprecedentes. Ou seja, passaram a exercer a hegemonia de uma maneira dura,endividados até às orelhas, se endividando mais em 90 do que nunca, e, noentanto, a sua moeda era a moeda reserva internacional. Esse sistema, naverdade, durou mais do que Bretton Woods. O pessoal dizia que já era umsistema novo, uma espécie de segundo Bretton Woods. Como deu no quedeu, todo mundo agora quer o terceiro Bretton Woods. Só que eu não vejodonde, porque o pessoal esquece que, tanto o primeiro quanto o segundoBretton Woods se fizeram sob a hegemonia americana. Os Estados Unidoscoordenaram formalmente, no caso do primeiro Bretton Woods, einformalmente, no caso do segundo Bretton Woods, a partir de 1985. Entre1985 e 1989, eles tiveram um período de coordenação formal, com osAcordos de Louvre e Plaza, e em 1989, arrogantemente, tomaram a decisãode fazer o contrário do que tinham feito em 1979. Em 1979, eles mandarampara o espaço os países periféricos que estavam endividados. Com o choqueda taxa de juros todos nós quebramos, sem exceção. Dizer que não fomos àfalência nem à moratória é um modo de falar, porque todos nós fomos àmoratória tácita. É claro que o Delfim Neto não proclamou a moratória, masbem que ele gostaria. Só o México o fez. Mas isso não quer dizer nada,porque nós estávamos quebrados, e todo mundo entrou em inadimplência eem cessação de pagamentos. Nessa altura, a taxa de juros americana era 20,ou até mais de 20. Em 1989, eles simplesmente levaram a taxa de juros a 4,e sem a concordância do G-7, sem a concordância dos países ricos. Ouseja, é uma política já francamente imperialista. Obviamente, isso decorria deque não tinha mais mundo bipolar. Tudo isso ocorreu porque, objetivamente,a União Soviética estourou, a China estava começando a entrar nas regrasdo jogo do liberalismo econômico, devagarzinho, sem enfrentamento, porquetinha mudado a ideologia do Mao Tse-Tung para o segundo Governo.Obviamente, não havia nenhum candidato a se opor aos Estados Unidos emnada, nem na economia, nem na ideologia, nem na política, e, muito menos,militarmente. Essa não foi uma hegemonia benigna. Benigna foi a primeira.No caso da primeira, até se pode dizer que foi uma hegemonia benigna,porque havia convergência das taxas de crescimento, o mundosubdesenvolvido começou a fazer o seu desenvolvimento, a convite, no caso

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da Ásia e no nosso caso, deliberado pelo Estado Desenvolvimentista. Nósfizemos um desenvolvimento torto, mas fizemos. Fizemos a industrialização eavançamos.

Mas, a partir de 90, isso não aconteceu. Em 1990, a financialização dariqueza que beneficiava os Estados Unidos, fez com que famílias, Estado,empresas e bancos, por um lado, enriquecessem, e, por outro lado, seendividassem. Isso é o bonito! O bonito é que você se endividava à galega,particularmente os bancos, e enriquecia porque crescia o valor patrimonialda riqueza financeira. Depois, verificou-se que tudo isso era fictício. Entretanto,durante mais de uma década, houve um enriquecimento espantoso, e ficoudisfuncional para os países da periferia porque nos invadiram de liquidez,outra vez. E nós, outra vez, esquecendo o que tinha ocorrido com ospetrodólares — e todo mundo se lembra de quem dirigia o Governo nessaaltura, e, de quem era o Ministro da Fazenda — , não apenas fizemos tudo oque o neoliberalismo mandava (privatização, etc.), como, o que é pior, fizemosuma valorização cambial e aderimos financeiramente o país ao endividamentode curto prazo. Essa é uma das diferenças para a qual se tem que chamar aatenção agora. É claro que está entrando outra vez o capital especulativo.Não há a menor dúvida disso. Primeiro, está todo mundo atento, coisa quenaquela altura não acontecia, porque ninguém estava atento e todos achavamótimo combater a inflação com a supervalorização do câmbio, e achavamque era uma demonstração de que o País ia muito bem terem entrado dezenasde bilhões de dólares, a maioria deles ligados ao processo de privatização.Evidentemente, o problema é que nós estouramos. Agora, não fomos só nós.Verdade seja dita, não se tem que atribuir ao Brasil nenhuma originalidadeem nada. Nós não somos muito originais. Nós fizemos o que todo mundofez. A Coréia, que tinha sido original, foi a primeira a entrar no buraco, semfalar na Tailândia e outros países menores. Enfim, pegou toda a periferiaasiática, toda a periferia do Leste Europeu e toda a periferia latino-americana,que entraram a se endividar, privadamente, a curto prazo, para investimentossupostamente de longo prazo. Ou seja, se alavancaram. Os países fizeram oque os “bancos não bancos” faziam, e, com isso, estourou tudo. Tivemosuma série de crises. A década de 90 foi ótima para os Estados Unidos e foipéssima para toda a periferia, a partir de 94. Foi um desastre para o México,o Leste Asiático, a Rússia, o Brasil, a Argentina; enfim, todo mundo entrou,outra vez, em crise. Desta vez, não. É claro que eu não estou dizendo quenós não seremos atingidos pela crise atual, como já fomos. A tese do

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decoupling, do desacoplamento, obviamente, não vigora com uma crisemundial deste tamanho. Mas, quando se falou nisso foi antes de setembro, o“setembro negro”, de 2008. Só que, até setembro, não tinha havido nadanos países periféricos. Ao contrário, estava todo mundo indo muito bem,obrigada. A tal ponto que o nosso Banco Central achava que estávamos comtendência a crescer acima da nossa possibilidade. Diziam que a demandaefetiva estava produzindo inflação, quando não era isso. Era o ciclo decommodities, e a taxa de juros subiu. Nessa parte da política monetária oBrasil tem a peculiaridade, talvez por causa da sua história de hiperinflação,de ser hiperconservador. Então, a gente sempre ganha a parada de ter a taxade juros mais alta do mundo. No momento, até que não, porque há paísescom problemas no terceiro mundo, e já tem uns três ou quatro que têm umataxa de juros mais alta do que a nossa. O Banco Central começou a secomportar melhor depois de setembro de 2008.

Mas esta crise bateu, sobretudo, nos ricos. Essa também é umadiferença. A crise bateu nos ricos, e, paradoxalmente, bateu mais pesadonos ricos europeus e no Japão. Os Estados Unidos, apesar de ser o núcleo,o cerne, a origem da crise, tiveram uma crise desbragada no setor financeiro,mas o governo americano socorreu com mais de dois trilhões de dólares osistema bancário, apesar de grandes protestos da população, do MainStreet. O Main Street acha que o Wall Street é uma praga. Eu tambémacho. Mas a verdade é que não dava para deixar quebrar os grandes,porque o efeito sobre o desemprego seria o que se imaginou. Agora, emtermos de desemprego e recessão, os Estados Unidos teve menosdesemprego e menos recessão do que os seus pares do G-7. Por isso éque quando o Krugman faz a avaliação de que esta crise é menor do que acrise de 30, ele está fazendo a avaliação a partir da queda da produçãoindustrial americana, que foi brutal em 1930. Mas, se você fizer, comooutros pesquisadores americanos fizeram, o cálculo para a Europa e parao Japão, o resultado é o contrário. Para estes, a crise atual foi pior do quea crise de 1930. E mais do que isso, foi pior do que a crise de 30, e comonão há nenhuma guerra à vista, como esses países da Europa (em particular,a Alemanha) e da Ásia (em particular, o Japão) não estão se militarizandopara fazer uma guerra, as possibilidades de se sair endogenamente da crisesão muito baixas. Vale dizer que eles são periféricos aos Estados Unidos.Se os Estados Unidos não se recuperarem, os países ricos também nãovão se recuperar. Não há nenhuma evidência de a Europa ter um plano de

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recuperação endógeno. E, para variar, a Alemanha está se comportandomal, como sempre, no sentido de que ajuda a endividar os países da periferiado Leste Europeu, e, depois, tira o time. Também é verdade que tiram otime porque os grandes bancos deles sempre quebram. Quebrou um grandebanco da Polônia, um dos “C”, e agora está quebrando um dos “D”, achoque o Dusseldorf. A Alemanha tem um grande banco internacional; a Françatem outro; a Inglaterra não tem nenhum; os bancos japoneses estão empetição de miséria, desde a crise de 90; os Estados Unidos só tem umbanco no ranking dos grandes, que é o Morgan. Aliás, até agora, não sedescobriram as mazelas do Morgan, até porque se o Morgan tiver títulostóxicos, não declara em balanço. Esse é um dos problemas que o sistemafinanceiro americano tem para resolver: como vai resolver o problema dostítulos tóxicos sem ser às custa do FED. Vocês sabem que o FED já fezcoisas do arco da velha: já emprestou para bancos de investimentos, o quenão podia; emitiu títulos comerciais; engoliu títulos tóxicos; enfim, fez detudo. Desta vez, o governo americano tem sido muito pró-ativo, mais pró-ativo do que nenhum outro, mas tem o problema de que a desalavancagemcustou muito caro aos Estados Unidos, e os programas, mesmo os doObama, não contêm grandes elementos da realimentação econômica. OObama tem bons programas sociais, como nós. Mas eles não têm umprograma de infraestrutura como nós. O Obama disse que ia fazer, masacontece que no orçamento que ele mandou ao Congresso este ano tem 50bilhões para infraestrutura do Governo Federal. Ou seja, é irrisório, não dápara a cova de um dente, como se costuma dizer. Até porque, como todomundo, eles estavam com o sistema de infraestrutura ruim. Uma das porcariasdessa política monetária de curto prazo e de alavancagem é que se davapreferência, sempre, ao curto prazo, e ia se deixando que o investimentodo longo, do setor público, se afundasse. Então, por mais que na campanhao Obama tenha dito que ia fazer as duas coisas — proteger os pobres ealavancar o investimento — , não é verdade. Só tem dois grandes programasde investimento público de infraestrutura no mundo: o da China e o nosso.Tanto em energia, como transporte pesado, de ferrovia, portos, etc., aChina, com um maior grau de interiorização, e nós com as duas coisas.Nós estamos fazendo tanto para dentro quanto para fora. Obviamente, nóscontinuamos a ter que exportar matérias-primas. Acho que é obvio que aparceria entre Estados Unidos e China está problemática, no momento.Tanto que o Ministro chinês deu-se ao luxo de dar uma pancada verbal no

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dólar. Só que dar uma pancada verbal é fácil; o problema é o que ele vaifazer com as reservas em dólar. É claro que ele gostaria de passar paradireitos especiais de saque; só que os direitos especiais de saque são dessetamanho. Então, por mais que a China e os demais países ainda superavitáriospossam, daqui em diante, na margem, passar para outras moedas, primeironão tem nenhuma moeda candidata a nada. O euro é aquela desgraça,dada a situação européia; o yen idem; e o yuan, até que venha a ser moedaconvertível, em nível internacional, vai demorar. Já estão fazendoexperimentos na Ásia, e até emprestando para a Argentina em yuan, masvai levar tempo. Assim como os direitos especiais de saque. Então, se foruma transição pacífica, vai ser na margem. Ninguém vai substituir o dólarrapidamente, por mais que queira. Só existe uma solução alternativa asubstituir o dólar: que as economias se fechem, fiquem nacionalistas ecomecem uma trapalhada do tipo beg-thy-neighbor. Mas não estamos em1930, e a interdependência econômica do capitalismo é muito maior doque nunca; o capitalismo é global, e não era global em 30. Tinha váriospaíses grandes fora do sistema capitalista, e agora não tem nenhum; não étão fácil prever uma saída que não seja pacífica. Essa saída, apesar depacífica, pode trazer algumas transformações ideológicas profundas, algumasmaneiras diferentes de ver, e um diferente e novo papel do Estado soboutras vestes. Se isso ocorrer, tudo bem. Agora, como vai demorar, eu nãosei. Não estou falando dos BRICs, porque a Rússia está péssima; até porquevirou, praticamente, monoexportadora de petróleo, o que é uma desgraça.Ser monoexportador do que quer que seja, hoje, é uma desgraça. A Chinadesacelerou brutalmente: chegou a 6%. Só que 6% é ótimo, e para elesvoltarem aos 8%, é tranqüilo. Eu acho que a China, a Índia, que é muitomenos integrada financeiramente, e o Brasil têm chances. Pode ser que aum ritmo mais lento, mas acho que têm chances. Eu não acho que o Brasileste ano vá entrar em recessão; não no sentido técnico, porque já há recessãonos dois primeiros trimestres, mas não numa recessão prolongada, comomuita gente previa. Como a maioria dos analistas, acho que o Brasil estáretomando o fôlego, devagarzinho. Agora, acho, sim, que tivemos ainfelicidade de abortar um ciclo de crescimento que era o maior ciclo decrescimento desde a década de 70. Em 80 e 90, não teve um ciclo decrescimento como o que teve no Governo Lula, do segundo semestre de2003 até agora. Isso foi abortado. Agora, foi um ciclo que se apoiou,basicamente, primeiro, no crescimento das exportações, e depois, no

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crescimento do consumo e no crescimento do investimento privado. Eunão acho que esse padrão vá se repetir. O Brasil não pode esperar, no seufuturo modelo de crescimento, se apoiar nas exportações, depois, noconsumo privado, e, por derivação, no investimento privado. Eu acho quenão. Acho que vai ter que se apoiar no consumo público, para espanto dosconservadores, que não querem! Agora, não querem que se gaste em saúde,em educação, porque é perigoso! Perigoso não sei para quem! Até o Lessaescreveu um artigo, no “Valor” , dizendo isso. Não se imagina que sejapossível fazer com que o investimento, tanto em infraestrutura quanto nosocial, funcione sem gente! Será que eles acham que é no autômato, que setem um autômato para fazer funcionar as coisas? Como isso não é verdade,nós vamos ter que nos apoiar pesadamente nas políticas sociais, não apenasnas políticas compensatórias, mas nas estruturantes, e nas políticas deinfraestrutura. Essa é a minha opinião. O Dr. João Paulo, seguramente,comentará o futuro, e os meus demais colegas comentarão tudo da crise ea situação brasileira. Eu não estou, portanto, sendo pessimista em relaçãoao Brasil. Eu acho apenas que o padrão tem que mudar, e, se alguma dúvidatenho, é sobre a capacidade de o Estado brasileiro gerir uma nova estratégiae levar, passo a passo, essa nova estratégia, dado que há segmentaçõesinternas do Governo, como é óbvio. Até porque vários segmentosrepresentam interesses diferentes da sociedade. Esse conflito no interiordo Governo vai permanecer; agora, espero que ganhe o bom caminho. Eutenho esperado isso sempre, na minha vida. Provavelmente, morrerei commais uma derrota, mas, se for assim, espero que as gerações mais jovensvejam, finalmente, uma vitória definitiva do desenvolvimento com justiçasocial e distribuição de renda nesse País, que era a inspiração do MestreFurtado, a minha, e, seguramente, a de todos aqui presentes.

— Embaixador Jeronimo Moscardo:

Agradecendo essa provocação inicial da Maria da Conceição Tavares, eurenovo as boas vindas ao Dr. Ernani Torres, ao Professor Antônio Corrêa deLacerda, ao Dr. João Paulo de Almeida Magalhães, ao Dr. Luís Carlos DelormePrado, ao Dr. Antônio Carlos Peixoto, ao Dr. Luiz Eduardo Melin de Carvalho eSilva, e, também, aos nossos colegas do Itamaraty, seguramente os melhoresnegociadores da Casa: o Embaixador Jório Dauster, o Embaixador Bahadian e oEmbaixador Ouro Preto. Agora, o Embaixador Cardim coordenará os debates.

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— Embaixador Carlos Henrique Cardim, Diretor do IPRI:

Muito bom dia a todos. Sejam bem-vindos. Antes de iniciar os debates,eu gostaria de dar uma palavra sobre a metodologia do nosso sistema detrabalho. Apesar de o título do evento ser “seminário”, nós estabelecemosmais uma “mesa redonda” para provocar o debate e a discussão entre osparticipantes, principalmente entre os convidados sentados à mesa.Inicialmente, teremos a exposição breve dos autores de texto, que foramdisponibilizados via Internet, ou foram distribuídos agora aqui. Então, nósvamos conceder a palavra, inicialmente, aos autores de texto para umaexposição breve, inicial, onde não será feito propriamente um resumo dotexto, mas colocado o problema do texto. Eu pediria que cada um dos autoresfizesse isso em cinco minutos, e, depois, passaremos a palavra aos convidadospara intervenções breves, da mesma natureza. Depois, voltaremos a circulara palavra, para que todos os sentados à mesa, principalmente, possam debaterentre si. Será uma discussão em beneficio de todos os presentes. Então, eutenho o prazer e a satisfação de passar a palavra, inicialmente, ao ProfessorJoão Paulo de Almeida Magalhães.

— João Paulo de Almeida Magalhães, CRE/RJ:

Bem, a colocação ao texto é basicamente uma colocação de longo prazo.A explicação é a seguinte: de fato, essa crise é uma crise muito séria, muitograve. Mas o mais sério dentro da economia brasileira e da economia daAmérica Latina é que nós estávamos diante de uma semirrecessão que dura,já, 30 anos. A crise atual, de uma maneira ou de outra, por um método ou poroutro, vai acabar terminando, como todas as outras, e nós vamos continuarcom esses problemas que estão subjacentes à crise atual. Na verdade, essacrise cria uma oportunidade para resolver esse outro problema, que euconsidero mais grave, no sentido de que a crise atual mostrou que oneoliberalismo não funciona, nem nos países subdesenvolvidos nem nosdesenvolvidos. Então, a pergunta é: como aproveitar essa oportunidade?

Eu lembraria que, no período recente, diante do fracasso doneoliberalismo baseado no Consenso de Washington, houve uma série delivros publicados no Brasil, obras coletivas e obras individuais, criticando oneoliberalismo. Mas, na verdade, o que esses textos faziam era, simplesmente,contrapor exatamente as medidas opostas ao que se estava fazendo no País

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e na América Latina. Ou seja, nós tínhamos uma taxa de juros altíssima, queestaria prejudicando o desenvolvimento dos países, onerando as finançaspúblicas; então, baixem-se seus juros. Nós tínhamos uma sobrevalorizaçãodo real, estávamos nos especializando em commodities agrícolas e industriais;então, faça-se a desvalorização do real. E assim por diante. Ora, o queaconteceu é que esse neoliberalismo e o Consenso de Washington sãoapoiados pela teoria neoclássica, que hoje é, praticamente, o fulcro básicoda ciência econômica. Consequentemente, esse Consenso de Washington,ao invés de desaparecer, se transformou em um Consenso de Washingtonampliado, ou seja, no próprio neoliberalismo complementado por medidasinstitucionais para corrigir aqueles defeitos existentes que, em princípio,estariam bloqueando o nosso desenvolvimento.

A meu ver, o que se tem que fazer é alguma coisa que nos é indicadapelos problemas da segunda onda dos países de industrialização do séculoXIV: o Japão, a Alemanha e os Estados Unidos. Esses países, para se lançaremno processo industrial, tinham que proteger suas indústrias nascentes. A melhorteoria econômica da época, a Teoria das Vantagens Comparativas, dizia quequalquer protecionismo era prejudicial, não só para a economia internacional,como, também, para o país que a adotava. Então, havia um bloqueio, ouseja, eram necessárias medidas contra a ciência oficial. A solução foi dadapela teoria protecionista de Friedrich List, que se incorporou à mainstreameconomics e deu cobertura teórica ao protecionismo, e, portanto, aodesenvolvimento desses países. Esse é o ponto central do meu trabalho. Aliás,ele é desenvolvido no livro citado no texto.

Mas, a par disso, é necessário também, na perspectiva de longo prazo,a correção de alguns sérios defeitos do capitalismo moderno, revelados poressa crise. Se não houver essa correção, corremos o risco de ver a reproduçãoda crise presente dentro de mais alguns anos, e, possivelmente, em nível demuito maior gravidade.

Eu notei três distorções a serem corrigidas: a primeira delas é a que oseconomistas têm chamado de problema principal agent. Isso significa ochoque entre os interesses da empresa e os dos executivos que a comandam.Na verdade, o capitalismo inicial, eficiente, era de pequenas empresas, era oproprietário que dirigia as empresas; portanto, não podia existir o problemado principal agent. No momento atual, nós estamos acompanhando, pelosjornais, que os homens que são responsáveis por essa enorme crise nosEstados Unidos estão milionários, com os seus bonds. Então, é um problema

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de principal agent. Ou seja, o choque entre o interesse da empresa e ointeresse dos executivos que a controlam, executivos indispensáveis emempresas que atingiram grande complexidade e não podem ser comandadospor um proprietário qualquer que iniciou o seu sucesso.

O segundo problema é o que o economista chama de moral hazard,“risco moral”. Isso significa, simplesmente, que riscos injustificáveis sãocorridos. Novamente, aqui, eu recordaria que, no início do capitalismo, todosos recursos necessários ao desenvolvimento das empresas eram oferecidospelo próprio proprietário. Com o aumento das empresas, que determinou osurgimento do executivo profissional, também foi necessária a criação de umgrande sistema bancário, um sistema de captação de poupanças, que era umsistema cuja característica era de ser muito instável, no sentido de todas ascrises se tornarem sistêmicas. Então, o Governo é obrigado a tomar medidaspara defender esse sistema, e essas medidas vão encorajar o moral hazard,“riscos injustificáveis”. O empresário percebia que, no momento em quehouvesse o problema, o Governo interviria para salvar a situação. Então, nóstivemos esse problema, que é um problema extremamente grave, e que explica,inclusive, os riscos corridos através dos “empréstimos ninja”, através dossubprime.

Finalmente, eu diria que a terceira distorção a ser corrigida no sistemacapitalista atual é essa distorção resultante de a economia monetária tercrescido, algumas vezes, mais rapidamente do que a economia real. Como aeconomia real é o que interessa, essa é uma distorção extremamente grave.Eu diria que a causa disso foi, simplesmente, que o sistema financeiro privadoevoluiu da sua tarefa básica de intermediação financeira, ou seja, de reunirpoupadores que não sabem investir, com investidores que não conseguempoupar, e criar, então, condições para o encaminhamento desse capitalismo.Essa é uma coisa que tem que ser corrigida, porque o sistema atual deixou deapenas cumprir a sua função básica de intermediação financeira, e partiupara a tentativa de criar um capitalismo financeiro sem riscos. Então, foi amultiplicação dos derivativos, foi a generalização da securitização. Portanto,esse é um problema da maior gravidade. Eu digo que, a par do problemaanteriormente referido, que é a questão da retomada do crescimentoacelerado, no Brasil e na América Latina, há esse problema da mudança daestrutura do capitalismo, de modo que o capitalismo moderno se adapteàquelas regras do jogo, que são as regras do jogo justas e necessárias. Sobesse aspecto, no meu paper eu não ofereço nenhuma solução, porque,

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evidentemente, o texto tinha que ser limitado, mas, nos debates, se for ocaso, eu vou oferecer algumas indicações para esse segundo problema, diga-se de passagem, extremamente radicais. Muito obrigado.

— Embaixador Carlos Henrique Cardim:

Muito obrigado, Professor João Paulo. Com a palavra o Professor AntônioCorrêa de Lacerda.

— Antônio Corrêa de Lacerda, PUC/SP:

Bom dia a todos. Em primeiro lugar, eu quero parabenizar os organizadoresdeste Seminário, o Embaixador Jeronimo Moscardo e o Embaixador CarlosHenrique Cardim, e agradecer o convite para estar aqui e poder debatercom as senhoras e senhores um tema relevante como este.

Como as exposições anteriores já declinaram, nós temos uma crise quedecorre de um processo estrutural do capitalismo, especialmente a mudançaocorrida nas últimas décadas dessa hegemonia da globalização financeira,ou, como alguns preferem, da financeirização, e os seus impactos para aeconomia mundial.

Apenas para ilustrar isso que o Professor João Paulo acabou de dizer,do descolamento entre o volume de ativos financeiros e a economia real, senós retomarmos apenas 30 anos atrás, o volume de ativos no mercadofinanceiro, sem considerar os derivativos, equivalia, exatamente, ao volumedo PIB global. Basicamente, no início da década de 80, esses dois volumeseram muito parecidos. A partir daí, houve um claro descolamento desseprocesso, e no auge do processo, em 2008, antes da fase mais aguda dacrise, esse volume de ativos estava estimado em quatro vezes o PIB global.Portanto, a desregulamentação dos mercados financeiros internacionais e acriação de novos produtos fizeram com que o mercado financeiro ganhasseuma vida própria de se autorreproduzir no que os marxistas chamam de “capitalfictício”. Na verdade, você gera uma reprodução no âmbito apenas financeiro,sem respaldo no nível produtivo.

Isso teve impacto significativo para o mundo todo, e impactou também aeconomia real, na medida em que o comércio internacional, o fluxo deinvestimentos diretos e estrangeiros e o papel das empresas transnacionaisganhou uma dimensão significativa. Houve uma fase de forte abundância de

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capital, a custo relativamente baixo, e isso favoreceu a internacionalização docapital também no âmbito produtivo. De 2002 a 2008, antes da crise, tivemosuma fase de crescimento sem precedentes, tanto do PIB como do comérciointernacional, quanto dos fluxos de investimento, ao longo das últimas três ouquatro décadas. Esse processo sofreu uma ruptura quando a crisedesencadeada nos Estados Unidos praticamente desmoronou o mercado decrédito; a crise de confiança, decorrente da quebra dos bancos, levou a umprocesso de travamento do crédito em nível internacional, e isso trouxeimpactos para o mundo todo.

Especificamente no caso brasileiro, algumas das chamadas “debilidades”da nossa economia, nessa nova fase, se transformaram em verdadeirasvantagens, ou, pelo menos, permitiram minimizar o impacto da crise. Mas oBrasil, ao longo dos anos 90, aderiu ao receituário neoliberal e promoveuuma inserção internacional passiva dentro desse processo, contrariamenteao que ocorreu, por exemplo, com alguns países asiáticos, que promoveramuma inserção ativa e pelo lado produtivo. A nossa inserção foi mais passiva efortemente calcada no aspecto da liberalização das contas financeiras.

Isso nos expôs, ao longo dos anos 90, a um processo de vulnerabilizaçãoda nossa economia. A nossa vulnerabilidade externa, em muitos momentos,inviabilizava um projeto de desenvolvimento, seja pela questão ideológica,que estava calcada no ideário neoliberal do Consenso de Washington, sejapela incapacidade de produzir uma política alternativa e que viabilizasse umcrescimento em bases sustentadas, ao longo do processo. Sempre que haviauma crise, como a russa, a asiática, ou, antes disso, a mexicana, você tinhaum processo de desvalorização cambial que acabava impactando a inflação.Isso exigia juros elevados e inviabilizava o processo de crescimento.

O que mudou no Brasil, nessa nova crise? Algumas dessas chamadas“debilidades”, que os liberais criticavam na economia brasileira, setransformaram em “amortecedores” da crise. A primeira foi o nosso baixograu de abertura da economia. Ou seja, se a gente pega especialmente aparticipação das exportações no PIB brasileiro, elas mal representam 15%,o que significa que a dinâmica se dá pelo mercado interno. Então, o impactoda queda provocado no comércio global tem um efeito menor, relativamente,do que teria, se a economia derivada das exportações, como em outros países,fosse mais ampla.

A segunda “debilidade” estava associada aos programas sociais.Claramente, toda a rede social que foi montada, ao longo dos últimos anos,

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serviu, e está servindo, como um amortecedor à crise, no sentido de garantirum mínimo de funcionamento do mercado doméstico. É claro que isso tambémé influenciado pelos reajustes salariais, não apenas no setor público, mastambém no setor privado. Isso tem permitido que a massa salarial não sofraum impacto mais significativo e possa garantir certa expansão da economia.

A terceira “debilidade” é a decorrente do papel do crédito público, querepresenta de 35% a 40%. Ou seja, no momento de crise, há um travamentodo mercado de crédito privado dos bancos públicos, com destaque para oBNDES, dado o seu potencial de financiamento, que é significativo. Só paradar uma referência para vocês, outro dia o Vice-Presidente do BID participoude um evento no Brasil e declarou que o BID ia despender 10 bilhões dedólares nas Américas, ao longo de 2009. Ora, o budget do BNDES éalguma coisa como cinco ou seis vezes isso para o Brasil. Então, junto com aCaixa Econômica Federal, com o Banco do Brasil e os bancos estatais, tudoisso representa, especialmente em uma época de crise, e se for bem utilizado,um excelente amortecedor desse processo de crise.

Portanto, essas chamadas “debilidades” se transformaram em focos deresistência ao processo da crise, e a principal delas vem exatamente da áreaexterna. Muitos criticaram a política de acúmulo de reservas cambiais aolongo dos últimos anos, especialmente devido ao seu custo. Eu estava entreaqueles que achavam que a formação de reservas era determinante, que oproblema não era a reserva em si, e que o custo decorria de uma distorçãona política monetária. Na verdade, o diferencial das taxas de juros domésticas,relativamente às taxas internacionais, era que estava muito elevado, e, defato, isso representava um ônus de carregamento dessas reservas. Mas,realmente, quando você enfrenta uma crise com um nível de reservas como oBrasil tem (e outros países têm até mais), isso representa um processo deamortecimento daquele impacto mais significativo. Se compararmos, ainda,com as crises do petróleo nos anos 70, nós temos também a questãoenergética, que é mais estrutural, e o Brasil também melhorou a suaautossuficiência na questão energética.

Portanto, esses fatores, aliados ao fato de você ter ainda empresas estataisde relevância, especialmente a PETROBRAS, que pode estimular toda umacadeia produtiva, tem representado um fator amortecedor desse processo.Então, isso dá ao País um mínimo de estabilidade, de manutenção de relativanormalidade, que permite atuar no campo das políticas anticíclicas, que podemser, inclusive, intensificadas. Aí está a grande oportunidade para a economia

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brasileira. Realmente, você tem um espaço significativo, ainda, de atuação,tanto no âmbito das políticas macroeconômicas, especialmente na reduçãodas taxas de juros e ampliação das melhores condições de crédito, como,também, no âmbito da política fiscal, e, especialmente, na política cambial.

Finalizando, eu colocaria dois riscos inerentes a esse processo, ouseja, o que pode dificultar ao Brasil o sair rapidamente dessa crise. Euconcordo com a Professora Maria da Conceição Tavares em querealmente não vamos ter uma recessão esse ano. Meu prognóstico pessoalé de um crescimento zero esse ano. Mas, já em 2010, o Brasil teria todasas condições de retomar o crescimento, se não no ritmo com que vinhacrescendo, antes da crise, mas alguma coisa entre 3% a 4%, o que, dadaa dimensão da crise internacional, a maior das últimas décadas, como foimuito bem colocado aqui, seria uma posição até de relativo sucesso. Maseu vejo dois riscos de curto prazo associados a esse processo. O primeiroestá na dificuldade do Estado brasileiro em acelerar o seu gasto.Claramente, nós temos uma série de restrições institucionais e burocráticas,envolvendo desde o licenciamento ambiental, até a própria execução dosprocessos, que tem dificultado essa tarefa de agir contraciclicamente,ampliando o gasto público especialmente voltado para a infraestrutura.Então, isso é algo que precisa ser repensado imediatamente porque vaiser um ganho fundamental para o Brasil.

O segundo risco é que, como há um retorno de fluxos de capitais, etendo em vista que o diferencial da taxa de juros doméstica, relativamente àmédia internacional, ainda é muito elevado, isso tende a levar a um processode valorização cambial, como já vem ocorrendo. Quer dizer, o bônus que oBrasil teve de ganho de competitividade, decorrente do câmbio, que é daordem de 15%, se considerarmos ao câmbio real, comparativamente à médiadas principais moedas dos países com os quais transacionamos, tem apossibilidade de se perder, o que é um fator de risco para o Brasil. Fala-semuito sobre o efeito de exportação. De fato, especialmente as exportaçõesde maior valor agregado tendem a ser afetadas negativamente por umavalorização do câmbio, mas eu diria que, sendo o câmbio um preçofundamental da economia, uma valorização exagerada do câmbio tende aprejudicar a produção interna, os investimentos, a inovação, a tecnologia.Especialmente em uma época de crise, isso se transforma em algo que poderádificultar a saída da crise. Portanto, o Banco Central tem que usar todos osinstrumentos possíveis para evitar um processo de valorização, porque isso

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seria, a essa altura do campeonato, um péssimo elemento para viabilizar asaída mais rápida da crise. Muito obrigado.

— Embaixador Carlos Henrique Cardim:

Eu passo a palavra ao Professor Luís Carlos Delorme Prado, por favor.

— Luís Carlos Delorme Prado, UFRJ:

Muito obrigado. Inicialmente, eu gostaria de agradecer ao EmbaixadorMoscardo e ao Embaixador Cardim pelo convite. Para mim é um prazerestar aqui. Eu cumprimento a todos da mesa, em nome da Professora Mariada Conceição Tavares, que representa a todos nós aqui.

A minha contribuição no debate foi a tentativa de fazer uma comparaçãoentre a crise de 1930 e o momento atual. Na verdade, com o meu viés dehistoriador econômico, eu me concentrei na discussão dos anos 30, até porquea crise de 1930 tem algumas características interessantes e remete tambémao momento atual. Primeiro, a interpretação da crise foi um locus do debatede todas as correntes econômicas ao longo do século XX, em especial, ogrande confronto de ideias. Por um lado, o velho conceito, ou a velha utopiado mercado autorregulado, que caracterizava o pensamento liberal; por outrolado, a necessidade de se estabelecerem políticas públicas que viabilizassem,ou que construíssem, uma estratégia de crescimento sustentado, e, de algumamaneira, a ação do Estado seria fundamental dentro desse contexto.

A crise dos anos 30 tem que ser entendida não a partir do crash de1929, ao qual ela é muitas vezes associada. Na verdade, há uma cadeia deeventos que é muito interessante. O crash acontece com alguma frequênciana história dos mercados financeiros, mas essa sequência dos anos 30 que,de certa maneira, se vê também em outras situações onde ocorrem grandesdepressões, é particular. Em 1929, tem o crash da bolsa, mas isso não édepressão, ainda. A depressão surge em 1930, e em 1931 há um pânicobancário que vai marcar o fim do padrão ouro. Em 1932 e 1933, essa crise,que começara com o crash, se transforma em uma crise política com mudançasde governo nos Estados Unidos, a ascensão de Hitler na Alemanha, commudanças importantes nas relações econômicas internacionais. A saída dacrise de 1929, ou a saída da Depressão dos anos 30, demorou um períodolongo. Embora o ano de 1933 tenha sido o fundo da crise, foi preciso uma

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guerra mundial, e, finalmente, as negociações do fim da II Guerra Mundialpara se estabelecer o novo sistema monetário internacional, que, com todosos seus problemas, garantiu o crescimento da economia mundial ao longodos famosos “30 anos dourados” do capitalismo.

Um ponto sobre o qual vale a pena chamar a atenção é que, ao longo detodo esse debate do pós-Guerra, a questão de como se evitar o retorno àDepressão, ou o risco de um retorno à Depressão, esteve sempre presente.No entanto, com o surgimento do liberalismo radical, a partir da década de70, em especial nos anos 1990, a arrogância dessa visão assegurava que oproblema de crise, de depressão, estava afastado.

Eu não posso terminar a minha exposição sem citar uma declaração deRobert Lucas, quando, na sua conferência como presidente da AmericanEconomic Association, em 2003, disse:

“A macroeconomia surgiu como um campo do conhecimento distintoda década de 40, como parte da resposta intelectual à GrandeDepressão. O termo, então, referia-se a um conjunto de conhecimentose” expertise” em que se esperava que se pudesse impedir oreaparecimento desse desastre econômico. Minha tese, nestaconferência, é que a macroeconomia, no seu sentido original, foi bemresolvida, foi bem sucedida. O problema central da prevenção daDepressão foi resolvido, sob todos os aspectos práticos, e tem sido, defato, solucionado por muitas décadas.”

Ou seja, para Robert Lucas, acabou o problema da Depressão. Maisadiante, muito mais recentemente, o atual Presidente do Federal Reserve,Ben Bernanke, em 2004, em uma apresentação, chamou o momento que sevivia no mundo atual de “a grande moderação”. Ele é um especialista naGrande Depressão. Ele disse:

“A grande moderação, o substancial declínio da volatilidademacroeconômica nos últimos 20 anos tem um desenvolvimentosurpreendente. Se as causas dominantes da grande moderação seriamuma mudança estrutural, melhoria da política monetária, ou simplesmenteboa sorte, é uma questão importante sobre a qual ainda não há consenso,Hoje, sustentei que a melhoria na aplicação de políticas monetárias,resultou não apenas na redução da volatilidade da inflação, que não é

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particularmente controversa, mas também na redução da volatilidade doproduto. Ou seja, o problema não é mais de depressão, vivemos em umagrande moderação”.

Em 2007, nós temos um crash dos subprimes, até então, um crashlocalizado. Mas, em 2008, nós temos um pânico. Em setembro de 2008,depois da quebra do Lehman Brothers. No dia 08 de outubro, a taxa dejuros no mercado interbancário americano, num dia só, chegou a 7%. Ouseja, parou. Então, nós tivemos uma situação muito parecida com a dos anos30, com o pânico bancário. A partir de então, entrou-se em uma fase deredução mais profunda ainda do nível de atividade econômica. É claro queera diferente dos anos 30. Não há mais controvérsia de que, nessa hora, opapel do Estado é fundamental. Ou seja, mesmo aqueles que defendiam quea intervenção do Estado deveria ser marginal recorreram, novamente, aosvelhos livros keynesianos para dizer que agora é a hora de o Estado entrar, e,de alguma maneira, contribuir para a solução dos problemas. Nesse ponto,há uma diferença profunda em relação à crise anterior.

Há um ponto para o qual eu chamo a atenção. Em 1999, foi derrogadauma lei de 1933, da época da Grande Depressão, que é o Glass SteagallAct, que separava os bancos de investimentos de bancos comerciais. Essaconfusão entre as funções contribuiu muito para o aprofundamento, ou paracriar as condições da crise financeira nos Estados Unidos. Em parte, a perdados mecanismos regulatórios era um subproduto da visão de que nós nãotínhamos mais um problema da Grande Depressão.

É muito curioso que o Krugman, inclusive, sentindo a oportunidade demarketing, foi o primeiro a lançar um livro intitulado “O Retorno da Economiada Depressão”. É muito interessante, porque é um tema que parecia escondido,enterrado dentro das gavetas. Apenas pessoas como eu, que gostam dehistória econômica, que trabalham com o passado, é que pareciam interessadasnesse tema. De repente, o velho debate surge novamente em pauta.

Eu queria chamar a atenção de que o fato de que há um consenso de quea saída passa por mais regulação é condição necessária para se encaminharuma saída, mas não é o suficiente. Ficou claro para mim, na experiência dosanos 30, que, independentemente das dificuldades de se mudar as formas depensamento consolidadas, houve uma grande dificuldade de se conseguir ummínimo de coordenação nacional para se fazerem políticas que contribuíssempara a redução de problemas que afetavam o conjunto da economia mundial.

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Portanto, o que se agora coloca é que, se, por um lado, se reconhece quenão há saída sem mais regulação do sistema financeiro, como se regular osistema financeiro internacional? Qual deve ser a natureza dessa regulação, aextensão dessa regulação? O grau de intervenção nessa regulação não é, demaneira nenhuma, consensual. A questão que se coloca para reflexão é: senós precisaríamos agora, como no passado, de que a crise se aprofundemuito, até que os diversos países que participam dessas negociações estejamdispostos a fazer necessárias para que se chegue a um acordo em torno deuma nova regulação internacional.

Por um lado, agora nós não estamos em uma depressão; a situação atualno mundo é mais próxima de uma recessão, com diferenças entre os diversospaíses. Mas se os instrumentos hoje existentes não forem suficientes parapoder se enfrentar o problema na sua dimensão internacional, é possível quediferentes países venham a sofrer de maneira distinta com referência aoproblema, e a solução de saída definitiva pode ser muito dificultada. Por isso,mais uma vez, eu afirmo que a solução passa pela negociação internacional,porque a regulação de um capitalismo global não é nacional; é necessariamenteglobal. De certa maneira, Bretton Woods foi isso, uma negociação queimplicava em um acordo em torno das regras do jogo. Indago, agora, se jánão era importante ter algum tipo de controle de movimento de capital, mesmoque isoladamente, no caso brasileiro, para se evitar esse desequilíbrio emtermos de taxa de câmbio. Por outro lado, é claro que não há uma saídaregulatória isolada, brasileira. Portanto, mais uma vez, a questão é saber quaissão os espaços possíveis de negociação. Vamos negociar o quê? Regular oquê? E em que extensão? É isso que eu tinha a falar. Obrigado.

— Embaixador Carlos Henrique Cardim:

Obrigado. Com a palavra o Professor Marcos Fernandes Gonçalves daSilva.

— Marcos Fernandes Gonçalves da Silva, FGV/SP:

Bom dia a todos. Primeiramente, eu gostaria de agradecer o convitefeito pela Fundação Alexandre de Gusmão e pelo Instituto de Pesquisas emRelações Internacionais. Ciente do fato de que os colegas aqui presentesapresentariam textos relacionados com aspectos econômicos, no sentido mais

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estrito do termo, relacionados com aspectos de economia e políticainternacional, discutindo a própria gênese da crise, a semelhança da crisecom crises anteriores, eu decidi, mediante o convite que foi feito a mim, abordarum dos aspectos que eu considero dos mais relevantes no que diz respeito àcrise atual.

Eu tenho que ser breve, porque tenho apenas cinco minutos, aqui, parafalar a vocês sobre o meu trabalho. O título do meu trabalho é: “Auto-interessesem limites: a crise de 2008 como uma crise moral”. Isso para mim é muitoimportante, porque, como economista profissional, e como economistapesquisador e professor, inclusive, eu acredito que há um aspecto dessa criseque está sendo subestimado. O objeto do meu artigo é mostrar, em primeirolugar, que, na verdade, existe uma dimensão moral por detrás da crise queestamos vivendo, e cuja gênese, no meu entender, é 1990. Na verdade, acrise de 2008 começou com o início da desregulamentação do capitalismo,da construção de um consenso, tanto no nível da academia, como no níveldas políticas públicas e das políticas econômicas, segundo o qual o mercadose autorregula; segundo o qual o autointeresse sem limites é virtuoso, e nãovicioso, do ponto de vista do funcionamento do sistema econômico, tanto noque concerne à eficiência alocativa de recursos, como no que concerne àjustiça distributiva, seja dentro dos ou entre os Estados-Nação.

O segundo aspecto abordado em meu trabalho, tendo em vista o objetivoprincipal, é mostrar, de uma forma ou de outra, que a teoria econômicatradicional tem virtudes, do ponto de vista analítico, frente à teoria econômicacontemporânea, particularmente aquilo que se poderia chamar de teoriamacroeconômica neoclássica ou “novo clássica”. Eu citaria Lucas, no seutrabalho relacionado, principalmente, com a Teoria Keynesiana, e diria que apresunção de Lucas e a presunção dos economistas novo- clássicos selimitava, na Academia, nos anos 80, a um exercício parnasiano e acadêmico,na construção de um modelo que se contrapunha, ou se propunha contrapor,ao modelo keynesiano e derivados, onde as hipóteses são tão realistas comoa quadratura da terra. Em primeiro lugar, os agentes são perfeitamenteracionais; em segundo lugar, a informação é perfeita; em terceiro lugar, osmercados se autorregulam. Na minha estratégica metodológica, portanto,nada mais útil do que recorrer a Adam Smith, não só como fundador daciência econômica moderna, mas como aquele que nos lembra que a economiaestá fundamentada na filosofia moral. Se Adam Smith escreve “Teoria dosSentimentos Morais” antes de “A Riqueza das Nações”, eu acho que há

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alguma razão por detrás dessa cronologia histórica. A razão não é à toa.Esses economistas que advogam a teoria neoclássica do bem-estar, semnenhuma crítica, tais quais os físicos que não encontram trabalho na Academia,ou que não vão ter sucesso na Academia, nos países onde a universidade émais desenvolvida e, portanto, migram para a área de economia para tentarter mais sucesso profissional. na teoria do bem-estar, se é que podemos dizerassim, na visão de Adam Smith, nós não temos nada que diga, nada queafirme que a tal da “mão invisível” funcione perfeitamente. Aliás, se não meengano, a metáfora da “mão invisível” foi usada por Adam Smith apenas umaou duas vezes, na sua obra “Riqueza das Nações”. Os economistas da aludidateoria neoclássica do bem-estar e os macroeconomistas da teoriamacroeconômica insistem em usar essa metáfora atribuindo a Adam Smith aautoria de um conceito segundo o qual o autointeresse desregulado, o egoísmosem limites, a busca dos fins privados, sem nenhuma restrição moral, legal ouinstitucional são virtuosos.

Os fatos mostram que isso não ocorre. A crise está custando para asociedade, para os Estados-Nação, cifras que vão beirar trilhões de dólares,e, portanto, os custos sociais são extremamente elevados. Durante muitosanos, a economia internacional criou um sistema de redistribuição de rendana direção dos rentistas domésticos e rentistas internacionais. Nós criamosum capitalismo financista, onde houve uma grande concentração de riquezafinanceira na mão de poucas famílias, tanto no nível nacional como no nívelinternacional, e a conta está sendo paga por todas as sociedades a um altovalor. Se isso não representa um problema moral, eu não sei o que é umproblema moral, definitivamente.

Mas a questão central aqui, já que o meu tempo é curto, foi mostrar, notrabalho, que tanto no nível da Academia como no nível da prática das políticaseconômicas, e na imprensa, construiu-se um consenso em torno da ideia dosmercados autorregulados. A Academia prestou um serviço perverso à políticaeconômica, porque a sanção intelectual, com modelos elegantes, com umatentativa de formalização parnasiana, linda na forma, mas absolutamente inútilna prática, deu sustentação à imprensa, aos órgãos de formação, aosformuladores de política econômica e aos economistas de bancos, para criaremuma ideologia que justificasse, com base em trabalhos acadêmicos que partiamde hipóteses que são a antítese daquelas com as quais devemos trabalharquando lidamos com problemas de finanças internacionais e de finanças,racionalizando, em grande parte, políticas que foram adotadas e estratégias

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que foram implementadas, tanto do ponto de vista da liberalização financeira,como do ponto de vista da criação de bancos de investimentos que,teoricamente, venderiam produtos extremamente securitizados. Enfim, houvetoda uma construção, de fato, de um consenso.

Paul Krugman alertou para a crise há três anos. Nos anos 1990, e iníciodos anos 2000, se algum economista falasse em regulação, se algumeconomista ousasse falar que as hipóteses comportamentais da teoriatradicional eram implausíveis — e eu estou falando de economistas maistradicionais da área de economia experimental, de teoria dos jogos, deeconomistas da área de psicologia econômica, ou, até mesmo, deneuroeconomia — , se esses economistas ousassem falar isso, eles sofreriamperseguição ideológica e acadêmica. Houve uma verdadeira inquisição naAcademia econômica. Nesse sentido, nos Estados Unidos e na Inglaterra, asescolas de economia prestaram um serviço muito importante na construçãodesse consenso.

Eu sou muito pouco conspirativo ou conspiratório; eu sou extremamenteracionalista, empírico e factual. Eu não quero dizer aqui que, na minhaexplicação, há alguma insinuação no sentido de uma teoria conspiratória. Aspessoas são movidas por seus interesses, por seus autoenganos; oseconomistas são intelectuais públicos e se esquecem disso. Nós somosmovidos, em grande parte, pelo nosso autointeresse, mesmo enquantoeconomistas profissionais, e também por ingenuidade e por autoengano. Éexatamente por isso que nós temos que tomar cuidado com a nossa profissão.

A parte final do meu trabalho vai exatamente no sentido de alertar oseconomistas, ou a nós mesmos, para o fato de que nós temos essa funçãode intelectuais públicos; nós formulamos políticas econômicas; nósproduzimos transferências de renda e de riqueza quando implementamospolíticas econômicas; nós podemos desindustrializar nações quandoimplementamos as políticas econômicas; nós não podemos esquecer que apolítica internacional ainda, infelizmente, é feita com base no interesse nacionaldos Estados-Nação; nós não podemos fazer de conta, como os manuaisde economia internacional, de que existe livre mobilidade de capital e detrabalho, e de que não existem Estados-Nação movidos por autointeresse.Enfim, nós temos que rever as hipóteses básicas dos nossos modelos econsiderar que os agentes não são perfeitamente racionais, e não adiantaimpor a eles a virtude de serem perfeitamente racionais. Talvez seja melhorque eles nunca sejam perfeitamente racionais. Eu já vi um economista de

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grande monta, um economista brasileiro, que já foi Presidente do BancoCentral, um dos maiores economistas brasileiros, afirmar: “A realidade estáerrada.” Quando nós afirmamos que a realidade está errada, há algumacoisa de errado com as nossas hipóteses, com os nossos modelos e com asuposta elegância dos mesmos. Eles podem servir, inclusive, para um montede coisas, como o desenvolvimento do raciocínio lógico, do raciocíniológico-matemático, mas podem servir para outras coisas muito maisperigosas, que é a justificativa ideológica de políticas que hoje mostram umcusto social extremamente relevante e que vão afetar a vida de milhões depessoas em torno do planeta. Muito obrigado.

— Embaixador Carlos Henrique Cardim:

Com a palavra o Professor Ernani Torres, para a sua intervenção, porfavor.

— Ernani Torres, BNDES:

Obrigado, Embaixador Cardim. Em meu nome e em nome do BNDES,eu queria agradecer o convite para participar desta mesa, hoje. Tendo emvista o espaço de tempo, eu vou direto abordar o texto que eu estouapresentando.

O primeiro ponto que devemos ressaltar é o fato de que essa criseestá entrando em seu terceiro ano. Alguns datam a crise de abril de2007, quando a segunda empresa hipotecária faliu nos Estados Unidos;outros datam de agosto de 2007, quando o BNP Paribas suspendeu oresgate das cotas dos fundos que eles tinham. Independentemente dasua origem; o fato é que a crise começa. Tem uma frase importante doBen Bernanke, Presidente do FED, dizendo que a crise era alguma coisamuito localizada em uma parte específica do mercado imobiliárioamericano, que ninguém precisava se preocupar com o que estavaacontecendo. Na verdade, desde então vários já disseram — “o pior jápassou”.

Eu me lembro de que no início de 2008 eu estava conversando com umamigo que trabalha no mercado, e eu perguntei se tinha havido muitos prejuízosnos bancos. Ele disse: “Está tudo bem! Meu único medo é acordar de manhãe encontrar um corpo na porta da minha casa.” O primeiro corpo foi o Bear

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Stearns, que foi à falência, e o segundo corpo foi o Lehman Brothers, evários outros mais recentes.

Nós poderíamos perguntar: “O pior já passou?” Olhando a crise comoum todo, eu diria que, se a gente olhar os chineses e indianos, a gente podedizer que já passou. Eles estão fazendo uma política extremamente agressiva.Os chineses tiveram muito sucesso no seu plano, e farão tantos choquesfiscais quantos forem necessários para manter a economia em nível de 8, eassim por diante. Nas Américas, e estou me referindo do norte ao sul, achoque podemos, talvez, dizer que o pior já passou. É provável que não tenhamoso sucesso dos asiáticos; vai ser devagarzinho, mas talvez a gente possa dizerisso. Temos, quem sabe, uma saída mais moderada. Mas quando a genteolha onde a crise está acontecendo nesse momento, a situação é um poucodramática. É o caso da Europa e do Japão. Só para dar alguns dados avocês: no primeiro trimestre de 2009, a produção industrial no Japão teve35% de queda; a da Alemanha teve 20% de queda; a da Rússia teve 14,3%de queda. Eu não saberia comparar os outros dois, mas a economia japonesaé uma coisa que eu estudei durante muito tempo, e níveis desse tamanho sótêm correspondência nos meses imediatos à ocupação americana, depois daII Guerra. Eu estou querendo chamar a atenção para o fato de que não hádúvida nenhuma de que nós estamos atravessando a pior crise em 50 anos.

Podemos falar de países e podemos falar de setores. No setor siderúrgico,por exemplo, a queda da produção de aço no mundo é de 50%. O que elesvão fazer com a capacidade ociosa, o que eles vão fazer com os estoques éuma questão que está em curso, e provavelmente não acabe até o final doano.

Estamos falando do lado real da economia. E o lado financeiro? Eu mearriscaria a dizer que essa crise marca uma ruptura profunda no padrãofinanceiro, que começa a operar no início dos anos 80 e que se desenvolveude uma maneira exuberante ao longo dos últimos 20 ou 30 anos. Só para daralguns dados para vocês: se a gente olhar o crédito doméstico americano em1932, ele era da ordem de 123% do PIB; em 2008, ele era da ordem 221%do PIB. Portanto, o crédito doméstico americano, em relação ao produto,aumentou 100 pontos percentuais. Quando a gente decompõe, o crédito dasinstituições financeiras, que é aquilo que a Professora Conceição chama de“shadow banking” , passa de 23% para 123%. Ou seja, a despeito de todoo consumismo americano, o que houve entre as famílias e as empresas foisimplesmente uma mudança na composição; o que houve foi um brutal

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processo de securitização financeira, centrado nos bancos americanos. É odesabamento disso que nós estamos vendo.

Essa expansão, do nosso ponto de vista, foi baseada em três movimentosimportantes. A primeira coisa é a desregulamentação do mercado. Tudo aquiloque foi falado aqui, do Glass Steagall Act, etc., significa que a separaçãoentre curto e longo prazo desapareceu; a separação entre bancos e seguradorasdesapareceu; a separação entre corretoras de mercados de capitais e bancosdesapareceu. Segundo, há alguma coisa que talvez a gente pudesse chamar“desbancarização”. Ou seja, os bancos deixaram de bancar operações por20 ou 30 anos, hipotecas, e passaram a ser estruturadores de operação. Oponto central é que os bancos deixam, cada vez mais, de ter importância, eos mercados de capitais passam a ter relevância. Terceiro, é o que talvez agente pudesse chamar de “desnacionalização”. Ou seja, da mesma maneiraque os mercados foram desregulamentados, os países também foram; asbarreiras nacionais, a comunicação entre os mercados domésticos e o mercadointernacional, desapareceram, até como programas de governo e programasde instituições multilaterais.

Agora, houve também — isso é muito importante — uma mudança namaneira como os negócios financeiros eram feitos. Os bancos terceirizaramativos. Então, eu pego a hipoteca, como é o caso do subprime, origino essahipoteca, transformo-a através de derivativos, e, depois, vendo para osinvestidores. Isso é a chamada terceirização de ativos. Os bancos sãosimplesmente intermediários; eles bancam enquanto a operação está emprocesso. Daí em diante, eles achavam que tinham vendido tudo. Um outroponto é a terceirização de risco. Os bancos não faziam mais análise de risco;quem fazia análise de risco eram as seguradoras, ou as agências de crédito,as agências de rating. Então, tinha três agências de crédito grandes; essasagências tinham um parâmetro, e bastava que eu montasse estruturas quefossem aceitáveis, que eu tinha um mercado de capitais que absorvia issopraticamente de forma automática. Os bancos deixaram de captar recursos,e esse é um dos problemas sérios da crise. O volume de depósito dos bancoscaiu substancialmente; os bancos passaram a tomar recursos no interbancário,e passaram a tomar recursos de fundos de investimento, basicamente, osmoney market funds.

Do nosso ponto de vista, esse sistema veio abaixo. O que a gente assistiu,em setembro, com a falência do Lehman Brothers, como já foi falado aqui,foi um pânico; o mercado parou. Isso é um fenômeno muito raro no sistema

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capitalista, como o Prado colocou. Mas o que foi esse pânico? Esse pânicofoi um momento em que dessa massa de riqueza que foi criada nos últimos 30anos, não só uma parte sumiu no ar, 50 trilhões, mas, simplesmente, ninguémmais sabia o que valia. Não havia mais mecanismos de dar preços à riquezaprivada. Na medida em que eu não tenho mecanismos de dar preços à riquezaprivada, porque eu não sei se a contraparte vai falir, a fuga para a riquezapública foi imediata. Por quê? Porque a riqueza pública é a única que omercado sabe qual é o preço; é a única cujo preço o mercado conhece.

Desde então, várias medidas foram tomadas. Eu acho que a atitude dosBancos Centrais foi o aumento da liquidez. O Banco Central americanosimplesmente dobrou o seu ativo entre setembro e janeiro deste ano. Houveuma intervenção maciça, e esse aumento da liquidez certamente foi um dosprincipais responsáveis por o pânico não ter se aprofundado. Entretanto, emoutubro, a visão dos bancos privados era a de que a roda da fortuna e docrédito responderia imediatamente. Começou a responder agora em março,lá e aqui. Nós estamos vendo, e a recuperação das bolsas brasileiras, arecuperação dos mercados de commodities, a recuperação dos mercadosde ações, tudo isso está ligado a essa nova sensação de que o pior já passou.A gente está vendo os mercados de ativos andarem de lado; a gente estávendo os mercados de commodities terem alguma recuperação. Porém, omercado de imóveis americano, que é onde essa crise atual começou, continuacaindo 20% ao ano.

Para terminar, eu queria deixar algumas perguntas no ar. Talvez seja cedoa gente achar que a crise já terminou. Ela certamente vai continuar, e vaicontinuar por muito tempo. Do meu ponto de vista, há uma agenda enorme aser trabalhada nos próximos anos, de quais são as novas bases de expansãodo mercado financeiro internacional. As bases de seguradoras de crédito queestavam aí foram moídas. A AIG faliu, o Estado americano e vários Estadoseuropeus tiveram que nacionalizar a maior parte do seu sistema bancário. Aquestão é: qual é a nova regulação? Até recentemente, a posição dos bancosera: “Deixa com a gente, que a gente faz.” Basiléia II era isso; era reduzir ocapital dos bancos; avaliação mercado a mercado, market-to-market. Ouseja, vale o que está no mercado.

Outro dia, eu estava participando de um seminário, e alguém me disse,em tom de piada: “A crise de 32 só aconteceu porque o MacMillan Reportmostrou que os ingleses eram grandes devedores”. É claro que a ideia domarket-to-market acelera o processo inteiro e ajuda a gerar pânico. Tudo o

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que vinha está parado no ar e, provavelmente, vai ser demolido. O que vaificar no lugar? Essa é uma bela pergunta. Eu acho que dentro do governoamericano, dentro do governo europeu, há várias perguntas, mas a verdadeé que o Estado veio para ficar. Esse é o meu ponto. A ideia de que o Estadoestá de passagem, de que está resolvendo um problema de externalidade, edepois tudo voltará ao normal, eu acho que é uma hipótese muito difícil, etalvez otimista, do interesse de alguns.

Qual vai ser o papel dos bancos? Certamente nesse novo sistema os bancosse tornarão mais importantes. O mercado de capitais provavelmente vai ter umpapel menor. Agora, não sejamos otimistas com o que vem pela frente. Emvários seminários de que tenho participado é muito comum as pessoas usarema palavra “desalavancagem”, ou seja, a relação entre o capital próprio dasinstituições financeiras e ativos terá que subir. Eu chamo a atenção para o queaconteceu no Japão, a partir de 1989. Eu acho que o Japão, é uma dasexperiências mais próximas do que aconteceu. Não foi uma crise global, porquea crise do Japão não era uma crise global. Essa crise agora é global, porque elaatinge o coração do sistema financeiro, os bancos americanos. Mas“alavancagem” significa duas coisas: que os Bancos reduzirão os seus empréstimosrelativamente ao capital e que as famílias das empresas pagarão liquidamenteseus empréstimos. Do meu ponto de vista, essa combinação dá baixocrescimento, muito baixo crescimento. Se a gente olhar a economia japonesa,o processo de estagnação já dura 20 anos. Eu acho que nós estamos vivendoo final de um ciclo, à semelhança do que aconteceu entre a década de 50 e oinício dos anos 70. Provavelmente, vamos passar alguns anos, a exemplo dosanos 70, em que vai haver uma enorme volatilidade, batendo para lá e para cá.A experiência do Lehman Brothers mostra claramente que o governo americanoestava “autista”, porque ele achava que o mercado segurava. Só que deu umpânico generalizado. Ou seja, a capacidade de os policy makers entenderemo que está acontecendo e o que pode ser feito também é limitada. Do meuponto de vista, isso leva à ideia de que, provavelmente, nós vamos passar umperíodo de alguns anos ainda de volatilidade, e alguma coisa nova será gerada.Talvez seja cedo para a gente dizer o que vai acontecer. Obrigado.

— Embaixador Carlos Henrique Cardim:

Terminadas as exposições dos autores de textos, nós entraremos com odebate. Os senhores viram que há muitas questões que foram levantadas.

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Inicialmente, eu vou passar a palavra ao Dr. Luís Eduardo Melin. Fiquemtotalmente à vontade para formular questões, responder indagações ou outrasproposições. Com a palavra o Dr. Melin, por favor.

— Luiz Eduardo Melin de Carvalho e Silva, Ministério da Fazenda:

Muito obrigado, Embaixador. Bom dia, a todos. Além do agradecimentopelo convite, eu queria dar uma nota pessoal. Eu tenho um relacionamentoantigo e uma ligação afetiva com o IPRI, desde o tempo em que era dirigidopelo Embaixador Samuel, que promoveu uma série histórica de mesasredondas como esta, muito interessantes, atraindo debates bastanteconstrutivos para dentro do âmbito de discussão do Itamaraty. Isso me fazlembrar que, recentemente, conversando com um economista argentino, elese dizia preocupado justamente porque, em momentos de crise, a tendênciada maioria dos colegas, não só economistas, mas analistas em geral, era auma introversão, a olhar para o momento imediato, para o curto prazo, olharexclusivamente para o que se passa no âmbito das suas fronteiras, para tentaridentificar o risco mais próximo, o perigo mais iminente. Ele tinha medo deque se perdesse algo que, segundo ele, a Argentina teve no passado, e que oBrasil continua demonstrando muito pujantemente, que é a capacidade depensar o mundo e de se pensar no mundo, uma tentativa constante, ainda quenem sempre original, de fazer uma reflexão sobre isso. Nesse sentido, eutenho a certeza de que iniciativas dessa natureza são fundamentais.

Tendo em vista que não me parece que teria muito cabimento eu expandirem cima das considerações que já foram feitas, exceto quando nósingressemos já em uma troca, aqui, de perguntas e respostas, em termos dedebate, eu gostaria só de acrescentar uma pequena contribuição, num pontoque me parece muito relevante. É justamente o redesenho de um quadrointernacional a partir do agravamento da crise financeira, que hoje é o nossotema, o redesenho do ponto de vista de um chamamento a países, a“economias emergentes dinâmicas”, para que se engajem mais diretamentena discussão das prioridades internacionais, sobretudo de uma maneira muitovisível, a partir do agravamento principal, em setembro, com a quebra doLehman Brothers, em que, muito às pressas, se buscou e se logrou converterum fórum que já existia havia mais de 10 anos, que é o fórum do G-20financeiro. O G-20 financeiro, que é esse que está hoje em todas as manchetesdos jornais, já estava em funcionamento, havia muito tempo, como um fórum

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de discussão de Bancos Centrais e Ministérios de Fazenda. Foi uma iniciativagrandemente patrocinada pelo Governo do Canadá, lá atrás, e durante algumtempo eu fui, inclusive, o representante da Fazenda nesse fórum. Nós fomospegos com bastante surpresa pela velocidade com que se decidiu, nas esferassuperiores, transformar esse fórum em um fórum em nível presidencial,portanto, dando uma dimensão inteiramente distinta e uma visibilidade distinta,trazendo um nível de decisão que antes seria impensável para aquele espaçode discussões.

Eu acho que este chamamento à cena, que é feito efetivamente por quemcompetia fazer, que eram os países que já estavam no centro da cenainternacional e das discussões institucionais, os países do G-7 mais a Rússia,tem um caráter que deve ser analisado por nós. É muito fácil dizermos,simplesmente, como se fosse um fato absolutamente estabelecido e imutável,que hoje se constata o crescimento e a óbvia mudança de patamar naimportância internacional do Brasil, sobretudo nos debates que devem serlevados em nível global sobre toda a série de temas de coordenaçãoeconômica e de regulação financeira. Mas é importante chamar a atençãopara o fato de que isso não foi um processo orgânico apenas. Tem umadimensão orgânica da estruturação da economia brasileira, da solidez do seupadrão de crescimento, da importância crescente do Brasil na região sul-americana crescente. Esse é o lado orgânico. Mas nós não podemos cometera ingenuidade de imaginar que todo destaque que o Brasil tem tido e toda apossibilidade de participação na discussão internacional, nos fórunseconômicos e nos espaços de discussão financeira, se deve exclusivamente àsua agora reconhecida e inatacável importância. Temos que colocar isso dentrode um contexto de uma decisão política de um grupo de países centrais quedecidem, de maneira estratégica, e a nosso ver acertada, que é necessárioampliar o espaço de discussão para além dos países de economia capitalistamais madura e avançada, expandir a discussão tanto sobre a regulação quantosobre as necessidades de coordenação internacional, para um conjunto maiordas chamadas “economias emergentes dinâmicas”, que não se circunscrevemaos BRIC, mas, obviamente, atingem um conjunto desses 20 países quecompõem o G-20.

Eu chamo a atenção sobre esse ponto e sobre a natureza dessechamamento à cena internacional porque, obviamente, quem convida podeconvencer-se de que tem a prerrogativa de desconvidar. Eu acho muitoimportante que nós tratemos das questões do G-20 e da nossa participação

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nesse fórum econômico-financeiro tão importante, com uma visão muito clarada inserção que nós pretendemos ter, nas próximas décadas, no debateeconômico internacional. Ou seja, o Brasil precisa deixar muito claro, eestamos procurando fazê-lo, que julga absolutamente pertinente e irreversívelque os espaços de decisão e de discussão internacionais sejam ampliados.Patentemente, os consensos que se formaram entre os economistas do sistemafinanceiro e os economistas dos governos dos países do G-7, com relaçãoao fato de que o mundo estava muito bem governado e que todos os sistemasestavam muito bem equacionados e que, portanto, não havia que se pensarem nenhuma espécie de ampliação de espaço de discussão, estãocomprovadamente superados, e, se não tivermos a clareza meridiana, daparte dos países que hoje integram o G-7, de que esta iniciativa não pode seruma iniciativa de momento, não pode ser uma iniciativa de comunicação socialou de mídia internacional, mas que essa iniciativa tem que ser levada a peito,no sentido de convencer-se de que, a menos que se conjuguem e se ouçamas postulações, as ponderações, e que se incorpore a experiência de umconjunto mais ampliado de países. Por exemplo, uns seis meses antes datransformação do G-20 em fórum presidencial, nós tínhamos um debate nessefórum em que se narravam as experiências de países como o Brasil. Eu mesmofiz um relato extenso sobre as políticas de ajuste fiscal que haviam sidopreconizadas durante a década de 90, mostrando o que nós aprendemoscom ela, tanto o seu lado positivo, no sentido de trazer como prioridade umgrau de regramento, parâmetros que têm que ser discutidos por cadasociedade, no sentido contrário do que sempre foi a nossa história pregressano Brasil, de um ajustamento minuto a minuto, mês a mês, ano a ano dosparâmetros fiscais, sem que houvesse necessariamente referência a umconjunto de parâmetros previamente pactuados com a sociedade e quetivessem margens de manobras pré-definidas. Nós aprendemos que isso émuito bom, que ajuda, que dá horizonte para planejar, para investir. Porém,nós aprendemos a dura lição de que, se quisermos colocar as necessidadesde uma economia em crescimento, uma economia emergente, uma economiaque quer e precisa investir e crescer, dentro de moldes muito estreitos epreviamente determinados em países de economia já madura, isso poderepresentar um entrave absolutamente desnecessário ao crescimento, umamortecimento, ou mesmo um abortamento, do vetor de investimento público,tão necessário em economias como essa. Portanto, estávamos ali dando umretorno — e não foi só o Brasil a fazê-lo — da importância de como se

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comportou tudo aquilo que se vinha preconizando, a partir dos países do G-7, a partir das normas do OCDE, da visão do Consenso de Washington.Estávamos mostrando o efetivo resultado daquilo na prática e nas históriasdos nossos países nos últimos 10 anos.

Esse tipo de diálogo, esse tipo de incorporação de experiência, e, maisdo que isso, a necessidade de incorporar, como atores regionais, as suaspróprias regiões, a esse conjunto ampliado de países é absolutamenteimprescindível. Nós temos feito muito esforço para convencer a todos ospaíses envolvidos nesse exercício, nessa iniciativa, de que, na medida em queocorra o que todos esperamos que ocorra, que é uma estabilização dasvariáveis financeiras, na medida em que se possa responder à pergunta doProfessor Ernani com propriedade, e dizer que “o pior já passou”, no momentoem que todos estejamos de acordo, em torno da mesa, de que o pior jápassou, é importante que isso não implique um esvaziamento progressivodesse fórum, de que haja um esvaziamento progressivo, não necessariamentede um ou outro fórum, mas da visão de que é necessário que se amplie adiscussão internacional sobre assuntos econômicos, sobre assuntos decoordenação, sobre supervisão e regulação financeira, sobre a operação dosorganismos multilaterais, das instituições financeiras internacionais, como oBanco Mundial, o FMI, como os Bancos de Desenvolvimento Regionais,como as Conferências Econômicas Regionais, como a ASEAN e todas assimilares. A discussão dos objetivos, a discussão dos rumos, a discussão dosconceitos a serem empregados, as prioridades a serem adotadas em todosesses campos, realmente, não podem prescindir, dado o grau de interligaçãoe de complexidade do mundo em que nós estamos, da economia global dehoje, não podem prescindir de um conjunto ampliado de interlocutores, demaneira muito ativa, de um debate muito transparente. É óbvio que ninguémabre mão de prerrogativas na cena internacional, espontaneamente. Oautointeresse está sempre presente, mas nós temos que mostrar que é dointeresse desses países que assim seja feito, no médio e no longo prazo.

Em momento nenhum podemos esquecer que, do ponto de vista destedebate, é fundamental que os países que possam ser parte de um debatesobre coordenação e regulação internacional, tenham a representatividaderegional necessária, sem que se esqueça nunca da importância dos fóruns, dodebate, da discussão da articulação dessas “economias emergentesdinâmicas”, com as economias do seu entorno, com as economias que sãosuas principais parcerias produtivas e comerciais em nível regional. Se esse

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desenho não for mantido, e se os países centrais não se convencerem danecessidade de manter essa filosofia que agora adotam, nós teremos perdidomais uma oportunidade importante de correção de rumos, e o preço a pagarserá muito elevado. O Brasil prestará a sua voz muito fortemente para queisso não ocorra. Muito obrigado.

— Embaixador Carlos Henrique Cardim:Com a palavra o Embaixador Jório Dauster, para a sua intervenção.

— Embaixador Jório Dauster, Ministério das Relações Exteriores:

Obrigado, Cardim, por me chamar outra vez para esses debates tãointeressantes. Eu vou retomar uma nota do início da palestra da ProfessoraMaria da Conceição Tavares, e, quem sabe, fazer uma reflexão que é maisde economia política, na trilha do mestre maior Celso Furtado.

Eu creio que estamos certos de que, hoje, os Estados Unidos vivemum pesadelo econômico, que eu acho que não acabou. Eu acho que aindahá riscos grandes, acho que o desemprego, infelizmente, passará dos 10%;há muita coisa ruim acontecendo na economia americana e na economia domundo. Eu acho que há uma falsa euforia com os movimentos que nós sóestamos vendo hoje. Mas, de qualquer forma, aqueles que pertencem àminha geração, ou que leem história, talvez saibam que havia uma coisachamada the American dream. Nos anos 60, havia aquela visão de umabelíssima casa, no meio de um gramado, com uma bicicleta abandonadaali, e tranquilamente, um carro na porta. Pelo menos, para aqueles de pelebranca. Aquilo correspondia a uma visão de que os Estados Unidoscaminhavam para uma democracia econômica que seria um complementoda democracia política, que já estaria ali. O que se vê hoje é que esseAmerican dream virou esse pesadelo americano. Espera-se que eles saiamdesse pesadelo, porque se eles não saírem, o mundo também não sai. Agora,a pergunta é a busca da causa profunda da crise. Alguns dos palestrantesaqui já mencionaram alguns aspectos, mas eu acho que está faltando algono debate atual. Existe uma preocupação infinita em explicar os mecanismosde como os subprimes, de como a alavancagem ocorreu, que sãointeressantíssimos, evidentemente, como autópsia. Mas nós precisamos deuma visão histórica maior.

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Eu acho que tudo começou, de fato, como já foi dito aqui, com afinanceirização do mundo, e nós sabemos bem que ela foi fruto das duascrises do petróleo, em 1973 e 1979. Criou-se uma montanha de recursosfinanceiros que não podiam ser usados para aqueles que haviam se beneficiadoda maior transferência de renda a que o mundo tinha assistido, e, obviamente,os bancos, com o predomínio dos bancos americanos, trataram de reciclaros petrodólares e tudo aquilo que havia, aquela massa imensa de recursos, e,com isso, a economia real passou para o banco de trás . Aqueles que tiveramposições nacionalistas, e um pouco de esquerda, como eu próprio e outrosaqui na mesa, devem se lembrar de que a gente lutava contra as multinacionaisaté àquela época. Na verdade, os bancos já estavam interligados eglobalizados desde o começo. Eu fui negociador da dívida brasileira ao sairda moratória, e já descobri que era um novelo absolutamente encrencado efechado, e que não havia como separar um banco de todas as demais centenasde bancos que eram credoras do Brasil.

Mas esse processo coincidiu, nos Estados Unidos, com o predomíniopolítico dos republicanos. É bom lembrar que, nos últimos 40 anos, a partirde 1969, o Partido Republicano assumiu o poder dos Estados Unidos, e,nesses últimos 40 anos, só houve 12 anos em que o Partido Democrataesteve no poder: foram os quatro anos do Carter, que não encontrou nem ocaminho do banheiro da Casa Branca, e oito anos do Clinton, que, naverdade, teve que caminhar para o centro, para estar muito próximo daspolíticas dos republicanos. Portanto, existe uma fortíssima influência daquelesvalores que só pertencem ao Partido Republicano, e que ficam até mais clarosquando são contrapostos aos do Partido Democrata. O que aconteceu?Obviamente, quando Reagan, nos Estados Unidos, e Thatcher, na Inglaterra,fazem aquela comunhão extraordinária, foi o fim dos sindicatos. Algunsdinossauros estão caindo agora, como é o caso das montadoras, porqueainda estavam carregando aqueles sindicatos antigos nas costas. Foi o começodo desmonte do Welfare State nos Estados Unidos. Foi, portanto, a ideologiado neoliberalismo, a ideologia do individualismo que passou a dominar apolítica americana. É evidente que quem conduziu esse processo de formaextraordinária foi uma oligarquia financeira, e eu chamaria isso um “mandarinatofinanceiro”, que nos Estados Unidos é extraordinariamente inteligente ecomplexo. As oligarquias, inclusive na América Latina, são essencialmentehereditárias, e, por isso, têm uma capacidade de serem derrubadas com maisfacilidade. Nos Estados Unidos, elas são hereditárias, porque Bush II não

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teria chegado à Casa Branca se não tivesse havido um Bush I que, aliás, saiuda Costa Leste para fazer política no Texas porque entendia que ali haviagrandes interesses econômicos de petróleo, que ele representava. Mas sabe-se que o Bush II foi aceito em Yale para fazer um curso de História, e ninguémsabe que história foi que ele estudou naquela época, porque o pai tinhaestudado na Universidade de Yale. Ou seja, existe uma oligarquia nos EstadosUnidos, pesadamente hereditária. Mas eles inventaram uma outra, que é muitomelhor e que dá sustentação maior, que é meritocrática. É aquele esquemadas portas giratórias pelas quais todas as pessoas de maior capacitação têmque fazer um trânsito entre a universidade, Wall Street, ou um empregofinanceiro qualquer ou em uma grande empresa, e governo. Isso, com umarapidez extraordinária que permite que essas pessoas que têm umacapacitação, ou uma inteligência claramente demonstrada pelos seus resultadosacadêmicos, mesmo que seja modesta a origem, sejam cooptadas pelo sistemae tenham uma experiência enorme, imensa, que é importantíssima, de governo,de universidade, e, portanto, todos eles, aos seus 40 ou 50 anos, já têm unscinco ou dez milhões na caixinha, o que é muito bom e permite, inclusive, umaindependência de pensamento, etc. Mas é um sistema absolutamente fenomenalque gerou esse “mandarinato”. Falou-se aqui muito da questão moral, mas,na realidade, não houve nenhuma conspiração. Esse é um movimento tãodifuso quanto a nuvem da ideologia. Simplesmente, aquelas ideias, aquelesconceitos serviam àquele 1% da população que começou a se apropriar dosganhos de forma extraordinária, e os mecanismos foram a desregulamentação,e todos esses já foram mencionados aqui.

Eu fui examinar o famoso Índice de GINI, que não é nada deextraordinário, mas é o único que se presta a comparações internacionais,porque é o mais usado. Os Estados Unidos é o país desenvolvido mais injustoem termos de distribuição de renda. E sempre foi assim, porque, inclusive,era um país escravocrata, como o nosso. O Índice de GINI para os EstadosUnidos, em 1929, era de 45. Em 1947, no final da Guerra, já tinha baixadopara 37.6. Ou seja, havia uma tendência para o American dream ser umarealidade no País. Mas hoje ele é de 46.3. Ou seja, houve um repique, e,hoje, segundo o Índice de GINI, os Estados Unidos tem uma condição dedistribuição de renda inferior àquela que tinha há praticamente um século, naépoca da famosa recessão. Isso é muito interessante, porque eu acho que,muito em breve, segundo o Índice de GINI, o Brasil vai ser um país maisjusto que os Estados Unidos. Em 1990, o nosso Índice de GINI era 60; em

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2007, já estávamos em 53, e, com a velocidade com que essas curvas vãoandando, daqui a pouco nós estamos lá. Eu próprio, quando fui ler os números,fiquei chocado de ver que, em breve, nós poderemos dizer que, talvez em 8e ou 10 anos, teremos uma distribuição de renda mais justa do que a dosEstados Unidos.

Agora, é importante ressaltar que esse tipo de apropriação que foi feitapelo “mandarinato”, de uma forma extraordinária, com esses bonds bilionários,etc. não pode ser feito internamente. Não dá para enganar todo mundo. Opoder aquisitivo da classe média vinha caindo, as condições de vida setornavam mais difíceis, e o grande engodo foi exatamente poder acalmaressa população através de um estímulo ao superconsumo. Então, foi o usodo “dinheiro de plástico”, do cartão de crédito, inclusive a manutenção dejuros muito baixos durante muito tempo para estimular uma sensação de queas pessoas pelo menos podiam estar perdendo em termos de renda relativa,que é uma coisa mais difícil de sentir, porque um grande iate pode estarancorado em Monte Carlo; afinal de contas, as casas mais bonitas estãoatrás de muros altos. Mas a sensação de que as pessoas estavam consumindoera uma coisa boa.

Em um segundo momento, houve um engodo ainda maior, que era dar atodo mundo a ilusão do que é ter uma casa própria. Foi toda essa brincadeirados subprimes; foi entregar uma casa a pessoas que não tinham nenhumacomprovação de renda, a imigrantes sem papéis, por exemplo. Enfim, erauma loucura absolutamente infinita, mas que tinha um propósito político,porque, com isso, se as pessoas estão pelo menos cainhando para imaginarque vão ter a sua casa própria, isso significa que a vida não está tão ruimassim. Então, o sujeito pode sofrer alguma dificuldade, vai obrigar a mulher atrabalhar, a ter três empregos, mas há uma expectativa de que alguma coisaestá acontecendo. Tudo isso, e mais os gastos militares extraordinários, nãosão infinitos, e a economia americana começava a se ressentir pelo aumentodo déficit; todas aquelas indicações de uma doença profunda de um paísque estava vivendo muito acima das suas posses. Era a necessidade de entradadiária de dois ou três bilhões de dólares. Uma economia que precisa absorverdo mundo de dois a três bilhões de dólares por dia! Esse era o grau deabsoluto descolamento da realidade, e que apresentava a economia americanaantes de a bolha estourar.

Como é que isso foi possível? Foi possível porque aconteceu essefenômeno extraordinário, que seria a nova versão da fábula de La Fontaine

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“da cigarra e da formiga”. A cigarra americana estava bailando, mas haviauma formiga, que era o chinês, que bancou essa brincadeira porque para eleinteressava que o formigueiro estivesse funcionando a 100/h. Tanto é que elebancou com dois trilhões de reserva, que vão ser desfeitos na inflação quevem por aí. Como toda grande dívida, ela será desfeita em termos de inflação,e, portanto, todo mundo andou rindo por ai, foi uma beleza, e nós fomos osgrandes felizardos. O Brasil saiu do buraco, que eu conheci durante a minhavida inteira, que era a crise externa, o problema do déficit de conta corrente,e nós só conseguimos pegar um “jacaré” de cinco anos, escapamos do buraco,conseguimos colocar 200 bilhões na caixinha, e hoje sobrevivemos a essacrise e vamos nos sair muito bem.

Mas a realidade é que a eleição de Obama já é fruto de uma mudança. Asociedade americana, a meu juízo, já não estaria mais passível de ser tapeadapor aquele 1% da população que estava tendo essa riqueza extraordinária. Aplataforma de Obama foi a retomada desses valores do American dream.Era mais wellfare na área de educação e de saúde. Ou seja, é muito importanteque comece essa virada, e essa virada vai ter que incluir uma mudança dehábitos de consumo que tornavam tudo aquilo insustentável. Depois, talvez,tenha que fazer com que os Estados Unidos gaste menos para ter esse poderiomilitar que tem hoje. Mas a pergunta é:

“Como fica o mundo? Como fica a China?” Aquelas economias, emvolta da China e do Japão, não vão retomar. Nós sabemos que a economiajaponesa está ligada ao processo de exportação para os Estados Unidos eum pouco para a Europa. Mas a gente sabe que a Europa está capenga e vaiter uma crise muitíssimo mais profunda do que a americana. Então, ao sair dacrise, daqui a dois ou três anos, a inflação que vai tornar o dólar um confeti,que vai acabar com essa grande dívida que foi feita e que vai ser aumentadapara sair nessa injeção de trilhões de dólares até os próximos meses. Então,aonde vai ficar o mundo? Aonde vai ficar a China?

O mundo estava anabolizado por esse processo, e é por isso que essacrise não é aquela questão do atleta que se machucou, mas que, daqui a trêsmeses, pode voltar e fazer o mesmo resultado nos 100 metros. Ele nuncamais vai fazer, porque, se tiver exame de anabolizante, ele nunca mais vaifazer aquele registro. Então, o mundo encurtou, o mundo encolheu! Se vocêsolharem a Bolsa, verão que isso é alguma coisa da ordem de 40%. Ou seja,havia 30% a 40% que correspondiam a essa “espuma” causada por um sistemaque estava entrando em sua última virada do parafuso. Portanto, esse mundo

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que vem pela frente será muito diferente daquele que a gente assistiuultimamente. Muito obrigado.

— Embaixador Carlos Henrique Cardim:

O Professor Antônio Carlos Peixoto, por favor.

— Antônio Carlos Peixoto, UERJ:

Os meus agradecimentos habituais ao Cardim e ao JeronimoMoscardo. Saindo de um terreno que já foi sobejamente explorado aqui,sobre todos os mecanismos da economia e do sistema financeiro, e dentrode uma retórica quase poética que o Embaixador Jório Dauster aqui nostraçou e que nos faz remontar ao sonho americano, eu gostaria de chamara atenção para alguns aspectos que correm de modo lateral a essa crise,que já se imbricaram com ela, e, a meu ver, tenderão a se imbricar deforma crescente.

Dentro do magnífico quadro histórico com que o Luís Carlos Prado nosbrindou, na questão da recessão e na comparação com a crise atual, semdúvida alguma o período entre guerras na Europa, e, logo depois, nos EstadosUnidos, durante os anos 30, foi marcado por um volume de tensionamentosocial em um momento de ascensão do movimento sindical em uma série depaíses, que nós não estamos vendo nessa crise. Portanto, esse é um primeiroaspecto que eu tenho a impressão de que deveria ser mais explorado. Astensões sociais, que tinham começado como resultado da I Guerra Mundial,antecedem o desencadeamento da crise, naquela sexta-feira trágica de outubrode 1929, e continuam se avolumando durante os anos 30. Correlatamente aisso, ainda nos quadros da Grande Depressão dos anos 20 e dos anos 30,nós vemos uma aproximação cada vez mais veloz do mundo na direção daguerra. Inclusive, a guerra foi a salvação para uma série de economiaschamadas “maduras”, que eram as economias dos países denominados“centrais”.

Qual a diferença que nós temos desse ponto de vista em relação aoquadro atual? Em primeiro lugar, o volume do tensionamento social érelativamente baixo, mesmo nos países de maior tradição de combatividadesindical, mesmo nos países de maior tradição daquilo que se chama de “lutade classe”, que são os países europeus. As tensões são baixas. As razões

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para isso são várias. Falou-se aqui no desmonte do movimento sindical; falou-se aqui que, principalmente durante os anos 80, na Grã Bretanha, comThatcher, e nos Estados Unidos, com Reagan, o movimento sindical foi sendogradualmente erodido até chegar, no final dos anos 90, a um arremedo daquiloque ele tinha sido.

Mas crises e tensionamento social não precisam passar necessariamentepelo elemento institucional dos sindicatos. Existe alguma coisa mal estudadapor aí, alguma coisa que ainda está mal explicada. Mesmo com o quadro dediminuição de influência dos sindicatos, mesmo em um quadro em que diminuia adesão aos sindicatos por parte das diversas categorias dos trabalhadores,o tensionamento social poderia ter tido uma característica mais espontânea,de menos chamamento por parte das lideranças sindicais. Acho que há algumacoisa aí que ainda precisa ser vista.

Em segundo lugar, algo que me parece importante notar é que, se, duranteos anos 30, principalmente depois da tomada do poder na Alemanha peloNazismo, no começo de 1933, os tambores da guerra foram rufandocrescentemente, eu creio que se equivocaram aqueles que dizem que estacrise se dá no meio de um quadro internacional pacífico. O problema é outro;é que a guerra não está no centro, ela foi para a periferia. A guerra se deslocoupara a periferia em diversas frentes: algumas que já tradicionalmente existiam,como é o caso de Israel, e agora com os problemas dos territórios palestinos,Faixa de Gaza e Cisjordânia, o Iraque, o Irã, a Ásia do Sul, que é um binômio,aquilo não se separa, do ponto de vista diplomático estratégico, que é o casodo Afeganistão e do Paquistão, e para embelezar ainda mais esse quadro, jábastante açucarado, só faltava o que começou acontecer agora, nesta semana,que é a crise coreana. Então, o quadro internacional é de uma tensãoestratégica gigantesca. Só que a crise está se dando na periferia, e em umaperiferia que está geograficamente situada do Oriente Médio para o ExtremoOriente, passando por um outro ponto de grande tensão, que é a Ásia doSul. Então, do Oriente Médio para a Ásia é que está o epicentro da crise.

Evidentemente, nós não vamos encontrar um elemento de tensãoestratégica nas relações interatlânticas dentro da Europa. Eu não estousugerindo nada que vá nesta direção, mas o quadro econômico-social daquiloque Maria da Conceição Tavares chamou da “periferia da Europa do Leste”,do meu ponto de vista é particularmente inquietante, mas ainda não entrouem uma área de proximidade da tensão estratégica, apesar de que, no anopassado, ocorreram problemas entre a Rússia e a Geórgia, e não foram poucos.

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Então, temos uma situação na qual, como um todo, o Ocidente, o núcleodo capitalismo mundial, aquilo que se chamou, em linguagem da CEPAL, “ocentro”, está enfraquecido. Nós sabemos que a Europa está quebrada. Osdados do que está ocorrendo nas principais economias européias já foramsobejamente colocados aqui. Em vários trimestres sucessivos tem havidoaumento da queda da produção industrial. Na Alemanha, na Grã-Bretanha,na França, na Itália e na Espanha, o nível de desemprego é alarmante. AEuropa está quebrada, com um processo recessivo muito mais profundo doque nos Estados Unidos. Eu acho, também, que isto é outra linha de reflexãoe de investigação que poderia ser seguida em seminários subsequentes, paraavaliarmos quais são os pontos comuns e onde estão as principais diferençasentre o contexto da crise norte-americana e o contexto da crise européia.

Neste momento, os Estados Unidos, pelas razões mais diversas, algumasabsolutamente alucinadas, estão lançando o seu poder estratégico em umdesdobramento de várias frentes de tensão, em um processo no qual a EuropaOcidental que é, em última análise, o núcleo secundário da OTAN, não temcondições de acompanhar, porque a crise ali é muito mais dura, é muito maispesada. O aumento dos gastos de defesa, que é algo que está sendopermanentemente pedido pelos Estados Unidos, não está sendo realizado naEuropa. As implicações disso são sérias, são graves. Será que os EstadosUnidos, em grande medida, sozinho, vai poder dar conta deste desdobramentode focos de tensão estratégica? Qual é o quadro de equilíbrio estratégico domundo, na medida em que isto não seja possível? Como ficam as coisasdentro do quadro recessivo que acomete, primariamente, os próprios EstadosUnidos, a Europa Ocidental e o Japão?

Eu estou aqui tentando lançar, basicamente, algumas ideias para reflexão.Um último ponto seria: e o Brasil nisso? Como fica aqui a nossa terra? Eunão vejo que grandes mudanças deverão ocorrer no quadro da ação externabrasileira. Se existe uma denominação possível para os parâmetrosdiplomáticos que estão sendo seguidos nos últimos anos, eu daria a essesparâmetros a denominação de “inserção autônoma”. É isso que, do meuponto de vista, a diplomacia brasileira vem tentando desenvolver nos últimostempos; é a busca de uma inserção autônoma. A meu ver, isso tem que tercontinuidade, e parece-me que em três vertentes principais. A primeira delasé que nós temos que manter e reforçar a nossa ação nos foros relativamenteinformais que foram criados nos últimos anos: o G-20, que em larga medidaé criação brasileira; agora, mais recentemente, no G-8 + 5, o antigo G-7,

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que foi se elastecendo, na medida em que ocorreu uma desconcentraçãode poder neste terreno em escala universal; e entre os BRIC. Acho queessa é uma linha da diplomacia brasileira que, em um processo de crisecomo o que nós estamos vivendo, parece-me central. A segunda vertente émanter o esforço já desenvolvido nos últimos anos pelo processo deintegração na América do Sul. E a terceira vertente, levando-se em contaque diplomacia e ação externa não são única e exclusivamente ações decoordenação, o reforço da presença internacional do Brasil em diferentesáreas territoriais e em diferentes setores da vida internacional, seguindo,também, uma tendência que já se delineou. Portanto, essa busca da inserçãoautônoma, que, do meu ponto de vista, caracterizou os últimos tempos daação externa brasileira, é algo que deverá ter continuidade, inclusive porqueisto é política de Estado, mesmo que tenha começado em um governo,particularmente, no primeiro Governo Lula. Mas transforma-se em políticade Estado, e, certamente, caso haja bom senso ̄ mas a verdade é que nemsempre o Brasil é um país onde o bom senso impera ̄ , qualquer que sejao resultado das coisas em 2010, esta política deveria ter continuidade. Muitoobrigado.

— Embaixador Carlos Henrique Cardim:

Aproveitando as questões levantadas pelo Dr. Peixoto, eu preferia passara palavra ao Embaixador Ouro Preto, e depois, ao Embaixador Bahadian.Com a palavra o Embaixador Ouro Preto.

— Embaixador Affonso Celso Ouro Preto, MRE:

Eu queria agradecer aos meus colegas e amigos, o Jeronimo Moscardoe ao Carlos Cardim pelo convite e por terem organizado este Seminário. Eunão tenho a pretensão de apresentar qualquer análise, ou estudo econômico.Eu gostaria de dar uma olhada, essencialmente política, sobre a grande crisecom que nos defrontamos e com os seus desdobramentos. Trata-se,evidentemente, de um exercício difícil, porque a política não é uma ciênciaexata, e tentar analisar o que vai acontecer após a crise constitui,necessariamente, um exercício de futurologia que, além de ser muito impreciso,possui um elemento de ser uma atitude subjetiva. Mas vamos apresentar essatentativa.

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Em primeiro lugar, como já foi dito, a crise adquiriu uma dimensão tãogrande, uma intensidade tão forte que, muito provavelmente, é a mais gravecrise desde 1929. A crise adquiriu uma dimensão tão grande que o mundoque nós conhecemos não voltará a ser exatamente o mesmo. Essa é umacaracterística das crises: elas mudam o mundo, porque a posição relativa dosprincipais atores se modifica.

Em segundo lugar, eu diria que os principais atores continuarão a existir;não teremos rupturas, revoluções, nesse sentido de assistir ao desaparecimentode um ou dois desses principais atores. Evidentemente, todo mundo estáfarto de saber que os últimos anos foram marcados pela hegemonia americana,mais precisamente, pelo repique da hegemonia americana, como disse aProfessora Maria da Conceição Tavares. Essa hegemonia vinha suavementedescendo, desde os anos 70; teve um repique com a última administraçãorepublicana nos Estados Unidos, que se expressou, do ponto de vista político,pelas várias intervenções, inclusive, militares, que se seguiram aos atentadosde 2001: a intervenção militar no Iraque, no Afeganistão, ameaças cada vezmais fortes ao Irã, ameaças, no momento, à Coréia do Norte, criação domundo onde existiria o “eixo do mal”, a ser combatido. É uma visão de“cruzada” que inspira, evidentemente, o espírito neoconservador americano.Essas tentativas fracassaram e foram fracassando nos últimos anos; essefracasso se acelera, evidentemente, com a grande crise. Por exemplo, a ideiade instalar no Oriente Médio Estados cuja vida política seguiria um modelode democracia americana, como se tentou fazer no Iraque, não deu certo —nem poderia dar, é claro — , e esse sonho dos meios neoconservadoresamericanos quebrou.

A campanha eleitoral americana, um pano de fundo da grande crise, noque diz respeito à política exterior, representou uma discussão sobre ahegemonia americana. O Presidente Obama apresentou uma visãofundamentalmente diferente. Não era mais a ideia de uma hegemonia imperial,mas era a de um poder para usar uma leadership compartilhada. Os EstadosUnidos não agiriam à revelia das Nações Unidas, como foi o caso do Iraque:agiriam tentando obter o apoio dos seus aliados. Os primeiros gestos foramnesse sentido, mas vamos ver o que acontece. Há uma ampla literatura sobreesse relativo “enfraquecimento” dos Estados Unidos que vem sendo comentadoconstantemente em publicações especializadas, como o Financial Times e aRevista The Economist, que é uma revista muito conservadora, mas nãoforam apresentadas soluções, ainda. Na última reunião do G-20, surgiu a

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ideia de que os Estados Unidos teriam que compartilhar uma parte de seupoder econômico-financeiro com outro gigante, que é a China. Não vou darcifras aqui, mas todo mundo sabe do crescimento da China. Por sinal, poucosanos atrás, a China era mencionada como sendo o “gigante de pés de argila”,o país frágil, o país sem qualquer futuro. Hoje, a China se apresenta como ogrande gigante. A China teve uma diminuição sensível da sua expansãoeconômica, da expansão do seu PIB; terá uma diminuição ainda este ano,que talvez chegue a algo entre 6 a 8%. Se compararmos essa cifra com as daOCDE, essa diminuição da expansão chinesa é visível. Não há dúvida, então,de que a China está destinada, necessariamente, a desempenhar um papel deprimeiro plano. Até recentemente, a China era vista pelos Estados Unidoscomo uma potência regional. Aliás, era encarada com significativadesconfiança, e hoje se tornou uma potência global. No entanto, a China nãosubstituirá os Estados Unidos em um prazo de tempo previsível. Apesar doseu poder enorme, do seu poder que cresce com uma rapidez que todosconhecemos, não possui, ainda, de longe, a massa crítica que representa aeconomia, o poder militar, e, portanto, político dos Estados Unidos. A Chinaexpande os seus interesses na Ásia Central, na África, no Oriente Médio,mas ainda não está presente no mundo inteiro. Sobretudo, a China e os EstadosUnidos não estão em confrontação um com o outro; a China e os EstadosUnidos precisam um do outro. A expansão chinesa é financiada pelo mercadoamericano, e o consumo dos Estados Unidos é financiado por esse fluxo dedólares, aquisição de bonds da China, que chegam hoje a dois trilhões dedólares, ou seja, mais que o Produto Nacional Bruto. Portanto, um precisado outro.

O Ministro do Exterior da Inglaterra afirmou, recentemente, que a relaçãoentre os dois países, China e Estados Unidos, era a relação de um addictcom um drug dealer. Não se vislumbra, a curto prazo, uma diferença nessarelação, a não ser essa diminuição progressiva do poder americano, quedeixará de ser hegemônico, mas continuará, provavelmente, a ser o de umprimus inter pares, que poderá exercer poder mediante a negociação comos principais países, mediante alianças ou entendimentos alternativos, masque não exercerá um poder imperial.

Quais são os outros principais atores? A Europa representa, em termoseconômicos, uma massa crítica praticamente igual à dos Estados Unidos. AUnião Européia carece de qualquer vontade política para exercer um papelna escala mundial. Além de estar profundamente atingida pela presente crise,

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mais do que os Estados Unidos, aparentemente a Europa se limita, hoje, ainteresses paroquiais, interesses da sua aprovação à sua Constituição, desubvenções agrícolas, de entrada de estrangeiros dentro de suas fronteiras; enão vai muito além disso. O Japão, apesar da sua dimensão econômica muitogrande, e pela taxa de câmbio, seria a segunda potência econômica do mundo,mas pela taxa de poder de compra efetivo, não. Nesse caso, a segundapotência econômica seria a China. Então, o Japão, apesar desse gigantismoeconômico, é um anão político. O Japão, praticamente desde a II GuerraMundial, não desempenha qualquer papel político, nem sequer na Ásia. Estouexagerando um pouco, mas não estou longe da verdade. Em suma, teremosum universo um pouco parecido com aquele que existiu no mundo antes de1914, e que acabou muito mal. Mas, enfim, possivelmente escaparemosdaquele drama, e teremos um mundo melhor. Mas esse mundo também estámarcado por potências que sobem. A Índia, por exemplo, sobe rapidamente,mas tem uma economia e uma sociedade muito mais frágil do que a da China,e há outras potências regionais, como o Brasil e a África do Sul.

Discutir as consequências políticas da crise sobre o Brasil deveria serobjeto de um seminário separado. Não creio que haja tempo suficiente parase discutir isso hoje. Só posso dizer aqui que o poder do Brasil está crescendo,e só poderá crescer. Agora, como é que esse poder vai se exercer no futuropróximo é difícil dizer.

— Embaixador Carlos Henrique Cardim:

Agora, com a palavra o Embaixador Adhemar Bahadian.

— Embaixador Adhemar Bahadian, MRE:

Muito obrigado. Em primeiro lugar, eu queria agradecer esse convitepara participar dessa missa de sétimo dia, porque, na realidade, nós estamosrezando por um defunto que aparentemente está morto. Só que nós nãoestamos muito convencidos da sua morte. Seguramente, estamos falando doneoliberalismo, que eu espero que efetivamente esteja morto. Agora, tenhodúvida de que estejam mortos os seus arautos, sobretudo os seus maisarrogantes arautos. Na sua exposição, o Professor Marcos Fernandes referiu-se a um possível Presidente do Banco Central brasileiro, e que falou que arealidade estava errada. Esse Simão Bacamarte eu vi, ao vivo, na Argentina,

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no início dos anos 2000, quando a Argentina entrava na sua pior crise político-econômica e institucional, tendo sido ela a primeira da turma na graduaçãodo neoliberalismo. Eu ouvi um Simão Bacamarte do FMI dizer que o fracassoda economia argentina derivava de a Argentina não ter aprofundado a suapolítica neoliberal, e não o contrário. De maneira que, essa questão de, àsvezes, a realidade estar contra a gente, nós já vivemos muito.

Neste momento, eu não estou preocupado em continuar a examinar oudissecar esse cadáver. Eu acho que nós temos que partir para uma análiseprospectiva do que devemos fazer daqui para a frente, sobretudo nós quetemos um interesse na política interna e externa brasileira. A ProfessoraConceição Tavares, de quem eu nunca fui aluno regular, o que é certamenteuma falha na minha biografia pessoal, mas de quem assisti a alguns seminários,com grande prazer e grande benefício, no Instituto Rio Branco, por volta dosanos 60, referiu-se a que o Brasil, nesse período que estamos analisando,teve uma política externa acomodatícia. Eu gostaria de qualificar um poucomais essa adjetivação, um pouco à luz, até, de minha própria experiênciapessoal. Eu acho que o Brasil não foi acomodatício porque fosse isso umaintenção política, ou fosse isso uma falta de política. Eu acho que o Brasil foiforçado a acomodar-se, em grande parte, por força do endividamento externobrasileiro e por força de os fundamentos da economia brasileira serem semprevulneráveis nas grandes negociações internacionais. Fossem elas multilateraisou bilaterais, a palavra final era do Ministro da Fazenda brasileiro, e nemsempre do Ministro das Relações exteriores.

— Maria da Conceição Tavares, UFRJ:

Isso não é uma verdade. No Governo Geisel, a política externa foi deuma autonomia verdadeira. Em 1990, quando nós resolvemos a dívida externa,não tinha dívida externa. Quem fez essa dívida externa foi o Fernando Henrique.Logo, ele fez uma inserção soberana por conta própria. Assim não dá! Secomeçarmos a confundir economia com política, não vai dar certo.

— Embaixador Jório Dauster, MRE:

Eu apenas quero lhe dar um exemplo vivido pessoalmente. Eu tenho quedar exemplos claros. Quando nós estávamos na Organização Mundial doComércio, no ano de 2000, negociando uma grande negociação...

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— Maria da Conceição Tavares, UFRJ:

Mas, em 2000, já tínhamos quebrado de novo. A acomodação foi em90, não foi em 2000. Durante o período do neoliberalismo, nós não tivemosnenhum propósito de autonomia. Agora temos. Pode até dar errado, podeser que a gente não consiga manter as propostas com a crise, mas esperoque consigamos, porque, como diz o outro, espero que seja um ativo adquirido.Mas durante a década de 90, a política foi acomodatícia. Foi quando enrolaramo Jório e puseram o Malan, que eu diria que não é propriamente a mesmacoisa numa negociação da dívida externa.

— Embaixador Jório Dauster, MRE:

Eu não vejo onde está muito a nossa discordância, porque foi exatamentenessa época que nós tivemos as grandes negociações, do Governo FernandoHenrique para cá, e que houve um constrangimento muito grande à posiçãode negociação brasileira, por força da dívida externa. Eu vivi isso, e várioscolegas meus também viveram essa situação. Mas, enfim, isso não é a essênciado que eu quero dizer. O que eu quero dizer, na realidade, é que o que nóstemos que procurar fazer daqui para o futuro é analisar qual a posição quenós podemos defender daqui para a frente nas organizações internacionais.Eu não estou convencido, absolutamente, de que essa crise vá,necessariamente, modificar o pensamento dos grandes países nas negociaçõesinternacionais. Eu li, recentemente, num jornal, que até um país como osEstados Unidos, que está com tantas perspectivas de apresentar uma linhapolítica mais construtiva, ao retomar as negociações na OMC, faz umaproposta que é absolutamente conservadora e que torna muito mais difícilque nós possamos sair desse impasse. Então, eu não estou convencido,absolutamente, de que essa crise vá promover uma maior consequênciapositiva para países como o Brasil. Isso me preocupa muito, porque eu achoque nós não podemos mais voltar a essas mesas de negociação, sejaunilateralmente, seja regionalmente, sem que a gente faça um dever de casa euma reflexão importante, entre nós — não só no Brasil, mas também entreos países latino-americanos que nos interessam mais de perto — , para quesaibamos muito claramente o que é que nós desejamos fazer e como podemosnos defender. Por exemplo, eu vejo com grande preocupação que nasociedade brasileira existe hoje uma crítica, às vezes não tão velada, às atitudes

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que são tomadas pelo governo brasileiro ao procurar acomodar reivindicaçõesde países limítrofes ao nosso, em questões de natureza econômica. Cito ocaso do Paraguai, recentemente, o caso da Bolívia e do Equador. Essa situaçãoem que, muitas vezes, o Brasil vem sendo apresentado como um aprendizimperialista, é muito grave, sobretudo, para quem deseja manter com os nossospaíses fronteiriços e nessa região, a nossa política de solidariedade, umapolítica de união econômica. De maneira que nós temos que fazer,necessariamente, uma reflexão, e abandonar, ou não, certos mecanismos pelosquais fomos profunda e negativamente influenciados durante um longo períododessas negociações, ou seja, dos anos 70 para cá. Aliás, eu acho que atéantes disso, com a configuração de uma estrutura internacional econômicaguiada e dirigida por órgãos como o FMI e a própria Organização Mundialde Comércio. Se dermos uma olhada nos instrumentos que foram criados naOMC, até mesmo fora do quadro estritamente comercial, — e eu estou mereferindo aqui aos Acordos de TRIPS e o Acordo de TRIMS — , nóspoderemos ver que muitas das capacidades de flexibilidade da economianacional se viram constrangidas pela aceitação dessas novas regras. Serápossível mudá-las? Eu tenho sérias dúvidas sobre isso.

A questão é: a partir desse semestre, porque as negociações estãocontinuando, e nos farão, necessariamente, grandes demandas, como nóspoderemos participar, seja no

G-20, seja no Mercosul, seja na OMC, com uma postura que não sejamais aquela que é simplesmente de “acomodação”? Que tipo de política nósqueremos fazer? Essa é a minha dúvida. Essa é a minha proposta, também.Constatado esse óbito, nós não deveríamos apenas considerar que os nossosriscos estão mortos e enterrados. Pelo contrário, a partir de agora me preocupamuito o que eu estou vendo no cenário internacional. Sem nenhuma ideia deconspiração, obviamente, me preocupa muito a situação que se estádelineando no cenário internacional, embora, internamente, como já foi ditoaqui, o Brasil esteja em uma situação confortável. Só que eu não sei até queponto esse conforto poderá ser mantido. É inegável que o Brasil tem que teragora uma postura protagônica. Isso não é apenas um desejo, mas é quaseuma necessidade de que o Brasil tome essa postura protagônica. Agora, sópoderemos ter essa postura, se tivermos a capacidade de discutir essasquestões entre nós. Sou grato à Professora Maria da Conceição Tavares porter me lembrado de que, talvez, o meu diagnóstico esteja errado. Eu achoótimo que nós possamos discutir dessa forma franca e ampla para que

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possamos chegar a um denominador comum. Aliás, acho muito mais fácilchegar a um denominador comum aqui do que chegar a um denominadorcomum no G-8 + 5, onde não acredito, absolutamente, que se chegará aqualquer coisa, seja na Sardenha ou em qualquer outro lugar da Itália. Muitoobrigado. Era isso.

— Maria da Conceição Tavares, UFRJ:

Eu queria fazer alguns comentários finais, aqui, sobre as intervenções.Tenho que começar com o Bahadian, a quem peço desculpas. Em geral, euestou mais moderada, com a velhice, mas acontece que a adrenalina vaisubindo, e quando chega nessa questão da década de 90, eu acaboexplodindo, definitivamente.

— Embaixador Jório Dauster, MRE:

Professora, a senhora sempre foi jovem, nunca deixou de ser jovem, eeu fico muito honrado de ter estimulado a volta à sua juventude.

— Maria da Conceição Tavares, UFRJ:

Obrigada. O Melin também fez uma referência em relação ao que eudisse. É engraçado que parece que o que eu disse, pelo menos no que serefere à questão externa, não foi entendido. Então, vou tentar ser mais clara.Não é que nós não sejamos originais no pensamento. Acho extremamenteoriginal. Aliás, nós somos originais, pelo menos desde o velho Barão. A questãosão as conjunturas das políticas internacionais e a brecha que o Brasil acha,ou não, quando há uma ruptura de poder. Realmente, no mundo capitalistaglobalizado, com os personagens de nova emergência, como a China, comoa Europa, que pode até estar decadente, mas ainda tem peso político, atribuirao Brasil um peso objetivo, relativo, nas relações internacionais, é umequívoco. O Brasil não tem efetivamente peso, e, por isso, tem que apresentaruma estratégia coerente, que pode ser ora acomodatícia, ora agressiva,dependendo da conjuntura. Eu não sei por que a palavra “acomodatícia”incomoda tanta gente. É claro que pudemos fazer uma política externaagressiva, mais autonomista, no Governo Lula, por conta da situaçãointernacional muito atrapalhada. Está claro? Ele diferenciou, se vendo livre

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do capital financeiro internacional, pagando a dívida. Vocês se lembram doescândalo que foi quando o Lula resolveu pagar o FMI? Argumentavam porque o Lula estava pagando o FMI em vez de fazer obras sociais e outrasmaluquices do tipo. Então, a clareza da estratégia, no caso brasileiro, requertambém malícia. Esse é que é o problema. Então, quando o nosso colegadisse “não sei se o Brasil é um país sério”, ele deve ser um país sério, mas, depreferência, que não aparente ser muito sério. Esse negócio de aparentar sermuito sério dá mal resultado. Primeiro, porque significa que ou você não éserio, ou é um hipócrita. Foi quando eu fiz referência aos Estados Unidos. Eunão coloco dúvidas de que o candidato é sério, mas o país não é serio, é umpaís hipócrita, é um país imperialista que não abriu mão, absolutamente, deser imperialista. Pelo contrário, ele não abriu mão em nada. Então, por queteria um comportamento diferente na OMC, ou teria um comportamentodiferente, provavelmente, na OCDE, por mais que o Presidente queira reatarcom Cuba e tranqüilizar o assunto? Vamos ver. Agora, isso não implica quenós não tomemos iniciativas. Mas as iniciativas não estão tão ligadas à nossasituação econômica, nem mesmo à situação internacional. Esta crise é muitomais pesada do que foi a crise de 70. É claro que a crise de 70 abriu umabrecha, e o Geisel fez, com ditadura e tudo. Agora, uma das característicasquando se abre uma brecha e quando a autonomia é para valer, é o grau deantiamericanismo do governo. O Geisel fez uma política antiamericana. Apesarde fazer uma política para o multinacional, para o capital estrangeiro, ele fezuma política antiamericana. É por isso que não convém misturar. É isso o queeu digo. Uma coisa é a globalização do capital; outra coisa é o poderhegemônico dos Estados Unidos. Para eles, um apoia o outro; e para nós,não. Você pode estar em graus crescentes de integração econômicasubordinada, e no político, perceber a brecha, e na verdade, tomar certaautonomia em relação à crise. Foi o que o Brasil fez no período do Geisel.Não é que eu seja uma “viúva” do Geisel. Aliás, foi nesse período que eu fuipresa. Não é por aí, mas é reconhecer os fatos. Em 90, nós tínhamos resolvido.É claro que em 80 não dava para fazer grandes coisas, exceto declaratórias.Eu cansei de fazer declarações, só que isso não tinha nada a ver com oItamaraty. A verdade é essa. Apesar de termos um Embaixador ativíssimoem Washington, que, pelo que eu saiba, foi o único Embaixador que, estandolá, agrediu o próprio governo americano, e não aconteceu nada. Ele fez issopor conta própria, mas isso não modificou a situação internacional do Brasil.Então, em 80, não tinha muito remédio, exceto espernear. Isso é uma

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possibilidade. Quando não se tem poder nenhum, você pode espernear. Agora,quando aumenta o seu poder, você pode ser conciliatório. Eu não sei se opoder brasileiro vai aumentar ou não, no conjunto das nações. É difícil saber.Nós estamos meio pela média, mas não somos a China ou a Índia, em matériade crescimento, nem podemos ser, porque eles começaram outro dia, e nóssó começamos em 30. Nós não temos nenhuma revolução industrial parafazer. Nós já fizemos a nossa revolução industrial. O que a gente tem quefazer agora é outra política, ter outro tipo de Estado, outro tipo decomportamento. Então, é muito difícil prever o que vai acontecer, e essadiscussão é importante. Muito provavelmente, quando se é menos poderoso,tem que ser o rato que ruge. Você pode agredir. Se você for megalômano,que era o caso do Geisel, você também pode. Não vejo os próximos governossendo uma coisa nem outra. Nem o Governo Lula. Ninguém aqui émegalômano, no Brasil, recentemente. Estamos mais prudentes. Isso podeser uma manifestação de maturidade e de força. Essa eu quero que continue.Eu sou a favor de que continue a maturidade e o crescimento relativo danossa posição no mundo, e por isso mesmo, uma atitude que pode ser deprudência, de conciliação ou de agressão, dependendo da conjuntura. A gentepode se retirar de um foro quando estão torrando muito a nossa paciência,não pode? Mas os foros são muito diferentes. Você está dando muitaimportância à OMC, mas eu não estou dando mais nenhuma importância àOMC. Para mim, a OMC está morta, estar lá ou não dá no mesmo. Nósestamos lá por um ritual, mas aquilo já acabou; acabou com a globalizaçãofinanceira, e dali não sai mais nada; ninguém vai ficar mais liberal coisa nenhuma;o protecionismo vai aumentar, e ponto final, quer a OMC queira ou não.Logo, não preciso ser declaratório, eu não preciso estar na OMC e dizer quevou tomar cuidados protecionistas. Eu simplesmente tenho que tomar oscuidados, mas não preciso declarar. Essa é a questão, e é isso que torna adiscussão tão difícil. Eu vi o esforço que o companheiro de São Paulo fezpara tentar resgatar que as neoclássicas antigas não diziam as besteiras queos neoclássicos modernos dizem. Mas eu não estou a fim de entrar nessadiscussão de escola. Eu sou muito realista, como vocês devem ter notado.Em matéria de economia internacional, eu sou muito realista. Eu proclamei aretomada da economia americana, lá em Washington. Eles não davam bola,porque eram scholars de relações internacionais que não entendiam porcarianenhuma de moeda. Agora, também não precisa levar a moeda tão a sério,quando se está tratando de relações internacionais, mormente quando você

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não tem a menor ideia sobre para onde vai a tal da moeda internacional. Nãotenho a mais mínima ideia do que vai acontecer com o dólar. Não há umeconomista que possa dizer o que vai acontecer com o dólar. Existe algum?Não. Exceto que ele não tem um substituto fácil. Até aí morreu Neves.Portanto, a política internacional concreta está difícil; a política comercialestá difícil. Nós fomos muito bem na conciliação de interesses da América doSul e sem pretensões subimperialistas. No entanto, eles nos acusam desubimperialistas; aqueles mesmo que nós estamos tentando ajudar, para nãofalar dos outros. Agora, isso está difícil, porque uma das possibilidades deajudar era, efetivamente, do ponto de vista financeiro. Só que isso aqui não éum bolso sem fundo. Ultimamente, a quantidade de candidatos a receberrecursos brasileiros é significativa. Não sei se vocês se lembram, mas antes,era a Venezuela que ia pagar. Não pagou nada, e está em uma crise furiosa;então, vai pagar nada, por definição. Agora, toca a nós. Nós não somossubimperialistas, não queremos ser subimperialistas; queremos ajudar, sim,mas também não estamos querendo dar os nosso recursos de graça, a riscototal. Ou não é assim? Agora, os negociadores brasileiros vão aos países daAmérica do Sul e dizem que não querem dar nada de graça, que seria maisum subsídio. Não é assim. Foi bem até agora, mas agora é capaz de não irtão bem, justamente porque essa crise pode não favorecer as nossas relaçõesna América do Sul. Em compensação, parece que favoreceu as nossas relaçõescom a China, desde que eles não queiram, como piratas comerciais que são,nos empurrar a sucata deles. Até agora não conseguiram. Não sei se alguémestá tomando medidas, mas talvez os nossos empresários estejam. No entanto,tem gente no Itamaraty que não entende nada e acha que a China é a nossasalvação. Tem todo o tipo de gente no Itamaraty. Eu estou falando dos quenão são da nossa banda. Obviamente, se fossem da nossa banda, iriamentender melhor. A gente não sabe qual é a banda do Itamaraty que vai ganharno próximo governo. Se for o meu candidato, eu sei; mas não sei se for ooutro. Respeito muito o Serra como desenvolvimentista, mas uma coisa édesenvolvimentista, e outra coisa é outra coisa. Aí é que está o problema.

Todas essas características fazem com que não esteja mais tão simplescomo era antes. Antes, você dizia “nacional desenvolvimentista”, e todo mundosabia a cartilha. Agora, não dá. Ninguém sabe direito o que quer dizer“nacional”, e é importante que todos aprendam, cada vez mais, porque estádifícil. E “desenvolvimentista”, então, dá para qualquer lugar. Ademais, temos estabilizadores de várias correntes. Vocês hão de convir, de que a vida

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não está fácil, nem para o economista, nem para o politólogo, nem,seguramente, para o Embaixador.

— Embaixador Carlos Henrique Cardim:

Bom, a palavra está aberta aos participantes da mesa, que devem fazerintervenções breves, perguntas, indagações, ou qualquer comentário. Com apalavra o Professor Luís Carlos.

— Luís Carlos Delorme Prado, UFRJ:

Eu fiquei atento ao debate, e queria resgatar alguns aspectos daconstrução da ordem internacional do pós-Guerra, porque, a meu ver, a criseatual começou mesmo quando acabamos algum tipo de consenso que haviaem torno de Bretton Woods. Com todos os problemas, na década de 70,havia um mínimo de autonomia de política doméstica, como já foi aquilongamente colocado, e que acabou se esvaindo. A questão da digitalizaçãodos arquivos. É uma coisa fantástica! Agora, da sua casa, você conseguepegar todas as informações relevantes. Eu estava, há pouco tempo, olhandoos arquivos dos registros da reunião de Bretton Woods, e tem algumasdeclarações maravilhosas! O Morgenthal, em um dos eventos, naquela época,disse que era necessário expulsar os emprestadores usurários do templo dasfinanças internacionais. Naquela época, ele era Secretário de Estado. Ouseja, em uma crise, naquela confusão da política beg-thy-neighbor, algumtipo de acordo tinha que ser feito. Afinal de contas, em 1944, alguém quetivesse 50 anos, tinha vivido, desde os 20 anos, em guerra ou grandedepressão. O ponto que eu tentei colocar em meu argumento, até trazendoum pouco da experiência que o próprio Embaixador colocou, da percepçãodas relações internacionais, é que pode ser que a crise não seja grave osuficiente para haver concessões de todos os atores econômicosinternacionais, e para se chegar a um tipo de novo acordo. Esse não seria opior cenário. O pior cenário, a meu ver, seria uma situação em que, nasrelações econômicas internacionais, a gente começasse a patinar. Ou seja,fica um impasse na OMC; o G-8 + 5 não caminha para lugar nenhum, e cadaum tenta ter um caminho de salve-se na sua própria região. Nós vamostentar montar a nossa estratégia. A ideia da criação da América do Sul comocontinente, e a radicalização da integração da região, de alguma maneira

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pode ser uma forma de reduzir a nossa vulnerabilidade. Mas, certamente,essa não é uma solução, porque, como está claro, também temos problemascom os nossos vizinhos.

Agora, eu coloco um ponto de indagação: será que precisaremos que acrise se aprofunde? A crise pode se aprofundar com a piora na situaçãoeconômica de algumas regiões, ou pela mera estagnação, que foi o queocorreu pós-33. A economia internacional começou a se recuperar, mas nadaaconteceu, e piorou de novo em 1937. A economia internacional só melhorou,mesmo, só se teve alguma perspectiva de reduzir o desemprego, com aGuerra. Parece-me que essa não é uma questão meramente acadêmica; équestão muito concreta. Será que, pela frente, nós só teremos um cenário decrescente instabilidade até que a situação fique tão difícil que finalmente algumtipo de acordo vai sair, e nós vamos ter alguma perspectiva? Ou poderemosser mais otimistas? Dados esses dois cenários polares, como deverá ser aestratégia de negociação brasileira na área de relações internacionais, oudomesticamente? Que tipo de estratégia econômica nós temos que colocar?Será uma estratégia defensiva, no sentido de voltar a impor, de alguma maneira,restrições a movimento de capital, aumentar algum grau de protecionismo,ou alguma coisa do gênero? Ou será que, ao contrário, podemos confiar emque há espaços de negociação, e que, de alguma maneira, dá para se sair docenário internacional com algum caminho negociador?

— Embaixador Carlos Henrique Cardim:

Com a palavra o Professor João Paulo de Almeida Magalhães.

— João Paulo de Almeida Magalhães, CRE/RJ:

Bom, as discussões estão extremamente interessantes, mas eu achoque faltou uma coisa. O que é que temos que fazer para acabar com acrise, o mais rapidamente possível? Eu vou fazer uma proposta aqui, que,como eu disse, é meio radical. A crise não vai acabar enquanto os EstadosUnidos não resolver o problema dele, e o problema fundamental dosEstados Unidos, para quem está acompanhando a situação, é o problemado setor financeiro, bancário, dos Estados Unidos. O governo americanojá colocou muito dinheiro, e agora faz o cálculo do que se pode fazerpara recuperar os bancos. Há três dias, o Stiglitz, Prêmio Nobel de

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Economia, dizia que se trata de uma “economia de zumbis” porque umasérie de bancos americanos continua com problemas seriíssimos; essesganhos recentes foram uma manipulação contábil, etc. Então, eu tenho aimpressão de que chegou a hora de se propor uma coisa mais radical. ASuécia teve um problema desse tipo, algum tempo atrás, e o governosueco simplesmente entrou no sistema bancário, controlou todo o sistema.Com isso, criou uma tranquilidade para aqueles que tinham dinheiroempregado no sistema, e pôde agir como se tem que agir. Então, o que sedeveria fazer nos Estados Unidos é ignorar a oligarquia, o “mandarinato”;eu diria, até, a “máfia” de Wall Street, e simplesmente o governo americanocriaria uma “ação ouro”. O governo investe 1% do capital do banco, ecom essa ação ouro tem direito de decidir como ele quiser. Como acionistamajoritário, o governo americano receberia os poderes para agir na crisee acabaria com o empossamento do crédito, que já está acontecendo, efaria o crédito simplesmente orientado para aquelas aplicações que eleacha necessário. Essa seria a forma sueca, que se deveria considerarimediatamente.

A pergunta que vem logo após é a seguinte: o que fazer depois queisso der certo? Há duas alternativas. Uma primeira é o governo fazercomo se fez na Suécia, ou seja, devolver todos os bancos à iniciativaprivada. No caso específico, teria que fazer uma regulamentação porqueesta praticamente desapareceu, inclusive, na própria estrutura dosbancos. Essa seria uma solução. Agora, quando propus tal solução,num determinado momento, eu tive uma objeção muito interessante feitapelo Embaixador Marcos Azambuja. Ele me disse que a regulamentaçãonão vai adiantar nada, ou vai adiantar durante muito pouco tempo,porque, na verdade, os reguladores são funcionários públicos,burocratas. Podem até ser funcionários de alto nível, mas tudo o queexiste de melhor em matéria de analise econômica, de propostaeconômica, está do lado de lá, ganhando muito bem. Se, por acaso,houver um regulador muito bom aqui, ele será convocado para o ladode lá, certamente. Então, essa parte de regulamentação não vai darmuito certo. Então, vamos para o radicalismo, que é manter o sistemafinanceiro nas mãos do governo.

Há argumentos a esse favor. O sistema financeiro dos bancos tem umasituação muito especial. Em primeiro lugar, eles não trabalham com o dinheirodeles, e sim, com o dinheiro dos outros. Isso quer dizer que a chamada

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“alavancagem”, conservadoramente, é, no mínimo, de 1/10. Aliás, um dos papersapresentados aqui fala de 1/60. Então, esse seria um primeiro motivo. O segundomotivo é a tendência das crises do sistema financeiro privado a serem crisessistêmicas, que vão começando, abrangendo todo o setor financeiro, e, depois,entrando na economia real. Então, com essas justificativas, nós temos apossibilidade de defender essa tese.

Eu diria ainda uma outra coisa. Reparem a situação da China. OsEstados Unidos e a Europa devem ter uma perda de 4% do PIB; oJapão vai ter uma perda de 6% do PIB. No caso da China, se dizia queo crescimento seria de 6%, e agora já se começa a dizer que vai ser de7%, e eu não duvido que chegue a 8%. A China não teve uma crisevinda do sistema financeiro porque o sistema financeiro chinês é todogovernamental. Diante disso, da mesma maneira que a China estáseguindo os bons exemplos do capitalismo, ao admitir a iniciativa privada,poderíamos aceitar o bom exemplo da China, que é, simplesmente,estatizar o sistema bancário. Além disso, no controle de crise, nóstivemos as contribuições de Keynes. O Professor Luís Carlos lembrouaqui o Robert Lucas, que foi Prêmio Nobel de Economia em 1995. Em1993, ele dizia, com essa visão keynesiana, que tinha acabado adepressão. Então, reparem que tem alguma coisa extremamente estranha.Se nós tivéssemos todo o sistema bancário nas mãos do Governo,possivelmente as fórmulas keynesianas funcionariam, e possivelmente,nesse caso, aquilo que Robert Lucas disse e errou, que as depressõeshaviam caído, no passado, a partir desse momento, elas poderiamrealmente ser resolvidas. (confuso esse último pensamento)

Então, as políticas keynesianas teriam aquele objetivo que se pensavaque deveriam ter.

Eu não estou pregando o socialismo. Aliás, eu devo confessar que, mesmoquando eu era jovem, eu não era socialista; então, tenho um pedigree bastantebom nesse sentido. O que interessa é o setor real, e o setor real continuarianas mãos da iniciativa privada, como está acontecendo na China. Inclusive,eu acho que, ao se garantir que o sistema financeiro não vai provocar crisessucessivas — porque a maioria das crises que estão por aí é de caráterfinanceiro — , então, a iniciativa privada, no sentido do setor real, estariaconsolidada, não teria mais problemas, e nós teríamos um capitalismo semnenhum temor futuro de uma crise pior que essa que possa vir a comprometero sistema. Muito obrigado.

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—Embaixador Carlos Henrique Cardim:

Professor Marcos Fernandes, por favor.

— Marcos Fernandes Gonçalves da Silva, FGV/SP:

Eu gostaria de fazer alguns comentários, em função do que o EmbaixadorDauster falou, e em função, também, do que o Professor Antônio Carloscolocou. Eu acredito que essa crise foi a melhor coisa que aconteceu naminha vida, como economista. Eu tenho 45 anos, e vi o Brasil crescer, complanejamento, com estratégia, quando eu era garotinho. Agora, talvez eu estejavendo um País que volta a pensar em um projeto nacional. Eu espero estarcerto, e estou muito feliz, a despeito de todo o custo que essa crise tem paraas pessoas e para a sociedade, e a despeito de que temos que arcar comesses custos para termos benefícios maiores no futuro.

A desigualdade no Brasil tem diminuído sistematicamente. Osindicadores do IBGE e do próprio IBRI, da Fundação Getúlio Vargas,caminham nessa direção, e mostram que a desigualdade tem melhorado,tem diminuído. Nós temos mudanças no Brasil que temos que levar emconta. O Brasil fez um seguro para a crise, e não sabia. O mercado detrabalho mudou no Brasil. A gente passou por uma transição demográfica,há uns 20 anos; a inflexão demográfica também ocorreu mais ou menosduas décadas atrás; e o número de jovens entrando no mercado de trabalhoé cada vez maior. Isso é uma boa notícia. Pela primeira vez na históriaeconômica do País, conversando com economistas da área de economiado trabalho, que não é a minha especialidade, a gente observou que, nosúltimos três anos houve um aumento do salário real. Obviamente, foi maiorem alguns segmentos do que o crescimento dos próprios segmentos. Adesigualdade se reduz, e nós temos uma ascensão de consumo da “classec”. Pela primeira vez, também, na história econômica do País, nós temosum crescimento da classe média e do mercado interno. É claro que esseano é um ano terrível, mas, pensando a médio prazo, nós temos um seguro,e de uma forma ou de outra, o Brasil mudou, às vezes, intencionalmente, eàs vezes, não intencionalmente.

Com relação à questão do dólar e à China, isso não preocupa a China,porque ela está se entupindo de commodities não perecíveis. A China estáaproveitando exatamente a deflação no preço das commodities para usar

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aqueles dólares e comprar um estoque enorme de commodities. Então, essaé uma estratégia que a China está adotando e que é extremamente adequada.

Eu não sei ao certo se Main Street está com tanta raiva assim de WallStreet. Não sei se o americano comum já se deu conta do assalto ao bolsodele. Mas acho que mais ou menos a curto e médio prazo, isso vai aparecer.

Com relação à questão levantada pelo Professor Antônio, talvez nãohaja tanta tensão social, porque houve uma mudança no mercadointernacional. Também porque nós temos a entrada da China e da Índia,ofertando uma mão-de-obra altamente qualificada, farta, no mercado detrabalho. Então, o mercado de trabalho, para os europeus, para osamericanos e para nós também, mas principalmente para eles, é um mercadocada vez mais competitivo. Eu acredito que isso mantém o enfraquecimentodos sindicatos. Eu acho que é difícil pensar numa volta ao passado nessesentido.

Eu queria só fazer uma última colocação. Não querendo interferir nodebate entre o Embaixador Adhemar Bahadian e a Professora Maria daConceição Tavares, mesmo porque isso não seria prudente, eu queria sódizer que eu acho que houve um desentendimento aqui porque os doisestão falando de situações diferentes. O que a Professora Conceição estavadizendo, no meu entender, é que, nos anos 90, com o primeiro Governo doFernando Henrique, nós adotamos uma política que eu não diria que tenhasido uma política passiva, de adequação ao cenário internacional, mas simuma política de entrega ao sistema. O Fernando Henrique Cardoso herdouuma dívida externa equacionada, herdou uma dívida pública equacionadae, no segundo mandato, entregou para si mesmo, e depois para o Lula,pior ainda, uma dívida interna não financiável; uma dívida externa que, comrelação à capacidade exportadora do País, indicava inadimplência potencialdo País; a carga tributária pulou de 20% para 36%, e a dívida públicatambém. O Plano Real foi bem sucedido, mas por causa dos juros e porcausa do populismo cambial, ele substituiu o imposto inflacionário por dívidapública e por carga tributária. Em minha opinião, o Professor FernandoHenrique foi um grande presidente. O Plano Real foi bem sucedido, maspoucos cientistas sociais têm a oportunidade de, na prática, realizar aquiloque apregoavam nos livros acadêmicos. O Professor Fernando HenriqueCardoso, ao contrário do Presidente do Banco Central, que eu citeianteriormente sem falar o nome, conseguiu, na prática, aplicar só a teoria.Ele deixou o País dependente.

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— Embaixador Carlos Henrique Cardim:

Com a palavra o Professor Antônio Carlos Peixoto.

— Antônio Carlos Peixoto, UERJ:

Eu queria fazer duas observações muito rápidas. A primeira é que a relaçãodo Brasil com os seus vizinhos sul-americanos é uma relação difícil,extremamente difícil. Em primeiro lugar, por razões extremamente pragmáticas.Na Europa, o processo de integração se dá em um quadro de simetria relativa.Do ponto de vista da Alemanha, não existia simetria estratégica, por razõesóbvias. A guerra tinha acabado havia pouco, existia uma serie de limitações,mas do ponto de vista econômico, a Alemanha era um pouco mais forte doque a França e a Grã-Bretanha. Então, nós podemos falar de simetria relativa,em que as coisas caminham pela negociação. No caso do NAFTA, há umaassimetria absoluta. Aqui, nós só temos um quadro de assimetria, mas enquantoesta permite aos Estados Unidos impor as regras do jogo no que se refere aoCanadá e ao México, menos no capítulo da imigração, porque existe aquelecenário um pouco dantesco de a Califórnia voltar a ser mexicana por umpredomínio demográfico brutal da população mexicana e de outros latino-americanos.

O grau de assimetria que existe entre o Brasil e seus vizinhos não permiteuma imposição, e nem eu acho, pessoalmente, que essa imposição fossedesejável. Para mim, esse é um ponto pacífico. Eu não queria uma situaçãodesse tipo. Conceição, eu não falei em país sério, essa foi uma frase do DeGaulle. Eu falei em país sensato, o que é diferente de sério. Se houver essainsensatez e essa assimetria, eu iria ser o primeiro a pular e dizer: “Opa! Nãoé assim que se tratam as coisas!” Então, é uma relação difícil, sim. Não há umgrau de assimetria que permita a qualquer diplomata pragmático dizer: “Aquinós temos condições de impor tal coisa ou qual outra coisa”. Não existe isso.

Mas há uma outra questão que tem que ser considerada. As tensõesinternas são conhecidas. Quem conhece um pouco a história da América doSul, sabe quais foram essas tensões, sabe que elas até hoje se refletem nasrelações entre os países. Por exemplo, o caso do Chile, de um lado, e doPeru e Bolívia, de outro. Eu diria que é o caso mais gritante. Mas, apesardisso, a América do Sul hispânica é um conjunto. Ela é um conjunto em quese fala a mesma língua e que teve uma mesma matriz cultural, que foi a Espanha.

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De certo ponto de vista, ela é um conjunto de “irmãos” e chega um primo defora, que é mais forte. Então, a relação é difícil, é tensa. Ninguém tenhadúvida disso. Nós vamos encontrar problemas desse tipo. Eu tive aoportunidade, em uma conferência realizada no final do ano passado, decomentar que, se nós olharmos toda a tradição do pensamento político esocial hispano-americano na América do Sul, não há uma só referência aoBrasil. A Bolívia nunca disse uma palavra sobre o Brasil; os outros nuncadisseram uma palavra sobre o Brasil. O Brasil é um ente que era melhordeixar de lado. Então, este era o tipo de relação. É claro que isso muda, porcontingências da vida, da situação internacional, de uma porção de coisas.Agora, existe um peso do passado nisso; sem dúvida alguma existe. Essa nãoé uma relação fácil, não vai ser fácil, mas eu espero que nós possamos chegarlá.

Eu quero fazer uma breve referência. Eu nunca disse (nem supus, mesmoporque se eu supusesse tal absurdo, eu pediria licença para me retirar, e nãoficar mais aqui) que uma ação brasileira no G-8 + 5 pode levar a algumacoisa que seja, mas tem que estar lá. O momento é de crise; o momento é dediscutir uma série de coisas e propor redefinições. Se elas forem aceitas,ainda que minimamente, ótimo! O Engels, autor que não está em moda, jádizia: “Quando, em política se consegue 50% daquilo que se pretende, já émuito.” Se essas propostas não forem de modo nenhum aceitas, fica ali oregistro; as ideias estão ali.

Um último ponto que eu queria ressaltar é que acho que esta crise terá acapacidade de afetar profundamente a estrutura do sistema internacional, talqual nós vemos hoje. Num futuro previsível, a estrutura multipolar do sistemaserá a mesma que foi até antes de 1914? Creio que não. Dessa vez, o “centrodo centro”, ou seja, os Estados Unidos, está tendo que correr para apagarincêndios na periferia. A capacidade de apagar incêndio é ilimitada? Eu nãoacredito que seja. Ela é relativamente limitada, e uma proliferação de incêndiosna periferia pode não incendiar, mas, no mínimo, chamusca e chamuscaseriamente o centro.

As hierarquias de poder no sistema internacional estão se deslocandocom muita rapidez. Esse é o outro elemento próprio do equilíbrio internacional,ou seja, um sistema de hierarquias mais ou menos fixo. Elas se deslocam,mas se deslocam lentamente. Neste caso, elas estão se deslocando com granderapidez. Além disso, não é uma questão de equilíbrio autorregulado demercado; é uma questão de equilíbrio autorregulado de controle das crises.

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É o chamado “equilíbrio homeostático”. Não são necessariamente criseseconômicas, mas são crises do ponto de vista político, estratégico, deinteresses, etc. Este sistema, tal qual se configurava, provou que ele não tinhacapacidade nenhuma, que o sistema de resolução de crises e de controle decrises era, não só ineficiente, mas, mais grave do que isso, era inexistente.Então, um novo sistema vai ter que sair daí. Talvez seja o caso de nóscomeçarmos a especular, ou, usando uma expressão um pouco maispejorativa, fazer elucubrações sobre as novas configurações possíveis de umsistema internacional, dentro de algum tempo. Era só isso.

— Embaixador Carlos Henrique Cardim:

Por favor, Professor Antônio Corrêa de Lacerda.

— Antônio Corrêa de Lacerda, PUC/SP:

Eu gostaria de apresentar uma contribuição a essa questão, que me parecedas mais relevantes, e que foi, de certa forma, sugerida aqui, que é o problemada inserção internacional brasileira pós-crise. Essa estratégia certamentepassará por um desafio ampliado, considerando as novas condições. Comojá foi também aqui lembrado, a tendência é muito forte para que oprotecionismo seja exacerbado por parte de muitos países que estarãodefendendo as suas economias nacionais em uma situação de gravidade dacrise.

Nós temos um desafio muito significativo, porque, embora a relevânciadesses órgãos multilaterais ainda seja expressiva, especialmente do ponto devista político, ocorre que essa globalização produtiva, que nós assistimostambém nos últimos anos, ganhou dimensão, de forma que grande parte docomércio que se dá hoje entre os países está na mão das grandes corporações,especialmente nas relações intrafirmas. Isso confere um grau de complexidadeenorme à nossa economia. Na minha primeira exposição eu citei o baixo graude abertura, levando em conta o aspecto comercial relativamente ao PIB.Mas se nós analisarmos a estrutura brasileira, vemos que ela é fortementeinternacionalizada. Isso porque, como todos sabem, a industrializaçãobrasileira se deu com o trinômio capital nacional, público ou estatal, e capitalprivado, junto com o capital estrangeiro. E isso determinou um grau deinternacionalização significativo, que foi, como todos sabem, alavancado a

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partir dos anos 90, até aproveitando a forte expansão que houve nos fluxosde investimento. Isso se deu de tal forma que o Brasil, de apenas receptor deinvestimentos, especialmente nos últimos dez anos, se tornou um grandeinvestidor também no exterior, principalmente se levarmos em conta o padrãode países em desenvolvimento.

Portanto, interessa ao Brasil a globalização das nossas empresas? Éevidente que sim, mas depende da qualidade dessa internacionalização.Existem motivações de expansão e de localização dessas empresas em nívelglobal, até superando, às vezes, barreiras protecionistas dos outros países.Mas, nos momentos em que há uma perda de competitividade das nossasempresas, há uma saída na busca de melhores condições de produção e decompetitividade. Portanto, seria um tipo de internacionalização que claramentenão interessa ao Brasil, já que se substituem plantas locais por plantas noexterior.

Esse quadro complexo, em que se considera o papel das grandescorporações, sejam elas internacionais ou as brasileiras que seinternacionalizaram, exige uma coordenação muito forte, não apenas do pontode vista das estratégias do Itamaraty, mas também das do Banco Central, doMinistério da Fazenda e do MDIC, porque muitas das decisões que você vaitomar vão afetar diretamente a nossa posição nesses vários foros, e tambémnesses aspectos que estão associados à internacionalização produtiva.

Nós falávamos aqui da questão cambial. Só para exemplificar isso paravocês: nos últimos dois anos, nós tivemos uma mudança de competitividaderelativa da ordem de 30%, se considerarmos a variação positiva ou negativaque tivemos da taxa de câmbio, comparativamente a outras taxas de câmbio.Ou seja, se no âmbito de foros internacionais nós estivermos discutindo, porexemplo, tarifa de proteção efetiva, que no Brasil está por volta de 10 a11%, verificamos que, na verdade, só a variação cambial foi três vezes onível de proteção efetiva das alíquotas de importação. É só para dar umaideia da dimensão que isso tem. Então, a questão da coordenação das políticasmacroeconômicas exerce um papel extremamente relevante.

Do ponto de vista das negociações internacionais, existem vários aspectos,mas eu vou citar um que tem a ver com essa nova mudança de postura, quesão os acordos de proteção de investimentos. No Brasil, nós semprepensamos em uma questão defensiva da proteção dos investidores externosdo País, e, muitas vezes, até renegamos alguns acordos por conta de restriçõesconstitucionais. Mas o grande desafio que se apresenta é: como você vai

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proteger o capital brasileiro, e não apenas o capital privado, mas também oestatal, já que você tem empresas estatais se internacionalizando e muitasempresas privadas se internacionalizando com capital do próprio BNDES?Então, a questão é como é que você vai garantir os acordos de proteção emnível internacional. Essa coordenação me parece fundamental para vocêestabelecer os parâmetros de negociação daqui para frente. Muito obrigado.

— Embaixador Carlos Henrique Cardim:

Obrigado. Com a palavra o Embaixador Jório Dauster.

— Embaixador Jório Dauster, MRE:

Muito obrigado. Eu ia até sugerir que você não me passasse a palavraporque já estamos muito adiantados na hora. Eu devo dizer que há dez anoseu pedi a aposentadoria do Itamaraty, e, por isso, me sinto hoje mais à vontadediscutindo taxa de juros e o COPOM, do que política externa. Eu não tenhorefletido suficientemente. Mas como houve aqui uma discussão bastantegrande, eu queria trazer algumas impressões pessoais. O problema essencialde uma política externa brasileira vem lá detrás, do fato de que nós fomosaquela colônia portuguesa, vivendo em um continente de colônias espanholas,e isso gerou aquele afastamento. Durante séculos e séculos, nós ficamos decostas para os vizinhos. Depois, obviamente, com a afirmação da hegemoniaamericana, a coisa piorou, porque nós estávamos no quintal do hegemônico.A partir de então, qualquer tentativa de expansão de poder brasileiro é semprefeita em detrimento do hegemônico. Então, haverá sempre um elemento detensão fundamental no crescimento do Brasil. Visto de Washington, nuncaserá um processo bem-vindo.

Além disso, nós não tínhamos, aqui nesse pedaço do mundo, nada quefosse estrategicamente fundamental, até à descoberta do Pré-Sal. Isso jágerou a recriação da 4ª Frota. É evidente que, com o Pré-Sal, na medida emque se exaurem as reservas de gás e de petróleo no mundo, o Brasil passa arepresentar alguma coisa totalmente diferente do que foi aquela “fazendona”que vendia café, cacau e açúcar. Essa foi uma coisa que eu ainda assisti naminha vida profissional. Portanto, eu creio que, se a gente olhar para atrás, évisível que, em geral, nós tínhamos posições caudatárias com relação aosEstados Unidos. Nós estávamos inteiramente isolados. O Brasil não tinha um

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poderio próprio, e, inclusive, sustentando fortes tendências antidemocráticas.Até muito recentemente, nós tínhamos projetos de guerra nuclear com aArgentina. Essa é uma coisa extraordinária! Na verdade, as duas forçasarmadas se valiam dessas hipóteses de guerra para reforçar suas posiçõesdentro das respectivas sociedades.

Então, o que há de absolutamente extraordinário é que, malgrado todosesses elementos históricos, malgrado toda essa nossa debilidade econômica,e dos nossos vizinhos, pelo menos nós demos a grande volta e passamos aentender que o nosso espaço diplomático, político, essencial, é a América doSul. Não é a América Latina, que era outra coisa falsa. O próprio NAFTA seencarregou de mostrar que o México fez uma opção de confirmar a suacondição de dependente americano. Portanto, eu creio que, se a gente olharcom isenção, sem se preocupar talvez com detalhes de políticas que fomostendo ao longo desse tempo, e algumas delas pavorosas, vemos que o grandeprocesso já está em curso. Hoje, nós estamos inseridos na América do Sul;estamos buscando fórmulas institucionais, a começar pelo Mercosul. Quandoeu era Embaixador em Bruxelas, e os europeus queriam ver o Mercosulcomo cópia de alguma coisa que eles não conseguiam fazer direito, mas elessempre achavam que eram melhores do que nós, eu sempre dizia: “Isso aquié como mudança de pobre. Em mudança de pobre não dá para encomendarcaminhão. Você pede a um primo que tem um carro para passar lá na suacasa, amarra umas cadeiras em cima do carro, e em qualquer curva tem queparar porque a criança vomitou, a cadeira começa a cair e por aí vai.” Isso éo Mercosul. É o que é possível para esses países! A gente não tem que ficarcom expectativas de que vai ser maravilhoso. Então, nós vamos fazer essesremendos. Mas o fato é que existe uma primeira estrutura onde não havianada, onde havia silêncio, onde havia conflito. Estamos estendendo isso paraos outros. Agora, o que é, de fato, muito mais complicado para nós é que, namedida em que o tamanho da economia brasileira, em relação às demais étão desequilibrada, será inevitável que nós tenhamos, daqui para a frente,Brazilians go home! Eles vão começar aqui, porque é aqui que a presença émaior. O Itamaraty, a sociedade brasileira e os empresários têm que aprenderque o que aconteceu na Bolívia vai acontecer várias vezes. Nós temos queestar preparados para isso, e não ter reações exageradas. Alguns pedem quepraticamente a gente declare guerra quando haja algumas dessas ações.Obviamente, nós temos que ter a maturidade desse País que é imenso e quenunca quis ser imperialista. Em 40 anos como diplomata, eu nunca tive uma

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conversa, nem de corredor, em que alguém pensasse em termos imperialistas.Nós não temos esse cacoete. Mas a verdade é que, ao criar uma relaçãoqualquer, que basicamente veio na área energética com o Paraguai, em Itaipu,gera-se um foco de problemas também para a frente. Então, isso será o casodas relações com a PDVSA, com a Venezuela, em refinarias e projetos depipelines. Mas isso não pode nos paralisar.

Portanto, eu creio que o Brasil fez um progresso extraordinário. O Brasilencontrou o seu espaço, e vem construindo esse espaço com as deficiênciaspossíveis. Para o resto do mundo, nós não temos ainda a capacidade deditar, de imaginar que possamos forçar a aceitação de uma posição nossa.Mas temos, sim, alguma coisa que eu acho que é muito importante, que éuma expressão que vem da Europa. É a “geometria variável”. Então, o Brasiltem essa capacidade de fazer BRICs, no outro dia faz o G-8; e essapossibilidade, que nenhum outro país da América Latina tem, e que muitopoucos países do mundo têm, essa liberdade que o Brasil tem de jogar emvários campos, em vários tabuleiros. Queiram ou não, a gente vem fazendoisso também. Isso nunca foi estabelecido como uma estratégia de larguíssimoprazo, mas isso foi acontecendo espontaneamente. É uma manifestação dainteligência brasileira, do Itamaraty, e, certamente, da maior importância. Aonos articularmos, nós conseguimos, talvez, não ditar condições, mas impedirque nos ditassem essas condições, como faziam no passado. Um exemploclaro é a Rodada Uruguai e a Rodada de Doha. Na Rodada Uruguai, a rigor,nós acabamos tendo que assinar embaixo. E a capacidade de mexer nosTRIPS e nos TRIMS foi zero. Hoje em dia, isso não acontece. O G-20, queé uma iniciativa brasileira, mostrou que nós conseguimos frear o que iamfazer, porque chegaram a fazer. Os Estados Unidos e a União Européia sereuniram, fizeram um pedaço de papel, e era Doha. Eles não tinham desistido,e não vão desistir nunca, com crise ou sem crise. Poder é poder. O que nóstemos que fazer é jogar defensivamente e, pouco a pouco, vamos poder játrazer propostas; temos condições intelectuais para fazer isso, e temos quefazer isso sem nenhum receio.

Mas o fundamental é saber, por exemplo, que BRICs são esses. Hoje, aUnião Soviética é uma Arábia Saudita gelada, vive de gás e de petróleo eestá numa posição extraordinariamente precária; tinha 500 bilhões de dólaresde reserva, mas tinha 450 bilhões de dívidas das suas empresas. Então, tinhamenos reservas que o Brasil. A Índia é um planeta próprio; é diferente; é umsatélite da Terra, e vive porque é enorme. Na verdade, é Brasil e China,

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representando países que ainda têm déficit de poder, que têm uma estruturaeconômica diferente da dos industrializados. Mas nós temos uma contribuiçãoa dar. Muito obrigado.

— Embaixador Carlos Henrique Cardim:

Professor Ernani, por favor.

— Ernani Torres, BNDES:

Eu vou fazer um comentário superbreve, porque senão, o estômago detodo mundo vai começar a roncar, e eu não quero ser o culpado disso. Euquero chamar a atenção para dois pontos. Primeiro, eu acho que nesseespaço de volatilidade que vem pela frente não tem espaço multilateral denegociação. Eu acho que o G-20 foi um grande show de mídia, mas creioque os resultados, até agora, são precários, e são todos de natureza bilateral.Eu penso que nos Estados Unidos há alguns que estão realmentepreocupados com aonde vai o sistema financeiro. Algumas semanas atrás,o Lawrence Summers declarou que a sociedade americana não podeconviver com um sistema financeiro que gera crises a cada três anos. Poroutro lado, acredito que ainda não houve espaço para uma desestatizaçãoou coisa desse tipo no Governo Obama; que o Governo Obama estáquerendo passar uma agenda de saúde, e não quer ficar prisioneiro doCongresso. O fundamental é que do ponto de vista financeiro, os americanostêm uma percepção mais global no papel financeiro deles. A decisão delesde fazerem um swap com o governo brasileiro é extremamente importantee sinalizador. Agora, vemos isso quando olhamos para a Europa. Vemos oseuropeus com falta de alguma coisa próxima de um Estado nacional. Opróprio Banco Central europeu não consegue responder ao que estáacontecendo. Ele não consegue nem fazer swap com a sua periferia; mesmointernamente ele não pode comprar dívida pública dos outros países. Querdizer, há uma imobilização, um problema sério, e essa tensão doantigermanismo dentro da Europa é crescente. Isso está fazendo com que,na Europa, diferentemente dos Estados Unidos, o protecionismo financeiroesteja cada vez maior. Vários países europeus já orientaram os seus bancosa reduzir suas operações para o Leste Europeu em um contexto que estamosatravessando e vamos atravessar.

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Eu também queria chamar a atenção para dois pontos, do ponto de vistade uma agenda. Um deles é a questão da exportação. A despeito de que aexportação tenha um coeficiente baixo no Brasil, os estudos que nós estamosfazendo indicam que mais de 50% da desaceleração industrial se deve àexportação. Quando colocamos os coeficientes indiretos, a exportação émuito mais importante do que qualquer um imagina. Portanto, garantir espaçono mercado para a exportação de produtos industrializados brasileiros éfundamental, é uma estratégia de saída.

A segunda questão é a do protecionismo financeiro. Eu penso que aEuropa e os Estados Unidos estão, e estarão cada vez mais, envolvidos como seu próprio umbigo. Os governos terão uma ingerência cada vez maior nossistemas financeiros locais, e a pressão, do ponto de vista de dinheiro localpara vantagens às populações locais, vai ser cada vez maior. A capacidadede o Brasil responder a isso está acontecendo. Os bancos públicos brasileirostêm feito um trabalho importante. Todo o crescimento do crédito, no Brasil,nos últimos seis meses, vem dos bancos públicos, e isso vai continuar.

Entretanto, tem que ficar claro que a nossa capacidade de resposta estáligada a um sistema global. Se a gente passar por alguma outra situaçãoparecida com setembro, não tem escapatória; você está preso a esse sistema.Desse ponto de vista, uma segunda agenda à agenda comercial seria bilateral,em particular com os Estados Unidos, para manter os canais e sermos tratadosde uma maneira privilegiada, do ponto de vista financeiro. Muito obrigado.

— Embaixador Carlos Henrique Cardim:

Embaixador Bahadian.

— Embaixador Adhemar Bahadian, MRE:

Muito brevemente. É uma pena que o Professor Peixoto já tenha seretirado, mas eu só queria dizer que eu não fiz nenhuma crítica à sugestão deque o G-8 não é relevante. Eu apenas disse que, da maneira como estãosendo convidados os países, neste momento, para participar da próximareunião, é muito difícil. Eu tenho muito pouca convicção de que saia algumacoisa realmente concreta com relação à crise. E mais, eu acho que deve serpensado se o Brasil deve participar de uma reunião desse tipo, em que estámais como figurante do que propriamente como um participante. Era essa a

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ponderação que eu queria fazer ao Professor Peixoto, sem, de nenhuma forma,colocar em dúvida que, se necessário fosse, era importante que o Brasilestivesse em um G-8 efetivo. Com isso, eu estou de acordo. Acontece que oG-8 que está sendo colocado, ou o G-8 + 5, é muito mais um episódiomidiático, e eu não sei se nos interessa estar presente nesse momento ecorroborar certas conclusões que, certamente, dali sairão. Obrigado.

— Embaixador Carlos Henrique Cardim:

Com a palavra o Professor Melin.

— Luiz Eduardo Melin de Carvalho e Silva, Ministério da Fazenda:

Obrigado. Na verdade, eu estava com a intenção firme de só continuarouvindo até ao fim porque estava aprendendo bastante. Mas tendo em vistaalgumas coisas que foram ditas aqui, eu queria só dar um depoimento nosentido de reforçá-las, especialmente, sobre o que disseram o EmbaixadorJório Dauster e o Professor Lacerda. Eu queria reforçar o que ambos disseramcom um depoimento da experiência recente de governo. É fato que, no meioda crise, os Estados Unidos escolheu fazer um swap com poucos países,disponibilizando uma linha de liquidez internacional de uma maneira muitoimportante: distinguindo as suas parcerias mais centrais, entre as quais está oBrasil. Um fato ainda mais importante talvez seja o de que o Brasil se dispôs,e se estruturou, para fazer o mesmo na nossa região. Nós estamos paraassinar, muito brevemente, um primeiro swap em moeda local com a Argentina,de maneira a fazer um reforço de liquidez internacional, de modo a sinalizar aproximidade entre os países e a confiança na gestão macroeconômica queexiste. Essa operação será estendida para outros países do Continente. Essaé uma determinação que veio direto do Presidente Lula, contra todas asobjeções que se lhe pode levantar. Ficou muito claro que é bastante urgenteque isso seja feito, no sentido de o Brasil não apenas expressar a parceria ea proximidade com os países vizinhos, de uma maneira retórica, masconcretamente “botar o seu dinheiro onde está a sua boca, a sua palavra”,como se diz no provérbio inglês. Então, isso é algo que será feito. Alémdisso, já foi feito o sistema de pagamentos em moeda local com a Argentina;já está em andamento com o Uruguai; e já temos a expressão de interesse demais três países do Continente. Nós nos propusemos fazer a implantação

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desse sistema sempre bilateralmente, mas os senhores não precisam ir muitolonge para ver a importância que isso tem. Apesar de ser incipiente, o númerode operações com a Argentina é pequeno, mas fortemente crescente, eestamos introduzindo pequenas e médias empresas que não participavam docomércio entre os dois países. Agora essas pequenas e médias empresasparticipam, por conta da facilidade de planejar as suas contas na moedalocal, da facilidade de não pagar intermediação financeira no fechamento decontrato de câmbio. Isso, de lambuja, está nos dando, pela primeira vez nahistória, a possibilidade de nós termos a determinação de uma taxa de câmbioefetiva, real/peso, não em triangular peso/dólar e real/dólar para fazer pelaregra de três.

Estamos tendo um mercado de oferta e demanda de reais contra pesos.Isso é muito importante, além da facilitação de comércio, e vários outrospaíses já estão vindo. São iniciativas concretas.

Além disso, eu peço que aqueles que manifestaram aqui a sua convicçãoa respeito da importância das relações econômicas e financeiras do Brasilcom os países vizinhos estejam atentos nos próximos meses, porque vai sernecessário o apoio da sociedade civil para a iniciativa de criação de mais umorganismo de crédito regional. Eu digo mais um porque já existe o BID, masnós sabemos que tem suas lacunas; já existe a CAF, que nós sabemos que éum organismo mais voltado para um grupo específico de países. No marcoda construção da UNASUL, há uma iniciativa, que está avançando de maneiraimportante, da criação de um Banco do Sul, que começará com acaracterística de banco de desenvolvimento regional, financiando, sobretudo,projetos de infraestrutura, obviamente dentro do tamanho da sua capacidadede balanço e da capacidade dos Países Membros de poderem efetivar essesprojetos. Mas isso será importante, porque, no momento de desaparecimentodo crédito, desaparecimento da liquidez internacional, dará a possibilidadede, pelo menos em alguns projetos prioritários na área de integração produtivae na área de infraestrutura, que esses projetos não sejam abandonados e quepossam ser tocados adiante, com uma gestão profissional, com critérios, damaneira que não poderia deixar de ser. Quando o Brasil está na mesa, acoisa tem que ser assim.

Para encerrar, retomando o mote que o Professor Lacerda deu, nóstemos hoje, crescentemente, uma posição que não tínhamos antes. Issoaparece no dia-a-dia das nossas tratativas internacionais e das ações degoverno. Nós temos a posição de um Brasil credor; temos a posição de

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Brasil investidor internacional, direto e indireto; temos a posição do Brasildoador, do Brasil contribuidor para projetos de cooperação, projetoshumanitários, projetos de toda a natureza; e temos a posição do Brasilgarantidor, o Brasil que está preocupado, na medida em que está sendonecessário emitir garantias, avais, seguros de crédito. Então, é um Brasil quetem que estar, por todas essas características, necessariamente presente nosforos, nas discussões, ainda que não tenhamos peso suficiente para fazerprevalecer as nossas posições de imediato, mas, de fato, precisamos estarpresentes, porque os nossos interesses assim o determinam. Nós precisamos,inclusive, buscar as alianças. O Embaixador Dauster dizia, em relação aosBRIC, com muita propriedade, que na última vez havia uma vontade muitogrande dos países do G-7 de que todos os membros do G-20 financeiroconcordassem com que fosse votado um aporte de capital para o FMI, demodo que o FMI operasse. É uma colocação de recursos para o FMI usarda maneira que julgar adequado. Então, na verdade, é um voto de confiançano modo como o FMI opera. Os governos do Brasil, da China, da Índia e daRússia se juntaram nessa ocasião e disseram: “Isso tem que ser qualificado.Nós queremos que o FMI tenha a condição de operar em uma determinadadireção”. Apesar de o Dominique Strauss-Kahn, o atual Diretor-Gerente doFMI, ser um homem de outras tintas, de outras luzes, a verdade é que, olhandoo que FMI fez da crise para cá, na Hungria, em Honduras, no Djibuti e emoutros locais onde foi chamado a intervir, nós vamos ver que o receituárionão mudou nada. É claro que a nova linha de liquidez, cuja criação o Brasilapoiou, essa, sim, vem sem essas condicionalidades tradicionais. Esse é umexemplo pequeno, localizado, pontual, de um foro que não é nosso, no sentidode que há jogadores grandes na mesa, mas, estando ali, nós conseguimosfazer alianças pontuais, alianças usando a geometria variável, de que falava oEmbaixador, e, pelo menos, deixamos bastante patente que não contarãocom o endosso brasileiro para posições ou para fórmulas que não sejamverdadeiramente uma mudança em relação ao modo como os assuntosfinanceiros e econômicos internacionais são conduzidos. Sobretudo, o Brasiltem feito, o tempo todo, menção e questão de vincular o papel dos paísesemergentes e a destinação das ações coordenadas em direção a esses países.Muitas vezes, nós sentimos a falta dessa posição na mesa. O Brasil tem semprelevantado essa bandeira. Agora mesmo, na próxima semana, eu estareiparticipando de uma discussão no G-20 financeiro sobre o financiamento aocomércio exterior, em que o ponto brasileiro será o de mostrar que não adianta

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os economistas dos países do G-7 dizerem que a diminuição do financiamentoao comércio não é tão importante, que o que está acontecendo no comérciointernacional é fruto da diminuição da demanda, quando nós sabemos que,para os nossos parceiros comerciais, para os nossos vizinhos da América doSul, o desaparecimento do crédito internacional para o comércio é um fato eque nós precisamos agir em cima disso. Então, que eles não contem com oendosso brasileiro, exceto se estiverem dispostos a realmente dar um passoadiante na adaptação das políticas tradicionais ao momento atual e dar umpasso adiante na inclusão dos interesses de um ampliado de países. Eu queriaficar por aqui. Obrigado.

— Embaixador Jeronimo Moscardo:

Chegamos ao término dessa sessão, e é a hora dos agradecimentos. Euqueria agradecer à Maria da Conceição Tavares e a todos os professores eintelectuais que participaram desse encontro. Eu queria agradecer, também,a todos os estudantes e professores, aos profissionais aqui presentes,especialmente às delegações. Inclusive, o Estado do Ceará veio com umanutrida delegação, com cerca de 20 integrantes. Eles vieram de Fortalezapara prestigiar esse nosso encontro. Eu queria, também, agradecer aoPresidente Lula, que mudou essa equação do Brasil. Nós nunca prestigiamoso pensamento, nunca prestigiamos o vetor do saber. O João Paulo de AlmeidaMagalhães sabe dos esforços extraordinários que foram necessários paraque o Grupo de Itatiaia se reunisse, e, depois, aquele esforço enorme noISEP. Hoje em dia, nós temos um metalúrgico na Presidência, que dá todo oapoio a que nos reunamos aqui para pensar. Isso é algo extraordinário quenós devemos agradecer. O Itamaraty agradece o apoio extraordinário quetem recebido do Presidente Lula, e que não recebeu de Fernando Henrique.Nós passamos todo o Governo do Fernando Henrique na maior penúria, eagora, temos um metalúrgico que nos prestigia, que prestigia a Fundação,inclusive temos recursos hoje, na FUNAG, para fazer encontros. Nós jáqueremos convidá-los para o próximo encontro. Teremos um todos os meses.O próximo encontro vai ser sobre “Integração Sul-Americana”, e sempreassim, reunindo o que há de melhor no pensamento brasileiro para discutircom a comunidade. Não se faz política externa sem conteúdo acadêmico, enão se legitima a política externa sem a participação da cidadania. Em nomedo Ministro Celso Amorim, eu queria agradecer a todos vocês. Esta é a casa

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do Juca Paranhos. O Juca Paranhos era um grande gourmet. Aliás, dizematé que não era um gourmet, que era um glutão. Eu acho que chegou a horade a gente almoçar. Vamos almoçar, como fez o Juca Paranhos. Só que,antes, vamos tirar uma fotografia. Portanto, estão todos convidados paradesfrutar da hospedagem de Juca Paranhos. Muito obrigado.