resenha attie filho

4
ATTIE FILHO, Miguel. O intelecto em Ibn Sina (Avicena). Cotia: Ateliê, 2007. título Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento [a] [a] Doutor em Filosofia pela Universidade de Montreal, Canadá, Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, SP - Brasil, e-mail: [email protected] Aquele que conhecemos simplesmente como Avicena, tinha um nome digno de um persa (nasceu em Bukhara em 980 e morreu em Hamadan em 1037) de cultura árabe, já que não havia ainda paulistas de quatrocentos anos: Abu ‘Ali Al-Hussein Ibn ‘Abd Allah Ibn Al-Hassan Ibn ‘Ali Ibn Sina. Foi, como se diz, um homem dos sete instrumentos: médico, exerceu o cargo de vizir (ao pé da letra “aquele que carrega o fardo”, na falta de um piano, naturalmente), deixo uma extensa obra (os catálogos enumeram mais de 270 títulos a ele atribuídos) e ainda viajou pela sua terra natal e foi preso… Entre os livros que escreveu, pelo menos dois tiveram uma importância extraordinária tanto no mundo de língua árabe como no Ocidente latino: o Canon de medicina, que foi (como o próprio título indica) canônico no estudo da arte médica, pelo menos do século XII ao XVI na Europa latina) e a enciclopédia Al-shifa (A cura) que os latinos utilizaram, parafrasearam, copiaram e pilharam de todos os modos possíveis e imagináveis. Esta pretendia reunir o que havia de melhor em matéria de conhecimentos científicos e filosóficos, no que dizia respeito “a todas as coisas cognoscíveis e mais algumas outras,” isto é, o conhecimento da organização e dos procedimentos próprios do pensamento humano (lógica), o conhecimento das coisas materiais (ciência da natureza ou física), os conhecimentos matemáticos (aritmética, geometria, música e astronomia – o quadrívio da Antiguidade Tardia e da Idade Média) e aquele campo de conhecimentos que Aristóteles tinha denominado filosofia primeira Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 21, n. 28, p. 255-258, jan./jun. 2009 ISSN 0104-4443 Licenciado sob uma Licença Creative Commons

Upload: rogeriogr2012

Post on 30-Sep-2015

215 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Resenha sobre O intelecto em Ibn Sina (Avicena)

TRANSCRIPT

  • ATTIE FILHO, Miguel. O intelecto em Ibn Sina (Avicena). Cotia: Ateli, 2007.ttulo

    Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento[a]

    [a] Doutor em Filosofia pela Universidade de Montreal, Canad, Professor da Pontifcia UniversidadeCatlica de So Paulo (PUC-SP), So Paulo, SP - Brasil, e-mail: [email protected]

    Aquele que conhecemos simplesmente como Avicena, tinha umnome digno de um persa (nasceu em Bukhara em 980 e morreu em Hamadanem 1037) de cultura rabe, j que no havia ainda paulistas de quatrocentosanos: Abu Ali Al-Hussein Ibn Abd Allah Ibn Al-Hassan Ibn Ali Ibn Sina. Foi,como se diz, um homem dos sete instrumentos: mdico, exerceu o cargo devizir (ao p da letra aquele que carrega o fardo, na falta de um piano,naturalmente), deixo uma extensa obra (os catlogos enumeram mais de 270ttulos a ele atribudos) e ainda viajou pela sua terra natal e foi preso

    Entre os livros que escreveu, pelo menos dois tiveram umaimportncia extraordinria tanto no mundo de lngua rabe como no Ocidentelatino: o Canon de medicina, que foi (como o prprio ttulo indica) cannico noestudo da arte mdica, pelo menos do sculo XII ao XVI na Europa latina) e aenciclopdia Al-shifa (A cura) que os latinos utilizaram, parafrasearam, copiarame pilharam de todos os modos possveis e imaginveis. Esta pretendia reunir oque havia de melhor em matria de conhecimentos cientficos e filosficos, noque dizia respeito a todas as coisas cognoscveis e mais algumas outras, isto, o conhecimento da organizao e dos procedimentos prprios do pensamentohumano (lgica), o conhecimento das coisas materiais (cincia da natureza oufsica), os conhecimentos matemticos (aritmtica, geometria, msica eastronomia o quadrvio da Antiguidade Tardia e da Idade Mdia) e aquelecampo de conhecimentos que Aristteles tinha denominado filosofia primeira

    Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 21, n. 28, p. 255-258, jan./jun. 2009

    ISSN 0104-4443Licenciado sob uma Licena Creative Commons

  • 256

    ou teologia, isto , a metafsica. A lgica constitui uma espcie de propedutica.As trs grandes reas seguintes, compunham o conhecimento terico, vindodepois delas o estudo da praxis humana (tica e poltica). Assim como Avicenaadota na organizao do estudo da lgica a ordem dos escritos do Organonaristotlico, segue tambm, no que se refere ao estudo da natureza a ordem dostratados aristotlicos a respeito (METEOROLGICOS, Liv. I, c. 1 ). Isto nosignifica que Avicena se restrinja a comentar os textos de Aristteles. Inspirando-se deste e de outras fontes, procede a uma reelaborao do que Aristtelesdizia. O estudo da natureza tem incio com a formulao das condies geraisdos seres dotados de matria e sujeitos mudana, seguindo-se o estudo dosseres inanimados e dos animados, isto , vivos, pois dotados do princpiovivificante, a alma (al-nafs, em rabe). Deste modo o Livro da alma (Kitab al-nafs) um estudo de abertura do que diz respeito aos vegetais e animais,ocupando o sexto lugar na sequncia dos tratados; da o nome que recebeumuitas vezes na traduo latina Liber Sextus de Naturalibus.

    O Livro da alma ou o De anima de Avicena ou o Livro sexto arespeito do que natural tem tambm, grosso modo, uma organizao paralelaao Peri Psychs de Aristteles, mas Avicena inova em vrios pontos. Entreoutros, na definio da alma como subsistente por si mesma; no detalhamentoda teoria dos sentidos internos tema da dissertao de mestrado do professorMiguel Attie Filho na Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP), publicada sob o ttulo Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena). PortoAlegre: Edipucrs, 2000; no estatuto e funcionamento do intelecto humano. Esteterceiro tema que d ttulo ao livro do Professor Miguel e foi, antes de setornar livro, o assunto de sua tese de doutorado defendida no Departamento deFilosofia da Universidade de So Paulo (USP).

    Avicena reinterpreta o livro III, captulos 4-5 do Peri Psychsdentro de um quadro csmico, em que o intelecto humano aparece como altima de uma hierarquia de inteligncias ligadas s esferas dos astros. O intelectohumano de que cada indivduo portador simplesmente receptivo em relaoao que, em liguagem plotiniana, denominado o doador das formas. Esterecebe tal nome porque, sendo a inteligncia imediatamente superior ao intelectohumano, ligada esfera da Lua, infunde as formas na matria terrestre, paraque as coisas deste mundo existam e no intelecto passivo humano para quesejam conhecidas. Mas, para que isto se realize necessria uma preparaoque constituda por todo o procedimento, denominado na tradio aristotlicade abstrao da matria sensvel e das condies materiais, que parte daatividade dos sentidos externos, prossegue com a dos sentidos internos e dispe

    NASCIMENTO, C. A. R. do.

    Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 21, n. 28, p. 255-258, jan./jun. 2009

  • 257

    o intelecto passivo para que este se volte para a inteligncia agente ou doadordas formas. Assim sendo, possvel dizer que Avicena procede a uma snteseda tradio aristotlica com um arcabouo neo-platnico. Da, inclusive, aimagem, por ele utilizada, das duas faces da alma, uma volta para o mundomaterial e outra para o mundo no-material ou espiritual, consistindo a plenarealizao da alma humana (felicidade) em sua unio com a inteligncia agentee, atravs desta, com a inteligncia primeira.

    O livro, que o professor Miguel d a pblico, O intelecto em IbnSina (Avicena), retraa o que foi aqui resumido, em sua Introduo e captulo1, tratando mais detalhadamente do intelecto nos captulos 2 e 3. Apresentatambm em anexo uma traduo do texto de Avicena sobre a inteligncia ativae a inteligncia passiva (LIVRO DA ALMA, liv. III, seo 5), feita diretamentedo texto rabe e acompanhada da traduo latina medieval. proposta umainterpretao original desta passagem, na medida em que o intelecto passivono estaria retido exclusivamente ao papel de puro receptor do inteligvel, jdado como tal na inteligncia agente, mas a ele se atribuiria uma participaomais ativa no processo de inteleco e se entenderia a participao da intelignciaagente acentuando sua analogia com o papel da luz na viso sensvel e nocomo uma fornecedora de formas inteligveis inteiramente acabadas.

    O livro do professor Miguel aponta no seu captulo 3 para asdiscusses sobre os intelectos agente e passivo aps Avicena, tendo atingidosua culminncia na Universidade de Paris no sculo XIII. No final da dcadade 60 e no incio da dcada seguinte deste sculo, tal debate movimentou asFaculdades de Artes e de Teologia, nele participando alguns mestres de ambas(Boaventura, Toms de Aquino, Siger de Brabante, Bocio de Dcia). Estedebate girou em torno de Averrois (Ibn Rushd, Crdova, 1126-Marrakech, 1198),que sustentava uma concepo sobre o intelecto, podendo ser considerada maisradical do que a de Avicena, pois afirmava que, tanto o intelecto possvel comoo agente eram instncias transcendentes aos indivduos humanos, sendo estesdotados apenas dos sentidos externos e internos. Mas, antes de se avirem comAverrois, os mestres da Faculdade de teologia tiveram de enfrentar a teseaviceniana de que cada indivduo humano dotado de um intelecto receptivo,mas que o intelecto produtor do inteligvel no individual e sim uma substnciano material, transcendente aos indivduos e nica para toda a humanidade.

    Talvez, ao percorrer os avatares das teorias sobre o intelecto, deAristteles a Avicena e Averrois e Universidade de Paris no sculo XIII,algum possa dizer: muito bem, tudo isso so guas passadas, quando muito umpasseio por entre runas do passado ou por um cemitrio de ideias e doutrinas.

    O intelecto em Ibn Sina (Avicena)

    Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 21, n. 28, p. 255-258, jan./jun. 2009

  • 258

    Seria, no entanto, permitido duvidar, sem necessariamente pretender serparadoxal. Relembremos apenas que Boaventura e, particularmente, Toms deAquino se opuseram, neste tpico, tanto a Avicena quanto a Averrois, paradefender a tese de que cada indivduo humano que pensa, sendo ento dotadoda capacidade, tanto de produzir o universal inteligvel, quanto de receb-lo eexprimi-lo num conceito ou numa proposio afirmativa ou negativa. Assimsendo, como o professor Alain de Libera tem insistido, numa hermeneutica dosujeito preciso reservar um lugar, no s para Agostinho (sempre citado),mas tambm para a polmica medieval sobre a unidade do intelecto (quasenunca lembrada). O livro do professor Miguel , ento, uma excelenteapresentao, tanto deste debate, como de aspectos importantssimos que ocondicionaram e lhe deram origem. Trata-se de um trabalho maduro, de algumque se ocupa com o tema j h um bom tempo, tendo escrito no s o livro jcitado sobre Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena), mas tambm umaapresentao mais geral da Falsafa, A filosofia entre os rabes e tem noprelo uma traduo, diretamente do original rabe do Livro da alma de Avicena.Alm do mais, o leitor ser premiado com um trabalho editorial impecvel euma prosa elegante e agradvel. Salam!

    Recebido: 23/05/2009Received: 05/23/2009

    Aprovado: 02/06/2009Approved: 06/02/2009

    Revisado: 05/10/2009Reviewed: 10/05/2009

    NASCIMENTO, C. A. R. do.

    Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 21, n. 28, p. 255-258, jan./jun. 2009