samizdat 38 - o mestre machado

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O Mestre Machado SAMIZDAT 38 outubro 2013 ano VI ficina www.revistasamizdat.com O Mestre Machado

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Por que Samizdat? Henry Alfred BugalhoENTREVISTADavid Dephy GogibedashviliAUTOR EM LÍNGUA PORTUGUESAA Cartomante, Machado de AssisLuzia, Trindade CoelhoAUTOR CONVIDADOELA, Sérgio TavaresCONTOA Estátua sem Rosto, Joaquim BispoEu sou o amor, dele..., Rafael F. CarvalhoUma Vida, Rodrigo ZafraA História da Aurora, Japone ArijuaneRebeca, Alive VianaEla, despindo-se na noite, Carlos Eduardo Paulino Murta CaféVai tricô e vem meia, Cinthia KriemlerA Salvação da Lavoura, Zulmar LopesPerfume de Mulher, Lionel MotaTRADUÇÃOQueda que as mulheres têm para os tolos, Victor HénauxARTIGOO Mito do Bestseller Brasileiro, Henry Alfred BugalhoTEORIA LITERÁRIAO Sonho de Lancelot: Presságio da Derrocada dos Valores Medievais, Rafael Geraldo Vianney PeresPOESIAConsiste em prendê-lo em cola, Danilo Augusto de Athayde FragaBorboleta Esquecida, Fernanda Azevedo de MoraisViagem Eterna, Fernanda Azevedo de Moraisangustura, Rodrigo UriarttO ato de nomear, Lilian da Silva NeyStory 7, Luiz da FrancaEnvoltório, Nathan SousaLabirinto, Victor FariaAntes de partir, Vanessa ReginaCONCURSOS LITERÁRIOSNovembro 2013

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Page 1: SAMIZDAT 38 - O Mestre Machado

O Mestre Machado

SAMIZDAT

38outubro

2013ano VI

ficina

www.revistasamizdat.com

O Mestre Machado

Page 2: SAMIZDAT 38 - O Mestre Machado

Edição, Capa e DiagramaçãoHenry Alfred Bugalho

Editor de poesiaVolmar Camargo Junior

AutoresJapone ArijuaneJoaquim BispoHenry Alfred BugalhoCarlos Eduardo Paulino Murta CaféRafael F. CarvalhoVictor FariaDanilo Augusto de Athayde FragaLuiz da FrancaCinthia KriemlerZulmar LopesFernanda Azevedo de MoraisLionel MotaLilian da Silva NeyRafael Geraldo Vianney PeresVanessa ReginaNathan SousaSérgio TavaresRodrigo UriarttAlive VianaVander VieiraRodrigo Zafra

Textos de:Machado de AssisTrindade CoelhoVictor Hénaux

Foto da Capa: Machado de Assis

www.revistasamizdat.com

ISSN 2281-0668

SAMIZDAT 38outubro de 2013

Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.

Todas as imagens publicadas são de domínio público, royalty free ou sob licença Creative Commons.

Os textos publicados são de domínio público, com consenso ou autorização prévia dos autores, sob licença Creative Com-mons, ou se enquadram na doutrina de “fair use” da Lei de Copyright dos EUA (§107-112).

As ideias expressas são de inteira responsabilidade de seus autores. A revista adota a ortografia do Novo Acordo Ortográfico. A aceitação da revisão proposta depende da vontade expressa dos colaboradores.

Editorial

A Inglaterra tem Shakespeare. A Alemanha tem Goethe. A Espanha tem Cervantes. A Rússia tem Dostoiésvski Portugal tem Camões. E os brasileiros têm Machado de Assis.

Por mais que a literatura brasileira tenha sido iniciada com a carta de Pero Vaz de Caminha anunciando a che-gada dos portugueses à Ilha de Vera Cruz, e que haja uma tradição literária barroca, árcade e romântica, geralmente refletindo tardiamente os movimentos literários da Europa, a literatura brasileira deve muito a Machado de Assis.

Romancista, contista, poeta, periodista, cronista, drama-turgo, tradutor, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, Machado de Assis conquistou a posição máxima e inquestionável no panteão literário brasileiro.

Neste ano, celebra-se 105 anos de sua morte e de seu inestimável legado literário. Todavia, por maior que seja sua glória no Brasil, Machado de Assis ainda é quase um desco-nhecido fora das fronteiras do país.

Com uma escrita poderosa e engenhosa, bastante pós- modernista em pleno século XIX, este escritor simboliza tam-bém a insularidade, não apenas da língua portuguesa, quanto da própria literatura brasileira.

Com personagens burgueses, em cenários urbanos, com temas ainda contemporâneos, Machado parece nos mandar uma mensagem: “estará o mundo pronto para ver-nos além dos estereótipos, dos índios, da selva, das mulheres erotizadas, do carnaval, de um povo vadio e malandro?”

Henry Alfred Bugalho

Page 3: SAMIZDAT 38 - O Mestre Machado

SumárioPor quE Samizdat? 8

Henry Alfred Bugalho

ENtrEViStadavid dephy Gogibedashvili 10

autor Em LÍNGua PortuGuESaa Cartomante 14Machado de Assis

Luzia 22Trindade Coelho

autor CoNVidadoELa 28Sérgio Tavares

CoNtoa Estátua sem rosto 30

Joaquim Bispo

Eu sou o amor, dele... 34Rafael F. Carvalho

uma Vida 36Rodrigo Zafra

a História da aurora 38Japone Arijuane

rebeca 42Alive Viana

Ela, despindo-se na noite 44Carlos Eduardo Paulino Murta Café

Vai tricô e vem meia 46Cinthia Kriemler

Page 4: SAMIZDAT 38 - O Mestre Machado

a Salvação da Lavoura 50Zulmar Lopes

Perfume de mulher 52Lionel Mota

traduÇÃoqueda que as mulheres têm para os tolos 54

Victor Hénaux

artiGoo mito do Bestseller Brasileiro 62

Henry Alfred Bugalho

tEoria LitErÁriao Sonho de Lancelot: Presságio da derrocada dos Valores medievais 66

Rafael Geraldo Vianney Peres

PoESiaConsiste em prendê-lo em cola 72

Danilo Augusto de Athayde Fraga

Borboleta Esquecida 74Fernanda Azevedo de Morais

Viagem Eterna 75Fernanda Azevedo de Morais

angustura 76Rodrigo Uriartt

o ato de nomear 77Lilian da Silva Ney

Story 7 78Luiz da Franca

Envoltório 80Nathan Sousa

Labirinto 82Victor Faria

Page 5: SAMIZDAT 38 - O Mestre Machado

5

antes de partir 84Vanessa Regina

CoNCurSoS LitErÁrioSNovembro 2013 85

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Page 6: SAMIZDAT 38 - O Mestre Machado

6 SAMIZDAT outubro de 2013

ficinawww.oficinaeditora.com

O lugar onde

a boa Literatura é fabricada

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7www.revistasamizdat.com

A Revista SAMIZDAT conta com a sua participação para manter o alto padrão das publicações.

Aceitamos e estimulamos a participação de autores estreantes, pois o nosso objetivo é apresentar a maior diversidade possível de autores, gêneros e textos.

instruções para envio de obras

1 - Cada escritor poderá inscrever, nos respectivos campos, somente 1 (um) tex-to literário para publicação, de qualquer gênero - conto, crônica, poesia, microconto - ou um (1) texto teórico, como artigo de teoria literária, resenha de livros, ou entre-vista, além de traduções de textos literários em domínio público, sob licença Creative Commons ou com a expressa autoriza-ção do autor. A temática da edição 39 é: “Como nossos pais”, abordando a relação entre pais e filhos, infância e adolescência. O autor também deve enviar uma breve biografia na primeira página do arquivo.

2 - O limite máximo para cada texto literário é de mil (1000) palavras, ou 4 páginas em A4, fonte Times ou Arial 12, espaçamento 1,5. O envio dos textos não implica na aceitação automática, a seleção dependerá da quantidade de textos envia-dos, da qualidade literária e da disponibi-lidade de espaço na revista. A revisão dos textos é de responsabilidade de seus auto-res. O texto não precisa ser inédito.

3 - Os textos devem ser enviados até o dia 31 de dezembro de 2013 através do nosso gerenciador de submissões (link abaixo) em um arquivo anexo, em formato

.DOC, .DOCX ou .TXT. Por favor, aguarde o período de um mês após receber a res-posta antes de enviar um outro texto.

http://revistasamizdat.submishmash.com/submit

Não aceitamos mais textos enviados por e-mail.

4 - Os textos selecionados serão publi-cados na edição 39 da Revista SAMIZDAT na segunda quinzena de janeiro de 2014, no site www.revistasamizdat.com ou pode-rão aparecer no postagens no site, caso a edição em .PDF já esteja fechada.

5 - Os textos serão publicados sob li-cença Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas e o autor não será remunerado. O envio de textos implica na aceitação por parte do autor destes termos.

6 - os organizadores da SAMIZDAT se reservam o direito de não publicar a revis-ta, caso o número de submissões não seja o suficiente para o fechamento da edição.

7 - O não cumprimento dos itens acima poderão implicar na desqualificação da obra enviada.

Contamos com a sua participação!

Atenciosamente.

Henry Alfred Bugalho

Editor

Participe da revista Samizdat 39 Como nossos pais – janeiro de 2014

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8

inclusão e Exclusão

Nas relações humanas, sempre há uma dinâmica de inclusão e exclusão.

O grupo dominante, pela própria natureza restritiva do poder, costuma excluir ou ignorar tudo aquilo que não pertença a seu projeto, ou que esteja contra seus princípios.

Em regimes autoritários, esta exclusão é muito eviden-te, sob forma de perseguição, censura, exílio. Qualquer um que se interponha no cami-nho dos dirigentes é afastado e ostracizado.

As razões disto são muito simples de se compreender: o diferente, o dissidente é perigoso, pois apresenta alternativas, às vezes, muito melhores do que o estabe-lecido. Por isto, é necessário suprimir, esconder, banir.

A União Soviética não foi muito diferente de de-mais regimes autocráticos. Origina-se como uma forma de governo humanitária, igualitária, mas

logo se converte em uma di-tadura como qualquer outra. É a microfísica do poder.

Em reação, aqueles que se acreditavam como livres-pensadores, que não que-riam, ou não conseguiam, fazer parte da máquina administrativa – que esti-pulava como deveria ser a cultura, a informação, a voz do povo –, encontraram na autopublicação clandestina um meio de expressão.

Datilografando, mimeo-grafando, ou simplesmente manuscrevendo, tais autores russos disseminavam suas ideias. E ao leitor era incum-bida a tarefa de continuar esta cadeia, reproduzindo tais obras e também as passando adiante. Este processo foi designado "samizdat", que nada mais significa em russo do que "autopublicado", em oposição às publicações ofi-ciais do regime soviético.

Por que Samizdat?

“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico, distribuo e posso ser preso por causa disto”

Vladimir Bukovsky

Henry Alfred [email protected]

Foto: exemplo de um samizdat. Corte-sia do Gulag Museum em Perm-36.

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E por que Samizdat?

A indústria cultural – e o mercado literário faz par-te dela – também realiza um processo de exclusão, baseado no que se julga não ter valor de mercado. Inex-plicavelmente, estabeleceu-se que contos, poemas, autores desconhecidos não podem ser comercializados, que não vale a pena investir neles, pois os gastos seriam maio-res do que o lucro.

A indústria deseja o pro-duto pronto e com consumi-dores. Não basta qualidade, não basta competência; se houver quem compre, mes-mo o lixo possui prioridades na hora de ser absorvido pelo mercado.

E a autopublicação, como em qualquer regime excludente, torna-se a via para produtores culturais atingirem o público.

Este é um processo soli-tário e gradativo. O autor precisa conquistar leitor a leitor. Não há grandes apa-ratos midiáticos – como TV,

revistas, jornais – onde ele possa divulgar seu trabalho. O único aspecto que conta é o prazer que a obra causa no leitor.

Enquanto que este é um trabalho difícil, por outro lado, concede ao criador uma liberdade e uma autonomia total: ele é dono de sua pala-vra, é o responsável pelo que diz, o culpado por seus erros, é quem recebe os louros por seus acertos.

E, com a internet, os au-tores possuem acesso direto e imediato a seus leitores. A repercussão do que escre-vem (quando há) surge em questão de minutos.

A serem obrigados a burlar a indústria cultural, os autores conquistaram algo que jamais conseguiriam de outro modo, o contato qua-se pessoal com os leitores, o diálogo capaz de tornar a obra melhor, a rede de conta-tos que, se não é tão influen-te quanto a da grande mídia, faz do leitor um colaborador, um co-autor da obra que lê. Não há sucesso, não há

grandes tiragens que subs-tituam o prazer de ouvir o respaldo de leitores sinceros, que não estão atrás de gran-des autores populares, que não perseguem ansiosos os 10 mais vendidos.

Os autores que compõem este projeto não fazem parte de nenhum movimento literário organizado, não são modernistas, pós- modernistas, vanguardistas ou qualquer outra definição que vise rotular e definir a orientação dum grupo. São apenas escritores interessados em trocar experiências e sofisticarem suas escritas. A qualidade deles não é uma orientação de estilo, mas sim a heterogeneidade.

Enfim, “Samizdat” porque a internet é um meio de auto-publicação, mas “Samizdat” porque também é um modo de contornar um processo de exclusão e de atingir o objetivo fundamental da escrita: ser lido por alguém.

SAMIZDAT é uma revista eletrônica gratuita, escrita, editada e publicada pela novíssima geração de autores lusófonos. Diariamente são incluídos novos textos de autores consagrados e de jovens escritores amadores, entusiastas e profissionais. Contos, crônicas, poemas, resenhas literárias e muito mais.

www.revistasamizdat.com

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10 SAMIZDAT outubro de 2013

O georgiano David Dephy Gogibedashvili é considerado um dos grandes nomes da lite-ratura contemporânea de seu país. Em 2012, teve o seu conto Antes do Fim selecionado por Aleksandar Hemon para a antologia Best Europe-an Fiction, editada pela Dalkey Archive Press. Outra narrativa curta, A Cadeira, foi publicada em inglês e traduzida para o português no final do ano passado. A editora Lumme acaba de lançar Palavras Palavras Palavras, reunião de diálogos e entrevis-tas que o autor fez com personagens tão curiosos como o velho Santiago, de Hemingway, e Oliver Twist, onde prova que todo grande escritor é, antes de tudo, um grande leitor. Dephy tem inten-sa participação na esfera política, sendo aberta-mente contra a influência russa em seu país – tendo inclusive participado da última guerra entre os dois países, em 2008, ex-periência que aborda em um dos seus romances, Os Jardins e o Pandemônio, com previsão de lança-mento no Brasil ainda em 2013.

david dephy GogibedashviliEntrevista

10 SAMIZDAT outubro de 2013

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11www.revistasamizdat.com

Quem você identificaria como suas influências literárias? Elas estão em Pa-lavras Palavras Palavras?

Para mim este autor foi, é e sempre será Edgar Allan Poe. Ele é mágico, espe-cial. Meus poetas, contistas e romancistas favoritos são Thomas Mann, Hermann Hesse, William Faulkner, Ernest Hemin-gway, Miguel de Cervantes Saavedra, Rabindranath Tagore, William Shakespea-re, Eric Emmanuel Schmitt, Joseph Brodsky, Aleksandar Hemon, Orhan Pamuk…

E, sim, personagens de Hemingway e Poe estão em Palavras Palavras Palavras – o Velho Santiago e William Wilson.

Ao final de Palavras... você nos fala de Bibliópolis, uma “cidade maravilhosa, onde todos os personagens se encon-tram”. Seria interessante visitá-la...

Sim, penso que este lugar está em nos-sos cérebros, corações e espíritos... e se chegarmos lá, alcançaremos algum obje-tivo especial. Ao lermos, podemos viver em Bibliópolis, para uma busca, para nos conhecermos melhor.

Conte-nos sobre a origem de “Os Jardins e o Pandemônio”

Bem... há cinco anos, em agosto de 2008, houve uma guerra em meu país. A Rússia fez outra tentativa de conquistar a Geórgia. Opus-me à agressão como líder do Solida-riedade Civil e organizei protestos contra a Rússia em Tbilisi. Hoje, 20% do território do meu país ainda estão ocupados... sou o autor do slogan “Stop Russia”.

Em 2010 escrevi e publiquei um roman-ce, “Os Jardins e o Pandemônio”, que trata sobre o assunto e o interminável conflito entre o bem e o mal, quando a vítima é sempre um inocente. Por que isso ocorre? Por que não seria possível que um belo dia o bem vencesse para sempre?

Um dos jornalistas, preso e assassinado pelos russos, era meu amigo. Outra, uma jovem, foi atingida na mão pela bala de

um franco-atirador, enquanto estava no ar. Horas antes ela estava me entrevistando.

Penso que este romance é um manifesto, um drama, pleno de emoções e mistério. Minhas imagens, minha imaginação, os acontecimentos da Guerra de Agosto com precisão documental (ouvi relatos sobre acontecimentos reais, de soldados e oficiais do exército da Geórgia, e também pesqui-sei diversas fontes jornalísticas), mostrando as ações criminosas russas, além de narrar a bravura do nosso exército e sobre o amor fatal do capitão da companhia Charlie, George Sardlishvili, à frente de 100 sol-dados (criei este e outros protagonistas, alguns a partir de pessoas reais. A maior estranheza é que tudo em meu romance e na vida real deste oficial é coincidência, inclusive detalhes extremamente pessoais, como suas mensagens enviadas em sms).

Minha imaginação é uma linha cigana, uma luz estranha, o destino de uma famí-lia, os relacionamentos entre os meninos, um sonho no romance produz imagens codificadas no inconsciente dos persona-gens. Os personagens principais buscam a explicação destes símbolos, destas imagens, em seu consciente. De acordo com o ro-mance, os jardins, geralmente associados à paz, à felicidade, são um mundo interior de cada georgiano. A Guerra de Agosto inva-diu este mundo, trazendo medo, choque e reflexões.

Tenho a certeza de que o tempo e a História darão os nomes adequados a tudo isso, como a tudo o que se passa neste mundo, com exceção destes segundos imo-rais, quando um homem se sacrifica em favor dos outros, em favor da liberdade dos outros. A poesia é um sacrifício para mim e é muito real, verdadeira e tangível.

Penso que isso depende apenas de nós, como poetas e escritores, tentando alcançar nossos leitores e a sociedade contempo-rânea, levando uma mensagem clara atra-vés dos nossos trabalhos e tentando fazer do mundo um lugar melhor, unindo três palavras preciosas para todos nós – Amor, Liberdade e Responsabilidade.

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12 SAMIZDAT outubro de 2013

Os russos sempre responderam às nos-sas ofertas de paz de forma muito agressi-va, e você nunca sabe quais palavras, qual atitude adotar em relação a eles. A Rússia é um país imenso em comparação com a Geórgia... e alguém, diabos, pode explicar o que eles querem de nós, pois eles não nos deixam em paz há mais de 400 anos. Por que suas ambições não têm limites? Acho que em geral eles querem tudo, e de uma só vez, mas eles acabam gradativamente sem nada.

Conte-nos sobre sua passagem por Nova Iorque, com Laurie Anderson e Salman Rushdie.

Com prazer. Em 2011, fui um dos par-ticipantes no NYC Ledig House (o grande espaço de arte para escritores e artistas). D.W. Gibson e Joshua First (diretores-exe-cutivos da Ledig House, além de grandes escritores americanos) me apresentaram a Lazlo Jakab Orsos (diretor do festival PEN World Voices) em NY. Depois, Orsos, Salman Rushdie e Laurie Anderson leram meus trabalhos e assistiram às minhas performances poéticas pela Internet, e me convidaram para o festival. Fui conferen-cista em três eventos e havia ainda um grande show de poesias ao vivo – A Segun-da Pele, com Laurie Anderson em Ma-nhattan no Centro Unterberg de Poesia na Avenida Lexington, com poetas de todo o mundo (Yusef Komunyakaa, John Burnside, Juan Carlos Mestre, Piotr Sommer, Joachim Sartorius, Pia Tafdrup). Eu lia minha poe-sia enquanto Laurie Anderson tocava. Foi místico e inesquecível.

Você é performer e artista multimí-dia. Como surgiu a ideia de unir seu trabalho com uma banda de rock?

Penso que, apesar de diferenças sociais, étnico-culturais e de linguagem, a literatu-ra e a arte como um todo não têm fron-teiras, e que o mais importante em nossas relações é nosso desejo de tornar o mundo um lugar melhor. E devemos alcançar isso pelos melhores meios.

Digo poesia e música, e as belas-artes; o inabalável zelo em criar mundos através de palavras e sons. Sou dominado por essa ideia; acredito e tento transmitir esta cren-ça para os outros. Isto me dá um imenso prazer. Já lancei três álbuns quadrifônicos, com orquestra e conjunto de rock. Neste momento, estou trabalhando com a banda georgiana The Sanda. Esses caras são muito talentosos e surpreendentes. Toda semana temos algumas novas ideias e estamos tra-balhando em pesquisar novas formas para nossas artes. Dedico todo o meu tempo apenas à literatura e trabalho tanto com a prosa quanto com a poesia todos os dias. Com a banda, sinto-me no Paraíso. A prosa e a poesia contemporâneas... chame-as de neo neo-românticas, neo neo-simbolistas,

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pós-modernistas místicas ou qualquer ou-tro termo; a arte é autêntica se baseada na verdade universal para todos e deve con-fortar e dar esperança ao homem, ainda que amargamente. Afinal, o mundo é cheio de terror, inveja, avareza e egoísmo. Portan-to, acho que o mundo tem uma chance de se tornar melhor – porque se ele é terrível, isso ocorre porque nós não nos traímos, mas traímos nossas vocações. Traímos nossos ideais e sempre estamos bastan-te conscientes disso. Para mim, trabalhar com uma banda significa estabelecer uma ponte entre as pessoas. Apresento minha poesia com a banda para uma audiência e tentamos destruir os muros que nos sepa-ram e, a partir daí, construir pontes (é por isso que amo os Beatles, Pink Floyd, Elvis Presley, Beethoven, Rachmaninoff, canções do folclore georgiano – são todos constru-tores de pontes).

É esta a ideia principal do movimento Samkauly?

Você se refere às pontes? Sim. Éramos três poetas na ordem, de 2004 a 2008. Viajamos pela Geórgia com o propósito de levar novas formas de poesia para o povo. Apresentamos diversas performances, ao vivo, no palco, nas universidades, cafés, diretamente nas ruas, rádio e televisão, fora da cidade, nos vales e no Mar Negro. Fazí-amos ações poéticas com efeitos sonoros e visuais. Isto nos deu imenso prazer e as pessoas adoraram.

A Geórgia é um país desconhecido para a imensa maioria dos brasileiros, e o mesmo pode ser dito em relação à sua literatura. Quais outros autores georgia-nos nós deveríamos conhecer?

Penso no poeta Amiran Paco Svimo-nishvili, no falecido romancista Jedmal Karchkhadze e no romancista e contista Guram Dochanashvili, grandes autores e artistas. Espero que um dia seus trabalhos sejam traduzidos para outros idiomas.

Muitos falam de uma literatura pós-iugoslava, na medida em que muitos autores dos países que faziam parte da-quele país foram descobertos pelos leito-res ocidentais. Você acha que o mesmo ocorre com a literatura da Geórgia?

Por que não? Deus queira! Acho que alguns autores georgianos serão descober-tos pelos leitores ocidentais. Isso depende de boas traduções, promoção, vontade de editoras... e sorte... Você conhece a canção: “It’s a long way to the top if you wanna rock’n’roll”. É isso.

Entrevista e tradução por:Fabio Bensoussan

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14 SAMIZDAT outubro de 2013

a Cartomante

autor em Língua Portuguesa

Joaquim Maria Machado de Assis

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Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de Novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera con-sultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.

— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim de-clarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade...

— Errou! Interrompeu Camilo, rindo.

— Não diga isso, Camilo. Se você sou-besse como eu tenho andado, por sua cau-sa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...

Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe que-ria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois...

— Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.

— Onde é a casa?

— Aqui perto, na rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Des-cansa; eu não sou maluca.

Camilo riu outra vez:

— Tu crês deveras nessas coisas? pergun-tou-lhe.

Foi então que ela, sem saber que tradu-zia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muito cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranquila e satisfeita.

Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se, Não queria arrancar-lhe as ilusões. Tam-bém ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo de-pois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal, por-que negar é ainda afirmar, e ele não for-mulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.

Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Ca-milo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem para a casa da cartomante.

Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das ori-gens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funciona-lismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No prin-cípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.

— É o senhor? exclamou Rita, estenden-do-lhe a mão. Não imagina como meu ma-rido é seu amigo; falava sempre do senhor.

Camilo e Vilela olharam-se com

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16 SAMIZDAT outubro de 2013

ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mu-lher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interroga-tiva. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vente e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experi-ência, nem intuição.

Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.

Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pou-co menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no pró-prio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam.

Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, dese-jos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrú-pulos! Não tardou que o sapato se acomo-dasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confian-ça e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.

Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.

Foi por esse tempo que Rita, desconfia-da e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a car-tomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anôni-mas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compos-tas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.

Nem por isso Camilo ficou mais sosse-gado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remé-dio. Rita concordou que era possível.

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— Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com a das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...

Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se som-brio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denún-cia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.

No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia. Ca-milo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou to-das essas cousas com a notícia da véspera.

— Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os olhos no papel.

Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando na pena e escre-vendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estre-meceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a ideia de recuar, e foi andando. De caminho, lem-brou-se de ir a casa; podia achar algum re-cado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a ideia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspen-são das suas visitas, sem motivo aparen-te, apenas com um pretexto fútil, viria

confirmar o resto.

Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras esta-vam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então, — o que era ainda pior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas, assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a ideia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.

— Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...

Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravan-cada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e es-perou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.

Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extra-ordinária, e do fundo das camadas mo-rais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar à primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a ideia de ouvir

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a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; de-sapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:

— Anda! agora! empurra! vá! vá!

Daí a pouco estaria removido o obs-táculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da carta: "Vem já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Cami-lo achou-se diante de um longo véu opa-co... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários; e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia..." Que perdia ele, se...?

Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não apare-cendo ninguém, teve ideia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para os telhados do fundo. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobre-za, que antes aumentava do que destruía o prestígio.

A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pou-ca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um ba-ralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava

para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:

— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...

Camilo, maravilhado, fez um gesto afir-mativo.

— E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...

— A mim e a ela, explicou vivamente ele.

A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez as cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três ve-zes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.

— As cartas dizem-me...

Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável mais cautela; ferviam inve-jas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, reco-lheu as cartas e fechou-as na gaveta.

— A senhora restituiu-me a paz ao espí-rito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante.

Esta levantou-se, rindo.

— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...

E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar par-ticular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.

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— Passas custam dinheiro, disse ele afi-nal, tirando a carteira. Quantas quer man-dar buscar?

— Pergunte ao seu coração, respondeu ela.

Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzila-ram. O preço usual era dois mil-réis.

— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá tranquilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...

A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperan-do; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo.

Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.

— Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.

E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduida-de... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da con-sulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as ve-lhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria

de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos re-centes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.

A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.

Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apare-ceu-lhe Vilela.

— Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?

Vilela não lhe respondeu; tinha as fei-ções decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensanguentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.

Este conto foi publicado originalmente na Gazeta de Notícias – Rio de Janeiro, em 1884.

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Joaquim maria machado de assis (1839 – 1908)

Jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e teatrólogo, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 21 de junho de 1839, e faleceu também no Rio de Janeiro, em 29 de setembro de 1908. É o fundador da Ca-deira nº. 23 da Academia Brasileira de Letras. Velho amigo e admirador de José de Alencar, que morrera cerca de vinte anos antes da fundação da ABL, era natural que Machado escolhesse o nome do autor de O Guarani para seu patrono. Ocupou por mais de dez anos a presidência da Academia, que passou a ser chamada também de Casa de Machado de Assis.

Filho do operário Francisco José de Assis e de Maria Leopoldina Machado de Assis, perdeu a mãe muito cedo, pouco mais se conhecendo de sua in-fância e início da adolescência. Foi criado no morro do Livramento. Sem meios para cursos regulares, estudou como pôde e, em 1854, com 15 anos in-completos, publicou o primeiro trabalho literário, o soneto “À Ilma. Sra. D.P.J.A.”, no Periódico dos Pobres, número datado de 3 de outubro de 1854. Em 1856, entrou para a Imprensa Nacional, como aprendiz de tipógrafo, e lá conheceu Manuel Antônio de Almeida, que se tornou seu protetor. Em 1858, era revisor e colaborador no Correio Mercantil e, em 60, a convite de Quintino Bocaiúva, passou a perten-cer à redação do Diário do Rio de Janeiro. Escrevia regularmente também para a revista O Espelho, onde estreou como crítico teatral, a Semana Ilustrada e o Jornal das Famílias, no qual publicou de preferência contos.

O primeiro livro publicado por Machado de Assis foi a tradução de Queda que as mulheres têm para os tolos (1861), impresso na tipografia de Paula Brito. Em 1862, era censor teatral, cargo não remu-nerado, mas que lhe dava ingresso livre nos teatros. Começou também a colaborar em O Futuro, órgão dirigido por Faustino Xavier de Novais, irmão de sua futura esposa. Seu primeiro livro de poesias, Crisá-lidas, saiu em 1864. Em 1867, foi nomeado ajudante do diretor de publicação do Diário Oficial. Em agos-to de 69, morreu Faustino Xavier de Novais e, menos de três meses depois (12 de novembro de 1869), Machado de Assis se casou com a irmã do amigo, Carolina Augusta Xavier de Novais. Foi companhei-ra perfeita durante 35 anos. O primeiro romance de Machado, Ressurreição, saiu em 1872. No ano seguinte, o escritor foi nomeado primeiro oficial da Secretaria de Estado do Ministério da Agricul-tura, Comércio e Obras Públicas, iniciando assim a carreira de burocrata que lhe seria até o fim o meio principal de sobrevivência. Em 1874, O Globo (jornal de Quintino Bocaiúva) publicou, em folhetins, o romance A mão e a luva. Intensificou a colaboração em jornais e revistas, como O Cruzeiro, A Estação, Revista Brasileira (ainda na fase Midosi), escrevendo crônicas, contos, poesia, romances, que iam saindo em folhetins e depois eram publicados em livros. Uma de suas peças, Tu, só tu, puro amor, foi levada à cena no Imperial Teatro Dom Pedro II (junho de 1880), por ocasião das festas organizadas pelo Real Gabinete Português de Leitura para comemorar o

tricentenário de Camões, e para essa celebração especialmente escrita. De 1881 a 1897, publicou na Gazeta de Notícias as suas melhores crônicas. Em 1880, o poeta Pedro Luís Pereira de Sousa assumiu o cargo de ministro interino da Agricultura, Comér-cio e Obras Públicas e convidou Machado de Assis para seu oficial de gabinete (ele já estivera no posto, antes, no gabinete de Manuel Buarque de Macedo). Em 1881 saiu o livro que daria uma nova direção à carreira literária de Machado de Assis – Memórias póstumas de Brás Cubas, que ele publicara em fo-lhetins na Revista Brasileira de 15 de março a 15 de dezembro de 1880. Revelou-se também extraordi-nário contista em Papéis avulsos (1882) e nas várias coletâneas de contos que se seguiram. Em 1889, foi promovido a diretor da Diretoria do Comércio no Ministério em que servia.

Grande amigo de José Veríssimo, continuou colaborando na Revista Brasileira também na fase dirigida pelo escritor paraense. Do grupo de intelec-tuais que se reunia na Redação da Revista, e prin-cipalmente de Lúcio de Mendonça, partiu a ideia da criação da Academia Brasileira de Letras, projeto que Machado de Assis apoiou desde o início. Compare-cia às reuniões preparatórias e, no dia 28 de janeiro de 1897, quando se instalou a Academia, foi eleito presidente da instituição, à qual ele se devotou até o fim da vida.

A obra de Machado de Assis abrange, pratica-mente, todos os gêneros literários. Na poesia, inicia com o romantismo de Crisálidas (1864) e Falenas (1870), passando pelo Indianismo em Americanas (1875), e o parnasianismo em Ocidentais (1901). Paralelamente, apareciam as coletâneas de Contos fluminenses (1870) e Histórias da meia-noite (1873); os romances Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878), considera-dos como pertencentes ao seu período romântico. A partir daí, Machado de Assis entrou na grande fase das obras-primas, que fogem a qualquer denomina-ção de escola literária e que o tornaram o escritor maior das letras brasileiras e um dos maiores auto-res da literatura de língua portuguesa.

A obra de Machado de Assis foi, em vida do autor, editada pela Livraria Garnier, desde 1869; em 1937, W. M. Jackson, do Rio de Janeiro, publicou as Obras completas, em 31 volumes. Raimundo Magalhães Júnior organizou e publicou, pela Civili-zação Brasileira, os seguintes volumes de Machado de Assis: Contos e crônicas (1958); Contos esparsos (1956); Contos esquecidos (1956); Contos recolhi-dos (1956); Contos avulsos (1956); Contos sem data (1956); Crônicas de Lélio (1958); Diálogos e refle-xões de um relojoeiro (1956). Em 1975, a Comissão Machado de Assis, instituída pelo Ministério da Educação e Cultura e encabeçada pelo presidente da Academia Brasileira de Letras, organizou e publicou, também pela Civilização Brasileira, as Edições críti-cas de obras de Machado de Assis, em 15 volumes, reunindo contos, romances e poesias desse escritor máximo da literatura brasileira.

Fonte: http://www.machadodeassis.org.br/

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Luziaautor em Língua Portuguesa

Trindade Coelho

Daniel Ridgway Knight , La Vendange (1879)

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Mesmo ao fundo da povoação, ficava, parece que já esquecida, a casita do António Valente. Pela porta dele não se fazia cami-nho para banda nenhuma. A aldeia acabava ali. Começava logo adiante, numa pequena chapada sem parapeito, esse terreno ladeiro-so que ia dar ao rio, e da banda de lá do rio tudo aquilo era já Espanha: largos e compri-dos vinhedos que pela primavera entravam de revestir de verde todos aqueles montes e cabeços – montes e cabeços que além, à bor-da do rio, estacavam, de repente, eriçando-se, imóveis, em fragaredos escalvados de meter medo.

Dir-se-ia, pois, com efeito, esquecida já para aquele deslado a casita do jornaleiro, mas ficava, como veem, muito bem situada, porque demais a mais era vizinha de uma pequena ermida – a ermidinha branca da Senhora das Graças – que devia, vista de lá, sorrir-se para os Espanhóis, como sorria aos Portugueses, especialmente ao António Valente quando aos domingos assomava à janelita, essa linda capelinha da Senhora cha-mada del Pilar, que alvejava naquele grande trono de verdura, além, debaixo do céu azul.

O António Valente era ainda novo, e tinha dois filhos muito bonitos e ambos muito loi-ros: a Maria da Graça, a mais velhinha, que fizera sete anos, e então o Manuel, que tinha seis. Sete anos e nove meses tinha ele de ca-sado com a Luzia, a mais linda, a mais alegre rapariga das que no verão arranchavam nas vindimas. Namorara-o o seu lindo cabelo preto, o seu rosto de nazarena, aquele seu ar esbelto de choupo, os belos olhos da rapariga, que lhe lembravam duas amêndoas grandes no feitio – e então certa covinha que fazia na sua linda face trigueira, quando se ria, aquele demonete...

– Ora aí está uma covinha em que eu gostava de enterrar beijos! – dissera-lhe uma vez, também a rir, esse mocetão do António Valente.

Ela respondera-lhe, fingindo uma grande surpresa:

– Gostavas?!...

– E esses dentes, ó Luzia! Queres-me tu dar uma dentada com esses dentinhos?

– Isso não, rapaz! Preto por preto, está em primeiro lugar o pão centeio!

– Ah, marota!

A esse tempo, a Luzia era órfã de pai e mãe, e não tinha irmãos. «Sou como o sarga-cinho do monte!», dizia ela às vezes. Pensava em se casar? Pensava. Mas não era «pra se arrumar»; que muitas vezes dizia ela que «en-quanto Deus lhe desse saúde, e força naque-les braços...». «Esconde lá isso, rapariga! Ora pra que hás de tu estar a arregaçar os braços se mos não atas aqui ao pescoço!», dissera-lhe de outra vez o António Valente – ... que en-quanto Deus lhe desse saúde, e força naque-les braços, não era ela que caía nessa – a não ser, já se vê, acrescentava fazendo a covinha, que lhe desse o Demo na cabeça pra gostar pra aí dalgum feiarrão...

Certa vez, o António Valente, que já anda-va aflito de lhe ouvir a conversa, volvera-lhe:

– Ouves, Luzia? Mas pra te livrares desse perigo, aqui estou eu que sou bem guapo!

– Tu?! – perguntara ela muito estranha.

E o António redarguiu-lhe logo:

– Olha lá agora se me enjeitas, ó cachopa!

*

Estavam a cear, por sinal. Tinham andado à azeitona todo o santo dia, e estavam a cear, de ranchada, em casa do amo. Prosseguiu a conversa em grande galhofa enquanto durou o caldo, e enquanto, depois do caldo, come-ram as batatas guisadas. Era na cozinha, a grande cozinha escura do lavrador – com o lume a arder além, o armário acantoado aco-lá, ali a cantareira, além a boca do forno, a masseira logo ao pé, a banca daquela banda, onde a moça, mais a ama, despachavam as refeições, e em cima, pingando, as varas do fumeiro. A um lado, ao pé da porta que dava saída para o quintal, as azeitoneiras comiam, alumiadas por uma candeia.

Ao lume, escarranchado, estava o amo, a regalar-se de os ouvir, e de ouvir ferver a panela. E porque não esmorecesse a conversa, meteu de lá também a sua «foiçada», enquan-to, enxotando o gato dorminhoco, ajeitava com as tenazes um tição:

– Quem há de casar com a Luzia bem eu sei...

– Quem?! Quem?! Ó Sr. António, diga lá quem! – acudiram logo em coro as

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azeitoneiras.

Mas ele, desviando a conversa:

– Ó Ana! Ó mulher dos meus pecados! Não me tirarás de cima do lume esta amaldi-çoada caldeira?!

– Mas quem, ó Sr. António?! Diga lá quem! – insistiram as outras.

– Isso agora... Ó Ana, olha que esta vianda já está farta de ferver. Tira pra lá a caldeira!

– Então não diz, ó Sr. António?!

– Não! É segredo. – E voltando-se para trás: – Se não tiras a caldeira, tiro-a eu!

– Mas ora o que te aflige a caldeira! – dis-se zangada a Sr.ª Ana, pegando-lhe pela asa e levando-a, num rompante.

– Bem. Agora venha de lá o caldo, que eu também sou filho de Deus.

– Não! Não! Mas antes, há de dizer quem é o derriço da Luzia! – impetravam de lá os outros todos. – Diga, ó Sr. António! A gente guardamos segredo!

– Isso guardam vocês, olha quem! Ó Ana, mas vem esse caldo ou não vem esse caldo?!

– Jesus! Santo nome de Jesus! – exclamava aflita a Sr.ª Ana.

– ... Porque enfim, rapazes, há coisas que são segredo – desculpou-se o lavrador. E dan-do uma palmada – pá – no lombo gordo do maltês, que vinha, lambareiro, fariscar a pa-nelinha dos petiscos: – Só se a Luzia deixar...

A Luzia, que o percebera, acudiu de lá contendo a risa – e, levantando no ar o garfo de ferro, suplicou:

– Não diga, ó Sr. António! Plas suas almi-nhas, não diga! Peço-lhe eu que não diga!

Foi um alvoroço na cozinha, todos a pedirem-lhe que dissesse! Mas a voz fina de Luzia trepava mais alto que as mais:

– Não diga, ó Sr. António! Sempre quero ver agora se é meu amigo!

– Já vocês veem... – rematou o lavrador desculpando-se. Mas fingindo logo que se arrependera, emendou: – E tu que é que me dás se eu me calar?!

– Olhem o interesseiro! Eu só se lhe der este anel...

– Valeu! Mas ele de que é o anel?

– É de coralina, quer?

– Não! Só se me deres um beijo!

Foi uma risota.

– Ó Luzia, vai-lhe ali dar um beijo! – acu-diu logo, chamando-lhe tolo, a Sr.ª Ana. – Ora o grande tolo!...

– Pois então, ó mulher de juízo, dá-me cá tu o caldo! Não se envergonha de ter aqui o seu homem a morrer de fome!

– ... De fome de beijos, ó Sr. António – acudiu de lá a Luzia, a rir.

– Ah, grande magana! – disse o lavrador repreendendo-a. – Ora, mas é mesmo por amor disso...

– Diga! Diga! – clamaram em coro as azei-toneiras.

– ... É mesmo por amor disso – continuou o lavrador – que vou chimpar aqui com quem te tu casas!

E erguendo-se a meio corpo, já com o cal-do em uma das mãos, na outra o carolo de pão centeio, começou, voltado para o rancho suspenso:

– A Luzia... – e pisou sem querer o rabo do cão, arredando-o com a ponta do pé. – Vai-te!

– A Luzia... – repetiram todos.

– ... Casa-se com o porqueiro!

Foi uma assuada! Trinta vozes clamaram ao mesmo tempo:

– Casas-te co porqueiro! Casas-te co por-queiro!

O porqueiro era um muito feio, gago e aleijadinho, que estava a comer a um canto do escano.

Perguntaram-lhe:

– Ele é verdade, ó Luís?!

– Quem tera! – acudiu muito contente, so-prando a garfada fumegante, o pobre do Luís. E fungou uma risadinha...

– Gostavas, ó Luís? – perguntou-lhe de lá o António Valente.

– To... tava! – disse o gago.

– Tamém eu.

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Fora então que a Luzia, já de pé para se ir embora, no meio de alguns que se despediam – «Boas noites, Sr. António! Muito boas noites, Sr.ª Ana!» – dissera outra vez a sua «história»: – que «enquanto Deus lhe desse saúde, e for-ça naqueles braços...» –, acabando por os seus receios de que viesse enfim a dar-lhe volta ao miolo algum feiarrão muito feiarrão – «inda mais feiarrão do que o Luís!»

– Olha que já esta noite disseste isso, ó Luzia! – tornara-lhe a rir o António Valente, anediando com a manga o chapéu grosso.

– E tu que tens com isso? – perguntara-lhe ela fingindo-se zangada.

– Tenho! – acudiu o António. – É que se me não dava de casar contigo. – E abalou, ato contínuo, direito à escada. – Com bem passem a noite. Adeus, Luzia!

Não rira desta vez, a Luzia, nem tão-pouco lhe acudiu o remoque...

– Ouves? – chamou ela, sem saber o que ia dizer.

– Que é? – respondeu, já do fundo da es-cada, a voz do António Valente.

– Não é nada... Era cá uma coisa. Já não é nada.

Mas o lavrador, que percebera, voltou-se logo para a Sr.ª Ana, e disse-lhe assim, de velhaco:

– Sabes que mais, ó mulher? Olha se me vais arejando a roupa sécia, que há de ser precisa pra um casamento...

Atirando o xaile para a cabeça, a Luzia botara a correr para a escada, sem dizer palavra.

– Então boas noites, ó rapariga! Vê lá ago-ra se cais...

– Ah, não caio... – respondera ela de certa maneira.

– Não é isso! Que não vás cair que me quebres a escada! – explicou o lavrador alçando a voz e desfechando-lhe uma garga-lhada!

Enfim, enfim, caso é que daí a menos de um ano, à missa do dia, o bom do Sr. Reitor dizia assim ao lavabo, com uma grande cha-pada de sol a bater-lhe na casula branca:

– Na forma do Sagrado Concílio

Tridentino...

Pausa.

– Ora mal sabem vocês quem se vai casar! – pareciam dizer no altar-mor, a rir, os lindos santinhos cheios de flores.

E o povo parecia perguntar, escutando:

– Quem será? Quem será?

− ... e pelo favor de Deus e da Santa Madre Igreja Católica, Apostólica, Romana, querem contrair o Santo Sacramento do Matrimónio que pretendem...

Eram, já se vê, os proclames do António Valente mais da Luzia. Disse-lhes os nomes dos pais, disse-lhes os nomes dos avós, o Sr. Reitor: – «todos desta freguesia!» Riam, os santinhos! – «Todos desta freguesia!» Sorriam-se cá baixo os do povo:

– Pois vão bem! Pois vão muito bem!

E o Sr. Reitor, cheio de sol, fazendo ao alto do papel dos «banhos» um rasgãozinho, pra se lembrar que era aquele o primeiro pregão, concluía, cheio de sol, na sagrada forma do estilo, mirando ao alto uma andorinha, que viera também à missa:

– Se alguém souber dalgum impedimento pelo qual os contraentes deixem de receber o Santo Sacramento do Matrimónio que preten-dem, debaixo de pena de excomunhão maior o descubram, e debaixo da mesma pena maliciosamente o não embaracem.

Ora, ora! pelo contrário!... Impedimen-tos não os havia de casta nenhuma, e todos levavam muito em gosto, na freguesia, o casamento: – os santos, o povo, as árvores, as andorinhas... E do mais velho ao mais novo, estou em dizer que não houve ninguém que nos três domingos dos «parabéns» não provasse a rica «pinguinha», e ninguém, dos quarenta pra baixo, que na boda não desse à perna – trup-trup! trup-trup! – nesse lindo dia de sol...

(Conto incluído na parte Amores Novos, do livro Os Meus Amores.)

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trindade Coelho (1861-1908) De seu nome completo José

Francisco Trindade Coelho, nasceu em Mogadouro, em 18/6/1861. Aí fez os primeiros estudos, nomeadamen-te na área de Latim, com o apoio de dois padres.

Em 1873 foi para o Porto onde fez os estudos secundários em colégio. Aí viu pela primeira vez um artigo seu (“Ceticismo”) impresso num jor-nal, o que constituiu a sua iniciação na atividade jornalística, que exercerá intensamente pela vida fora. Foi tam-bém no Porto que escreveu os primei-ros trabalhos de índole propriamente literária, os contos “O Enjeitado”, que só sairia a lume em 2001, e “Trovoa-da”.

Em 1880 encontramo-lo em Coim-bra a estudar Direito. Mas logo nes-se primeiro ano se entregou à sua paixão pelo jornalismo, colaborando em diversos jornais e inclusivamente fundando outros (Porta Férrea e Pa-norama Contemporâneo), e à boémia estudantil, de tal modo que não con-seguiu passar de ano. Este facto levou o pai a cortar-lhe a mesada no ano seguinte, pelo que sobreviveu a dar explicações e a escrever em jornais. Entretanto casou e apareceu um filho, facto que mais complicou a sua vida, enquanto estudante. Chegou a ter um esgotamento. No 4º ano, morreu-lhe o pai, que era o único amparo de que dispunha.

Após a conclusão do curso perma-neceu em Coimbra, como advogado. Mas a clientela era pouca. Ingressou na magistratura e foi colocado como Delegado do Procurador Régio, na comarca do Sabugal, por influência

direta de Camilo Castelo Branco, que o admirava, literariamente. Sabe-se que valeu a pena porque foi Trindade Coelho um magistrado de elevadíssi-ma craveira moral.

Do Sabugal foi transferido para a comarca de Portalegre, onde fundou dois jornais – Gazeta de Portalegre e Comércio de Portalegre –, e daí para Ovar. A última etapa profissional foi Lisboa, acumulando experiência e co-nhecimento dos homens e, ao mesmo tempo, um sentimento de repulsa pe-las injustiças e pelos golpes de baixa política que ia testemunhando e dos quais procurava manter-se afastado, por imperativo ético, já que procurou sempre ser um magistrado íntegro e apostado em repor a justiça onde ela não tivesse sido feita. Chegou a ir a África (Cabo Verde) defender 33 presos políticos. Ao fim de 3 meses regressou vitorioso, porque conse-guiu libertar os presos, prendendo os acusadores. A “antipática“ tarefa de fiscalizar a imprensa da capital, na se-quência do Ultimato Inglês valeu-lhe aceradas críticas e correspondentes desgostos.

Continuou a escrever nos jornais: Portugal, Novidades, Repórter e fun-dou a Revista Nova. Publicou diversas obras didáticas, desde manuais pe-dagógicos, como o ABC do Povo, de 1901, adotado oficialmente nas esco-las públicas, até ao guia de cidadania Manual Politico do Cidadão Portu-guês, de 1905, entre muitos outros títulos.

Em 1907, durante a ditadura de João Franco, pediu a demissão vol-tando a sentir por esse facto grandes dificuldades económicas, que preci-pitaram a sua morte. Apesar de ser

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“alegre como uma romaria” e “peque-nino mas tesinho”, no dizer de Eugé-nio de Castro, Trindade Coelho era sujeito a ataques de neurastenia que o fragilizavam. Era um homem incon-formado. Nem a fama de magistrado, nem o prestígio de escritor, nem a felicidade conjugal conseguiam fazer de Trindade Coelho um cidadão feliz. A sua desilusão com a política e com a justiça, bem como o espectro da po-breza sua e dos seus (mulher e filho), amarguravam-no. Foi na sequência de um desses momentos de desespero que se suicidou em Lisboa, em 9 de Agosto de 1908.

Literariamente, Trindade Coelho pertence ao grupo de cultores do chamado conto rústico, de muita tradição na Literatura Portuguesa do séc. XIX e ainda no séc. XX. O seu protótipo em Portugal é O Pároco da Aldeia, de Alexandre Herculano. Júlio Dinis, Fialho de Almeida, Teixeira de Queirós, Rodrigo Paganino, Pedro Ivo são alguns dos mais conhecidos e apreciados cultores no séc. XIX desta ficção de matriz rural, que se impõe no país um pouco em reação contra os excessos do positivismo filosófico, idealizando e poetizando a vida tran-quila do campo como alternativa à vida desumana e desumanizadora das grandes cidades.

O seu livro mais conhecido e tam-bém o mais conseguido, Os Meus Amores, é uma daquelas obras que conquistam e conservam os favores do público. Passados 105 anos sobre a primeira edição, continua a editar-se e a ler-se. Claro que a principal razão é a sua qualidade intrínseca. Trata-se na verdade de uma coletânea de contos de uma frescura e ausência

de artificialismos sem paralelo na Literatura Portuguesa. Constituem um conjunto de evocações e qua-dros descritos com espontaneidade e simplicidade, compreensível a todos. Um toque de suave lirismo reforça-lhes o encanto e uma utilização da linguagem popular, em diálogos vi-vos, confere-lhes algum realismo. Alguns desses textos nem chegam a ser verdadeiros contos, faltando-lhes a ação (um pouco à maneira do que acontece nos contos do russo Anton Tchekov). Mas a todos sobra a emo-ção e o envolvimento afetivo do autor, que induz facilmente a empatia do leitor. É assim uma obra sui generis, com um cunho de originalidade que a diferencia de obras congéneres. O próprio Trindade Coelho se interroga e responde: “Mas então o que são os meus contos?! Não sei. Talvez sauda-des; e tenho a certeza de que se vives-se na minha terra (…) não os teria feito…”

Elaborado por Joaquim Bispo com excertos retirados de:

– Grémio Literário Vila-Realense: http://gremio.cm-vilareal.pt/index.php?option=com_content&task=view&id=61&Itemid=28

– Bragança Net : http://www.bragan-canet.pt/filustres/coelho.html

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ELaautor Convidado

Sérgio Tavares

Não foi uma explosão de cores, e sim um pequeno risco lívido. Fugidio, disparo. Eu es-tava prestes a desatar o rolo do eixo, quando lampejou na tela escura aquele traço súbito, uma fagulha única de luz que me deixou a dúvida se realmente tinha acontecido ou fora um efeito de imaginação. Uma ilusão, decerto. Ademais, minhas certezas estavam tão contaminadas pela fantasia que, mesmo impossibilitada de levar adiante suas maqui-nações, trabalhava incompleta, ainda que di-ligente, acenando-me lampejos feito um farol que norteia uma barca à deriva, eu que não encontrava indicações para voltar ao univer-so quimérico de conformações preenchidas pela ação de nanquins, aquarelas e luzes, aquele que fora meu refúgio durante anos.

Era como se os sinais infrequentes me lembrassem de que bastava acreditar e olhar debaixo do estrado da cama, que ali esta-va um mar infinito e tácito, franzindo sua superfície em cristas azul-ferrete que, seme-adas por uma brisa constante de grãos de sal, desabrochavam-se em lírios brancos de espuma, crespos e efêmeros, logo se abrindo

em pétalas que se desfaziam no calmo ritmo da maré, para em seguida imergirem na fundura negra tal qual um risco lívido que surge invariavelmente numa tela escura. As-sistir a essa paisagem sempre me fez querer mergulhar neste oceano de possibilidades, mas era detida pelo corpo paralisado como nunca antes em minha vida, nem por medo ou solidão. Permanecia naquela posição imutável, olhos e músculos duros, absorven-do a projeção (ou sua ausência) e apostando que o contínuo funcionamento da máquina me revelaria o prêmio que a impaciência ocultava.

A ansiedade revolvia dentro de mim, apesar de não transbordar em gestos ou lágrimas, ou, ao menos, insurgir numa ligeira segurança de que eu estava diante de um prenúncio e não de um fim. De fato, quando apareceu outro risco, a expectativa apenas mudou seu objeto. Deixou de doer pelo que não existia, mas pela imersão da existência. Gradualmente desorientadas, fagulhas foram luzindo naquele pedaço de cego firmamen-to, ilustrando a nulidade conforme estrelas

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cadentes que subvertiam a lógica da vontade, o meu mais cândido desejo de escapar deste roteiro real e das coisas tocadas que, com o engordar do tempo, me reconheciam na memória da casa, do quarto, do meu corpo, vítima da imobilidade que parecia prontidão mas era fraqueza, e dos olhos, brilhos apaga-dos, que não viam mais o sinal, o farol com seu facho maquinal e farfalhante, a passagem para o outro mundo.

Os olhos de criança, estes sim viam e eram como guias para o eu-personagem fugir de mim em modelo de rascunho, espectro cadente que se espatifa contra o mar noturno em mil risquinhos, ranhuras e borrões, torcendo para que a insistência da luz descasque essa primeira camada e revele, atrás do preto, as cores vivas, gradualmente uma contagem que sufoca a ansiedade e me aproxima de volta a fantasia, como se isso fosse inevitável, não é. No golpe de cortinas que desabam repentinamente, a tela se fez um cenário composto de estranhamento e dor. E no redescobrir da infância, revelou-se o desencanto.

Era um cenário árido. Um frame estáti-co, desbotado, âmbar. Eu, também estática e também vazia, mantinha a postura-estátua, o autorretrato de antes, pois se as palavras es-critas precisam de tempo para se acostumar e fazer sentido, a sucessão de fatos era revo-ada de pássaros, e eu, ingênua criança, ainda tentando distinguir a todos, não percebia que, a partir dali, eles só migrariam para o conti-nente onírico, onde meu desejo reencontraria a imaginação e o refúgio que ela construiu para mim. Seria assim: bastava desfraldar mi-nhas asas e me juntar à peregrinação alada. A passagem estava reaberta, os sinais foram decifrados, a barca redescobrira o norte e o mar soprava um vento a favor.

Só que (e, portanto, a inércia) para fazer a transladação, eu precisava estar completa. No

fim das contas, a inocência que me levou a acreditar que neste rolo eu encontraria um inédito roteiro de fuga, foi a mesma que, no afã de confrontar a sua inexistência, em-bruteceu sentimentos que lentamente foram poluindo esse espírito infantil que os pincéis, as histórias e a casa (principalmente ela) se empenharam em resguardar. Mas o desejo de me afastar da realidade (e, naquele instante, se alguém, qualquer alguém, aparecesse e me dissesse que tudo estaria bem, eu acreditaria) era maior e, inconsequente menina, escapei do corpo obstruído para cair e me espatifar em mil partes, mil perdas, uma casca vazia.

Sei que não foi em vão. Ali está o fra-me estático, desbotado, âmbar, eu consegui. Entretanto, por mais que o porvir fosse a máquina, eu precisava recompor esse per-sonagem pintado em serenidade, pureza e ternura, pois somente ele possuía a capacida-de de enxergar e interagir com os persona-gens-nanquins e aquarelas do outro mundo. Ele era a intenção que modelava a forma, a metade incompleta. E, embora a aparição da cena me tranquilizasse e, de certo modo, me injetara uma ínfima dose de contentamento e prazer, tais sentimentos não eram argamassa consistente para iniciar sequer um modelo de rascunho, pelo simples fato de eu não ter certeza quanto às suas validade e origem.

Era uma cena árida, não era um desenho. Não havia cores, apenas uma cor. E uma cor doente, empalidecida, que escorria pelas bordas quando o plano mudava do primei-ro frame, quando era um plano aberto, para um segundo e daí uma sequência latente que, embora parecesse se fixar nesta mesma imagem, imperceptivelmente desaparecia. Acho que isso se chama morte, algo que ouvi, contra o zumbido mecânico, alguém do lado de fora do quarto falar que não vai tardar para acontecer.

Sérgio tavaresJornalista e escritor, autor de “Queda da Própria Altura” (Confraria do Vento/2012)

e “Cavala” (Record/2010), vencedor do Prêmio Sesc Nacional de Literatura – Categoria Contos. Também foi premiado no Concurso Literário da Fundação Escola do Servi-ço Público (Fesp-RJ/2005) e tem textos publicados em diversos jornais, revistas e sites literários.

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Joaquim Bispo

a Estátua sem rosto

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O que se conseguia ler no folheto pisado e rasgado que parou aos meus pés era apenas «(…) omingo, 5 (…) inaugur (…) praça D. Moniz (…) stát (…) rei (…)», mas foi o suficiente para eu perceber do que se tratava, dada a proximidade de elei-ções e algum conhecimento do que acontece em tais épocas: as autarquias desdobram-se em melhoramentos, apressam obras que estiveram paradas durante anos e anunciam inaugura-ções.

Ribeira de Canas, onde vivo, não é exceção. A minha rua estava virada do avesso havia dois meses. Máqui-nas e brigadas de operários criavam espaços de estacionamento, repavi-mentavam os passeios e introduziam uma pista para bicicletas a todo o comprimento. Além desta obra, várias outras tinham sido anunciadas, uma das quais a implantação de uma es-tátua do rei D. Moniz – de que falava o folheto – na praça com o nome do monarca. Este rei, que viveu nos sécu-los XIII – XIV, está sepultado no mos-teiro de S. Moniz, aqui em Ribeira de Canas, o que constitui um motivo de orgulho para a cidade.

Alertado pela informação truncada do folheto, dirigi-me ao local assim que ouvi o som de uma fanfarra. Para a cerimónia de inauguração, estava presente uma representação da Câ-mara Municipal, ao mais alto nível, além do escultor. Primeiro, falou a vereadora da cultura, que fez um pequeno discurso alusivo ao soberano e ao que ele representou para Ribeira de Canas. A seguir, falou a presidente, que agradeceu ao artista e o elogiou pela excelente peça ali instalada, após o que destapou uma escultura em

bronze, de uns dois metros e meio de altura, instalada sobre um pedestal em pedra.

Imediatamente, alguém que devia estar preparado de antemão, disse em voz bem alta: «Senhora presidente, o povo não está contente; o rei D. Mo-niz não tem cara nem nariz», o que foi ouvido por todos, porque embora o grupo fosse numeroso, estava re-lativamente silencioso. Na verdade, a escultura apresentava uma figura antropomórfica estilizada, em posição sentada, coroada e coberta com um manto, mas sem formas faciais. Como cabeça, apenas uma coroa estilizada, como uma cabeça de rei do xadrez.

A situação tornou-se um pouco confrangedora, dada a presença do autor, mas este manteve-se impávi-do. A vereadora, sentindo-se, talvez, em xeque, ou achando boa a opor-tunidade para um esclarecimento pedagógico, tomou a palavra e teceu algumas considerações sobre o que é mais importante na figura de D. Moniz, e que esses atributos estavam presentes na escultura: a coroa real; o manto majestático; a cruz da ordem de Cristo, por si fundada e herdeira dos Templários; o livro simbolizando o seu gosto pelas letras que também cultivava, através de mais de cento e trinta poemas; além duma mata esti-lizada a seus pés, reconhecida a sua importância na instalação extensiva de pinhais no litoral, fundamentais no refreamento do avanço dunar e na posterior construção de navios.

A cerimónia terminou pouco de-pois, altura em que os repórteres dos jornais locais se aproximaram para obter declarações do artista. Aproxi-mei-me, também, e ouvi este diálogo:

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– Mestre Bretão, por que é que não pôs cara ao rei?

– Tem um pouco a ver com o que disse a senhora vereadora – explicou o escultor. – Eu podia dar um rosto à escultura, mas esta vive muito da esti-lização. Para lhe pôr uma cara, tinha de, também, fazer os outros elementos semelhantes aos verdadeiros, e, se vir a minha obra, não é esse o meu esti-lo. As minhas peças procuram captar a essência do que está representado, o seu simbolismo, o seu significado, e não a representação realista de objetos, pessoas ou temas que, mui-tas vezes, interessam sobretudo pelos conceitos que representam. Não sei se me fiz entender.

– A opção por não representar o rosto não tem que ver com o facto de não existirem imagens do rei? – insis-tiu o repórter.

– Não – continuou o artista –, há imagens que, sem serem da época, são bastante credíveis do aspeto provável do rei. Além disso, há o jacente, ali no mosteiro. O problema não está aí. As épocas e os homens têm manei-ras diferentes de encarar os mesmos assuntos. Olhe, vou contar-lhe uma história. Em 1972, quando foi adju-dicada a estátua de D. Sebastião para Lagos, eu era assistente dum escultor que fez parte do júri de seleção dos vários projetos apresentados, pelo que assisti às discussões que levaram à escolha do projeto de João Cutileiro. Em confronto estava um projeto que retratava D. Sebastião, tal qual apa-rece na obra do pintor Cristóvão de Morais, que está no Museu de Arte Antiga. O historiador da arte que fez a defesa do projeto advogou vee-mentemente a representação realista

dizendo qualquer coisa como: «Aqui-lo que admiramos nas esculturas da Grécia antiga é a sua capacidade de representar o natural, a que eles chamavam “mimesis”, isto é, a cópia do real. Esta beleza que sentimos na representação naturalista está sem-pre a reaparecer na história da arte, mesmo quando pensamos que está morta, extinta e que as suas cinzas se perderam nos tempos passados, como parecia que tinha acontecido no longo período medieval. Aí, não interessava o real, terreno, mas sim o divino, su-praterreno. A imagem interessava só como símbolo do que lá não estava. Na Renascença, reapareceu a “mime-sis”, qual Fénix inextinguível, a que eles chamavam “tirar polo natural”, e o mesmo acontece de cada vez que parece que o artificialismo simbólico se vai impor». A sua exposição, que pretendia demonstrar que a repre-sentação realista era mais recorrente, historicamente, e mais compreendida pelas pessoas – como parece que as vossas reticências ilustram – cavou fundo no grupo de decisão.

– Mas, afinal, ganhou? – interveio o repórter.

– Não ganhou porque o meu mes-tre fez uma exposição não menos brilhante, em que defendeu que o rea-lismo genuíno não existe, que mesmo o celebrado David de Miguel Ângelo tem proporções alteradas para real-çar certos simbolismos – uma mão direita enorme, e logo suficientemente possante para liquidar Golias – e que vivemos rodeados de significantes, desde a linguagem à política. Hoje, temos em Lagos um D. Sebastião que é muito expressivo, sem ser realista. Com a sua enorme cabeleira de pedra

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rosada e os seus olhos deslumbrados, parece mais um menino ingénuo e sonhador – que é o que na verdade foi – do que o combatente que a des-medida armadura e o enorme elmo a seus pés podiam sugerir. Guerreiro de brincar, ele parece fantasiar talvez em repetir os feitos heroicos de um Da-vid, derrubando filisteus, desta vez os mouros de Marrocos. Não podia ser mais ilustrativa da postura mental de D. Sebastião.

– Então, quer dizer que tudo o que realmente interessa lembrar de D. Moniz e o carateriza está represen-tado nesta sua escultura, mesmo sem olhos nem nariz?

– Exatamente! Estes são os carateres com que se pronuncia D. Moniz.

Não sei se o repórter ficou con-vencido, mas isso também não se lhe exige. Fiquei, todavia, com curiosidade de ler o que iria escrever e se o que mestre Bretão tinha tentado explicar conseguiria chegar ao grosso da po-pulação que não tinha estado presen-te.

Na verdade, não encontrei o jornal local no café que frequento, mas sur-preendi uma conversa do Sr. Albano, dono do café, com um vizinho que, por ter estado também na inaugu-ração, tinha formado uma opinião sobre o assunto.

– Mas você diz que aquilo está bem feito? – protestava agastado o Sr. Albano.

– Um espetáculo! Veja bem, Sr. Al-bano, o rei D. Moniz está como está porque viveu na Idade Média, e nessa altura faziam-nos assim, sem nariz. Se vir bem, já os Romanos não punham nariz aos imperadores. Basta ver os de Conímbriga! E na mesma está o S. Sebastião de Lagos que foi retratado sem nariz antes de ir combater os Filisteus, os das flechas. Foram der-rotados, mesmo tendo do lado deles a Félix, que acho que era uma águia terrível, mas que ficou conhecida por “pollo ao natural”, depois da batalha. Parece que o que valeu foi a manápu-la do Miguel Ângelo para esganar o Golias, que era um grande narigudo. Mas nem o nariz lhe valeu! Está a perceber, Sr. Albano?

***

(Nota: Ainda que baseada em escul-turas reais, esta é uma obra de ficção.)

Joaquim BispoPortuguês, reformado, ex-técnico da televisão pública, licenciado tardio em História

da Arte. Alimenta um blogue antiamericano desde o assalto ao Iraque e experimenta a escrita de ficção desde 2007. Integra várias coletâneas resultantes de concursos lite-rários dos dois lados do Atlântico e colabora na revista Samizdat desde o número 7.

Contacto: [email protected]

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34 SAMIZDAT outubro de 2013

Rafael F. Carvalho

IEu sou o amor, dele.

IIDele, que endereça palavras para

mim. Dele, que, quando quer amor, sou a quem ele se dirige. Dele, que pensa em mim. Dele, que me ama. Retribuo com igual intensidade tudo o que ele faz. Não sinto vergonha em dizer dele, que é o meu homem; deito na cama dele e toda ela já é normal, como se fosse minha. Sorrio com o jeito atrapalhado, excessivo, dele. Sei pouca coisa de antes, só sei, dele, depois de mim.

IIITenho a chave da casa dele e carre-

go-a com certeza. A chave, dele, fica junto das minhas chaves (ele sabe o que cada uma abre). Eu amo ele. Já amei outros mas amá-lo tem outro significado. Há vezes em que ele é confuso, outras, correto. Eu sei ouvi-lo, sei falar com ele. Ele escuta o que eu digo.

IVEle me ama. Ele beija meu rosto.

Ele o cobre com beijos, dele; tenho de aguardar ele terminar. Ele demora. Ele gosta de tocar em mim. Ele demora

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rafael F. CarvalhoAutor do livro A Estante Deslocada, é paulistano, nascido em 27 de Fevereiro de

1978. Foi publicado em antologias de novos escritores e em jornais universitários, e é formado em Letras pela Universidade de São Paulo.

tanto que eu durmo, não por tédio; por ele descansar minha cabeça. Dur-mo um sono pesado, de sonhar longe. Acordo com a presença dele, de seu corpo, descansado por ter tocado em mim. Descansada pelas mãos, dele, viro para ele, e amo.

VFazemos companhia um para o

outro. Dele, eu tenho um adversário feroz, que não deixa eu ganhar. Só se eu ganhar com mérito, dele. Ele não gosta. Da mesma maneira que ele gosta de me vencer. Ele provoca sem parar e eu discuto as ideias, dele, e as minhas. Algumas vezes chegamos ao consenso; outras, peço com ênfase para que ele se cale. Seus argumentos seguem certa linha e é fácil reconhe-cer, as opiniões, dele.

VIQuando quero conversar, ele escu-

ta, pergunta as coisas para mim, ele dá palpites. Ele elogia meus cabelos, minhas roupas, ele quer sempre que eu esteja bonita, não só para ele, mas, para mim, mesma.

VIINos esbarramos, nos trombamos,

nos acotovelamos, nos abraçamos. Meu corpo bate com o corpo, dele.

Por mais que ele toque em mim, dizendo que sabe do meu corpo, com afirmação, seu corpo, bem assim, está decorado por mim. No pé direito ele tem uma marca. Na mão direita, ou-tra. Eu conheço-as, dele.

VIIIEle gosta de sair, beber cerveja.

Ele gosta de dançar, mesmo mal. Ele insiste para que eu dance com ele. Eu danço, dançamos razoavelmente. Ele ouve música, ele sempre está ouvindo música, sempre alto. Tenho de abai-xar o volume para conversar com ele. Ele tem livros, vários livros. Ele faz questão que eu os pegue empresta-dos. Dias depois ele começa a cobrar pelos livros. Quer saber se eu os li, o que eu achei, quando vou devolver. Sem eu pedir ou esperar, ele declama poemas, para mim.

IXEle também fica em silêncio. Às

vezes ele acorda assim. Ele não fala muito durante o dia. Pergunto se ele está bem, o que aconteceu. Ele res-ponde que só está quieto. Ele fica sem falar muito, ele não me abraça o tanto que abraça. Mas eu sei como proce-der. Logo ele vem para ficar comigo. Basta apenas um toque, nele, e aos poucos, ele devolve, o que é, para nós.

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36 SAMIZDAT outubro de 2013

Espere até eu morrer pra você pensar em si mesma.

Depois de um tempo calada, após nossa conversa/discussão, ela despeja a frase, sem emoção, como fosse um aviso.

Tenho uma leve vertigem. Ela está entregando os pontos, posso sentir. Apesar das divergências em nossos pontos de vista, ela já não ex-põe seus argumentos com veemência, e eleva a voz inúmeras vezes – um recurso que sempre julgou desneces-sário.

Sem saber o que dizer, apenas a observo. Ela desvia o olhar – outro si-nal. Parece cansada; mais do que isso: angustiada. Não me lembro de tê-la visto assim antes, mesmo nos momen-tos mais duros e incertos.

Imagino – sem saber de

verdade – como deve ser difícil para ela estar privada de uma vida normal. Já a vi passar por todos os estágios de emoção, até a letargia, mas aque-le tom de voz não se assemelha com nada que tenha ouvido sair de sua boca nesses anos. Ela parece estar, simplesmente, se... resignando. O que posso fazer?

Sem entender todas as implica-ções posteriores daquele comporta-mento, observo seu corpo inerte, ali-nhado geometricamente naquela cama onde passa ao menos dezesseis horas por dia – as outras oito, sentada em uma cadeira especial. Com seus um metro e oitenta e parcos cinquenta e cinco quilos, não passa de uma cópia deprimente de mim, não posso deixar de pensar.

Nem sei quanto tempo se

Rodrigo Zafra

uma VidaConto

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rodrigo zafraNasceu em Santos (SP) em 1984. Formado em jornalismo pela UniSantos, é escritor

e roteirista.Em cinema, participou como coprodutor do curta-metragem Contra Mão; possui

três roteiros de curtas produzidos e, atualmente, escreveu o curta inédito Holerite – Documentário sobre o jovem professor.

Desde 2009 vem publicando contos em antologias literárias, por editoras, como a Andross e a Geração Editorial, e por concursos literários nos quais foi selecionado, como o 2º Concurso Internacional de Contos Vicente Cardoso e o 3º TOC 140, da 8ª Festa Literária Internacional de Pernambuco. Acaba de publicar, gratuitamente e em formato digital, seu primeiro livro – Um dia na vida (contos, 2013), do qual Uma Vida faz parte.

Blog: rodrigozafra.blogspot.com.br

passou desde a última frase quando ela dispara novamente:

Viver umas pelas outras... É isso o que as pessoas fazem: pôr a vida do outro na frente da sua.

O mesmo tom. Ela não quer resposta. Fecha os olhos com força, como quem sente dor, mas na verda-de quer evitar que as lágrimas – que já lhe percorrem as maçãs do rosto – caiam. Me aproximo e passo deli-cadamente o dedão sobre a área mo-lhada. Ela abre os olhos e me encara. De um jeito que só nós duas sabemos; que só irmãs compartilham, mesmo que estejam sozinhas, como agora.

Eu compreendo. Um aperto no coração se faz

instantaneamente. As frases começam a fazer efei-

to sobre mim. Sinto todo o peso que carrego em minhas costas, e ele se faz muito maior do que o julgava. Pela primeira vez em muito tempo penso na minha vida. E isso me assusta. Não a possuo mais – ao menos a parte em que me preocupe, exclusivamente, comigo mesma. Todas as atenções se

voltaram para minha irmã desde o acidente, ao passo que meus objeti-vos e necessidades foram relegados a segundo plano.

Aquele torpor é quebrado pelo barulho do interfone, que vem anun-ciar a chegada da enfermeira para o turno da noite. Só então me dou conta de que preciso ir, e me despeço sem palavras da minha irmã. Ela sorri levemente, levantando o canto da boca. Por um instante, ela volta a ser aquela menina cheia de energia que tinha tanta coisa para viver.

Ao sair, passo pela enfermeira – uma senhora distinta. Nos cumpri-mentamos. Seu rosto me lembra o de uma estátua de cera, mas sinto que algo a incomoda... Deixo a impressão se dissipar no ar e sigo meu caminho.

Naquela madrugada, o telefone toca.

Ela se foi. Naquela voz, serenidade. Sobre

meus ombros, alívio. Sob meus pés, o chão se abre.

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38 SAMIZDAT outubro de 2013

Japone Arijuane

a história da auroraConto

http://www.flickr.com/photos/infomatique/4734079533/

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Não se pode pisar numa flor sem murchá-la,

por mais espinhos que tenha.(Japone Arijuane)

As manhãs eram calmas em si, frias na sua vastidão; a aurora estendia-se vagamente e zumbin-do terrivelmente a cacimba que ia espreguiçando-se até por volta do meio-dia. Nós éramos dois, dois inquilinos, eu e um primo meu. Partilhávamos um cubículo, um daqueles de faltar ar, pão e tudo; pela simplicidade e falta de me-didas do lugar, vivíamos fazendo da vida um rascunho. O quarto localizava-se num interior de um quintal cuja casa principal era grande e nela vivia a D. Fátima e a sua macaiaia, uma espécie de cria-da. Tia Fátima, como a chamava a serviçal, era uma mulher vivida, de carnes ofegantes e carapinhas a se esbranquiçarem nas tão desenras-cadas tranças feitas por sua presta-tiva menina cujo nome era Aurora. Tinha uma certa astúcia fingida e um sadismo maníaco. Tratava a Aurora como se de uma rival se tratasse. Às vezes a vida põe-nos à prova de coisas que jamais ima-ginamos acontecer. E quando isso acontece, difícil é entender a mo-tivação dos protagonistas. Aque-la mulher, tão mulher que outra coisa, era suposto que mais cari-nhosa fosse, não só pelo carácter primeiro das mulheres, mas pela idade, e nada disso era! É frequente

olharmos tragédias de outrem como comédia para nós, como se nunca poderá acontecer-nos.

A vida era, para a Aurora, um Carnaval de tormentos; onde o sofrimento aparecia feito música, uma melodia quotidiana tocada nas palmas alheias e dançada por ela de maneira eufórica. Essa a máscara da vida, ela nunca despiu até a nossa chegada naquele sítio. Vivia-lhe o mito e a sua caverna; para quem nunca viveu, impossível é acreditar algo, duvidava até da sua existência. Assim ia, incrédula, por vezes desnecessárias, cumprir os chamamentos que se ouviam por toda hora e toda parte da casa. Vivia ignorando o bom e belo; para ela, a vida era aquilo e nada mais.

A moça já foi por muitas e lon-gas nossas noites mal passadas, o motivo de conversa.

Pela fisionomia, via-se uma tris-teza coagulada no rosto; duas man-gas verdes a furarem-lhe o peito; pela forma como era deixada cui-dar-se, difícil era desenhar beleza no corpo, mas via-se à espreita um futuro traseiro que endireitava-se nas ancas e umas futuras pernas de cativar boleia, que em confor-midade atreviam-se. Mas, acima de tudo, uma criança, tão criança e trabalhosa, tão trabalhosa que seus direitos todos transformavam-se em deveres.

Era como sirene para nós; mal que ouvíamos qualquer que fosse o

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barulho lá fora, deduzíamos a lida da Aurora. D. Fátima sua suposta tia que na realidade caberia melhor se fosse dona, patroa ou uma outra qualquer nomenclatura que fosse de superioridade, fingia ser boazi-nha para connosco e tentava sem sucesso puxar dedos de conversa; mas nem eu, muito menos meu companheiro, cedia-lhe intimida-des. Uma dessas suas tentativas de traçar laços veio ela na companhia da Aurora nos nossos aposentos. Antes mesmo de abrir a boca eu dei sinal ao meu companheiro, se a renda do mês já havia sido paga; meu primo, o encarregado para os tais pagamentos levantou o polegar, sinal que me deixou, não só alivia-do e simultaneamente preocupado; se havíamos pago a renda, a que devemos a honra? Mas pelo sem-blante decifrava-se uma conversa de amolecer qualquer coração.

– Como vão, meus queridos in-quilinos?

Nós respondemos na cortesia modesta dos seres humanos, que estávamos bem; mas ambos, nós e elas, sabíamos que na presença dela, nunca estaríamos no tal esta-do; como é óbvio não há nenhuma amizade que seja, entre dono e in-quilino; e ainda mais quando esta dona falta-lhe benevolência. Depois da resposta ficámos boquiabertos; quando fitei o rosto infantil enve-lhecido da Aurora, tornei-me mais revoltoso; mas mantive-me cabis-baixo para não mostrar a raiva que me fatigava no fundo dos olhos.

– Olhem, eu vim aqui pedir para vocês fazerem um pequeno traba-lho para mim…

– Trabalho? Qual? Respondeu meu companheiro de teto e ar. Pois eu; pela forma como estava apre-sentada a menina, não tive forças suficientes para esboçar uma pala-vra qualquer que fosse. A D. Fátima prontificou-se a explicar o peque-no trabalho, tagarelou tanto, narrou como era bom o seu coração e mau o da sua macaiaia. Descrição essa que embriagava o meu agasta-do estado; é engraçado como o ser humano é egoísta, fui pensando; e pensando como é que uma mulher pode tratar assim uma criança que diz ser sobrinha sua? Antes mesmo que ela começasse a pormenorizar o que chamava de má educação e fracassos da pequena menina ao seu lado, ganhei forças que… não sei donde e atrevi-me:

– Vai direito ao assunto, Dona Fátima…

– Está bem!, eu quero que vocês ajudam-me a educar esta menina!

– Tem problemas de alguma matéria na escola? Disse eu, como havia-me parecido um desses dias em que vi-a com uma pasta seme-lhante à que meninos e meninas na idade dela levam à escola.

– Que escola qual quê? Pá! Essa cabra pode estudar para quê? Para ser o quê? As palavras daquela senhora cortaram-me a respiração; foram como uma sentença em que condenavam-me inocentemente a

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Japone arijuaneNome oficial Japone Matias Lourdel Caetano Agostinho, Membro fundador do Mo-

vimento Literário Kuphaluxa, editor e colunista da Revista Literatas. Além de Poeta é prosador, Romancista, Ensaísta e Rapper. Zambeziano. Formado em Ciências de Comunicação, habilidades em Publicidade & Marketing, na Escola Superior de Jorna-lismo.

uma pena perpétua. Como podia eu assistir a tamanha cobardia; realmente estava no lugar errado e com a pessoa errada, e na hora certa; pois, educação que é educa-ção quem precisava era mesmo a D. Fátima. E eu estava apto e pron-to para administrar essa matéria e ensinar-lhe o bê-á-bá da vida.

A palavra “meu Deus” saiu-me pela boca, como se tivesse um; repliquei, cuidadosamente para ver se falava algo que mantivesse a conversa.

– Ela não estuda? Eu pensei que ela… afinal como? Como que a senhora…. Parei e pensei. Me-lhor pensar antes de falar, assim evitam-se tragédias.

– Estudar o quê? A senhora o quê? Ora bolas! Vim pedir vossa ajuda de educar essa cabra, não a vossa opinião!

– Então diz: o que queres, que nós façamos? Disse meu primo, num tom muito alto, como se o pedido dela fosse uma ordem.

– Eu quero que, vocês como são homens, ajudem-me a amarrar essa cabra aqui, ali na varanda para não sair!

– Quer o quê?Lembro-me que esta última per-

gunta fizemos em coro. Do resto, como é resto, não me lembro. Mas agora sei, pelo meu primo, que pas-sámos numa espécie de julgamento, num tribunal local; porque, como contou-me também, meu primo, eu havia espancado a D. Fátima, e entrei numa crise psicológica, que deixou-me por dois meses sem me-mória. Como é óbvio saímos da-quela dependência e a menina Au-rora ganhou uma independência, agora vive num orfanato. Quem me dera um dia desses poder visi-tá-la, pois continuo de cama, mas saí do coma! Mas sinto um alívio, e por mais que eu tivesse morri-do, morria com uma consciência tranquila e com o sentimento de ter feito valer a minha vida. É triste ser mau!, mas, mais triste ainda é ver a maldade e não poder fazer nada para evitá-la.

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Aline Viana

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Eu deixei minha mãe ganhar aque-le dia. Ela tinha me feito pão frito no café e nem era domingo, dia em que o seu Luiz, da padaria, nos dava o que não vendia até o meio-dia. Ela me levou até a Praça da Sé e pediu que eu a esperasse numa rua que tem uma livraria numa esquina, enquan-to ela iria numa loja ali perto vender uns brincos.

Depois eu descobri que tem sim numa rua pra baixo várias lojas onde se compra e vende peças de ouro e prata, mas mamãe não devia ter nada

daquilo pra vender. Ela não roubava. Acho que ainda não rouba.

Eu queria ir junto, mas minha mãe disse que lá não podia levar criança, que era pra eu esperar quietinha até ela voltar. Ela tirou o relógio do braço, prendeu no meu e disse que iria levar só uns minutinhos. Que eu podia conferir no relógio.

Se ela deixava o relógio comigo como é que ia poder voltar nos mi-nutinhos? E logo a minha mãe que esquecia a hora de almoçar, de me dar banho? Até a hora de me buscar

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na casa dos outros minha mãe vivia perdendo.

Sabia que ela ia me esquecer ali. Da primeira vez ela ia me esquecendo no mercado. Foi a mesma coisa. Ela pediu para eu esperar, que voltava já. Fez umas compras e, quando eu vi, lá ia ela embora sem mim. Corri pelo estacionamento, atravessei a rua sem olhar pros lados, tomei um monte de buzinada, quase tropecei por causa dos chinelos na lombada, mas conse-gui pegar na mão dela quando ela já ia chegando na escadaria que dava no ponto de ônibus.

O susto que ela tomou! Me deu um abraço que quase me esmagava, cho-rou, pediu desculpas, mas na outra semana ela me esqueceu de novo. Na igreja grande em Santo Amaro. Ela entrou numa fila pra tomar uma bên-ção junto com uma porção de gente. Colei o olho nela e fiquei ali sentada no quinto banco da segunda fileira contando da porta da direita. A fila era tão grande que nem vi quando o pastor a abençoou. Fiquei esperando ainda quase até escurecer, mas ela não voltou.

Pensei em pedir ajuda pra algum obreiro, mas achei melhor procurar eu mesma. Ele não devia nem conhe-cer a mamãe. Quando cansei de caçar ela naquela multidão, fiquei sentada na escada porque dali conseguiria ver quando ela saísse. Depois de um

tempo lembrei que tinha outras duas escadas. Uma irmã acabou me vendo ali, quis saber cadê a minha mãe e depois onde eu morava, e perguntan-do aqui e ali conseguiu me levar de volta pra casa.

Quando cheguei, ela já estava lá. Chorando e lendo a Bíblia. Ganhei um abraço forte, um monte de beijos, uma bronca por ter me perdido dela e o resto da pipoca que ela disse que comprou pra mim na igreja.

Teve a vez do metrô, da rodoviá-ria de Santos, daquele lugar onde se procura emprego no bairro dos ja-poneses… E tem vez que eu nem lembro. Ela ia me esquecer. Não era possível que ela não lembrasse que me esquecia toda vez. Tem dias que acho que a única coisa que mamãe não esquecia era de me esquecer.

Pedi para ir junto de novo, só para ela não perceber que eu já sabia o resultado daquele nosso jogo. Só que comecei a chorar conforme ela ia ganhando distância. Eu lembro. Até hoje. Da sua calça jeans manchada de café no joelho, da bolsa bege e marrom com o chaveiro do Mickey pendurado no zíper, do cabelo dela castanho até o ombro. Eu jurei. Não vou esquecer. Nada.

aline Viana31 anos, é paulistana, jornalista, tia do Tiago, filha da Zilma e do Orlando, e namo-

rada do Fabio. Cansada de tanto quem, o quê, quando, onde, como e porque resolveu entrar em uma oficina literária de crônicas. Foi um santo remédio para recuperar a saúde de seus textos. Se o diagnóstico está correto, é possível checar nos blogs: http://vidasetechaves.wordpress.com e www.coletivoclaraboia.com.br. Novos pareceres são sempre bem-vindos.

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Carlos Eduardo Paulino Murta Café

Ela, despindo-se na noite

Conto

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Arisca, sopra um manto de aromas macio num alinhar de fendas vermelhas pela neve. Banhando-se em lições de boticário, alisa a camada inflamada sem nela encostar. Coberta de pétalas translúcidas, acalenta alunos desavisados que, tremulantes no escuro, se tateiam. Plantando miradas como fios de rio marulhando doces frases, investe penas a colo-rir, com tintas várias, papiros envolvendo pedaços de chão. Assovios tomam conta dos ventos imunes a qualquer violência, intimamente expandindo a presença de amores no intangível. O fogo, no cen-tro de cantigas infantis, corta a noite e preserva inocência em labaredas ancestrais. Dentro do azul, carícias agarram a vida, entrelaçando resíduos de dores; liberando seiva, tornam imagens úmidas, abrindo caminho no insondável. No prado, fluindo um sono luminoso, ela acolhe afeição, enquanto o magma num balanço escreve no céu.

Carlos Eduardo Paulino murta CaféNasceu em Belo Horizonte, onde vive, em 1981. Tem contos e poemas publicados em anto-

logias e escreve regularmente no blog literário A Rocha, A Água (arochaaagua.blogspot.com.br).

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Cinthia Kriemler

Vai tricô e vem meiaConto

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Paula Cristina aprendeu tricô para se acalmar. Não aguentava mais de tanta ansiedade com tudo. Um pacote atra-sava no correio, a fila da padaria não andava, a empregada faltava, o marido atrasava para o cinema e lá estava ela, comendo o canto da boca, batendo a ponta do pé no chão. “Você vai ver, é tiro e queda”, insistiram a mãe e as amigas. “Acalma que é uma beleza”. Mas não era fácil. O ponto dela, muito aper-tado, arrebentava a lã. E quando ela er-rava, não tinha volta; ninguém desfazia a força daqueles pontos estrangulados. Ganhou o apelido de Mão de Ferro. E, junto com o apelido, uma montanha de conselhos de como deveria tricotar.

Sentada em uma poltrona da sala, aproveitando o sol da manhã, pegou o trabalho de tricô guardado no saco de aniagem alvejado, onde se lia, em letra bordada, “Trabalhos Manuais”. Jun-to com o novelo de lã e as agulhas, a revista com instruções, de onde saltou o papel com a letra da mãe: Manter a mão firme, mas não forte. Enfiar com suavidade a agulha na lã. Usar o dedo para enrolar a lã na pontinha da agu-lha. Puxar a agulha de modo a que a lã passe pelo meio da laçada, formando um novo ponto. Não apertar demais. Fa-zer a mesma coisa com o ponto meia... Opa! Ponto o quê? Que diabos... Então, não é tudo a mesma coisa? Agoniada, ligou para a mãe. Passados o oi, querida e o que saudade (como se não tivessem se falado na véspera), perguntou de supetão:

— O que é ponto meia?As explicações do outro lado da linha

a irritaram tanto quanto o tom debo-chado da mãe. Como assim, enfiar ao contrário e fazer a mesma coisa por trás? Papo esquisito. Mas não, não podia ser. A mãe sempre se dera ao respeito, não ia maliciar assim, ainda mais com

http://www.flickr.com/photos/lucas-billou/5391668174/

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ela. Desligou. Não tinha entendido nada, mas não era mulher de desistir. Muito menos mulher de contar à mãe que não tinha entendido nada. Decidiu fazer o que sempre fizera na vida, desde cedo: aprender sozinha.

Aos 15 anos, começara a fumar. Mas depois de passar um ano baforando escondida no quarto, no banheiro do colégio e em outros lugares escondidos, alguém lhe dissera: ”Se você não traga, pra que é que fuma?”. Como assim?! Ela tragava, sim! Tragava muito! Não...? Não tragava nadinha? Que droga! E como se faz para tragar? Hãhã... Hãhã... Sei... Chupar o cigarro com força e engolir de uma vez a fumaça. Mas como as-sim... engolir? Engolir a fumaça não é coisa de maconheiro? Eu não sou da turma da maconha, não senhor, e não senhora. Ah, entendi! Inalar e exalar na mesma hora. Que jeito bonito de falar... Mas é uma coisa meio besta, né? Se é pra soprar, pra que chupar? Como? Ok! O prazer, a sensação no peito e na ca-beça... Entendi... Tem certeza de que não vai mesmo fazer o mesmo efeito que um beck, né...? Burra? Eu? Que é isso! Apelou, perdeu! Eu só queria ter certe-za. Porque eu não curto maconha. Bem diferente? Valeu, então. Vou aprender a tragar hoje à noite e não se fala mais nisso. Como é que é? Tosse? Eu não vou tossir coisíssima nenhuma! Nem pensar!

Passou uma noite inteira aprendendo a tragar. Engasgou, sentiu a água escor-rendo dos olhos que ardiam, sufocou, teve ânsia de vômito, mas não tossiu. Bem, pelo menos alto. A cada vez que a vontade vinha, respirava fundo e afun-dava o rosto no travesseiro. Grunhidos. No máximo.

Mas qual era mesmo o propósito de contar essa longa história sobre fumar... Ah, sim! Para mostrar que Paula Cristi-na não é mulher de desistir. Não ela.

Desligando as lembranças, partiu para o computador. Google. Todas as respos-tas sempre estavam naquele Google sa-bido. Digitou na barrinha: “vídeos tricô ponto meia”. Coisa linda. De primeiro mundo mesmo. Na página aberta, links para vários filmetes do YouTube. Clicou no primeiro e voilà! Lá estavam as mãos da instrutora, mostrando como fazer. Armazenou o vídeo em Favoritos, colo-cou o notebook na mesinha ao lado da poltrona, pegou as agulhas e o novelo que tinha deixado sobre uma cadeira e apertou o play do vídeo. Algumas vezes. E digamos que algumas é apenas uma expressão. Amena.

Depois de espetar os dedos inúmeras vezes, convenceu-se de que aquele tal de meia era um ponto de merda. Nunca daria conta daquela coisa de “vai tricô e vem meia”. Aborreceu-se. Porque ela não era mulher de desistir. Não ela, que aprendera tudo sozinha, desde cedo.

Como quando perdera a virgindade, aos 20 anos, mais tarde que a maioria das amigas. O namorado insistia que ela precisava transar. Ela não queria. Negou uma, negou duas, negou três, até que, irritadíssimo, ele partiu para o deboche: “Você é virgem! Aos 20 anos! Hahahahaha!”. Ela era. Mas isso era segredo de Estado. O sangue ferveu. Transbordou, escorreu, tomou conta do cérebro dela como um vulcão frenéti-co. Por dentro. Por fora, Paula Cristina sorriu e devolveu a afronta: “Que nada, meu bem. É você que não me dá tesão”. Ofensa, briga, discussão e um desafio: “Se você não é mais virgem, então pro-va!”. Provou. Dias depois, encheu a cara na boate e chamou no canto do bar o carinha lindo-e-folgado-pra-quem-todas-as-amigas-da-faculdade-queriam-dar.“Ou você me ensina a transar ou eu não faço mais nenhum dos seus trabalhos de faculdade”. Ele riu. E ela não teve certeza de quem, entre eles dois, era o

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mais idiota. Sumiu do namorado: Hoje, não; febre, cólica, diarreia, bactéria, dor de ouvido, caxumba, amigdalite e vamos dar um tempo na relação. Apa-receu para o carinha lindo. Camisinha, pílula, dor, sangramento, cala a boca e continua... Assim, assim, desse jeito... Aí também?... Normal?... Humhum... Não para, não para.. Ai, meu Deus! Um mês. Inteirinho. Trinta dias de dor, perplexi-dade e glória.

Fim de semana, roupa nova, linda, sexy. Hora de acertar as coisas com o namorado no estaleiro. Oi, meu bem, quanto tempo. Quero te ver. Que sau-dade. Eu, transar? Não sei... Virgem? Tá doido? Está bem, vamos ver o que rola. Rolou. Sexo morno, sem graça. Pouca variação, pouca imaginação, criativida-de nem pensar. Terminou tudo com o namorado morno. E ficou sozinha por um tempo. Cheia de prática, sabedoria e tesão.

Sim. Esta história (ainda) é sobre o tricô de Paula Cristina. Ou deveria ser. Mas cara, dá um tempo! Who cares? Que falta de sensibilidade! Que culpa ela tem se não é mulher de desistir? Se ela gosta, desde cedo, de aprender tudo sozinha? Ou por acaso alguém pensa que tragar e transar são coisas mais fá-ceis de aprender que um tricozinho de nada? Calma gente!

Paula Cristina afastou as agulhas de si e suspendeu diante dos olhos o trabalho colorido que tinha sido imaginado para virar um suéter. Lã bonita. Cores boni-tas. Combinavam com o tom de pele do

marido. O que não combinava era aque-le ponto meia de merda. E a noite que já tinha caído lá fora, sem ela perceber. E ela não gostava de tricotar à noite.

Então, teve uma ideia. Que ela não era mulher de... Ah, isso já ficou cansa-tivo! Vamos aos fatos. E chega de encher linguiça. Primeiro, pesquisou no Google. E teve a certeza de que era um gênio. Buscou no quarto a filmadora do filho, ajeitou os cabelos, passou uma camada farta de Ruby Woo nos lábios carnudos, checou as unhas para ver se o esmalte, também vermelho, estava intacto, pigar-reou de leve para ajustar a voz, pegou novamente o tricô sobre a cadeira e deu início a uma gravação. Algum tempo depois, postava no YouTube o vídeo que, soube mais tarde, se tornou viral: Ponto tricô e ponto meia — Tudo o que você não deve fazer.

Feliz com o resultado, correu para o andar de cima. Banho de banheira relaxante. Lingerie provocante. Aquela noite, faria o carinha lindo-e-folgado-pra-quem-todas-as-amigas-da-faculdade-queriam-dar se lembrar de cada minuto de um certo mês inteirinho. Daqueles trinta dias de dor, perplexidade e gló-ria. Ia ser uma noite de vai tricô e vem meia. E que mão de ferro que nada! Mas, antes, Paula Cristina queria mos-trar ao marido como tinha aprendido a tragar.

Cinthia Kriemler

Contista, cronista e poeta. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca” (Editora Patuá, 2012). Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Mem-bro da Academia de Letras do Brasil, Seccional DF, do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Graduada e pós-graduada em Comunicação Social. Analista Legislativo na Câmara dos Deputados.

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Uma danação o consumia desde que soubera do tal satélite. A coisa que os homens tinham botado lá no céu ia despencar, ouvira no rádio da bodega do Simão no sábado em que aprovei-tara pra tomar uma carraspana e es-quecer a maldita vida que levava. De princípio, não compreendeu bem o que sucedia. Necessário que Dalemberte, letrado em cidade grande e professor naquele fim de mundo, explicasse o que se passava. “Pode cair em qualquer, lugar, até em sua roça, Zé” – sentenciou o estudado.

Voltou para casa bêbado e reflexivo.

Enquanto vencia a distância e o breu da noite até o sítio de onde tirava o sustento na lavoura de subsistência, ficou a matutar aboletado na carroça sobre a possibilidade do tal engenho destruir seus pés de feijão e mandioca, ferir um dos meninos ou Vicentina, com quem dividia a rede. Que mundo injusto, meu Deus. Tanta gente má para que o satélite varresse da Terra e gente honesta e temente a Deus, feito ele, cor-rendo risco. Podia bem cair lá naquela Brasília da qual haviam lhe falado que a roubalheira imperava, ou mesmo na cabeça do atual prefeito, um poltrão.

Zulmar Lopes

a Salvação da Lavoura

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Conto

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Deus podia guiar ainda o negócio para despencar lá na terra dos gringos que haviam inventado a moda. “Você acha que o negócio vai bater justamente nos Estados Unidos, Zé? Larga de ser trouxa, homem! Eles vão dar um jeito de desviar” – havia dito o professor. Zé não sabia onde ficavam os Estados Unidos e tão pouco desconfiava que o planeta fosse composto de dois terços de água e que as chances de alguém se ferir com o satélite eram diminutas. O desconhecimento era justamente o que o assustava.

Naquela madrugada, a despeito da bebedeira, não pregou olho. Passou os dias consultando os céus para que, ao menor sinal do maldito, tentasse ao me-nos salvar a família. Passaram semanas. O sábado era gasto na cachaça e coló-quios com Dalemberte que, ou invés de tranquilizá-lo, parecia divertir-se com as expressões terrificadas que a face do matuto esculpia. “Pode ser radioativo, Zé.”

Zé não sabia o que era radioativi-dade, mas conhecia o medo, temia o desconhecido.

Homem fechado, não revelava a Vicentina o motivo de suas preocupa-ções. Desconfiava a mulher que, sempre de olho no céu, o marido ansiava uma boa temporada de chuva para garantir sua plantação. A roça já andava mesmo de mal a pior. O sol castigava. Resolveu fazer uma novena forte para que São

Pedro mandasse dos céus a salvação da lavoura.

Certa noite despertaram com um clarão iluminando a roça e um estron-do varando os ouvidos. Zé, acompa-nhado da mulher e dos meninos, cor-reu para o local. Um pedaço de metal retorcido, do tamanho de uma saca de feijão, jazia no solo rachado pela seca. Tranquilizou a mulher que acreditava ser um santo que houvesse caído de uma nuvem numa bola de fogo e es-perou que o objeto esfriasse por si só. Não podia gastar a parca água barrenta que ainda lhe restava no poço artesia-no.

Viviam afastados e, assim, ninguém percebeu o acontecido. Quando o caco do satélite finalmente esfriou, Zé e os meninos o colocaram na carroça e cobriram com uma lona. O mais velho foi com ele. Pegaram uma estrada e gastaram quase dois dias para chegar ao que mais aparentasse ser uma cida-de. Durante o percurso alimentavam-se de farinha e bebiam o necessário. Era dia de feira. Ele expôs sua merca-doria. Disse ser o tal satélite. Muitos duvidaram. Dos que creram, um dono de ferro-velho que pagou quinhentos contos pelo artefato. Zé e sua família viveram um mês do que se convencio-nou ser fartura naquele miserável lugar. Restavam as rezas para que, antes que a lavoura se perdesse, São Pedro man-dasse algo dos céus. Até mesmo chuva teria serventia.

zulmar Lopes

Carioca, jornalista, contista e aspirante a romancista, Zulmar Lopes tem um punhado de prêmios literários, a maioria de nenhuma importância. Membro correspondente da Academia Cachoeirense de Letras (ACL). Roteirista do curta de animação “Chapeuzinho Adolescente”. Em 2011 lançou o livro de contos “O Cheiro da Carne Queimada”. Finalmente concluiu o maldito romance cujo pano de fundo é o carnaval carioca e está na expectativa de que alguma editora incauta se atreva a publicá-lo.

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Lionel Mota

Perfume de mulherConto

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Lionel motaNasceu em Miracema, é designer gráfico e trabalha como diagramador no jornal

Extra, no Rio de Janeiro. Publicou, pela Editora Multifoco, os livros “O Gran Circo do (in)Consciente”, em 2009, e “A festa e outros contos enlameados”, em 2013. Costuma colocar alguns desenhos, contos e poesias em

https://www.facebook.com/ograncircodoinconsciente

Ela tinha cheiro de flor.

Não era cheiro de qualquer flor. Era um cheiro diferente, exótico. Nunca senti aquele cheiro, mas era de flor. Isso eu te garanto.

Ela entrava na sala e todo mundo olha-va pra ela. Homem, mulher, velho, criança. Todo mundo olhava pra ela. Nunca soube que perfume ela usava. Um dia, depois de termos dormido juntos, ela abriu uma bolsinha e tirou um frasco desses que só vemos em filmes e lojas caras e borrifou um pouco em cada lado do pescoço, mais um pouquinho entre os seios e depois pas-sou os pulsos na pele úmida. Tentei desco-brir qual era o perfume, mas ela só olhou pra mim e sorriu, do jeito enigmático dela, com aqueles olhos grandes e amendoados, e guardou o perfume na bolsinha, que era fechada à chave.

Aí, depois daquele dia, como se tê-la visto se perfumando tivesse quebrado um encanto, me desencontrei dela. Me trans-feriram de cidade e eu fiquei errando por portos quentes e úmidos por meses. Ela continuou a vida errante dela também. Cantando em cabarés e puteiros rio acima e abaixo.

Um dia, uns anos depois, eu estava num bar, tomando um copo de cachaça com os peões da companhia quando senti aque-le cheiro de novo. Tanto tempo depois e parecia que ela nunca tinha saído do meu lado. Levantei feito doido, joguei uma nota qualquer em cima da mesa. Dava pra pagar quase que a conta toda, que não sou de dever favor pra ninguém. Larguei tudo e fui atrás do cheiro.

Quando eu finalmente consegui alcan-çar a rua, só deu tempo de ouvir o tiro.

Pegou bem no peito dela. Bem no meio. Onde ela costumava passar perfume. Ela morreu sorrindo e estava muito diferente. Faltavam dois dentes na frente, na parte de baixo. A pele que eu conheci fresca e macia estava rachada feito o chão do sertão que bebia o sangue dela. Os olhos estavam afundados em olheiras azuis que a maquiagem não disfarçava. Até o corpo dela estava diferente, mais roliço, macilen-to. Ainda tinha algo de bonito, mas não era mais aquela beleza leve, que enfeitiçava os homens naquele cabaré onde depositei fielmente meu salário durante três meses.

Não resisti e enquanto o povo fazia uma bagunça em volta do assassino – um peão que achava que ela viva só servia pra es-posa dele – peguei a bolsa dela sem quem ninguém percebesse e voltei pro hotel. Queria, pelo menos no último momento dela, descobrir qual era o perfume que ela usava. Despejei a bolsa na cama. Duas no-tas de dez, amarrotadas e sujas, um pente, um lenço. A fotografia dela quando nova e um recorte encardido de jornal, com a foto dela, bonita como quando eu a conheci e... a bolsinha. Arrebentei a fechadura com o canivete e lá dentro, junto com três anéis de ouro falso e um par de brincos de pra-ta, o frasco de perfume. Vazio e sem nome.

A enterraram como indigente e sem perfume.

E eu nunca mais senti cheiro nenhum.

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tradução

Victor Hénauxtrad.: Joaquim Maria Machado de Assis

queda que as mulherestêm para os tolos

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ADVERTÊNCIA

Este livro é curto, talvez devera sê-lo mais.

Desejo que ele agrade, como me sai das mãos; mas é com pesar que me vanglorio por esta obra.

Falar do amor das mulheres pelos tolos, não é arriscar ter por inimigas a maioria de um e outro sexo?

Diz-se que a matéria é rica e fe-cunda; eu acrescento que ela tem sido tratada por muitos. Se tenho, pois, a pretensão de ser breve, não tenho a de ser original.

Contento-me em repetir o que se disse antes de mim; minhas páginas conscienciosas são um resumo de mui-tos e valiosos escritos. Propriamente falando, é uma comparação científica, e eu obteria a mais doce recompensa de meus esforços, como dizem os erudi-tos, se inspirasse aos leitores a ideia de aprofundar um tão importante exem-plo.

Quanto à imparcialidade que presi-diu à redação deste trabalho, creio que ninguém a porá em dúvida.

Exalto os tolos sem rancor, e se cri-tico os homens de espírito, é com um desinteresse, cuja extensão facilmente se compreenderá.

IIl est des noeuds secrets, il est des sym-

pathies.

Passa em julgado que as mulheres leem de cadeira em matéria de fa-zendas, pérolas e rendas, e que, desde que adotam uma fita, deve -se crer que a essa escolha presidiram motivos

plausíveis.Partindo deste princípio, entraram os

filósofos a indagar se elas mantinham o mesmo cuidado na escolha de um amante, ou de um marido.

Muitos duvidaram.Alguns emitiram como axioma, que

o que determinava as mulhe res, nes-te ponto, não era, nem a razão, nem o amor, nem mesmo o capricho; que se um homem lhes agradava, era por se ter apre sentado primeiro que os outros, e que sendo este substituído por outro, não tinha esse outro senão o mérito de ter chegado antes do terceiro.

Permaneceu por muito tempo este sistema irreverente.

Hoje, graças a Deus, a verdade se descobriu: veio a saber-se que as mu-lheres escolhem com pleno conhe-cimento do que fazem. Com param, examinam, pesam, e só se decidem por um, depois de veri ficar nele a preciosa qualidade que procuram.

Essa qualidade é... a toleima!

II

Desde a mais remota antiguidade, sempre as mulheres tiveram a sua que-da para os tolos.

Alcibíades, Sócrates e Platão foram sacrificados por elas aos pre sumidos do tempo. Turenne, La Rochefoucauld, Racine e Molière, foram traídos por suas amantes, que se entregaram a basbaques no tórios. No século passado todas as boas fortunas foram reservadas aos pequenos abades. Estribadas nesses exemplos, as nossas contem porâneas continuaram a idolatrar os descenden-tes dos ídolos das suas avós.

Não é nosso fim censurar uma

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tendência, que parece invencível; o que queremos é motivá-la.

Por menos observador e menos expe-riente que seja, qualquer pes soa reco-nhece que a toleima é quase sempre um penhor de triunfo. Desgraçadamen-te ninguém pode por sua própria von-tade gozar das vantagens da toleima. A toleima é mais do que uma supe-rioridade ordinária: é um dom, é uma graça, é um selo divino.

"O tolo não se faz, nasce feito."Todavia, como o espírito e como o

gênio, a toleima natural forti fica-se e estende-se pelo uso que se faz dela. É estacionária no pobre- diabo, que raramente pode aplicá-la; mas toma proporções desmar cadas nos homens a quem a fortuna, ou a posição social cedo leva à prática do mundo. Este concurso da toleima inata e da toleima adquirida é que produz a mais temível espécie de tolos, os tolos que o acadê-mico Trublet chamou "tolos comple-tos, tolos integrais, tolos no apogeu da toleima."

O tolo é abençoado do céu pelo fato de ser tolo, e é pelo fato de ser tolo, que lhe vem a certeza, de que, qualquer car-reira que tome, há de chegar felizmente ao termo. Nunca solicita empregos, aceita -os em virtude do direito que lhe é próprio: Nominor leo. Ignora o que é ser corrido ou desdenhado; onde quer que chegue, é feste jado como um con-viva que se espera.

O que opor-lhe como obstáculo? É tão enérgico no choque, tão igual nos esforços e tão seguro no resultado! É rocha despegada, que rola, corre, salta e avança caminho por si, precipitada pela sua própria massa.

Sorri-lhe a fortuna particularmente ao pé das mulheres. Mulher alguma resistiu nunca a um tolo. Nenhum

homem de espírito teve ainda impune-mente um parvo como rival. Por quê?... Há necessi dade de perguntar por quê? Em questão de amor, o paralelo a esta-belecer entre o tolo e o homem de siso, não é para confusão do último?

IIIEm matéria de amor, deixa-se o

homem de espírito embalar por estra-nhas ilusões. As mulheres são para ele entes de mais elevada natureza que a sua, ou pelo menos ele empresta-lhes as próprias ideias, supõe-lhes um coração como o seu, imagina-as capazes, como ele, de generosidade, nobreza e gran-deza. Imagina que para agradar-lhes é preciso ter qualidades acima do vulgar. Naturalmente tímido, exagera mais ao pé delas a sua insuficiência; o senti-mento de que lhe falta muito, torna-o desconfiado, indeciso, atormentado. Respei toso até à timidez, não ousa ex-primir o seu amor em palavras; exala-o por meio de uma não interrompida sé-rie de meigos cuidados, ternos respeitos e atenções delicadas. Como nada quer à custa de uma indignidade, não se conserva continuamente ao pé daquela que ama, não a persegue, não a fatiga com a sua presença. Para interessá-la em suas mágoas, não toma ares som-brios e tristes; pelo contrário, esforça-se por ser sempre bom, afetuoso e alegre junto dela. Quando se retira da sua presença, é que mostra o que sofre, e derrama as suas lágrimas em segredo.

O tolo, porém, não tem desses escrú-pulos. A intrépida opinião que ele tem de si próprio, o reveste de sangue frio e segurança.

Satisfeito de si, nada lhe paralisa a audácia. Mostra a todos que a ama, e solicita com instância provas de amor. Para fazer-se notar daquela que ama,

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importuna-a, acompanha-a nas ruas, vigia-a nas igrejas e espia-a nos espe-táculos. Arma-lhe laços grosseiros. À mesa, oferece-lhe uma fruta para co-merem ambos, ou passa-lhe misterio-samente, com muito jeito, um bilhete de amores. Aperta-lhe a mão a dançar e saca-lhe o ramalhete de flores no fim do baile. Numa noite de partida, diz-lhe dez vezes ao ouvido: "Como é bela!", por quanto revela-lhe o instinto, que pela adulação é que se alcançam as mulheres, bem como se as perde, tal como acontece com os reis. De resto, como nos tolos tudo é superficial e ex-terior, não é o amor um acontecimento que lhes mude a vida: continuam como antes a dissipá-la nos jogos, nos salões e nos passeios.

IVO amor, disse alguém, é uma jorna-

da, cujo ponto de partida é o sentimen-to, e cujo termo inevitável a sensação. Se é isto verdade, o que há a fazer, é embelecer a estrada e chegar o mais tarde possível ao fim. Ora, quem me-lhor do que o homem de espírito sabe parolar à beira do caminho, parar e co-lher flores, sentar-se às sombras frescas, recitar aventuras e procurar desvios e delongas? Um caracol de cabelos mal-arranjado, um cumprimento menos apressado que de costume, um som de voz discordante, uma palavra mal esco-lhida, tudo lhe é pretexto para demorar os passos e prolongar os prazeres da viagem. Mas quantas mulheres apre-ciam esses castos manejos, e compreen-dem o encanto dessas paradas à borda de uma veia lím pida que reflete o céu? Elas querem amor, qualquer que seja a sua natureza, e o que o tolo lhes ofe-rece é-lhes bastante, por mais insípido que seja.

VO homem de espírito, quando chega

a fazer-se amar, não goza de uma feli-cidade completa. Atemorizado com a sua ventura, trata antes de saber por que é feliz! Pergunta por que e como é amado; se, para uma amante, é ele uma necessidade, ou um passatempo; se ela cedeu a um amor invencível; enfim, se é ele amado por si mesmo. Cria ele próprio e com engenho as suas mágo-as e cuidados; é como o Sibarita que, deitado em um leito de flores, sentia-se incomodado pela dobra de uma folha de rosa. Num olhar, numa palavra, num gesto, acha ele mil nuanças impercep-tíveis, desde que se trata de interpretá-las contra si. Esquece os encômios que levemente o tocam, para lembrar-se somente de uma observação feita ao menor dos seus defeitos e que bastante o tortura. Mas, em compensação desses tormentos, há no seu amor tanto encan-to e delícias! Como estuda, como extrai, como saboreia as volúpias mais fugiti-vas até a última essência! Como a sua sensibilidade especial sabe descobrir o encanto das criancices frívolas, dos invisíveis atrativos, dos nadas adoráveis!

O tolo é um amante sempre contente e tranquilo. Tem tão robusta confian-ça nos seus predicados, que antes de ter provas, já mostra a certeza de ser amado. E assim deve ser. Em sua opi-nião faz uma grande honra à mulher a quem dedica os seus eflúvios. Não lhe deve felicidade; ele é que lha dá; e como tudo o leva a exagerar o benefí-cio, não lhe vem à ideia de que se possa ter para com ele ingratidões. Assim, no meio das alegrias do amor, saboreia ainda a embriaguez da fatuidade. Mas como, em definitivo, é ele próprio o objeto de seu culto, depressa o tolo se aborrece, e como o amor para ele não

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é mais que um entretenimento que passa, os últimos favores, longe de o engrandecerem mais, desligam-no pela sociedade.

VIO homem de espírito vê no amor

um grande e sério negócio, ocupa-se dele como do mais grave interesse de sua vida, sem distração, nem reserva. Pode perder nele algumas das suas qualidades viris, mas é para crescer em abnegação, em dedicação, em bonda-de. Suporta tudo daquela que ama sem nada exigir dela. Quando ela atende a alguns dos seus votos, quando pre-vine alguns dos seus desejos, longe de ensoberbecer-se, agradece com uma efusão mes clada de surpresa. Perdoa-lhe generosamente todos os males que lhe causa porque, muito orgulhoso para enraivecer-se ou lastimar-se, não sabe provocar, nem a piedade que enternece, nem o medo que faz calar. Oh! que in-ferno, se a má ventura lhe depara uma mulher bela e má, uma namoradeira fria de sentidos, ou uma moça de ra-bugice precoce!

Sofre então vivamente com a perfídia da mulher amada, mas des culpa-a pela fragilidade do sexo. A sua indulgência pode então con duzi-lo à degradação. Ele segue a olhos fechados o declive que o arrasta ao abismo, sem que a queixa, a ambição, a fortuna possam retê-lo.

O néscio escapa a estes perigos. Como não é ele quem ama, é ele quem domina. Para vencer uma mulher finge por alguns momentos o excesso de de-sespero e de paixão; mas isso não passa de um meio de guerra, tática de cerco para enganar e seduzir o inimigo. Logo depois recobra ele a tirania, e não a abdica mais. Para entreter-se nisso, tem

o tolo o seu método, as suas regras, a sua linha de con duta. É indiscreto por princípio, porquanto divulgando os favores que recebe, compromete a que lhe concede e ao mesmo tempo afasta as rivalidades nascentes. É suscetível pela razão, cioso por cálculo, a fim de promover estes proveitosos amuos, que lhe servem, a seu grado, para conduzir a uma ruptura definitiva, ou para exigir um novo sacrifício. Mostra uma cruel indiferença, indicando pouca con fiança nas provas de simpatia que lhe dão. Num baile, proibindo à sua amante de dançar, não faz caso dela, de propósito. Aflige-a com aparências de infidelida-de, falta à hora marcada para se encon-trarem, ou, depois de se ter feito espe-rar, vem, dando desculpas equívocas de sua demora. Hábil em semear a inquie-tação e o susto, faz-se obedecer à força de ser tirano, e acaba por inspirar uma afeição sincera à força de promovê-la.

VIIO homem de espírito, assustado com

o vácuo imenso, que deixa no coração uma afeição que se perde, só rompe o laço que o prende à causa de dilacera-ções interiores.

Como bem se disse, sendo preciso um dia para conseguir, é preciso mil para se reconquistar.

Mesmo no momento em que volta a ser livre: quantas vezes um sorriso, um meneio de cabeça, uma maneira de puxar o vestido, ou de inclinar o cha-pelinho de sol, não o faz recair no seu antigo cati veiro!

De resto, a mulher, a quem ele tiver revelado o segredo do seu coração, fi-cará sempre para ele como ser à parte. Não a esquece nunca.

Morta, ou separado, nutre por aquela

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que a perdeu longas sau dades. Persegui-do pela lembrança que dela conserva, descobre mui tas vezes que as outras mulheres por quem se apaixona só têm o mérito de se parecerem com ela. Dá-se ele então a comparações que o desvairam, que o irritam, que o põem fora de si, exigindo no seu trajar, no seu andar e até no seu falar alguma coisa que lhe recorde o seu implacável ideal.

E se é ele o abandonado, que de tor-turas que sofre!

Viver sem ser amado parece-lhe intolerável. Nada pode consolá-lo ou distraí-lo.

No caso de tornar a ver os sítios que foram testemunhas da sua felicidade, evoca à sua memória mil circunstân-cias perseverantes e cruéis. Ali está a cerca cheirosa, cujos espinhos rasgaram o véu da infiel; aqui, o rio que a me-drosa só ousava atravessar amparada pela sua mão; além está a alameda, cuja areia fina parece ter ainda o molde de seus ligeiros passos. Contempla na ja-nela as longas e alvas cortinas, no peito-ril os arbustos em flor, na relva a mesa, o banco, as cadeiras em que outrora se sentaram.

É possível que ela tenha mudado tão de repente? Pois não foi ainda ontem que de volta de um passeio ao bosque, lhe enxugou o suor da testa, e que se prendia em doce e estranho amplexo?...

Hoje, nem mais doçuras, nem mais apertos de mão, nem mais dessas horas ébrias em que todo o passado ficava esquecido! Ele está só, entregue a si mesmo, sem força, sem alvo: é o delírio do desespero.

O tolo está acima dessas misérias. Não o assusta um futuro prenhe de qualquer inquietação aflitiva. Sempre acobertado pela bandeira da inconstân-cia, desfaz-se de uma amante sem luta,

nem remorsos; utiliza uma traição para voar a novas aventuras. Para ele nada há de terrível em uma separação, por-que nunca supõe que se possa colocar a vida numa vida alheia, e que fazendo-se um hábito dessa comunidade de existência, faz-se pouco novamente sofrer, quando ela tiver de quebrar-se.

Da mulher, que deixa de amar, ele só conserva o nome, como o veterano conserva o nome de uma batalha para glorificar-se, ajun tando-o ao número das suas campanhas.

VIIIHá uma época em que custa-se

muito a amar. Tendo visto e estu dado um pouco a mulher, adquire-se uma certa dureza que permite aproximar-se sem perigo das mais belas e sedutoras. Confessa-se sem rebuço a admiração que elas inspiram, mas é uma admira-ção de artista, um entusiasmo sem ter-nura. Além disso, ganha-se uma pene-tração cruel para ver, através de todos os artifícios de casquilha, o que vale a submissão que elas ostentam, a doçura que afetam, a ignorância que fingem. E prenda-se um homem nessas condições!

De ordinário, é entre trinta a trinta e cinco anos, que o coração do homem de espírito fecha-se assim à simpatia e começa a petri ficar-se. É possível que nele tornem a aparecer os fogos da moci dade, e que ele venha a sentir um amor tão puro, tão fervente, tão ingê-nuo como nos frescos anos da adoles-cência; longe de ter perdido as pertur-bações, as apreensões, os transportes da alma amorosa, sente- os ele de novo com emoção mais profunda e dá-lhes um preço tanto mais elevado, quanto ele está certo de não os ver renascer.

Oh! então lastima-se o pobre insen-sato! Ei-lo obrigado a ajoelhar -se aos

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pés de uma mulher para quem é nada o mérito de caminhar pouco e pouco atrás de sua sombra, de fazer exercício em torno aos seus vestidos, de se exta-siar diante de seus bordados, de lisonje-ar os seus enfeites. Ai, triste! esses lon-gos suplícios o revoltam, e, Pig malião desesperado, afasta-se de Galateia, cujo amor se não pode reanimar.

Esses sintomas de idade são desco-nhecidos ao tolo, porquanto cada dia que passa não lhe faz achar no amor um bem mais caro, ou mais difícil a conquistar. Não tendo sido, nem me-lhorado, nem en durecido pelos reveses da vida, continuando a ver as mulheres com o mesmo olhar, exprime-lhes os seus amores com as mesmas lágrimas e os mesmos suspiros que lhes reser-va para pintar os antigos tor mentos. E como ele só exigiu sempre delas aparências de paixão, vem facilmente a persuadir-se que é amado. Longe de fugir, perse vera e — triunfa.

IX

O homem de espírito é o menos há-bil para escrever a uma mulher.

Quando se arrisca a escrever uma carta, sente dificuldades incríveis. Des-prezando o vasconço da galanteria, não sabe como se há de fazer enten-der. Quer ser reservado e parece frio; quer dizer o que espera e indica receio; confessa que nada tem para agradar, e é apa nhado pela palavra. Comete o crime de não ser comum ou vulgar. As suas cartas saem do coração e não da cabeça; têm o estilo sim ples, claro e límpido, contendo apenas alguns deta-lhes tocantes. Mas é exatamente o que faz com que elas não sejam lidas, nem compre endidas. São cartas decentes, quando as pedem estúpidas.

O tolo é fortíssimo em correspon-dência amorosa, e tem consciên cia dis-so. Longe de recuar diante da remessa de uma carta, é muitas vezes por aí que ele começa. Tem uma coleção de cartas prontas para todos os graus de pai-xão. Alega nelas em linguagem brusca o ardor de sua chama; a cada palavra repete: meu anjo, eu vos adoro. As suas fórmulas são enfáticas e chatas; nada que indique uma per sonalidade. Não faz suspeitar excentricidade ou poesia; é quanto basta; é medíocre e ridículo, tanto melhor. Efetivamente o estranho que ler as suas missivas, nada tem a dizer; na mocidade o pai da menina escrevia assim; a própria menina não esperava outra coisa. Todos estão satis-feitos, até os amigos. Que querem mais?

XEnfim, o homem de espírito, em vista

do que é, inspira às mulhe res uma secreta repulsa. Elas se admiram com o ver tímido, aca nham-se com o ver deli-cado, humilham-se com vê-lo distinto.

Por muito que ele faça para descer até elas, nunca consegue fazê- las perder o acanhamento; choca-as, incomoda-as, e esse acanhamen to, de que ele é causa, torna frias as conversações mais indife-rentes, afasta a familiaridade e assusta a inclinação prestes a nascer.

Mas o tolo não atrapalha, nem ofus-ca as mulheres. Desde a pri meira en-trevista, ele as anima e fraterniza-se com elas. Eleva-se sem acanhamento nas conversas mais insulsas, palra e requebra-se como elas. Compreende-as e elas o compreendem. Longe de se sentirem deslocadas na sua companhia, elas a procuram, porque brilham nela. Podem diante dele absorver todos os assuntos e conversar sobre tudo, ino-centemente, sem consequência. Na

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persuasão de que ele não pensa melhor, nem contrário a elas, auxiliam o triste, quando a ideia lhe falta, suprem-lhe a indigência. Como se fazem valer por ele, é justo que lhe paguem, e por isso consentem em ouvi-lo em tudo. Entre-gam-lhe assim os seus ouvidos, que é o caminho do seu coração, e um belo dia admiram-se de ter encontrado no ami-go complacente um senhor imperioso!

XICompreende-se, por este curto esbo-

ço, como e quanto diferem os tolos e os homens de espírito nos seus meios de sedução. A conclu são final é, que os tolos triunfam, e os homens de espírito falham, resultado importante e deplorá-vel, nesta matéria sobretudo.

XIIDepois de ter indagado as causas da

felicidade dos tolos, e da des graça dos homens de espírito: perderemos tempo precioso em acusar as mulheres? Não hesitamos em deitar as culpas sobre os homens de espírito, como fez o profun-do Champcenets.

Por que não estudam os tolos, diz-lhes este autor, para conseguir imitá-los? Há de custar-vos muito fazer um tal papel: mas há pro veito sem desar? E depois, quando assim sois a isso obriga-do, visto como não vos dão outro meio de solução, querer subtrair o belo sexo a império dos tolos, descortinando-lhe a perversidade do seu gosto, é coisa em que ninguém deve pensar, é uma lou-cura; fora o mesmo que querer mudar a natureza, ou contrariar a fatalidade.

Porquanto, ficai sabendo, continua Champcenets, que as mulheres não são senhoras de si próprias; que nelas tudo é instinto ou tempe ramento, e que

portanto elas não podem ser culpadas de suas pre ferências. Só respondemos pelo que praticamos com intenção e dis cernimento. Ora, qual delas pode di-zer que predileção a impele, que paixão a obriga, que sentimento a faz ingrata, ou que vingança lhe dita as maligni-dades? Debalde procurareis delas tão cruel prodígio; nenhuma é cúmplice do mal que causa: a este respeito, o seu estou vamento atesta-lhes a candura.

Por que vos obstinais em pedir-lhes o que a Providência não lhes deu? Elas se apresentam belas, apetitosas e cegas: não vos basta isto? Querê-las com juízo, penetrantes e sensíveis, é não conhecê-las.

Procurai as mulheres nas mulheres, admirai-lhes a figura elegante e flexí-vel, afagai-lhes os cabelos, beijai-lhes as mãos mimosas; mas tomai como um brinquedo o seu desdém, aceitai os seus ultrajes sem azedume, e às suas cóleras mostrai indiferença. Para conquistar esses entes frágeis e ligeiros, é preci-so atordoá-los pelo rumor dos vossos louvores, pelo fasto do vosso vestuário, pela publicidade das vossas homena-gens.

XIIISim, sim, é mister ousar tudo para

com as mulheres.

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o mito do Bestseller BrasileiroHenry Alfred Bugalho

http://www.flickr.com/photos/bcnbits/363695635/sizes/o/

artigo

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Não ousarei generalizar e afirmar que todos os escritores sonham em se tornar bestsellers, vender milhões de exemplares, ficar famosos e ricos, pois sempre existem as ovelhas negras...

Mesmo assim, acredito que interna-mente todos almejam a aprovação e o reconhecimento dos leitores, a apre-ciação de suas obras e, neste ponto, vender bem é uma prova disto: de que há gente que gostou do seu trabalho, indicou aos outros, que por sua vez indicaram aos outros, num círculo virtuoso.

o que é um bestseller?

As definições do que é um bestsel-ler, isto é, de um autor que pertença ao rol dos mais vendidos, variam geograficamente. Em alguns países, é preciso vender muito mais livros do que em outros.

Basicamente, qualquer listagem dos mais vendidos parte de uma premis-sa básica: a compilação dos dados de vendas entre várias livrarias espalha-das pelo país, e isto vale para o Brasil, para os EUA, ou para a Suíça.

Um livro mais vendido não é aque-le que vendeu 1 milhão de cópias so-mente na amazon.com, mas sim aque-le que vendeu bastante na somatória de todas as livrarias pesquisadas.

Nos EUA e Canadá, vender 5 mil exemplares por semana pode ser o bastante para catapultá-lo ao status de bestseller, enquanto que, no Reino Unido, esta margem varia de 4 mil a 25 mil exemplares por semana.

E no Brasil?

Não é tão fácil determinar estes

dados para o Brasil, primeiro porque há um certo hermetismo por parte das editoras quanto aos dados das vendagens, como se elas estivessem li-dando com documentos ultrassecretos da CIA, depois, porque as tiragens e as vendagens médias de livros de ficção chegam a ser ridículas para um país enorme como o nosso, com mais de 200 milhões de habitantes.

Atualmente, a tiragem inicial média de um livro por uma grande editora é em torno de 3 mil exemplares, sem garantia alguma que será vendida a quantidade mínima de livros para se pagar o investimento.

Segundo os dados da Publishnews, um livro que venda 600 exemplares por semana já poderia se enquadrar como um bestseller. Além disto, uma rápida olhada nas listagens de mais vendidos em ficção basta para perce-bermos que a maioria dos sucessos é de obras de autores estrangeiros, cons-tando apenas 1 ou 2 autores nacio-nais.

Para todos os fins, podemos dizer que uns mil livros vendidos por sema-na é o suficiente para considerar uma obra como um bestseller, enquanto que 5 mil por semana já estaria quase no topo desta listagem.

quem são os bestsellers brasileiros?

É impossível falarmos de mais ven-didos no Brasil e não mencionarmos o nosso maior fenômeno editorial dos últimos anos: Paulo Coelho.

Somando as estatísticas de todas suas obras, Paulo Coelho já vendeu mais de 100 milhões de livros em todo o mundo, quase o dobro do se-gundo colocado, Jorge Amado, com 55

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milhões de livros vendidos.Depois destes dois óbvios primeiros

lugares, não há nenhuma informação conclusiva sobre quem ocuparia o terceiro posto entre os bestsellers bra-sileiros, mas nomes frequentes são Jô Soares, André Vianco e Augusto Cury, este último que transita, às vezes, en-tre autoajuda e ficção.

A verdade é que Literatura nunca foi um grande negócio entre os brasi-leiros, ou melhor, a Literatura nacional nunca foi um bom negócio, pois best-sellers estrangeiros geralmente cau-sam mais furor em terras tupiniquins, como a histeria que pudemos presen-ciar em torno dos últimos volumes de Harry Potter, da série “Crepúsculo” ou “50 Tons de Cinza”.

Via de regra, um bestseller inter-nacional fará muito mais sucesso e venderá muito mais livros no Brasil do que um bestseller nacional.

Bestseller e longseller, qual é a diferença?

Quando falamos em bestsellers, estamos nos referindo a um grande volume de livros vendidos num curto espaço de tempo.

No entanto, isto não quer dizer que um autor não possa vender muitos livros num longo intervalo de tempo, e isto é conhecido como longseller.

Quando se trata de Literatura, o Brasil possui muito mais longsellers do que bestsellers.

Muitos autores, e seus respectivos livros, podem demorar décadas até emplacarem o primeiro bestseller, se é que um dia conseguem esta proeza.

Vários deles possuem vendagens rela-tivamente pequenas, mas constantes, durante anos e anos.

Frequentemente, o segredo por detrás de um longseller são as com-pras governamentais, ou que os livros sejam adotados por escolas, universi-dades ou para vestibulares.

Alguns longsellers brasileiros são: Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Clarice Lispector, Érico Veríssimo, João Ubaldo Ribeiro, entre incontáveis outros nomes conhecidos, que às vezes até podem dar as caras nas listagens de mais vendidos, principalmente se ganharem algum prêmio importante ou se adaptarem algum livro deles para uma novela ou minissérie da Globo.

Mas a longevidade de suas obras não depende necessariamente de algum escândalo ou de um tema da moda, mas da qualidade da escrita e de muitos anos dedicados à carreira literária.

Os bestsellers nascem e mor-rem com uma rapidez incrível, os longsellers vieram para ficar (ou não).

quem quer ser um bestseller?

Repito, Literatura nacional quase nunca é um bom negócio. Estima-se que aproximadamente 70% do que se publica em ficção no Brasil sejam traduções de obras estrangeiras. Nos EUA, apenas 3% dos livros publicados são traduções, a maioria das obras é de autores americanos, ou, pelo menos, de autores de língua inglesa.

Estamos diante de um mercado que não valoriza a prata da casa, que não dá a mínima para a produção

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literária nacional e que está interes-sado em obter o máximo de lucro no menor tempo possível.

Bem, ninguém disse que as editoras eram instituições filantrópicas! São empresas que oferecem produtos para atender à demanda de seus clientes.

São as editoras que têm aversão aos autores nacionais, ou são os brasileiros que não compram livros de escritores brasileiros?

Não há uma fórmula para o suces-so, assim como não há uma fórmula para conseguir publicar seu primeiro livro.

Cair nas graças do público e tornar-se um bestseller, ainda mais se você escrever ficção, é uma loteria: a cada milhão de apostadores, somente al-guns têm o bilhete premiado.

Agora, para converter-se num lon-gseller, é necessário muitíssima paci-ência e trabalho. Talvez demore anos para você começar a ver resultados, é preciso cativar leitor por leitor, mas, quem sabe um dia, sua carreira se estabilizará e perceberá que, de grão-zinho em grãozinho, você realizou o seu sonho.

Pode não ser a trajetória mais gloriosa, mas será suada e honra-da. Então, você se orgulhará de suas pequenas conquistas.

Fontes:

Publishnewshttp://www.publishnews.com.br/te-

las/mais-vendidos/Default.aspx?cat=9 http://www.publishnews.com.br/te-

las/noticias/detalhes.aspx?id=67243

Gazeta do Povohttp://www.gazetadopovo.com.br/ca-

dernog/conteudo.phtml?id=971058

Wikipedia: Bestsellerhttp://en.wikipedia.org/wiki/Bestsel-

ler

Henry alfred BugalhoCuritibano, formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em Estética. Especialista

em Literatura e História. Autor dos romances “O Canto do Peregrino”, “O Covil dos Inocentes”, “O Rei dos Judeus”, da novela “O Homem Pós-Histórico”, e de duas coletâ-neas de contos. Editor da Revista SAMIZDAT e fundador da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia Nova York para Mãos-de-Vaca” e do “Nova York, Bairro a Bairro”, cidade na qual morou por 4 anos, e do “Curso de Introdução à Fotografia do Cala a Boca e Clica!”. Após uma temporada de um ano e meio em Buenos Aires e outra de oito meses na Itália, está baseado, atualmente, em Madri, com sua esposa Denise, o bebê Phillipe e Bia, sua cachorrinha.

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o SoNHo dE LaNCELot:PrESSÁGio da dErroCada doS VaLorES mEdiEVaiS

Rafael Geraldo Vianney Peres

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/9/9e/Boys_King_Arthur_-_N._C._Wyeth_-_p38.jpg

teoria Literária

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RESUMO: A apresentação deste artigo tem como proposta analisar as características e símbolos que corrom-pem os valores medievais dentro do sonho de Lancelot. A peregrinação do cavaleiro é a difícil jornada do homem em busca da virtude. Suas visões oní-ricas revelam uma mente cambiante, que oscila entre os preceitos morais e os vícios do pecado. Para estudar esse aspecto atemporal, embasar-se-á no capítulo XXVIII da novela A Demanda do Santo Graal, tendo em mente o com-portamento do protagonista durante sua busca pelo vaso sagrado.

PALAVRAS-CHAVE: Idade Média.

Pecado. Novelas de cavalaria. Valores cristãos.

CoNSidEraÇÕES iNiCiaiS

Dentre as novelas de cavalaria, destaca-se uma que foi fruto da mais ampla notoriedade entre medievos e pósteros até os dias de hoje; trata-se da vulgata francesa A Demanda do Santo Graal. Pertinente ao ciclo arturiano, essa composição integra-se a um vas-to acervo de histórias, envolvendo os cavaleiros e suas jornadas. A autoria de tal obra é desconhecida, sendo que esta, composta no século XII, só pôde ser apreciada por meio de traduções feitas em diversas línguas, inclusive a portu-guesa.

Sua história consiste na demanda, ou busca do Santo Graal, o cálice sagrado que José de Arimateia usou para co-lher o sangue de Cristo, enquanto este estava crucificado. Esse cálice também foi usado por Jesus na última ceia, em companhia dos seus apóstolos. A santidade desse objeto coloca à prova Lancelot e seus pares, os quais devem

distinguir aquele que pode suplantar os próprios pecados, aproximando-se do vaso sagrado e, consequentemente, de Deus. Porém, entre tantos, somente três cavaleiros compartilharão da visão do Graal, e só Galaaz poderá tocá-lo.

Com base nessa novela, tem-se como meta estudar o sonho de Lancelot, o cavaleiro manchado pelo pecado e pela desonra, aquele que se desvirtua dos valores medievais e cristãos. Para isso, o presente artigo dividir-se-á em duas partes – a primeira, O sonho e suas imagens: fonte simbólica em função do contexto medieval; a segunda, Lancelot e seu sonho: ofensa aos valores medie-vais. As duas pressupõem uma pesqui-sa acerca da psique do protagonista, com o intuito de demonstrar seu cará-ter relutante em face do medievalismo clérigo.

o SoNHo E SuaS imaGENS: FoNtE SimBÓLiCa Em FuNÇÃo do CoNtEXto mEdiEVaL

O sonho é uma atividade psíquica que ocorre tanto durante a inconsci-ência do sono. Entende-se que todas as pessoas dão relevância às imagens oníricas, identificando nelas o estado de espírito de cada um. Cada pessoa ava-lia e interpreta o sonho de acordo com sua experiência de vida, nele procuran-do meios e justificativas relacionados à vida real. É indubitável que o sonho representa o íntimo de uma pessoa, suas carências e reptos individuais. No entanto, no decorrer dos séculos, seu papel na sociedade já foi tratado de diversas formas. Os egípcios, por exem-plo, acreditavam em seu caráter premo-nitório:

“O deus criou os sonhos para in-dicar o caminho aos homens, quando

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estes não podem ver o futuro”, diz um livro de sabedoria. Sacerdotes-leitores, escribas sagrados ou onirólogos inter-pretavam nos templos os símbolos dos sonhos, segundo chaves transmitidas de era em era. A oniromancia, ou a divini-zação por meio dos sonhos, era pratica-da em todos os lugares (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1997, p. 844).

A simbologia do sonho não se esta-belece em um só caráter1. Nota-se, pela sua divinização, que a oniromancia era considerada dádiva dos céus; no caso dos egípcios, uma oportunidade con-cedida pelos deuses para preverem o futuro. Seguindo por esse viés de sa-cralidade, deve-se considerar a função do sonho, mediante um contexto me-dieval, oriundo à cristandade ascética e tradicional. O medievo tem, em seu Deus uno e trino, a fonte de inspiração para prever e designar seu destino na terra. Nada mais eficaz que os sonhos e suas imagens para moralizar o cristão. Dessa forma, o clero afirmava-se como instituição dominante e plenipotente no contexto medieval. É um dos trunfos das entidades religiosas, entre tantos, para atrair fiéis, perscrutando-os com a força imagética das passagens bíblicas. Eis o que salientam Le Goff e Schmitt sobre o papel da imagem na Idade Média:

Também o imaginativo, as “imagens mentais” da meditação e da memó-ria, dos sonhos e das visões, tão im-portantes na experiência religiosa do cristianismo, e que são muitas vezes

1 Como exemplo, tem-se também “o sonho profético ou didático”, aviso meio disfarçado sobre um acontecimento crítico, passado, presente ou futuro; sua origem é frequentemente atribuída a uma força celeste. Vale ressaltar que existem outros tipos de so-nhos, como os “ritualísticos e iniciatórios do xamã”, os “telepáticos”, os “pressentimentos”, entre outros (1997, p. 845).

desenvolvidas em íntima relação com as imagens materiais que serviam à de-voção dos clérigos e dos fiéis. A noção de imagem diz respeito, enfim, à antro-pologia cristã como um todo, pois é o homem – nada menos que isso – que a bíblia, desde suas primeiras palavras, qualifica como imagem (LE GOFF, apud SCHMITT, 2002, p. 593).

A cultura medieval incita o homem a procurar em seus sonhos não somen-te as figuras sagradas, como também representações profanas do terror ima-nente à psique. Então, visões infernais castigariam aqueles que não se sub-metessem às premissas da Inquisição. Tudo isso ocorria mediante imagens que aproximavam a efígie humana do grotesco. Fomentar o abstrato e o irre-al no seio da humanidade garantia às pessoas o vislumbre do etéreo, reve-lando assim, dois tipos de caminhos a trilhar: o caminho do bem, rumo à luz celestial, e o caminho do mal, rumo às profundezas do inferno (idem, 2002).

O homem medieval passa a viver sob a ameaça paradoxal de forças interio-res e exteriores. A possibilidade de sua alma entrar em colapso fazia com que ele buscasse a graça divina, acima de todos os prazeres carnais. Esse pen-samento era considerado o principal preceito a que o cristão deveria ater-se para salvar sua alma. O sonho tinha a função de integrar o homem ao seu espírito. Não obstante, a influência do meio refletia-se na escolha entre o bem e o mal. Ao recordar-se das imagens oníricas, o fiel era propenso a seguir o que a Igreja ditava ser proveitoso para a expurgação dos pecados e a ascensão ao paraíso. O mal que aparecia nas visões era interpretado de maneira que este apontasse o bem como meta indis-pensável.

O sonho podia suplantar o tempo,

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colocando o passado em voga nova-mente, possibilitando ao sujeito recor-dar-se de fatos há muito esquecidos ou, até mesmo, criar um possível futuro. Esse feito não é restrito somente ao período medieval. Desde a antiguidade clássica até a modernidade, tais carac-terísticas sempre suscitaram notáveis estudos. Todos os povos, em todas as épocas, viram no sonho a possibilidade de elidir o eixo temporal e mistificá-lo. “Como as imagens materiais, ele parti-cipa de um mundo visual, de um mun-do imaginário, cujos poderes e con-dições ultrapassam de longe o plano único do visível e do sensível” (2002, p. 596). Daí postula-se a dualidade simbó-lica do sonho em oposição à materia-lidade exterior. Atribui-se, portanto, às imagens oníricas a função de converter os cristãos medievos, visto que as esfe-ras católicas do céu e do inferno repre-sentam a contradição entre o bem e o mal.

o SoNHo dE LaNCELot: oFENSa aoS VaLorES mEdiEVaiS

O nome Lancelot é de origem celta e significa guerreiro do rei Artur2. Tal alcunha tem seu devido merecimen-to; porém, no decorrer da demanda, o cavaleiro apaixona-se pela rainha Gui-nevere e, com isso, trai a confiança de seu senhor e rei. Esse pecado faz com que ele se rebele contra Artur e sua távola, caindo por terra toda sua digni-dade e honradez. Sofrendo de um amor sem precedentes, sai a vagar, desditoso e maculado pela mancha da traição. Consciente de seu pecado, Lancelot

2 LE GOFF, Jacques; apud SCHMITT, Jean Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Trad. (coord.) de Hilário Franco Jr. Bauru/ São Paulo: EDUSC/ Imprensa Oficial do Estado, 2002 (2 vols.).

sente horríveis atribulações e parte em busca do Graal (ANÔNIMO, 1989). Sua jornada transforma-se numa peregrina-ção espiritual em deferimento da mo-ral e da virtude.

Para compreender a viagem metafó-rica de Lancelot, é necessário, primeira-mente, identificar o conceito de mara-vilhoso no contexto medieval. Existem, na Demanda do Santo Graal, quatro acepções: primeira – transcendência da razão; segunda – influência diabó-lica; terceira – manifestação de Deus; e quarta – admiração ou espanto (LE GOFF, apud SCHMITT, 2002).

Durante o sonho de Lancelot, perce-be-se a mais acentuada oposição entre a segunda e a terceira acepções. De um lado, uma visão grotesca e mór-bida de um rio infestado de cobras e vermes. Do outro, uma horda angelical advinda do reino celeste. O cavaleiro, perplexo, observa a disparidade das duas cenas, ficando ainda mais atônito ao reparar que os homens que surgem das águas pútridas são coroados pelos anjos e levados para o céu. Nota-se que sua reação é condizente com a quar-ta definição do maravilhoso. Segue-se, pois, o desfecho de sua visão, no qual ele se depara com um homem simpló-rio e destituído de qualquer dignidade física e moral. Esse homem também havia saído das águas imundas, mas, ao contrário dos outros, não fora coroa-do pelo cortejo de anjos, o que o leva a interpelar aqueles que conseguiram alcançar a luz: “Ai, senhores da nossa linhagem! Deixais-me só e pobre e tão infeliz? Por Deus, quando chegardes à casa da alegria, lembrai-vos de mim, e rogai ao alto mestre por mim, que não me esqueça”. E eles responderam em coro: “Tu te fazes esquecer e tu fizeste para seres esquecido; não merecerás galardão, senão segundo teus feitos”

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(ANÔNIMO, 1989, p. 170). Diante de tais dizeres, percebe-se

que o inquiridor é próprio Lancelot, e essa imagem, seu prenúncio e algoz. Vale ressaltar que o cavaleiro rompeu seus juramentos3 por causa dos desejos pecaminosos que sentia pela rainha Guinevere. Com isso, o ímpio anula os valores medievais, negando a Deus e a si mesmo. Ele extingue a possibilidade de salvar-se, praticando seus atos torpes, denegrindo a virtus que um cavaleiro devia prezar. Salvaram-se, então, so-mente aqueles que honraram as regras da cavalaria, segundo os ensinamentos religiosos, abnegando a carne para cul-tivar a penitência, a lealdade e a per-severança. Entende-se, portanto, que o cavaleiro, apesar de ter sido um estere-ótipo bélico, devia portar-se, mormente, como um neófito monástico.

Incorporar o cristianismo era uma premissa indiscutível, como se pode perceber em vários apontamentos sobre a cultura medieval. Por meio da reli-gião, todos tinham a possibilidade de encontrar um sustento para manter o equilíbrio vital. Quem assumia o ca-tolicismo fazia parte de um processo pelo qual o homem moldava-se, prepa-rando-se para assumir sua existência com amor e dignidade. O cavaleiro verdadeiramente cristão estava dispos-to a respeitar as normas, sendo a mais importante a obediência a Deus. O cristianismo era digno de ser imitado, extingue a possibilidade de salvar-se, praticando seus atos torpes, denegrindo

3 O cavaleiro deveria ser, primeiramen-te, dotado de coragem e lealdade, as demais virtudes viriam por si sós. A honra máxima do espírito de um cavaleiro resume-se na fra-se: “miem vauroire morir que a honte entre em vie”, ou seja, “antes a morte que a vergo-nha”. Corromper seus votos de castidade e lealdade era para os cavaleiros algo inadmis-sível (CABRAL, 2007, p. 17).

a virtusiriam por si sluz:u senhor e rei. pois imitar não era simplesmente re-petir, e sim fazer um caminho sobre os passos de alguém que já o fez; seguir o Cristo era a essência medieval. Para isso, valiam-se das mais variadas for-mas que dispunham. Eram capazes de deixar tudo, de partir para uma pere-grinação, de se refugiar em ermos, de simplesmente se entregarem ao martí-rio; tudo para a glória de Deus.

Possibilitou-se, pois, a introspecção nos valores religiosos da Idade Média, visto que as inferências aqui citadas compõem uma breve súmula dos ideais católicos. Porém, Lancelot é aquele que não segue o exemplo do filho de Deus; é a ovelha desgarrada que não busca a probidade e a redenção divina. Sua peregrinação durante a Demanda é um tratado sobre ética e virtude, um libelo contra as discrepâncias instintivas do homem. O rio e suas criaturas simboli-zam as fraquezas da carne, num mundo corrompido pelo pecado. Conclui-se que Lancelot, em oposição à sua linha-gem4, ofende os excertos cristãos da Idade Média, buscando o amor ilícito, um ultraje aos princípios da cavalaria.

CoNSidEraÇÕES FiNaiS

Ao analisar o papel do cavaleiro medieval, bem como o destino funesto de Lancelot, nota-se que seus sonhos foram manifestações simbólicas do inconsciente de uma mente atormen-tada e autocondenada por suas atitu-des e vícios. Os pecados do cavaleiro

4 Da mesma linhagem de seu pai, Galaaz, “seu herdeiro”, caracteriza-se como um prolongamento purificado e limpo dos pecados do pai. Ele se torna um exímio ca-valeiro e, como não fosse o bastante, de alma translúcida (CABRAL, 2007, p. 18). Portanto, por causa de sua idoneidade e unção, é con-siderado o único que pode resgatar o Santo Graal, apesar de sequer tocá-lo.

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opunham-se aos valores morais me-dievais, tendo em vista que a falta de domínio dos impulsos primários era considerada um distúrbio diabólico. Assim, o imaginário medieval cristão criou inúmeros símbolos para atemori-zar os fiéis, salientando que havia rios de chamas, onde a alma do pecador seria queimada eternamente.

Tratava-se também de um artifício para controlar os fiéis e manter o po-der do clero, sobretudo em se tratando do século XII (época em que surgiu A Demanda do Santo Graal), pois nesse contexto os muçulmanos digladiavam contra os cristãos por territórios. Essas histórias do círculo bretão reforçavam a apologia à virtude e à nobreza dos cruzados, milícia responsável por con-ter o avanço dos invasores. Ser obe-diente à palavra de Deus era pactuar com os princípios da Igreja medieval, mesmo que esta fosse conivente com a Inquisição e seus métodos cruéis. Porquanto, os cavaleiros submetiam-se completamente às imposições do papa. O clero utilizava as narrativas do ciclo arturiano, associadas à ideia do bem e do mal, para moralizar seus subordi-nados e assim controlá-los. Portanto, os sonhos e visões de Lancelot, além de disciplinadores, são prenúncios da derrocada dos valores medievais, dado que o oriente pressionava as frontei-ras da Europa, aumentando o risco de uma invasão bélica e cultural, o que profanaria o purismo da cristandade e abalaria seu poder.

rEFErÊNCiaS ANÔNIMO. A Demanda do San-

to Graal (manuscrito do séc. XIII). Ed. Heitor Megale. São Paulo: T. A. Queiroz, 1989.

CABRAL, Ana Graziela. O domínio dos desejos na Era Medieval: Galaaz, o Cavaleiro Crístico. In: Revista Alpha (UNIPAM). Patos de Minas: GRAFI-PRESS, 2007.

CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1997.

FRANCO JR, Hilário. A Idade Mé-dia: Nascimento do Ocidente. 2ª ed. São Paulo:

Brasiliense, 2005. GONZELES, Justo L. A Era das Tre-

vas. São Paulo: Editora Vida Nova, 2006. LE GOFF, Jacques; apud SCHMITT,

Jean Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Trad. (coord.) de Hilário Franco Jr. Bauru. São Paulo: EDUSC/ Imprensa Oficial do Estado, 2002 (2 vols.).

rafael Geraldo Vianney PeresNasceu em Patos de Minas, Minas Gerais, em 1986. É graduado em Letras pelo Centro

Universitário de Patos de Minas (UNIPAM). Atualmente, é mestrando no Curso de Pós-gra-duação em Letras da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Publicou os contos A Peste: porcos e corpos, pela editora Valer/Sesc, Hell, na antologia Caminhos do medo – vol. II, pela editora Andross, e Anátema, uma das narrativas classificadas no Prêmio Henry Evaristo de Literatura Fantástica, pelo site www.airmandade.net. Mantém o blogue voodoscorvos.blogs-pot.com

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Um ratoUma formaDe matar ratoConsiste em prendê-lo em colaUma vez preso irá morrerPelo cansaço por uma pancadaVocê vê um rato presoSe devota por inteiroÀ sua vidaEm um desespero sem reservasUm vendo os olhos partirem continuouOutro comeu aquilo e foi se expelindoJunto com as fezes sabe em que insâniaAté não restar nada até não restar nada porqueO que restasse é vontade de viver é Graçasà Vida que ficouVocê dizQue essa vida vale menosVocê tem provas?

A gazelaDisparada pelo leãoSobreviverAté quando a bocaFecha-lhe com os olhos ao mesmo instanteE mesmo antes

Consiste em prendê-lo em colaDanilo Augusto de Athayde Fraga

Poesia

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danilo augusto de athayde FragaNasceu em 1990 em Salvador, Bahia, e é poeta e ensaísta. Por seus escritos, foi premiado nacio-

nal e internacionalmente. Formado pelo Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades pela UFBA, atualmente cursa Letras nesta mesma instituição.

Contato: [email protected]

Quando as patas lhe caem por cimaEla se paralisa você não vêEla se debater ela está dormindoVocê poderia dizerSe o leão já não tivesseComeçado a se alimentarPor quê? O sonoVem como droga na veia do condenado?A paralisia um presente o arrebatamento por trásDaqueles olhos? Dormir não ver essa dorNão é minha ela diz o rato não diz nadaEle ensina tudo issoÉ meuA dor as fezes as tripas o olho que se separou o que ficou de mim e o que irá ficarEu vou estar vivo eu não aceitoUm morre na selva outro na cozinha da sua casa

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Sou uma borboleta esquecida,

Sou uma menina aborrecida.

É triste não ter tempo para brincar,

Não ter o direito como outras crianças de estudar.

Estou caminhando em uma dolorida direção,

Meu futuro não está mais em minhas mãos.

Sou uma borboleta esquecida,

Sou uma adolescente que conhece os podres da vida.

Há muito tempo que não sei o que é sorrir

Para comer tenho que prostituir.

Tenho inveja de algumas garotas da minha idade,

Elas sim sabem o que é a felicidade.

Sou uma borboleta esquecida,

Sou uma mulher bastante vivida.

Sensação amarga de nunca ser amada,

Saber o tamanho da dor de uma pancada.

Meu único filho morreu de frio e fome,

Uma dor que aos pouco me consome.

Sou uma borboleta esquecida,

Sou uma velha esquecida.

Olho para trás e vejo um passado feroz,

Que quando conto a minha história perco a minha voz.

Um passado que não tem como apagar,

Uma cicatriz eterna que me faz chorar.

Fui uma borboleta esquecida,

Que não teve oportunidades na vida.

Poesia

Fernanda Azevedo de Morais

BorBoLEta ESquECida

http://www.flickr.com/photos/davidyuweb/4736981423/

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Fernanda azevedo de moraisNasceu em Itaituba-Pará, foi adotada por Goiás quando tinha apenas 2 anos. Formou-se em Le-

tras ano passado. Trabalha na Biblioteca Municipal Pública de Porteirão – Santa Genoveva. Sem-pre gostou de escrever, um passatempo que a incentivou a estudar Letras. Está escrevendo livro infanto-juvenil. Gosta de romance e contos sobrenaturais e ama o romance O Morro dos Ventos Uivantes da escritora Emily Brontë. QUERO QUE O MEU SONHO GANHE ASAS.

E-mail: [email protected]

ViaGEm EtErNaEstou por um triz para perder a direção,

Uma imprudência essa minha reação.

Tal liberdade que estou sentindo,

Alucinações que o chão está se abrindo.

Sou um pássaro que acabou de ganhar a liberdade,

Sensação estranha de tamanha futilidade.

Agora sou uma arma de destruição,

Estou bêbado e não tenho nenhuma noção.

Pensei que era pássaro e que poderia voar,

Voei para um lugar que não como mais voltar

Uma viagem eterna que fez muitas pessoas por mim, chorar.

Perdi a minha vida por misturar álcool e direção,

Uma vida jovem que tinha tudo pela frente,

Mas a minha irresponsabilidade a tornou diferente.

Fernanda Azevedo de Morais

Poesia

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Poesia

Rodrigo Uriartt

angustura

boca toda aberta pro mundodeitei de costas pra tudoboca e língua pra foraolhos e dentes pra dentrobeijei a porra do mundoatrás e a frenteas pernas andamdeuses que morremabismos negros até o infernoatravessa o vento pelas ínfimas frestasatravessa a vontade do lá foraatravessa também a metáfora do-que-é-vocêas leis: a estrutura: o pelo no meio da pinta pretao amaro: as saias nas canelas: páginas e mais páginasabarrotadas de palavras azedas

rodrigo uriartt Natural de Porto Alegre, RS. Formado em Artes Visuais pela UFRGS é poeta, fotógrafo, astró-

logo e vagamundo. Editou digitalmente sua coletânea de poesia, Digno Ócio. Influenciado pela retórica demolidora de Lautréamont adora ler seus poemas em alto e bom som, cuspindo voraz-mente as palavras. No momento se dedica na escrevinhação de um thriller distópico ambientado em uma São Paulo dominada pelas grandes corporações. Vive atualmente em Haifa, ao norte de Israel.

http://www.flickr.com/photos/luispabon/9260319005/

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http://www.flickr.com/photos/turinboy/2946943615/

Poesia

Lilian da Silva Ney

o ato de nomear

Eu não sei como dar nome a certas coisasPorque elas chegam desavisadasE se instalam sem pedir licença

Desassossegada as observo

Tem umas que são até engraçadas E aquelas que desabusadasMe intrigam mais que as primeiras

Rebusco algumas num guardanapo e depois jogo fora...

Lilian da Silva NeyPedagoga

Esp. em Educação em Direitos Humanos

http://www.flickr.com/photos/luispabon/9260319005/

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Poesia

Luiz da Franca

Story 7

Diário que ele escrevecom sua caneta falhando.É uma caneta Bic azul,velha e, mais uma vez,falhando. Diário é o ritmo queele escrevepalavra atrás de palavrapensando nela. O garotosentado na cafeteria,usando uma caneta Bic falha,escreve em ritmodiáriopoesia.

Ela retoca o batomvermelho

com medo de estar borrado. Tem medo, na realidade, de estar feia,de perder todo o resto do valorpor conta de seus lábios finos queela insiste em pôr batom vermelho,isso para tentaraumentá-los. Mal sabe ela que o garotoescrevia em ritmodiárioa ela.Somente não envia. Ela insiste em serinsegura.

Alguns pormenoresenvolvendo a vidalevaram os dois cinco

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Luiz da FrancaDe João Pessoa, Paraíba, hoje mora no Rio de Janeiro onde estuda Ciências Sociais. Fun-

dou junto a Leonardo Coelho a Revista PORRADA, para a qual escreve periodicamente, e publica textos soltos no tumblr 137trimetilxantina. Publicou o seu primeiro livro chamado “Café Para” (2012) pela editora Multifoco.

anos a frente. Ele não mais escrevia em rit-modiáriopara ela. Ela arrumou um homemque a deixava segura. Ele vive de remédios, calman-tesantidepressivos.Antes ele meditava, fazia terapia,mas agoranão tem mais nem poesia. Ela não conseguia mais ser feliz.O cara não a comia direito,ele nem ao menos a comia.O cara tinha outras. Ao menosele não culpou os lábios finos dela. Ela até queimplorou,mas ele resolveu serhonesto. “É melhor terminarmos”. Elavoltou a passar batom vermelho.

Ele,que não escrevia há séculos,se olhou no espelho e se sentiumorto. Até mesmo pensou emconcretizar a ideia. Primeiro ele tentouvoltar a meditar,mas mesmo um minuto eraimpossível.Sua cabeça iria explodir.

Elaresolveu passar o batom vermelho. Ele resolveu voltar à poesia. Ambos estavam em um cafée nada aconteceu. Eleainda é ele. Elaainda é ela.

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80 SAMIZDAT outubro de 2013

Poesia

Nathan Sousa

ENVoLtÓrio80 SAMIZDAT outubro de 2013

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Este corpoa quem eu pertenço– muito maisdo que o que penso –arrastaoutro fardoalém de sua própria massa.

Neleamontoam-sesonhosdespedaçadosem meioàs reminiscênciasespaçadas.

Este corpoinextricávelde onde

não saiocom vida,é fiel a todosos meus passose carrascode tudo o que em mimé medo.

É nesteinvólucrode carne e ossoque residea significaçãoocultadesta estranharelaçãoentre o que é meue o que sou eu

Nathan SousaPoeta e compositor piauiense, nasceu em Teresina – PI (28 de Junho de 1973) e está radicado

em São Gonçalo do Piauí – PI desde 2012. É microempresário e autor dos livros O Percurso das Horas (Edições do Autor, 2012), Terra Interminável (Aliança, 2013) e No Limiar do Absurdo (Literacidade, 2013). Participa de várias antologias e é um dos ganhadores (2º lugar) do XXXVIII Prêmio Internacional de Literatura das Edições AG – SP. É membro da Academia de Letras do Médio Parnaíba.

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Poesia

Victor Faria

Labirinto O que segue é uma poesia em forma de labirinto ou um labirinto em forma de poesia.

Para compreender o texto inserido no labirinto é necessário seguir as coordenadas locali-zadas na página seguinte. As letras N, S, L e O indicam respectivamente Norte, Sul, Leste e Oeste, já os números indicam quantos quadrados devem ser contados até na direção sugeri-da.

Bom divertimento e boa leitura!

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Coordenadas:

15 – L ; 3 – S ; 9 – O ; 1 – N ; 8 – L ; 1 – N ; 9 – O ; 11 – S ;

2 – L ; 1 – S ; 2 – O ; 4 – S ; 1 – O ; 8 – N ; 1 – O ; 1 – N ;

1 – L ; 7 – N ; 3 – O ; 1 – S ; 2 – L ; 5 – S ; 1 – O ; 4 – N ;

1 – O ; 5 – S ; 1 – L ; 1 – S ; 1 – O ; 10 – S ; 1 – L ; 9 – N ;

1 – L ; 9 – S ; 1 – L ; 1 – N ; 1 – L ; 1 – S ; 1 – L ; 5 – N ;

1 – L ; 5 – S ; 2 – L ; 1 – N ; 1 – O ; 1 – N ; 1 – L ; 1 – N ;

1 – O ; 1 – N ; 1 – L ; 1 – N ; 1 – O ; 3 – N ; 2 – O ; 7 – N ;

3 – L ; 1 – S ; 1 – L ; 1 – N ; 8 – L ; 2 – S ; 1 – O ; 1 – N ;

1 – O ; 3 – S ; 2 – O ; 1 – S ; 1 – O ; 2 – N ; 2 – L ; 2 – N ;

1 – O ; 1 – S ; 1 – O ; 1 – N ; 1 – O ; 5 – S ; 1 – O ; 4 – N ;

3 – O ; 1 – N ; 1 – O ; 5 – S ; 1 – L ; 3 – N ; 2 – L ; 1 – S ;

1 – O ; 1 – S ; 1 – L ; 1 – S ; 1 – O ; 1 – S ; 4 – L ; 1 – N ;

1 – L ; 6 – S ; 1 – O ; 4 – N ; 1 – O ; 5 – S ; 3 – L ; 8 – N ;

2 – L ; 2 – N ; 2 – L ; 4 – N ; 3 – O ; 1 – N ; 3 – L ; 1 – N ;

3 – O ; 1 – N ; 4 – L ; 8 – S ; 2 – O ; 2 – S ; 2 – O ; 1 – S ;

2 – L ; 1 – S ; 2 – O ; 1 – S ; 2 – L ; 1 – S ; 2 – O ; 1 – S ;

2 – L ; 1 – S ; 2 – O ; 1 – S ; 2 – L ; 1 – S ; 7 – O ; 6 – N ;

2 – O ; 1 – S ; 1 – L ; 6 – S ; 9 – L ; 10 – N ; 1 – L ; 10 – S.

Solução do Labirinto

Se eu me encontro num labirinto de ilusões, a intenção é entender o caminho ou perseguir a saída?

Seria percorrer a estrada tal qual um ciclo?

Tal qual a vida permanece e se sustenta na hipocrisia de erros e acertos.

Que desconserta o bem-estar em prol de uma segurança inválida, a mesma sensação de mo-rar neste labirinto, distante da entrada e equidistante da saída, envolvido por paredes vãs que cercam um trajeto já seguido.

E para onde?

A saída é esperar (e pensar não haver saída).ht

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Victor FariaPoeta e escritor infantil que também escreve para crianças. Produz individualmente e artesa-

nalmente todos os seus livros, pela Fariaria, e tenta aplicar o conceito de literatura para os mais diversos meios e formas. Formado em Letras pela Fundação Santo André, optou por não dar aulas e tentar aplicar novos conceitos criativos em oficinas literárias.

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84 SAMIZDAT outubro de 2013

Poesia

http://www.flickr.com/photos/ekilby/7569533200/

Vanessa Regina

antes de partir

Vanessa regina Alegretense, é Mestranda em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG).

Tem poemas publicados em jornais, participação em coletâneas, além de premiações em concursos literários. Quando o jazz toca o coração, desagua em seu blog pessoal Na Ponta da Língua (http://napontadalinguasa.blogspot.com.br). Colabora com a coluna Literatura de Quinta, no blog do Coletivo Fita Amarela (http://coletivofitaamarela.blogspot.com.br) . Escreve para organizar o caos e pensa que o mar não deveria ser azul.

antes de partir

pousarei meus pés

em tua leve musculatura

de anjo

andarei sobre as linhas

sinuosas do teu corpo

e pedirás que eu fique

a resguardar teus segredos

incondicionalmente.

quando acordares

do teu profundo sono passional

terei roubado tuas asas

e estarei longe,

tão longe

que nem a mais remota nuvem

te revelará meu nome.

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http://www.flickr.com/photos/ekilby/7569533200/

Concursos Literários

Novembro 2013- 01.11.2013 - Concursos de Poesias da APPACDM de Setúbal (Portugal) (Poesias - # - CT -@)

- 01.11.2013 - Concurso Cruz e Sousa (San-ta Catarina) (Livros Inéditos / Poesias - #)

- 04.11.2013 - Novos Autores - Prêmio Cidade de Teresina (Piauí) (Livros Inédi-tos / Pesquisa Histórica sobre a Realidade Piauiense, Ficção, Poesia, Peça Teatral e Literatura Infantil - #)

- 04.11.2013 - Prêmio Literário Fundação Biblioteca Nacional (Livros Publicados / Poesia, Romance, Conto, Ensaio Literário, Ensaio Social, Tradução, Projeto Gráfico e Literatura Infantil e Literatura Juvenil - $)

- 05.11.2013 - PLUMA - Prêmio Literário Universitário de Macaé (Rio de Janeiro) (Poesias - #)

- 07.11.2013 - Concursos Literários da Fu-mcul (Paranaguá - PR) (Contos, Crônicas e Poesias - #)

- 08.11.2013 - Concurso de Contos - Prê-mio Cidade de Teresina (Piauí) (Contos - # - $)

- 08.11.2013 - 30º Concurso de Poesia “Nhô Bento” (Cone Leste - SP) (Poesias - #)

- 08.11.2013 - Concurso Regional de Contos e Crônicas (Flores da Cunha - RS) (Contos e Crônicas - #)

- 10.11.2013 - Prorrogado - Concurso Literário “São Bernardo em Verso e Prosa” (Contos, Crônicas e Poesias - $)

- 10.11.2013 - Prorrogado - Seleção para Antologia “A coroação” (Contos - @)

- 14.11.2013 - Edital Rumos / Itaú Cultural

- 15.11.2013 - 1º Desafio Literário Revista Pacheco (Contos - @)

- 30.11.2013 - Prémio Literário Correntes d´Escritas (Contos - $)

- 30.11.2013 - 2º Concurso Internacional da UBT de San Antonio - Texas (Trovas - @)

- 30.11.2013 - V Prêmio Nacional e XVI Prêmio Estadual Ideal Clube de Literatura (Nacional: Livros Inéditos / Poesia - Estadu-al: Poesias - $)

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Para mais informações sobre estes e outros concursos, confira o blog Concursos Literárioshttp://concursos-literarios.blogspot.com.br/2013/10/concursos-do-mes-novembro-de-2013.html

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86 SAMIZDAT outubro de 2013

Também nesta edição, textos de

Japone arijuane

Joaquim Bispo

Henry alfred Bugalho

Carlos Eduardo Paulino murta Café

rafael F. Carvalho

Victor Faria

danilo augusto de athayde Fraga

Luiz da Franca

Cinthia Kriemler

zulmar Lopes

Fernanda azevedo de morais

Lionel mota

Lilian da Silva Ney

rafael Geraldo Vianney Peres

Vanessa regina

Nathan Sousa

Sérgio tavares

rodrigo uriartt

alive Viana

Vander Vieira

rodrigo zafra ht

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