revista Átimo - arruar

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Átimo é a publicação resultante da disciplina de Edição do curso de Comunicação Social - Jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no Departmento de Comunicação (Decom), do Centro de Artes e Comunicação (CAC).

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EDITORIAL

“Arruar” é um convite à rua, seus segredos e movimentos. O termo, inventando pelo cronista per-nambucano Mário Sette, é inspirado nas cadeirinhas de arruar que levavam os senhores da sociedade colonial a passear pela rua. No Dicionário Informal da Língua Portuguesa, a palavra quer dizer “di-vidir, distribuir em ruas, fazer ruas”. Mas, para nós, assim como para Mário Sette, “arruar” remete a analisar as novas funcionalidades das ruas, perceber que ainda se pode dar novos significados a elas.

Morando em apartamentos isolados, trabalhando em prédios fechados, se locomovendo em veículos particulares e sempre atrasadas para algum compromisso, as pessoas se veem cada vez mais “distan-tes” da rua, apesar das muitas horas gastas no trânsito. Por isso, caminhar sem pressa, apenas por diversão e curiosidade, tornou-se um hábito de poucos. Afinal, a rua passou a ser encarada como um espaço apenas de locomoção e não mais como um local para ser explorado e reconhecido, como gostaria Sette. “Hoje, já não se sabe arruar direito. Anda-se, ou melhor, corre pelas ruas”, lamenta.

Acreditamos que uma das principais razões para essa mudança na relação entre as pessoas e as ruas está na verticalização. Nas alturas de seus edifícios, as pessoas perdem o contato com a rua, os vizinhos e a vontade de arruar. Mas, apesar de todo esse cenário hostil, pretende-mos mostrar o esforço dos que tentam manter a tradição de fazer das ruas um espaço agradável de convivência, seja na clássica roda de conversa na calçada ou a mesa de dominó da esquina de casa.

Átimo é a publicação resultante da disciplina de Edição do curso

de Comunicação Social - Jornalismo da Universidade

Federal de Pernambuco (UFPE), no Departmento de Comuni-cação (Decom), do Centro de Artes e Comunicação (CAC).

Chefia do Departamento: Paula Reis

Coordenação de Jornalismo: Heitor Rocha

Professor orientador: Thiago Soares

Reportagem, Fotografia e Diagramação: Carla Moreira,

Elisa Jacques, Igor Nóbrega, João Vitor Pascoal, Júlio Rebelo, Maria Eduarda Tavares, Marina

Barbosa, Patrícia BonfimArte da Capa:Renata Motta

SUMÁRIO

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1018

2430

Praça dos Amigos

Menos carros, mais diversão

Atrás do arranha-céu

Ruas Verticais

Aurora sem cor

De fora de Portas até o atêrro da Boa-Vista

EXPEDIENTE:

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Na Rua Gomes Taborda, no bairro do Cordeiro, vizinhos ainda mantém o velho hábito de se reunirem no fim da tarde para conversar

TEXTO E FOTOS CARLA MOREIRA

ele montou um pequeno comércio na rua. Com três anos de existência a Praça dos Amigos é considerada como um cano de escape para os fre-quentadores. “Aqui a gente fala so-bre tudo, desde futebol até religião”, afirma José.

No começo, o pequeno espaço era algo mais para seus familiares que ficavam por ali enquanto o comér-cio de venda de caldo de cana estava aberto. Logo, amigos começaram a frequentar o lugar com assiduidade, e traziam consigo suas cadeiras. Foi aí que tudo deu-se início. “O nome surgiu com a intenção de valorizar as amizades, cada um vinha, se che-gava, e foi se tornando um hábito, por isso o nome Praça dos Amigos, com o ideal dessa reunião que acon-tecia aqui”, diz.

A Praça é sinônimo de orgulho para seu fundador e frequentadores, é a manutenção de princípios que eram fortes em outras épocas. “Aqui é como se os valores continuassem, as pessoas passam no ônibus e ficam admirados. Para nós é uma sensação boa, porque as pessoas valorizam esse tipo de ação, hoje em dia todos estão mais individualistas, presas em suas casas”, explica.

Para José Oliveira, 53 anos, nascido e criado no bairro, é lá que as pessoas vêm e se desestressam depois de um dia árduo de trabalho. “As pessoas vêm de longe, de ruas distantes, só para trocar ideias, conversar, ver a movimentação, é como se fosse uma forma de esquecer um pouco

Lembro-me de histórias que minha mãe contava sobre sua infância. Os amigos, que até hoje moram no bairro e mantêm contato, a rua que era de barro, as reuniões na casa da única vizinha que tinha televisão, as pessoas que se arrumavam só para irem às ruas conversar sobre os seus respectivos dias. Uma visão que parece ser estranha, se analisar-mos algumas ruas da cidade do Re-cife hoje em dia. A minha rua, que é a mesma rua da infância da minha mãe, hoje, não vemos mais isso. Às 19 horas a oficina de motos fecha, depois disso, você não se depara

com ninguém na rua, a não ser os vigilantes fazendo as rondas.

O medo, a violência, os vizinhos que mal se dão bom dia, são alguns fa-tores que tornam a realidade passada tão distante da gente. Um dia, presa no engarrafamento na Rua Gomes Taborda, localizada no Cordeiro, eu me deparei com uma cena que me tocou. Um senhor tocava um violão e ao redor dele seus amigos o obser-vavam. Uma cena, de fato, muito curiosa, sendo exposta ali, no meio da avenida parada em pleno horário de pico. Não sei se muitos que es-

tavam no ônibus lotado repararam aquela cena comigo, mas lembro que depois desse dia eu sempre me pegava olhando para aquele lugar, na expectativa de poder observar al-guma cena curiosa como aquela.

O lugar em questão chama-se: Praça dos Amigos. Esse pequeno espaço público, criado por um dos mora-dores da rua, divide a sua existência com os transeuntes. A Praça, na ver-dade, é uma área ínfima de calçada. A idealização do local foi feita por José Gomes, 59 anos, que mora há 56 anos no mesmo lugar, depois que

reportagem

“O nOme surgiu cOm a intençãO de valOrizar as amizades, cada

um vinha, chegava, e fOi

se tOrnandO um hábitO”

reportagem

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a rotina cansativa do trabalho” diz. Recentemente, a Prefeitura do Re-cife mandou retirar as cadeiras que compõem a Praça dos Amigos. Ao mesmo tempo em que retira o úni-co espaço público, que foi criado pelos próprios moradores do bair-ro, a Prefeitura não faz nada para a construção de algum espaço de con-vívio naquela área.

José Gomes conta que já propôs a um vereador que ali fosse planeja-do qualquer tipo de ação para que

houvesse, de fato, uma praça. “Nun-ca entramos com nenhum pedido na Prefeitura para tal construção, acho que não iríamos ser atendi-dos, mas quando um vereador aqui do bairro foi eleito eu sugeri que ele visse esse nosso pedido, que pegasse algum desses terrenos vazios aí e construísse uma praça pra comuni-dade”, fala.

A Praça define vários significados. Quer dizer amizade, valorização de uma tradição – que para alguns bair-

ros parece uma realidade distante – e também a construção de novos laços, comunhão. “Às vezes a gen-te coloca umas 10, 12 cadeiras, pois tem muita gente. Algumas pessoas passam até a madrugada conversan-do, ou jogando dominó. Aqui todo mundo se conhece, sabemos quem é e onde mora cada um. Esse tipo de ação ainda fortalece os laços de amizade. Conversamos sobre tudo, e não há qualquer tipo de briga, só quando o assunto futebol”, brinca José Gomes.

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A Rua Gomes Taborda era conhecida como Rua da Lama, pois era, literal-mente, de uma extremidade a outra, feita de barro, e em tempos de chuva a rua se transformava em um verda-deiro lamaçal. Hoje, a rua é comple-mente pavimenta, e diga-se de pas-sagem, muito movimentada. Ela que também é uma avenida, tem em sua construção estética as seguintes car-acterísticas: muito trânsito, muitos moradores transitando, pessoas di-vidindo seus espaços com os comer-ciantes e produtos, crianças que se utilizam da calçada para brincar. Um pouco de poluição visual, chamaria.

Em determinada parte da rua essa visão se aprofunda bastante, é como o centro de alguma cidade do interior, no qual as pessoas se aglomeram em determinada hora. É nesse ‘centro’ que encontramos as pessoas que ainda mantêm a tradição de irem às ruas para ba-ter um papo com algum conhecido.

Logo na chegada para o segundo dia de apuração dou de cara com Maria Zilda, moradora da Rua da Lama há 26 anos, e sua filha, Maria de Fátima, na calçada em frente à sua casa. Cordialmente dona Zilda logo me oferece um banco para eu me juntar a elas. “Aqui é um bairro humilde, mas todo mundo é educa-do”, dispara logo. Para ela, esse mo-mento, em que fica na calçada, é o

melhor do seu dia. “Aqui eu fico em contato com a natureza, fico olhan-do quem passa e quem vem. E nin-guém aqui mexe com ninguém, tem esse negócio de violência não”, diz.

Maria de Fátima, que mora em um bairro vizinho, toda tarde vem e fica com sua mãe conversando na calçada. “Às vezes a gente jun-ta um grupo, uma pessoa coloca a televisão na frente da casa e fica todo mundo assistindo”, conta.

Não muito distante avisto outro grupo, dois estavam sentados li-teralmente na calçada, enquanto um senhor os fazia companhia em um banquinho minúsculo de madeira. Ao interromper a conversa que pare-cia muito animada, fui logo convida-da a sentar junto com eles, na calçada. Augusto César, 45 anos, estava de passagem pelo seu antigo bairro, mas, não perdeu a oportunidade de sentar com os amigos e colocar o

“aqui as pessOas se cOnhecem, cOnvivem,

se respeitam,”

A RUApapo em dia. Quando o questionei sobre a simbologia que aquele mo-mento de estar ali conversando, vendo o movimento da rua sig-nificava, ele não pensou muito e logo disse: “É um negócio barato, bom, saudável e ninguém apro-veita. As pessoas só querem saber de Facebook e esquecem do toque”.

Recife se encontra entre as capitais mais violentas do país. Não é de se espantar que cada vez mais ve-mos muralhas sendo construídas com o intuito de passar segurança. Ou então, a construção de prédios cada vez mais altos, com segurança 24h, isolamento total do mundo lá fora. Cenário bem presente na vida de muitos pernambucanos. A fal-sa sensação de estar seguro, a indi-vidualização, a reclusão, são alguns pontos que também podemos le-vantar que implicam na diminuição de cenas como as que tive o pra-zer de presenciar na Rua da Lama.

“Há bairros que a gente nem vê esse tipo de coisa, devido a mora-dia que não permite, é prédio de um lado, prédio de outro. Mas também sinto falta do querer das pessoas. Hoje em dia as pessoas não sabem nem os nomes dos vi-zinhos. Aqui as pessoas se conhe-cem, convivem, se respeitam, até isso você aprende ao praticar esse tipo de hábito”, resume Augusto.

reportagem

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deixar todos os visitantes à vonta-de. Depois, vieram quilômetros de ciclovias para incentivar a práti-ca de exercícios físicos e facilitar o tráfego. Com tanta história boa para contar, a ideia foi copiada em Man-hattan, Bronx, Queens, Brooklyn e Staten Island. Anos depois, chegou a Curitiba, Rio de Janeiro e Maceió. No início de 2013, foi a vez do Recife apostar na ocupação das ruas exclu-sivamente por pedestres e ciclistas.

Aqui, o projeto começou no Bair-ro do Recife, com o Recife Antigo de Coração. Todo último domingo de cada mês, as ruas do bairro são fechadas para carros. Ao invés de automóveis, o que ocupa as vias são atividades de esportes e lazer, como exposições de arte, apresentações musicais, dança de salão, quadras de basquete e pistas de skate. Todo mês, os recifenses aproveitam a oportunidade para se divertir pelo bairro, além de andar de bicicle-ta nas ciclofaixas móveis - monta-das nos feriados e finais de semana.

Para espalhar a prática pelo restan-te da cidade, a prefeitura criou o Lazer na Rua em setembro. Com o projeto, outras vias trocaram os carros por lazer nos finais de se-mana. “É uma forma de entregar as ruas aos cidadãos, para que eles se apropriem da cidade e apro-veitem seu espaço como desejarem”, afirmou o secretário de turismo

Felipe Carreras. No início, nove vias e o Segundo Jardim da Aveni-da Boa Viagem participavam do projeto, mas três meses depois a ideia chegou a mais 67 ruas, a pedido da própria população.

“É uma ideia ótima porque todos podem aproveitar o espaço para se divertir. As crianças brincam e nós pedalamos à vontade”, acredita o aposentado Cristiano Dijck, 64, que leva os netos para o Segundo Jardim da Avenida Boa Viagem todos os do-mingos. Nas outras vias, os mora-dores são autorizados a organizar a própria programação no final de se-mana. Na Rua Maguari, em Afoga-dos, por exemplo, já teve até parque infantil no Dia das Crianças. “O pes-soal aprovou a ideia em um instante.

reportagem

A ideia de reocupar a rua tem tomado força e preocupado até governantes. Projetos oficiais têm incentivado a

população a sair de casa bloqueando o tráfego de carros e ‘entregando’ as ruas aos moradores

Menos carros, mais diversãO

TEXTO E FOTOS MARINA BARBOSA

No corre-corre das cidades grandes, encontrar ruas tranquilas para sentar e jogar conversa fora é uma tarefa cada vez mais difí-cil. Parece que todos estão muito apressados e as vias públicas são um reflexo dessa agitação: cheias de carros e pedestres em eterno movimento. Por isso, locais como a Praça dos Amigos e a Rua Doutor Machado tornaram-se raridades. Para aliviar essa tensão e incenti-var a ocupação do espaço públi-co, prefeituras de todo o mundo têm investido na criação de praças onde antes só passavam carros.

A ideia surgiu em Nova York e fez tanto sucesso que foi copiada em todo o mundo, inclusive no Re-cife. Na cidade americana, cinco quarteirões da Broadway foram fechados ao tráfego de veículos em 2009. No lugar dos carros, pedes-tres, ciclistas e cadeiras ocuparam a pista de automóveis. A ideia fez sucesso e, além de incentivar o convívio social, melhorou o trân-sito da cidade. Depois de semanas de teste, ganhou espaço definitivo e o apoio massivo da população.

A adesão foi tanta que a prefeitura precisou até disponibilizar cadei-ras de praia nas novas praças para

Todos querem ver seus filhos brin-cando na rua com segurança e, sem carros, é possível”, acredi-ta a cozinheira Eloá Dantas, 53.

Para aderir à iniciativa, a rua não pode ter igreja, hospital, estacio-namento coletivo, linha de ôni-bus, ponto de táxi e feiras livres no trecho a ser fechado. Além disso, 90% dos moradores da via precis-am concordar com a ideia em um abaixo-assinado. Os moradores da Rua Doutor Machado, em Cam-po Grande, aorganizaram o do-cumento assim que souberam do projeto. Eles já costumavam colo-car cadeiras nas calçadas para con-versar, mas agora podem ocupar toda a rua nos finais de semana.

Rua Doutor Machado, em Campo Grande

reportagem

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reportagem

O rápido avanço vertical encurtou as distâncias geográficas mas promoveu a individualização dos

moradores. Aos poucos, a convivência das ruas vai dando lugar ao isolamento no céu

Atrás do arranha-céu

TEXTOS IGOR NÓBREGA E PATRÍCIA BONFIM FOTOS IGOR NÓBREGA

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Andar à noite pelas ruas de bairros como Boa Viagem, na Zona Sul do Recife, é

sentir na espinha a hostilidade de um local dominado por construções verticais. “Vizinhança” de prédios altos e imponentes, verdadeiras for-talezas que se fecham em si mesmas e viram as costas para o espaço públi-co, a rua - solitária e amedrontadora no silêncio da noite. Se a desculpa do isolamento é a violência urbana, a verticalização retroalimenta suas próprias razões. Os muros altos dos edifícios não deixam nem a possi- bilidade do transeunte pedir so-corro caso sofra algum tipo de agressão na rua deserta. O espaço público tem deixado de ser espaço de convivência. Tornou-se hostil.

As construtoras têm transformado o espaço urbano do Recife em ritmo acelerado. Mesmo em bairros como Derby, Espinheiro e Graças, que já possuem um parimônio arquitetôni-co construído, a especulação imo-biliária avança e casas dão espaço a espigões. Aos poucos, as particularidades de cada lugar vão dando es-paço à padronização vertical. Olhar a paisagem das pontes que cruzam a Zona Norte da cidade é constatar que além do Rio Capibaribe e da ve-getação à margem dele, o aglome-rado de prédios já faz parte da vista.

Mesmo apresentando alguns sinais de saturação, mais de 650 lança-

mentos imobiliários são realizados a cada mês na Região Metropoli-tana do Recife. Segundo o Índice de Velocidade de Vendas (IVV), in-dicador produzido pela Unidade de Pesquisas Técnicas (UPTEC) da Federação das Indústrias do Esta-do de Pernambuco (Fiepe), foram lançados 7.606 imóveis residenci-ais de janeiro a dezembro de 2013, um aumento de cerca de 2% em relação ao mesmo período de 2012. A expansão urbana para cima é uma realidade certificada pela maio-ria dos empreendimentos agora costruídos com mais de 20 andares.

Para tentar impedir que a situação saísse do controle, foi criada, em 2001, a Lei 16.719, popularmente conhecida como “Lei dos 12 Bair-ros”. A legislação delimita a altura dos prédios com a intenção de pro-teger a paisagem da cidade e deter-mina que a construtora deve man-ter entre 30% e 60% de solo natural em obras erguidas no Derby, Es-pinheiro, Graças, Aflitos, Jaqueira, Parnamirim, Santana, Casa Forte, Poço da Panela, Monteiro, Apipu-cos e parte do bairro da Tamarinei-ra. Para Avelar Loureiro, diretor de relações institucionais da As-sociação de Empresas do Merca-do Imobiliário (Ademi), os prédios passaram a ocupar mais solo, já que a legislação limitou a altura das edificações. Com isso, cada vez mais casas vão dando espaço para

reportagem

“O que eu achO mais estranhO é a despersOnalizaçãO da vizinhança.

cria-se Outra relaçãO sabe?”

reportagem

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* “Minha rua em si tem mudado de uns cinco anos para cá. Mas o bairro em geral tem mudado há mais tempo, acho que de uns 10 anos para cá. Ainda tem muitas casas nos arredores de onde eu moro - muito mais do que bairros como Graças e Casa Forte, que passaram por esse processo (de verticalização) há um tempo atrás - , mas a relação com os vi-zinhos continua mais ou menos a mesma que sempre foi. Em geral, todo mundo é bastante discreto e nunca houve muita interação com a rua em si (tipo, pela-da na rua, gente na frente de casa, etc). Os edifícios, mesmo com espaços específicos para jardins e áreas de lazer, passaram a ser uma espécie de modelo de moradia individual.

os edifícios. A situação se agrava em bairros vizinhos a área protegi-da pela lei, como Torre e Rosarinho.

A verticalização acelerada em áreas que, há alguns anos, eram domina-das por casas, mudam a dinâmica da área, o movimento e a alma das ruas. O estudante Victor Germano mora na rua Professor Otávio de Freitas, no bairro da Encruzilha-da, Zona Norte do Recife, há quase 15 anos. Antes, morava em outra casa na rua Euclides Fonseca, no mesmo bairro. Aliás, limites ter-ritoriais no Recife são controver-sos, como lembra o próprio Victor: “Vendo pelo CEP, meu bairro é a Encruzilhada, mas aqui me refiro tanto a ele como ao Rosarinho”.

Um gênero que automaticamente recolhe o morador ao interior do seu apartamento e submete-o a con-viver com pessoas que, na prática, moram no mesmo prédio, mas não podem ser chamadas de vizinhas. A convivência, nesse sentido, se tornou conjunta, mas não coletiva. “O que eu acho mais estranho é a des-personalização da vizinhança, sabe? Eu sei quem mora dos meus dois la-dos. E antes sabia quem morava na minha frente e atrás. Agora meus vizinhos frontais e traseiros são dois prédios. Cria-se outra relação, sabe?” Os bairros cercados pelos espigões já demonstram que além do ven-to, os carros têm dificuldade para

circular pelas ruas. O adensamento vertical leva ao aumento no número de veículos nas ruas, gerando caos no trânsito nos horários de pico.

“O fluxo de gente e carro na rua tem au-mentado bastante com a construção de um prédio específico, que tá sendo cons- truído em frente a minha casa, mas já vinha aumentando com outras cons- truções que vinham acontecendo em outras ruas próximas. E agora tem um sendo construído atrás da minha casa e que aumentou bastante a quantidade de caminhões, mas acho que é temporário.”

O rápido avanço vertical expõe tam-bém a vida particular dos mora-dores. Com a proximidade dos prédios, as novas construções in-terferem na qualidade de vida de quem já está no bairro há mais tempo. As janelas agora preci-sam estar fechadas durante parte do dia como forma de garantir um pouco privacidade dentro de casa.

“Eu sinto que minha privacidade di-minuiu sim. Não sentia tanto quando os prédios ainda não tinham chegado tão perto da minha casa. Mas o Everest - que é o predio que tá sendo construí-do na frente da minha casa - me deu outra visão disso. Ele ainda está sendo terminado, então as pessoas ainda não vieram morar nele, mas só o fato de ter conviver diariamente com vários operá- rios e deles me verem todo dia entrando e saindo já foi uma diminuição substan-cial. Até pelo fato de que, sabendo a roti-na da minha casa, eles podem vir a usar isso de alguma forma. Além disso, as

“cada cantO da casa tem um significadO.

vê-la ser destruída para dar lugar

a um prédiO nOs faria muitO tristes”

reportagemreportagem

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varandas do prédio ficam de frente para minha casa, então é possível ter algu-ma noção do que acontece dentro dela.”

Para reorganizar o espaço urba-no verticalmente e aproveitar cada metro quadrado dos bairros, as imobiliárias e construtoras estão dispostas a desembolsar milhões de reais por um terreno para construir

torres residenciais de tamanhos sa-tisfatórios e com boas áreas de lazer. Por isso, o assédio das construtoras aos moradores que estão em suas áreas de interesse tem aumentado nos últimos anos, embalado tam-bém pela falta de terrenos livres.

“Já rolaram várias propostas sim (de construtoras), mas não faço ideia de

quais foram. Na verdade, isso nunca che-gou nem a ser discutido, pois meu pai não quer nem ter essa conversa. Mas várias construtoras já mostraram interesse na nossa casa sim. Mas além da minha família não querer sair da casa, nossos vizinhos também não querem sair da deles, então fica mais tranquilo resistir porque para levantar um prédio aqui precisaria de, no mínimo, duas casas.”

Em vez de áreas vagas para cons trução, o que existe são casas, anti-gos sobrados e pequenos edifícios que poderiam ser demolidos para dar lugar aos arranha-céus. É a saí-da que o mercado imobiliário tem achado. Só há um problema: encon-trar pessoas dispostas a vender seus espaços. Nesse aspecto, o conheci-do ditado de que o dinheiro compra tudo não se aplica a esses moradores, que não abrem mão de morar na mes-ma casa há décadas e é o cantinho que escolheram para chamar de lar.

“E quanto a gente resistir às propostas, tem muito a ver com a relação afeti-va que a gente tem com essa casa. Nós compramos ela em ruínas e a reforma-mos totalmente, então ela tem muito a nossa cara. É muito interessante ver como ela foi sendo moldada de acordo com as nossas necessidades e possibili-dades. Cada canto da casa tem um sig-nificado para mim e para meus pais. Sair daqui significaria perder uma im-agem muito única, muito peculiar. E vê-la ser destruída para dar lugar a um prédio, com certeza, nos faria muito tristes. O que eu quero dizer com isso é que não é apenas o fato de morar numa casa que nos prende aqui, é o fato de morar nessa casa específica, que carrega uma carga emocional muito grande.”

Renato Neves

reportagem reportagem

Page 10: Revista Átimo - Arruar

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#ISOLAMENTO

“Os espaços públicos, que já tiveram esse papel de acolher, de agrupar as pessoas, são só lugares de pas-sagem do automóvel. O que é que explica esse abandono da rua? As pessoas passaram a se agrupar ver-ticalmente e essa forma de agrupa-mento vertical não favorece a co-municação. Tanto é que as pessoas entram no elevador do edifício, não conhecem as pessoas e nem cum-primentam. Se você morar num lu-

gar com predominância horizontal, você passa e associa às pessoas às casas, às vezes você fala, você cum-primenta. É assim que acontece em Olinda ainda, na parte histórica.

#RUA VERTICAL

Eu escutei uma frase de um francês que disse: “um arranha-céu é uma rua vertical sem saída”. Mas se dis-sesse assim, que é uma rua vertical onde todo mundo se encontra no salão de festas, na piscina... mas a gente sabe que não é assim. As pes-soas continuam se olhando estra-nhamento dentro dos prédios. Out-ra vez escutei de alguns holandeses “ah, existe uma vantagem de morar em apartamento, você tem um sen-timento de liberdade”. Eu disse ‘acho que você tá enganado, tá con-fundido sentimento de isolamento com liberdade. Você não sabe nem quer saber quem é o seu vizinho’.”

#MANDA BLINDAR

Você mora no seu apartamento, toma o carro no estacionamento, vai pra rua, chega em outro lugar, para no estacionamento, sobe e nem tomou conhecimento da rua, nem da praça, nem do largo, nem da esquina, nada. De preferência, você tá com seu carro com película escura e, se puder, manda blindar.

#INSEGURANÇA

“Como consequência do adensa-mento, é preciso providenciar ga-ragens para os automóveis. Alguns

edifícios têm duas, três vagas de garagem para cada apartamento. A prefeitura exige uma relação entre o número de apartamentos e o núme-ro de garagens. Então isso causa vários pavimentos de garagem. Às vezes, até o terceiro pavimento é só de garagem. Qual o efeito que isso dá na rua? É um paredão de três, qua-tro metros, ou mais...Aí você tem algumas ruas de Boa Viagem que parecem um corredor da Morte”.

#URBANIZAÇÃO

O Brasil demorou a se industrializar. São Paulo começou lá pelos anos 30, timidamente. Lá pelos anos 50, o Bra-sil, aí como um todo (mas, sobretudo o Sudeste), em substituição às im-portações por causa da guerra, teve que se virar e criou suas indústrias. Nesse momento, a população urbana tem um crescimento considerável. Então, se no final do século 19, com a abolição da escravatura, não se implantou nenhuma estrutura de apoio, de acolhimento, de inserção da população negra na sociedade, essa população criou os casebres e mocambos. E depois dos anos 30, 50, houve um afluxo muito grande. O que houve na Europa no final do século 19 houve aqui no Brasil nes-sa época, esse afluxo muito grande de pessoas para a cidade. É a par-tir daí que há um processo de ad-ensamento dos centros urbanos.

#RECIFE

Esse processo no Recife, que veio a partir dos anos 60, se acelerou nos

TEXTO E FOTOS IGOR NÓBREGA

Ruas verticais

Verticalização pode significar isolamento e afastamento da relação do homem com o solo. Assim acredita Tomás

Lapa, professor de arquitetura e urbanismo da UFPE. O acadêmico, que é o representante do programa de

pós-graduação em desenvolvimento urbano (MDU) no conselho de desenvolvimento urbano (CDU), faz um

panorama da ocupação urbana no Recife

entrevistaEntrevista

Page 11: Revista Átimo - Arruar

20 21

anos 70. Com o chamado milagre brasileiro, tem-se um processo de ocupação bastante acelerado. Bair-ros inteiros como Boa Viagem, por exemplo, cuja ocupação foi iniciada lá pelos anos 40, bem timidamente, explodiu nos anos 70. E como o bairro não tinha um patrimônio construí-do em um ambiente edificado, como Casa Amarela, Casa Forte, Torre, Graças, entre outros, a ocupação já veio com moldes modernistas, de verticalização. Praticamente não houve transição, como está havendo no Espinheiro, Graças, Casa Forte.

#CONSTRUTORAS

Então você vê um processo de ver-ticalização que vem como conse-qüência de um processo de urban-ização acelerada e industrialização, em um espaço curto de tempo. Ex-iste um mecanismo da legislação urbanística, que vai paralelamente. Esses prédios são construídos assim porque a legislação prevê um coefi-ciente de utilização. O que esse coefi-ciente quer dizer? Por exemplo, você tem a área de uma casa térrea. Se você tem coeficiente 2, significa que você pode construir duas vezes essa área.

E o que acontece? Se você remem-bra várias casas, aí você vai tendo a possibilidade de obter um coefici-ente altíssimo. Aí você tem só que respeitar os recuos e sobe, porque o coeficiente permitiu uma deter-minada área de construção. É uma norma técnica que está lá na leg-

islação. E porque a legislação é as-sim? Porque ao longo dessas dé-cadas todas, o poder imobiliário pressiona o poder público, que ter-mina se omitindo e abrindo mão desse papel de ordenação do espaço em prol dos interesses desse setor.

#OCUPAÇÃO

No Recife, os caras percebem que numa mesma área de terreno, eles podem multiplicar a área passível de ser vendida e o lucro vai lá pra cima. Eles alegam que o município não tem mais área para construir, mas, por exemplo, você tem toda a área central do Bairro do Recife, Santo Antônio, São José, e uma par-te da Boa Vista que é subtilizada.

Tem muitos imóveis que estão vazios, abandonados. Então esse ar-gumento que o Recife não tem mais área pra edificar, ele não é muito ver-dadeiro, porque se o poder público articulasse os interesses dos propri-etários desses imóveis com planos de fomento à habitação, se houvesse o interesse, poderíamos partir para um processo de ocupação com habi-tação, sobretudo, nessas áreas e não teria necessidade de se levantar, na ponta de Santa Rita, duas torres de 42 andares sobre o pretexto de que não se tem mais área para construir.

#MODERNIZAR

O modelo modernista dos anos 20, 30, vindo da Europa, prega-

va algo como Brasília. Grandes gramados, grandes áreas verdes, grandes passeios. O que se cha-ma “escala bucólica de Brasília”. Em cidades como Recife, onde já se tinha um ambiente edificado rela-tivamente denso, como vai-se im-plantar um modelo como esse? Só se passasse um trator e devastasse tudo. Brasília começou do zero...

Então, no final dos anos 50, um ar-quiteto chamado Borsoi veio do Rio de Janeiro e trouxe as ideias mo-dernistas dizendo “chegou a hora de modernizar”. Mas de todo o modelo modernista só se copiou um aspecto: o da verticalização. O de criar grandes espaços, grandes praças, grandes locais de encontro das pessoas, de contemplação da natureza, foram esquecidos, porque não cabia. Era só o aspecto que interessava a o capital.

De repente, começa a ter um pro-cesso de adensamento dos edifícios com todo o tipo de argumento. Por exemplo, existem estudiosos da área de conforto ambiental que dizem que nessa região as edifi-cações verticalizadas são mais indi-cadas porque é uma região quente e úmida. Se é úmida então você sol-to do solo, cria pilotis. Se é quente, você sobe para captar os ventos.

#SOLO x CÉU

Existe uma relação muito forte entre o indivíduo e o solo. O solo tem uma energia. Essa relação é tão forte que

em alguns países existe o chamado jus solis - direito do solo- ou seja, se você nasceu naquele solo, você é con-siderado natural naquele país. En-tão sua primeira identidade, que é a sua nacionalidade, foi definida pelo fato de você estar ali naquele solo.

Na medida que você verticaliza, essa relação vai se tornando abstrata. Se você mora lá em cima, qual a relação que você tem com o solo? Às vezes, dependendo do andar e do lugar que você mora, numa situação de ne-voeiro, você nem vê o solo. E a par-tir de uma certa altura, a pessoa tem muito mais relação com o céu e as nuvens que com o chão e as árvores.

#CDU

Quase 50% da composição do CDU é de técnicos ligados ao poder público. Além disso, tem o pessoal a ADEMI (Associação das Empresas do Mer-cado Imobiliário) e do CDL (Câmara dos Dirigentes Lojistas), que tem interesses de adensar a cidade para que o público consumidor aumente. Tradicionalmente, nas reuniões do CDU, tem três ou quatro que dizem não, o resto aprova as obras. As obras passas pelas instancias técnicas: Diretoria de Controle Ur-bano, Compesa, Celpe, Bombeiros, CPRH... e em todas essas instân-cias técnicas a visão do problema é muito setorizada. Ninguém tá olhando a cidade como um todo.

“as pessOas passaram a se

agrupar vertical-mente e essa fOrma de agrupamentO nãO favOrece a cOmunicaçãO”

” tem muitOs imóveis que estãO vaziOs,

abandOnadOs. esse argumentO que

O recife nãO tem mais área pra edificar nãO é

muitO verdadeirO”

entrevistaentrevista

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ruas aO lOngO da história

rOma antiga

vias eram vOltadas para a repre- sentaçãO dO pOder. apesar da OstentaçãO dOs belOs paláciOs e mOnumentOs, a maiOria das ruas era mais pOpulares.

alta idade média

ruas tinham caráter arquitetôni-cO, Ou seja, estavam cOntidas dentrO de uma edificaçãO. as casas se aprOximavam umas das Outras pOr necessidade de defesa.

revOluçãO industrial

cOm O “inchaçO” das cidades em funçãO da grande demanda pOpulaciOnal que migrava das áreas rurais, as ruas passaram a ser densamente Ocupadas.

paris, 1850 bOulevards largOs que chegavam a um quilômetrO. a burguesia enriquecida depOis da revOluçãO industrial desfila pelas ruas que nãO mais tinham funçãO ar-quitetônica.

iníciO dO séculO xx mOdernizar significava sanear e embelezar. cOm esse prOces-sO, as ruas, as praças e Os jardins passaram a ser cada vez mais um lOcal de encOntrO, de passeiO.

renascimentO

as vias reaparecem cOmO repre-sentaçãO dO pOder. vOltam a ser triunfais e, nOrmalmente, tinham paláciOs e grandes cOnstruções nO pOntO de fuga.

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Aurora sem cOr

A rua do sol nascente, exaltada por tantos poetas

em seus tempos áureos, já não brilha mais como

outrora. Vigilante, a estátua do poeta Manoel Bandeira na calçada da via observa – com certa dificuldade, através de

seus óculos quebrados - a bela vista à margem do Rio Capibaribe, mas também acompanha a degradação e o abandono de um dos

cartões postais mais bonitos da cidade. Lixo, ferrugem

e insegurança tomam conta do lugar onde, na

infância, Bandeira “ia pescar escondido”.

Ensaio

FOTOS IGOR NÓBREGA, JOÃO VITOR PASCOAL, MARINA BARBOSA E

PATRÍCIA BONFIM

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Rua da União...Como eram lindos os montes das ruas da minha infânciaRua do Sol(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)Atrás de casa ficava a Rua da Saudade......onde se ia fumar escondidoDo lado de lá era o cais da Rua da Aurora......onde se ia pescar escondidoCapiberibe- Capiberibe

Trecho do poema “Evocação do Recife”, de Manoel Bandeira

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“- Voei ao Recife, no CaisPousei na Rua da Aurora. -Aurora da minha vida -Que os anos não trazem mais!”

Trecho do poema “Cotovia”, de Manoel Bandeira

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Quem dirá hoje da perfeita ex-pressão jubilosa dos gulosos olhos de mulher quem, através da móvel moldura do postigo de uma cadei-rinha de arruar, fugindusura do lar, a percorrer as ruas da cidade, na indisfarçável cobiça de saber as novidades? Cadeirinha de arruar tão bonita, tão maneira, tão fôfa, in-vejada vizinhas que a espreitavam, fingindo desdém, pelas frestas do balcão. Assim vpena ir-se assistir ao sermão do Corpo Santo, ouvir a missa cantada no Poço, v a co-madre de resguardo, andar mesmo à toa pelos pátios cheios das bar-raqas de uma novena de Nossa Sen-hora, quando não ouvir o oratório na Casaera... Não se cansavam as pernas e dava-se tanto na vista!

Cadeirinha de arruar, misto de reca-to e de ostentação. Um pouco de

mistério e uito de vaidade. E tão raras a princípio! Não era para quem que-ria e sim para qudia. Distinguiam-se na cidade os seus donos, falava-se das transitadoras pela Bta, por San-to Antônio, por Fora-de-Portas. As senhoras de relêvo social, mora dos sobrados de azulejos, por cima dos trapiches ou das lojas dos maridos, ous sítios de casas apalacetadas dos arrabaldes, possuíam as suas, com ornatosha, com estofos de gor-gorão, com portinholas desenhadas, conduzidas por escs em parelhas de igual altura, negros bonitões e ro-bustos, trajando librés de côrrantes e bonés de oleado que o jornal anun-ciava como "novidade de Paris".

Apareciam novos modelos: de cúpula dourada, com portinhas em alto-relêvo, gs, correias de marro-quim, e o que se tornou um auge de

bom gôsto: providasros. Vidraças! Que luxo! Não se temia mais a poe-ira das varreduras nem os ccos im-previstos. Sobretudo, ia-se ali den-tro, à vontade, vendo-se tudo, sem recndiscrição de uma mão afoita ou-sando atirar uma flor, ou um escri-tinho, se esmo o furtar de um beijo...

Cadeirinhas douradas, "de caixão", das mais suntuosas e pouco vistas, evocanem que passeavam as fidal-gas parisienses, de cabeleiras em-poadas. Bom mesavessar a cidade numa delas, protegida pelos vidros, apreciando o movimenando as lojas, descendo na igreja ou na costureira.

Cadeirinhas de arruar... Que de po-emas inspirastes! Que de ansie-dades e esnças provocastes! Quan-tos homens ficaram horas, ao sol ou à chuva, esperanma dessas ba-

louçantes caixinhas de luxo, por se aninhar nela sinhàzinha que ia a bênção à madrinha, escoltada pelo pai, a cavalo, de chapéu alto e rebenque nho! Às vêzes as cadei-rinhas tomavam estradas, viaja-vam. Caminho do Monderada dos Apipucos, Caminho de Olinda. Ia-se passar a Festa ou pagar uma pes-sa na Sé. Na reclusão feminina dos tempos, a cadeirinha possibilitava uma rápão da rua, a surprêsa de um quadro maldoso, a acolhida de um olhar ousadoservação estranha de um outro bairro. Cadeirinhas de ar-ruar... Seu nome resuma finalidade ampla, saborosa, mundana. Arru-ar. E a rua constituía um pecado o! Rua tinha saibo de cousa proibida e de má fama. Moleque de rua... Po-voa... Mulher de rua... Bôlo de rua... Namôro de porta de rua... Mas ar-ruar era stoso! E a cadeirinha pro-porcionava êsse gôzo, com uma es-pécie de poder iso, vendo-se tudo sem perigo de contágio. Vendo-se, ouvindo-se e sentindo-se. arim am-bulante para se apreciarem as cenas constantes e variadas dessa peça que as ruas oferecem a todo instante.

Arruar! Ver apenas, não! Sentir a cidade. Evocar seu passado, parti-lhar do seu presente, sonhar com o seu futuro. Encontrar interêsse vivo numa fachada de azulemas pedras de calçamento, num bico de telha-do, num cocuruto de mirante, nua de transeunte, numa escadaria de igreja, numa jaqueira de muro, num inte loja, num lampião de esquina... Arruar... Conhecer e recordar. Pi-sar e querer adar os que já pisaram.

Crônica

Ser ao mesmo tempo a geração de agora e as geraçõestrora. Arruar... Passatempo e análise. Regalo dos olhos e entendimento dos esp. Ar-ruar... Ver as ruas e penetrar-lhes a

história. A história cronológica e a histócial. A história pitoresca tam-bém. Não somente a trilha inicial, a origem do arr, o imperativo do cor-deador, as exigências das posturas, mas, igualmente, os comes, o vozear, as expansões, os vícios, as festas, os maus dias, os amôres de sbitantes...Arruar é abrir êsse livro de história, folhear-lhe vagarosa e saborosa-mente os caos, contemplar-lhe as ilustrações, comparar-lhe aspectos e episódios, comprer-lhe o senti-do através das épocas e das gentes.

Hoje, já não se sabe arruar direito. Anda-se, ou melhor, corre-se pelas ruas.eios de transporte não favore-

Estranhou a acentuação da palavra “aterro” e do hífen em “Boa Vista”? A crônica a seguir é um trecho do livro “Arruar - História Pitoresca do Recife Antigo”,

escrito no início do século XX pelo escritor pernambucano Mário Sette.

“De Fora de Portas até o Atêrro da Boa-Vista”

cem êsse prazer dos antigos. O au-tomóvel e o ônissam rápidos, indif-erentes, ignorantes. Não importa o percurso; interessa apenamino. O rio, as árvores, o templo, a rua, a es-trada, o sobrado, o tipo populante, o nome local, que fiquem depressa para trás. Não se arrua mais. Chis-pa-a-se... O bonde, que sempre con-sentia um vagar para êsse prazer, hoje com a rlotação é um sacrifício...

Arruar é diferente do que fazemos hoje ao atravessar a cidade, no in-terêssebalho ou na distração de um passeio, a caminho da escola, da igreja, do cinem loja, da festa, sem darmos um reparo menos superfi-cial à sua fisionomia, sver melhor o seu perfume, sem escutar medita-damente a sua música... Vamo aqui, por ali, a êsmo, abstratos, guiados pelo hábito, sem atentar, como devêos, no encanto dêste trecho, na claridade desta manhã, no colori-do dêste oca harmonia dêste movi-mento, no feitiço dêste pitoresco. A-travessamos as ruas as com o cuida-do nos automóveis e olhamos as placas das esquinas sem outro psito do que lhes ler os nomes. Somos, no cenário de nosso nascimento e de noa costumeira, quase uns estran-hos, à sua história, às suas tradições, à sua poepassado é um baú velho atochado de papéis amarelos que se destroem num mento azado. Os velhos monumentos foram embora e poucos se lembram dêles. Mm-se as expressões típicas da cidade, e ninguém quase protesta. Desdenha-mo somente o passado de nossa ter-ra, mas o nosso próprio passado...

crônica

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