resenha gláucia

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Especialmente após o início da discussão acerca da Lei que preconiza a redução da maioridade penal dos 18 para os 16 anos, tornou-se impossível, para quaisquer participantes brasileiros de redes sociais, não observar a existência de duas formas de explicação da origem da ação criminosa. Ambas as hipóteses, se por um lado aparentam possuir algum poder de explicação, apenas podem assim figurar por não possuir poder de explicação algum. Para a primeira hipótese, o humano comete o crime por uma escolha individual radicada numa espécie de essência criminosa. Assim, se determinada pessoa incorre em práticas criminosas em um dado momento, o faz não apenas por ter escolhido fazê-lo, mas porque essa escolha se deve a uma espécie de “subjetividade criminosa” inerente a esse indivíduo singular. Fosse bom, poderia escolher diferente; sendo mau, no entanto, escolhe como aquilo que é: um bandido. Uma vez assim compreendido, o destino desse (não) membro da sociedade é ou bem sua exclusão do convívio por via da prisão ou sua exclusão da vida por via do extermínio. Não se precisa de muito esforço argumentativo para demonstrar que essa hipótese, longe de explicar qualquer coisa, ignora completamente aquilo que explica. A Lei, o próprio ato criminoso, a existência de prisões e de penas não privativas de liberdade, parecem não fazer o menor sentido uma vez que assumamos que existem diferenças fundamentais entre humanos. Todos os itens acima citados correspondem a dispositivos criados para lidar com a

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resenha trauma memoria e violência

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Page 1: resenha gláucia

Especialmente após o início da discussão acerca da Lei que preconiza a redução

da maioridade penal dos 18 para os 16 anos, tornou-se impossível, para quaisquer

participantes brasileiros de redes sociais, não observar a existência de duas formas de

explicação da origem da ação criminosa. Ambas as hipóteses, se por um lado aparentam

possuir algum poder de explicação, apenas podem assim figurar por não possuir poder

de explicação algum.

Para a primeira hipótese, o humano comete o crime por uma escolha individual

radicada numa espécie de essência criminosa. Assim, se determinada pessoa incorre em

práticas criminosas em um dado momento, o faz não apenas por ter escolhido fazê-lo,

mas porque essa escolha se deve a uma espécie de “subjetividade criminosa” inerente a

esse indivíduo singular. Fosse bom, poderia escolher diferente; sendo mau, no entanto,

escolhe como aquilo que é: um bandido. Uma vez assim compreendido, o destino desse

(não) membro da sociedade é ou bem sua exclusão do convívio por via da prisão ou sua

exclusão da vida por via do extermínio.

Não se precisa de muito esforço argumentativo para demonstrar que essa

hipótese, longe de explicar qualquer coisa, ignora completamente aquilo que explica. A

Lei, o próprio ato criminoso, a existência de prisões e de penas não privativas de

liberdade, parecem não fazer o menor sentido uma vez que assumamos que existem

diferenças fundamentais entre humanos. Todos os itens acima citados correspondem a

dispositivos criados para lidar com a contingência da vida humana e, assim sendo,

dependem que se compreenda o homem como um agente livre em situação, um ser que

não está pronto, ou, se se preferir, como alguém que escolhe. Leis ou penas nada podem

contra uma essência criminosa, posto que essa se expressará a despeito de quaisquer

contingências e de quaisquer tentativas de constrição. A hipótese de uma “criminalidade

ontológica” (ou biológica, se se gostar de neurociência), além de já ter sido por várias

vezes provada insuficiente em termos científicos, o é também em termos de

compreensão social.

Já a segunda hipótese, igualmente insuficiente, preconiza que o homem escolhe

pelo crime porque vive em um ambiente carente de luxo e/ou de certos auxílios básicos.

Assim sendo, por ser desprovido daquilo que há de mais básico e por ver,

constantemente, que os criminosos não só possuem o básico como possuem ainda o

luxo, o indivíduo escolheria o caminho do crime por ser esta a via que contemplaria a

satisfação de suas necessidades de maneira imediata.

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Essa hipótese, se avança no sentido de conferir uma liberdade ao homem – posto

que ele escolhe o crime - erra ao condicionar a escolha do homem à situação em que ele

está imerso, bem como erra ao aventar uma explicação que depende de situar um

motivo para outro homem sem quaisquer possibilidades reais para tal. Ademais, posto

que tenta ser uma hipótese de explicação do real como um todo, essa explicação não

apenas exclui as exceções – o que seria, todo caso, até aceitável – como as inviabiliza

por completo. Aqueles que são exceções se tornam tão inexplicáveis quanto os milagres,

uma vez que a hipótese não reconhece a limitação de sua aplicabilidade nem, tampouco,

a impossibilidade de explicação intrínseca às ações do homem. A razão, em seu afã

explicativo, não aceita calar-se lá onde deveria. No fundo, essa hipótese parece, de

alguma forma, acreditar numa subjetividade criminosa que, ao invés de ser inata como

no primeiro caso, se constrói como tal com o acúmulo de privações que sofre.

O que ambas as hipóteses parecem esquecer é que o constituinte fundamental de

toda identidade social humana é o tempo. O criminoso apenas começa a ser criminoso

no momento em que pratica um ato criminoso e cessa de sê-lo no momento em que sua

pena cessa. Uma ação determinada no tempo é o ponto necessário que marca uma

diferença entre uma certa identidade e seu oposto. O estigma, estudado por autores

como Erving Goffman, por exemplo, são apenas os traços ou vestígios de uma

identidade outrora existente. Toda a força da reflexão de Goffman é demonstrar o

quanto esses traços identitários passados são capazes de intervir na identidade atual ou,

numa formulação popular, toda a força da reflexão de Goffman é a de demonstrar o

quanto “o passado condena”.

É nesse cenário curiosamente propício que o livro de Glaucia Regina Vianna e

Francisco Ramos de Farias Trauma, Memória e Violência surge com uma terceira

hipótese que propõe algo simples: e se inserirmos o tempo nessa reflexão toda sobre o

crime? Ademais, sua reflexão tem ainda por mérito ser constituída de duas camadas

finamente imbricadas: a camada social e a camada psíquica. Para teorizar sobre ambas,

os autores recorrem a uma miríade de saberes diversos, sendo mais marcada a presença

dos pensamento psicanalíticos de Freud e Ferenczi, bem como a de Roger Dadoun e seu

conceito de homo violens.

Assim, tomando da psicanálise a ideia de que todos nós, humanos, vivenciamos

um estado primordial de impotência, ou seja, que vivenciamos um estado de impotência

que é inerente à nossa constituição, os autores percorrem a existência de algumas

pessoas que se prontificaram a falar sobre o crime para tentar localizar, em sua fala, o

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que poderia ser uma experiência que atualizaria essa experiência primordial e geraria

um trauma. Encontram, em algumas das narrativas que pesquisam, o retorno constante

de experiências de privação relativas às condições básicas de sobrevivência e fazem

dessa vivência de uma experiência de privação o ponto a partir do qual podem explicar

as ações dos criminosos não mais como ação, mas como uma tentativa de elaboração de

um trauma.

Assim, as experiências de privação sofridas durante a constituição subjetiva de

cada uma dessas pessoas parecem ser vivenciadas por algumas delas como experiências

de impotência. Essas experiências de impotência, conforme dissemos, são vividas

como uma atualização da experiência de impotência primordial. Como bem sabemos

desde Lacan, reviver o estado de impotência inicial é aproximar-se demais de um estado

de desagregação psíquica, uma vez que ameaça destituir o indivíduo de sua unidade

coesa. Essa ameaça de desagregação levaria a um excesso de excitação e a uma fratura

das cadeias de representação, ou seja, ao trauma. Uma vez que as cadeias de

representação estão rompidas, a recordação da experiência traumática (quer do evento,

quer do afeto) se encontra impossibilitada. Assim sendo, o sujeito não consegue

relembrar e, portanto, repete em ato aquilo de que não se lembra. Na tentativa de

elaborar essa experiência, ou seja, de reinscrevê-la na cadeia de representações e de

torna-la algo seu, o sujeito, ao atualizar em ato aquilo que não se lembra, age de modo a

inverter a posição de passividade ao qual foi exposto, tornando-se agente do crime.

Como era de se esperar, a ação na maioria das vezes mal sucedida e o sujeito não

consegue, de maneira nenhuma, reintegrar essa experiência às cadeias de representação.

Isso dá conta da dinâmica psíquica a qual os autores se reportam. Socialmente,

no entanto, tudo parece agir de modo a agravar a situação psíquica daqueles que

forneceram suas narrativas. Uma vez tendo sofrido a experiência de impotência como

uma experiência traumática, buscaram redes de apoio para recuperar-se do trauma

sofrido. Não encontraram, no entanto, nenhuma, lá onde ela deveria estar. Essa rede de

apoio pode variar de um parente próximo (a mãe, por exemplo) a uma instituição

específica (um médico). Todo caso, nenhum deles encontrou essa rede de apoio. Não

tendo encontrado a rede de apoio, se encontraram impossibilitados de subjetivar a

experiência traumática e, conforme vimos acima, cometeram o crime como, ao mesmo

tempo, resposta e pedido de socorro. No entanto, se psicanaliticamente alguns crimes

podem ser interpretados como pedidos de socorro, socialmente o são como destruição

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de um bem (material ou não). Sendo destruição, o que cabe é uma punição por essa

destruição o que, nos casos estudados pelos autores, equivaleu à prisão.

Estamos de volta à dinâmica psíquica. Uma vez preso, o sujeito retorna à

posição passiva da qual inicialmente buscava sair e passa por novas experiências

traumáticas. Essas experiências traumáticas não são apenas experiências de privação,

mas também de aviltamento corporal, torturas variadas e afins. Isso se observa desde a

estrutura arquitetônica dos presídios e de sua superlotação até os relatos de certas

formas de tortura sofrida pelos presos. Uma vez que tenham cumprido sua pena, terão

passado por outras experiências traumáticas e entrarão num ciclo ainda mais profundo

de repetição mal feita. Agora, no entanto, não se trata apenas de um trauma decorrente

de uma privação, mas de um trauma decorrente da ofensa à dignidade psíquica mínima

tolerável. O número de cadeias de representações rompidas, bem como o ódio não

extravasado decorrente das experiências sofridas impedem quaisquer acessos ou

tentativas de rememoração. Assim, os autores explicam a frase que circula bastante na

opinião corrente, qual seja “sai pior do que entrou”.

Claro está que estamos aqui falando de um ciclo, uma vez que esse que agora se

torna criminoso fará de outras pessoas suas vítimas e, eventualmente, isso gerará algum

tipo de desestabilização traumática em situações estáveis. Ao mesmo tempo, os sujeitos

dos quais falamos se encaminham a cada vez para um mergulho mais profundo nas

sendas do crime, uma vez que estão, também eles, dentro de um ciclo.

Diferente das hipóteses com as quais começamos nossa pequena resenha, a

hipótese de Vianna e Farias sabe de usa impossibilidade de explicar quaisquer crimes,

bem como sabe que é necessária uma ação para que o humano se torne criminoso. Ao

colocar a ação humana como uma resposta a um trauma, a explicação dessa ação passa a

situa num local que não exclui o social nem o psíquico-subjetivo mas, ao contrário, os

imbrica de tal modo que é impossível compreender um sem o outro. Dito de outro

modo, se, por um lado, o humano é pensado como livre, é pensado também como

alguém situado que escolhe determinadas maneiras de lidar com as experiências que

sofre. Não há, portanto, desculpabilização do criminoso mas, ao contrário, um acento na

dimensão da escolha. Por outro lado, não há também imputação exclusiva ao agente

mas, ao contrário, a explicitação do sentido subjacente a ação a partir da explicitação do

contexto.

Por ser uma hipótese que se sabe parcial, em aberto e, sobretudo, uma hipótese

que se calma sobre a memória de crimes ocorridos, o livro de Vianna e Farias preenche

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uma lacuna no pensamento sobre uma ação que é hodiernamente pensada de forma tão

canhestra. Se pudesse destacar uma grande lição que se aprende com o livro, talvez

fosse essa a que destacaria: a de que o crime, apesar de motivado e milimetricamente

explicado, permanece uma ação social injustificável.