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19-12-2019
Pequim vai à casa do “bom aluno” celebrar a grande ChinaPortugal deixou de administrar Macau há 20 anos. A festa será patriótica, para Hong Kong ler nas entrelinhas
Victor Ferreira
A festa dos 20 anos da transi-
ção da soberania de Macau
para mãos chinesas será
uma celebração patriótica.
O Presidente Xi Jinping leva
prendas, sob a forma de
investimentos, para celebrar em casa
do “bom aluno” que, ao contrário da
vizinha Hong Kong, não tem dado
dores de cabeça ao Partido Comunis-
ta da China (PCC). Serão prémios de
bom comportamento para uma eco-
nomia que caiu na “doença holande-
sa”. Mas também são antídotos contra
os perigos de desintegração, que con-
tinuam a preocupar Pequim, como se
prova pelo discurso que Xi fez em
Setembro, quando numa reunião do
PCC disse que “Hong Kong, Macau e
Taiwan” são “um grande risco e um
grande desa o para o partido”.
Carmen Mendes, professora de
Relações Internacionais em Coimbra
e autora de diversa obra sobre Macau
e a China, considera “normal” que
Pequim coloque Macau ao nível de
Taiwan ou Hong Kong, onde as ten-
sões são muito mais vincadas. “O
partido encurralou-se na sua própria
retórica em torno da ideia do ‘Um
país, dois sistemas’. Esta foi criada
para convencer Taiwan de que era
possível regressar à China, com
Macau e Hong Kong a servirem de
prova. O problema é que isso não está
a acontecer.”
Mesmo Macau, que não tem um
historial de protestos e confrontos
nas ruas, e que olha para Pequim
como um lho que agradece tudo o
que o pai tem feito, vive com tensões
diversas sob a derme. “Macau era
uma experiência social única”, avalia
Xi Jinping em Macau para celebrar a transição
O Presidente Xi Jinping chegou ontem a Macau, onde amanhã (quando for madrugada em Portugal)
assiste à cerimónia que celebra os 20 anos da transição do território da administração portuguesa para a China. Segundo a Lusa, espera-se que nestes três dias de visita o Presidente chinês apresente as orientações políticas para os próximos cinco anos. Por razões de segurança, nos dias da visita há restrições no metro e a ligação marítima a Hong Kong passa a ser a cada meia hora, em vez dos habituais 15 minutos.
JOÃO RELVAS/LUSA
Corte: 2 de 719-12-2019
Quanto barulho farão os 160
mil foguetes que serão dis-
parados na próxima noite
entre Macau e Zhuhai? Cer-
tamente mais do que o ruído
nos discursos a propósito
dos 20 anos da entrega da gestão de
Macau à China. Na diplomacia, nin-
guém quer ser apanhado com o pé
em ramo verde. E talvez por isso o
que se diz ca muito distante da rea-
lidade.
Em Portugal, o Presidente Marce-
lo Rebelo de Sousa escreveu uma
carta a Xi Jinping, nas vésperas do
início da festa, dizendo que “Macau
continuará a ser mais um importan-
te contributo para o alcance da par-
ceria existente entre a República
Portuguesa e a República Popular
da China”. Dias antes, o embaixador
chinês em Portugal, Cai Run, foi ao
Porto exaltar, durante um seminá-
rio, essa relação, destacando o
papel do Fórum de Cooperação
Económico-Comercial entre a China
e os Países de Língua Portuguesa.
No entanto, poucos dos interve-
nientes actuais ou do passado ousam
tocar com o dedo na ferida: os
ganhos para Portugal são reduzidos.
Ou, no mínimo, frágeis. Já nem vale
a pena tocar nas trocas comerciais
entre Portugal e Macau, praticamen-
te inexistentes nas tabelas do comér-
cio internacional. Exemplo mais
notório é o acesso ao fundo de mil
milhões que foi constituído ao abrigo
daquele fórum de cooperação. Quan-
do se vai a ver quem bene ciou do
dinheiro, chega-se a uma lista de
empresas chinesas. “Muitas vezes, as
regras nem sequer são entendidas
pelas empresas portuguesas”, obser-
va Carmen Mendes, especialista nas
relações Macau-China-Portugal, que
defende a necessidade de “mais
transparência”.
O último governador português
em Macau, Rocha Vieira, sustenta,
ainda assim, que a China “tem uma
parceria estratégica com Portugal”
como tem com poucos países, e fal-
Será Macau a janela do namoro com Portugal?
ta a Portugal olhar para “o investi-
mento chinês no longo prazo”. “O
Estado chinês tem muitos objecti-
vos, tem objectivos de aprender
com os outros, de conseguir áreas
fundamentais que lhe interessam
para o seu desenvolvimento e para
a sua presença no mundo em expan-
são, como seja o caso da energia, ou
dos seguros, ou da saúde, onde
estão, ou da própria banca”, a rma,
anotando, no entanto, que “o inte-
resse da China nos países de língua
portuguesa, nomeadamente em
África (...) deveria ter sido mais
acompanhado por Portugal”.
Nova Rota da Seda Carlos Monjardino, presidente da
Fundação Oriente — e que também
passou pela administração portu-
guesa em Macau — dá como exem-
plo a área da saúde. “Os chineses
compraram empresas desse sector
em Portugal porque precisam desse
know how. E continuarão a comprar
em todas as áreas em que precisam
de conhecimento e Portugal deveria
estar atento a essas oportunida-
des.”
Portugal comprometeu-se com o
plano chinês Nova Rota da Seda
quando em Abril recebeu Xi Jinping
e apadrinhou uma série de memo-
randos que prevêem a cooperação.
O embaixador Cai Run garante que
o namoro é para continuar e que a
China “está disposta a trabalhar jun-
tamente com a parte portuguesa,
para promover o desenvolvimento
sustentável desta parceria”.
Mas o que talvez Portugal precise
é de potenciar a colaboração multi-
lateral ou trilateral, recomenda o
antigo secretário de Estado Brun
Maçães, autor de um livro sobre o
megaprojecto Nova Rota da Seda. “A
China estabeleceu relações directas
e bilaterais com mais de 100 países.
O que Portugal deve fazer é seguir o
modelo de outros, como a Suíça, que
se tornam parceiros da China em
projectos de desenvolvimento eco-
nómico para países terceiros.”
Victor Ferreira
0
200
400
600
800
201819991970 201819991996
667,4429,6
248,6
Habitantes Mediana global de rendimentomensal
Macau Hong Kong
ShenzhenCantão
Mar do Sul da China
CHINA
Macau em números
Fonte: Governo da RAEM0
2
4
6
201819991992
Taxa de desemprego (%)
6,3%
1,8%
1,8%
1920$
589,68$
590,4$
o advogado Jorge Menezes. “Era um
Estado de direito, sem democracia.
Com a herança do direito português,
teria separação de poderes, leis gerais
e abstractas. Mas o que tem aconteci-
do é uma erosão dos direitos funda-
mentais da liberdade de expressão.
Podemos manifestar-nos a favor da
China; se for contra, proíbem-nos.”
Menezes é um conhecido advogado
na região. Teve de lidar com as má as
do jogo, que o ameaçaram a ele e à
família. Defendeu Sulu Sou, um depu-
tado pró-democracia com menos de
30 anos, cuja imunidade foi suspensa
pelo parlamento macaense, e que foi
julgado e condenado por causa de
uma manifestação que se opunha ao
nanciamento de uma universidade
de que fazia parte o chefe do Gover-
no. Sulu Sou acabou por ser conde-
nado ao pagamento de uma multa. E
depois regressou ao parlamento.
desa”. Na linguagem dos economistas,
a doença holandesa (dutch disease)
traduz o crescimento excessivo de um
sector, o dos recursos naturais, por
exemplo, à custa de outros, como a
indústria. O petróleo de Macau cha-
ma-se jogo e jorra com tal vigor que
não há incentivo para mudar o statu
quo. “Mata tudo o resto.”
Será preciso con rmar na sexta-
feira se Pequim pensou de facto em
trocar a roleta de Macau. Segundo a
Reuters, Xi Jinping deve anunciar a
criação de uma bolsa de valores. Não
será para concorrer com as vizinhas
praças de Hong Kong ou Shenzhen.
A de Macau será, segundo diz o antigo
secretário de Estado dos Assuntos
Europeus, Bruno Maçães, que actual-
mente trabalha na China, uma plata-
forma nanceira para o mundo lusó-
fono, como Angola e Brasil.
Outras “prendas” a Macau deverão
incluir concessões na ilha vizinha de
Hengqin, em Zhuhai. Milhares de
operários têm trabalhado dia e noite
para permitir a abertura de um novo
porto neste dia 20 de Dezembro,
quando passam 20 anos sobre o
regresso de Macau à administração
chinesa. O novo porto reduzirá as
fricções na circulação entre a China
continental e Macau, que assumirá a
gestão desta infra-estrutura. O direc-
tor do comité administrativo local,
Yang Chuan, diz que se trata de “pro-
mover o desenvolvimento diversi
cado das indústrias de Macau”.
A leitura política aponta noutro
sentido: é mais uma porta de integra-
ção de Macau na China. Algo que
será ainda mais acelerado com o
mega-projecto da Grande Baía, que
transformará nove municípios e duas
regiões, incluindo Macau e Hong
Kong, numa conurbação com servi-
ços, indústria, tecnologia, nanças
e 70 milhões de habitantes.
A integração está, porém, em mar-
cha e a dúvida reside apenas no grau
de resistência dos valores que Portu-
gal deixou por lá. Um deles é o direito.
Mesmo que a China respeite os acor-
dos e não toque nessa especi cidade
até 2049, há anos que não há um juiz
português nos juízos criminais. Quem
vê o direito penal como uma forma
de controlo social, sabe o que signi
ca esta mudança feita longe dos rada-
res dos media: a singularidade de
Macau tende a esbater-se, e a grande
China faz a Macau o que o delta do rio
das Pérolas faz às águas — mistura-as
até que não se distingam. [email protected]
DANIEL ROCHAHá outros nomes apontados como
exemplos de tentativas de silencia-
mento de vozes incómodas. Paulo
Cardinal era um conselheiro de topo
da Assembleia Legislativa que desali-
nhava das vontades de Pequim. Aca-
bou por ser dispensado em 2018.
Quem o dispensou, Ho Iat Seng, toma
hoje posse como novo líder do gover-
no da Região Administrativa Especial
de Macau. Também Paulo Taipa era
um dos 400 juristas que trabalham
em Macau. “Foi dispensado por ser
uma voz dissonante”, diz Menezes.
“Macau é o bom aluno de um mau
professor, que é Pequim, e que tem
uma má cartilha.”
Especialistas ouvidos pelo PÚBLI-
CO e pela imprensa internacional que
nos últimos dias pôs os olhos em
Macau dizem que falta uma sociedade
civil mais forte. E uma economia mais
diversi cada. A população local pas-
sou de 429 mil em 1999 para 667 mil
em 2018. As receitas monstruosas dos
casinos, que se multiplicaram como
cogumelos depois de 2002, mudaram
a vida da cidade. Macau tem o segun-
do maior PIB per capita em paridade
de poder de compra, diz o FMI. Fica
atrás do Qatar, à frente do Luxembur-
go. Há 20 anos, quase não se distin-
guia de Hong Kong neste indicador.
Hoje, é praticamente o dobro.
O Governo arrecada anualmente
150 mil milhões de patacas. E 80%, ou
seja, 120 mil milhões de patacas, vêm
do jogo, a rma Eilo Yu, professor de
Economia e Política na Universidade
de Macau. Como as despesas do
governo são 90 mil milhões de pata-
cas por ano, isto signi ca que o gover-
no recebe dos casinos mais do que
aquilo que consegue gastar.
“Basta legalizarem o jogo noutra
região, e este monopólio acaba-se”,
sublinha o empresário António Trin-
dade. E qualquer espirro na econo-
mia chinesa sente-se de imediato nos
casinos. Porque a maioria dos 35
milhões de visitantes são da China
continental e vão a Macau jogar.
Até o combate à corrupção mexe
com o negócio. Porque as salas VIP,
reservadas aos grandes apostadores,
eram perfeitas para lavar dinheiro. E
quando Xi Jinping entrou em cena
com a promessa de afastar os corrup-
tos, as receitas caíram.
Esta riqueza proveniente do jogo
“é o maior problema”, aponta Trin-
dade, líder da CESL Ásia. Macau “pre-
cisa de diversi car a economia, por-
que caiu na chamada doença holan-
19-12-2019
“Macau pode ser a nova Hong Kong”
Eilo Yu Professor da Universidade de Macau acredita que faltam respostas para os jovens do território antigamente gerido por Portugal. E que se nada for feito, pode tudo acabar na rua
EntrevistaVictor Ferreira, em Macau
Os protestos em Hong Kong
poderiam repetir-se em
Macau? Nove em cada dez
pessoas a quem zemos a
pergunta dizem que não. A
excepção é Eilo Yu,
professor associado da
Universidade de Macau, que tem
estudado a política em Macau e
Hong Kong desde que saiu desta
antiga colónia britânica em 2002 e
foi trabalhar para a península
chinesa que Portugal administrou
durante quase cinco séculos.
Tem artigos de análise,
económica e política, publicados
em revistas internacionais, nos
quais destaca as razões por que é
menos conturbada a relação
Macau-Pequim, em comparação
com o que se passa na vizinha Hong
Kong. Muitos dos que recusam a
ideia de que Macau jamais será
palco de protestos violentos contra
o regime chinês usam argumentos
como “sociedade civil mais fraca” e
“interesses económicos”. São
razões que Eilo Yu também
identi ca. Porém, acaba por chegar
à conclusão contrária. “Se olharmos
CORTESIA DA PLATAFORMA MACAU
para realidade sem a pressão do
imediatismo, veremos que no longo
prazo há uma tendência que sugere
que a Hong Kong de hoje pode ser a
Macau de amanhã.”
Tem estudado a administração
pública e a prestação de contas
em Macau. Qual é a situação 20
anos depois da transferência de
soberania do território para a
China?
Antigamente, a prestação de contas
era uma tarefa quase
administrativa, nas esferas
executiva, legislativa e judicial,
segundo uma prática do Direito
aliás herdada de Portugal.
E responsabilização política?
Essa é muito fraca. O povo pode
pedir contas aos políticos eleitos,
mas não pode avaliar pelo voto
universal. No princípio, as pessoas
aceitavam que a veri cação do
poder fosse apenas feita pelo braço
legislativo/administrativo, mas seria
expectável que, mais cedo ou mais
tarde, o povo viesse pedir mais e
alargar o conceito de
responsabilização. E que acabasse
por recorrer à rua para exercer
pressão social.
Tem havido pressão social?
Todos os anos há pessoas a sair à
rua no 1.º de Maio. Mas o exemplo
mais signi cativo foi o de 2014.
Coincidindo com o Movimento dos
Girassóis, em Taiwan, e a Revolução
do Guarda-Chuva, em Hong Kong,
tivemos em Macau protestos contra
uma proposta de lei que garantiria
reformas douradas aos dirigentes
políticos, com pensões milionárias.
Houve muitas pessoas que caram
zangadas. Foram 20 mil pessoas
para a rua.
É muito? É pouco?
Pode-vos parecer um número
baixo, mas temos de ver que Macau
só agora tem 650 mil habitantes.
Hong Kong tem seis milhões.
Portanto, à escala, os 20 mil de
Macau corresponderiam a 200 mil
em Hong Kong. O problema é que se
entende que ter de sair para a rua
para exigir responsabilidades não é
bom para a estabilidade. Não é a
melhor prática…
Qual seria então?
Melhor seria reformar as leis para
regular a prestação de contas.
O princípio “um país, dois
sistemas” cuja validade Pequim
diz estar a funcionar bem em
Macau, pressupõe um “alto grau
de autonomia”. Ela existe
efectivamente?
Macau e Hong Kong podem ter um
regime sociopolítico e económico
diferente da China continental, mas
o “alto grau de autonomia” não
signi ca independência. O Governo
central é a fonte de autoridade do
executivo, do legislativo e do
judicial. O líder do governo é uma
escolha de Pequim, tal como os
juízes do mais alto tribunal de
Macau, bem como do
procurador-geral. Este conceito de
autonomia não alarga a capacidade
de intervenção, pelo contrário
limita-a à participação em questões
locais. Neste quadro, o governo
central conseguiu estabelecer uma
forte aliança pró-Pequim em Macau,
em que o legislativo [o Senado] e o
judicial cooperam mais com o
executivo em vez de o scalizarem.
Isso deve-se a alguns factores como
uma oposição política e sociedade
civil relativamente fraca e às
políticas que Pequim dirige a Macau
e que são percebidas localmente
como sendo favoráveis.
Será possível ver em Macau
movimentos de pressão como se
tem visto em Hong Kong?
[Gargalhada] Isso é muito
interessante. Eu defendo que a
Hong Kong de hoje pode ser a
Macau de amanhã.
O que quer dizer com isso?
Esta mesma frase — “a Hong
O Governo central conseguiu estabelecer uma forte aliança pró-Pequim em Macau, em que o legislativo [o Senado] e o judicial cooperam mais com o executivo em vez de o fiscalizarem
c
19-12-2019
-20
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20
40
20182001
1,4% 9,2%
Variação do PIB
TYRONE SIU/REUTERSKong de hoje pode ser a Macau de
amanhã — foi usada em Hong Kong
na Revolução do Guarda-Chuva, em
2014, para alertar os locais para as
consequências da apatia política.
Queriam dizer que, sem verdadeira
autonomia, a ilha acabaria como
Macau, sem poder de mobilização e
escrutínio sobre o governo. Isto
pressupõe que Macau não é tão
democrática quanto Hong Kong,
controla mais as liberdades civis.
Em certo sentido, Macau seria então
um autoritarismo suave, uma
versão leve do autoritarismo chinês.
Assemelha-se ao regime de
Singapura. Porém, eu tenho um
contra-argumento: o governo não
vai conseguir gerir todos os con itos
sociais e, por isso, a dada altura a
sociedade irá ter de se mobilizar.
Essa é a situação que vejo surgir em
Macau. Antes da transição, Macau
sofreu uma crise económica, uma
recessão. Agora temos uma
economia robusta. A população
deveria estar feliz, mas desde 2005
que há, aqui e ali, manifestações no
1.º de Maio em que os trabalhadores
a rmam que não estavam a
bene ciar desse desenvolvimento
económico.
O que é que aconteceu depois da
saída dos portugueses?
As forças pró-Pequim substituíram
os portugueses na administração. A
participação social na selecção do
colégio eleitoral é coordenada, se
não mesmo manipulada, pelas
forças pró-Pequim. A in ltração do
continente no governo de Macau
deve-se em boa parte à
incompetência da administração
local. O envolvimento da elite do
continente no governo regional
permite uma gestão mais saudável
mas põe em causa esse alto grau de
autonomia que era um dos pilares
do “Um país, dois sistemas”.
Acontece que o povo de Macau não
se opõe a esse fenómeno. Talvez
tenha uma maior tolerância, ou
aceite melhor, do que a congénere
Hong Kong.
Mas trata-se de cooperação ou de
intervenção de Pequim?
A maior parte dos legisladores
macaenses evitam criar problemas
ao executivo. Na primeira década
pós-portugueses, três quartos da
legislação assentavam em decretos
do chefe. Nas duas primeiras
legislaturas (1999 a 2005), dois
deputados pró-democracia
[Antonio Ng Kuok-cheong e
Au-Kam-san] zeram 60% das
perguntas à administração. Depois
temos uma justiça que parece
independente mas que tende a ter
decisões favoráveis aos governos.
Quando tínhamos a má a na rua,
Pequim mandou o Exército de
Libertação Popular (ELP). As
pessoas acreditam que foi o ELP a
devolver a paz às ruas. Quando
sofremos com o tufão Hato, o ELP
voltou. As pessoas diziam que
precisam de Pequim para
recuperar. Ainda se lembravam do
que sofreram nos anos nais da
administração portuguesa, a crise
económica em que os deixaram.
Entretanto, o salário cresceu
muito, mas o custo de vida
cresceu ainda mais. O salário
médio triplicou e o preço das
casas aumentou umas 20 vezes.
Estão a lidar com isto?
O preço da habitação era bastante
baixo. Os portugueses deixaram
Macau numa recessão económica,
ninguém queria comprar. Depois, a
economia explodiu. Houve pessoas
que caram muito ricas e o
imobiliário passou a ser uma opção
natural de investimento. Ao mesmo
tempo há alguma especulação, com
fundos provenientes da China
continental, tal como acontece de
resto em Hong Kong. Nos últimos
dois anos, tirando as naturais
utuações, o preço mantém-se
estável. É claro que o governo não
quererá que os preços baixem
porque isso criaria um problema
económico, mas também não quer
que os preços continuem a subir,
pelo que tem tentado intervir para
manter os preços alinhados no nível
actual, esperando que mais cedo ou
mais tarde os salários possam
evoluir no mesmo sentido.
Quais são os desafios para a
próxima década?
Para começar, os jovens. Como
podemos ajudá-los? Como dizia,
Macau pode ser a nova Hong Kong e
o que se passa lá é que os jovens não
têm esperança no futuro. Podemos
achar que eles estão a lutar por
valores sociais e políticos, mas a luta
deles é acima de tudo por um
futuro. No caso de Macau, há uma
camada de população que nos
últimos 20 anos fez o seu percurso e
agora está pronta a reformar-se. A
dúvida é o que irá acontecer às
novas gerações de Macau? Elas não
estão a ter grandes oportunidades
de ascensão social. Por outro lado,
os jovens de antigamente sentiram
toda a vida que não tinham poder
político, que não podiam mudar
nada.
Quando o elevador social não
funciona e uma sociedade não
corresponde ao que as novas
gerações esperam, gera-se
ressentimento, descontentamento e
isso dará origem a novos
movimentos. Muita gente dirá que
isto não existe em Macau, mas é
preciso olhar a realidade sem a
pressão do imediatismo. Penso que
a tendência está lá. Antes de 2010, a
maior parte da mobilização
provinha dos trabalhadores. Nesse
ano, apareceram uns 300 jovens, a
pedir mudanças. Não era um apelo
apenas focado no interesse pessoal.
É claro que estavam preocupados
com o preço da habitação, mas ao
mesmo tempo já estavam a falar das
liberdades civis, da censura nos
media e outros temas. Mais cedo ou
mais tarde, teríamos um grupo de
pessoas a tornar-se activo na
política de Macau. Em Agosto de
2019, tentou-se uma manifestação
de apoio a Hong Kong no largo do
Senado. Eram jovens. Para muitas
pessoas, os protestos de Hong Kong
são maus, prejudicam a economia.
Tal como em 2014, os media locais
zeram pouca cobertura de Hong
Kong, podemos ver que a sociedade
é bastante conservadora, mas é
assim que surge este grupo de
jovens que vêm para a rua.
Portanto há sinais de mudança?
Sim, em qualidade e não em
quantidade. Parece lógico que se
não for feito nada para lidar com
isto, Macau pode ser a nova Hong
Kong.
Portugal ainda conta para
alguma coisa?
Ainda tem signi cado para Macau,
ajuda a re ectir sobre como
podemos manter um país com dois
sistemas, porque este sistema de
Macau tem de estar aberto ao
mundo, em especial ao dos países
de língua portuguesa.
Tem sido uma relação saudável?
Poderia haver mais cooperação.
O governo não vai conseguir gerir todos os conflitos sociais e, por isso, a dada altura a sociedade irá ter de se mobilizar. Essa é a situação que vejo surgir em Macau
“O que se passa em Hong Kong é que os jovens não têm esperança no futuro”, diz Eilo Yu
19-12-2019
Macau “é cada vez mais difícil para os empresários portugueses”
Duas décadas começam a diluir a importância dos portugueses para o território. E os receios de viver num sítio onde o poder político e económico se confundem convidam ao silêncio
Macau mudou muito: de
minúsculo resquício do
colonialismo português
no Oriente, economia
pequena, quase depen-
dente do investimento
público, para o bulício chinês da
capital mundial do jogo. No pequeno
território construiu-se horizontal e
verticalmente, fez-se do mar terra e
prosperou-se — os milhões de turistas
(35,8 milhões em 2018), atraídos
pelos brilhos dos casinos, geram su
ciente riqueza para garantir, segundo
as previsões do FMI, que o PIB per
capita supere o do Qatar em 2020,
tornando-se no maior do mundo.
Mas será que ao ritmo acelerado
das mudanças em Macau, as espe-
ci cidades deixadas por 450 anos
de história no território aguentarão
os 50 anos previstos para a transi-
ção na Declaração Conjunta Sino-
Portuguesa de 1999? Ou cará ape-
nas o folclore do complemento
turístico, entre a gastronomia e o
património mundial do centro his-
tórico, para o forasteiro que chega
para jogar no casino?
“Havia características próprias de
Macau que já deixaram de existir”,
a rma ao PÚBLICO um empresário
português que há muitos anos reside
no território que hoje é, com Hong
Kong, uma Região Administrativa
Especial da China, criada em função
do princípio “um país, dois siste-
mas”. “É só normalizar, normalizar,
regras, regras, regras. A este ritmo
deixará de existir” o que fazia de
António Rodrigues texto Daniel Rocha fotografia
Estarão as marcas portuguesas destinadas a ser apenas o folclore de atracção para o turista dos casinos?
Macau “um lugar único”, desabafa,
pedindo para não ser identi cado
por ainda ter projectos que gostaria
de ver concretizados no território.
Como explica o macaense José
Sales Marques, economista, presi-
dente do Instituto de Estudos Euro-
peus de Macau e um dos directores
da Fundação Escola Portuguesa de
Macau, o território “mudou profun-
damente nos últimos 20 anos, o PIB
cresceu cerca de nove vezes e houve
um aumento do rendimento per
capita e das condições de vida da
população”, no entanto, “do ponto
de vista político, e até para a própria
China”, existe uma “necessidade de
preservar e até desenvolver mais os
laços culturais entre Macau e o mun-
do” e isso passa pelo “reforço da
identidade muito própria de Macau
e da sua multiculturalidade”.
No entanto, o futuro projecta-se
à base de previsões e desejos, mas
“as coisas são feitas por seres huma-
nos”, lembra o economista, e amiú-
de o caminho sai recto do papel e na
execução acaba por avançar por
linhas tortas. “Somos poucos, a
população de Macau é relativamen-
te pequena, 670 mil habitantes, e a
que fala português é ainda menor”,
a rma.
“Temos de ser realistas, a diminui-
ção das comunidades macaense e
portuguesa é um factor natural do
processo de evolução da própria
cidade”, reconhece ao PÚBLICO o
deputado macaense José Pereira Cou-
tinho. “O facto de a comunidade por-
tuguesa estar cá por pouco tempo,
na medida em que chega através de
processos de contratos de curta ou
média duração, mantendo a sua vida
em Portugal, faz com que não haja
casamentos mistos entre portugueses
e chineses e isso também resulta na
diminuição da comunidade.”
Preteridos nos negócios Há quem também sinta que os por-
tugueses começam a ser preteridos
nos negócios, que os chineses che-
gam mesmo a aproveitar as ideias
boas dos outros e a mover cordeli-
nhos para car com os novos nichos
de mercado. Um desses pequenos
empresários cou sem a oportuni-
dade de negócio assim: “Chegaram
a dizer-me para arranjar um sócio
chinês com apelido”, como não
quis, restou-lhe queixar-se às auto-
ridades. Não conseguiu reabrir a
sua empresa, restou-lhe o pequeno
consolo de o chinês ter sido impe-
dido de aproveitar aquilo que ele
criara.
“É cada vez mais difícil para os
empresários portugueses, a não ser
que tenham parceiros chineses. É
preciso ter muitos contactos, se for
só português, não consegue lá che-
gar”, explica o economista Albano
Martins. “Em Macau, as empresas
portuguesas podem concorrer com
as chinesas, mas, depois, sem os
contactos chineses, cam sem capa-
cidade de subcontratar”, acrescen-
ta. Não se trata de “má vontade
contra a comunidade portuguesa,
mas há cada vez mais comunidade
chinesa metida no negócio e a
comunidade portuguesa não tem
capacidade para aguentar”.
António Trindade, presidente e
director executivo da CESL Asia,
uma das maiores empresas de
Macau, é peremptório. “Legalmen-
que vá para um mercado estrangei-
ro.” Porque, a rma o CEO, “natural-
mente, quem é da terra tenta defen-
der o seu território e concorrer com
outras armas em relação a alguém que
vem de fora com mais experiência”.
“Há sinais de favoritismo e vonta-
de de ter oportunidades de negócio”,
a rma o advogado Jorge Menezes.
“Não é bem uma perseguição, não
há sequer uma discriminação por ser
português, acho que é uma dimen-
são da corrupção um bocadinho
endémica que existe em Macau.”
“O mercado da administração
pública desapareceu para as empre-
sas portuguesas”, adianta Trindade,
“e não se pode dizer que por isso ter
acontecido é que a administração
tem problemas graves na execução
dos investimentos e tudo aquilo que
a gente vai ouvindo”, acrescenta o
presidente da CESL Asia.
“É cada vez mais difícil fazer
negócios em Macau”, corrobora o
deputado Pereira Coutinho, tudo
por causa “dos monopólios arti
ciais, ilegais, que favorecem esta
pequena minoria que explora os
principais negócios” na RAEM.
O designer Miguel Falé já teve
uma empresa em Macau, a Zorg 3D,
que fazia uma coisa para a qual pou-
te, não é preciso ter um sócio local”,
porém, “tal como uma empresa chi-
nesa que se instala em Portugal vai
passar uns anos até entrar na Câma-
ra de Lisboa, o mesmo se passa aqui
para uma empresa local”, daí que
um sócio chinês ajude.
“As pessoas queixam-se, mas não
se queixam só os portugueses em
Macau, queixa-se qualquer empresa
Temos de ser realistas, a diminuição das comunidades macaense e portuguesa é um factor natural de evolução da cidade José Pereira Coutinho Deputado macaense
19-12-2019
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201820081,5
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Entrada de visitantesMilhões de pessoas122.435
31.79335,8 3,29
1,66
22,9
Entradas pelo aeroportoMilhões de pessoas
PortugalOCDE
MacauHong KongChina
20181990
PIB per capita (ppc)Dólares americanos
cos têm aptidões em Macau (“somos
quatro ou cinco”): visualização em
3D para projectos de arquitectura,
media e publicidade. Segue no mes-
mo ramo, mas fechou a empresa e
foi trabalhar para um casino. O seu
caso, no entanto, nada teve a ver
com discriminação.
“A circunstância que me levou a
ter de fechar a empresa foi uma
situação concorrencial”, garante.
“Não senti, em momento algum,
aquela coisa de que tanto se fala de
que eles querem correr connosco”,
conta Miguel Falé. As alterações do
mercado ditaram a sorte da empre-
sa e não qualquer razão política.
O arquitecto Mário Duque partilha
a perspectiva enquanto conta como
nos últimos anos o universo da
arquitectura em Macau mudou com-
pletamente. Do território que nos
anos 1980 assistiu à experimentação
arquitectónica, onde uma geração
de pro ssionais criava uma arquitec-
tura “ecléctica” com “muita experi-
mentação”, passou-se para uma
arquitectura “mais standard”, onde
a “tendência é imitar” e “já não há
nenhuma experimentação”.
Não “foram questões culturais” as
que levaram ao desaparecimento da
maioria dos ateliers de arquitectura:
ção Interna, Isabel Oneto, é agora
adjunto da secretária de Estado do
Turismo, Rita Marques, que tem a
tutela do jogo em Portugal. Cardinal
ainda aguarda uma oportunidade
na terra onde vive há 26 anos, mas
é provável que tenha de desistir em
breve.
“Não acho que seja nada contra os
portugueses”, diz Jorge Menezes. “Os
negócios em Macau passam por mui-
tas ligações, por muitos interesses,
há muito menos transparência na
vida económica, na vida política e na
administração”, explica o advogado
que sentiu na pele o ostracismo.
O facto de ter sido advogado do
deputado pró-democracia Sulu Sou
fechou-lhe muitas portas: “Deixei
de ter clientes de Macau. Passei a ter
mais clientes de fora. Não é uma
grande tragédia, apenas uma dimi-
nuição de receita. É uma coisa com
que já contava”, acrescenta o advo-
gado. Ele sabe que, em Macau, “a
lealdade não é à terra é às pessoas
que mandam na terra”.
“É um traço característico de
Macau que é importante referir, o
poder económico e o poder político
são praticamente um e um só”,
sublinha Menezes, “os empresários
são os deputados, os deputados são
empresários e, como não é um sis-
tema democrático, eles nomeiam-se
uns aos outros”.
Com os poderes político e econó-
mico concentrados nas mesmas
mãos, “a dependência em relação
ao poder político é enormíssima”,
porque a actividade empresarial
implica licenças, autorizações; as
pessoas cam, segundo o advogado,
“muito mais sujeitas, muito mais
subalternizadas ao poder público”.
“Vivem num terror contido para não
darem um passo fora da linha.”
“Tem-se a trela curta com toda a
gente em Macau. Isso é uma tradi-
ção que já vem do governo portu-
guês de Macau — infelizmente,
fomos governados por Rocha Vieira,
que tinha tiques autoritários e deu
um péssimo exemplo”, recorda Jor-
ge Menezes.
Olhando a situação a partir dessa
perspectiva, é mais fácil entender o
deputado José Pereira Coutinho,
quando diz que “em Macau, desde
que as pessoas tenham um emprego
estável, su ciente para aguentar a
economia, o processo de legitimi-
dade democrática não é tão impor-
tante”.
E assim o pragmatismo transfor-
ma-se em loso a de vida num ter-
ritório com 30 km quadrados a 11 mil
quilómetros de distância de Portu-
gal. “Quando tive uma oferta de tra-
balho num casino, resolvi apanhar
esse comboio — desabafa Miguel Falé
—, mais tarde ou mais cedo acaba-
mos todos a trabalhar nos casinos,
se tivermos algum juízo.”
“Tínhamos a tradição europeia das
pro ssões liberais, agora o mercado
ajustou-se num certo anonimato”
do modelo anglo-saxónico, explica.
“Os técnicos continuam a intervir
de forma individual, mas com o
novo formato empresarial, dilui-se
um bocado a sua presença.”
Receios e silêncios O empresário que cou sem o seu
negócio tem muitos anos de Macau
e acredita que, como ele, há outros
exemplos de empresas obrigadas a
fechar ou preteridas, só que as pes-
soas preferem remeter-se ao silên-
cio com medo de represálias. É um
território pequeno e o exemplo
recente de Paulo Cardinal e de Pau-
lo Taipa, juristas da Assembleia
Legislativa de Macau cujo contrato
não foi renovado em 2018, só con-
rmou todos os receios.
Apesar de Cardinal ser um dos
maiores constitucionalistas da
RAEM e Taipa um dos melhores
especialistas em legislação do jogo,
nenhum deles conseguiu encontrar
trabalho em Macau depois de mui-
tos anos nos serviços jurídicos do
parlamento local: Taipa voltou para
Portugal e depois de adjunto da
secretária de Estado da Administra-
É um traço característico de Macau que é importante referir, o poder económicoe o poder político são praticamente um e um só Jorge Menezes Advogado
19-12-2019
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