os transplantes de Órgãos e tecidos em face da lei 10.211 de 2001
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1OS TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS EM FACE DA LEI 10211/2001: Uma anlise sob a tica dos Direitos Fundamentais
OS TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS EM FACE DA LEI 10.211/2001:
Uma anlise sob a tica dos Direitos Humanos Fundamentais
ANDIARA ROBERTA SILVA DE OLIVEIRATHEOBALDO SPENGLER NETO
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2 OS TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS EM FACE DA LEI 10211/2001: Uma anlise sob a tica dos Direitos Fundamentais
Bibliotecria responsvel: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406Catalogao: Fabiana Lorenzon PratesCorreo ortogrfica: Fabiano FeltenDiagramao: Daiana Stockey Carpes
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Prefixo Editorial: 67722 Nmero ISBN: 978-85-67722-03-0 Ttulo: Os transplantes de rgos e tecidos em face da lei 10211/2001: uma anlise sob a tica dos direitos humanos fundamentais.
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3OS TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS EM FACE DA LEI 10211/2001: Uma anlise sob a tica dos Direitos Fundamentais
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CONSELHO EDITORIAL
Prof. Dr. Fabiana Marion Spengler Direito UNISC e UNIJUI/Brasil
Prof. Me. Theobaldo Spengler Neto Direito UNISC/Brasil
COMIT EDITORIAL
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2014
Santa Cruz do Sul
1a edio
OS TRANSPLANTES DE RGOS E
TECIDOS EM FACE DA LEI 10.211/2001:
Uma anlise sob a tica dos Direitos Humanos Fundamentais
ANDIARA ROBERTA SILVA DE OLIVEIRATHEOBALDO SPENGLER NETO
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O bom senso que deve presidir todas as aes no deve desconsiderar que a sade de um indivduo desesperana-do e que aguarda um transplante muito mais importante
que a manuteno de um cadver intacto.
(VIEIRA, T. R., Biotica e Direito)
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SumrioINTRODUO
1 DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
1.1 Evoluo Histrica
1.2 Conceito de Princpio Constitucional
1.3 A Dignidade da Pessoa Humana como Princpio
Fundamental na Constituio de 1988.
1.4 Consideraes acerca da Dignidade da Pessoa Humana
1.5 A Biotica em defesa da Dignidade da Pessoa Humana
2 DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS INTRNSECOS
AO TRANSPLANTE DE RGOS E TECIDOS
2.1 Conceito de Direito Humano Fundamental
2.2 Consideraes acerca do Direito Fundamental Vida
2.3 Notas acerca dos Direitos de Personalidade
2.4 Do Direito Fundamental integridade fsica e o poder de
disposio sobre o prprio corpo
2.5 Da liberdade de conscincia
3 DOS TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS
3.1 Evoluo Histrica
3.2 Apontamentos gerais acerca dos transplantes
3.3 Da gratuidade
10
12131521
2428
30
31344344
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51525658
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3.4 Os rgos utilizados e seus critrios de classificao
3.4.1 Doao inter vivos
3.4.2 Doao post mortem
3.5 Por que no doar?
3.5.1 O conceito atual de morte enceflica
3.5.2. Doao de rgos de anencfalos
3.5.3 O trfico de rgos e tecidos
3.5.4 Uma questo polmica sob a tica de Volnei Garrafa e
Lo Pessini: por que no pagar por um rgo?
3.6 Do consentimento
3.6.1 O respeito manifestao de vontade
3.6.2 As religies
3.7 A evoluo legislativa dos transplantes no Brasil
3.8 A polmica Lei n 9.434/97 e a declarao de inconstitucio-
nalidade das alteraes introduzidas pela Lei n 10.211/ 2001
CONSIDERAES FINAIS
REFERNCIAS
5962626363656668
7071717273
76
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Janana Machado S turza1
La salute sempre stata preoccupazione primaria degli individui, elemento fondamentale del bisogno di sicurezza espresso in vari modi dalle comunit umane. La complessit degli apparati costruiti
per dare una risposta a tale preoccupazione cresciuta con la articolazione degli stati moderni, talora in forme devianti rispetto allobiettivo originario. Le soluzione date alla domanda di cura sono diventa-
te una parte rilevante delle politiche economiche e sociali, e al contempo sottile indicattore dello stato
della democrazia nella societ, cartina delle ideologie dominanti (ROSSANDA; PERETTI, 2000, p. 7).
A sade, na sociedade contempornea, apresenta-se como uma prerrogativa essencial
vida do homem, ao mesmo tempo em que, nas muitas situaes da vida diria, acaba sendo
ameaada. A sade primordial ao ser humano que, na sua individualidade, necessita de uma
garantia a esse direito fundamental sua sobrevivncia, uma vez que, em sociedades ditas
democrticas, as dificuldades residem justamente em permitir a manuteno da sade em um
mundo no qual os riscos tambm so globalizados.
Estudar, escrever e discutir sobre a sade e principalmente sobre a sua efetividade a
partir de uma ordem sociojurdica representa um desafio na sociedade contempornea, tendo
em vista que fundamentalmente caracterizada pela contingncia e pela complexidade, que
a tornam ilimitadamente mutvel2. Se limites podem ser evidenciados, as possibilidades de
super-los tambm so constantemente apresentadas, atravs de instrumentos oferecidos no
s pelo Direito, mas tambm pela prpria sociedade e, qui, pela cincia, atravs das inme-
ras alternativas de proteo vida.
Nessa esfera, portanto, a sade representa uma preocupao constante na e para a vida
de cada cidado, enquanto elemento fundamental para as necessidades de segurana em vrios
aspectos do bem viver em sociedade. Logo, pertinentes so as palavras de Hlio Pereira Dias
quando afirma que as questes de sade so, em verdade, como todas as questes humanas, de natureza tica e poltica, porque se referem opo entre respeito democrtico pelo ser
1 Advogada, especialista em Demandas Sociais e Polticas Pblicas, Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul UNISC e Doutora em Direito pela Universidade de Roma Tre/Itlia. Professora na graduao em Direito e no Programa de Ps Graduao em Direito Mestrado da UNIJU, e professora na graduao em Direito da Faculdade Dom Alberto.
2 [...] o sistema social da sociedade moderna. Assim, tem-se que a sociedade est diretamente relacionada comunica-o: a sociedade no um termo que tem uma nica significao, nem mesmo o social a tem. A sociedade somente pode ser descrita dentro da prpria sociedade e assim somente pode ser observada mediante a comunicao e as relaes sociais. Ela se descreve a si mesma. (LUHMANN; GEORGE, 1993, p. 27)
Prefcio
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humano, ou o desrespeito por eles (DIAS, 1995, p. 5).Dessa forma, tem-se que o ser humano , sem dvida alguma, o incio, o centro e o fim do
Direito, sendo essa caracterstica pautada no valor bsico do Estado Democrtico de Direito: a
dignidade da pessoa humana. Hoje, na sociedade contempornea, vivenciamos um perodo no
qual o discurso jurdico, na maioria das vezes, no condiz com tudo aquilo que dele se poderia
esperar, j que a prtica no ref lete o que prope. Portanto, [...] vivemos hoje numa sociedade
paradoxal. A afirmao discursiva dos valores tanto mais necessria quanto mais as prticas
sociais dominantes tornam impossvel a realizao desses valores (SANTOS, 2001, p. 32).
Assim, quando a Constituio Federal elencou a dignidade da pessoa humana como um
valor supremo um dos princpios fundamentais da Repblica , consagrou a obrigatoriedade
da proteo mxima pessoa por meio de um sistema jurdico-positivo formado por direitos
fundamentais da personalidade humana, garantindo assim o respeito absoluto ao indivduo.
Propiciou, dessa forma, uma existncia plenamente digna e protegida contra qualquer espcie
de ofensa, quer praticada pelo particular, quer praticada pelo prprio Estado.
Logo, o princpio da dignidade da pessoa humana como parmetro valorativo evoca, pri-
mordialmente, o condo de impedir a degradao do homem, em decorrncia de sua converso
em mero objeto de ao estatal, uma vez que compete ao Estado o dever de propiciar ao indiv-
duo a garantia de sua existncia material mnima, ressaltando-se aqui a proteo vida atravs
de todo e qualquer meio admitido pelas cincias da sade, como o caso dos transplantes de
rgos e tecidos.
Nesse sentido, portanto, a preocupao do homem com a sua sade foi e sempre ser
constante, especialmente no que tange sua prpria sobrevivncia, sobretudo vida, sendo
inmeros os progressos realizados medida que a cincia avana e faz novas descobertas, di-
versificando as possibilidades de tratamento. Entre essas possibilidades esto os transplantes
de rgos e tecidos, objetivando a promoo, proteo e recuperao da sade enquanto um
bem imprescindvel vida.
A partir dessa contextualizao, os autores Andiara Roberta Silva de Oliveira e Theo-
baldo Spengler Neto oferecem aos leitores a possibilidade de aprofundarem-se nesta temtica
sempre to atual, o direito vida e dignidade humana, atravs de uma discusso ainda mais
polmica e inquietante: os transplantes de rgos e tecidos.
Em se tratando de um assunto de tamanha relevncia, possvel afirmar que esta obra
proporcionar ref lexes e alternativas para produzir conhecimento sobre assuntos de direta
e fundamental importncia para o processo de construo e consolidao de um Estado De-
mocrtico e, consequentemente, de uma sociedade baseada na justia social uma sociedade
contempornea que come Stato di Diritto, si curiosamente assistito al rifiorire degli atudi e dei dibattiti sulla persona, sul suo valore, sul suo benessere, sulla sua qualit della vita (PETTI, 1997, p. 37).
Desejo a todos uma boa leitura!!
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10 OS TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS EM FACE DA LEI 10211/2001: Uma anlise sob a tica dos Direitos Fundamentais
Com este trabalho nos propomos a realizar uma anlise constitucionalista acerca dos trans-
plantes de rgos, atravs do estudo da principiologia e dos direitos fundamentais elencados em
nossa Carta Magna, mormente aqueles que se referem vida e dignidade humana, paradigmas
para a compreenso do tema em questo.
Desde 1984, passados longos anos de estudo, os transplantes de rgos e tecidos comea-
ram a ter resultados positivos. Consolidaram-se todos os tipos de transplantes, com destaque ao
intervivos, realizado no caso de rgos duplos ou quando esses podem ser regenerados.
No entanto, tem-se por regra a doao de rgos e tecidos aps a ocorrncia da morte en-
ceflica do doador. A conceituao de morte enceflica, j pacificada tecnicamente nos meios
mdicos e jurdico atravs da resoluo do Conselho Federal de Medicina n 1.480, de 1997, ainda
um mito entre a maioria dos doadores em potencial, o que causa grande negativa quando do
fato ocorrido, sendo esta negativa agravada, ainda, a partir do medo do trfico ilegal de rgos.
Com relao s religies, a maioria incentiva a doao de rgos e tecidos, considerando o
ato uma deciso individual de seus seguidores. Entretanto, outras, como a Testemunhas de Jeov,
impem insuperveis empecilhos utilizao dos rgos.
Tm-se, assim, perdas humanas ou declnio nas condies de vidas que poderiam ser salvas
ou ter maior dignidade. O tema foi objeto, no mundo jurdico, de duas legislaes especficas: a
Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, a qual trouxe grande flexibilidade na oportunizao da
doao, cabendo ao doador, em vida, dispor ou no de seus rgos, mediante registro nos docu-
mentos de identidade, e a Lei n. 10.211/2001, que alterou alguns dispositivos da Lei anterior, in-
serindo a necessidade de autorizao da famlia do morto para a retirada de seus rgos, mesmo
que este tenha manifestado de forma expressa em vida a opo de doador, ou no doador de
rgos e tecidos.
Essas so, em linhas gerais, as preocupaes e os tpicos escolhidos para esta pesquisa, que
foi dividida em trs captulos. Procurar-se- demonstrar que, acima de tudo, a dignidade huma-
na, o direito vida e os demais direitos fundamentais inerentes ao receptor/doador de rgos e
tecidos devem ser respeitados.
Para implementar o estudo ora enunciado, destinar-se- um captulo ao estudo do Princpio
Constitucional da Dignidade Humana, fruto das conquistas histricas de nossa humanidade, que
tem como marco a Declarao Universal dos Direitos do Homem, em 1948. Assim, procurar-se-
aludir que a Biotica deve ter como pressuposto que a dignidade humana deve estar acima de
qualquer avano cientfico.
Prosseguir-se-, no segundo captulo, demonstrando que o tpico central da presente pes-
quisa no pode ser visualizado sem que se conceituem os direitos fundamentais, em especial o
direito vida. Tambm sero demonstrados os direitos fundamentais que mantm ntima vincu-
lao com a prtica da doao e transplante de rgos e tecidos: integridade fsica, poder de dis-
posio do prprio corpo, liberdade de conscincia e direitos de personalidade, que so direitos
Introduo
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11OS TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS EM FACE DA LEI 10211/2001: Uma anlise sob a tica dos Direitos Fundamentais
subjetivos privados.
No derradeiro captulo, buscar-se- realizar um estudo da doao e dos transplantes de
rgos a partir de sua evoluo histrica, situando-os no contexto atual. Apontar-se-o alguns
aspectos gerais dos transplantes e sero citados os problemas que levam as pessoas a no doarem
seus rgos, conceituando a morte enceflica. Revelar-se-, tambm, a polmica acerca da doa-
o dos rgos de bebs anencfalos e a preocupao com o trfico de rgos. Por fim, ser feita
a distino entres as espcies de consentimento, apontando a manifestao de vontade do doador
e o posicionamento das religies acerca dos transplantes.
Em seguida, examinar-se-, frente aos direitos fundamentais aludidos, a Lei n 9434, de 4
de fevereiro de 1997, a qual introduziu o consentimento presumido de doao de rgos e tecidos
em nosso pas, bem como as alteraes introduzidas pela Lei n. 10.211, de 23 de maro de 2001,
em especial as mudanas na redao do art. 4 da Lei 9.434, de 1997, no sentido de excluir a ma-
nifestao de vontade do potencial doador, deixando a cargo da famlia a deciso sobre a doao -
ou no - dos rgos do de cujus. Finalmente, ser suscitado o problema da (in)constitucionalidade
na nova e na velha redao do referido artigo das citadas leis.
Dessa forma, pretende-se demonstrar que as alteraes ocorridas na atual Lei, embora exis-
tam entendimentos doutrinrios contrrios, no vislumbram os direitos fundamentais inerentes
pessoa humana do doador e do receptor em potencial.
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Captulo 1
Da dignidade humana da pessoa humana
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1.1 Evoluo HistricaDignidade da pessoa humana3 um conceito que foi sendo elaborado no decorrer da nossa
histria,4 chegando ao incio do sculo XXI repleta de si mesma como um valor supremo, constitudo
pela razo jurdica. O conceito de dignidade, que de especfica aplicao ao ser humano, tem ntida
fundamentao religiosa e faz parte da mais tradicional doutrina crist:
A despeito de no se poder afirmar que a noo de dignidade da pessoa humana tenha sido construda originalmente pela Igreja Catlica, fato que no Antigo e no Novo Testamento h meno quanto circunstncia de o ser humano ter sido concebido imagem e semelhana de Deus, o que levou o cristianismo a considerar que a pessoa humana e no apenas os cristos dotada de um valor prprio que lhe intrnseco, e, portanto, insuscetvel de ser reduzida a mero objeto ou instrumento (GAMA, 2004, p. 130).
O respeito dignidade do ser humano teve seus primeiros vestgios na criao de leis desti-
nadas a resguardar e a proteger os indivduos, como o Cdigo de Hamurabi (Babilnia e Assria),
Manu (ndia) e na Lei das XII Tbuas (Itlia Meridional).
O jusnaturalismo cristo surgiu quando se pensava no homem como ser absoluto, haja vis-
ta que as violaes dos mais elementares direitos fundamentais eram constantes nesse perodo
histrico.
Com Descartes, surgiu o Iluminismo, por meio do qual o direito natural passou a ser visto
como produto da razo. A partir da, a realidade social transformou-se em objeto de indagao.
Nesse mesmo contexto, surgiram as ideias de Hobbes, Locke, Montesquieu e Rousseau. Deu-se
incio s garantias formais dos direitos humanos com o jusracionalismo.
A Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado foi materializada com a declarao
da independncia dos Estados Unidos da Amrica do Norte, acarretando, assim, o aparecimento
do Estado Liberal. Os direitos individuais de liberdade e igualdade eram consubstanciados pelo
Estado Liberal, bem como o direito de propriedade, que era absoluto e intocvel. Nesse tipo de
Estado omitiam-se os problemas econmico-sociais.
Aps a Primeira Guerra Mundial, o Estado passou a preocupar-se com o seu dever de
3 Embora a expresso pessoa humana seja vista por muitos como uma lamentvel redundncia, preferiu-se manter essa nomenclatura em face de sua inegvel cristalizao no pragmatismo da linguagem jurdica. H que se considerar, ainda, novas formulaes sobre o termo, tais como a diferenciao feita por Peter Singer (In: tica prtica. So Paulo: Martins Fontes, 2012, pp. 93-118) entre pessoa humana e pessoa no humana, esta ltima categoria abrangendo seres que so sencientes e capazes de sentir prazer e dor, mas que, no sendo tambm racionais e autoconscientes, no so pessoas (p. 111).
4 A afirmao e o reconhecimento da dignidade humana, que se operou por lentas e dolorosas conquistas na histria da humanidade, foi o resultado de avanos, ora contnuos, ora espordicos, nas trs dimenses: democracia, liberdade, igualdade. Erraria quem pensasse que se chegou perto da completa realizao. A evoluo apenas se iniciou para alguns povos; e aqueles que alcanaram, at hoje, os mais altos graus ainda se acham a meio caminho. A essa caminhada corresponde a apario de direitos, essenciais perso-nalidade ou sua expanso plena, ou subjetivao e preciso de direitos j existentes (FERRAZ, 1991, p. 19).
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14 OS TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS EM FACE DA LEI 10211/2001: Uma anlise sob a tica dos Direitos Fundamentais
garantir as novas exigncias da coletividade, surgindo, assim, os direitos sociais como meca-
nismo de realizao dos direitos individuais de toda a populao. As constituies do Mxico
(1917)5 e de Weimar (1919) foram os principais frutos dessa mudana.
Acerca da Constituio de Weimar, afirma Baracho:
[...] Aos princpios que consagram a atitude abstencionista do estado impe-se a do art. 151 da Constituio de Weimar: a vida econmica deve ser organizada conforme os princpios
de justia, objetivando garantir a todos uma existncia digna (BARACHO, 1986, p. 46).
A internacionalizao dos direitos humanos surgiu atravs da criao da Organizao Interna-
cional do Trabalho (OIT), da Declarao da Filadlfia (1944) e de reformas da Reunio de Paris (1945)
da OIT.
A experincia nazista, fruto de inmeras atrocidades que afrontaram a dignidade da pessoa hu-
mana, foi o marco histrico que gerou a conscincia de que se deveria preservar a dignidade da pessoa
humana a qualquer custo, devendo-se, assim, lutar contra tudo que a violasse.
Em 1947, a Constituio Italiana utilizou a expresso dignidade social como atributo comum
de todos os cidados. J em 1949, na Alemanha, a Lei Fundamental de Bonn fazia uma clara crtica
experincia nazista, conforme destaca Nunes:
No toa que a Constituio Federal da Alemanha Ocidental do ps-guerra traz, tambm, estampada no seu artigo de abertura que a dignidade da pessoa humana inatingvel. Respeit-la e proteg-la obrigao de todo o poder pblico (NUNES, 2010, p. 48).
Aps a Segunda Guerra Mundial, em 1948, surgiu a Declarao Universal dos Direitos do
Homem, elaborada pela Organizao das Naes Unidas, que, em seu prembulo, consigna que a
dignidade, inerente a todos os membros da famlia humana, fundamento da liberdade, da justia e
da paz no mundo (DINIZ, 2011, p. 19). Nessa mesma poca, outras convenes e pactos foram cons-
titudos. Alm disso, floresceram no cenrio internacional organizaes no estatais que objetivavam
a divulgao de ideias e educao em Direitos Humanos:
Em nome do bem maior, pessoas de vrias classes e estamentos, cientistas, etc. foram quei-
mados na fogueira. Em prol da existncia de uma nica religio, torturas e mais mortes
foram praticadas. Em nome da cor da pele ou por qualquer outro motivo, o mesmo: mais
atrocidades. Esse o verdadeiro relativismo histrico que se quer afastar. [...] Lembremos
que nossos avs e bisavs muitos vivos fugiram de perseguio racista e da discrimina-
o. As Amricas foram assim colonizadas. Mas na robusta comunidade europeia atual,
crescente a posio discriminatria. Nos EUA, o problema contemporneo no diferente
[...] e a questo no s de cor de pele ou origem social ou econmica. A variao de abusos
muito grande (NUNES, 2010, p. 47).
5 A Constituio do Mxico, promulgada em 1917, aludia ao princpio da dignidade humana dentre os valo-res que deveriam orientar o sistema educacional daquele pas.
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A Constituio Brasileira de 1988 recebeu influncia das Constituies de Portugal e de Espa-
nha, ambas promulgadas na segunda metade da dcada de 70, aps longo perodo de autoritarismo.
Assim sendo, interessante observar a imanente presena dos princpios fundamentais, havendo pre-
viso expressa do princpio da dignidade da pessoa humana como fundamento e substrato principal
dos demais direitos e garantias individuais e coletivos.
A Declarao da UNESCO de 1997 expressamente reconhece o valor do princpio da dignidade
da pessoa humana, colocando-o como fundamento tico de todas as normas estabelecidas e do exer-
ccio dos direitos delas decorrentes (GAMA, 2010, p. 131).
Sob esse enfoque, iniciou-se a busca incessante pela formao de conscincia, demonstrando
que os Direitos do Homem devem sempre primar pela proteo s liberdades fundamentais e pelo
tratamento de modo justo e igualitrio. por isso que se torna necessrio identificar a dignidade da
pessoa humana como uma conquista da razo tico-jurdica como fruto da reao histria de
atrocidades que, infelizmente, marcam a experincia humana (NUNES, 2010, p. 45).
1.2 Conceito de Princpio ConstitucionalOs princpios constitucionais so conformados por ideias gerais e abstratas que expressam em
maior ou menor escala todas as normas que compem a seara do Direito. por esse motivo que todas
as normas devem ser estudadas, interpretadas e compreendidas em consonncia com esses princpios.
Como afirma Bastos, servem eles, a um s tempo, de objeto da interpretao constitucional e de di-
retriz para a atividade interpretativa (BASTOS, 2010, p. 59).
Conforme o entendimento de Alves, os princpios so o alicerce do ordenamento jurdico:
Princpios jurdicos, sem dvida, significam os pontos bsicos, que servem de ponto de partida ou de elementos vitais do prprio Direito. Indicam o alicerce do Direito. E, nessa acepo, no se compreendem somente os fundamentos jurdicos, legalmente institudos, mas todo axioma jurdico derivado da cultura jurdica universal. Compreendem, pois, os fundamentos da Cincia Jurdica em que se firmaram as normas originrias ou as leis cientficas do Direito, que traam as noes em que se estrutura o prprio Direito (ALVES,
2001, pp. 74-75).
A palavra princpio possui, no entendimento de alguns doutrinadores, sentido ambguo, pois
traz a ideia de incio, de comeo. Os princpios so ordenaes que se irradiam e imantam os sistemas
de normas; so ncleos de condensaes nos quais se confundem valores e bens constitucionais. Os
princpios expressos no Ttulo I da Constituio Federal exprimem a noo de mandamento nuclear
de um sistema (SILVA, 2013, pp. 91-92).
Acerca dos princpios, assevera Canotilho:
Princpios so normas que exigem a realizao de algo, da melhor forma possvel, de acordo com as possibilidades fticas e jurdicas. Os princpios no probem: permitem ou exigem algo em termos de tudo ou nada; impem a otimizao de um direito ou de um bem jurdi-co, tendo em conta a reserva do possvel, ftica ou jurdica (CANOTILHO, 2007, p. 1123).
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Os princpios constitucionais devem ter uma referncia positiva, no no sentido positivista, mas
a partir de uma perspectiva positivo-normativa do que est expresso na Constituio. Dessa maneira,
chegar-se- aos princpios constitucionais expressos ou implicitamente sopesados, tendo como limite
as disposies da redao constitucional e levando-se em considerao as possveis atribuies de
sentido dos enunciados do texto. O intrprete deve ter uma postura metdica apropriada, caso contr-
rio ele pode iludir-se ou iludir (ESPNOLA, 2002, p. 199), no sentido de que o princpio encontrado
pelo mesmo pode constituir-se valorativamente de forma subjetiva, o que poder, segundo Espnola
(2002, p. 199), frustrar a tendencial objetividade exigvel na atividade de extrao dos princpios da
ordem constitucional positiva. Ainda, no entender desse doutrinador:
[...] No bastar, para o intrprete da Constituio, uma aluso de que sua postura corolria de um ponto de vista normativo, preciso que a metdica que a fundamente tambm o seja, e que os resultados alcanados a corroborem: princpios expressos ou implcitos, somente os
consignados na Constituio [....] (ESPNOLA, 2002, p. 200).
De tal forma, conceitua Espnola (2002, p. 53):
Pode-se concluir que a ideia de princpio ou sua conceituao, seja l qual for o campo do saber que se tenha em mente, designa a estruturao de um sistema de ideias, pensamentos ou normas por uma ideia-mestra, por um pensamento-chave, por uma baliza normativa donde todas as demais ideias, pensamentos ou normas derivam, se reconduzem e/ou se
subordinam.
J Leal (2003, p. 50) nos traz o seguinte conceito:
Pode-se afirmar ento, que os princpios so os elementos que expressam os fins que devem ser perseguidos pelo Estado (em sua acepo mais ampla), vinculando a todos os entes e valendo como um impositivo para o presente e como um projeto para o futuro que se renova cotidianamente, constituindo-se numa eterna construo da humanidade.
Princpios so os valores mximos expressos pelo pacto constitucional. Esto permanentemente
sujeitos aos influxos da realidade histrica, j que so moldados historicamente os princpios no
so imutveis. Nesse vis, leciona Leal (2003, p. 50):
Por serem estes princpios os valores mximos expressos pelo pacto constitucional, eles apresentam, por conseguinte, imperativos, por ocasio da elaborao da Constituio Jur-dica, estando o Poder Legislativo constituinte (o poder constitudo) a eles necessariamente obrigado, de modo que a ele somente cabe transport-los para o texto, razo pela qual en-tendemos ser este momento meramente de cunho declaratrio, pois ao legislador no cabe a prerrogativa de deliberar acerca deles.
Ainda por meio das palavras de Leal (2003, p. 54), tece-se comentrio sobre a temporalidade
dos princpios:
Os princpios so ao mesmo tempo temporais e atemporais. Temporais porque o seu conte-do varivel ao longo do tempo, bem como a prevalncia ou supremacia que se d a cada um deles em cada poca; atemporais porque aparecem, invariavelmente, como ponto de re-ferncia da ordem existente, ou seja, a sua historicidade se reflete no fato de que, em alguns
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17OS TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS EM FACE DA LEI 10211/2001: Uma anlise sob a tica dos Direitos Fundamentais
momentos, de acordo com a realidade vivida, muda a ordem de importncia que se atribui a cada um deles, porm eles no deixam, de modo algum, de existir enquanto princpios (e nisto reside a sua temporalidade).
Os princpios representam tambm o fundamento sobre o qual se deve desenvolver todo o orde-
namento jurdico: Isto quer dizer que eles funcionam como o ponto de partida sobre o qual se assenta
todo o sistema que, por sua vez, deve ser operacionalizado no sentido de consecuo daqueles fins
(LEAL, 2003, p. 59).
J para Bastos (2010, p. 161):
So os princpios constitucionais aqueles valores albergados pelo Texto Maior a fim de dar sistematizao ao documento constitucional, de servir como critrio de interpretao e, final-mente, o que mais importante, espraiar os seus valores, pulveriz-los sobre todo o mundo jurdico.
Assim sendo, os princpios no representam apenas uma tarefa a realizar; so tambm um ponto
de partida obrigatrio para a operacionalizao de todo o sistema, principalmente por estarem nele
inseridos. Apesar de os princpios acolhidos pela Constituio serem clusulas ptreas, ainda que
historicamente moldados, eles atribuem objetividade ao sistema por fixarem explicitamente os fins a
serem observados6.
Acerca da importncia dos princpios na Constituio, discorre Bastos (2010, pp. 67-68):
Os princpios traduzem, portanto, a ideia de Constituio material imprescindvel e essen-cial para a fundamentao de uma concepo mais ampla de Constituio enquanto do-cumento jurdico de ordenao da sociedade. [...] Assim, pode-se dizer que a Constituio possui, com relao sociedade, um efeito estabilizador ao construir a unidade estatal, dando forma coletividade, e assegurando, consequentemente, sua continuidade e tam-bm um efeito racionalizador, pois, ao ser tida como produto de uma construo humana, permite uma participao consciente nessa formao.
Leal (2003, p. 66), por sua vez, destaca o carter de normatividade dos princpios:
Os princpios so o elemento central da ordem jurdica, por representarem aqueles valores supremos eleitos pela comunidade que a adota, sendo que a caracterstica mais marcante que hoje se lhes atribui o carter de normatividade, de modo que eles so tidos pela teoria constitucional contempornea como sendo uma espcie do gnero norma jurdica, ao lado das assim denominadas regras jurdicas.
Uma vez reconhecida a normatividade dos princpios, no h que se distinguir estes das nor-
mas. Eis que a distino no mais entre normas e princpios, mas entre princpios e regras, sendo
ambos espcies do gnero norma jurdica (LEAL, 2003, p. 85).
Canotilho (2007, p. 1035) faz a seguinte distino entre princpios e regras:
6 Nosso entendimento desponta no sentido de reconhecer a existncia de um elemento material dentro da ordem jurdica, porm no de natureza metafsica, externa e alheia ao Direito, mas sim positiva: inserida dentro dele por fora do pacto constitucional constituinte (BASTOS, 2010, p. 57).
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18 OS TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS EM FACE DA LEI 10211/2001: Uma anlise sob a tica dos Direitos Fundamentais
[...] Os princpios so normas jurdicas impositivas de uma otimizao, compatveis com vrios graus de concretizao, consoante os condicionalismos fticos e jurdicos; as regras so normas que prescrevem imperativamente uma exigncia (impem, per-mitem ou probem) que ou no cumprida; a convivncia dos princpios conflitual, a convivncia de regras antinmica; os princpios coexistem, as regras antinmicas excluem-se. Consequentemente, os princpios, ao constiturem exigncias de otimiza-o, permitem o balanceamento de valores e interesses (no obedecem, como as regras, lgica do tudo ou nada), consoante o seu peso e a ponderao de outros princpios eventualmente conflitantes; as regras no deixam espao para qualquer outra soluo, pois, se uma regra vale (tem validade), deve cumprir-se na exata medida das suas pres-cries nem mais nem menos.
Nesse mesmo vis, assevera Bonavides (2013, p. 232):
Todo discurso normativo tem que colocar, portanto, em seu raio de abrangncia, os princ-pios, aos quais as regras se vinculam. Os princpios espargem claridade sobre o entendimen-to das questes jurdicas, por mais complicadas que estas sejam no interior de um sistema de normas.
J na viso de Bastos (2002, p. 60), tem-se que:
Um princpio constitucional no pode ter sua magnitude de incidncia relativizada por mera regra, ainda que constitucional. Essa norma deve estar em conformidade com os princpios, e no o contrrio. Quem tem precedncia na organizao dos comandos da Constituio so os princpios, e no as regras. Esses preceitos, muitas vezes, so vazios de significado mais abrangente, respondendo de forma puntiforme, enquanto os princpios informam o todo da
Constituio, conferindo-lhe riqueza e coerncia.
Os princpios no so tidos como algo que se sobrepe lei, nem como algo anterior a ela, mas,
isto sim, algo dela decorrente. A sua fora jurdica , consecutivamente, subsidiria, e seu carter ,
basicamente, descritivo. Quando os princpios so aplicados, no se faz necessria a formulao de
regras de coliso, pois, em funo de sua natureza, finalidade e formulao, no se prestam a provocar
conflitos, criando, no mximo, estados de tenso.
Ao analisarmos o conflito entre princpios, no devemos olvidar que a Constituio con-
formada por um sistema aberto de princpios, sendo que ela o resultado de um compromisso entre vrios atores sociais, transportadores de ideais, aspiraes e interesses substancialmente
diferenciados e at antagnicos ou contraditrios (CANOTILHO, 2007, p. 1056). Assim, os
princpios no obedecem, em caso de conflito, como afirma Canotilho (2007, p. 1056), a uma
lgica de tudo ou nada, devendo esses princpios ser ponderados de acordo com a concordn-
cia prtica, bem como deve ser analisado o seu peso com relao s circunstncias do caso em
concreto:
A densificao dos princpios constitucionais no resulta apenas da sua articulao com ou-tros princpios ou normas constitucionais de maior densidade de concretizao. Longe dis-so: o processo de concretizao constitucional assenta, em larga medida, nas densificaes dos princpios e regras constitucionais feitas pelo legislador (concretizao legislativa) e pelos rgos de aplicao do Direito, designadamente os tribunais (concretizao judicial), a problemas concretos (CANOTILHO, 2007, pp. 1056-1057).
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19OS TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS EM FACE DA LEI 10211/2001: Uma anlise sob a tica dos Direitos Fundamentais
Quando da coliso entre princpios, deve-se observar a proporcionalidade e a razoabilidade
entre eles, e no se deve olvidar que cada princpio tem um peso diferente em relao a cada caso
concreto e que o princpio de maior peso o que prepondera. Nessa estima de pensamento, contribui
Espnola (2002, p. 250):
O conflito entre princpios se resolve na dimenso do peso, e no da validade, ou melhor, princpios colidentes no se excluem de maneira antinmica, perdendo um deles a existncia jurdica, a validade e/ou a vigncia; apenas se afastam diante da hiptese colocada ao juzo decisrio. Assim, pelo procedimento da ponderao de princpios em conflito, afasta-se, no caso, o princpio cujo peso foi sobrepujado pelo outro, que recebeu aplicao ou, ainda, pela metdica de harmonizao ou concordncia prtica aplicam-se ambos os colidentes at o limite das possibilidades que o peso de cada um comporta.
J Bonavides (2013, p. 253) aproveita a chamada dimenso de peso entre princpios para
distingui-los das regras:
A dimenso de peso, ou importncia/valor (obviamente valor numa acepo particular ou especial), s os princpios a possuem; as regras no, sendo este, talvez, o mais seguro cri-trio com que distinguir tais normas. A escolha ou hierarquia dos princpios de sua re-levncia. [...] Um princpio aplicado a um determinado caso, se no prevalecer, nada obsta que amanh, noutras circunstncias, volte ele a ser utilizado, e j ento de maneira decisiva. Num sistema de regras, no se pode dizer que uma regra mais importante do que a outra. De tal sorte que, quando duas regras entram e conflito, no se admite que uma possa preva-lecer sobre a outra em razo de seu maior peso.
Ainda nessa mesma linha de pensamento, contribui Mendona (apud ALVES, 2001, pp. 92-93):
A antinomia entre princpios configura antinomia jurdica imprpria, pois o conflito que entre eles esteja a ocorrer no implica a necessidade de eliminao de um deles do sistema; o intrprete ou h de proceder ponderao dos princpios conflitantes e, posteriormente, harmonizao entre ambos, quando ento ceder, at certo ponto, ao outro em fora nor-mativa, ou ento ao afastamento de um deles, sem que isso implique a retirada do outro do sistema.
Quando ocorre algum conflito entre princpios, a dignidade da pessoa humana que d o par-
metro para a soluo do conflito Nunes (2010, p. 55) considera que a dignidade seja a luz de todo o
ordenamento. Assim, ser a dignidade que dar a direo a ser seguida pelo intrprete, devendo este
tambm dispor do instrumento da proporcionalidade para solucionar o conflito:
Apenas dizemos que, como o mais importante princpio constitucional o da dignidade da pessoa humana, ele que d a diretriz para a harmonizao dos princpios, e, via de conse-quncia, nela dignidade que a proporcionalidade se inicia aplicar. Mas, tambm, quan-do se tratar de examinar conflitos a partir do princpio da igualdade, o da proporcionalidade estar presente (NUNES, 2010, p. 55).
Nunes tambm nos traz a soluo para quando houver o conflito de dignidades, ou seja, quando
se estiver em face da dignidade de duas ou mais pessoas. Para que essa hiptese seja solucionada, o
intrprete tambm dever observar o princpio da proporcionalidade, pois este est diretamente ligado
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20 OS TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS EM FACE DA LEI 10211/2001: Uma anlise sob a tica dos Direitos Fundamentais
ao princpio da dignidade da pessoa humana, sendo que, no caso em tela, aquele princpio ser inti-
tulado como princpio especial7.
Os princpios so os materiais que permitem doutrina seguramente realizar construes jur-
dicas, sendo que a jurisprudncia apenas os declara, e no os cria. O enunciado de um princpio no
escrito a manifestao do esprito de uma legislao. (BONAVIDES, 2013, p. 260). Esses no possuem apenas funo informadora; eles so, tambm, normas e, portanto, so capazes de tutelar pretenses ju-
diciais por parte dos cidados, de modo que no podem prosperar, por parte dos tribunais, decises con-
servadoras que neguem aos princpios constitucionais o seu verdadeiro papel dentro da ordem jurdica:
Os princpios, como fonte material do Direito, carecem de autonomia formal. Mas isso no implica que, por essa mesma razo, percam sua substantividade e especialidade normativa. In-corporados Constituio, adquirem nela o mais alto grau normativo a servio de sua funo informadora do ordenamento, mas nem por isso ficam convertidos em lei formal, do mesmo modo que a verso escrita do costume no o priva de seu peculiar carter de norma consue-tudinria. Uma diferena separa a norma legal da norma principal: a primeira uma norma desenvolvida em seu contedo e precisa em sua normatividade: acolhe e perfila os pressupos-tos de sua aplicao, determina com detalhe o seu mandado, estabelece possveis excees; o princpio, pelo contrrio, expressa a imediata e no desenvolvida derivao normativa dos valores jurdicos: seu pressuposto sumamente geral e seu contedo normativo to evidente em sua justificao como no concreto em sua aplicao. aqui que o princpio, ainda quando legalmente formulado, continua sendo princpio, necessitando por isso de desenvolvimento legal e de determinao casustica em sua aplicao judicial (BONAVIDES, 2013, p. 262).
Bonavides (2013, p. 230) entende que os princpios so o contexto do ordenamento jurdico em
um determinado momento histrico:
Faz-se mister assinalar que se devem considerar como princpios do ordenamento jurdico aquelas orientaes e aquelas diretivas de carter geral e fundamental que se possam dedu-zir da conexo sistemtica, da coordenao e da ntima racionalidade das normas que con-correm para formar assim, num dado momento histrico, o tecido do ordenamento jurdico.
A importncia vital que os princpios assumem para os ordenamentos jurdicos se torna cada
vez mais evidente: Em verdade, os princpios so o oxignio das Constituies na poca do ps-
positivismo. graas aos princpios que os sistemas constitucionais granjeiam a unidade de sentido e
auferem a valorao de sua ordem normativa (BONAVIDES, 2013, p. 259). Ou, ainda:
Alguns sistemas j lhes reconhecem a chamada funo informativa ou funo funda-mentadora, ponto de partida para o inequvoco reconhecimento da liquidez da ascenso dos princpios aos andaimes mais elevados do ordenamento jurdico, em que costumavam aparecer no comeo como fontes meramente tercirias, de natureza civilista e supletria, ou seja, in extremis ante a fatalidade das lacunas legais (BONAVIDES, 2013, p. 263).
7 O intrprete operar da seguinte maneira: no exame do caso concreto, verificar se algum direito ou princpio est em conflito com o da dignidade e este dirigir o caminho para a soluo, uma vez que a prevalncia se d pela dignidade. A proporcionalidade a comparece para auxiliar na resoluo, mas sempre guiada pela luz da dignidade. Se, todavia, no exame do caso, este revelar um claro e completo conflito de dignidades, ento, nessa hiptese, aqueles elementos que compem o princpio da proporcionalidade voltam inteiros para possibilitar a soluo di-fcil, claro do conflito (NUNES, 2010, pp. 56-57).
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21OS TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS EM FACE DA LEI 10211/2001: Uma anlise sob a tica dos Direitos Fundamentais
A diversidade de conceitos mencionada e a sua evoluo no tempo nos trazem a ideia de que
o conceito de princpio passou por diversos estgios at chegar ao destaque que vem alcanando na
teoria jurdica contempornea.
Na viso de Alves (2001, pp. 80-81), a evoluo da normatividade dos princpios pode ser estu-
dada em trs fases distintas, quais sejam:
Partindo do jusnaturalismo no qual predominava uma viso metafsica e abstrata em que os princpios eram praticamente desprovidos de eficcia normativa direta, servindo, principalmente, como parmetros de valorao tica que inspirava os postulados da justia; passando pelo positivismo, que concebia os princpios gerais de direitos como derivados da prpria coerncia interna do sistema de direito positivo, cuja relevncia jurdica era conferi-da supletivamente pelas normas formalmente emanadas do estado. E, finalmente, chegando fase ps-positivista, quando as Constituies destas ltimas dcadas do sculo XX acen-tuam a hegemonia axiolgica dos princpios, convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifcio jurdico dos novos sistemas constitucionais.
Destarte, a teoria dos princpios chega atual fase do ps-positivismo com a passagem dos prin-
cpios para o campo concreto e positivo do Direito, tendo um teor normativo irrelevante e trazendo os
seguintes resultados acerca dos princpios: a transio da sua antiga insero nos Cdigos para o seu
ingresso nas Constituies; a proclamao de sua normatividade; o reconhecimento definitivo de sua
positividade e concretude por obra, sobretudo, das Constituies; a distino entre regras e princpios
como espcies diversificadas do gnero norma e, por fim, a mais importante, a total hegemonia e
proeminncia dos princpios (ALVES, 2001, pp. 106-107).
Vista a temtica da principiologia constitucional, passa-se agora ao estudo da dignidade da pessoa
humana como um dos fundamentos do Estado Democrtico de Direito, sobre o qual se fundamenta e se
constitui a Repblica Federativa do Brasil, conforme previsto no Art. 1, inciso III, da Constituio ptria.
1.3 A Dignidade da Pessoa Humana como Princpio Fundamental na Constituio de 1988
O princpio fundamental da dignidade da pessoa humana fonte jurdico-positiva dos direitos
fundamentais. Alm disso, d unidade e conexo ao conjunto desses direitos e, por consequncia,
consolida-se na fora normativa de tais comandos, que se estendem em sua proteo juntamente com
a dignidade humana:
A dignidade o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional posto e o ltimo ar-cabouo da guarida dos direitos individuais. [...] a dignidade que d a direo, o comando
a ser considerado primeiramente pelo intrprete (NUNES, 2010, p. 45).
A dignidade da pessoa humana o principal direito fundamental garantido pela Constituio
Federal de 1988, enunciada no artigo 1, inciso III, da Constituio Federal, que contm, alm de
mais de uma norma, fundamento de posies jurdico-subjetivas, ou seja, segundo Sarlet, norma(s)
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22 OS TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS EM FACE DA LEI 10211/2001: Uma anlise sob a tica dos Direitos Fundamentais
definidora(s) de direitos e garantias, mas tambm de deveres fundamentais (SARLET, 2012, p. 71).
Nessa linha, assevera Sarlet (2012, pp. 72-73):
Muito embora os direitos fundamentais encontrem seu fundamento, ao menos em regra, na dignidade da pessoa humana, e tendo em conta que, do prprio princpio da dignidade da pessoa (isoladamente considerado), podem e at mesmo devem ser deduzidos direitos fun-damentais autnomos no especificados (e, portanto, tambm se poder admitir que neste sentido se trata de uma norma de direito fundamental), no h como reconhecer que existe um direito fundamental dignidade, ainda que vez por outra se encontre alguma referncia neste sentido. [...] A dignidade como qualidade intrnseca da pessoa humana no poder ser ela prpria concedida pelo ordenamento jurdico.
A dignidade, mesmo quando violada, no perdida. Isso porque a dignidade no pode ser
retirada de nenhum ser humano. A dignidade da pessoa humana apenas reconhecida pelo direito,
pois a dignidade nasce com o indivduo. O ser humano digno porque (NUNES, 2010, p. 49).
A dignidade respeitada, protegida e at mesmo promovida e desenvolvida pelo nosso ordenamento
jurdico, tendo assim a pessoa humana direito a uma existncia digna que no tenha prejuzo algum
nos sentidos atribudos aos direitos fundamentais relativos dignidade da pessoa humana.
Complementa Sarlet (2012, p. 75):
Por esta razo, consideramos que neste sentido estrito de um direito dignidade como concesso efetivamente poder-se- sustentar que a dignidade da pessoa humana no e nem poder ser, ela prpria, um direito fundamental.
A dignidade da pessoa humana deve ser reconhecida pelo sistema normativo como dado essen-
cial da construo jurdico-normativa, considerada como o princpio-matriz de toda a organizao
social, protegendo o homem e criando garantias institucionais postas disposio das pessoas para
que seja garantida a sua eficcia e o respeito sua estatutria. Rocha (1999, p. 26) considera a digni-
dade humana como sendo mais um dado jurdico que uma construo acabada no Direito, porque
afirma no sentimento de justia que domina o pensamento e a busca de cada povo na realizao das
suas vocaes e necessidades. A referida autora contribui acerca da dignidade como um direito fun-
damental:
Pode-se afirmar que, mesmo se um dado sistema normativo no concebesse, em sua expres-so, a dignidade humana como fundamento da ordem jurdica, ela continuaria a prevalecer e a informar o direito positivo na atual quadratura histrica. Mais ainda: pode-se mesmo acentuar que a dignidade da pessoa humana contm explcita em todo sistema constitu-cional no qual os direitos fundamentais sejam reconhecidos e garantidos, mesmo que no ganhem nele expresso afirmativa e direta. Tal como agora concebidos, aceitos e interpreta-dos, aqueles partem do homem e para ele convergem e a pessoa humana e a sua dignidade no so concebidas como categorias jurdicas distintas. Logo, onde aquela considerada di-reito fundamental, tida como centro de direitos, igualmente essa aceita como base de todo o ordenamento jurdico e includo como polo central emanador de consequncias jurdicas (ROCHA, 1999, p. 27).
A partir da Declarao dos Direitos do Homem da ONU, o princpio constitucional da dignida-
de da pessoa humana foi considerado o princpio primordial dos direitos fundamentais e da prpria
ordem poltica. Na Alemanha de 1949, a Constituio acolheu, pioneiramente, a proteo da dignida-
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23OS TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS EM FACE DA LEI 10211/2001: Uma anlise sob a tica dos Direitos Fundamentais
de da pessoa humana como princpio fundamental de seu sistema, sendo considerado, inclusive, como
o primeiro dentre todos os que norteavam e embasavam aquela nao.
Assim, afirma Rocha (1999, p. 31):
Sendo valor supremo fundamental, a dignidade da pessoa humana transformada em prin-cpio de direito a integrar os sistemas constitucionais preparados e promulgados a partir de ento, alterando-se, com essa entronizao do valor e a sua elevao categoria de princpio jurdico fundamental, a substncia mesma do quanto constitucionalmente construdo.
Sarlet (2012, p. 89) complementa, ressaltando a ntida ligao existente entre a dignidade da
pessoa humana e os direitos fundamentais:
A dignidade da pessoa humana, na condio de valor (e princpio normativo) fundamental que atrai o contedo de todos os direitos fundamentais, exige e pressupe o reconhecimento e proteo dos direitos fundamentais de todas as dimenses (ou geraes, se assim preferir-mos). Assim, sem que se reconheam pessoa humana os direitos fundamentais que lhe so inerentes, em verdade estar-se- lhe negando a prpria dignidade.
O princpio da dignidade da pessoa humana, com relao aos direitos fundamentais, pode as-
sumir, em certo sentido, a feio de lex generalis (SARLET, 2012, p. 105), haja vista que inexiste
razo para a dignidade da pessoa humana ser invocada de forma autnoma, pois qualquer recurso a
determinado direito fundamental j estar impregnado de dignidade. No entanto, qualquer agresso
a um determinado direito fundamental constituir afronta, simultaneamente, dignidade da pessoa
humana. Nesse sentido, Sarlet (2012, p. 106 e 110) afirma:
[...] A relao entre a dignidade e os direitos fundamentais uma relao sui generis, visto que a dignidade da pessoa assume simultaneamente a funo de elemento e medida dos direitos fun-damentais, de tal sorte que, em regra, uma violao de um direito fundamental estar sempre vinculada com uma ofensa dignidade da pessoa. [...] Para alm at mesmo da possibilidade de se recorrer a fundamento diverso, designadamente, a normas de direitos fundamentais especficas (como direito privacidade e intimidade, ou mesmo de liberdade, no caso do DNA) do princpio da dignidade da pessoa humana, paralelamente sua dimenso jurdico-objetiva, no apenas po-dem, mas de fato tm sido extrados direitos subjetivos (e fundamentais) com vista sua proteo.
Enfim, a questo da proteo da dignidade da pessoa humana no mbito jurdico alcana uma
importncia relevante neste sculo, em virtude dos avanos tecnolgicos e cientficos experimentados
pela humanidade, que potencializam, de forma intensa, riscos e danos aos quais podem estar sujeitos
os indivduos em sua vida cotidiana (ALVES, 2001, p. 118).
Desse modo, a dignidade e os direitos que a protegem passam a integrar o Direito Constitucio-
nal, sendo esta elevada condio de princpio fundamental ou, segundo alguns doutrinadores, de
valor essencial que d unidade ao sistema, ocupando um estgio de relevncia mpar no ordenamento
jurdico (ALVES, 2001, p. 118).
Sarlet (2012, p. 79) ainda afirma que todos os direitos fundamentais podem ser reconduzidos
noo de dignidade da pessoa humana:
[...] Os direitos e garantias fundamentais podem, com efeito, ainda que de modo e intensida-de variveis, ser reconduzidos de alguma forma noo de dignidade da pessoa humana, j que todos remontam a ideia de proteo e desenvolvimento das pessoas, de todas as pessoas.
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24 OS TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS EM FACE DA LEI 10211/2001: Uma anlise sob a tica dos Direitos Fundamentais
O princpio da dignidade da pessoa humana a base de toda a filosofia dos direitos humanos
desenvolvida pela modernidade, sendo, por isso, um direito fundamental protegido pela Constituio
Federal de 1988 e sendo, assim, um valor intrnseco ao ser humano.
1.4 Consideraes acerca da Dignidade da Pessoa Humana
A dignidade8 o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional: a dignidade que d
a direo, o comando a ser considerado primeiramente pelo intrprete (NUNES, 2010, p. 45). Esse
fundamento considerado como o princpio maior para a interpretao de todos os direitos e das ga-
rantias conferidas s pessoas no que se refere ao texto constitucional.
Acerca dessa questo, Fabriz (2003, p. 355) contribui com a sua magistral considerao: O
mencionado princpio torna-se a coluna vertebral do Biodireito, sendo princpio que se estabelece
como direito humano e fundamental. A dignidade nasce com a pessoa; -lhe inata e inerente sua
essncia. Assim sendo, leciona Nunes (2010, p. 49):
[...] Acontece que nenhum indivduo isolado. Ele nasce, cresce e vive no meio social. E a, nesse contexto, sua dignidade ganha - ou tem o direito de ganhar - um acrscimo de dignidade. Ele nasce com integridade fsica e psquica, mas chega um momento de seu de-senvolvimento que seu pensamento tem de ser respeitado, suas aes e seu comportamento isto , sua liberdade -, sua imagem, sua intimidade, sua conscincia religiosa, cientfica, espiritual etc., tudo compe sua dignidade.
A dignidade humana um dos princpios mais antigos da nossa civilizao, presente desde seus
primrdios. Na medida em que houve a evoluo de nossa civilizao, solidificou-se a moralidade
universal de que a pessoa humana dotada de dignidade, atributo que a distingue das coisas, da a
ausncia de ser valorada patrimonialmente, o que se verifica do contrrio relativamente s coisas
(GAMA, 2004, p. 126). Nesse sentido, destaca Gama (2004, p. 130):
Na antiguidade, a dignidade da pessoa humana se vinculava posio social do indivduo e, portanto, ao grau de reconhecimento de tal posio pelos demais integrantes da comuni-dade. [...] No mundo contemporneo, a dignidade da pessoa humana realada pelo trao distintivo relativamente s coisas, pois estas no tm preo, mas sim dignidade. A dignidade , portanto, valor prprio e extrapatrimonial da pessoa humana, especialmente no contexto do convvio na comunidade, como sujeito moral.
O reconhecimento desse princpio nos faz aceitar a sua qualidade de ser humano como tal, e
de intuir a sua superioridade com relao aos outros seres e objetos da natureza. O princpio da dig-
8 Na expresso dignidade esto subentendidos inmeros valores individuais, mas seu significado em nossa lngua ptria o seguinte: qualidade moral que infunde respeito; conscincia do prprio valor; honra, autoridade, nobre-za (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 40).
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25OS TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS EM FACE DA LEI 10211/2001: Uma anlise sob a tica dos Direitos Fundamentais
nidade da pessoa humana teve a sua importncia destacada quando da sua incluso na Declarao
Universal dos Direitos do Homem, e na maioria dos tratados e convenes internacionais, bem como
sua incluso em um grande nmero de Constituies (BRAUNER, 2000, p. 10):
Portanto, independente de suas qualidades pessoais ou sociais, ou capacidades fsicas ou mentais, o ser humano como tal no pode ser objeto de nenhum tipo de discriminao e, muito menos, ser utilizado como instrumento (coisa) para atingir objetivos que sejam alheios s necessidades da realizao integral da pessoa humana (Ibidem, 2000, p. 10).
Toda pessoa humana, pelo simples fato de existir, independentemente de sua situao social,
traz na sua superioridade racional a dignidade de todo ser. Por esse motivo, no se admite discri-
minao, seja em razo do nascimento, raa, inteligncia, sade mental ou crena religiosa, pois a
razo da vida o respeito dignidade da pessoa humana (CONTI, 2004, p. 87). Por isso, o princpio
fundamental da dignidade da pessoa humana no pode deixar de ser considerado em qualquer ato de
interpretao, aplicao ou criao de normas jurdicas, devendo sempre estar assegurados, ao lado
desse princpio, os demais direitos fundamentais encontrados em nossa Carta Magna:
Dignidade um conceito que foi sendo elaborado no decorrer da Histria, e chega ao incio do sculo XXI repleta de si mesma como um valor supremo, construdo pela razo jurdica. [...] reconhecido o papel do Direito como estimulador do desenvolvimento social e freio da bestialidade possvel da ao humana; [...] a dignidade garantida por um princpio. Logo, absoluta, plena, no pode sofrer arranhes nem ser vtima de argumentos que a coloquem num relativismo (NUNES, 2010, p. 52).
Ferraz (1991, pp. 18-19) afirma que a dignidade da pessoa humana a base do Estado:
[...] Base da prpria existncia do Estado brasileiro e, ao mesmo tempo, fim permanente de todas as suas atividades, a criao e manuteno das condies para que as pessoas sejam respeitadas, resguardadas e tuteladas em sua integridade fsica e moral, assegurados o de-senvolvimento e a possibilidade da plena concretizao de suas potencialidades e aptides.
O principal direito fundamental que deve estar correlacionado dignidade da pessoa humana
o direito vida, pois o que interessa mesmo no que se possa garantir a vida, mas uma vida digna.
Sem a vida no possvel a dignidade, uma vez que todo ser humano tem dignidade s pelo fato de
ser pessoa. Nunes (2010, p. 46) afirma ainda que a dignidade a primeira garantia das pessoas e
a ltima instncia de guarida dos direitos fundamentais. E visvel a sua violao, quando ocorre.
Complementa, ainda, Brauner (2000, p. 10):
Toda a filosofia dos direitos humanos desenvolvida pela modernidade estabelece sua base nesse mesmo princpio. Portanto, a ideia principal sustentar que a dignidade do homem e todos os direitos destinados a preserv-la pertencem ao homem pelo nico fato de seu nas-cimento. Mesmo que parea difcil a compreenso da ideia de dignidade, podemos afirmar que este fundamento est presente no pensamento jurdico moderno.
Assim sendo, na moderna medicina reconhecido o respeito ao ser humano em todas as suas
fases evolutivas (antes de nascer, no nascimento, no viver, no sofrer e no morrer) apenas quando se
atentar dignidade humana. Dessa forma, para a Biotica e o Biodireito, a vida humana no pode
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26 OS TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS EM FACE DA LEI 10211/2001: Uma anlise sob a tica dos Direitos Fundamentais
ser uma questo de mera sobrevivncia fsica, mas sim de vida com dignidade (DINIZ, 2011, p. 20).
Contribui Perelman (2005, p. 401) com a seguinte afirmao:
Se o respeito dignidade da pessoa humana que fundamenta uma doutrina jurdica dos direitos humanos, esta pode, da mesma maneira, ser considerada uma doutrina das obriga-es humanas, pois cada um deles tem a obrigao de respeitar o indivduo humano, em sua prpria pessoa, como na pessoa dos outros.
Kant considerado o grande filsofo da dignidade, pois seu pensamento contribuiu no sentido
de que a pessoa nunca deve ser pensada como instrumento, mas sempre como fim: O homem como
um fim em si mesmo e no, simplesmente, um meio. Rocha (1999, p. 28) elucida o entendimento
desse filsofo acerca da dignidade:
Para Kant, o grande filsofo da dignidade, a pessoa (o homem) um fim, nunca um meio; como tal, sujeito de fins e que um fim em si, deve tratar a si mesmo e ao outro. Aquele filsofo distinguiu no mundo o que tem um preo e o que tem uma dignidade. O preo con-ferido quilo que se pode aquilatar, avaliar, at mesmo para a sua substituio ou troca por outra de igual valor e cuidado; da porque h uma relatividade deste elemento ou bem, uma vez que ele um meio que h de valer para se obter uma finalidade definida. Sendo meio, pode ser rendido por outro de igual valor e forma, suprindo-se de idntico modo preciso a realizar o fim almejado. [...] O que uma dignidade no tem valorao e figura, assim, valor absoluto. Pela sua condio, sobrepe a mensurao, no se d a ser meio, porque no substituvel, dispondo de uma qualidade intrnseca que a faz sobrepor-se a qualquer me-dida ou critrio de fixao de preo [...]. A dignidade impossvel de ser avaliada, medida e apreciada, porque fim e est contida no interior do elemento sobre o qual se expressa; relaciona-se ela como a essncia do que considerado, por isso no se oferece medida convertida ou configurada como preo.
O princpio da dignidade da pessoa humana entranhou-se no constitucionalismo contempor-
neo, da partindo e fazendo valer-se em todos os ramos do Direito. A partir de sua adoo, estabele-
ceu-se uma nova forma de pensar e experimentar a relao sociopoltica no sistema jurdico. Passou
a ser princpio e fim do Direito contemporaneamente produzido e dado observncia nos planos
nacional e internacional. Contra todas as formas de degradao humana, esse princpio fundamental
emergiu, como imposio do Direito justo, o da dignidade da pessoa humana.
Sarlet (2012, p. 123), um dos grandes doutrinadores da dignidade, assevera:
[...] Todavia, cumpre relembrar que o princpio da dignidade da pessoa tambm serve como justificativa para a imposio de restries a direitos fundamentais, acabando, nesse sentido, por atuar como elemento limitador destes. [...] A dignidade da pessoa atua simultaneamente como limite dos direitos e limite dos limites, isto , barreira ltima contra a atividade res-tritiva dos direitos fundamentais.
A dignidade da pessoa humana o princpio fundamental que est na base do estatuto jurdico
dos indivduos e confere sentido ao conjunto de preceitos relativos aos direitos fundamentais. Esse
princpio deve ser interpretado como referente a cada pessoa (individual), ou seja, a todas as pessoas,
sem discriminaes (universal), e a cada homem como ser autnomo (livre). Assim como vem ocor-
rendo em diversos outros pases do mundo, traduz uma pretenso de que tal princpio confira uma
unidade sistmica e um substrato de validade objetivamente considerado, notadamente, quanto aos
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27OS TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS EM FACE DA LEI 10211/2001: Uma anlise sob a tica dos Direitos Fundamentais
direitos e garantias fundamentais do homem (ALVES, 2001, pp. 132-134).
Sarlet (212, pp. 27-28) demonstra a sua preocupao com as geraes futuras com o desen-
volvimento e o aprimoramento da espcie humana a partir da afirmao do princpio fundamental da
dignidade da pessoa humana:
Justamente pelo fato de que a dignidade vem sendo considerada (pelo menos para muitos e mesmo que no exclusivamente) qualidade intrnseca e indissocivel de todo e qualquer humano e certos de que a destruio de um implicaria a destruio do outro, que o respeito e a proteo da dignidade da pessoa (de cada uma e de todas as pessoas) constituem-se (ou, ao menos, assim deveriam) em meta permanente da humanidade, do Estado e do Direito.
A dignidade da pessoa humana , segundo Gama (2004, p. 132), limite e tarefa do poder pbli-
co, da sociedade, e de cada um considerado isoladamente. Contribui, ainda, Sarlet (2012, pp. 46-47):
Condio dplice esta que tambm aponta para uma simultnea dimenso defensiva e pres-tacional da dignidade . [...] Poder-se- afirmar que, na condio de limite da atividade dos poderes pblicos, a dignidade necessariamente algo que pertence a cada um e que no pode ser perdido ou alienado, porquanto, deixando de existir, no haveria mais limite a ser respeitado (este sendo considerado elemento fixo e imutvel da dignidade). Como tarefa (prestao) imposta ao Estado, a dignidade da pessoa reclama que este guie as suas aes tanto no sentido de preservar a dignidade existente quanto objetivando a promoo da dig-nidade, especialmente criando condies que possibilitem o pleno exerccio e fruio da dignidade, sendo portanto dependente (a dignidade) da ordem comunitria, j que de se perquirir at que ponto possvel ao indivduo realizar, ele prprio, parcial ou totalmente, suas necessidades existenciais bsicas ou se necessita, para tanto, do concurso do Estado ou da comunidade (este seria, portanto, o elemento mutvel da dignidade).
A doutrina considera que o conceito de dignidade da pessoa humana dotado de contornos vagos
e imprecisos, tendo como caracterstica a diversidade de sentidos a ele atribudos. Destarte, a dignidade
considerada por alguns autores como algo real, pois possvel identific-la nos casos em que violada ou
ameaada de leso, mesmo que no haja viabilidade de enumerar um rol exaustivo de casos de violaes
de dignidade (GAMA, 2004, p. 132). um valor prprio da natureza humana, no tendo sido introduzida
em nosso ordenamento jurdico pelo Direito, mas sim pela prpria existncia da pessoa humana.
H dois aspectos a serem considerados acerca da dignidade da pessoa humana. O primeiro se
refere aos limites a serem impostos pelo poder pblico no sentido de impedir que haja violao desse
princpio fundamental. J o outro refere-se tutela e efetivao de uma vida com dignidade para
todas as pessoas. Esses aspectos devem nortear toda a ordem jurdica, uma vez que a dignidade da
pessoa humana constitui um princpio e um valor fundamental em um pas como ocorre em todos
os pactos e Constituies que o protegem.
Sarlet calca seu pensamento no sentido de que, onde os direitos fundamentais mais bsicos no
forem reconhecidos, no haver espao para a dignidade:
O que se percebe, em ltima anlise, que onde no houver respeito pela vida e pela in-tegridade fsica e moral do ser humano, onde as condies mnimas para uma existncia digna no forem asseguradas, onde no houver limitao do poder, enfim, onde a liberdade, a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais no forem reconhecidos e minimamente assegurados, no haver espao para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poder no passar de mero objeto de arbtrio e injus-tias (SARLET, 2012, p. 59).
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28 OS TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS EM FACE DA LEI 10211/2001: Uma anlise sob a tica dos Direitos Fundamentais
O conceito de dignidade da pessoa humana encontra-se em constante processo de reconstruo
e desenvolvimento. Uma conceituao rgida acerca desse princpio fundamental no condiz com o
pluralismo e a diversidade de valores existentes nas sociedades democrticas atuais. Assim sendo,
mesmo que no exista previso expressa nas normas jurdicas a respeito do atributo intrnseco
pessoa humana, sempre haver de ser assegurada a sua dignidade, especialmente a partir da tutela
de vrios bens jurdicos que se vinculam dignidade, como a vida. A dignidade da pessoa humana
foi reconhecida como valor essencial e princpio fundamental de nosso ordenamento jurdico quando
formalmente foi reconhecida como condio de fundamento da Repblica Federativa do Brasil na
Constituio Federal de 1988.
1.5 A Biotica em Defesa da Dignidade da Pessoa Humana
Nas ltimas dcadas, o mundo tem presenciado uma verdadeira revoluo no campo cientfico
e tecnolgico. Essas transformaes refletem diretamente no que se relaciona sobrevivncia e
dignidade humana. Tais transformaes trazem um grande impacto social, repercutindo na esfera fa-
miliar, na conduta individual e, principalmente, na coletividade, preocupando cada vez mais o mundo
jurdico no que se refere aos direitos fundamentais do homem:
[] nesse contexto que est inserida a Biotica. O seu discurso est diretamente relaciona-do ao momento atual, e todas as questes que dizem respeito dignidade e preservao da vida fazem parte do seu campo de ao; dentre estes, os conflitos originrios da contradio entre o progresso biomdico e os limites necessrios preservao da cidadania e direitos humanos, nas mais diversas situaes, que envolvam a biomedicina, biotecnologia e outras reas afins (ALMEIDA, 2012, p. 166).
Considera S (2002, p. 94) que:
[...] A dignidade da pessoa humana tutelada tanto na esfera pblica quanto na privada, afigurando-se esta ltima construo recente, fruto das elaboraes doutrinrias germnica e francesa da segunda metade do sculo XIX, sendo correto dizer que por direitos de perso-nalidade entendem-se as faculdades jurdicas cujo objeto so os diversos aspectos da prpria pessoa do sujeito, assim como da sua projeo essencial no mundo exterior.
Dignidade do homem um termo que tem duas teorias, segundo o entendimento do Professor Hasso
Hoffmann, citado por S (2002, p. 97), ao discorrer acerca dos arts. 1 e 2 da lei fundamental, quais sejam:
A teoria della dote (Mitgittheorie) e a teoria della prestacione (Leistungstheorie). A primeira destaca-se pala tentativa de explicar a dignidade do homem como uma particular qualidade e que concedida a ele pela natureza ou pelo Criador. Da vem a ideia do homem criado imagem e semelhana de Deus, e do indivduo como valor absoluto, de acordo com a mxima kantiana. A segunda afirma que a dignidade do homem resultado do seu prprio agir, no momento em que determina seu comportamento, capaz de construir sua identidade.
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29OS TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS EM FACE DA LEI 10211/2001: Uma anlise sob a tica dos Direitos Fundamentais
A Corte Constitucional Federal definiu de maneira negativa a dignidade da pessoa humana,
descrevendo as suas leses, tais como degradao, crueldade, desumanidade, entre outros termos.
Tais conceitos gerais so relacionados pela Corte frmula kantiana, a qual rege que o homem no
pode ser mero objeto do agir do Estado. Nesse sentido,
Os bioeticistas devem ter como paradigma o respeito dignidade da pessoa humana, que fundamento do Estado democrtico de Direito (CF, art. 1, III) e o cerne de todo o ordena-mento jurdico. Deveras, a pessoa humana e sua dignidade constituem fundamento e fim da sociedade e do Estado, sendo o valor que prevalecer sobre qualquer tipo de avano cientfi-co e tecnolgico. Consequentemente, no podero a biotica e o biodireito admitir conduta que venha a reduzir a pessoa humana condio de coisa, retirando dela sua dignidade e o direito a uma vida digna (DINIZ, 2011, p. 17).
O Direito parte da observao dos fatos. Tudo o que estiver em detrimento do homem deve ser
ignorado pela cincia e tambm pelos juristas. A cincia nos traz as maiores contribuies para que a
vida do homem seja mais digna de ser vivida. Todavia, como leciona Diniz (2011, p. 18), nem tudo o
que cientificamente possvel moral e juridicamente admissvel.
O paradigma biotico do respeito vida humana digna acatado pela Declarao sobre a Uti-
lizao do Progresso Cientfico e Tecnolgico no Interesse da Paz e em Benefcio da Humanidade,
elaborada pela ONU em 10 de novembro de 1975, e deve estar presente na tica e no ordenamento
jurdico de todas as sociedades humanas.
A Conveno sobre Direitos Humanos e Biomedicina, adotada pelo Conselho da Europa em 19
de Novembro de 1966, adverte em seu prembulo que o mau uso da Medicina e da Biologia pode con-
duzir prtica de atos que colocam em risco a dignidade humana. Nesse mesmo sentido, em seu art.
2 prescrito que os interesses e o bem-estar humanos devem prevalecer sobre o interesse isolado
da sociedade ou da cincia9.
A Biotica e o Biodireito passam a ter um sentido humanista com o reconhecimento do respeito
dignidade humana, sendo estabelecida uma forte ligao com a justia. Nesse vis, leciona Diniz
(2011, pp. 21-22):
Os direitos humanos, decorrentes da condio humana e das necessidades fundamentais de toda pessoa humana, referem-se preservao da integridade e da dignidade dos seres humanos e plena realizao de sua personalidade.
No podero contrariar os direitos humanos e devero subordinar-se aos limites ticos aquelas
intervenes cientficas sobre a pessoa humana que possam atingir sua vida e a integridade fsico-
mental. Os profissionais da sade devem ter cuidado para que no transponham os limites ticos
impostos pelo respeito pessoa humana e sua vida, integridade e dignidade.
Umbilicalmente relacionada dignidade da pessoa humana encontra-se a noo de vida digna,
no sentido de que, para que haja dignidade reconhecida, deve ser constatada a vida, que deve ter a sua
construo e desenvolvimento com base no respeito, garantia e dignidade da pessoa humana.
9 Art. 2 da Conveno sobre Direitos Humanos e Biomedicina. In. DINIZ, op. cit., p. 21.
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30 OS TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS EM FACE DA LEI 10211/2001: Uma anlise sob a tica dos Direitos Fundamentais
Captulo 2
Dos direitos humanos fundamentais intrsecos ao transplante de rgos e tecidos
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31OS TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS EM FACE DA LEI 10211/2001: Uma anlise sob a tica dos Direitos Fundamentais
Os direitos fundamentais so frutos da histria de nossa humanidade. So conquistas do ho-
mem e so valores inerentes a ele, sendo que o Estado tem, to somente, o dever de garantir e proteger
tais direitos.
O transplante de rgos e tecidos no apenas um ato de benemerncia do ser humano. Desde
a doao de um rgo at que esse seja transplantado, esto incutidos alguns direitos fundamentais
pertinentes ao doador e ao receptor, como o direito vida, formao dos direitos de personalidade,
integridade fsica e o direito ao prprio corpo, liberdade de conscincia e ao poder de disposio
do prprio corpo.
2.1 Conceito de Direito Humano FundamentalOs direitos fundamentais se formaram no decorrer da histria, tendo como marco a Declarao
Universal dos Direitos Humanos. Eles surgiram como instrumento contra o abuso de poder do Estado:
A concepo de direitos fundamentais surge do entendimento da necessidade de se criar mecanismos contra os abusos do poder estatal. A autoridade deve ser controlada por um conjunto de direitos que visem mediar as relaes entre governantes e governados, estabe-lecendo-se o respeito liberdade individual e igualdade de todos perante a lei (FABRIZ, 2011, p. 189).
Bobbio (2004, p. 5) esclarece que:
Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, so direitos histricos, ou seja, nascidos em certas circunstncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes e nascidos de modo gradual, no todos de uma s vez e nem de uma vez por todas.
Os direitos humanos, que so a positivao dos direitos fundamentais, em seu sentido contem-
porneo, surgiram como produto da fuso de vrias fontes, desde tradies enraizadas nas diversas
civilizaes at a conjugao dos pensamentos filosfico-jurdicos e as ideias surgidas com o cristia-
nismo e com o direito natural (MORAES, 2011, p. 19):
Atribui-se Escola do Direito Natural a construo da noo e contedo dos direitos funda-mentais como sendo direitos inatos ao homem - tambm denominados de direitos naturais, originrios, essenciais e absolutos - em virtude de preexistirem ao prprio surgimento do Estado. Entretanto, vrias correntes e teorias jusnaturalistas se desenvolveram no pensa-mento jurdico e filosfico para fundamentar a existncia dos direitos fundamentais. Diante dos acontecimentos polticos e sociais que marcaram a histria da civilizao humana, es-pecialmente as grandes revolues do sculo XVIII, alguns direitos fundamentais da pessoa humana foram reconhecidos e expressos em vrias declaraes feitas por ocasio de tais eventos histricos marcantes (GAMA, 2004, p. 151).
A noo de direitos fundamentais mais antiga do que a ideia de constitucionalismo, que deri-
vou diretamente da soberana vontade popular. Os direitos fundamentais tiveram a sua origem no an-
tigo Egito e na Mesopotmia, no terceiro milnio antes de Cristo, quando j havia previso de alguns
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32 OS TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS EM FACE DA LEI 10211/2001: Uma anlise sob a tica dos Direitos Fundamentais
mecanismos para a proteo individual do homem com relao ao Estado.
Fabriz (2003, p. 189) complementa acerca do processo histrico dos direitos fundamentais:
[...] Esses direitos devem ser entendidos, em sua evoluo histrica, como um processo que integra trs etapas: em primeiro lugar, aparece a conscincia desses direitos em determi-nadas condies histricas; em segundo lugar, ocorre a declarao positiva e a recepo dos mesmos direitos pelos textos constitucionais e, por fim, a realizao como concretos e eficazes.
Com o advento da modernidade, ocorre a separao das esferas normativas da Religio, Moral,
tica Social e Direito. A poltica e a economia tornaram-se esferas autnomas que passaram a operar
com base em princpios racionais. A base para o surgimento dos direitos fundamentais foram as ideias
que povoaram os movimentos constitucionalistas. Assim sendo, houve uma ruptura paradigmtica
com a pr-modernidade, na qual as normas justificam-se transcendentalmente.
Com a modernidade, a racionalidade ocidental difundiu-se. As formas de vida tradicionais e as
organizaes polticas pr-modernas foram aniquiladas pela ao de vrios fatores. Na multiplicidade
das relaes, a razo prtica indica um novo agir diante do mundo. O homem conduzido, agora, por
suas faculdades subjetivas, colocando em destaque o individualismo e a autonomia individual como
bases da promoo da felicidade. O homem torna-se sujeito privado, que tambm pode assumir papis
como membro da sociedade civil, do Estado e do mundo.
Houve a quebra de paradigmas das civilizaes anteriores: o homem aos poucos foi conquistan-
do o seu lugar no constitucionalismo contemporneo, surgindo, dessa forma, os direitos fundamen-
tais. Ressalta Gama que, na contemporaneidade, os direitos fundamentais da pessoa humana so
reconhecidos expressa ou implicitamente na maior parte das Constituies dos pases que seguem
regimes democrticos (GAMA, 2004, p. 153).
A doutrina constitucional, baseada na ordem histrica e cronolgica em que os direitos funda-
mentais vieram a ser reconhecidos constitucionalmente, legitima trs nveis de regramento destinados
proteo desses direitos, definindo-os como direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira
gerao, a saber:
[...] Os direitos fundamentais de primeira gerao, consubstanciados nos direitos individuais e polticos; os de segunda gerao, inerentes aos institutos sociais, culturais e econmicos, e, na terceira gerao, surgem os direitos do homem, nos quais encontramos os direitos difusos e coletivos (SANTOS, 2001, p. 274).
Contribui Gama ( 2004, pp. 24- 25) acerca da origem dos Direitos Fundamentais:
O Cdigo de Hamurabi (1690 a.C.) talvez seja a primeira codificao a consagrar um rol de direitos comuns a todos os homens, tais como a vida, a propriedade, a honra, a dignidade e a famlia, prevendo, igualmente, a supremacia das leis em relao aos governantes. [...] Con-tudo, foi o Direito romano que estabeleceu um complexo mecanismo de interditos visando tutelar os direitos individuais em relao aos arbtrios estatais. A Lei das doze tbuas pode ser considerada a origem dos textos escritos consagrados da liberdade, da propriedade e da proteo dos direitos do cidado.
Moraes (2011, p. 20) conceitua os direitos fundamentais da seguinte forma:
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33OS TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS EM FACE DA LEI 10211/2001: Uma anlise sob a tica dos Direitos Fundamentais
Os direitos humanos fundamentais, portanto, colocam-se como uma das previses absoluta-mente necessrias a todas as Constituies, no sentido de consagrar o respeito dignidade hu-mana, garantir a limitao de poder e visar pleno desenvolvimento da personalidade humana.
Fabriz (2003, pp. 189-190) complementa com o entendimento de que os direitos fundamentais
devem ser conceituados sob a tica material e formal:
Quanto ao conceito de direitos fundamentais, apresenta-se sob dois aspectos: o formal e o material. Sob o aspecto formal, como direitos propriamente ditos, so garantidos numa Constituio como prerrogativas; sob o aspecto material, como valores. Neste ltimo aspec-to, so pr-constitucionais, pois produtos das culturas civilizadas, e determinam o contedo desses direitos nas Constituies.
J Silva (2013, p. 175-178) admite a dificuldade de conceituar os direitos fundamentais de forma
sinttica e precisa:
A ampliao e transformao dos direitos fundamentais do homem no envolver histrico dificulta definir-lhes um conceito sinttico e preciso. Aumenta essa dificuldade a circuns-tancia de se empregarem vrias expresses para design-los, tais como direitos naturais, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais, direitos pblicos subjetivos, li-berdades fundamentais, liberdades pblicas e direitos fundamentais do homem. [...] Direitos fundamentais do homem constitui a expresso mais adequada a este estudo, porque, alm de referir-se a princpios que resumem a concepo do mundo e informam a ideologia poltica de cada ordenamento jurdico, reservada para designar, no nvel do direito positivo, aque-las prerrogativas e instituies que ele concretiza em garantias de uma convivncia digna, livre e igual de todas as pessoas [...].
Os direitos fundamentais so as matrizes de todos os demais direitos, pois so entendidos como
direitos que emanam fundamentabilidade sobre os demais, devido sua natureza constitucional
(FABRIZ, 2003, p. 189).
Atualmente, os direitos fundamentais so reconhecidos de forma expressa ou implcita em
grande parte das Constituies de pases que seguem o regime democrtico. Gama (2004, p. 21)
afirma que, extrapolando os limites do direito constitucional, os direitos fundamentais, numa viso
atual, conferem legitimidade ao novo Direito, sendo assim mais propcio para a sociedade atual e
menos utpico, como era em outros tempos.
Os direitos fundamentais elencados no Ttulo II da Constituio Ptria no so exaurientes, pois
existem direitos fundamentais em outras partes da nossa Constituio sem olvidarmos tambm os
direitos fundamentais existentes em tratados internacionais e tambm no rol dos direitos humanos.
Santos (1998, p. 280) afirma que os direitos fundamentais, alm de possurem traos diferentes
das demais categorias jurdicas, possuem cinco caractersticas bem peculiares: historicidade, univer-
salidade, limitabilidade, concorrncia e irrenunciabilidade.
A historicidade se refere consagrao dos direitos fundamentais no decorrer da histria de
nossa humanidade. A universalidade, por sua vez, caracterizada pela destinao dos direitos funda-
mentais a todos os seres humanos, sendo inadmissvel qualquer forma de discriminao.
A limitabilidade estar presente quando da coliso entre dois direitos fundamentais, devendo
sempre estar presente a ideia de que no h hierarquia entre normas constitucionais. Assim sendo,
sustenta Santos (1998, p. 280):
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[...] Exigindo, ento, nestes casos, um regime de cedncia recproca, mesmo porque inexiste hierarquia entre normas constitucionais. Resulta desses choques constitucionais a sntese conclusiva de que os direitos fundamentais so limitveis e no absolutos.
A concorrncia de direitos fundamentais ocorre quando uma nica situao pode ser regulamen-
tada por mais de uma norma constitucional, devendo o intrprete, nesse caso, ser obrigado identifi-
cao de todo o conjunto de normas constitucionais de regncia sobre o tema, visando apreender para si
a correta definio do regramento e das consequncias jurdicas especficas (SANTOS, 1998, p. 281).
Devido grande proximidade de sentido e significncia, acredita-se que seja oportuno distin-
guir os direitos humanos dos direitos fundamentais. Os direitos humanos so aqueles reconhecidos
ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado. J os direitos humanos
so aqueles positivados na esfera do direito internacional (FABRIZ, 2003, p. 187).
Em funo de constiturem uma categoria especial do direito constitucional, os direitos fun-
damentais ganharam status de clusulas inatingveis pelo constitucionalismo democrtico de nosso
pas. Trata-se de direitos essenciais para a vida de qualquer pessoa humana, pois tocam dimenses
personalssimas da vida, da liberdade e da dignidade. Importa salientar que os direitos fundamentais
at podem deixar de ser exercidos, mas em hiptese alguma podero ser renunciados.
2.2 Consideraes acerca do Direito Fundamental vida
A Declarao Universal dos Direitos do Homem foi o grande marco da garantia dos direitos fun-
damentais. Muitos desses direitos continham aspectos prprios dos direitos de personalidade. Entre eles, a
vida humana assume um papel muito importante, pois impede que a pessoa possa ser considerada objeto
do Direito. Assim, [...] a primeira e talvez a mais importante consequncia de direito privado decorrente da
Declarao Universal dos Direitos do Homem aquela que considera a pessoa humana sujeito de direitos10:
Desses direitos, a proteo da vida humana assume portentoso papel, tanto de garantia da prpria existncia do ser e do nascimento do sujeito de direitos quanto de concepo princi-piolgica das relaes familiare