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Saúde em Debate direção de
Gastão Wagner de Sousa Campos Maria Cecília de Souza Minayo
José Ruben de Alcântara Bonfim Marco Akerman
Marcos Drumond Júnior Yara Maria de Carvalho
SaúdeLoucura direção de
Antonio Lancetti
Saúde em Debate
PSICANÁLISE E SAÚDE COLETIVA
Interfaces
ROSANA ONOCKO-CAMPOS
PSICANÁLISE E SAÚDE COLETIVA Interfaces
HUCITEC EDITORA
São Paulo, 2012
© Direitos autorais, 2012, de Rosana Onocko Campos. Direitos de publicação da Hucitec Editora Rua Gulnar, 23 – 05796-050 São Paulo, Brasil Telefone (55 11 5093-0856) www.huciteceditora.com.br [email protected]
Depósito Legal efetuado.
Coordenação editorial M ARIANA N ADA
Assessoria editorial M ARIANGEL A GIANNELLA
Circulação S OLA NG E E LSTER
CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
Dedico este livro a quatro mulheres incríveis,
sem as quais a minha vida seria mais aborrecida, opaca e triste,
pois lhe faltaria o calor e o colorido da amizade.
Às minhas amigas
S ILVA NA WE LLE R
ANDREA MORO
MARIA CLAR A DE SOUSA P AIX Ã O
CLAUDI A PART E L
Sumário
11 Prefácio
Psicanálise e saúde coletiva: interfaces
Capítulo 1
17 Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos em busca de políticas públicas potentes
Capítulo 2
39 Ideologia e subjetividade: a relação recalcada
Capítulo 3
57 Humano demasiado humano: uma abordagem do mal-estar na
instituição hospitalar
Capítulo 4
77 O encontro trabalhador-usuário na atenção à saúde: uma con-
tribuição da narrativa psicanalítica ao tema do sujeito na saúde
coletiva
Capítulo 5
97 Clínica: a palavra negada (sobre as práticas clínicas nos serviços
substitutivos de saúde mental)
Capítulo 6
117 Elas continuam loucas: de que serviria aos serviços públicos de saúde uma releitura dos textos de Freud sobre a histeria?
11
10 | Sumário
Capítulo 7
137 E agora quem os educa? Holding, handing e continuidade: funções claudicantes na política pública de saúde mental para crianças e
adolescentes .
Capítulo 8
148 Sejamos heterogêneos: contribuições para o exercício da supervi-
são clínico-institucional em saúde mental
P
Prefácio Psicanálise e Saúde Coletiva: Interfaces
O ouvido não pisca. . .
— ARTHUR H IPPÓLIT O DE MOURA
Comunicação pessoal
or que trazer à tona o encontro da Psicanálise com a Saúde Coletiva?
Quais as questões que não conseguimos “não” ouvir? — como lembra
a epígrafe de meu querido e saudoso amigo Arthur. Ter ouvido é uma sorte,
e tê-lo treinado chega a hora que é uma sina. . . Nunca tive ouvido musical,
coisa que lastimo. Mas minha história, minha formação e — acredito —
minha condição de estrangeira (quase que de nascença) não me deixam
não escutar alguns ruídos, barulhos, tons e dissonâncias no campo da Saú-
de Coletiva. Campo que tanto valorizo e do qual me orgulho de fazer parte,
pelo seu tipo de compromisso ético, pela sua história engajada.
Desde o advento da psicanálise, o pensamento freudiano tem ali-
mentado reflexões sobre cultura, sociologia e sobre inúmeros outros cam-
pos. Por que não aconteceria no campo da saúde coletiva? Mas a saúde
coletiva brasileira tem se definido a partir de algumas recusas e de algumas
afirmações históricas (recusou o caráter prescritivo vertical da saúde públi-
ca, da qual quer diferenciar-se e deu ênfase nos determinantes sociais nos
quais quer apoiar-se firmemente, por exemplo) e tem tido, nas últimas três
décadas, no Brasil um desenvolvimento importante, bebendo sempre da
interdisciplinaridade, e indo ao encontro de certos referenciais teóricos, aos
quais deu preferência em relação a alguns outros.
11
12 | Psicanálise e Saúde Coletiva
No Brasil, a saúde coletiva dos anos 1970 tinha um forte viés estru-
tural marxista, que foi, ao longo dos anos 80 e 90, sendo deslocado por
aportes vindos das ciências sociais de bases empírico-sociológicas ou fe-
nomenológicas. Ao final dos anos 90, estudos interpretativos, etnográficos
e de representações trazem à tona o tema do sujeito, como uma retomada
histórica da Saúde Coletiva. A Abrasco (Associação Brasileira de Saúde
Coletiva) realizou seu VI Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva em 2000,
em Salvador (BA), e trouxe como tema central de discussão “O sujeito na
Saúde Coletiva”.
Naquele momento, os organizadores apontavam a necessidade de a
Abrasco refletir, após vinte anos de atividades como associação científica da
área, “sobre quem é o sujeito na e da Saúde Coletiva”(Abrasco, 2000b,
apud Belisário, 2002).
No mesmo evento, defendia Paim (2000, p. 3):
Devemos recuperar a ideia de sujeito sem negar a ideia de estrutura,
resgatando o papel do sujeito histórico na conservação ou na mudan-
ça dessas estruturas. Temos que considerar ainda que esse sujeito da
saúde coletiva, capaz de processar tais mudanças, pode ser, além do
sujeito individual, uma personalidade, uma liderança. Podemos falar
em sujeito social, que pode ser definido como uma entidade, a exem-
plo da própria Abrasco, ou de um partido político, um sindicato, uma
associação de bairro, etc. . .
A organização do Congresso realizou quatro grandes conferências,
que apresentam o sujeito de diferentes formas: o sujeito ético, o histórico, o
social e o saudável. Apresentaram-se, também, grandes debates que abor-
daram a transversalidade, a transdisciplinaridade, a transetorialidade, a
transformação, a transição e a transculturalidade, privilegiando os diferen-
tes deslocamentos a que o Sujeito estaria submetido, e apontando outras
disciplinas as quais a Saúde Coletiva poderia — e deveria — recorrer em
busca de elementos para sua própria construção (Belisário, 2002).
Como podemos ver, as referências aos “trânsitos” já estavam lá, colo-
cadas há mais de uma década, mas não houve quase referências à consti-
tuição subjetiva do sujeito. O sujeito pode ser histórico, social, e até coletivo,
| 13 Psicanálise e Saúde Coletiva
mas não há referência a alguma estruturação que não seja racional. Nada
de inconsciente!
Já em pleno século XXI o sujeito estava de novo perdido, em risco de
se dissolver em fluxos, heterogeneidades sem membranas e intensidades
várias sem qualificação possível. A crítica aos “especialismos” jogou fora o
bebê com a água do banho: encontramo-nos, apesar da retomada do sujei-
to, desarmados, incapazes de tematizar e pensar a questão de nossas em-
pobrecidas formações técnicas da área da saúde (como se isso não fosse um
problema no Brasil!!!). Repertórios teóricos, habilidades técnicas tudo foi
varrido por uma maré de boas intenções, como se elas não pavimentassem
o caminho aos infernos. . .
Também, em pleno século XXI, a psicanálise resiste à sua morte
anunciada, alimenta práticas e intervenções, alinhava valores e sustenta
posturas éticas em inúmeras situações. E mais, ela fornece referencial teó-
rico e instrumentos práticos para muitos trabalhadores da saúde que se
dizem seus praticantes, que atravessaram a experiência da análise pessoal
e dela saíram com a vontade de contribuir para que outros humanos pos-
sam aceder a uma vida menos alienada de seus próprios desejos. Contudo,
algumas polarizações excludentes precisam ser desconstruídas para per-
mitir a exploração dessa interface entre saúde coletiva e psicanálise.
Por exemplo, atribui-se a uma “certa” psicanálise (quase sempre
tomada como “a” psicanálise) um trabalho no individual, interior, das
profundezas da pura singularidade; e se atribui à saúde coletiva inter-
venções no exterior, na sociedade, no que é de muitos. Caberia à psicaná-
lise desenvolver práticas privadas e lucrativas, ao passo que corresponderia
à saúde coletiva problematizar o que se passa no espaço público. Rejei-
tamos essa dicotomia, assim como rejeitamos uma concepção de psicaná-
lise monopolizada por certas escolas de funcionamento quase religioso,
que cultuam esse mito da pura interioridade, como se houvesse um sujeito
do inconsciente possível de se desenvolver em uma cápsula hermetica-
mente isolada do seu meio cultural e social. Abraçamos uma psicanáli-
se preocupada por desvendar os mecanismos pelos quais o laço fraterno
seria possível, e com ele a criação e a cultura. Uma psicanálise que nos aju-
de a suportar um “nós” fortemente investido e a tolerar-nos em nossas
diferenças.
14 | Psicanálise e Saúde Coletiva
Este livro reúne alguns textos inéditos, outros inéditos em português
e algumas reedições de artigos originalmente publicados em periódicos
científicos. Os dois primeiros textos buscam problematizar as políticas
públicas e alertar para o recalcamento da dimensão da ideologia por
meio do diálogo com a psicanálise e algumas categorias e conceitos que
ela nos oferece.
O terceiro e quarto capítulos se detêm na análise do próprio encontro
entre os trabalhadores da saúde, os serviços e os destinatários — chamados
de pacientes ou usuários. Ambos os nomes não ajudam e não conseguimos
uma opção melhor: um aponta a dimensão de espera e de padecer, e o outro
a questão dos direitos, mas também apontando a saúde como algo que se
consome, o que nos desagrada, pois sabemos bem que o usuário de saúde
poucas vezes tem opção de escolher o que consumir nesse campo (agora
uma fluoxetina, amanhã uma cirurgia de joelho?). Neles buscamos destacar
como algumas formas organizacionais têm potencialidade para empurrar a
produção subjetiva para um lado ou outro.
Os outros quatro artigos conformam um conjunto no qual se mos-
tram diferentes “aplicações” destinadas a melhorar a forma como trabalha-
mos com as equipes que trabalham com pessoas; a maior parte delas está
mais focada nas práticas da saúde mental, seja para melhorar a clínica das
psicoses, ou das neuroses, e para pensar e produzir diferenças nas ações
comunitárias com jovens e crianças. O último capítulo pretende divulgar e
mostrar como temos conseguido operar o dispositivo de supervisão clínico-
-institucional em Centros de Atenção Psicossocial.
Em todos eles esperamos que se possam achar pistas operacionais,
pontos de tensão que estimulem a reflexão sobre nossas práticas e, sobre-
tudo, o testemunho de um postura ético-política pela e na psicanálise. O
contexto brasileiro tem sido um grande estímulo e terreno fértil para todos
esses trabalhos e reflexões em virtude do desenvolvimento dos novos ser-
viços substitutivos de saúde mental, articulados em redes cada vez mais
diversificadas, apoiada pela atitude interrogativa da pesquisa, essa rede foi
o caldo no qual esses relatos vieram à luz.
Desejo manifestar meu agradecimento mais profundo às equipes
com as quais tenho trabalhado ao longo destes últimos quinze anos, pela
coragem com que enfrentaram seus monstros, pela confiança que demons-
| 15 Psicanálise e Saúde Coletiva
traram em minha pessoa, pela força de que dão testemunho no trabalho
cotidiano no Sistema Único de Saúde. Como disse Winnicott, “Aos meus
pacientes, que pagaram para me ensinar”.
Agradeço também as leituras carinhosas de Silvana Weller, Gastão
Wagner de Sousa Campos e Renate Meyer Sanches.
Também meu agradecimento às revistas que gentilmente autoriza-
ram a reedição de textos originalmente publicados por elas: Salud Colectiva
e Salud en Debate da Argentina, Saúde em Debate do Cebes, Ciência e
Saúde Coletiva da Abrasco e Boletim de Saúde da SES/RGS.
Referências
Belisário, S. A. Associativismo em Saúde Coletiva: um estudo da Associação
Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva – Abrasco. Doutorado
em Saúde Coletiva. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas/
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 2000.
Paim, J. In: Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, VI, 2000, Salvador.
Boletim 1. Salvador: Abrasco, mai. 2000.
D
Capítulo 1 Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos em busca de políticas públicas potentes*
Rosana Onocko Campos†
Adriano Massuda‡
Iris Valle§
Gustavo Castaño||
Oscar Pellegrini¶
urante determinada parte do século XX, a tradição psicanalítica ar-
gentina1 incluía entre suas práticas e corpo discursivo as problemáti-
cas sociais que derivavam da condição de marginalidade, pobreza, desi-
gualdade, com relação a vários campos de atuação, entre os quais o setor de
saúde. Por motivos cuja análise extrapola o presente texto, essa caracterís-
tica de compromisso com o meio foi se perdendo durante a ditadura (1976-
1983). Práticas grupais (algumas delas chamadas “sociais”) foram reprimi-
das até quase desaparecer. A psicanálise argentina se torna cada vez mais
“pura”, mais “linguística” mais “estrutural”.
* Publicado originalmente em Salud Colectiva, vol. 4, n.o 2, pp. 173-85. mai.-ag. 2008. Reedição aprovada pelos Editores.
† Médica, Universidade Nacional de Rosário (UNR), Argentina. Doutora em Saúde
Coletiva, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora do Departamento de Me- dicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Unicamp, Brasil. <rosanaoc@mpc. com.br>.
‡ Médico, Universidade Federal do Paraná, Brasil. Especialista em Saúde Coletiva e Administração em Saúde, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Médico Sanitarista, Hospital das Clínicas, Unicamp, Brasil. <[email protected]>.
§ Psicóloga. Psicanalista. Docente da Carreira de Especialização em Psicologia Clínica,
Institucional e Comunitária, UNR, Argentina. <[email protected]>. || Médico, UNR. Psiquiatra, Colégio de Médicos, Santa Fe. Diretor Estadual de Saúde
Mental, Santa Fe, Argentina. <[email protected]>. ¶ Médico, UNR. Psiquiatra, UNR. Coordenador estadual de abordagens territoriais de
problemáticas subjetivo-sociais, estado de Santa Fe, Argentina. <oscarpellegrini521@ hotmail. com>.
1 Roberto Doria Medina Eguía. Grandes psicoanalistas argentinos. Buenos Aires: Grupo
Editorial Lumen, 2001. 17
18 | Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
Os psicanalistas, (pre)ocupados em/com o público, para pensar o
que se referia a “pobreza/miséria”, passaram a recorrer, em geral, a textos
não psicanalíticos. Identificamos que isso pode decorrer, ao menos, de três
fatores:
a) No corpus teórico tradicional da psicanálise, “pobreza” não é nem
um conceito, nem sequer uma noção; não tem estatuto algum.
b) Em geral, os psicanalistas que publicam não trabalham no público.
c) Os psicanalistas que trabalham no público quase não publicam.
Desde o retorno das frágeis democracias, a abertura de espaços ins-
titucionais provoca um ingresso de profissionais psi nos serviços públicos,
incrementando-os prontamente por meio da sua progressiva proletariza-
ção, agravada pela crise econômica dos anos 90. Voltam, então, a formular
perguntas que são, na verdade, novas questões, apesar de não serem novi-
dades. São novas porque os agentes que as formulam e a sociedade à qual
essas perguntas se dirigem são outros, diferentes dos dos anos 70.
Pretendemos, neste trabalho, revisitar algumas categorias psicanalí-
ticas e discutir sua pertinência e seu valor de uso (utilidade),2 contrastados
com certas categorias clássicas da saúde coletiva. Buscamos, desse modo,
contribuir com o debate e a experimentação de novas práticas em saúde
coletiva. Práticas que gostaríamos de imaginar menos desguarnecidas de
referencial teórico e mais providas de referências ético-políticas, e em per-
manente trabalho de elucidação, “o trabalho pelo qual os homens tentam
pensar o que fazem e saber o que pensam”.3
Objeto
Este estudo realiza uma revisão teórica de alguns conceitos prove-
nientes da Saúde Coletiva e da Psicanálise. Colocando esses conceitos em
relação (entre eles e com o campo das práticas), buscamos propiciar o de-
senvolvimento de categorias para o estudo de questões pertinentes ao
sofrimento psíquico e às novas constituições subjetivas que emergem nas
regiões periféricas das grandes cidades na sociedade contemporânea.
2 Gastão Wagner de Sousa Campos. Um método para análise e cogestão de coletivos. São
Paulo: Hucitec, 2000. 3 Cornelius Castoriadis. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1986, p. 14.
| 19 Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
De que se sofre na periferia e na cidade?
Tanto na Argentina quanto no Brasil, assistimos, na atualidade, a
conformações sociais sumamente complexas, onde a violência de todo tipo
substitui, muitas vezes, a mediação simbólica ligada ao valor fundante da
palavra. Novas configurações familiares, de redes sociais, de grupos. Virtua-
lidades, materialidade, modos de “resolução” de conflitos que nos custam
compreender.
Subjetividades frágeis, precárias, violentadas e violentas (geralmen-
te, terceira geração de desocupados, com modos migratórios complexos,
com territorialidades fragmentadas e sem redes ou com intercâmbios so-
ciais restringidos), configuram características do que chamamos setores “des-
validos” e forçam a diferenciar estratégias em múltiplos planos: sanitário,
clínico, social, produtivo.
Assim como nas psicoses falamos da foraclusão4 do Nome do Pai em
relação à não inscrição da lei simbólica, devemos hoje diferenciar disso as
múltiplas formas de expressão destas degradações do patrimônio simbólico
que levam as loucuras a se expressarem de um só modo, mais ligado à
impulsividade, à imediatez e, no caso das mulheres, às vezes a um sofri-
mento silencioso, naturalização da mortificação feita cultura5 que fazem da
vida uma atualidade permanente, sem história. Um sem palavras, muitas
vezes, somente inscrito no corpo, no próprio, no de seus filhos ou no corpo
dos filhos de suas filhas adolescentes (dos quais são avós-mães). Colapso
geracional das funções maternas e paternas que deixam impotente a pala-
vra e sua relação com a transmissão de uma história, uma novela familiar.
Isso nos leva à discussão sobre a infância atual, que coloca sobre o
tapete conceitos prévios. Vamos defasados no tempo com estas novas sub-
jetividades, que sempre nos apontam como caminho uma abordagem de
suma complexidade. Aqui, ressurgem as teorias do amor e a família destas
crianças. Não se trata de vitimizá-los pela caridade ou fascinação, senão de
ressituar, acompanhar, suplementar funções constitutivas para que exista
4 Jacques Lacan. Seminario 3: Las psicosis (1955-1956). Buenos Aires: Paidós, 1988. 5 Fernando Ulloa. Novela clínica psicoanalítica. Historial de una práctica. Buenos Aires:
Paidós, 1995.
20 | Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
uma criança, que se deve construir em cada espaço possível, em cada res-
quício que se encontre, desde a esquina do bairro, os lugares da região,6,7
com gestões críticas nas escolas, com redes de assistência e sem nos poupar
do desafio de uma atenção mais singularizada quando isso seja necessário.
Vivemos um tempo de mudanças. Antigamente, o sujeito no lugar
estava submetido a uma convivência longa e repetitiva com os mesmos
objetos, os mesmos trajetos, as mesmas imagens, de cuja construção parti-
cipava: uma familiaridade que era fruto de uma história própria, da socie-
dade local e do lugar, onde cada indivíduo era ativo.
Hoje, a mobilidade tornou-se praticamente uma regra. Os homens
mudam de lugar, como turistas ou como imigrantes. Mas também os pro-
dutos, as mercadorias, as imagens, as ideias: “desterritorialização” é,
frequentemente, uma palavra para significar desculturalização. Ir para a
cidade grande é deixar para trás uma cultura herdada para encontrar-se
com outra. Quando o homem se encontra com um espaço que não ajudou
a criar, cuja história desconhece, esse lugar é a sede de uma vigorosa aliena-
ção. Muitos dos imigrantes se comportam como recém-chegados ou como
se estivessem ainda de passagem, depois de vinte ou trinta anos de viver
em certas vilas ou favelas. Se lhes perguntamos dizem “não sou daqui. . .”.
Mas então, como interferir em seu ambiente se este não lhe pertence?
Assim, não se limpa um terreno baldio, nem se planta uma árvore. Tudo (ou
nada), espera-se. . ., morando à margem, onde a cidade e suas legalidades
começam a desaparecer, dependentes dos “gatos” de luz, em terrenos de
ninguém, vivendo das sobras do consumo exacerbado da grande
urbanidade.
Apesar disso, a noção de residência não desaparece. O homem vive
nos lugares durante muito menos tempo, mas vive aí, ainda que seja como
desempregado ou imigrante. A “residência”, o lugar de trabalho, por mais
breves que sejam, são espaços de vida que têm peso na produção humana.
Segundo Lowenthal,8 o passado é outro país. Digamos que o passado é
6 Maria Conceição Oliveira Costa et al. O perfil da violência contra crianças e adolescen-
tes, segundo registros de Conselhos Tutelares: vítimas, agressores e manifestações de violência. Ciência & Saúde Coletiva, vol. 12, n.o 5, pp. 1129-41, 2007.
7 Milton Santos. O lugar e o cotidiano. In: A natureza do espaço. São Paulo: Edusp, 2002. 8 Apud Milton Santos, op. cit., p. 302.
| 21 Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
outro lugar e, no lugar novo, o passado não está; é mister encarar o futuro:
perplexidade primeiro, mas em continuação, necessidade de orientação. Os
imigrantes, em sua memória, trazem consigo recordações e experiências
elaboradas em função de outro meio, e que de pouco lhes servem para a
luta cotidiana. Precisam criar uma terceira via de entendimento da cidade.
Suas experiências vividas ficaram para trás e a nova residência obriga no-
vas experiências. Trata-se de um embate entre o tempo da ação e o tempo
da memória. Obrigados a esquecer, seu discurso é menos influenciado pelo
passado e pela rotina, às vezes é nulo, um não discurso. Um sofrer silen-
cioso, demasiada exigência para mecanismos de representação e simboli-
zação às vezes falidos.
Os papéis do masculino e do feminino também estão desconfigura-
dos. O desemprego produz uma possibilidade de subemprego para as
mulheres, que podem ingressar no mercado de trabalho como empregadas
domésticas ou temporárias. Em muitos bairros periféricos de nossas gran-
des cidades, desde cedo, podemos ver nas ruas crianças e homens, homens
sentados em roda conversando com seus amigos ou em algum dos numero-
sos bares da região. Outros estudos já constataram que essas rodas de
amigos são espaços relacionais por excelência e nos quais, muitas vezes, se
consome álcool o dia inteiro.9
Desse modo, o reconhecimento dessas novas formas de sofrer e de
adoecer, e a forte suspeita de que precisamos inventar estratégias poten-
tes para as novas crises subjetivas, leva-nos a realizar um périplo que nos
faz retornar a algumas tradições de duas áreas: a psicanálise e a saúde
pública (coletiva).
Diz Gadamer10 que é o presente e seus interesses os que fazem o
investigador voltar-se ao passado, à tradição. Assim, não é de se estranhar
que no século XXI comecemos a preocupar-nos por aspectos antes mini-
mizados. Que potencialidades poderíamos extrair colocando em contraste
referencial estas duas áreas do saber?
9 Eduardo L. Menéndez & Renée Di Pardo. De algunos alcoholismos y algunos saberes:
atención primaria y proceso de alcoholización. México: Ciesas, 1996. 10 Hans Georg Gadamer. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica fi-
losófica. Petrópolis: Vozes, 1997.
22 | Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
Resgatando algumas tradições da psicanálise
Um filósofo e psicanalista, Cornelius Castoriadis, já em 198911 fazia
referência a uma crise das identificações, das significações imaginárias (SI)
sociais, que são as que mantêm qualquer sociedade unida.
Para Castoriadis tais significações imaginárias têm três funções prin-
cipais: → Estruturam as representações de mundo (a mais importante é a
que a sociedade tem de si mesma).
→ Designam as finalidades da ação (o que se deve e não se deve
fazer).
→ Estabelecem os tipos de afetos característicos de uma sociedade.
Através de instituições mediadoras e dessas significações imaginá-
rias, institui-se um tipo de sujeito particular (o que faz com que um floren-
tino do século XVIII seja diferente de um rosarino de hoje).
Essa identificação social tem uma função fundamental, posto que
trata de organizar uma defesa contra a morte. Mas essa defesa só opera se
as significações que ela instaura podem, por sua vez, ser consideradas im-
perecíveis. Mas o que haveria hoje de imperecível nas sociedades contem-
porâneas se a família não é o que era, nem as regras de convivência, nem o
espaço urbano? E como seria isso em famílias recém-migradas, em meio a
crises financeiras, em que já nem a classe média pode crer que os bancos —
em pleno capitalismo — cuidarão de seu dinheiro?
Segundo esse autor, a sociedade de consumo tem criado um con-
formismo generalizado e pegajoso, todo igual. Um conformismo tal que
só pode existir ao preço de que não haja um núcleo de identidade impor-
tante e sólido: individualidades em frangalhos. A pós-modernidade nos
havia liberado da tirania do estilo e — simultaneamente — do trabalho
de termos de ser nós mesmos. Hoje as individualidades parecem um col-
lage, uma colcha pathwork: “Sou uma colcha de retalhos, todos da mes-
ma cor”.a
11 Cornelius Castoriadis. A ascensão da insignificância: encruzilhadas no labirinto IV. São
Paulo: Paz e Terra, 2002. a Frase de Mário Quintana, poeta e jornalista brasileiro (1906-1994).
| 23 Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
Nessa e por essa crise do processo de identificação, a sociedade per-
de a possibilidade de autorrepresentar-se como centro de sentido e de
valor. É muito difícil construir assim um nós fortemente investido. Mui-
tos percebem a sociedade somente como uma entidade limitadora e de
controle que lhes foi imposta: ilusão monstruosa e indicativa de um pro-
cesso de dessocialização. Ao mesmo tempo, esse mesmo indivíduo (o
marginalizado) dirige a essa mesma sociedade pedidos ininterruptos de
assistência.
No outro polo, está o indivíduo que vê a história como uma paisagem
turística, faz de tudo para esquecer-se que um dia vai morrer e que tudo o
que faz não tem o menor sentido, corre, compra, pratica esportes, vê televi-
são, em suma: distrai-se, criando uma cultura da cosmética e da banalidade,
contracara macabra da outra metade social, a arrojada à luta por sobrevi-
vência cotidiana nas margens. Uma sociedade com tais características tem
enormes dificuldades para pensar-se, refazer-se, reinventar-se a si mesma,
até cabe a pergunta de se se trata de “uma” sociedade.
Freud12 mostrou que o aparato psíquico é, em grande medida, pro-
duto da cultura, e que a condição de mal-estar é um componente essencial
da civilização. Por sua vez, toda relação social pressupõe jogos de lingua-
gem,13 jogos que são, por um lado, o mínimo de relação exigido para que
haja sociedade e, por outro lado, para que haja ser humano, dado que antes
de seu nascimento e pelo nome que lhe é dado o recém-nascido humano já
é colocado como sujeito de uma história contada por aqueles que o rodeiam.
Posição na qual, mais tarde, terá que dialetizar-se.
Na ética que caracteriza a psicanálise, todo sujeito é mais que porta-
dor do cogito cartesiano. O descobrimento do inconsciente por Freud mar-
cou uma das grandes rupturas da modernidade, na opinião de alguns auto-
res.14 Assumir que as pessoas, os pacientes e os trabalhadores de saúde
também atuam movidos por reações inconscientes, que eles mesmos des-
conhecem e sobre as quais não têm de todo o controle, muda nossa forma
12 Sigmund Freud. O mal-estar na civilização (1931). In: Edição eletrônica brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1997. 13 Jean-François Lyotard. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2006. 14 Miguel Benasayag & Edith Charlton. Esta dulce certidumbre de lo peor. Buenos Aires:
Nueva Visión, 1993.
24 | Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
de abordar as equipes de saúde e as relações que aí se desenvolvem. O re-
conhecimento da dimensão inconsciente altera nossas análises.
Para a psicanálise, estamos sempre desconhecendo uma parte de
nós mesmos. Nosso inconsciente irrompe quando menos esperamos no
meio de nossa ação mais racional. Não se trata, portanto, de uma polaridade
consciente/inconsciente que se corresponderia com outra racional/irracional,
senão de que assumamos o ser humano como um ser que nunca será ab-
solutamente dono de si, um ser “barrado” que não pode tudo, e que nunca
terá a certeza de conhecer perfeitamente o rumo de seu desejo. Essa carac-
terística de nossa condição de humanos também nos marca em nossa con-
dição de trabalhadores, sendo central no caso dos trabalhadores de saúde.
Alguns autores abordaram a concepção de homem como sujeito do
inconsciente e a vida na instituição.15, 16 Segundo Kaës,17 a instituição
funciona para o psiquismo como asseguradora de funções da vida social e
psíquica (como a mãe), “é uma das razões do valor ideal e — necessaria-
mente persecutório — que ela assume tão facilmente”.18
Ser um trabalhador da saúde, do serviço público, acreditar no valor
positivo do próprio trabalho, constituem funções estruturantes da subjeti-
vidade e ajudam a suportar o mal-estar que deriva das tarefas coletivas,
mal-estar em certa medida inevitável, segundo Freud.19
Kaës20 chama a isso aderência narcísica à tarefa primária. Ou seja, os
sujeitos “necessitam” identificar-se favoravelmente com a missão do esta-
belecimento no qual trabalham, acreditar que seu trabalho tem um valor de
uso.21 Quando o contexto de trabalho põe obstáculos à tarefa primária, seja
por falta de recursos humanos, de materiais ou por excesso de autoritarismo
gerencial,22 os sujeitos se valem de estratégias defensivas para atenuar o
próprio sofrimento psíquico. Algumas delas seriam o chamado excessivo à
15 Eugène Enriquez. A organização em análise. Petrópolis: Vozes, 1997. 16 Fernando C. Prestes Motta & Maria Ester de Freitas. Vida psíquica e organização. Rio
de Janeiro: Ed. FGV, 2000. 17 René Kaës. Realidade psíquica e sofrimento nas instituições. In: R. Kaës et al.
(orgs.). A instituição e as instituições. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1991, pp. 1-39. 18 Ibidem, p. 23. 19 Sigmundo Freud, op. cit. 20 René Kaës, op. cit. 21 Gastão Wagner de Sousa Campos. Um método. . ., cit. 22 Ibidem.
| 25 Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
ideologização, somatização, burocratização, desenvolvimento de estados
passionais:
O termo paixão descreve muito bem o intenso sofrimento psíquico,
próximo aos estados psicóticos, que se experimenta ali [na institui-
ção]; é o transbordamento da capacidade de conter e ser contido; a
capacidade de formar pensamentos é paralisada e atacada: a repeti-
ção, a obnubilação, servem de cobertura aos ódios devastadores, con-
tra os quais surgem defesas por fragmentação. . .23
Quantas vezes nos foi observada a dificuldade das equipes para
trabalhar conjuntamente, as falhas de comunicação, o conteúdo ideolo-
gizado de modo fundamentalista, não dialetizado, maniqueísta, de certas
defesas das equipes? Parece-nos importante entender que esses sinto-
mas institucionais são parte da produção da própria realidade de trabalho;
pelo próprio contato permanente com a dor, a morte e a dificuldade de
simbolização que situações como a pobreza extrema e a segregação nos
provocam.
Nas equipes de saúde e de educação acontecem processos de iden-
tificação imaginária entre trabalhadores e usuários. Se a população da área
de cobertura é vista como pobre, desvalida, degradada, sem valor, depois de
um tempo, a própria equipe se sentirá assim.
Pensamos que mecanismos como este conduzem à produção de im-
potência em série das quais padecem muitas equipes de saúde. Também
pode suceder que, na tentativa de defender-se desse espelho desagradá-
vel, a equipe se fecha tentando uma discriminação maior entre o “nós” e o
“outros” e, assim, a equipe monta fortes barreiras que evitam pôr-se em
contato com aquilo que tanto dói.
Às vezes é pior ainda, os trabalhadores podem se tornar agressivos e
praticar represálias contra os usuários. Outras, assumem uma função
messiânica colocando-se como únicos salvadores dessa pobre gente. Esta
última opção pareceria melhor a primeira vista, mas não é, pois fixa a popu-
lação em um lugar de eternos carentes y dependentes de uma política
23 René Kaës, op. cit., p. 33.
26 | Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
pública que eles não têm nenhuma obrigação nem de formular, nem de
controlar: eles só têm direito de pedir e receber. A construção da passivi-
dade é evidente.
Somemos a isso que as populações a que nos referimos, têm sérias
dificuldades para encontrar à disposição valores que funcionem como ân-
cora institucional para formar alguma significação imaginária. Nossas insti-
tuições estão cada vez mais frágeis. Não havendo disponíveis valores na-
cionais ou locais, em muitas oportunidades somente o fanatismo religioso
reeditado dá conta de realizar algum laço subjetivo/simbólico.
Lidar com estas dimensões do padecimento subjetivo atual requer
competência técnica. Oury24 nos ensina que no trabalho não se trata sim-
plesmente de relações individuais com alguém, e que o trabalho em equipe
precisará sempre levar em conta os outros e a si mesmo, mas que deve
sempre ser tomado no âmbito que é mais específico: um espaço onde “pos-
sa acontecer alguma coisa”.
Kaës25 propõe criar dispositivos de trabalho que permitam restabe-
lecer um espaço subjetivo conjunto, uma área transacional comum, relati-
vamente operatória.
Temos defendido que a gestão poderia exercer essa função,26 mas
para isso precisa constituir-se como instância, com um lugar e um tempo
onde se possa experimentar o tomar decisões coletivas e analisar situações
com um grau de implicação maior em relação ao que é produzido.27
Não se trata somente de criar espaços de circulação da palavra e inter-
câmbios autorreflexivos que proporcionariam a democratização e um grau de
análise maior sobre as práticas, coisa por si só já importante.28 Mas de poder
compreender também que esses espaços são frequentemente locus de apre-
sentação de uma mise en scène de estados pulsionais inconscientes.
24 Jean Oury. Itinéraires de formation. Revue Pratique de Psychologie et de la Vie Sociale et d ’Hygiène Mentale, vol. 1, pp. 42-50, 1991.
25 René Kaës, op. cit. 26 Rosana T. Onocko-Campos. A gestão: espaço de intervenção, análise e especificidades
téc-nicas. In: Gastão Wagner de Sousa Campos. Saúde paideia. São Paulo: Hucitec, 2003, pp. 122-49.
27 Rosana T. Onocko-Campos. La planificación en el laberinto: un viaje hermenéutico.
Buenos Aires: Lugar Editorial, 2007. 28 Gastão Wagner de Sousa Campos. Um método. . ., cit.
| 27 Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
Oury destaca a importância de reconhecer essa dimensão incons-
ciente nas relações de trabalho:
[. . .] na própria equipe já existe uma forma de pôr em prática per-
manente tanto as relações complementares, como as complementa-
riedades (mas não as complementaridades como: “eu sou especialis-
ta nisto, ele naquilo, etc.”). Trata-se, com efeito, de um registro quase
material: por um lado, a articulação de diferentes competências, por
outro, as condições de um certo modo de convivência. Existe aí um
engano: não se trata de uma complementariedade mais ou menos
romântico-moderna, do tipo “estamos todos do mesmo lado”, que se
perde no especular, senão de uma complementariedade inscons-
ciente.29
Resgatando algumas tradições da saúde coletiva
Na medicina social latino-americana, houve uma clara crítica à forma
predominante de organização da prática médica.30, 31 Crítica que se apro-
fundou com a entrada em cena das ciências sociais na área da saúde, assu-
mindo certo viés histórico-estrutural.32
Partindo da medicina social latino-americana, a Saúde Coletiva bra-
sileira se constituiu em uma linha teórica original33 que produziu ques-
tionamentos sobre a clínica, a biologização das práticas, e chamou a atenção
sobre o processo de construção sócio-histórica das categorias operató-
rias dominantes.34 Herdeira do referencial teórico estrutural-marxista, a
29 Jean Oury, op. cit. 30 Eduardo L. Menéndez. Grupo doméstico y proceso de salud/enfermedad/atención.
Del teoricismo al movimiento continuo. Cuadernos Médico Sociales, vol. 59, pp. 3-18, 1992. 31 Sônia Fleury. Saúde: coletiva? Questionando a onipotência do social. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1992. 32 Luciene Burlandy & Regina Cele de A. Bodstein. Política e saúde coletiva: reflexão
sobre a produção científica (1976-1992). Cadernos de Saúde Pública, vol. 14, n.o 3, pp. 543-54, 1998.
33 Rosana T. Onocko-Campos. O encontro trabalhador-usuário na atenção à saúde: uma
contribuição da narrativa psicanalítica ao tema do sujeito na saúde coletiva. Ciência & Saúde Coletiva, vol. 10, n.o 3, pp. 573-83, 2005.
34 Madel T. Luz. A produção científica em ciências sociais e saúde: notas preliminares.
Saúde em Debate, vol. 24, n.o 55, pp. 54-68, 2000.
28 | Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
saída da hegemonia desse marco deu-se a partir da incorporação de novas
referências teóricas e metodológicas nos anos 70 e 8035 dando entrada a
categorias como o cotidiano e as representações sociais.
Em fins dos anos 90, o tema da subjetividade se destaca.36,37,38 A
discussão sobre a reformulação dos modelos assistenciais, ou seja, sobre as
diversas formas de organizar o trabalho em saúde, é ainda recente e mais
retórica do que prática.39 Começam a se destacar aspectos como as relações
institucionais e as produções subjetivas nesses contextos.40,41 Isso se pro-
duz no encontro com as práticas no território, e em seu trajeto histórico.
Contudo, é preciso reconhecer que esse conjunto referencial que ajuda a
pensar as relações entre as pessoas e as instituições, continua até hoje
pouco explorado.
No cruzamento de experiências, nos vários experimentos de interven-
ção institucional, e nas histórias que aparecem desde o “território”, vão se res-
gatando também categorias próprias deste campo: a saúde pública ou coletiva.
O território aparece tal como algo mais do que um espaço no mapa,
um lugar. Como ressaltou Milton Santos,42 a globalização faz também
redescobrir a corporeidade. O mundo da fluidez, o vértice da velocidade, a
frequência dos deslocamentos e a banalidade do movimento e das alusões
a lugares e a coisas distantes, revelam, por contraste, no ser humano, o corpo
como uma certeza materialmente sensível, ante um universo difícil de apre-
ender; ainda a dor moral dói no corpo, terá isto alguma relação com o au-
mento das prevalências das enfermidades psicossomáticas? da diminuição
da faixa etária dos infartados?
35 Luciene Burlandy & Regina Cele de A. Bodstein. Política e saúde coletiva: reflexão
sobre a produção científica..., cit. 36 Rosana T. Onocko-Campos. O encontro trabalhador-usuário na atenção à saúde. . .,
cit. 37 Gastão Wagner de Sousa Campos. Considerações sobre a arte e a ciência da mudança:
revolução das coisas e reforma das pessoas. O caso da saúde. In: Luiz Carlos de Oliveira Cecílio (org.). Inventando a mudança na saúde. São Paulo: Hucitec; 1994, pp. 29-88.
38 José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres. Sujeito, intersubjetividade e práticas em saúde. Ciência & Saúde Coletiva, vol. 6, n.o 1, pp. 63-72, 2001.
39 Cipriano Maia de Vasconcelos. Os paradoxos do SUS. Doutorado. Campinas: Uni- camp, 2005.
40 Rosana T. Onocko-Campos. La planificación en el laberinto, cit. 41 José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres. Sujeito, intersubjetividade e práticas em
saúde. . ., cit. 42 Milton Santos. O lugar e o cotidiano. In: A natureza do espaço. . ., cit.
| 29 Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
Talvez possamos pensar a localidade como o que se opõe à globa-
lidade, mas também se confunde com ela. O mundo ainda nos é estranho.
Sua existência material e concreta se dá em cada lugar. Em nosso lugar pró-
ximo se sobrepõem as coexistências, onde tudo se funde, enlaçando, as
noções e as realidades de espaço e tempo. Aí — um cotidiano comparti-
lhado entre as mais diversas pessoas e instituições — cooperação e conflito
são a base da vida comum. Porque cada qual exerce uma ação própria, a
vida social se individualiza; e porque a contiguidade é criadora de comu-
nicação, a política se territorializa com a contradição entre organização e
espontaneidade.
O lugar, pensado desse modo, é o marco de uma referência pragmá-
tica ao mundo, ao qual são encaminhadas demandas e ordens precisas de
ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões
humanas, responsáveis das mais diversas manifestações, da espontaneida-
de e da criatividade. Enfatizar uma vez mais que o cotidiano tem uma
dimensão espacial é fazer dos lugares uma categoria operacional de territó-
rio. E retomar a ênfase em que não há ações coletivas que não sejam
mediadas por sua extrema singularidade.
Conceitualmente, a categoria de “vulnerabilidade” dá marco para
desdobrar algo dessa relação entre território e lugar, buscando que não seja
um aggiornamento da categoria de “risco”. Desse modo, podem-se articular
aí aportes socioantropológicos, sanitários e conceitos provenientes do cam-
po da clínica psicanalítica. O paradigma do risco abriu novas possibilidades
para o conhecimento epidemiológico e suas relações com a medicina, e ao
fazê-lo, restringiu a leitura sobre o espaço de saúde, pois
[. . .] não existe diferença epidemiológica que possa aspirar à legiti-
midade fora da consistência dos critérios de validação estabelecidos
para as ciências que apreendem a saúde em seu plano da individua-
lidade orgânica.43
Nesse referencial, pensar em risco significa pensar em probabili-
dades de eventos. Por isso, formular intervenções no campo da saúde com
43 José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres. Epidemiologia, promoção da saúde e o
paradoxo do risco. Revista Brasileira de Epidemiologia, vol. 5 (Supl. 1), pp. S28-S42, 2002.
30 | Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
o enfoque de risco significa deter-se apenas no que são medidas e regula-
ridades no território: um reducionismo.44 O enfoque de risco não confere
discernimento suficiente para realizar intervenções reconhecendo as sin-
gularidades presentes no território.
O conceito de vulnerabilidade possibilitaria a inclusão do sujeito/
singularidade nas ações de saúde. Entretanto, também há possibilidades
de que seu uso sofra capturas:
Um dos problemas mais sinalizadores neste sentido é o de continuar
promovendo uma discriminação negativa dos grupos mais afetados,
já não através do estigma, senão através de sua vitimização e conse-
quente tutela, preocupação totalmente fundada [. . .]. Assumir tal
atitude é negar o essencialmente positivo no interesse do uso do
conceito; é perder de vista novamente o caráter eminentemente rela-
cional e, em esse sentido, universalmente impactante das situações
determinantes da vulnerabilidade.45
Poderíamos dizer que o uso do conceito de vulnerabilidade tem sen-
tido quando se analisa a “síntese singular” à qual se aplica. Se o risco é
probabilístico e quantitativo, a vulnerabilidade é especulativa e qualitativa.
E como bem adverte Ayres,46 é relacional.
Isso nos levaria a outros conceitos, como o de busca ativa. A busca
ativa constitui uma atividade clássica das “vigilâncias” sanitárias ou epide-
miológicas. Constituem, em geral, atividades de equipe de saúde que bus-
cam identificar casos (de enfermidades), focos de contágio e/ou contamina-
ção. Como o nome indica, são atividades “vigilantes” de uma equipe sobre
seu território, quase uma espécie de grande olho epidemiológico sobre o
lugar. Dada sua extensão — e ao pressupor uma equipe com preocupação
ativa por sua população de abrangência — tem-se utilizado em outros
casos como a busca ativa de egressos de hospitais psiquiátricos, de crianças
44 Gustavo Nunes de Oliveira. O projeto terapêutico como contribuição para a mudança das
práticas de saúde. Mestrado. Campinas: Unicamp; 2007. 45 José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres. O conceito de vulnerabilidade e as práticas
de saúde: novas perspectivas e desafios. In: Dina Czeresnia (org). Promoção da Saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz, pp. 117-39 (p. 131), 2003.
46 José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres. Epidemiologia, promoção da saúde e o
paradoxo do risco..., cit.
| 31 Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
em situações de abandono, de pessoas que vivem na rua, etc. A busca ativa
pretende antecipar-se à demanda (com tudo o que isso pode acarretar de
bom e de problemático). Por um lado, tende a desburocratizar as equipes
que estariam mais motivadas e imbuídas de sua tarefa, por outro, “o grande
olho” pode ser uma forma a mais de mecanismos de controle da população.
Outro conceito que nos interessa — dissemos — é o de ampliação da
clínica,47 conceito formulado buscando a superação do paradigma bio-
médico.48 A ampliação da clínica pressupõe a incorporação de outras ava-
liações de risco (não só biológicos, mas também as fragilidades subjetivas
ou de redes sociais), como assim também a necessidade de retomar a di-
mensão de desvio da clínica, sempre vinculado a uma certa terapêutica, a
um possível prognóstico ao retorno à função ética de contribuir para me-
lhorar a vida e defendê-la, mas sem substituir as pessoas do protagonismo
de sua própria trajetória.49,50 Uma clínica que contribua com a produção
de autonomia.
Gostaríamos de chamar a atenção sobre o caráter do clínico como
aquilo reprimido nos discursos sanitaristas. A psicanálise nos ensina a estar
atentos àquilo sobre o que “não se fala”. Eliminar a problematização sobre
qual é a clínica que se faz nas equipes de saúde acarreta o risco de que
banalizemos a importância dos aspectos técnicos do trabalho. O que dife-
rencia os trabalhadores de saúde do resto da população em valor de uso (e
de troca) de sua própria força de trabalho é a qualificação técnica e é,
sempre, “um determinado saber”. Mas, também, acarreta o risco de que
problematizemos a clínica como uma disciplina técnica e não como uma
prática social, de um sólido respaldo teórico, mas que não se esgota na
dimensão técnica, devendo sempre estar atenta à produção de uma dimen-
são acolhedora como a outra de desvio (de transformação de um trajeto
predefinido) como muito bem sinalizaram Benevides & Passos.51
47 Gastão Wagner de Sousa Campos. A clínica do sujeito: por uma clínica reformulada
e ampliada. In: Idem. Saúde paideia. São Paulo: Hucitec, 2003. 48 José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres. Sujeito, intersubjetividade e práticas em
saúde. . ., cit. 49 Ibidem. 50 Rosana T. Onocko-Campos. Clínica: a palavra negada sobre as práticas clínicas nos
serviços substitutivos de saúde mental. Saúde em Debate, vol. 25, n.o 58, pp. 98-111, 2001. 51 Regina Benevides de Barros & Eduardo Passos. Clínica e biopolítica na experiência do
contemporâneo. Revista de Psicologia Clínica, vol. 13, n.o 1, pp. 89-100, 2001.
32 | Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
Trabalhar em prol da transdisciplinaridade, buscar relações mais
horizontais de poder entre os diversos saberes (médico, popular, alterna-
tivos, psi. . .) implica por si só uma redefinição dos limites da clínica que
nos propomos.
Entrecruzando conceitos: que políticas públicas
produzimos e que produzem nossas políticas públicas?
Colocar em contraste os conceitos que vimos trabalhando (e de cuja
releitura nos ocupamos e responsabilizamos), deveria poder subsidiar no-
vos desenhos de políticas e a implementação de algumas estratégias de
intervenção mais apropriadas ao cenário atual e seus tipos de sofrimentos.
Para isso, faremos um exercício que não esgota a questão, mas pre-
tende mostrar algo do qual poderíamos ganhar ou perder a cada passo
nessa batalha contra a injustiça e a dor intensa. Construiremos combina-
ções indesejáveis (as três primeiras), ou desejáveis (a quarta), de conceitos
potencialmente operacionais em nossas políticas públicas. Com elas dese-
jamos enfatizar a possibilidade de enriquecimento de nossas práticas polí-
tico/clínicas, se fôssemos capazes de aproximar esses conceitos provenien-
tes de duas tradições diferentes. Psicanálise e saúde coletiva tornam-se
mais potentes juntas e ambas podem contribuir para modificar-se.
1. Vulnerabilidade sem escuta.
2. Busca ativa sem reconhecimento dos lugares e sua potência.
3. Ampliação da clínica sem responsabilização do sujeito (construção
de autonomia).
4. Significações imaginárias e subjetividade de equipe: uma gestão.
Vulnerabilidade sem escuta
Deveríamos perguntar-nos se isso é valer-se da categoria de vulne-
rabilidade ou do uso da categoria de risco em sua pior acepção: determina-
ção da condição de vulnerável exclusivamente por meio de valores e apre-
ciações subjetivas dos agentes das políticas públicas. Isso de fato ocorre,
assim vemos em casos como os que se concebem em certos tipos de famílias
chamadas problemáticas nos territórios de nossas equipes de saúde. Em
| 33 Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
nome da vulnerabilidade (que pode ser consequência de inumeráveis cau-
sas), a “equipe de saúde da família”, no caso brasileiro, ou as equipes dos
Centros de Atenção Primária da Saúde na Argentina, realizam visitas
domiciliares. Nessas ocasiões, multiplicam esforços para vincular essa famí-
lia “problemática” a outros programas sociais, subsídios (bolsas) especiais,
coberturas de educação ou promoção social. Isso incide às vezes no coti-
diano desses grupos gerando algo identificável a uma espécie de entrega
passiva, resignada, de encarnação do lugar de objeto (objeto das políticas
públicas). Contribuímos, assim, com a reprodução de figuras parentais des-
tituídas, pais ineficazes simbolicamente na hora de encarar a lei em seus
lares, de mães desqualificadas em sua ternura. Enfim, objetos de nossas
ações, à maneira do corpo do psicótico, refém de intrusões agressivas, des-
qualificadoras e alienantes do próprio desejo. Famílias assim tratadas são
levadas a maiores dificuldades para assumir uma legalidade e responsabi-
lizar-se de alojar consigo seus filhos transmitindo um legado. Esses filhos
que, sob a mesma lógica, serão rapidamente transformados em objetos de
políticas da infância e assim até um futuro distante. Temos visto, inúmeras
vezes, essas famílias se estigmatizarem e ficarem fixadas em sua impotên-
cia por causa de nossas intervenções, supostamente responsáveis e bem
intencionadas. É necessário colocar em jogo uma escuta implicada com o
retorno ao rumo do próprio desejo desses pais e mães objetalizados, dessas
crianças. Devolver uma cota de responsabilidade a quem lhe cabe, dar
valor à palavra, tentar fazer contratos, combinados com essas pessoas e não
dar tudo já resolvido e normatizado. Saber que sim, que é possível que em
momentos de muita fragilidade, uma família (um pai, ou uma mãe) esteja
em situação de não poder, mas tomar isto sempre como uma condição
provisória. Estar atentos aos sinais de potência, estimular sua percepção.
Ressignificar o que eles sim sabem ou sim podem. Pensamos que essa
aposta com o outro em sua condição de ser humano,52 em sua capacidade
de fazedor de outra cultura, de reinventar o desejo com o outro, (“o desejo
é o desejo do outro” aponta em certo sentido à necessidade de sua constru-
ção coletiva), é a oferta que desde uma certa ética e uma escuta respeitosa
podemos realizar, como praticantes da psicanálise, sem necessidade de
52 Françoise Dolto. A imagem inconsciente do corpo (1984). São Paulo: Perspectiva, 2001.
34 | Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
pensar todos os agentes de políticas públicas como psicanalistas, nem todos
seus usuários como pacientes.
Busca ativa sem reconhecimento dos lugares
e de sua potência
A noção de busca ativa, como sinalizamos, pressupõe certa objetivi-
dade em jogo. Pois, determinam-se na equipe quais seriam as condições
que merecem esse tipo de esforço e, assim, discutem-se e padronizam-se
certos “critérios” de intervenção. Isso sempre leva em conta os objetivos da
política do programa em questão: o que buscamos?. . . mosquitos, barbei-
ros, altas de hospitais psiquiátricos, crianças fora da escola, crianças em
situação de rua. . .
Qualquer que seja a condição-objeto da busca ativa é importan-
te recordar as conceitualizações de Milton Santos que trabalhamos ante-
riormente. Por mais difícil que seja uma região, por mais empobrecida
que possa estar em qualquer de seus aspectos: os recursos materiais, cultu-
rais (migrações recentes ou indesejadas, como no caso de novos bairros
criados para “erradicar” outros), educacionais (índices elevados de anal-
fabetismo), serão sempre as pessoas que aí vivem, que ocupam esses lu-
gares, quem poderão dar-nos as pistas das potencialidades escondidas
nessas comunidades. A pobreza não nos deve fazer supor a ausência total
de recursos.
Se se desconhece essa riqueza e variedade, a busca ativa se transfor-
ma no mais parecido à polícia sanitária alemã, não estaremos aí coprodu-
zindo saúde mas produzindo mero controle social, alimentando o grande
olho vigilante. . . Vigilância sanitária, controle de populações: uma tradição
que não nos interessa reeditar.
Mas, sobretudo, estaríamos perdendo a possibilidade de contribuir
com a invenção e implementação de políticas como uma forma de estar no
mundo, de abonar a relação entre organização e espontaneidade, à ação na
polis respeitando a numerosidade social.b Um território onde a ação como
âncora na realidade, é detonada em sua contradição, onde mudar o mundo
b Fernando Ulloa define assim a “numerosidade social: contam-se tantos sujeitos quanto
sujeitos contam”.
| 35 Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
é possível, não por eles (os pobres, as comunidades) senão com eles, não de
uma vez e para sempre senão em cada gesto cotidiano, na construção do
protagonismo da própria vida.
Ampliação da clínica sem responsabilização do sujeito
Propor-nos a realizar uma clínica ampliada significa que tentamos
estirar as bordas dessa clínica mais adiante do paradigma biomédico hege-
mônico vigente. Incluir certas análises de vulnerabilidade, trazer a dimen-
são de uma escuta que sirva de aporte a projetos negociados, compartilha-
dos com os usuários e as comunidades.
Uma clínica menos prescritiva, que não desista, por isso, dos avanços
tecnológicos nem desconheça a importância de uma boa qualificação técni-
ca e de recomendações baseadas em evidências. Mais ainda, uma clínica
que assuma a avaliação de riscos, sua dimensão de prevenção (secundária,
terciária) e de negociação de redução de danos: o que é possível neste caso,
para esta paciente, neste contexto? Esta clínica que, em certo sentido, se
ocupa do paciente em sua humanidade, interessa-nos por sua capacidade
de conseguir maior eficácia terapêutica, ou seja: curar, melhorar, reabilitar,
mais e melhor.53 Mas — por obra e graça da própria ampliação — às vezes
facilmente a clínica resvala na tutela e no enquadramento.
Há, claro, situações em que o paciente ou a família em questão não
podem encarregar-se e alguém tem que ajudar, isso é verdade, e é im-
portante como indicador de responsabilização da equipe em relação aos
usuários cadastrados ou de sua área de cobertura segundo cada caso. Mas,
muitas vezes, elimina-se o caráter processual desse apoio circunstancial: o
que era uma ajuda passageira, torna-se um modo de operar em relação a
determinado sujeito que fica omitido, assim, da responsabilidade que lhe
incumbe. A equipe joga aqui uma espécie de cumplicidade com o usuário,
contribuindo para “fixá-lo” no lugar de pobre, necessitado, incapacitado,
desvitalizado, impotente.
Ao mesmo tempo, muitas vezes, para não cair nisso, não se ajuda, e
renegando essa contradição se produz desassistência. Um exemplo nos
53 Gustavo Tenório Cunha. A construção da clínica ampliada na atenção básica. São Paulo:
Hucitec, 2005.
36 | Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
ajuda a compreender: um paciente diabético insulino-dependente queixa
por não poder ir buscar a insulina; uma agente de saúde responde em
reunião de equipe na qual se discutia o caso: “. . .não é possível levar a
insulina em casa a todos os diabéticos por toda a vida!. . .”. O exemplo
ilustra bem o mecanismo; não se tratava de todos os pacientes, nem se
concebia por toda a vida. Era o senhor fulano em um momento de fragili-
dade. Existe uma tendência a estender a lógica sanitária a intervenções
que não necessitam ser padronizadas (por exemplo, em se tratando de um
caso de tuberculose com tratamento supervisado isso seria definido por
toda a duração do tratamento, digamos uns seis meses). Em saúde há
muito mais “caso por caso” do que padrões!
Responsabilizar-se, de uma perspectiva psicanalítica, seria, aqui, re-
tomar a marca do desejo nas impossibilidades ou repetições das que de
tanto em tanto nos queixamos equipes e pacientes. Assim, certa direção até
a autonomia do sujeito se realiza mediante a responsabilização: busca de
saída da alienação, do gozo no sintoma, na construção de compromisso.
Aqui, uma concepção de sujeito que não seja erigida sobre o modelo do
cogito cartesiano torna-se fundamental.54 Para além do princípio do prazer
e dos ideais do bem comum, entender o ser humano como movido por sua
pulsão de vida mas também de morte, ou inversamente, pulsão de morte
mas também de vida.
Em nossa experiência, só a aceitação dessa premissa teórica já ajuda
os profissionais a não se transformarem em juízes de seus pacientes, a
desistirem das abordagens meramente informativas. Não é porque as pes-
soas não sabem que não deixam de fumar ou não usam preservativos. Não
é necessário interpretar. Às vezes vale uma pergunta, ou a afirmação da
própria castração (a não onipotência: “não sei mais como ajudá-lo”, por
exemplo, pode abrir o caminho para que o sujeito se implique de novo com
a própria vida antes entregue aos técnicos).
54 Rosana T. Onocko-Campos & Gastão Wagner de Sousa Campos Campos. Co-
construção de autonomia: o sujeito em questão. In: Gastão Wagner de Sousa Campos Campos, Maria Cecília de Souza Minayo, Marco Akerman, Marcos Drumond Júnior e Yara Maria de Carvalho (orgs.). Tratado de saúde coletiva. São Paulo-Rio de Janeiro: Hucitec-Ed. Fiocruz,
2006.
| 37 Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
Significações imaginárias e subjetividade da equipe:
uma gestão
As questões que vimos afirmando e interrogando levam-nos nova-
mente à dimensão da gestão, que entendemos não como mera adminis-
tração dos seres e das coisas, senão mais bem como um dos modos de
produzir as necessárias articulações clínico-políticas na ingerência do co-
tidiano. Todos os dias são dadas ordens nas cadeias de mando de nossas
políticas públicas. As equipes se reúnem (mais ou menos eficazmente,
mais ou menos amigável ou não amigavelmente) e decidem — por deli-
beração ou omissão — coisas importantes para a vida dos usuários, pa-
cientes, supostos beneficiários dessas mesmas políticas. E todos os dias as
pessoas dão um jeito para continuar batalhando por uma vida um pouco
menos dolorida, um pouco menos sofrida. Criam, inventam, tentam novas
estratégias de viver.
Apesar de parecer óbvia a coerência entre essas duas tendências,
muitas vezes elas se chocam, importunam-se, atropelam-se. Equipes que
têm imagens congeladas, cristalizadas e fixas de seus supostos usuários e
usuários que não mudam em nada pelo contato com os serviços e as políti-
cas. A quem servimos então? Ao statu quo?
Tentar produzir laços, redes, novas possíveis significações imaginá-
rias nas comunidades (com educação, com cooperativas, com grupos de
discussão em centros de saúde), parece imperioso. Torna-se necessário con-
seguir que as equipes façam práxis em sua própria prática, mantendo ati-
vas e abertas as perguntas: para quê serve?, o que estamos produzindo?,
como conseguir isso se as equipes não têm um espaço onde possam anali-
sar suas próprias dores de trabalhar, de ver, de ter de saber — todos os dias
— que existe toda essa injustiça e essa desigualdade e essa pobreza de
todas as ordens? As equipes que trabalham nessas regiões periféricas e
desfavorecidas necessitam ativamente de dispositivos desalienantes. Con-
forme Marx, poderíamos dizer que todo o mundo precisa deles. Pode ser,
mas a vida em algumas margens é uma ferida ainda mais absurda. . .
Milhões de seres humanos rogam todos os dias fazer de conta que
isso não existe. Não é que não saibam. Podem fingir não saber. Quem
trabalha em regiões empobrecidas e degradadas não tem essa chance. Aqui
38 | Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
não bastam ordens, regras, organogramas ou resoluções. Precisamos de
uma gestão que, produzindo articulações político-clínicas, assuma-se em
seu caráter de gestão incluindo a subjetividade da equipe e que assuma,
assim, sua cota de responsabilidade na produção do mundo.
Tradução de Thalita Camargo Angelucci.
| 39 Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
B
Capítulo 2
Ideologia e subjetividade: a relação recalcada
Rosana Onocko Campos
O presente é sempre constituído por um passado que o habita e por um futuro que ele antecipa
— CORNELIUS CASTORIADIS
uscamos no presente capítulo interrogar os fundamentos da política
pública, a partir de uma possível abordagem pela psicanálise. Para tal,
parece-nos interessante lembrar o advento dos sistemas públicos de saúde
no mundo contemporâneo. Na saúde pública, houve, desde o século XIX,
na Europa, forte tendência a desenvolver políticas de saneamento e urba-
nas visando ao controle de epidemias como a do cólera. A Europa no século
XX foi — sobretudo no pós-guerra — o espaço pioneiro a desenvolver
políticas de Welfare State. A relação Estado-sociedade, nesses países, prin-
cipalmente mediada pelas lutas sindicais, resultou em políticas públicas de
cunho universal que deram cobertura à grande massa trabalhadora (saúde,
previdência, educação, seguros de desemprego etc.).
Os sistemas públicos de saúde, no mundo contemporâneo, podem
ser classificados segundo dois modos polares. Divergem fundamentalmen-
te em relação ao entendimento do acesso a bens e serviços segundo “méri-
to” ou segundo “necessidade e riscos”; e também na valorização da saúde e
da educação como direito social. As concepções vigentes sobre a relação
capital-trabalho são as que marcam as características dos sistemas de pro-
teção social, classicamente diferenciados em: “residual”, “meritocrático”, ou 39
40 | Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
40 | Ideologia e subjetividade: a relação recalcada
‘universal’. Essas formatações dependem das concepções vigentes, das acu-
mulações históricas e das escolhas políticas feitas por diferentes países.
O que leva uma sociedade a fazer um tipo ou outro de escolha?
Várias disciplinas poderiam dar conta de uma tentativa de explicação: a
história, a sociologia, a filosofia. . . Faremos nossa própria busca interrogan-
do a psicanálise.
Freud, no início do século XX, insere uma quebra na leitura iluminis-
ta da racionalidade ao nos apresentar o homem como ser de desejo, movido
por pulsões a cuja lógica ele não tem acesso. As fronteiras entre saúde
mental e doença são borradas pela descoberta do inconsciente: os sonhos,
os lapsos, os chistes pertencem à vida de todos os seres humanos. Todos
deliramos em sonhos. E neles somos capazes de façanhas incríveis.
Para Freud, o sofrimento nos ameaça — como humanos — a partir
de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução; do mun-
do externo, com suas forças esmagadoras; e do relacionamento com os
outros homens, fonte do sofrimento mais penoso. Os mecanismos defensi-
vos apareceram para proteger o ser humano da dor. O custo é, às vezes, alto
demais: isolamento, neurose, uso de drogas, afinco excessivo no controle
técnico da natureza.
Freud enxergava um mecanismo como privilegiado para a sublima-
ção dos instintos, que obtém seu máximo benefício quando consegue in-
tensificar a produção de prazer a partir do trabalho psíquico ou intelectual.
Para Freud, nem a busca do amor romântico poderia se comparar, na sua
potência sublimadora, à criação e ao prazer estético.
No livro Mal-estar na civilização, de 1931, Freud empreende uma
crítica feroz à civilização ocidental de sua época, e chega a uma interroga-
ção que ele chama de “espantosa”: se a civilização é fonte de sofrimento,
deveríamos voltar às árvores? Para ele, apesar do progresso tecnológico a
partir do controle da natureza, a sociedade ocidental não conseguiu au-
mentar a satisfação prazerosa da humanidade, nem tornou seus membros
mais felizes. . .
Freud defende nesse texto que há uma dupla motivação para todas
as atividades humanas: a utilidade (o que o homem fez ao longo da história
serve para “algo”) e a obtenção do prazer. “A substituição do poder do
indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo de
| 41 Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
Ideologia e subjetividade: a relação recalcada | 41
uma civilização” (Freud, 1997). Assim, a civilização é construída sobre uma
renúncia ao instinto. Para Freud, a frustração social domina o campo dos
relacionamentos humanos, pois, afirma ele, “não se faz isso impunemente”,
de onde adviria o mal-estar! Característica constitutiva e não “patológica”
ou excepcional da sociedade. Ao final, Eros e Ananke (amor e necessidade)
seriam os pais da civilização humana.
Para ele, a sociedade visaria unir seus membros de maneira libidinal
e por isso:
favorece todos os caminhos pelos quais identificações fortes possam
ser estabelecidas entre os membros da comunidade e [. . .] convoca
a libido inibida em sua finalidade,1 de modo a fortalecer o vínculo
comunal através de relações de amizade (Freud, 1997).
Por isso, o laço de amizade é possível entre alguns, que precisarão
constituir-se como “alguns” em relação aos “outros” e com os quais se cons-
truirá um escoadouro, sob a forma de hostilidade contra intrusos. Isso será
evidente entre comunidades próximas e relacionadas. Freud chamou esse
processo de “narcisismo das pequenas diferenças”; no fundo, uma satisfa-
ção conveniente e relativamente inócua2 da inclinação para a agressão,
mediante a qual a coesão entre os membros de uma comunidade torna-se
mais fácil.
Nesse momento da obra, Freud acha importante lembrar e ressaltar
a introdução, em Mais além do princípio do prazer, livro de 1920, do conceito
de pulsão de morte.3 Diz ele: “uma parte do instinto é desviada no sentido
do mundo externo e vem à luz como um instinto de agressividade e destru-
tividade” (Freud, 1997). O significado da evolução da civilização deverá
doravante ser procurado como a luta permanente entre a pulsão de vida e
a pulsão de morte. “Nessa luta consiste [. . .] a luta da espécie humana
pela vida” (Freud, 1997).
1 Freud refere-se aqui à libido sem finalidade genital. 2 Inócua se pensada em relação ao extermínio material do outro, mas não inerte do ponto
de vista institucional, como veremos adiante. 3 Mantivemos o termo instinto nas citações literais por ser o escolhido pela tradução.
Contudo, numerosos autores preferem se referir a esse conceito como pulsão de morte. Ver a
interessante discussão sobre o assunto em Green et al. (1988).
42 | Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
42 | Ideologia e subjetividade: a relação recalcada
Para a psicanálise, portanto, todo sujeito é portador de algo mais do
que o cogito cartesiano. A descoberta do inconsciente marcou uma das
grandes quebras da modernidade. Assumir que as pessoas, incluindo os
pacientes e os trabalhadores da saúde, também atuam movidos por reações
inconscientes, que eles mesmos desconhecem e sobre as quais não têm
controle muda nossa forma de abordar os equipamentos de saúde e as
relações que ali se desenvolvem, pois estaríamos sempre desconhecendo
uma porção de nós mesmos. Nosso inconsciente irrompe quando menos
esperamos em meio de uma ação racional.
Não se trata, contudo, de uma polaridade “consciente/inconsciente”
que se corresponderia com outra “racional/irracional”, mas de assumirmos
o ser humano como um ser que nunca será absolutamente dono de si, um
ser que não pode tudo, e nunca terá certeza de conhecer apuradamente o
rumo de seu desejo.
Freud mostrou que existe uma função psíquica da cultura, e que a
condição de mal-estar é um inevitável componente da civilização ocidental.
Para alguns autores, toda relação social pressuporia jogos de linguagem,
jogos que são o mínimo de relação exigido para que haja sociedade (Lyo-
tard, 2006). Todo ser humano, desde antes de seu nascimento, é colocado
como tema de uma história contada por aqueles que o cercam, posição da
qual, mais tarde, terá de se mover em face de suas próprias escolhas. Na
criação freudiana podemos encontrar, então, uma teoria que afirma ser o
afeto a base, o cimento, a cola de uma dada sociedade.
Seguindo essa trilha, alguns autores, apoiados na psicanálise, como
Castoriadis, postulam que a psicanálise deveria contribuir para desmasca-
rar o melodrama, a falsa tragédia da vida humana, não perseguindo, com
isso, a ilusão de eliminar o lado trágico — inevitável — da vida.
Perseguiria eu a quimera de querer eliminar o lado trágico da exis-
tência humana? Parece-me mais certo que quero eliminar o melo-
drama, a falsa tragédia — aquela onde a catástrofe chega sem neces-
sidade, onde tudo poderia ter-se passado de outro modo se apenas
os personagens tivessem sabido isto ou feito aquilo [. . .]. E se a
humanidade perecer um dia sob o efeito de bombas de hidrogênio,
recuso-me a chamar isso de tragédia. Chamo de imbecilidade [. . .]
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Ideologia e subjetividade: a relação recalcada | 43
quando um neurótico repete pela décima quarta vez a mesma con-
duta de fracasso [. . .] ajudá-lo a sair disso é eliminar de sua vida a
farsa grotesca e não a tragédia [. . .] (Castoriadis, 1986, p. 115).
Para Castoriadis, a descoberta freudiana deve ser entendida na sua
dimensão “histórico-social”; a questão da socialização da psiquê, da fabrica-
ção social do indivíduo, começa com seu nascimento. Ele destaca que Freud
e a psicanálise se inscrevem numa “tradição democrática e igualitária”, pois:
o mito da morte do pai [referência a Totem e tabu, de Freud] não
poderia jamais ser relacionado à fundação da sociedade, se não in-
cluísse o pacto dos irmãos, portanto também a renúncia de todos os
viventes a exercerem um “domínio” real e seu compromisso em alia-
rem-se para combater quem quer que isso pretendesse [. . .]. O
“assassinato do pai” nada é e a [. . .] conduz (senão a repetição sem
fim da situação precedente) sem o “pacto dos irmãos” [. . .] (Casto-
riadis, 1987, p. 89; grifos e aspas do autor).
É nessa tradição que desejamos inscrever nossa contribuição. No
direito a ter desejos a uma vida institucional mais justa e fraterna, na pro-
cura de democracia e de participação institucional que não se baseiem
simplesmente na culpa pela morte do pai fundador, mas, sobretudo, no
pacto fraterno entre os irmãos, que se comprometem a solidariamente não
deixar para ninguém o exercício absoluto do poder: “tendo esse desejo que
é o meu, só posso trabalhar para sua realização” (Castoriadis, 1986, p. 114).
Castoriadis (2002) elabora o conceito de “significações imaginárias”
(SI), que, achamos, pode contribuir para aprimorar nossa compreensão so-
bre o funcionamento social. As significações imaginárias teriam três fun-
ções principais:
→ estruturar as representações do mundo (a mais importante é a
que a sociedade tem dela mesma);
→ designar as finalidades da ação (o que deve e o que não deve ser
feito); → estabelecer os tipos de afetos característicos de uma sociedade.
44 | Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
44 | Ideologia e subjetividade: a relação recalcada
Seria por meio de instituições mediadoras e dessas significações ima-
ginárias que se instituiria um tipo de sujeito particular: o brasileiro do sécu-
lo XXI é diferente do inglês do começo do século XX. Que imagem a
sociedade brasileira tem de si mesma (esperta? gentil?)? O que deve ou
não deve ser feito (receber propina? tirar vantagem de algum parente bem
assentado no governo de turno?)? Quais os afetos característicos da socie-
dade brasileira contemporânea (solidariedade? concorrência deslavada?)?
Por quais caminhos da história, da política e dos afetos chegamos a ter hoje
um sistema de saúde único que é de tudo, menos único (fragmentado, cada
vez mais privatizado), e uma sistemática transgressão das regras, quase um
esporte nacional?
Para Castoriadis, as SI operariam uma espécie de cola social, uma
identificação. Tal identificação seria uma defesa contra a morte. Assim, os
humanos responderiam à questão do sofrimento apontado por Freud com
algo assim como: “tudo bem, eu vou morrer, mas não a sociedade na qual eu
vivo e que contribuo para construir”. Entretanto, essa defesa só operaria
quando as fossem tidas como perenes. Mas, hoje, o que há de perene?
Como se dá isso em famílias recém-migradas, em meio à crise financeira,
etc.? E ainda, na vertigem do contemporâneo?
Ao contrário do que se fala frequentemente, para Castoriadis, a so-
ciedade de consumo não teria criado um individualismo, senão um confor-
mismo generalizado e grudento: todos iguais. Essa uniformização teria nos
liberado do maior trabalho da subjetividade humana: tornarmo-nos um si
mesmo. Porém, esse conformismo só pode existir ao preço de que não haja
um núcleo de identidade consistente. . . Então, o nosso problema não seria
identitário como pretendem algumas correntes autointituladas pós-mo-
dernas ou pós-estruturalistas, mas bem ao contrário. Sofremos no contem-
porâneo de individualidades “em frangalhos”, frágeis, serializadas, caren-
tes de verdadeira diferença ou originalidade.
Em razão dessa crise do processo de identificação a sociedade perde
a capacidade de se enxergar como centro de sentido e de valor. Assim,
perde-se a possibilidade de construir um “nós” fortemente investido. Mui-
tos só percebem a sociedade como uma entidade limitadora e de controle
que lhes teria sido imposta: ilusão monstruosa e indicativa de um processo
de dessocialização. Se assim for, para que nos esforçaríamos de maneira
| 45 Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
Ideologia e subjetividade: a relação recalcada | 45
conjunta em prol de alguma mudança ou melhora social? Sendo assim,
como poderia a sociedade operar de fato com uma noção de justiça social,
política pública ou direito de todos? Ao mesmo tempo, esses mesmos indi-
víduos (em farrapos) dirigem a essa mesma sociedade pedidos ininterrup-
tos de assistência. Seria possível termos uma política de saúde de caráter
universal nesse contexto? E se sim, qual seria a universalidade possível? A
de serviços públicos prestando assistência, por exemplo, ou, como defen-
dem alguns autores brasileiros recentemente, uma cobertura universal à
francesa, universalizando o acesso a seguros de saúde, uma espécie de
Programa Universidade para Todos (ProUni) da saúde?
No outro polo, está o indivíduo que faz de tudo para esquecer
que um dia vai morrer e que tudo o que faz não tem o menor sentido —
corre, compra, pratica esportes, vê televisão; se distrai, criando una cul-
tura da cosmética, da banalidade, contracara macabra da outra metade
social, a arrojada à luta pela sobrevivência cotidiana nas margens. Uma
sociedade assim não é capaz de recriar outra forma de estar unida. A histó-
ria, para ela, é uma paisagem turística. Os sujeitos se distraem, mas não
criam cultura. Uma sociedade com tais características tem enorme dificul-
dade para se pensar, se refazer, se reinventar a si mesma. . . Cabe a per-
gunta de se se trata de “uma” sociedade. . . ou se está tão fragmentada que
são, na verdade várias sociedades diferentes. . . Como chegamos a esse
ponto? Como esse statu quo se reproduz? Seria esse o único caminho?
Castoriadis responde:
Penso que existem outros fins que a sociedade pode fazer emer-
gir, reconhecendo nossa mortalidade, uma outra maneira de ver o
mundo e a mortalidade humana, a obrigação em relação às gera-
ções futuras que são a contrapartida de nossas dívidas com as
gerações passadas, visto que cada um de nós só é o que é em
função desses milhares de anos de trabalho e esforço humano.
Uma tal emergência é possível, mas ela exige que a evolução
histórica tome outro caminho e que a sociedade pare de adorme-
cer sobre uma pilha imensa de “gadgets” de todo tipo (Castoria-
dis, 2002, p. 160).
46 | Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
46 | Ideologia e subjetividade: a relação recalcada
Continuando nossa busca pelas possíveis explicações para os meca-
nismos de identificação (e reprodução) social valeria a pena revisitar outro
autor, que está fora de moda: Louis Althusser e sua concepção sobre os
aparelhos ideológicos de Estado (AIE).
Para Althusser, como bom marxista, toda formação social é o resul-
tado de um modo de produção dominante, produto de forças produtivas
existentes e sob vigência de determinadas relações de produção. Toda pro-
dução requer da reprodução dos meios de produção e todas as forças pro-
dutivas precisam da reprodução da força de trabalho. A ideia de um salário
mínimo, por exemplo, é determinada historicamente, não pelo componente
“biológico” necessário à reprodução da força de trabalho. O salário mínimo
é reconhecido pela classe capitalista e imposto pela luta proletária.
A reprodução da força de trabalho precisaria da reprodução da qua-
lificação (escolas) e da reprodução da submissão às regras da ordem esta-
belecidas. E isso se dá no mesmo processo, o da reprodução das relações de
produção. Ao refletir sobre o aparelho repressor que Marx equipara ao
aparelho de Estado (governo, exército, tribunais, polícia, etc.), Althusser
(1996) destaca que o poder estatal e o aparelho de Estado devem ser
distinguidos. A luta de classes propõe-se tomar o poder estatal e destruir o
aparelho de Estado, substituído pelo aparelho de Estado proletário. A
destruição do Estado poria fim ao poder estatal.
Já os AIE constituiriam instituições distintas e especializadas. O
aparelho repressivo do Estado funciona pela violência. Os AIE funcionam
pela ideologia. Não importa se essas instituições são públicas ou privadas.
O importante é como funcionam. Os AIE são o alvo e o lugar da luta de
classes. Para Althusser (1996), o AIE dominante nas formas capitalistas
maduras é o escolar. O par escola-família substituiu o par escola-igreja. Isso
seria condição fundamental para a reprodução das condições materiais da
produção capitalista.
No Brasil de hoje, há uma desistência à introdução ou à reprodução
de valores nas escolas (independente de serem públicas ou privadas), desis-
tência que opera em nome do politicamente correto e de certo relativismo
cultural, como veremos. Contudo, deveríamos perceber que tal desistência
abre o caminho para a operação do mercado e da regra do “salve-se quem
puder”. Assim, como valorizar uma política pública de caráter universal?
| 47 Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
Ideologia e subjetividade: a relação recalcada | 47
A sociedade brasileira se aproxima, cada vez mais, em seus valores,
da norte-americana com suas pretensões meritocráticas. Quais são os valo-
res da dita “nova classe C”? Alguém acredita que se todo esse enorme
exército recém-saído da pobreza pudesse escolher, elegeria um sistema de
saúde público e de caráter universal como o Sistema Único de Saúde (SUS)?
Ou se pronunciaria por um sistema de seguro com prestação privada de
serviços, o mesmo que atende à classe abastada desde tempos imemoriais?
Tento sustentar a tese de que, criticando o papel de controle e de domina-
ção da ideologia e do estruturalismo, jogamos a criança junto com a água do
banho e perdemos a chance da utilização positiva, de ligação, de instaura-
ção de valores que criem identidade na sociedade.
Zizek (1996) resgata essas duas tradições em sua discussão sobre
ideologia, na qual aponta para duas teses principais:
→ Tese I: a ideologia representa as condições imaginárias dos ho-
mens com suas condições reais de existência.
→ Tese II: a ideologia tem existência material, existe em um apare-
lho e em suas “práticas”.
Não existe prática a não ser através de uma ideologia e dentro dela;
não existe ideologia exceto pelo sujeito e para o sujeito. A ideologia interpe-
la o indivíduo como sujeito. Ela se impõe como reconhecimento (as evidên-
cias!). É preciso estar fora da ideologia para poder dizer estou (ou estive) na
ideologia, isto é, no saber científico. Ela não tem um exterior, e, ao mesmo
tempo, não é nada senão exterior.
Para tornar evidente o papel da ideologia hoje, Zizek (1996) faz a
seguinte pergunta: no mundo contemporâneo, em épocas de crise climáti-
ca, o que é mais fácil: imaginar o fim do mundo ou o fim do capitalismo?
Como se o capitalismo fosse o único real que sobreviverá à eventual catás-
trofe ecológica mundial!
Esse autor consegue indicar vários exemplos interessantes de fun-
cionamento ideológico; um desses exemplos é o da relação novo/velho
(des)apreendida: quando se interpreta tudo o que é novo como alguma
reedição do já visto/vivido, ou, ao contrário, algum acontecimento totalmen-
te inscrito na lógica atual se apresenta como uma ruptura radical.
48 | Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
48 | Ideologia e subjetividade: a relação recalcada
Exemplo do primeiro tipo de atitude poderia ser visto na dificuldade
de analisar o fenecimento de uma noção de cidadão abstrato identificado
com a ordem jurídica constitucional (queda do Leste Europeu), certa resis-
tência do Ocidente para reconhecer a limitação da soberania estatal, sendo
evidentes para o autor pelo menos duas razões marcantes: o caráter trans-
nacional da crise ecológica e da ameaça nuclear. Exemplo do segundo tipo
de atitude poderia ser evidenciado na “novidade” do sexo virtual, o qual, na
realidade, só evidencia a estrutura fantasmática de toda relação sexual já
referida por Lacan.
Zizek menciona alguns procedimentos claramente ideológicos na
vida cotidiana. Por exemplo, quando a contingência do real carente de
sentido é internalizada, simbolizada, provida de lógica. Ao falarmos “Achei
o amor de minha vida”, parece que toda nossa vida pregressa ganha
sentido só por esse novo fato. No processo inverso, é também claramente
ideológico o fato de não se reparar na necessidade de tratar como uma
contingência externa insignificante fatos cuja produção social se procura
iludir. Vide a crise financeira: externaliza-se o resultado (a crise) como se
ele viesse de fora, de maneira atávica, e não de uma contingência interna
(o modo de funcionamento capitalista). Zizek aponta, então, uma tarefa
da crítica da ideologia: discernir a necessidade oculta (a quem serve essa
contingência?)
Criativamente revela também alguns “truques” discursivos clara-
mente ideológicos: o do recurso retórico à complexidade da situação que
nos liberaria de agir ou de tomar posição; ou o da crítica esquerdista à lei,
que visa à desconstrução da culpabilização do sujeito, pois deixaria de fora
as condições de sua produção (clássico argumento que isenta o pobre, trans-
gressor da lei). Contudo, a culpa posta eternamente nas circunstâncias não
nos levaria ao cinismo? O ser humano, sujeito falante, está desde sempre
empenhado em nomear e em descrever suas circunstâncias. . .
Pensemos quantos desses recursos poderíamos identificar em algum
funcionário de turno da saúde em alguma das esferas de governo: “novas”
propostas para o SUS que nada mais são que “novos” programas que pre-
tendem se tornar peças de marketing eleitoral, “velhos e conhecidos pro-
blemas”, quando em realidade estamos diante de questões totalmente
inéditas, como as relações entre degradação ecológica e urbana e epide-
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Ideologia e subjetividade: a relação recalcada | 49
mias, por exemplo. Ou a naturalização da “inevitável” falta de recursos do
SUS, sua crônica falta de um plano de cargos e salários, como se fossem
características advindas da vontade de alguma divindade, e não da tomada
de decisões políticas e sociais de um país enorme e poderoso. Um dos mais
poderosos e desiguais do planeta Terra.
Zizek oferece uma matriz de análise da ideologia:
→ A ideologia em-si: ideologia como doutrina, destinada a nos con-
vencer de sua veracidade, mas sempre servindo a algum interesse de poder.
Seu estratagema fundamental é referência à evidência. A luta pela hege-
monia discursiva se dá pelo encadeamento de significantes, nenhum dos
quais é verdadeiro em si. Zizek menciona Habermas como o último ex-
poente crítico dessa tradição. Para Habermas, a ideologia se expressa em
todo lugar no qual, em virtude da violência e da dominação, se produz má
comunicação. Por isso, para ele ciência e técnica podem ser ideológicas. A
tarefa continua a ser a crítica da ideologia. Lidaríamos com uma tensão não
refletida entre o texto enunciado explicitamente e seus pressupostos prag-
máticos. Porém, Zizek nos lembra que mais recentemente, para a análise do
discurso, a própria ideia de uma acesso à realidade que não seja distorcido
por nenhum dispositivo discursivo é ideológica! Por exemplo, quando
Pêcheux aponta para os mecanismos discursivos que geram “evidências”
de sentido.
→ Ideologia para-si: ideologia em sua alteridade, momento sinteti-
zado pelo conceito dos aparelhos ideológicos de Estado (Althusser) que
apontam a existência material da ideologia nas práticas, rituais e institui-
ções. O ritual cria a fé, num mecanismo de fundação autopoiética retroativa.
A contrapartida foucaultiana aos AEIs seria os processos disciplinares que
funcionam como micropoderes e operam se inscrevendo no corpo, contor-
nando a ideologia, razão pela qual Foucault nunca utiliza o termo ideologia.
Foucault destaca a emergência de baixo para cima desse poder, em um
complexo emaranhado de relações laterais e transversais, não emanando
de um topo único. Para Zizek (e compartilhamos de sua opinião), torna-se
muito mais difícil chegar ao cerne do poder com esse procedimento. A
concepção foucaultiana tornaria o abismo, que separa os microprocessos do
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50 | Ideologia e subjetividade: a relação recalcada
espectro do poder, intransponível. Para Althusser, esses microprocessos
pressuporiam desde sempre a presença maciça do poder de Estado, mar-
cando a relação transferencial do indivíduo com o poder de Estado (o gran-
de Outro ideológico).
Poderíamos nos perguntar agora se parte dessa “falta de saída” para
os entraves do SUS não foi também reforçada por uma tendência recente
da saúde coletiva brasileira de beber no campo pós-estruturalista, produ-
zindo análises que constituem erros intelectuais ou beiram a ingenuidade.
Argumentos micropolíticos serão sempre bem-vindos para a análise de
situações concretas de uso de poder (outra característica frequentemente
negligenciada: a de que alguém está sempre “usando” o poder indepen-
dentemente de onde seja que ele provém). Estamos tentando provocar
uma reflexão que permita dissociar a já consolidada relação micropolítica-
-subjetividade e chamando a atenção para a velha relação ideologia-subje-
tividade. . . A tão comemorada entrada do sujeito no campo da saúde
coletiva e a saída do estruturalismo teriam nos deixado entregues ao relati-
vismo mais brutal? Vejamos outro lembrete de Zizek.
→ Ideologia em-si-e-para-si: nessa externalização do conceito de
ideologia, ela se reflete sobre si mesma, produzindo a desintegração, a au-
tolimitação e a autodispersão da noção de ideologia. Ela já não é mais vista
como um mecanismo de reprodução social, nem como o cimento da socie-
dade. No seu lugar, atuariam supostos mecanismos extraideológicos, como
o culto a franqueza liberal em matéria de opiniões do capitalismo tardio
pós-moderno, no qual todo mundo é livre para acreditar no que bem quiser
(pois isso só diz respeito à privacidade e aos direitos de cada um) e no qual
é encoberta toda possibilidade de análise de pressupostos ideológicos, he-
donistas e patéticos. Na verdade, sustenta Zizek (1996), continua a ser
uma operação ideológica (sobre uma série de valores, sobre a vida real e
sobre as liberdades pessoais, etc.) que nada mais faz do que colaborar para
a reprodução das relações sociais existentes.
Uma operação formal de “aspecto de profundidade” é então denun-
ciada por Zizek (1996) como defesa para fugir de um debate mais profun-
do ou como defesa contra uma verdadeira tomada de posição. Podemos
conferir isso em qualquer entrevista a algum tecnoburocrata da saúde, que,
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Ideologia e subjetividade: a relação recalcada | 51
quando perguntado sobre algum desafio do SUS, provavelmente respon-
derá assim: “veja bem, o tema é muito complexo. . .”.
Essa atualidade do conceito de ideologia explica a pressa em renun-
ciar ao conceito de ideologia hoje (uma função então!). O grande paradoxo
é que a saída da ideologia parece indicar a escravização a ela. Haveria
sempre um espaço ideológico no modo como o conteúdo se relaciona com a
postura subjetiva envolvida em seu processo de enunciação. Quando o
conteúdo é empregado a favor de alguma forma de dominação social (po-
der, exploração), a legitimação da relação de dominação precisa permanecer
oculta. Por exemplo, mentir sob o disfarce da verdade (“invadimos o Iraque
em defesa dos direitos humanos”). Para complicar nossa análise, algo pode
ser verdadeiro e ideológico (ao mesmo tempo!).
Mas então existirá alguma realidade que não se desintegre no mo-
mento em que dela retiramos seu componente ideológico? O problema é
que a noção de ideologia torna-se forte demais, começa a abarcar tudo. . .
Aqui outra armadilha pós-moderna revelada é a eliminação da noção de
realidade, pois tudo seriam ficções simbólicas, pluralidade discursivas, e
nunca a realidade.
Afirma Zizek:
essa solução pós-moderna, rápida e astuta, é a ideologia por excelên-
cia. Tudo depende de persistirmos nesta posição impossível: embora
nenhuma linha demarcatória clara separe a ideologia e a realidade,
embora a ideologia já esteja em ação em tudo que vivenciamos como
realidade, devemos, ainda assim, sustentar a tensão que mantém
viva a crítica da ideologia (Zizek, 1996, p. 22).
Para sustentar a tensão que mantém viva a crítica da ideologia, Zizek
propõe manter um lugar vazio de onde se possa denunciá-la. E aí estaria,
para ele, o papel da psicanálise: conceituar um buraco existente no mate-
rialismo histórico, como constitutivo e irredutível. Insistindo em que a
invenção democrática exige a afirmação do lugar vazio e puramente simbó-
lico do poder que ninguém pode nunca ocupar.
Para certa crítica à psicanálise, Freud teria “interiorizado” a proble-
mática social: em vez de criticar a sociedade burguesa e patriarcal e as
52 | Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
52 | Ideologia e subjetividade: a relação recalcada
condições sociais que levaram à guerra, nos ofereceu complexos libidinais
inconscientes, pulsão de morte, etc. Contudo, o sujeito não deveria evitar o
confronto com o real de seu desejo. Colocando as causas “fora”, de si mes-
mo ele não mais se compromete com o que lhe acontece: não se organiza,
não se junta com outros no laço social para produzir mudanças.
À morte do pai da horda primitiva alguns atribuem a afirmativa de
que o social é impossível. Para o lacanismo, a tentativa de fazer funcionar o
lugar do pai (da lei, da gestão) fracassaria sempre porque o pacto social foi
selado pela culpa. Como vimos, para outros autores, o pacto social é o pacto
dos irmãos, que sela o nascimento do social com o compromisso de criar
uma sociedade na qual nunca jamais ninguém voltaria a ter “todo” o poder
(Castoriadis, 1986). Pacto fundado não na culpa, então, senão na solida-
riedade. Disse Castoriadis: “Lacan e os lacanianos dizem a verdade quan-
do dizem que o Real (isto é, o social) é impossível. Esquecem apenas de
acrescentar: para eles” (1987, p. 90).
Outro autor que revisitamos em nossa busca foi Paul Ricœur. Para
ele, assim como para Castoriadis, haveria uma função “positiva” da ideologia.
E essa função positiva está ligada à necessidade sempre existente para um
dado grupo social de conferir uma imagem de si mesmo, de representar-se.
Essa função estaria sempre ligada à distância que separa a memória social
de um acontecimento fundador que se trata de repetir para reafirmar os
valores originais.
Seu papel não é somente o de difundir a convicção para além do
círculo dos pais fundadores, para convertê-la em um credo de todo o
grupo, mas também o de preservar sua energia inicial para além do
período de efervescência (Ricœur, 1990, p. 68).
Para Ricœur seria então muito cedo que começa o fenômeno ideológi-
co, pois não haveria grupo social sem uma relação de interpretação com seu
próprio advento. Por isso, para ele, a ideologia é, para o grupo social, o que
um motivo é para o sujeito. Seria por meio dela que começa o consenso e a
racionalização. Ela só continua sendo mobilizadora sob a condição de ser
justificadora. Para Ricœur, a ideologia argumenta. Empreendimentos e ins-
tituições recebem da ideologia a crença no caráter justo e necessário de sua
própria existência.
| 53 Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
Ideologia e subjetividade: a relação recalcada | 53
Pensemos na saga da criação do SUS. Com variantes mínimas, ela é
sempre contada de forma meio épica, quase ufanista, na qual nossos pais
fundadores nos deixaram o triunfo de um SUS, inserido na Constituição
como “saúde direito de todos e dever do Estado”. Não haveria nessa saga,
que repetimos no movimento sanitário como um mantra, nenhuma falha,
nenhum erro político que tenha nada a ver com a situação do SUS atual.
Todas as maldades, todos os erros, todas as omissões, todas as nossas li-
mitações teriam acontecido depois. Da mesma forma, não teríamos res-
ponsabilidade nenhuma (coloco-me em uma primeira pessoa do plural
equivalente a nós do movimento sanitário) sobre o que vem acontecendo
nos últimos vinte e três anos apesar de sempre haver membros conspí-
cuos do movimento nas várias esferas de governo, como gestores, legislado-
res ou assessores.
Ricœur afirma que:
a ideologia depende daquilo que poderíamos chamar de uma teoria
da motivação social. Ela é para a práxis social aquilo que é para um
projeto individual um motivo — um motivo é ao mesmo tempo aqui-
lo que justifica e que compromete [. . .]. Ela é movida pelo desejo de
demonstrar que o grupo que a professa tem razão de ser o que é.
Contudo não se deve tirar daí, de modo apresado, um argumento
contra a ideologia: seu papel mediador permanece insubstituível; ele
se exprime da seguinte forma: a ideologia é sempre mais que um
reflexo, na medida em que também é justificação e projeto (Ricœur,
1990, pp. 68-9).
Retomemos agora a interrogação sobre as políticas públicas no con-
temporâneo e a ideologia hoje. Qual seria seu valor como operador social?
Como sermos portadores de projetos sem sermos “ideologizantes”, ou ma-
nipuladores, ou ainda, autoritários? Como não perder o conceito na tenta-
tiva de ampliar o campo das políticas públicas com o ingresso de novas
categorias de estudo, como tem sido, na saúde coletiva brasileira, a entrada
das discussões sobre as micropolíticas e o tema do sujeito?
Ricœur também nos lembra que a ideologia consegue conservar seu
dinamismo, pois é sempre simplificadora e esquemática. Ela é uma grelha,
um código para se dar uma visão de conjunto. O nível epistemológico da
54 | Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos
54 | Ideologia e subjetividade: a relação recalcada
ideologia é o da opinião, o da dÒxa dos gregos. Ou, em termos freudianos, o
momento da racionalização. Por isso, ela se exprime de maneira retórica, de
forma provável e persuasiva. Mas, diz-nos Ricœur: “mais uma vez não
devemos ser demasiadamente apresados em denunciar a fraude ou pato-
logia: esse esquematismo, essa idealização, essa retórica, são o preço a ser
pago pela eficácia social das ideias” (1990, p. 70).
É por esse motivo que Ricœur sustenta sua tese de que a ideologia é
operatória e não temática. Assim pensaríamos “através” dela mais do que
“sobre” ela. Daí derivaria o caráter não reflexivo e não transparente da
ideologia, tema central para podermos pensar na interpretação. Para o filó-
sofo francês isso explica que nem tudo pode ser tematizado e se tornar
objeto de pensamento para um determinado grupo e num determina-
do momento histórico. Pelo mesmo motivo toda interpretação se produz
em um campo limitado. De onde Ricœur deriva outra função da ideolo-
gia (além, pois, da identificação e da dominação) que ele denomina função
de deformação.
Algumas interpretações de nossa história recente poderiam se ins-
crever nessa modalidade de operatória ideológica. Inúmeros gestores de
saúde, supostamente bem-intencionados, declaram ocupar espaços de go-
verno pelo bem do SUS quando na realidade acabam sendo cúmplices de
seu desmanche.
O SUS definha emparedado entre a saga dos fundadores que nunca
erraram e a dos gestores que nada podem nem sequer se demitir. Porém já
estão depostos, pois não ocupam a função que seria cabível esperar do pos-
to (claro que há exceções, estamos generalizando para construir uma hipó-
tese). No meio, muitos do movimento sanitário assistimos à crônica dessa
morte anunciada como se nada pudéssemos fazer. Então, como intervir?
Por um lado, achamos que a política de saúde não pode procurar sua
potência longe da clínica ou em estratégias neocolonizadoras. Tampouco a
achará se desiste de produzir mudanças. Pensamos que nossas práticas
deveriam se afirmar como experiência — limite entre o psíquico e o social,
entre o que diz respeito a uma interioridade e às formas de organização da
sociedade, entre a clínica e a política. Uma compreensão da produção de
saúde que, comprometida com a defesa da vida, se disponha a interferir e
ser — por sua vez — interferida. Assim, talvez, possamos sair das receitas
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Ideologia e subjetividade: a relação recalcada | 55
prontas, possamos interromper a visão estereotipada de nós e dos outros
(os pobres, os necessitados, os neoclasse média que não sabem), na qual
sempre são os outros os que têm de mudar, aprender, incorporar. . . Como
produzir mudanças sem mudarmos a nós mesmos? Isso nunca ocorrerá se
ficamos defendidos em nossos próprios valores e modus operandis já esta-
belecidos. Isso nos coloca na trilha de nossa própria mudança. Esforçarmo-
-nos para estimular processos de mudança, para produzir novas leituras
sobre nós mesmos e sobre o mundo nas comunidades é, sem dúvida, fun-
damental. Porém, devemos retomar o debate ideológico, a construção de
valores, a dimensão macropolítica. Claro que tal dimensão sempre estará
de mãos dadas com sua contrapartida micropolítica, não negamos isso. Mas,
se em nossa função de intelectuais, de formadores, desistimos de pro-
duzir valor, de colocar as perguntas fundamentais, então, a sorte do SUS
está traçada.
Entendo por política a atividade coletiva, refletida e lúcida, que surge
a partir do momento em que é colocada a questão da validade de
direito das instituições. Nossas leis são justas? Nossa Constituição é
justa?Ela é boa? Mas boa em relação a quê? Justa em relação a quê?
E precisamente por essas perguntas intermináveis que se constitui o
objeto da verdadeira política, que pressupõe, pois, o questionamento
das instituições existentes — seja para confirmá-las no todo, seja em
parte (Castoriadis, 2002, p. 138).
Damos relevância à gestão nesse processo. Uma importante parte da
construção das significações imaginárias que poderiam sustentar um siste-
ma único mais justo se dá, como vimos, “nas” práticas e “pelas” práticas.
Assim, se a população pode vir a defender uma política pública inclusiva e
justa, será por sentir concretamente seus efeitos como ganhos. É por isso
que falamos de significações imaginárias e subjetividade: uma gestão —
subjetividade.
Referências
Althusser, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. In: •i• ek, S. (org.). Um
mapa da ideologia. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
56 | Ideologia e subjetividade: a relação recalcada
Castoriadis, C. A instituição imaginária da sociedade. Trad. Guy Reynaud. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1986.
—. As encruzilhadas do labirinto – 1. Trad. Carmen Guedes & Rosa Boaventura.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
—. A ascensão da insignificância: encruzilhadas
no labirinto IV. Trad. Regina Vascon-
cellos. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
Freud, S. O mal-estar na civilização [1931]. Rio de Janeiro: Imago, 1997 (Edição
eletrônica brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud).
Green et al. A pulsão de morte. Trad.
Claudia Berliner. São Paulo: Escuta, 1988.
Lyotard, J. F. A condição pós-moderna.
Trad. Ricardo Corrêa Barbosa. Rio de
Janeiro: José Olimpio, 2006.
Ricœur, P. Interpretação e ideologia. Trad. e apresentação de Hilton Japiassu. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1990.
Zizek, S. Um mapa da ideologia. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Contraponto,
1996.
D
Capítulo 3 Humano demasiado humano: uma abordagem do mal-estar na instituição hospitalar*
Rosana Onocko Campos
Quando se considera que por centenas de
milhares de anos o homem foi um animal
extremamente sujeito ao temor, e que qual-
quer coisa repentina ou inesperada o prepa-
rava para a luta, e talvez para a morte, e
mesmo depois, nas relações sociais, toda
seguridade repousava sobre o esperado, so-
bre o tradicional no pensar e no atuar, então,
não deve surpreender-nos que, diante de
tudo o que seja repentino e inesperado em
palavra e ação, quando sobrevive sem peri-
go ou dano, o homem se desafogue e pas-
se ao oposto do temor: o ser encolhido e
trêmulo de medo ergue e expande-se — o
homem ri.
— FRIEDRICH NIETZSCH E, 1886. Hu- mano demasiado humano.
izer que um hospital deve ser humanizado parece óbvio, se pensamos
que, realmente, o hospital, um, todos, a instituição hospitalar na rea-
lidade, existe para atender pessoas e é criado por pessoas. Sua aparição
social foi determinada por questões profundamente humanas.
* Publicado originalmente na Coleção Saúde em Debate, da Editora Lugar, Buenos
Aires, Argentina, 2004. Reedição autorizada pelos Editores. 57
58 | Humano demasiado humano
Existem numerosas abordagens da organização hospitalar, analisan-
do sua constituição histórica e social, sua transformação no tempo, seus
valores, sua complexidade, sua dependência do saber médico, etc. (OPS,
1989; Pitta, 1990; Ribeiro, 1993).
Em geral associamos o humano a um valor positivo em si. Alguém é
humanitário quando se mostra solidário e compassivo, por exemplo. E quan-
do alguém cria intrigas, calúnias ou é preso pela paixão e pela inveja, não é
humano? A violência, a desigualdade social, o abuso de poder, não são
fenômenos profundamente humanos? Alguém já viu seu gato com inveja
do alimento balanceado do gato do vizinho?
Para pensar um lugar para o conceito “humanizado” no hospital, é
preciso desestabilizar a noção do sentido comum que sustenta o humano
associado a um valor positivo em si. Somos humanos, nunca seremos so-
mente “bons”.
O hospital moderno massacra seus sujeitos. Todos os seus sujeitos. E
todos eles de maneira diferente, segundo sua inserção institucional. Os
usuários foram reduzidos a objeto há bastante tempo pela medicina, mas
em nenhum espaço de atenção à saúde isso é tão forte e evidente como na
máquina hospitalar. No hospital contemporâneo, os equipamentos tecno-
lógicos (incluo aqui desde aparatos de ressonância magnética até o saber
médico) subestimam o valor das perguntas mais básicas. Quanto vale uma
vida? E quanto custa?
As vidas que se jogam dia a dia nos hospitais modernos não são
unicamente as dos pacientes. Mas são também as dos pacientes. Nossa
vida se ganha e se perde muito mais do que na tênue divisória entre a vida
e a morte. É evidente que quando alguém morre marca-se um ponto sem
regresso. Mas morremos e vivemos em numerosas situações nas quais não
estão em jogo nossas batidas cardíacos, senão o pulso do nosso desejo.
Preterido, esquecido, escondido embaixo de muitas camadas impossíveis.
Esses impossíveis em boa medida são produzidos. Material e subje-
tivamente produzidos. A eles rendemo-nos, levantando o altar de nossa
impotência. O possível consegue-se tensionando as fronteiras do impossí-
vel. Forçando-as, num esforço consciente e deliberado. Esforço que para ter
sentido deve ser agenciado por um grupo, por um coletivo de humanos. Um
esforço que pode, e deve, também, ser produzido.
| 59 Humano, demasiado humano
O que temos feito, hegemonicamente, na gestão, com nossa humani-
dade? Expulsá-la do foco de nosso objeto? Trabalhamos durante anos
como se uma organização pudesse ser pensada vazia de gente. Ou somente
ocupada por pessoas domesticadas pela racionalidade gerencial hegemônica
(Campos, 2000). Nossa humanidade resiste a nós mesmos. Nossas organiza-
ções continuam cheias de paixões, rancores, concorrências, narcisismos feri-
dos e floridos. Inevitavelmente levamos nossa humanidade a todas partes.
Sem dúvida, se há um humano fragilizado, é o semelhante acometi-
do por uma doença, ou uma dor, ou qualquer sintoma que lhe produza um
sofrimento que, estando no corpo, ou além do corpo, sempre lhe evocará a
fantasia da própria morte. Por isso defendemos uma verdadeira centralidade
no usuário, centralidade que tem que ver com o reconhecimento desse fato.
A senhora poliqueixosa, que tortura todas as noites os mesmos médicos de
plantão, pode não ter nenhum risco iminente de morte. Mas sem dúvida
sofre. Que fazemos com esse sofrimento na maioria das vezes? Colocamo-
-lo de lado como resto, o banalizamos, rimos um pouco às suas costas. . .
Por que fazemos isso? A descrição anterior poderia parecer a de um
bando de sádicos organizados, para quem nunca entrou num plantão de
hospital. E sabemos que nós não somos sádicos. Somos gente decente,
trabalhadores, que até elegemos ser médicos, ou nutricionistas, ou enfer-
meiros porque tínhamos um compromisso com o combate à dor e ao sofri-
mento. Queremos salvar vidas!
Ocorre que o processo de salvar vidas realiza-se à custa de gastar
nossa própria vida. Ou senão, que estamos fazendo quando vendemos
nossa força de trabalho? Não estamos “trocando” tempo e suor por um
salário? E esse salário, não o usamos para reproduzir nossa própria vida
pessoal, o humano que somos fora do trabalho?
Quando trabalhamos em serviços de saúde, sofremos um desgaste
que é diferente do desgaste do operário. Nas organizações de saúde que
trabalham diretamente com gente, uma grande parte do cansaço dos traba-
lhadores deve-se à permanente exposição ao sofrimento e à morte; daí a
necessidade de repor-se.
Se toda instituição nos causa mal-estar, os serviços de saúde em geral,
e o hospital em particular, põem-nos à beira do sofrimento. Mal-estar e sofri-
mento institucional não são o mesmo, ainda que suas fronteiras se pareçam.
60 | Humano demasiado humano
Mal-estar na cultura e sofrimento no hospital
Freud, em O mal-estar na cultura (1997), mostrou que existe um
preço que todos os humanos pagam por concordar com a vida social. A
substituição do poder de um indivíduo pelo poder de uma comunidade
constitui o passo decisivo de uma civilização; assim as civilizações são cons-
truídas sobre uma renúncia ao instinto. Para Freud, a frustração domina
o campo das relações humanas, pois — dirá — não se faz isso impunemen-
te. Esse mal-estar é constitutivo do viver em sociedade e indissociável
de nossa condição de humanidade. Esse mal-estar é inevitável. Desde
que nascemos, passamos a vida tentando aprender a suportá-lo. Os hos-
pitais, como parcelas do social que são, não estão isentos dele. Mas é
necessário diferenciar mal-estar de sofrimento. O sofrimento psíquico
produzido pela vida institucional é diferente do mal-estar, ainda que
suas fronteiras se confundam muitas vezes, é possível, e útil, diferen-
ciar suas polaridades.
Outro psicanalista, Kaës (1991), reconhece as instituições como
portadoras de um valor constitutivo para a vida psíquica. “A instituição
deve ser permanente: com isso ela assegura funções estáveis e necessárias
para a vida social e psíquica” (Kaës, p. 23). Para esse autor existe uma
aderência narcisista ao objeto institucional. Isso quer dizer que nos estru-
turamos como humanos também (e fundamentalmente) por nossa inser-
ção institucional.
O objeto institucional a que se refere Käes, está constituído pelos
objetivos institucionais: a missão, diriam alguns planejadores; a tarefa primá-
ria, diriam alguns institucionalistas; a produção de valor de uso, diria Cam-
pos (2000). Em realidade, seja desde a gestão, seja desde a análise institucio-
nal, quando definimos uma missão com um grupo de uma organização, ou
suas tarefas primárias, estamos contribuindo para a aparição da aderência
narcisista, de um mecanismo psíquico pelo qual as pessoas se autorizam a
dizer, ou a pensar, ou a sentir que trabalhar aí vale a pena e tem um sentido.
Através desse mecanismo, as pessoas sentem-se parte da organização.
Kaës também nos dirá que essa mesma aderência narcisista, tão
importante, é fonte de problemas. Esses se manifestam no momento das
reformas. A reforma, qualquer reforma, proposta de mudança ou refor-
| 61 Humano, demasiado humano
mulação, põe em xeque o processo de identificação entre a organização
e seus agentes. Novos referenciais não estão ainda disponíveis para iden-
tificar-se, e a angústia provocada pela mudança, geralmente, se expres-
sa por meio de reações psicossomáticas ou ideológicas. Ou seja: as pessoas
adoecem, ou renunciam, ou faltam muito ao trabalho, ou fazem discursos
cheios de valores ideologizados. Essa saída para a ideologização (seja de
direita ou de esquerda) é fonte de sofrimento. São os discursos prontos,
cheios de palavras de ordem que impedem sua problematização ou análi-
se: uma coisa ou outra é boa ou má em si, porque sim. Esse é o exemplo
típico do comportamento ideologizado. Em nossa prática, vimos suceder
esse mecanismo com muita frequência e pensamos que é de central im-
portância reconhecer esse comportamento como um sintoma de sofrimen-
to. Como todo sintoma, ele serve para alguma coisa e não pode ser retirado
por decreto, nem sem consequências. Mas não se acaba por aí a possi-
bilidade de sofrimento. Kaës identifica ademais quatro formas de sofri-
mento institucional:
1. Sofrimento do inextricável: ao mesmo tempo que se constitui uma
aderência narcisista necessária que traz junto com ela o benefício do víncu-
lo, aparece a indiferenciação e o que este autor chama de angústia de
dissolução. Dito de outra forma, o efeito de vestir a camisa: ok, sou deste
hospital, mas então quem sou?
2. Sofrimento associado a uma perturbação da função instituinte:
uma parte do sofrimento deve-se à perda da ilusão. Para Kaës, a falha da
ilusão institucional debilita o espaço psíquico comum dos investimentos
imaginários que sustentam o projeto da instituição. Ou como diria Testa
(1997), é necessário saber para quê trabalhamos, lutamos e sofremos na
organização. Toda organização cria uma mitologia de sua origem, a falha por
excesso, ou por falta, essa mitologia institucional será fonte de sofrimento.
Toda instituição, por outro lado, administrará uma parte de seu próprio
reprimido nesse vínculo. Kaës chama a isso de pacto denegatório; são essas
as zonas escuras, o lugar da utopia e o não lugar do vínculo. Existe também
uma tendência do mito fundador a criar uma narrativa de filiação fixa, em
outras palavras: a história oficial. Se as instituições não se perguntam sobre
essas questões, correm o risco de inscrevê-las em seu funcionamento. (Ou
dito de outra maneira: quando isso não se fala, isso se atua).
62 | Humano demasiado humano
3. Sofrimento relacionado a obstáculos para a realização da tare-
fa primária: existe, nas instituições de saúde (e educação), uma tendência
a defender os sujeitos de sua própria tarefa. Exemplos disso são as horas
que se gastam em atividades não destinadas à assistência. Médicos que
passam horas enchendo formulários, enfermeiros que gastam seu tem-
po em outras coisas que não são o atendimento dos pacientes. Kaës diz
que isso não é casual. A experiência empírica confirma-o. Existem pro-
cessos identificatórios entre técnicos e usuários que põem em risco a auto-
estima do pessoal. A instituição acaba criando mecanismos que protegem
os agentes da própria tarefa. Outros obstáculos à realização da tarefa
primária são as carências básicas de insumos, pessoal, etc. A ideia sub-
jacente, o não dito, dessa forma, é que o trabalho é pouco valorizado ou
não vale a pena. Em contextos como esses, a autoestima dos profissionais
fica debilitada.
Geralmente, e apesar de bem-intencionadas, as mudanças de ges-
tão ocorrem e nos encontramos com um serviço empobrecido, degradado
em sua infraestrutura ou sem recursos básicos para realizar as tarefas. Com
frequência, como novos gestores, em situações como essa, chegamos e pro-
pomos produzir mudanças na estrutura hospitalar; desconhecemos assim
esse momento psíquico particular e propomos reformas sem dar tempo,
nem espaço, para que seja possível a reconstrução de uma verdadeira ade-
rência narcisista. Do ponto de vista subjetivo, isso é “insuportável”. Seria
necessário, primeiro e antes, dar aportes “suficientemente tróficos” (Kaës,
1991) para essa reconstrução narcisista para depois, sim, poder trabalhar as
propostas de reformas.
4. Sofrimento associado à manutenção do espaço psíquico: para Kaës,
o espaço psíquico é o espaço do ser-conjunto. Espaço construído entre os
sujeitos, espaço intermediário. Esse espaço diminui com a prevalência do
instituído, com as estratégias de dominação, ou com a sensação de amea-
ça. Geralmente, ideias inovadoras serão cooptadas pelo estabelecimen-
to institucional e postas ao serviço da “mentira institucional” (Bion, apud
Kaës, 1991).
| 63 Humano, demasiado humano
Projetos institucionais como fenômenos transicionais
humanos
“juguemos en el bosque mientras el lobo no
está, lobo está?” (antiga cantiga infantil)
De alguma maneira sempre está; escondido em algum lugar, vestin-
do as calças. . . O importante é perguntar-nos o que fazemos no espaço
intermediário. Aí, nesse espaço, enquanto o lobo não chega, enquanto está
ocupado com outras coisas.
Winnicott (1999) elaborou sua teoria sobre os processos transicio-
nais a partir de sua descrição inicial dos objetos transicionais nascrianças: a
manta ou o urso que as crianças carregam de cá para lá. Esse objeto, para as
crianças, não está dentro nem fora, e contém um paradoxo que não deve ser
resolvido. Dirá Winnicott: nunca perguntaremos ao menino se esse objeto
lhe foi dado ou se ele o inventou.
Esse autor vinculará os processos transicionais ao que ele chama de
região da experiência. Espaço em que nós gastamos pelo menos um terço
de nossa vida e que está fortemente relacionado com o papel da ilusão. É
com base em nossas ilusões comuns que nós adultos conseguimos agrupar-
-nos. Não existe objetividade possível, nosso espaço cultural não está nem
dentro nem fora, senão no transicional.
Defendemos que os projetos humanos são tipicamente atividades
do espaço transicional (Onocko, 2001b). Típicos processos transicionais.
Como tais, requererão um suporte suficientemente trófico para poderem
ser experimentados. Espaços protegidos, onde alguns paradoxos possam
ser tolerados e a ilusão institucional recriada. Para Winnicott, o que carac-
teriza os fenômenos transicionais (como brincar) é o fazer, não o puro pen-
sar. Esses processos requerem um lugar e um tempo.
O papel de suporte (holding) necessário precisa, muitas vezes e du-
rante algum tempo, de alguém que o desempenhe. Uma vez desencadea-
do o processo, o próprio grupo pode constituir-se nesse suporte. No en-
tanto, inicialmente e com frequência, uma ajuda externa ao grupo será
fundamental para a criação desse espaço protegido. Cada organização po-
derá resolver segundo suas possibilidades quem desempenhe esse papel.
64 | Humano demasiado humano
Um supervisor institucional, um assessor, ou até mesmo um gerente ou
coordenador de outro grupo, segundo o caso. O importante será a postura
dessa figura.
Gestão hospitalar: produzindo valor de uso e sujeitos
Para Campos (2000), as instituições de saúde existem para produzir
valor de uso e realização pessoal dos trabalhadores. Ou seja, têm uma
dupla finalidade. Essa teoria da dupla finalidade permite que trabalhemos
com ênfase nos fins sem acabar com os sujeitos que ali trabalham. Dessa
maneira, a gestão passa a incumbir-se de uma função complexa que já não
é mais a mera administração de recursos, nem pode mais reduzir seus
sujeitos a recursos humanos. A realização pessoal dos trabalhadores passa
a ser também um objetivo da instituição e não simplesmente um meio para
aumentar a produção. Uma instituição que produz, sim, mas produz valo-
res de uso e sujeitos. Para isso, é necessária uma teoria sobre a produção de
sujeitos que não se acabe na primeira infância. Os espaços institucionais, as
relações de trabalho e de execução também produzem subjetividade o
tempo todo (Campos, 2000). Não estamos “prontos” ao sair do Édipo, nem
podemos mudar e transformar-nos somente no divã do psicanalista.
Essa concepção de instituição de Campos, que nos é de utilidade
para repensar a gestão e o planejamento, está ligada à visão de instituição
de alguns psicanalistas. Psicanalistas que incluímos numa linha narrativa
particular, dentro da própria psicanálise, por enfatizar o valor estrutural
dos espaços institucionais, como espaços privilegiados de controle social.
Entre eles o próprio Freud, Françoise Dolto, o já citado Kaës e Cornelius
Castoriadis.
Freud, em O mal-estar na cultura, dirá que nem a busca do amor
pode ser comparada, em sua potência sublimadora, ao prazer produzido
pelo trabalho criativo e estético.
Castoriadis fará uma leitura de Freud em Totem e tabu, para dizer
que “o mito da morte do pai não poderia jamais ser relacionado à fundação
da sociedade, se não incluísse o pacto dos irmãos, portanto, também a renún-
cia de todos os viventes a exercer o domínio real e seu compromisso de
aliar-se para combater a quem queira que pretenda isso [. . .]. O «assassi-
nato do pai» nada é e a nada conduz (senão à repetição sem fim da situação
| 65 Humano, demasiado humano
precedente) sem o «pacto dos irmãos» [. . .]” (Castoriadis, 1987, p. 89;
grifos do autor).
É nessa tradição libertária da psicanálise, no direito a defender uma
vida social mais justa e fraterna que queremos inscrever nossa contribui-
ção. Pensamos que o planejamento em saúde não pode manter-se alheio
a essas questões. Todo projeto só será possível num espaço transicional,
de experiência, que nunca será objetivo, que não está dentro nem fora. Por
isso é impossível recortá-lo objetivamente. Todo querer estará sempre
nessa região intermediária, marcado indefectivelmente pela percepção de
mundo, pela postura subjetiva e pela relação entre os sujeitos, que assu-
mem num dado lugar e tempo e pelos condicionantes do real concreto
(Onocko, 2001b).
A ampliação da clínica: uma questão de eficácia
Na instituição hospitalar, outra parte de sua produção, a de valor de
uso, está fortemente unida às concepções clínicas aí vigentes e ao compro-
misso com a produção de saúde como eficácia.
Campos (2000) resgata Marx e sua concepção de valor de uso para
aplicá-la aos serviços. O valor de uso é permanente e socialmente produzi-
do. Um valor que muda o tempo todo e sobre o qual, como trabalhadores da
saúde, também podemos influir. Não é natural, nem está dado a priori. De
um referencial marxista (Marx, 1985), o não reconhecimento da produção
de valor de uso e de mais-valia é o que caracteriza a alienação. Dito de
outra forma: os trabalhadores não sabem para que trabalham, ignoram que,
no mesmo momento e ato que produzem valor de troca, estão produzindo
valor de uso, mais-valia e seu próprio desgaste.No caso dos serviços assis-
tenciais, como os hospitais, defendemos que o valor de uso estará sempre
vinculado às modalidades clínicas existentes de cada lugar e que isso é uma
questão de eficácia (Onocko, 2001b). Nos grandes hospitais contemporâ-
neos, mas também em muitíssimos outros serviços de saúde, faz tempo que
a lógica da produção de procedimentos substituiu a de produção de saúde.
Os gestores e planejadores têm uma parte de responsabilidade nis-
so, já que durante anos se difundiu a ideia (hoje hegemônica) de que os
serviços precisam ser eficientes.
A eficiência é uma medida relacionada à produção no tempo, em
66 | Humano demasiado humano
relação a seu custo. Quanto mais produzo, em menos tempo e a menor
preço, mais eficiente sou. Mas a grande pergunta é: produzo mais de quê?
Produzo para quê?
Testa nos diz: “a eficiência satisfaz os requerimentos no terreno
econômico geral, em base ao suposto de que o que se produz é da quali-
dade adequada [. . .] no caso da saúde é conveniente — mais bem indis-
pensável — introduzir a categoria eficácia, definindo-a como a probabili-
dade de que uma atividade atinja o máximo de seu efeito potencial [. . .]”
(1993, p. 183).
Ensinaram-nos a produzir procedimentos, que são coisas fáceis de
contar, para mostrar produtividade: consultas, radiografias, suturas, endos-
copias. Mas esses procedimentos, o que produzem? Digo, essas consultas
produzem saúde? Melhoram a vida das pessoas? Diminuem seu risco de
morrer ou sua dor e sofrimento?
Sabemos que muitas dessas consultas só produzem mais pedidos de
procedimentos e de novas consultas. Quando avaliamos uma planilha de
produção de um plantão de urgências, por exemplo, ou de qualquer ambu-
latório, poderemos ver, com grandes chances, que somos relativamente efi-
cientes. Responder sobre a eficácia sem dúvida é bem mais difícil.
Como quase nunca incorporamos a dimensão subjetiva no atendi-
mento, também não teremos uma medida de quanto, aliás, essas consultas
produziram de acting-out, iatrogenia ou mais sofrimento (Balint, 1984).
Milhares de poliqueixosos submetidos a exames desnecessários. . . Quan-
tas vezes criticamos o saber médico dizendo que tinha reduzido os pacien-
tes a um órgão enfermo ou a uma doença? Pois bem, agora estamos piores.
Em muitíssimos serviços de plantão, de urgências, ou até nos consultórios
externos, as pessoas estão sendo reduzidas a uma coleção de sintomas sem
sentido. Já não somos nem um fígado enfermo nem uma colite e, claro,
muito menos gente.
O reinado da eficiência institui-se a partir do pressuposto — jamais
questionado — de que os serviços de saúde precisam ser baratos. Quem
precisa de que sejam baratos? Os serviços de saúde vieram ao mundo para
produzir saúde, não para serem eficientes. Se para serem viáveis precisam
de uma eficiência mínima, essa é outra questão.
O paradigma da eficiência nasce entrelaçado à reificação da técnica.
| 67 Humano, demasiado humano
Na técnica, a relação meios-fins encontra-se desde sempre resolvida. Toda
técnica pressupõe que a adequação dos meios está garantida pela correção
dos fins. E tudo isso é resolvido por um saber prévio.
Pelo contrário, na frÒnhsij (prudência) aristotélica, ou no saber ético,
o fim nunca garantiria a justiça dos meios. Será necessário, sempre e em cada
situação, interrogar-se (reflexionar, analisar a situação) para, aí sim, acionar
um saber prévio (fazer, produzir efeitos). A mesma característica será resga-
tada por Castoriadis em seu conceito de práxis: “A práxis é na verdade uma
atividade consciente [. . .] mas é diferente da aplicação de um saber preli-
minar (não podendo justificar-se pela invocação de um tal saber — o que
não significa que não possa justificar-se)” (1986, p. 95). Para esse autor, a
verdadeira medicina, a verdadeira pedagogia, pertence ao terreno da práxis.
Campos (1997) propôs utilizar o conceito de clínica ampliada para
designar uma clínica que resgata as dimensões subjetiva e social dos pacientes:
uma clínica do sujeito. Sujeito humano que sempre será biológico, subjetivo
e social. Uma clínica que se preocupe com a produção de saúde e a defesa
da vida e não simplesmente com a produção de procedimentos. Uma clínica
que avalie os riscos não só biológicos de morrer ou adoecer, mas também os
riscos subjetivos e sociais de cada sujeito. Uma clínica que incorpore uma
dimensão de prevenção secundária e de reabilitação quando seja necessário.
Esse autor contrapõe a clínica ampliada à clínica tradicional (a antiga e relati-
vamente “boa” clínica que aprendemos a fazer nas faculdades) e à clínica de-
gradada (essa é a clínica predominante nos serviços de urgência e em mui-
tos outros, onde somente se trata de sintomas sem sentido: queixa-conduta).
E quando transformamos nossa prática em aplicação de técnicas e
deixamos de fazer práxis em nossa própria prática? Quando nos submete-
mos ao reinado da eficiência, quando deixamos de perguntar-nos para quê,
quando perdemos de vista o sentido de nosso trabalho. . . É então que
começamos a viver nossa pequena morte cotidiana, transformamos os
usuários em objetos, que serão submetidos a intervenções técnicas e deixa-
mos de lado nossa própria humanidade.
É impossível humanizar um hospital sem repensar nossa própria
posição institucional, sem recriar nossa região de experiência, sem voltar a
tomar pé em nossa prática para transformá-la em práxis reflexiva. Para
recriar a ilusão, para refundar um espaço psíquico do ser-conjunto, para
68 | Humano demasiado humano
envolver-nos ludicamente em nosso próprio espaço intermediário, deve-
mos começar por abrir espaço a essas perguntas.
Gerenciando no intermediário: alguns conceitos,
arranjos e dispositivos institucionais
Não assumir uma posição técnico-centrada de ter todas as respos-
tas não quer dizer que estejamos desarmados. Incorporamos alguns con-
ceitos, arranjos e dispositivos institucionais para ajudar-nos a reformar a
estrutura hospitalar.
As organizações ou estabelecimentos (bem como as instituições)1
funcionam com base em contratos explícitos ou implícitos, regras, etc. Se-
gundo a concepção que tenhamos delas, poderemos fazer diversos recortes
para aproximar-nos.
Trabalhamos em gestão com a convicção de que as organizações e/ou
as instituições apareceram no mundo humano como espaço privilegiado para
a sublimação, a vida social e cultural. Assim, sem organização ou instituição
não haveria humanidade (uma colônia de abelhas não é uma instituição. . .).
Campos (2000) coloca a formação de compromisso e a formulação
de contratos como duas categorias centrais para o entendimento das rela-
ções entre a organização eseus sujeitos:
Formação de compromisso, de modo semelhante ao definido pela
psicanálise, indica articulações em que predominam processos in-
conscientes. Ao invés, construção de contratos indica o predomínio
de movimentos deliberados, mediante processos de análise seguidos
de intervenção sobre os diferentes planos de existência (Campos,
2000, p. 233).
Para esse autor, uma forma de trabalhar com essas duas categorias é
incorporar à gestão os conceitos de oferecimento e demanda. Nos encontros
com as pessoas, trabalhar temas demandados pelo grupo, entendendo essa
1 A análise institucional discriminou entre os conceitos de organização, estabelecimento
e instituição. Sem desconhecer essa contribuição (ver Lourau, 1995), utilizamos aqui os três termos sem distinções, pois não nos estamos referindo a suas diferenças conceituais, senão a sua característica comum, pelo que representam para nós no mundo humano: espaços privilegiados
para que apareça a sublimação criadora.
| 69 Humano, demasiado humano
demanda como uma síntese dialética e transitória de valores, desejos e
interesses das pessoas. E trabalhar também com oferecimentos, ou seja,
temas propostos ou levantados pelo apoiador institucional ou agente exter-
no, tendo como objetivo a produção de novas sínteses, incorporando novas
informações e desestabilizando crenças e valores já “naturalizados” pelo
grupo (Campos, ibidem).
Como bem mostrou Freud (1997), a passagem da animalidade à
vida social não se realiza impunemente. Por isso, claro, podemos reconhecer
nos espaços organizacionais uma série de preços pagos por nós, humanos,
para a vida social. O controle, a dominação, o narcisismo das pequenas
diferenças, etc. florescem com horrível frequência nesses espaços e tanto
que nos esquecemos de para “quê” apareceram na vida humana.
A organização ou estabelecimento produz ativa e estruturalmente
dominação, alienação e controle. Não vou me aprofundar nisso, só recordá-
-lo para ressaltar que essa produção, instituída numa direção, pode e deve
ser estimulada para produzir outros sentidos: criação, solidariedade, amiza-
de, etc. Por isso, é necessário desenvolver não somente dispositivos, mas
também arranjos que estimulem a produção de autonomia, criatividade e
desalienação de maneira permanente.
1. Arranjos
Há certa estruturação e permanência: a máquina de produzir con-
trole não opera pulsando (de modo intermitente), opera como fluxo contí-
nuo. Por isso, trabalhamos tentando desenvolver arranjos que têm a poten-
cialidade de produzir esse fluxo na direção contrária. Digo potencialidade,
pois, como toda coisa ou estrutura que num dia se institui, esses arranjos
não estão a salvo de ser cooptados pela lógica dominante. Neles, mais do
que nunca o preço da liberdade é a eterna vigilância!
Alguns deles:
→ Colegiados de Gestão e Unidades de Produção:2
Impõem uma mudança estrutural nas linhas formais de coman-
do. Eliminam-se todas as coordenações, gerências, ou direções verticais
especializadas, e se instituem as Unidades de Produção. O que caracteriza
2 Baseado em Campos (1998).
70 | Humano demasiado humano
uma Unidade de Produção é seu produto, ou seja: que produz? Procuran-
do uma verdadeira homogeneidade do produto (isso em saúde é sempre
pouco), por exemplo: a produção de uma Unidade pediátrica é diferente da
de uma Unidade de queimados. Assim, nessa nova estrutura organizacio-
nal todos os que trabalham com um mesmo objeto (que em saúde sempre
são sujeitos) estão “obrigados” a trabalhar juntos sob o mesmo comando
gerencial. Toda Unidade de Produção deve ter um espaço colegiado de
deliberação e discussão clínica. À sua vez, os coordenadores dessas Unida-
des, todos juntos, constituem o Colegiado Gestor da organização. Esse
Colegiado delibera sobre diretrizes gerais, rumos da organização, etc. Os
coordenadores das Unidades de Produção levam para esse espaço as ques-
tões sobre as quais a própria Unidade não tem autonomia para decidir, em
forma de demandas que desencadeiam deliberações. Exemplo: necessi-
dade de ampliar a infraestrutura, contratação de pessoal, etc. Na medida do
possível, todas as outras decisões são tomadas pela equipe na unidade de
produção, ou em comunicação lateral com as outras Unidades, e só chegam
ao Colegiado se não conseguiram entender-se. Isso cria um efeito setting,
institui as reuniões periódicas e abre a possibilidade de recriar processos
intermediários entre os membros da equipe. Abre possibilidades, não ga-
rante nada. Esses espaços devem ser permanentemente recheados de sen-
tido e é onde inicial e preferencialmente um apoio institucional pode ser
desenvolvido no papel de suporte (holding) do grupo. A discussão sobre a
tarefa primária ou objetivos nesse espaço centra-se na discussão do campo3
comum de trabalho da equipe, o que todos devem ter como compromisso
grupal, a produção de saúde ou de clínica ampliada de maneira geral.
→ Apoio matricial:4
Neste formato não existe mais aquilo de que a enfermeira trabalha
nesta Unidade de Produção, mas seus horários e funções dependem da
chefia da enfermagem. O suporte especializado (técnico) continua existin-
3 Utilizamos os conceitos de campo e núcleo tal como foram elaborados por Campos et al.
(1997). O campo contribui à tarefa comum, o que todos devem fazer ou cuidar que seja produ-
zido; o núcleo refere-se à parte mais específica de qualquer tarefa, o que só este ou aquele espe- cialista sabe fazer. Assim, esses conceitos tensionam a reflexão sobre o trabalho como práxis social.
4 Baseado em Campos (1998).
| 71 Humano, demasiado humano
do como um apoio matricial e desvinculado das linhas de comando. Assim,
pode haver uma enfermeira que ensina técnicas de enfermaria, faz forma-
ção em serviço, etc., só que agora ela não manda, não elabora os horários de
trabalho, nem organiza os plantões, nem recursos. Esse apoio técnico matri-
cial é essencial para mitigar a angústia de dissolução, uma vez que propor-
ciona um estímulo permanente da identidade profissional ameaçada pelo
desenvolvimento do espaço da equipe multiprofissional. Esse apoio ali-
menta o desenvolvimento técnico profissional no núcleo (Campos et al.,
1997) disciplinar de cada um.
→ Equipe de referência, adscrição do usuário:5
Esse arranjo está fundamentado na importância do vínculo entre
pacientes e profissionais. Uma das características das organizações con-
temporâneas é ter eliminado o reconhecimento do outro como ser singular.
À medida que os profissionais conhecem os pacientes e estes os técnicos, é
possível criar graus de confiança maiores, os usuários autorizam-se a pergun-
tar e participar mais de seu próprio tratamento e as respostas profissionais
deixam de ser estereotipadas. Da mesma forma, quando um usuário tem
nome, cara e história, o envolvimento da equipe melhora, produz-se um
efeito desalienante e aumenta o compromisso com o paciente e seu trata-
mento. É muito mais fácil dizer “volte amanhã às 7” a quem não se conhece.
Esse arranjo consiste em que todo usuário tem um profissional de re-
ferência, responsável por seu tratamento, que ele conhece e de quem sabe o
nome. Isso, p.ex., muda as condições de contratação. Para trabalhar nessa
lógica não posso trabalhar com sistema de plantões, é preciso trabalhar com
diaristas que passam — pelo menos — um turno por dia na Unidade. Isso
cria vínculo com o usuário, estimula a responsabilização, e amplia a clínica.
Em hospitais, é possível atribuir um número de leitos a cada equipe,
conforme as possibilidades de cada estabelecimento. Exemplo: um médico,
uma enfermeira e dois auxiliares de enfermaria cuidam de quinze leitos.
Será essa mesma equipe que se responsabilizará por derivações, intercon-
sultas, conversar com a família, etc.
O vínculo tem a potencialidade de melhorar e ampliar a clínica.
5 Baseado em Campos (1999) e Carvalho & Campos (2000).
72 | Humano demasiado humano
Conhecer o caso outorga aos profissionais a possibilidade de decidir com
mais calma condutas e avaliações. É difícil avaliar um paciente desconheci-
do sem numerosos estudos complementares quando nos encontramos com
ele num momento crítico. Se conhecemos esse paciente, a forma como lida
com sua doença e até o tipo de respostas biológicas que apresenta, é menos
angustiante tomar decisões. Isso é muito evidente em casos de doenças
crônicas como diabetes, asma, hipertensão, etc.
2. Dispositivos
Segundo Baremblitt, “um dispositivo caracteriza-se porque o impor-
tante nele é seu funcionamento, sempre simultâneo a sua formação e sempre
a serviço da produção, do desejo, da vida, do novo” (1992, p. 74). Um dis-
positivo, portanto, seria, sempre o contrário a um equipamento, ou seja:
trabalha para subverter as linhas de poder. O que caracteriza um disposi-
tivo é seu funcionamento, nunca poderemos definir um a priori, só teremos
evidências de que é, aliás, dispositivo ao analisar como está funcionando. E
o gerúndio aqui é fundamental, pois também não teremos nunca garantias
de que um bom dispositivo se mantenha funcionando como tal. Depois de
um tempo, pode ser cooptado pela lógica da organização e voltar burocratizado
e funcional aos poderes instituídos. Por isso, em vez dos arranjos, muitos dos
exemplos que daremos podem ser atividades transitórias, que são postas em
ação segundo necessidade ou demanda, que depois de um tempo cessam e
dão lugar a outras. Algumas das que experimentamos em vários serviços são:
→ Cursos/capacitações/formação;
→ Análise/supervisão institucional;
→ Assembleias;
→ Planejamento de projetos;
→ Grupos-tarefa: destinados a desenvolver projetos pontuais e es-
pecíficos.
Planejamento analítico institucional: papel do apoiador
O planejamento em saúde constantemente se ocupou de operacio-
nalizar a equação meios-fins. Em várias propostas de planejamento desen-
volvidas durante anos na América Latina sempre se considerou que os fins
| 73 Humano, demasiado humano
já estavam definidos a priori (Onocko, 2001a). Ou seja, começava-se um
processo de planejamento com o projeto já definido (os fins). Dada essa
situação, o planejamento podia constituir-se num terreno tecnológico, em
que, com este método ou com aquele, se operacionalizavam meios e fins
(Programação em saúde, Planejamento estratégico situacional).
Pelo contrário, em nossa experiência de assessoramento em planeja-
mento a diferentes grupos e serviços comprovamos que, geralmente, o pro-
jeto não está pronto. As finalidades não estão definidas, ou existem dispu-
tas e controvérsias sobre elas no grupo.
Pensamos que um grupo só consegue embarcar num projeto comum
quando desenvolveu um espaço intermediário conjunto. Para sonhar um
futuro conjunto é necessário recriar a ilusão num território intermediário
(Onocko, 2001b). Nesse sentido, nossa proposta condiz com as ideias de
Testa (1995) para quem o importante é desencadear processos e não defi-
nir pontos de chegada.
E esta é uma tarefa que requer, segundo o referencial winnicottiano,
suporte (holding) e manejo (handing). Esse suporte, quando o pensamos
em relação ao planejamento, tem relação com o componente subjetivo dos
grupos que planejam. Alguém tem de suportar a outros em seu esforço de
constituição como grupo intersubjetivo.
Nesse novo papel, os planejadores de ontem precisam menos de
técnicas de planejamento, e mais de conhecimentos e formação para tratar
com pessoas. Sabendo o que está em jogo: identificações, ameaças narcísi-
cas, pactos denegatórios, etc. O deslocamento do eu ao nós é paradigmático
do mal-estar freudiano. Todos terão de pagar um preço para que a ilusão do
trabalho comum possa ser recriada. Como não se faz isso sem dor, é neces-
sário criar espaços suficientemente tróficos, que alimentem o grupo. Espa-
ços protegidos, mediados inicialmente por um terceiro, em que os temores
possam ser explicitados e o não dito possa ter um lugar em palavras. Espaço
no qual as questões de poder possam ser formalmente suspendidas por
alguns momentos.
Formalmente quer dizer no contrato, ou seja, em espaços como esse,
ninguém é chefe por umas horas. Simultaneamente ninguém deixa de ser
chefe, supô-lo seria uma ingenuidade sem medida. O que propomos é que,
durante esse espaço de tempo e encontro, essa qualidade (ser chefe) possa
74 | Humano demasiado humano
ser experimentada de maneira diferente. Só quando o lugar do chefe é
destituído formalmente do poder por algumas horas, é que esse lugar pode
aparecer em suas dimensões mítica e simbólica. Sem análise sobre essas
dimensões, nunca se operarão mudanças na estrutura formal do poder
institucional.
O papel de manejo, da forma que o pensamos quando aplicado ao
planejamento de projetos, tem relação com os oferecimentos. E nunca se
exercerá separado do de suporte. Quem entra nesse tipo de proposta deve-
rá ter o que oferecer. No caso dos serviços assistenciais que nos ocupam, as
questões derivadas dos modelos clínicos, suas formas de operar, as formas
de organizar o trabalho que lhe dão sustentação, etc. serão centrais. Portan-
to, deveremos saber o que fazer, ter caminhos para mostrar. Nosso handing
inclui outras competências, diferentes das dos analistas institucionais. Não
ofertamos somente analisadores.6 Ofertamos também arranjos institucio-
nais. Isso nos distingue.
Isso recoloca nossa ênfase nos projetos e não nos planos. Um plano
corresponde ao momento técnico de uma atividade, quando os recursos
podem e devem ser operacionalizados. Para fazer planos, as técnicas de
planejamento mostraram-se eficazes (PES, Zoop, etc.).
Mas para poder elaborar planos é necessário contar primeiro e antes
com um projeto. Atribuímos o caráter de fenômeno intermediário (transi-
cional) ao projeto, não ao plano. E defendemos que o projeto e sua possível
existência sempre terá relação com os sujeitos envolvidos em seu desen-
volvimento e suas relações intersubjetivas. O projeto tenta sua realização
como momento essencial e é guiado por um sentido. É no momento do
projeto que posso desejar projetar(me) com os outros para transformar o
mundo. Todo projeto parte de um desejo, e dirá Castoriadis: “tendo esse
desejo que é meu, só posso trabalhar para sua realização” (1986, p. 114).
Para apoiar a elaboração de projetos, um formato tecnológico fica
estreito. Já que nos ocupamos de trabalhar nessa linha, nunca teremos
certeza sobre a justiça dos meios e jamais o fim justificará os meios. Assim,
estaremos obrigados a sair dos formatos de métodos de planejamento
prescritivos, técnicos, e seremos estimulados a fazer práxis em nossa pró-
6 Para detalhes sobre o conceito de analisador, ver Lourau (1995).
| 75 Humano, demasiado humano
pria prática como apoiador institucional. Tarefa complexa, diferente da que
nos ensinaram em nossa formação como especialistas, e que só pode ser
possível se, ademais, nos abrimos a outros referenciais disciplinários. De-
fendemos que a interdisciplinariedade, como o jogar, também é possível
fazendo e não somente pensando. Outra atividade na qual o fazer é cons-
titutivo e que requer um lugar e um tempo.
Se talvez devamos, eu e os outros, encontrar o fracasso nesse cami-
nho, prefiro o fracasso numa tentativa que tem um sentido a um
estado que permanece aquém do fracasso e do não fracasso, que
permanece irrisório (Castoriadis, 1986, p. 113).
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76 | Humano demasiado humano
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E
Capítulo 4 O encontro trabalhador-usuário na atenção à saúde: uma contribuição da narrativa psicanalítica ao tema do sujeito na saúde coletiva*
Rosana Onocko Campos
Abordagem hermenêutica: crítica e narrativa
screver sobre os encontros é encarar o próprio paradigma da escrita.
Toda escrita é ao mesmo tempo um encontro e um desencontro. E toda
escrita somente poderá surgir de algum encontro. Ensina-nos Paul Ricœur
que todo texto “é a vinda à linguagem de um mundo” (1990). Portanto,
concordando com ele, diríamos que não há escrita que não tenha sido
provocada, produzida, pela vida real e concreta, ao menos para quem escreve.
Na sua proposta de uma hermenêutica crítica, Ricœur (1990) faz
algumas proposições, visando superar a divisão entre teórica crítica e her-
menêutica. Sua obra interessa-nos por produzir uma reconexão entre es-
colas do pensamento que em muito contribuíram metodologicamente nas
últimas décadas para alguns dos principais trabalhos da saúde coletiva
brasileira.
Achamos que há inovações importantes trazidas por Ricœur (op.
cit.), pois ele propõe uma síntese diferente, com interessantes pontos de
sutura, que não separam a crítica da hermenêutica, porém destacam a
inegável potência da crítica, de certa forma sempre já implicada no exercí-
cio hermenêutico.
A empreitada de Ricœur parte, fundamentalmente, da Escola de
Frankfurt (como expoente da teoria crítica, e notadamente da crítica de
* Publicado originalmente na revista Ciência e Saúde Coletiva, vol. 10, n.o 3, pp. 573-83,
2005. Reedição autorizada pelos Editores. 77
78 | O encontro trabalhador usuário na atenção à saúde
Habermas a Gadamer), e das elaborações sobre hermenêutica realizadas
por Gadamer em Verdade e método.
Dentre as principais contribuições de Gadamer (1997) nessa obra,
destacam-se as de “mundo do texto”, “história efeitual”, “tradição”, e o
reconhecimento da função positiva, como mola do movimento hermenêuti-
co, dos “preconceitos”. Se Habermas critica que o conceito de tradição é
conservador (pois a tradição é assentada sobre séculos de dominação, po-
der e trabalho), Gadamer também argumenta que é clássico aquilo que
permanece em face da crítica histórica. Talvez, poderíamos dizer, hoje, que
nossos clássicos mantêm-se vigentes, pois falam de algo que se repete.
Psicanaliticamente diríamos: os clássicos falam de nossa neurose no con-
temporâneo. Gadamer destaca o fato de que, ao lermos um clássico, ele
reatualiza-se na leitura, parecendo que diz algo especificamente dirigido a
quem o lê. Isso é o que Ricœur chama de agenciamento formal do texto. O
mais importante — nos diz ele — não é procurar segredos por trás do texto,
pois interpretar nada mais é que “explicitar o tipo de ser-no-mundo mani-
festado na frente do texto” (Ricœur, 1990).
Com Freud (1975) e Roudinesco & Plon (1998), trabalhamos a
interpretação como composta sempre de dois movimentos: a análise e a
construção. Às construções — que fazem, no dizer de Freud, uma espécie
de aposta na produção de sentido, a vinda à tona de uma nova história —
chamamos, junto com Ricœur, de narrativas. As narrativas, para este autor,
nada mais são do que “o agenciamento dos fatos, histórias não (ainda)
narradas” (Ricœur, 1997), mas que se podem ser contadas, é porque estão
já inseridas em alguma práxis social. Nessa linha, o que caracteriza uma
narrativa fundamentalmente é sua linha argumental, o màqoj (mitos): agen-
ciamento dos fatos.
Em trabalho anterior (Onocko-Campos, 2003a), consideramos que,
antes de assistir a uma mudança paradigmática (Kuhn, 1997), consegui-
ríamos descobrir o aparecimento de novas narrativas disciplinares. Talvez
possamos pensar a transição paradigmática como uma fase que poderia ser
preferencialmente estudada com a abordagem narrativa. Em relação ao
tema em estudo, arriscamos a hipótese de se tratar de um momento de
mudança nas abordagens clássicas sobre a subjetividade na atenção à saú-
de, no campo da saúde coletiva brasileira.
| 79 O encontro trabalhador usuário na atenção à saúde
No contexto da atenção à saúde, o tema dos encontros profissionais/
usuários é clássico e ao mesmo tempo novo no seu enfoque: “[. . .] o velho
e o novo crescem sempre juntos para uma validez vital [. . .])” (Gadamer,
1997). Tentaremos fazer uma análise hermenêutico-crítica desse tema.
Para isso, procuramos primeiro fazer uma reflexão sobre o tema dos encon-
tros, para depois fazer um breve percurso por algumas linhas narrativas
que nas últimas décadas problematizaram a questão. Voltamos a seguir ao
contemporâneo, às grandes cidades brasileiras, suas periferias e o contexto
do SUS, buscando aproximar algumas reflexões advindas da psicanálise ao
cenário atual. Ao final, recorremos à Julia Kristeva e sua conceituação da
experiência e da narrativa política à guisa de conclusão provisória.
O que é um encontro?
Diz o dicionário que encontro é o ato de encontrar. E que encontrar
é: deparar com, achar, dar com, atinar com, descobrir, achegar, unir, mas tam-
bém opor-se a, contrariar, chocar-se com (Ferreira, 1997). Pôr-se em contato,
portanto, sempre com resultado incerto. O encontro pode ser cordial ou
pode ser um rijo encontrão. Quem se contata com quem? Corpos e afetivi-
dades em jogo. Se entendermos por instituições as formações discursivas
que adquiriram valor de verdade, quantas instituições medeiam esse en-
contro quando se trata de uma situação de atenção à saúde?
Na saúde coletiva costumamos lembrar que o usuário sempre com-
parece a esse encontro movido por demandas mais ou menos explícitas,
munido de seu corpo e sua singular subjetividade. Mas são muito menos
frequentes os estudos que procuram analisar o que acontece com esse su-
jeito que um dia se transformou, por obra da academia, ou da vida, em um
trabalhador de saúde. Categoria que propositalmente, por enquanto, pre-
feriremos manter assim, ampla e mal definida de maneira que, neste
ponto de nosso estudo, caibam nela desde profissionais universitários até
agentes de saúde e pessoal da recepção. Isso não pressupõe apagar suas
diferenças em relação às divisões técnicas e sociais do trabalho, mas manter
aberta a possibilidade de pensar alguns aspectos da subjetividade dessas
pessoas que, com graus de qualificação diversos, compartilham o espaço de
trabalho nos serviços de saúde.
80 | O encontro trabalhador usuário na atenção à saúde
Algumas linhas narrativas que pensaram esse encontro
Pretendemos a seguir mapear algumas linhas narrativas, não com o
objetivo de fazer um estudo exaustivo ou historiografia, porém com o intuito
de poder situar em relação a elas nossa própria contribuição narrativa, “[. . .]
num sentido verdadeiramente hermenêutico, isto é, com a atenção posta no
que foi dito: a linguagem em que nos fala a tradição, a saga que ela nos
conta” (Gadamer, 1997). Portanto, procuraremos nelas os traços fundamen-
tais de uma estrutura argumentativa e ilustrá-las-emos com alguns exemplos
de autores, sem desconsiderar que o rico universo de produção dessas li-
nhas narrativas é muito mais amplo do que pode ser abordado neste estudo.
Para tentar situar nossa própria produção, é importante recuperar na
tradição a linha que chamarei de “medicina social latino-americana”, cujo
marco, segundo Fleury (1992), foi a Conferência de Cuenca. Ali houve
uma clara crítica à forma predominante de organização da prática médica.
Desde os estudos de Juan César García sobre educação médica, passando
pelo termo cunhado por Menéndez (1992) — “modelo médico hegemôni-
co” —, a crítica aprofundou-se com a entrada em cena das ciências sociais
na área da saúde, dedicando grande parte de sua produção, nas décadas de
1970-1980, a questionar o positivismo vigente, a denunciar a falta de
consideração de outras categorias e adentrando-se ferrenhamente num
certo furor preventivista de viés histórico-estrutural.
Como destaca Fleury, “o paradigma histórico-estrutural no campo
da saúde, partindo do reconhecimento da insuficiência das teorias prece-
dentes para darem conta da explicação dos determinantes do processo de
saúde e doença e da organização social da prática médica, procurou na
relação entre medicina e estrutura social o caminho para tais explicações”
(1992). Essa linha não produziu estudos sobre o encontro assistencial que
incluíssem o corpo e a subjetividade de profissionais e de usuários como
categorias de análise.
É a partir da medicina social latino-americana que a “saúde coletiva
brasileira” (Onocko-Campos, 2003a) conforma-se como uma linha narra-
tiva original que desabrocha em uma rica produção teórica, em núcleos de
pós-graduação e pesquisa e em elaborações originais que pouco a pouco a
diferenciam, por sua riqueza e volume, da produção latino-americana.
| 81 O encontro trabalhador usuário na atenção à saúde
Duas décadas passadas, essa linha conta no seu acervo com clássicos
(no sentido gadameriano) do peso de Cecília Donnangelo (1975) e Sérgio
Arouca (2003). Não é o propósito deste artigo fazer uma análise exaustiva
dos numerosos autores da saúde coletiva brasileira, porém pretendemos,
ancorados nesses dois exemplos, caracterizar a narrativa produzida em
relação à subjetividade no encontro assistencial. E é possível vermos, assim,
partindo dos estudos pioneiros de Donnangelo sobre o trabalho médico, ou
da crítica de Arouca no Dilema preventivista, que pouco se pensava, nos
anos 1970, na subjetividade e no corpo dos trabalhadores da saúde e que
o tema da clínica ficou fora das análises, a não ser para contrapô-la às ações
coletivas. Essa linha, preocupada com a crítica, produziu intensos questio-
namentos sobre a clínica, a biologização excessiva das práticas e chamou
muito bem a atenção para o processo de construção sócio-histórico das
categorias operatórias dominantes (Luz, 2000).
Herdeira do referencial teórico estrutural-marxista, outros trabalhos
já mostraram que a saída da hegemonia desse referencial teórico deu-se a
partir da incorporação de novos referenciais teóricos e metodológicos entre
o fim dos anos 70-80 (Burlandy & Bodstein, 1998), dando entrada a
categorias como cotidiano e representação social, na tentativa de alargar o
debate em relação às explicações macroestruturais.
É na década de 1990 que essa questão entra na pauta das argu-
mentações de alguns autores. Abordados do ponto de vista do sofrimento
dos técnicos (Pitta, 1990) ou da incorporação do tema da clínica (Campos,
1991) sob várias formas de organização (Gonçalves, 1994), essa temática
começa a ser abordada no fim dos anos 80 e tem sido cada vez mais incor-
porada nos últimos anos (Carvalho, 2003; 2002; Minayo, 1995).
Já a finais dos anos 1990, o tema da subjetividade destaca-se e
temos, assim, uma produção que começa a argumentar sobre essas ques-
tões (Campos, 1994; 2000; Ayres, 2001; Merhy, 1997; Luz, 2000). A
discussão sobre a reformulação dos modelos assistenciais, como bem mos-
tram alguns autores, é recente e mais retórica que prática (Vasconcelos,
2005). Em alguns trabalhos anteriores, argumentamos que a reforma
da clínica e a mudança do modelo assistencial são questões importantes
de serem encaradas em prol da eficácia do SUS (Onocko-Campos,
2003a; 2003b).
82 | O encontro trabalhador usuário na atenção à saúde
Poderíamos afirmar que, no interior da grande narrativa constituída
pela saúde coletiva brasileira, algumas linhas narrativas começam a se dife-
renciar; elas caracterizam-se precisamente por destacarem nos seus argu-
mentos aspectos pouco explorados pela produção clássica, cujo destaque se
produz do encontro com as práticas no SUS, no seu percurso histórico.
Diz Gadamer (1997) que são o presente e os seus interesses os que
fazem o pesquisador voltar-se para o passado, para a tradição. Assim, não
é de estranhar que no século XXI os autores comecem a problematizar
aspectos antes negligenciados.
A partir do tema da subjetividade esboça-se uma preocupação com
as instituições de saúde. L’Abbate (2003) mostra que há uma relação entre
“análise institucional” e saúde coletiva: há a análise institucional na saúde
coletiva e da saúde coletiva; e há também a saúde coletiva como instituição.
Contudo, a entrada do chamado — no Brasil — institucionalismo foi muito
mais estimulada pelo movimento da Reforma Psiquiátrica que pelo da
Reforma Sanitária (Luz, 2000). Nascidos de um momento político comum,
os dois movimentos ora se aproximam, ora se separam (Furtado & Ono-
cko-Campos, 2005). No Brasil, várias correntes como a socioanálise, esqui-
zoanálise e psicoterapia institucional combinaram-se de formas diversas e
pouco ortodoxas para caracterizar o que alguns autores têm chamado de
institucionalismo (Rodrigues, 1993).
Todavia, é preciso reconhecer que essas contribuições tiveram relati-
vamente pouca penetração. Talvez seja por se valer de um referencial teó-
rico que não fazia parte das disciplinas clássicas estudadas pelos sanitaristas;
o fato é que esse conjunto de referenciais que tem grande potência para
pensarmos as relações entre as pessoas e as instituições continua pouco
explorado na saúde coletiva até hoje.
Algumas categorias da psicanálise
na busca de novas narrativas
Alguns autores, ainda, transitaram o caminho entre saúde coletiva e
“psicanálise” (Birman, 1980; Campos, 1994, 2000; Figueiredo, 1997). A
redescoberta do tema do sujeito faz-nos insistir em trilhar esse caminho.
Procuramos aproximar alguns conceitos dessa disciplina e da psico-
patologia institucional ao campo da gestão em saúde.
| 83 O encontro trabalhador usuário na atenção à saúde
Na ética que caracteriza a psicanálise, todo sujeito é mais do que
portador do cogito cartesiano. A descoberta do inconsciente por Freud mar-
cou uma das grandes quebras da modernidade na opinião de alguns au-
tores (Benasayag & Charlton, 1993). Assumir que as pessoas, os traba-
lhadores de saúde, também agem movidas por reações inconscientes, que
elas próprias desconhecem, e sobre as quais não detêm o controle mudará
nossa forma de abordar os equipamentos de saúde e as relações que ali
se desenvolvem. O reconhecimento da dimensão inconsciente mudará
nossas análises.
Portanto, seria importante neste ponto fazer uma distinção (não sen-
do uma separação) entre psicanálise e hermenêutica. Para a hermenêutica,
lidamos conscientemente o tempo todo com um conjunto de valores de cujo
significado não nos damos conta imediatamente, mas ao qual poderíamos
aceder por meio da reflexão sistematizada. Para a psicanálise, porém, esta-
ríamos fadados a desconhecer para sempre uma porção de nós mesmos. O
nosso inconsciente irrompe quando menos o esperamos no meio de nossa
ação mais racional. Não se trata, portanto, de uma polaridade consciente/
inconsciente que se corresponderia com outra racional/irracional, mas de
assumirmos o ser humano como um ser que nunca será absolutamente
dono de si, um ser “barrado” que não pode tudo, e nunca terá a certeza de
conhecer apuradamente o rumo do seu desejo.
Alguns autores puseram em contato a concepção do homem como
sujeito do inconsciente e a vida na instituição (Enriquez, 1997; Motta &
Freitas, 2000). Segundo Kaës (1991), a instituição funciona para o psiquis-
mo como asseguradora de funções da vida social e psíquica (como a mãe) “é
uma das razões do valor ideal e — necessariamente persecutório — que ela
assume tão facilmente”.
Ser um trabalhador da saúde, do SUS, e acreditar no valor positivo do
próprio trabalho constituem funções estruturantes da subjetividade e aju-
dam a suportar o mal-estar advindo das tarefas coletivas (mal-estar inevi-
tável, segundo ensinou Freud, 1997).
Kaës (1991) chama isso de aderência narcísica à tarefa primária. Ou
seja, os sujeitos “necessitam” identificar-se favoravelmente com a missão do
estabelecimento no qual trabalham, acreditar que seu trabalho tem um
valor de uso (Campos, 2000). Quando o contexto de trabalho põe entraves
84 | O encontro trabalhador usuário na atenção à saúde
à tarefa primária, seja por falta de recursos humanos, de materiais ou por
excesso de autoritarismo gerencial (Campos, 2000), os sujeitos valem-se
de estratégias defensivas para atenuar o próprio sofrimento psíquico. Al-
gumas delas: apelo excessivo à ideologização, somatização, burocratização,
desenvolvimento de estados passionais. . .
O termo paixão descreve muito bem o intenso sofrimento psíquico,
próximo dos estados psicóticos, que ali [na instituição] se experi-
menta, é o transbordamento da capacidade de conter e ser contido, a
capacidade de formar pensamentos é paralisada e atacada: a repeti-
ção, a obnubilação servem de cobertura a ódios devastadores, contra
os quais surgem defesas por fragmentação [. . .] (Kaës, 1991).
Quantas vezes não dizemos da dificuldade das equipes em traba-
lhar conjuntamente, das falhas de comunicação, do conteúdo excessiva-
mente ideologizado de certas defesas do SUS, em cujo nome, e segundo a
ocasião, tudo pode ou tudo não pode?
Tentamos mostrar que esses sintomas institucionais são produzidos
pela própria realidade do trabalho; pelo próprio contato permanente com a
dor e a morte e a dificuldade de simbolização que situações como a pobreza
extrema nos provocam.
Nos equipamentos de saúde e educação acontecem processos de
identificação entre trabalhadores e usuários. Se a população da área de
abrangência é vista como pobre, desvalida, desrespeitada, sem valor, após
um tempo, a própria equipe se sentirá assim. Pensamos que mecanismos
como esse estão por trás da produção de impotência em série de que adoe-
cem muitas equipes de saúde. Também pode acontecer que, na tentativa
de se defender desse espelho desagradável, a equipe se feche tentando
uma discriminação maior entre o nós e os outros, e assim a equipe monta
fortes barreiras que evitam pôr-se em contato com aquilo que tanto dói.
Ou, pior ainda, pode tornar-se agressiva e retaliadora com os usuários.
Se isso é assim, o que lhes receitaremos? Divã para todos os traba-
lhadores? Maior comunicação (e então como ajudar a comunicar o que
permanece inominável?). Doses maiores e deliberadas de boa vontade?
Faremos, acaso, mais apelos ideológicos na defesa do SUS?
| 85 O encontro trabalhador usuário na atenção à saúde
Lidar competentemente com essas dimensões também requer com-
petência técnica. Ensina-nos Oury (1991) que no trabalho não se trata
simplesmente de relações individuais com alguém, e de que o trabalho de
equipe precisará sempre levar em conta os outros e a si próprio, mas que
deve sempre ser tomado no âmbito que lhe é mais específico: um espaço
onde “possa acontecer alguma coisa”.
Kaës (1991) propõe criar dispositivos de trabalho que permitam
restabelecer um espaço subjetivo conjunto, uma área transicional comum,
relativamente operatória.
Temos defendido que a gestão poderia exercer essa função, mas,
para isso, ela precisa constituir-se como uma instância, como um lugar e um
tempo, onde e quando se possa experimentar a tomada de decisões coleti-
vas e analisar situações com um grau de implicação maior em relação ao que
é produzido (Onocko-Campos, 2003c).
Portanto, seria necessário incorporar novas disciplinas na formação
de gestores e planejadores que lhes permitissem entender as várias dimen-
sões com que estão lidando na hora das decisões e conflitos no palco grupal,
pois não se trata somente de criar espaços de fala e trocas autorreflexivas
que propiciariam a democratização e um grau de análise maior das práticas,
coisa por si já importante. Trata-se de poder compreender também que
esses espaços são frequentemente locus de apresentação de uma mise-en-
-scène de estados pulsionais inconscientes.
Oury destaca a importância de reconhecermos essa dimensão in-
consciente nas relações de trabalho:
Ora, na própria equipe já existe uma forma de colocar em prática
permanente as relações complementares, assim como as comple-
mentaridades (mas não as complementaridades tais como: “sou es-
pecialista nisso, ele naquilo, etc. . .”). Trata-se, com efeito, de um
registro quase material: de um lado a articulação de diferentes com-
petências, de outro as condições de uma certa forma de convivência.
Aí existe uma armadilha: não se trata de uma complementaridade
mais ou menos romântico-moderna, do gênero “estamos todos do
mesmo lado”, que se perde no especular, mas de uma complementa-
ridade inconsciente (Oury, 1991).
86 | O encontro trabalhador usuário na atenção à saúde
Gestão-subjetividade-clínica
Qual seria a saída para o SUS se não houvesse uma profunda refor-
mulação da clínica que nele se pratica? Teria o Estado brasileiro as condi-
ções para financiar um sistema de caráter universal nos moldes, por exem-
plo, do modelo norte-americano? E, ainda, imaginando que houvesse
recursos sem fim, seria justo submeter a população a tal grau de medicali-
zação, que beira a iatrogenia?
Recentemente, tem-se reavivado o debate sobre a integralidade. É
interessante esse ponto, pois durante anos a grande diretriz do SUS a ser
conquistada foi a do acesso. E devemos reconhecer que houve avanços em
relação ao acesso, contudo, muitas vezes se avançou sem interrogar acesso
a quê (Onocko-Campos, 2003a, 2003b).
Na moda de finais dos anos 1990, no furor pela eficiência e pelo
Estado mínimo, praticamente se eliminou a discussão sobre a eficácia das
práticas de saúde, e isso se viu agravado por um certo discurso pós-moderno
que, amparado em forte relativismo, desqualificou as análises técnicas.
Todavia, é preciso reconhecer — no caso dos encontros assistenciais,
da clínica — que sempre haverá uma dimensão técnica do trabalho en-
volvida. O recalcamento de algumas categorias é sempre interessante de
ser interrogado. Por exemplo, o tema do cuidado tem sido muito abordado
ultimamente. Entendo que vários autores procuram com isso chamar a
atenção para a dimensão não técnica sempre (também) envolvida nos en-
contros assistenciais. Valorizar o aspecto intersubjetivo, comunicativo, as
chamadas tecnologias leves (Artman, Azevedo & Castilho Sá, 1997; Ayres,
2001; Rivera, 1995, 1996; Merhy, 1997). É essa uma questão premente e
importante no desenfreado consumo de tecnologias duras que o mercado
médico tem colocado, sem dúvida.
Porém, gostaríamos de chamar a atenção para o caráter de recalcado
da categoria clínica. A psicanálise ensina-nos a ficar atentos ao que “não se
fala”. Eliminarmos a problematização sobre qual é a clínica que se faz nos
equipamentos de saúde acarreta o risco de banalizarmos a importância dos
aspectos técnicos do trabalho. O que diferencia os trabalhadores de saúde
do restante da população no que se refere a valor de uso (e de troca) de sua
própria força de trabalho é a qualificação técnica e é, sempre, “um dado
| 87 O encontro trabalhador usuário na atenção à saúde
saber”. Mas, também, acarreta o risco de não problematizarmos a clínica
como uma disciplina que, precisando sempre de uma sólida ancoragem
teórica, não se esgota na sua dimensão técnica, devendo sempre ficar aten-
ta à produção tanto de acolhimento quanto de desvio, como muito bem
chamaram a atenção Passos & Benevides (2001).
Trabalharmos em prol da transdisciplinaridade, buscarmos relações
mais horizontalizadas de poder entre os diversos saberes (médico, popular,
alternativos, psi, etc.) não nos deveria ofuscar o reconhecimento do avanço
que o domínio de certa competência técnica traz à produção de saúde, no
tratamento e reabilitação de algumas doenças. Sendo críticos com uma
leitura tecnicista da saúde, porém, desejamos ressaltar que, a nosso ver, é
fundamental não descartar a clínica e sua qualidade técnica, como se fosse
o bebê com a água do banho.
Essa questão parece-nos central, também, porque a definição de
quais meios técnicos um dado trabalhador possui, ou não, na sua prática,
será fundamental tanto para a eficácia dessas práticas quanto interferirá
também no grau de resistência e tolerância com que o sujeito em questão
conta para enfrentar o dia a dia em contato permanente com a dor e o
sofrimento.
Deter o domínio de uma ou várias técnicas não é bom ou ruim em si.
Segundo tentamos mostrar, dependendo do seu funcionamento, do tipo de
processos de subjetivação que um dado equipamento favorece ou não, a
técnica poderá constituir-se em alavanca de novos processos criativos, aber-
tos à diversidade, acolhedores da diferença; ou funcionar como receita pres-
critiva, guarda-chuva defensivo contra aquilo que no outro nos ameaça.
Mas isso não é uma qualidade da técnica, dependerá do contexto de expe-
rimentação da técnica em questão.
Oury destaca claramente essa função em relação à clínica:
[. . .] exige uma disposição particular que se adquire pelo exercício
de uma “tekné”, espécie de atenção trabalhada que a torna sensível
à qualidade do contexto, à polifonia dos discursos, às manifestações
paradoxais de um sentido iluminado. Aí está um dos objetivos funda-
mentais a que uma formação bem conduzida poderia se propor. Para
desvendar tal ou tal forma de manifestação patológica é preciso estar
88 | O encontro trabalhador usuário na atenção à saúde
“advertido”. Problema banal semelhante à aprendizagem da escuta
dos barulhos do coração: se não estamos preparados, não adianta
escutá-los com o estetoscópio, pois não ouvimos senão ruídos con-
fusos (Oury, 1991; grifo nosso).
Digamos que o trabalhador de saúde que não conte com razoável
formação técnica será submetido a mais um fator de sofrimento, a angústia
que provoca o “nada saber”, ou, no dizer de Oury, o fato de não estar
advertido. Quando a insegurança técnica é grande, toda demanda é ampli-
ficada, não é possível discernir em relação a riscos e urgências. Tudo se torna
tão intenso que, para aplacar essa angústia, tudo acaba por ser banalizado,
caracterizando uma das formas da burocratização. Também, essa insegu-
rança está por trás dos mecanismos que perpetuam certos usos do poder na
instituição, como, por exemplo, o excessivo poder médico: se eu nada sei,
suponho que outro saiba, delego a ele o saber e o poder. . . Por esses argu-
mentos todos, consideramos os trabalhadores menos qualificados, do ponto
de vista técnico, mais vulneráveis a sofrimento psíquico no contexto dos
equipamentos do SUS que analisaremos a seguir.
Os conhecimentos técnicos teriam, na nossa argumentação, duas
funções produtoras de eficácia: uma específica na produção de saúde dos
usuários, e outra importante na produção de saúde dos trabalhadores. Eles
poderiam ser a mola da ampliação da clínica (Campos, 2003), do resgate da
dimensão do cuidado, da melhora nos processos intersubjetivos de
comunicação, etc.
Cremos, portanto, que, em saúde, a ampliação da clínica é uma ques-
tão de eficácia do sistema e, sendo preciso diferenciar, é sempre necessário
não separar, nem dissociar a questão clínica das formas de organização do
trabalho e sua coordenação (gestão). E a gestão estará sempre entrelaçada
às questões subjetivas.
Por que gestão-subjetividade? O contato
com o irrepresentável da miséria, no contemporâneo
Detenhamo-nos brevemente, então, para analisar a que está expos-
to um trabalhador de saúde na periferia das grandes cidades brasileiras no
contemporâneo, no SUS.
| 89 O encontro trabalhador usuário na atenção à saúde
Se estar em contato significa expor-se a afetos e, portanto, a ser
afetado, deveríamos pensar na realidade dos grandes bolsões de pobre-
za. Quem trabalha nesses locais sabe quão difícil resulta colocar-se em
contato com tanta intensidade cotidianamente. Não estamos falando
somente da já dura experiência (que podemos ter em qualquer hospital
universitário) de conviver com a dor e a morte, o excesso de demanda, a
falta de recursos.
O grau de miserabilidade dessas populações extrapola nossa capaci-
dade de resistência. Uma coisa é saber — em tese — que o Brasil é um país
cheio de pobres. Outra bem diferente é tentar uma intervenção terapêutica
com pessoas que estruturaram sua própria resistência à morte por meio de
formas de subjetivação que não conseguimos compreender. Uma mãe que
não demonstra preocupação com seu filho gravemente enfermo e malnu-
trido. Um contexto em que vida e morte (tráfico, violência material e subje-
tiva) significam outra coisa e não a que estamos costumados a entender.
Desejamos destacar a intensidade dessa experiência e a sua singularidade.
O grau de esgarçamento simbólico que percebemos em algumas dessas
comunidades, nas quais, por exemplo, em vez de conversar, mata-se, põe
em xeque todas as nossas propostas interpretativas. Falta-nos suporte,
arcabouço conceitual ou categorial para a saúde coletiva poder de fato
apoiar os seus agentes nesse percurso. É nessa busca que trabalhamos com
a ideia da gestão como importante produtora de processos de subjetivação.
A gestão como produtora de passagens, para dar cabida a tanta intensida-
de como há no trabalho em saúde na rede pública.
Às vezes, afirma-se que os usuários não estão preocupados com os
destinos do SUS, que estão desapropriados dele. Discordamos: eles não
estão desapropriados do que lhes interessa ou daquilo que lhes diz respei-
to às suas próprias estratégias de sobrevivência. Montar serviços de saú-
de, criar PSFs são estratégias nossas. Eles não têm de se apropriar. A mãe
do menino desnutrido não está desapropriada de nada, ela inventa uma
forma de resistir.
Por isso, a relação equipes/população deve ser mediada por ofere-
cimentos (Campos, 2000). Um oferecimento é como um cavalo encilha-
do passando. A nossa função é multiplicar as oportunidades para que
algumas pessoas o montem. É uma questão ética: nós não saberíamos
90 | O encontro trabalhador usuário na atenção à saúde
sobreviver a situações que vemos nos bolsões de pobreza das grandes
cidades brasileiras. Eles sabem. Nós que temos muito que apreender.
Nós só podemos ofertar nossa diferença, nosso estranhamento como
um convite a experimentar outras formas de ser na comunidade. E não
porque a nossa seja melhor, senão porque temos um compromisso ético
em desviar a produção em larga escala de miseráveis. Tudo o que é vivo
resiste. E muitas dessas comunidades inventaram estratégias muito efica-
zes de reprodução. De fato, vários séculos de Brasil não conseguiram elimi-
ná-los. Nossa estratégia é desviar essa reprodução e pô-la na trilha da
produção do novo. . . Talvez seja a única coisa que nos dê um pouco de
consistência.
Nesse contexto, em publicações recentes, afortunadamente destaca-
se a ideia da integralidade. E aí se põe a questão sobre qual o conceito de
integralidade que permeia a clínica. É a integralidade dos encaminhamen-
tos? Nada como um bom encaminhamento para nos proteger do estranha-
mento de nos pormos em contato. . . Cada vez que um caso cria alguma
angústia na equipe ele é encaminhado à outra, até que esta não aguente
mais o medo, ou a sensação de impotência e assim vai. . . à deriva, derivado
para sempre. Contudo, muitas equipes defensivamente chamariam isso de
integralidade, pois sempre há para onde encaminhar. A integralidade está,
a nosso ver, profundamente relacionada com a ampliação da clínica para
além do puramente biológico, na direção dos riscos subjetivos e sociais
(Campos, 2003).
É claro que não estamos com isso desconhecendo os gargalos do
SUS. Em muitos locais não há para onde encaminhar, ou não há vagas para
procedimentos importantes; esse continua a ser um entrave do sistema
como macropolítica.
Contudo, a solução macropolítica, por si só, sempre será insuficiente
(a oferta gerando cada vez mais demanda), se não operarmos desvios nas
formas de produzir saúde. Por isso, sustentamos que a gestão tem um
compromisso de dar um certo suporte, de criar instâncias de análise para as
equipes. Mas isso no sentido psicanalítico, ajudando a compreender que o
turbilhão de emoções que nos acompanha no trabalho é inseparável de
nossa condição de humanidade. Como diz Kaës “sofremos também, na
instituição, por não compreendermos a causa, o objeto, o sentido e a própria
| 91 O encontro trabalhador usuário na atenção à saúde
razão do sofrimento que aí experimentamos” (Kaës, 1991). Será que a
gestão nos pode ajudar nessa tarefa?
Cremos que isso não será possível na dimensão e escala que a reali-
dade brasileira hoje nos demanda, se não nos valermos de alguns dispo-
sitivos para propiciar a tomada de consistência.
Diretrizes como as de responsabilização, resolutividade e acolhimento
poderiam funcionar como uma espécie de operador lógico (Oury, 1991)
para a reorganização dos serviços em prol da ampliação da clínica e da
humanização da atenção à saúde.
Para conseguir operar com diretrizes como operadores lógi-
cos (disparadores de análises e mudanças, e não como camisas de força
ideológicas), seria necessário criar nos equipamentos uma certa ambiên-
cia. Ambiência que não dependeria de engenharias cosméticas nos
prédios e salas de espera, porém, no dizer de Oury, seria constituída
pelas “maneiras da civilização local que permitem acolher o insólito”. Para
esse autor,
[. . .] poder decifrar naquilo que se apresenta o que é importante
acolher, e de qual maneira acolhê-lo. A função de acolhimento é a
base de todo trabalho de agenciamento [. . .] Não se trata, certa-
mente, de se contentar com uma resposta “tecnocrática” tal como
função de acolhimento = hóspede de acolhimento! O acolhimento,
sendo coletivo na sua textura, não se torna eficaz senão pela valorização
da pura singularidade daquele que é acolhido. Esse processo pode-se
fazer progressivamente, por patamares, e às vezes não é senão ao fim
de muitos meses que ele se torna eficaz para tal ou tal sujeito [. . .] à
deriva (Oury, 1991; grifo nosso).
Como vemos, tais mudanças desejáveis nos encontros assistenciais
requerem intervenções complexas (no sentido do grande número de variá-
veis) e de grande investimento técnico, ético e político. Não acontecerão
somente com boa vontade, não demoram somente por causa de falhas na
comunicação, nem por “falta” de humanização. Mas bem acontecem por
inevitável humanidade dos humanos ali envolvidos.
92 | O encontro trabalhador usuário na atenção à saúde
Volta à abordagem metodológica,
da hermenêutica-crítica à narrativa política
Gadamer (1997) põe o tema da aplicação logo antes da discussão
sobre saber ético e saber técnico. Ele afirma enfaticamente que seria falso
pensar que com o desenvolvimento tecnológico poderíamos prescindir da
reflexão ética. Pensamos que no âmago dessa discussão, e na sua elabora-
ção sobre o destaque do objeto (lembrando que, para esse autor, são o
presente e os interesses do pesquisador os que operam o “destaque”), está
a questão da práxis. No universo gadameriano há sempre uma relação já
existente entre linguagem e ação. Essa é a causa pela qual a hermenêutica
está sempre em busca do sentido, à diferença de certos ramos da linguística
preocupados com a estrutura da linguagem.
Gadamer diz-nos: “aquele que atua lida com coisas que nem sempre
são como são, pois que são também diferentes [. . .] Seu saber deve orien-
tar sempre seu fazer” (1997). Parece-nos importante destacar esse aspecto
que vincula indissociavelmente a práxis à ética. Sempre que nos depara-
mos com dilemas éticos é em relação a alguma ação, raramente a um discur-
so. A retórica está salva dessas indagações, ou senão não existiriam os
sofismos. À retórica interessa convencer e não a busca da verdade. Destar-
te, enquanto a retórica afirma, a hermenêutica interroga.
Recentemente Julia Kristeva, reflexionando sobre “as novas doenças
da alma”, interpela-nos: “Você tem uma alma? Essa pergunta — filosófica,
teológica ou simplesmente incongruente — encerra hoje uma nova dimen-
são. Confrontada aos neurolépticos, à aeróbica e ao massacre da mídia, a
alma ainda existe?” (2002a).
Para essa autora, toda interpretação é uma “revolta” (Kristeva, 2000).
Na etimologia da palavra revolta, lembra-nos, está contida a acepção “rejei-
ção da autoridade” (autores como Foucault e Nietzsche teriam concorda-
do). Gadamer, na sua elaboração sobre o mundo do texto, afirma que não é
fácil pensar que o que está escrito não seja verdade. O próprio movimento
de fixação pela escrita outorga ao texto escrito um estatuto de autoridade.
Mas, para ele, a autoridade é algo que aceita ser inspecionado e não uma
submissão. É na volta à tradição, na escuta das múltiplas vozes com que ela
nos fala que podemos achar a nossa própria voz.
| 93 O encontro trabalhador usuário na atenção à saúde
Kristeva lembra-nos que somos indivíduos e há muito tempo. Hou-
ve de fato, na modernidade, diversas figuras da subjetividade e diversas
modalidades do tempo. Dentre elas, a psicanálise nos diz que a felicidade
só existe ao preço de uma revolta: “A revolta que se revela acompanhando
a experiência íntima da felicidade é parte integrante do princípio do prazer.
Aliás, no plano social a ordem normalizadora está longe de ser perfeita e
gera os excluídos [. . .]” (Kristeva, 2000).
Portanto, esta autora chama-nos a atenção para a necessidade de
uma cultura-revolta numa sociedade que vive, se desenvolve e não estag-
na. Para ela, quando essa cultura não existe, a vida transforma-se em uma
vida de morte, de violência física e mortal, de barbárie. Não é interessante,
nesse momento, voltar a refletir sobre a periferia das grandes cidades bra-
sileiras, as relações equipes-usuários que tentamos mapear acima, e a for-
mulação de políticas públicas à luz das questões trazidas por Kristeva?
Tenho dúvidas sobre se a palavra barbárie, oferecida pela autora,
seja a mais apropriada para se pensar na miséria brasileira. Contudo, care-
cendo de maior criatividade, penso que pelo menos seria uma tentativa de
tirar a situação de seu caráter inominável. Parece-me que poderíamos acei-
tar uma frase do tipo: a produção em larga escala de miseráveis no Brasil
constitui-se em uma barbárie.
O dicionário diz que barbárie vem de barbaria, “selvageria, cruelda-
de, atrocidade, barbaridade, barbarismo”. Talvez devamos dizer, narrar de
novo e de outra forma essa atrocidade que no contemporâneo se apresenta
naturalizada. Sabemos que é produzida, não é “natural”. E é preciso uma
certa revolta para poder recuperar a “experiência íntima de felicidade” no
laço social. Operação que só pode acontecer no “interesse”: entre a palavra
e a ação (Kristeva, 2002b).
Para essa autora, o “inter-esse” é próprio da política, e assim ela volta
a pôr em contato a narrativa e a política: “É pela narrativa, e não pela língua
em si (que não lhe perdura menos como via e passagem) que se realiza o
pensamento político” (Kristeva, 2002b). Lembra-nos com isso que a narra-
tiva é sempre memória da ação e estranheza incessante. A ação nunca é
possível no isolamento desde que sempre estará inserida no mundo social.
Portanto, seria preciso ainda fazer uma outra tarefa: “Ultrapassar a noção
de texto, [. . .] Hei de me esforçar para introduzir, em seu lugar, a noção de
94 | O encontro trabalhador usuário na atenção à saúde
experiência, que compreende o princípio de prazer e o de renascimento
de um sentido para o outro, e que só seria possível compreender à luz da
experiência-revolta” (Kristeva, 2000).
Experiência que, para essa autora, a psicanálise poderia propiciar a
cada sujeito humano individualmente.
Tentamos alinhavar uma narrativa que argumenta que a psicanálise
também teria uma contribuição a dar no contexto da saúde coletiva brasi-
leira, dos encontros entre trabalhadores e usuários, e nas instâncias de
gestão do cotidiano. Procuramos mostrar as potencialidades que algumas
categorias da psicanálise poderiam trazer para os nossos serviços de saúde.
O de um reconhecimento de um sentido para o outro que não se baseie
no recalque de nossa afetividade, que possa aceitar um certo grau de mal-
-estar, precisamente porque inserido no laço social.
E, na trilha aberta por Kristeva, autorizar-nos-íamos a dizer que
o que traz para o texto sua dimensão ética é constituir-se em uma narra-
tiva política, aliás, única maneira de constituir uma memória organizada
desde os tempos de Péricles. Assim, queremos deixar nossa contribuição
na Saúde Coletiva brasileira, nossa maneira de responder metodológi-
ca, teórica e praticamente à pergunta de Kristeva: sim, ainda temos uma
luta e uma alma.
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N
Capítulo 5 Clínica: a palavra negada sobre as práticas clínicas nos serviços substitutivos de saúde mental*
Rosana Onocko Campos
as últimas décadas, poucos trabalhos no campo sanitário brasileiro
levantaram a importância da clínica nos serviços públicos de saúde.
Contudo, poderiamos reconhecer que as questões médicas e sanitárias
encontram-se interligadas desde o século XVIII (Snow, Vigilancia Sanita-
ria alemã, Wirchow, etc.).
Segundo Foucault (1989), a estruturação da clínica contemporânea
aconteceu no século XIX, e, pelo menos na França, a clínica moderna se
constitui sobre bases anatomopatológicas, morfológicas, ou seja, desde a
sua origem estrutura-se como um certo “olhar”.
Já no começo do século XX, com as elaborações de Freud, a escuta
entra em cena: o pai da psicanálise dirá que as histéricas têm o que dizer. O
advento da psicanálise é o resgate da escuta. Mas essa escuta permanecerá
até hoje descolada do olho que examina.
Freud inventa o espaço psicanalítico no movimento de ruptura com
a rotina da consulta médica e a entrevista terapêutica. Aquilo que,
como é costume sustenta o vínculo estabelecido no face a face fica
agora suspenso: o olhar, a presença frontal dos corpos, sua semiótica
postural e gestual (Kaës, 1997, p. 50).
* Publicado originalmente em Saúde em Debate, Rio de Janeiro, vol. 25, n.o 58, pp. 98-
111, mai.-ago. 2001. Reedição autorizada pelos Editores. 97
98 |Clínica: a palavra negada
Assim, criam-se settings diferentes para escutar e para ver. O doente
é também, e nesse mesmo movimento, cindido na suas dimensões subjeti-
va e biológica.
Em América Latina, desde a década de 1960, desenvolveu-se com
grande ênfase a epidemiologia social, que deriva em uma — assim chama-
da — medicina social, que não conseguiu desenvolver uma proposta clíni-
ca. Nesse caso, o escopo do olhar abriu-se tanto que ele já não mais enxer-
gava os indivíduos: os problemas de saúde seriam problemas dos grupos e
comunidades. E deve-se reconhecer que, apesar das críticas empreendidas
pela medicina social à clínica (pela redução do social com que a clínica
opera), a própria medicina social, constituída ela mesma sobre bases epide-
miológicas, atribuiu-se o direito de definir necessidades sociais, estruturan-
do-se também como um certo “olhar”. Neste enfoque podem ser olhados
grupos de risco e comunidades, que jazem a nossa frente para que desven-
demos seus segredos e necessidades, mudando de escala: igual à maca de
qualquer consultório médico.
A dimensão social continua cindida, pois agora se pode olhar e até
escutar as comunidades, mas elas não se encarnam em doentes concre-
tos. No Brasil, após a criação do Sistema Único de Saúde, aparece a fi-
gura do conselheiro: o sujeito com voz. Contudo, Dona Joana tem direitos
no Conselho local, e pode ser ouvida na qualidade de conselheira, mas
ela tem pouco a nos dizer sobre a doença de sua filha quando se encon-
tra na fila do Centro de Saúde. Os cidadãos devem ser escutados; os doen-
tes, nem tanto.
O Planejamento em Saúde, em seu processo de constituição discipli-
nar no interior da Saúde Coletiva brasileira, manteve-se, em geral, afastado
das questões clínicas, compartilhando, assim, características gerais do cam-
po da Saúde Coletiva (Onocko, 2001). Contudo, no âmbito dos serviços
assistenciais de Saúde, quando saímos da pergunta “para quê” (finalidade)
e chegamos à pergunta “o quê” ou “como” (nível operativo), nos deparamos
sempre com uma escolha clínica.
Estamos chamando, aqui, de clínica às práticas não somente médi-
cas, mas de todas as profissões que lidam no dia a dia com diagnóstico,
tratamento, reabilitação e prevenção secundária. Isto reforça nosso argu-
mento sobre a especificidade do Planejamento em Saúde: quem quer con-
Clínica: a palavra negada| 99
tribuir para planejar mudanças em serviços de saúde deve dispor de um
certo leque de modelos clínicos, e isso é uma questão de eficácia. Se o
Planejamento em Saúde quer ser eficaz promovendo mudanças nos servi-
ços, ele precisa, necessariamente, de interlocução com a clínica.
Campos (2000) defende que os serviços de saúde têm dupla finalida-
de: produzir valores de uso (práticas produtoras de saúde, curadoras, cuida-
doras e preventivas) e sujeitos trabalhadores mais autônomos e prazerosos.
Pensamos o Planejamento em saúde como dispositivo (Onocko, 1998).
Aquilo que, segundo Jullien (1998) propicia, faz advir, ou, segundo Barem-
blitt (1994), abre espaços para a criação do novo radical. Assim sendo, ele
se constitui como uma práxis1 que visa à produção e não somente à ação, e
defendemos que essa produção pode, muito bem, ser compromissada com
essa dupla finalidade. Assumirmos essa postura trará consequências de
impacto sobre nossa prática como planejadores. Precisamos resgatar para o
Planejamento em Saúde uma preocupação fundamental com os sujeitos
que trabalham nos serviços de saúde, com a finalidade de subsidiar um
exercício profissional que estimule novas maneiras de subjetivação, e tam-
bém, nos preocupar com o desenvolvimento de uma reflexão sobre as mo-
delagens clínicas que possa se constituir em suporte para novas práticas.
Essa reflexão sobre a clínica não pode ser amarrada às visões redu-
cionistas predominantes no discurso sanitário. A tradição dessa área tem
tratado a clínica como uma prática que não interessa ao campo dos nossos
saberes efetivos prévios. Mais ainda, às vezes ela aparece como oposta e
estruturalmente contraposta à prevenção e à promoção da saúde.
Contudo, deve-se reconhecer que uma parte da eficácia da Saúde
Coletiva depende, em alguma medida, dos que tratam. Alguns auto-
res propuseram-se a falar em processo de saúde/doença/atenção (Me-
néndez, 1992), e, assim, a nosso ver, recolocaram certa ênfase nos servi-
ços assistenciais. Mas, como a área de Planejamento, mesmo no interior
da Saúde Coletiva, tem se ocupado dos serviços de saúde? Como se fos-
sem estabelecimentos e organizações passíveis de serem submetidos a
1 “Chamamos de práxis este fazer no qual os outros são visados como seres autônomos
[. . .] A práxis é por certo uma atividade consciente, só podendo existir na lucidez; mas ela é diferente da aplicação de um saber preliminar (não podendo justificar-se pela invocação de um tal saber — o que não significa que ela não possa justificar-se)” (Castoriadis, 1986, p. 95).
100 |Clínica: a palavra negada
técnicas gerenciais, de maneira semelhante às fábricas de sapatos ou os servi-
ços de táxis.
Uma evidência disso pode ser encontrada na contratação de “geren-
tes” sem nenhuma vinculação prévia com a saúde para dirigir grandes
estabelecimentos assistenciais. No melhor dos casos, os planejadores têm
tratado os serviços de saúde como organizações de tipo profissional, em
cujo caso tratar-se-ia de intervenções em nível da cultura organizacional,
ou comunicativa (Rivera, 1996). Partindo desse olhar, tratar-se-ia de “en-
xertar” novos valores na organização (como se isso pudesse ser conseguido
independentemente das formas de subjetivação aí vigentes), e de limitar-
-nos a reconhecer o poder diferenciado que os médicos detêm nas orga-
nizações de saúde (o que acaba por reforçar o patrimônio exclusivo dos
médicos sobre a clínica, e sustenta a degradação das práticas clínicas sob a
forma de procedimentos médicos).
Para a tradição da saúde coletiva, a clínica tradicional opera — pre-
dominantemente — no setting individual, do encontro singular. E a própria
área de Saúde Coletiva estruturou-se contrapondo as práticas coletivas às
individuais; é, portanto, compreensível, que o tema da clínica tenha ficado
fora de foco para a maioria dos sanitaristas.
Pensamos que uma reflexão sobre a clínica se faz necessária se pre-
tendemos avançar na discussão sobre a eficácia. Campos (1997) propôs as
seguintes categorias para repensar a clínica:
Clínica degradada: queixa-conduta, não avalia riscos, não trata nem a
doença, trata sintomas. É a Clínica mais comum nos Prontos-Atendimen-
tos, mas, também é a de grande parte de nossa atenção à demanda (encai-
xes ou programadas) em muitos outros serviços. É esta a clínica da eficiên-
cia: produz muitos procedimentos (consultas), porém, com muito pouco
questionamento sobre a eficácia (de fato, que grau de produção de saúde
acontece nessas consultas?).
Deve-se reconhecer que após a crição do SUS a clínica adquiriu
também um valor ideológico: ter acesso equivale a possuir cidadania. Mas
quase ninguém interroga a quais tipos de cuidados se tem acesso. Assim, a
degradação da clínica tem sido estimulada por essa associação de valores
transcendentes: o acesso do cidadão e a eficiência. Paradoxo da extensão
de direitos!
Clínica: a palavra negada| 101
Clínica tradicional: trata das doenças enquanto ontologia, na sua se-
rialidade, o que há de comum nos casos. Nem sempre trabalha com riscos,
ainda que devesse; está focada no curar, não na prevenção, nem na reabilita-
ção. Intervir sobre o prognóstico dos casos é cada vez menos frequente. O
sujeito é reduzido a uma doença, no melhor dos casos, ou a um órgão doente.
Contudo, e independentemente de sua ênfase no biologico, podemos reco-
nhecer esta como a clínica dos especialistas, que estritamente protegidos
nos seus corpus profissionais já não podem fazer práxis na própria prática e
interrogar a eficácia do que produzem. Toda vez que a clínica fica fortemente
amarrada a prescrições técnicas, restringe-se sua possibilidade de amplia-
ção. Na saúde mental, alguns, em nome da clínica, praticam essa clínica.
Clínica ampliada: (clínica do sujeito) a doença nunca ocuparia todo o
lugar do sujeito, a doença entra na vida do sujeito, mas nunca o desloca
totalmente. Seu João está doente e continua a ser trabalhador metalúrgico,
obsessivo, pai, etc. Nem na pior das doenças, nem à beira da morte, pode-
ríamos, nunca, ser totalmente reduzidos à condição de objeto. O sujeito é
sempre biológico, social, e subjetivo. O sujeito é também histórico: as de-
mandas mudam no tempo, pois há valores, desejos que são construídos
socialmente e criam necessidades novas que aparecem como demandas.
Assim, clínica ampliada seria a que incorporasse nos seus saberes e incum-
bências a avaliação de risco, não somente epidemiológico, mas também
social e subjetivo, do usuário ou grupo em questão. Responsabilizando-se,
não somente pelo que a epidemiologia tem definido como necessidades,
mas também pelas demandas concretas dos usuários. Campos (2000) en-
tende que as demandas são também manifestação concreta de necessida-
des sociais produzidas pelo jogo social e histórico, que foram se constituin-
do, e que aparecem na sua singularização. É evidente que para desenvolver
esse tipo de clínica a formação do superespecialista fica estreita, pois esta
proposta gera tensão nas barreiras disciplinares, estimulando o trabalho em
equipe. Trabalho esse que vem acontecer como uma nova práxis e não mais
como aquele lugar idealizado, utópico e que ninguém teria visitado jamais,
da equipe transdisciplinar perfeita.
Para o Planejamento em saúde vir a ser uma práxis preocupada com
o mundo das finalidades e com a eficácia, é preciso que nós, planejadores
da Saúde Coletiva, não continuemos surdos às questões relativas aos
102 |Clínica: a palavra negada
modelos clínicos. Deveríamos desenvolver reflexões sobre a clínica nas suas
múltiplas especialidades: assim, na Saúde Mental, ou no combate às dro-
gas, ou na Saúde da criança, ou da família, ou da mulher, a clínica deveria ser
sempre interrogada à luz da sua produção, da sua eficácia. O substantivo
clínica seria, assim, sempre plural e adjetivado (Campos, 1997).
O espaço da clínica na organização de serviços
substitutivos de saúde mental: um conjunto vazio?
Se a constituição da clínica no espaço dos serviços públicos de saú-
de se relaciona com sua produção social e histórica, nos serviços de saúde
mental encontraremos situação semelhante, ainda que neles possam ser
reconhecidas outras influências, diretamente vinculadas à sua especifici-
dade e à crítica do sistema manicomial que marcou fortemente essa área.
Assim, após a criação do SUS, fortaleceu-se a crítica ao modelo de
tratamento asilar, com tudo o que ele acarreta de submissão, isolamento e
discriminação negativa. O ímpeto da Luta Antimanicomial criou focos de
cegueira, espaços recalcados, nossos próprios pactos denegatórios.2 Nisso,
nossa luta se assemelha a toda luta.
Como lembra Amarante (1996), na inspiração basagliana a doença
é colocada entre parênteses, o olhar deixa de ser exclusivamente técnico,
exclusivamente clínico. Então, é o doente, é a pessoa o objetivo do trabalho,
e não a doença. Dessa forma a ênfase é posta no processo de “invenção da
saúde” e de “reprodução social do paciente”. Mas, nos diz também esse
autor: “a operação «colocar entre parênteses» é, muitas das vezes, entendi-
da como a negação da existência da doença, o que em momento algum é
cogitado [. . .]” (Amarante, ibidem, p. 84).
Essa influência, em muitos casos mal interpretada como abolição da
doença e da clínica, tem contribuído para um certo esvaziamento da discus-
são sobre a clínica nos serviços substitutivos de saúde mental.
Na nossa experiência, com supervisão institucional de vários serviços
de saúde mental nos últimos anos, temos a impressão de que a doença não
2 “Chamo de pacto denegatório a formação intermediária genérica que, em qualquer
vínculo [. . .] conduz irremediavelmente ao recalque, à recusa, ou à reprovação [. . .] o que pudesse questionar a formação e a manutenção desse vínculo e dos investimentos do que é objeto” (Kaës, 1991, p. 27).
Clínica: a palavra negada| 103
foi posta entre parêntesis, para recolocar o foco no doente, a doença foi
negada, negligenciada, oculta por trás dos véus de um discurso que, às
vezes, e lamentavelmente, transformou-se em ideológico. Nessa linha, é
possível reconhecer no discurso de alguns membros da comunidade anti-
manicomial certa idealização da loucura, negação das dificuldades concre-
tas e materiais do que significa viver como portador de sofrimento psíquico
e minimização do verdadeiro sofrimento que se encarna nesses pacientes,
por exemplo, no surto psicótico.
Na contramão, um sendeiro que se bifurca: em nome da doença e da
clínica os ideólogos da psiquiatria organicista continuam a sustentar teses
bizarras, como a da origem puramente genética, o tratamento condutista
que repete o asilo fora dele, a continuidade das camisas de força e, lamen-
tavelmente, até do eletrochoque.
E, alguns psicanalistas que, ainda que bem-intencionados, preten-
dem transformar todo serviço de saúde em uma reprodução do consultório
particular, como se o salto entre público e privado pudesse ser dado sem
consequências. Ao nosso ver, se opera, em algumas abordagens, uma certa
“neurotização” do psicótico: nada se sabe, o sujeito tem de demandar, tomar
decisões e advir. Ora, se um psicótico pudesse fazer isso não precisaria de
serviços especiais. Sem dúvida, existem concepções clínicas embasando
essas práticas. O que desejamos ressaltar é a necessidade de ampliar o
debate sobre a clínica possível no serviço público de Saúde Mental. Parti-
culamente sobre uma clínica das psicoses.
No interregno, continuam sofrendo milhares de pacientes psicó-
ticos. Apesar de tudo que temos avançado, ainda, em muitos lugares do
país, poucas vezes se oferece a esses usuários, como alternativa terapêuti-
ca, algo mais que remédios, uma internação de vez em quando, e, no me-
lhor dos casos, uma luta para ele também se engajar. Diga-se de passagem,
que, quando isso acontece, a consciência da equipe, entendendo do que se
trata, e sem manipular os usuários, pode vir a ser um magnífico recurso
terapêutico.
Lentamente, muito mais lentamente do que gostaríamos, os serviços
asilares vão sendo substituídos por outros equipamentos: Centros de
Atenção Psicossocial (Caps), Núcleos de Atenção Psicossocial (Naps), Hos-
pitais Dia (HD), equipes de saúde mental no Programa de Saúde da
104 |Clínica: a palavra negada
Família, etc. Desejamos destacar alguns entraves que identificamos neles,
pois, pensamos, não se devem a uma concepção técnica sobre a organiza-
ção do trabalho, mas a uma impossibilidade que se constitui no interme-
diário das relações entre os sujeitos que ali trabalham e seu objeto de
trabalho. Assim, coloca-se a questão da subjetividade dos que tratam,
de sua inserção institucional, às ameaças narcísicas a que são submetidos
pelo próprio fato de trabalharem com pessoas com sofrimento psíquico
(Marazino, 1989), (Kaës, 1996).
Pôr a doença entre parênteses é trazer para o centro do foco o usuário
do serviço. Um usuário que muitas vezes está dissociado, e que o serviço
contribui para dissociar ainda mais. Remédio é com psiquiatra. Escuta é
com psicólogo. Trabalho é com o terapeuta-ocupacional. Intercorrência clí-
nica, outra: não é conosco. Surto? Vai ter de internar.
Claro, nem todos os lugares funcionam exatamente assim, estamos
procurando reconhecer alguns entraves, e sugerir algumas linhas de refle-
xão para serem aprofundadas.
No fundo, é essa uma postura clínica: crer que fazer consciente algu-
mas coisas resolve outras. Como disse Japiassu,
a consciência não é imediata, porém mediata; não é uma fonte, mas
uma tarefa, a tarefa de tornar-se consciente, mais consciente ( Japias-
su, 1990, p. 10).
Alguns eixos para pensar a clínica na organização dos
serviços substitutivos na rede pública
Não propomos estes eixos na pretensão de esgotar a discussão, nem
de “fechar” uma proposta clínica única para os serviços substitutivos. Esta-
mos chamando-os de eixos, precisamente por identificá-los como núcleos
temáticos, em volta dos quais agrupam-se inúmeras práticas que, constata-
mos, acontecem em serviços dos mais variados. Ressaltá-los como eixos tem
a intenção de criticar a naturalização dessas práticas, resgatar seu valor de
uso do ponto de vista do que, de fato, pretende ser produzido. Destaque
que fundamentamos na necessidade de nos interrogarmos sobre o sentido
de nosso trabalho, sobre o valor de nossas práticas, sobre a eficácia.
Clínica: a palavra negada| 105
→ A crise
Os equipamentos substitutivos: a que será que se destinam? Ou,
perguntando a partir de um referencial do Planejamento: para que servem?
Deixando de lado a grande carência de serviços destinados à aten-
ção de pacientes com problemas de drogadição e/ou álcool (pois mereceria
estudo particular), na maioria dos casos os serviços de atenção à saúde
mental vem se definindo com uma vocação especial para o atendimento de
psicóticos e neuróticos graves. Na maioria deles, também, colocando-se com
maior ou menor ênfase a necessidade de serem — de fato — substitutivos
à internação psiquiátrica integral.
Na nossa experiência pessoal, e na maioria dos serviços com que
tivemos contato, essa função é cumprida, com variações, porém nunca com
taxa zero de internações. Quer dizer que, comparados os pacientes com
eles mesmos, a redução da frequência de internações é muito importante
depois que se vinculam a algum serviço substitutivo, e considerados o mon-
tante de pacientes e a quantidade de encaminhamentos feitos para unida-
des de internação a taxa é relativamente baixa (num serviço da cidade de
Campinas: 1,5% ao mês). Isso quer dizer que — nesse serviço — de cada
cem pacientes acompanhados, um paciente e meio será encaminhado a
internação cada mês. Ainda que sem fontes de comparação, parece-nos
que é possível sustentar a tese da frequência baixa. (Pois, por exemplo, em
um outro serviço que acompanhamos e que funciona ainda na lógica do
ambulatório, a taxa é de 3,5% ao mês.) Então, autorizamo-nos a dizer que
os serviços substitutivos são definitivamente eficazes em prevenir interna-
ções. Ainda assim não pudemos constatar taxa zero de internação. O que
talvez se deva ao fato de nossa experiência acontecer em serviços sem leitos
(Caps, HD, ambulatórios).
O que temos visto acontecer com os usuários que acabam sendo
internados é que, muitas vezes, esse episódio da internação produz uma
quebra de sua vinculação com o serviço, que resulta, após ela, que ele volte
a ficar fragilizado e exposto ao risco de novas internações.
A relação entre os serviços de um sistema de saúde mental é comple-
xa. Mas gostaríamos de salientar que por trás dessa complexidade locali-
za-se uma questão fortemente entrelaçada com a concepção clínica que
106 |Clínica: a palavra negada
tenhamos da psicose. Tudo isso permeado pelo valor — fortemente ideolo-
gizado — de “não internarás!”.
Se assumirmos que o momento do surto é, para pacientes e técnicos,
momento de fundamental importância, poderemos escapar da simples rei-
teração do valor ideológico e propor outras saídas.
[. . .] o surto psicótico, é vivido com enorme angústia, é a falência dos
referenciais que sustentavam este indivíduo. Esta quebra joga o su-
jeito no medo, confusão mental, perda dos limites corporais, nem
mesmo o tempo como uma dimensão tem consistência suficiente:
deixa de existir como tal (Carrozzo, 1991, p. 33).
Entendermos esse momento apontará para nós a necessidade de
qualificar os serviços substitutivos para intervir na crise. E deveremos reco-
nhecer que em alguns usuários e em algumas situações a necessidade de
resguardo, proteção e contenção serão fortemente colocadas pelo apareci-
mento do surto. Assim, quando o serviço não dispõe nem mesmo do espaço
físico (às vezes também não do psíquico, nem do técnico) para acolher a
crise, a única saída que pode ser enxergada pela equipe é encaminhar para
internação.
No seu momento de maior sofrimento e fragilidade, o paciente é
exposto a uma quebra extra de seus referenciais e vínculos. Se ele já não
reconhece o espaço, irá parar em um espaço que, de fato, ele não conhece,
entre pessoas que ele nunca viu, e ser “tratado” por uma equipe que não
conhece sua história. Dessa forma, a possibilidade de produzir da crise uma
passagem para alguma outra coisa fica prejudicada.
No melhor dos casos, se o usuário consegue no episódio da interna-
ção ligar-se de alguma maneira a alguém da equipe de internação, logo ele
será submetido a uma nova perda. O sistema coloca o imperativo (antima-
nicomial) de essas Unidades de Internação trabalharem na lógica de uma
porta giratória: entrou, melhorou, saiu. Pouquíssimas perguntas em relação
a essas três fases: assim uma experiência dolorida e inesquecível transfor-
mar-se-á, por obra do Sistema, em mais um episódio banalizado.
Estamos fazendo essa análise pressupondo como exemplo o melhor
dos casos, pois, em grande parte do Brasil, ainda não existindo suficiente
Clínica: a palavra negada| 107
oferta de Serviços substitutivos, grande número de pacientes psicóticos,
com longas histórias de evolução, só conhecem como única experiência
terapêutica esse lamentável entra-e-sai em diversas internações. Alguns
anos atrás, em levantamento realizado numa Unidade de Internação, ana-
lisando prontuários numa amostra selecionada aleatoriamente, encontra-
mos que 70% dos casos só tiveram essa oferta de tratamento (ou seja,
nunca tiveram contato com outro tipo de serviço de saúde mental) e, ainda,
muitos deles haviam passado a maior parte do último ano internados (lem-
bro de um caso que havia passado em internação oito meses dos doze do
ano anterior), somente que então, eles não eram mais asilares, pois o Siste-
ma de financiamento pretende modular internações curtas (para sermos
politicamente corretos e antimanicomiais). Essa grande parcela de pacien-
tes psicóticos no Brasil vive no pior dos mundos: em nome da desinstitu-
cionalização, eles não têm nem vínculo, nem história, nem lugar.
A possibilidade de acompanhar a crise dos usuários está colocada
para grande parte dos serviços. Um compromisso com essa questão exigirá
da equipe a possibilidade de sustentar sua própria crise. Transformar o
surto em passagem, em algo que pode ser tratado e acompanhado e não
somente abafado por grande quantidade de remédios. Para isso ser supor-
tável a própria equipe precisará de cuidados. Sabemos que tal não é sem-
pre fácil no setor público.
Sustentada nessa posição clínica, pensamos ser possível uma primei-
ra diretriz para a organização de um sistema de saúde mental. A da neces-
sidade de trabalhar com equipamentos não intermediários, mas verdadei-
ramente substitutivos: capazes de preservar o vínculo com seus usuários
nos diversos momentos, e nas diversas fases em que se apresenta seu
sofrimento. Fugindo da lógica do entra-e-sai e substituindo-a pela da res-
ponsabilização. Para isso acontecer deveria ser possível contar com um
apoio institucional para a própria equipe.
→ A família
É obvio que existem nas famílias dos psicóticos características, con-
dições, que têm a ver com a produção dessa psicose. Como tratá-los fora do
manicômio, senão intervindo nesses núcleos familiares, propiciando o res-
tabelecimento de vínculos “desde algum outro lugar”. Sem esperar que se
108 |Clínica: a palavra negada
façam “normóticos” (Hyppolito dixit, 1997); porém que sejam capazes de
gastar melhor sua própria vida.
Muitas dessas famílias têm uma relação culposa com a instituciona-
lização do parente. E uma sensação tremendamente doída e contraditória
entre querê-los de volta (para mitigar a culpa) e o medo e o incômodo
concreto e terrível de ter um louco em casa. No caso dos manicômios brasi-
leiros, a questão é agravada pelo quadro de pobreza extrema a que estão
submetidas muitas dessas famílias.
Penso que várias questões da clínica de crianças de Françoise Dolto
(1989, 1996 a, 1996b) merecem ser exploradas em relação a uma clínica da
psicose. Sobretudo tratando-se de pessoas com muitos anos de evolução e
em propostas nas quais se pretende recuperar certo vínculo familiar.
Dolto não rejeitava entrevistar terapeuticamente famílias, pais. Ou-
tros autores também defendem essa proposta de “aproveitar-se” da trans-
ferencia parental, já que, é obvio, não são as crianças as que demandam
análise (Manonni, 1980; Rosemberg, 1999). Essa questão é mais ou me-
nos reconhecida no campo da análise de crianças, mas, cremos, não tanto no
das psicoses. Todavia, deve-se reconhecer que, frequentemente, os psicóti-
cos tampouco demandam: a sociedade ou a família o fazem em seu nome.
Contudo, no caso de Dolto, o compromisso nunca era com o desejo
dos pais (que em geral atuam em nome do desejo de seus próprios pais, o
que sustenta a tese de alguns autores de que são necessárias varias gera-
ções para se produzir um psicótico), mas, sim, com o desejo da criança. Ela
colocava esses pais no trilho da genealogia de sua própria paternidade.
Assim, no caso dos serviços substitutivos, o objetivo declarado de
evitar as perdas de laços sociais e familiares aponta o imperativo de tratar
também as famílias.
Na maioria dos serviços que conhecemos existe algum espaço desti-
nado a trabalhar com famílias. Porém, muitas vezes, esse espaço, funda-
mental para o sucesso da proposta, é alarmantemente esvaziado de senti-
do. Fazem-se grupos de família para quase qualquer coisa: informar as
famílias da evolução do paciente (o grupo transforma-se em uma degrada-
ção eficiente do direito à informação, para não falar da complicada situação
na qual é posto o usuário, pois se está dentro do grupo vê-se tratado como
um objeto do qual há de se ter informação, e se está fora vê-se ameaçado,
Clínica: a palavra negada| 109
exacerbando-se paranoias), pedir informações às famílias sobre os usuários
(aí é o mesmo ao avesso: a história não é mais do sujeito, senão a que sua
família conta, e as famílias são constrangidas a se exibirem na frente de
outras, nos aspectos mais íntimos e doídos — doidos? — de sua relação).
Atribuímos uma parte dessa dificuldade à falta de formação; é difícil
trabalhar com famílias, e há na rede pública poucas pessoas com essa capa-
citação específica. Mas outra, e nesse sentido desejamos inserir esta contri-
buição, está relacionada com a perda de sentido das nossas práticas, com o
véu produzido nas equipes, que imprime sua marca acrítica no dia a dia dos
trabalhadores de saúde. Esquecemos o valor da pergunta “para quê”.
Sabemos que o lugar que coube ao psicótico em sua família foi de
carregar algo que nas gerações precedentes foi ficando impossível ser
elaborado [. . .] Se podemos entender a importância muitas vezes
vital para este núcleo familiar desta “função” que o psicótico corpori-
fica, sabemos que os pais, a família não devem ser culpados ou res-
ponsabilizados por esta violência. Não foi uma opção [. . .]” (Carro-
zzo, 1991, p. 35).
Assumirmos essa posição nos permite aceder a um para quê tra-
tar essas famílias. Essa carga de gerações, que o psicótico encarna, é bem
pesada. Trabalhar isso com cada família pode vir a ser fundamental. Para
isso, o espaço tem de ser apropriado, protegido. O que a família nos trans-
fere deve poder ser redirecionado, dificilmente será possível em reuniões
multitudinárias.
Podemos assim sugerir uma outra diretriz para o sistema público: ao
se pensar na população-alvo de um dado serviço, talvez seja necessário
redimensionar a oferta de atendimento incrementando aos usuários po-
tenciais, reservando uma percentagem para as famílias. Sabendo disso,
avaliar também a necessidade de aprimorar a formação dos profissionais
que trabalham na rede pública de maneira específica.
→ O grupo
Na maioria dos serviços constatamos também a existência de espaços
para grupos. Grupos de verbalização, de terapia ocupacional, de trabalho
110 |Clínica: a palavra negada
corporal, as variações são inúmeras, e diversas também as correntes ou
abordagens em que os terapeutas se inserem. Nada errado: há riqueza
nessa diversidade.
O grupo pode ser um espaço privilegiado para vivenciar-se de uma
nova maneira as transferências maciças dos psicóticos, “viver experiências
afetivas realmente novas, fundantes, que permitam um cerzido (não per-
feito) na trama desta subjetividade” (Carrozzo, ibidem, p. 34). De novo um
espaço que possa constituir-se em passagem: um lugar no qual algumas
coisas possam ser reparadas, as invasões à própria subjetividade não sejam
vividas como mortíferas, e a dificuldade de viver possa ser acompanhada.
Contudo, gostaríamos de salientar o peso da estruturação do serviço
público sobre esse dispositivo de tratamento. Se as pessoas que oferecem o
grupo não têm clareza de para quê o fazem, o espaço é banalizado, os
usuários são “encaminhados” para o grupo e “devem” ir, nunca ninguém se
perguntando sobre o quê esse espaço significa para esse usuário em parti-
cular. O grupo transforma-se assim, às vezes, em um véu sobre o mandato
de fazer eficiente o serviço: atende-se oito ou dez pessoas em uma hora
(garantindo produtividade), mas se degrada a singularidade dos casos.
Em muitos serviços, os grupos oferecidos modulam até quem pode
ou não pode ter acesso ao serviço. Parodiando os programas clássicos da
saúde pública, oferecem-se unicamente “cardápios” fechados. A paródia está
no fato de que na saúde pública, pelo menos, os programas eram baseados
em critérios de risco, nos serviços de saúde mental vimos muitas vezes eles
se justificarem simplesmente pelo gosto de tal ou qual terapeuta em ofere-
cer isto ou aquilo. Nenhuma interrogação sobre o sentido de nossas práticas.
Temos visto muitos chamados grupos de medicação nos quais se
realiza-se de fato uma consulta médica coletiva, um simples passar receita,
e não um espaço para que os usuários, entre eles, possam, com a ajuda do
terapeuta, construir novas — outras — relações com os remédios.
→ O trabalho
Outra questão que mereceria ser resgatada na clínica e explorada
com psicóticos é o uso de outros mediadores que não a palavra. Desenhos,
tintas, argila. . . Há coisas de que os loucos não falam. Não podem falar.
Todavia, as desenham, as amassam, as vomitam.
Clínica: a palavra negada| 111
Uma paciente pintou barcos durante anos. Metros de tela e quilos
de pintura em mares azuis e barcos coloridos. Havia chegado de outra insti-
tuição, com anos de internação e nenhum dado pessoal ou familiar. Chama-
vam-na de Rita e resultou ser Maria Aparecida, quando conseguiu recuperar
a carteira de identidade pelas marcas digitais. Anos passou des-Aparecida,
pintando barcos, antes de conseguir contar que havia nascido em uma cida-
de-porto. Hoje vive com a família e enviou uma estrela de mar de presente
ao serviço. Foram vários litros de pintura que a ajudaram a voltar para casa.
Outro paciente, jovem, delirante e sem conseguir falar de nada no
setor de agudos. Um dia no trabalho de colagge viu em uma revista a foto de
um cachorro. E disparou a falar de uma vez em que houve um cachorro, e
uma casa, e uma mãe. . . e saiu da crise.
Com esses exemplos desejamos mostrar uma diferença básica entre
fazer alguma coisa (ou qualquer coisa), e fazer coisas que possam vir a ter
sentido para cada usuário. Temos visto numerosas oficinas que — chaman-
do-se de terapêuticas — se estruturam somente em base do produzido
(em produto para a cooperativa vender, por exemplo) e não do que produ-
zem concretamente sobre a singularidade de cada usuário que se encontra
inserido na “linha” de produção.
Claro que, na direção de pôr a doença entre parênteses, o fato de
estar inserido em uma produção que lhe traz algum pagamento produz
efeitos: o usuário deixa de ser uma carga para a família e pode vir a desem-
penhar outros papéis, que não somente o de enlouquecido da casa. Essa é
a parte da intervenção psicossocial que pode e deve ser preservada; o que
gostaríamos de ressaltar é que o espaço da produção, com tudo o que ele
tem potencialidade de produzir no usuário, é frequente e lamentavelmente
banalizado. Quais as consequências para um psicótico de trabalhar numa
linha de produção na qual ele só enxerga um pedaço do produto? Por que
muitas das oficinas que “dão certo” trabalham com técnicas que partem do
fragmento (papel reciclado, vitral, mosaico) para produzir um objeto? O
que está sendo cerzido nessa criação, quando ela pode ser encarada como
processo produtivo de si e do mundo? Pensamos que essas questões não
podem desaparecer para a equipe que trata nem para o paciente, sob o
risco, já denunciado por outros autores, de a ação social prevalecer sobre a
interlocução (Figueiredo, 1997).
112 |Clínica: a palavra negada
Mais uma consideração sobre as consequências que poderíamos
extrair disso para a estruturação dos serviços públicos: pensarmos espaços
nos quais possam se “fazer” coisas além de se dizer coisas. E pensarmos no
trabalho também como produção do sujeito em si, não somente como re-
produção material. Procurando sempre que possível a construção de senti-
do dessa reprodução social, para ela não vir a ser simples adaptação social.
→ A equipe e o projeto como processo intermediário
Inseridos no campo do planejamento de serviços de saúde, defende-
mos que um projeto em um serviço de saúde deve incluir uma proposta clínica.
E também que todo projeto só será possível se explorado a partir da subje-
tividade da própria equipe em questão (Onocko, 2001).
Se pensamos o Planejamento em Saúde como dispositivo, ele se
torna mais uma exploração do dado do que uma aplicação de receitas
tecnológicas prontas. Essa forma de encarar o planejamento ressalta o es-
paço do Projeto e faz relativo o do Plano.
Enfatizamos que o subjetivo é próprio do projeto, como o técnico o
é do plano. O momento que indaga o sentido, o “para quê” das práticas,
o momento em que posso desejar projetar(me) com os outros para trans-
formar o real, é o projeto. “O projeto visa sua realização como momento
essencial” (Castoriadis, 1986, p. 97). E este é o momento mais complexo
do ponto de vista da constituição da grupalidade, momento no qual con-
sensos e representações diversas virão à tona, assim como conflitos e de-
sencontros. O projeto tem permanência, o plano é uma figura fragmentária
e provisória. Se tenho um projeto, passar dele ao plano resulta, aí sim, de
uma aplicação técnica, depende de um saber prévio e é relativamente fácil
de conseguir.
Como trabalhar em planejamento, ajudando a formular projetos,
fazendo de nossa prática uma práxis, a não ser admitindo e estimulando os
sujeitos que formulam esses projetos a fazerem práxis na sua própria prá-
tica? Na práxis, o sujeito faz a experiência na qual está inserto e a experiên-
cia o faz.
Defendemos que a possibilidade de sair da eterna repetição do mes-
mo, ousar, fazer acontecer, reorganizar o trabalho, dependerá:
Clínica: a palavra negada| 113
[. . .] de criar um dispositivo de trabalho e de jogo, que restabeleça,
numa área transicional comum, a coexistência das conjunções e das
disjunções, da continuidade e das rupturas, dos ajustamentos regu-
ladores e das irrupções criadoras, de um espaço suficientemente subje-
tivizado e relativamente operatório Kaës, 1991, p. 39; grifos nossos).
Para Kaës, a instauração do espaço psíquico do ser-conjunto se sus-
tenta na possibilidade de recriar a ilusão institucional, oferecendo referen-
cias para a aderência narcísica de seus membros, pois
a falha de ilusão institucional priva os sujeitos de uma satisfação
importante e debilita o espaço psíquico comum dos investimentos
imaginários que vão sustentar a realização do projeto da instituição
(Kaës, ibidem, p. 34; grifo do autor).
E essa não é uma tarefa fácil nos serviços públicos, muitos dos quais
se encontram burocratizados ou submetidos ao gerenciamento autoritário.
A compreensão dos aspectos subjetivos envolvidos pode contribuir para
repensar nosso papel como apoiadores das equipes.
Parece irrisório pedir a grupos que se encontram espremidos nas
suas próprias dores institucionais, que consigam criar um espaço suficien-
temente trófico para os usuários. Frequentemente, umas das saídas insti-
tucionais a esse sofrimento é o apelo exagerado ao ideológico. Ideologia que
funciona aí como falsa consciência, véu, obturando a possibilidade de se
interrogar sobre o sentido das próprias práticas.
Sobre esse sofrimento o movimento “da luta” não tem tempo para
pensar. O paradoxo, que qualquer estrategista enxergaria é que essa im-
possibilidade de autocrítica constitui-se em nossa fraqueza. Nunca ficamos
tão vulneráveis aos outros como quando não conseguimos nos enxergar.
A distância entre a cultura da instituição e o funcionamento psíquico
induzido pela tarefa está na base da dificuldade para instaurar ou
manter um espaço psíquico de contenção, de ligação e de transforma-
ção (Kaës, 1991, p. 36; grifos do autor).
114 |Clínica: a palavra negada
E não é também disso que precisa uma clínica da psicose? Não basta
manter a ética da psicanálise na sua lógica privada, oferecendo consultórios
ainda que tornados públicos (Figueiredo, 1999, p. 11). Tratar psicóticos,
pondo a doença entre parênteses, fazendo advir uma clínica do sujeito, nos
desafia a sermos capazes de mudar nosso setting. Nada contra o divã, mas
temos certeza que a clínica que almejamos para o serviço público não será
construída somente em volta dele.
Deveríamos criar uma rede de sustentação, de suporte, na qual os
pacientes possam experimentar, de novo, suas transferências maciças, com
resultados diferentes. Mas destacamos que, para isso, a própria equipe
deve ter suporte, holding (Winnicott, 1999). Assim, essa função faz parte
do novo papel do apoiador institucional. Nos serviços de saúde mental a
análise da situação institucional estará sempre fortemente entrelaçada com
a discussão clínica. Não é possível discutir casos sem pôr em análise o
funcionamento da equipe. A natureza do que ali é tratado faz essa separa-
ção indesejável.
Qualquer profissional da saúde precisará de maternagem para ousar
sair dos compartimentos estanques dos saberes prévios. A equipe só con-
segue recriar seus contratos de trabalho se tiver desenvolvido um espaço
intermediário suficientemente trófico, de suporte. Assim, o projeto institu-
cional será possível. Pensamos que o projeto, como o brincar, faz parte
desses processos intermediários (Onocko, 2001). Como diz Winnicott
(1999), referindo-se ao brincar, isso exige um lugar e um tempo. E não se
resolve somente refletindo, ou desejando, mas no fazer. Projetar é fazer.
E nós, planejadores, deveremos estudar, compreender e aprimorar
nosso entendimento em relação às modelagens clínicas: tomar posição, não
sermos mais “neutros”, em relação às propostas clínicas. Nisso consiste nos-
so handing: manejo, e já não mais apenas no domínio de técnicas para
preencher planilhas de um plano, que talvez nunca venha a ser executado.
Precisamos assumir declaradamente a necessidade de ampliação da
clínica nos serviços públicos de saúde; se não o fizermos, ainda que invo-
luntariamente ou por omissão, continuaremos trabalhando a favor da pro-
posta hegemônica: a degradação da clínica, a criação de serviços pobres
para pobres, e a inviabilidade do Sistema Único de Saúde no que se refe-
re aos custos crescentes derivados do alto consumo de técnicas diagnósti-
Clínica: a palavra negada| 115
cas e terapêuticas que acabam sendo caras, ineficazes, e, às vezes, até
iatrogênicas.
Sustentamos que o Planejamento em Saúde estará sempre ligado às
questões advindas das modelagens clínicas e da subjetividade dos grupos
que estão em ação.
Tarefa complexa, distinta das que nos foram colocadas na nossa
formação como planejadores, difícil e que só pode ser pensada como possí-
vel se abrirmos o campo do planejamento a outras disciplinas e saberes, e
se, assim feito, continuarmos a refletir sobre a nossa própria práxis como
planejadores.
Se acaso devemos, eu e os outros, encontrar o fracasso nesse cami-
nho, prefiro o fracasso numa tentativa que tem um sentido a um
estado que permanece aquém do fracasso e do não fracasso, que
permanece irrisório (Castoriadis, 1986, p. 113).
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Agradecimentos
A autora agradece as valiosas críticas e sugestões recebidas para este artigo
de Fernando Cembranelli, Gastão Wagner de Sousa Campos, e Stella Maris
Chebli.
Q
Capítulo 6 Elas continuam loucas: de que serviria aos serviços públicos de saúde uma releitura dos textos de Freud sobre a histeria?*
Rosana Onocko Campos
[. . .] Elas são insanas, como somos todos
nos sonhos.
— FREUD , 1980a.
uando Freud começa em 1893 suas publicações sobre a histeria, ele
estava de fato preocupado com uma doença prevalente? Digo, seriam
as histéricas no século XIX em Viena tão incômodas e numerosas como as
poliqueixosas dos Centros de Saúde hoje? Procuraremos uma aproxima-
ção aos textos do homem que — surpreendentemente para a época — se
propôs a escutar o sofrimento dessas mulheres e que assim se fez famoso,
fez-se autor por meio delas, mas devolveu-lhes em troca a possibilidade da
palavra, ali onde ela faltava, fazendo sentido no corpo.1
Em pleno século XXI, depois de Lévi-Strauss e Malinowski, após a
linguística estrutural, Saussure e Jackobson, falar de simbólico parece-nos
óbvio. Uma categoria quase natural que teríamos desde sempre conosco,
prestes a colocá-la em operação. Hoje as estratégias terapêuticas neocon-
dutistas ou centradas exclusivamente no biológico parecem ter enviado o
simbólico ao porão das tralhas velhas. . . Em 1893, Freud e Breuer (1980a),
escrevem:
* Publicado originalmente em Boletim da Saúde, vol. 23, pp. 149-61, 2009. Porto Alegre: SES/RGS. Reedição autorizada pelos Editores.
1 O mesmo teria feito Ulisses com as Sereias, salvá-las do esquecimento. . . Assim lhes
agradecendo por ter-se tornado o primeiro grande narrador graças a elas (Gagnebin, 1997). 117
118 |Elas continuam loucas
Em outros casos a conexão causal não é tão simples. Consiste apenas
no que se poderia denominar uma relação “simbólica” entre a causa
precipitante e o fenômeno patológico — uma relação do tipo da que
as pessoas saudáveis formam nos sonhos. Por exemplo, uma nevral-
gia pode sobrevir após um sofrimento mental, ou vômitos após um
sentimento de repulsa moral [. . .].
Freud havia descoberto que as pacientes não se lembravam da “cau-
sa” do seu sofrer. Nesse momento de sua obra, o que lhe interessava mos-
trar era a possibilidade de uma cura dos sintomas após sua rememoração:
É que verificamos, a princípio com grande surpresa, que cada sinto-
ma histérico individual desaparecia, de forma imediata e permanen-
te, quando conseguíamos trazer à luz com clareza a lembrança do
fato que o havia provocado e despertar o afeto que o acompanhara, e
quando o paciente havia descrito esse fato com o maior número de
detalhes possível e traduzido o afeto em palavras. A lembrança sem
afeto quase invariavelmente não produz nenhum resultado. O pro-
cesso psíquico originalmente ocorrido deve ser repetido o mais niti-
damente possível; deve ser levado de volta a seu status nascendi e
então receber expressão verba (Freud & Breuer, 1980a).
Para Freud, não é o trauma o agente provocador que desencadearia
o sintoma, é sua lembrança:
[. . .] Da mesma forma que um sofrimento psíquico que é recordado
no estado consciente de vigília ainda provoca uma secreção lacrimal
muito tempo depois de ocorrido o fato. Os histéricos sofrem princi-
palmente de reminiscências (Freud & Breuer, 1980a).
Assim, nesse momento da construção da obra freudiana, o que inte-
ressava a ele não era contestar a teoria traumática, mas detalhar como os
afetos estavam associados a lembranças antigas, mostrar como esses afetos
poderiam estar em jogo na histeria e, também, sua relação “simbólica” com
os sintomas apresentados. Freud conclui:
Elas continuam loucas| 119
Nossas observações não trazem nenhuma nova contribuição para
esse assunto, mas lançam luz sobre a contradição entre a máxima “a
histeria é uma psicose” e o fato de que, entre os histéricos, podem-se
encontrar pessoas da mais lúcida inteligência, da maior força de von-
tade, do melhor caráter e da mais alta capacidade crítica. Essa carac-
terização é válida em relação a seus pensamentos em estado de
vigília, mas, em seus estados hipnoides, elas são insanas, como somos
todos nos sonhos. Todavia, enquanto nossas psicoses oníricas não
exercem nenhum efeito sobre nosso estado de vigília, os produtos
dos estados hipnoides intrometem-se na vigília sob a forma de sinto-
mas histéricos (Freud & Breuer, 1980a).
Freud, que não fugia das regras da produção do conhecimento cien-
tífico de seu tempo, oferece-nos algumas descrições meticulosas que pode-
ríamos reconhecer em muitas de nossas pacientes de hoje: o mundo conti-
nua cheio de Annas!
A própria paciente fora sempre saudável até então e não havia mos-
trado nenhum sinal de neurose durante seu período de crescimento.
Era dotada de grande inteligência e aprendia as coisas com im-
pressionante rapidez e intuição aguçada. Possuía um intelecto po-
deroso, que teria sido capaz de assimilar um sólido acervo mental e
que dele necessitava — embora não o recebesse desde que saíra da
escola. Anna tinha grandes dotes poéticos e imaginativos, que es-
tavam sob o controle de um agudo e crítico bom-senso. Graças a esta
última qualidade, ela era inteiramente não sugestionável, sendo in-
fluenciada apenas por argumentos e nunca por meras asserções.
Sua força de vontade era vigorosa, tenaz e persistente; algumas
vezes, chegava ao extremo da obstinação, que só cedia pela bon-
dade e consideração para com as outras pessoas.
Um de seus traços de caráter essenciais era a generosa solidarieda-
de. Mesmo durante a doença, pôde ajudar muito a si mesma por ter
conseguido cuidar de grande número de pessoas pobres e enfermas,
pois assim satisfazia a um poderoso instinto. Seus estados de espíri-
to sempre tenderam para um leve exagero, tanto na alegria como
120 |Elas continuam loucas
na tristeza; por conseguinte, era às vezes sujeita a oscilações de
humor. A noção da sexualidade era surpreendentemente não desenvol-
vida nela (Freud & Breuer, [1895] 1980b; grifos nossos).
Na um pouco longa citação acima, destacamos com negrito alguns
aspectos que aparecem com bastante frequência em consultas de mulhe-
res nos serviços públicos de saúde. Quantas das numerosas chefes de
família que conhecemos na periferia das grandes cidades brasileiras não
são assim: mulheres dotadas de inteligência, sensibilidade e “chegadas em
um exagero”. Essa capacidade de doar-se ao outro faz parte da estratégia
de sobrevivência de muitas comunidades ao mesmo tempo em que exacer-
ba a nouvelle familiar de muitas famílias em crise, choros e reprodução sem
fim de famílias sem pai, sem saída.
Alba2 conta-me que é professora, igual ao seu marido, e sofre dos
nervos há alguns anos. Diz-me que quando mais se sabe mais se sofre e
que precisa de um psicólogo de cabeceira. Descobre meu sotaque e convi-
da-me para que trabalhemos em “portunhol”3 (Talvez alguém possa aju-
dá-la a se traduzir a partir de outra língua? Como Anna, que só falava
inglês ao seu analista que falava alemão). Sofreu com uma operação de
hipófise e desde então toma hormônios e outra medicação para os nervos.
Ela é solidária, preocupa-se com os outros e tem amigos. O mari-
do não gosta disso, ele só se preocupa com coisas materiais. Ela não. “Mi-
nha vida são meus filhos. Quero morrer porque meu filho não mora mais
conosco”. Já na nossa primeira sessão, quando dela me despeço e combino
nosso próximo encontro, começa a chorar e a contar que ela “não tem libido,
não dorme com o marido, usam quartos separados” (Mais ainda? Ela estica
a sessão e me deixa com vontade de “saber mais”).
Não veio à segunda sessão e depois me conta que chegou atrasada.
Diz que outra pessoa do ambulatório ligou para ela, mas que ela queria
“fazer comigo”. Pergunta se serei sua amiga. Ofereço-me para ajudá-la a
reescrever sua história, serei sua secretária, proponho (com a ideia de pro-
duzir um deslocamento entre o que ela demanda que é da ordem da ami-
2 Nome fictício. 3 A autora é argentina. . .
Elas continuam loucas| 121
zade e uma outra posição possível de trabalho (secretária), isso pareceu
sustentar o início de uma relação transferencial). Ela parece contente com
essa ideia. Ela própria trabalha como secretária da escola desde que foi
readaptada, sente-se meio café-com-leite (meio pouca coisa) nesse cargo.
Da mesma forma, insiste: não é ela que deveria fazer terapia; é o marido,
mas ele não quer (o que ela quer?).
Fala de suas oscilações de humor: passa da felicidade à tristeza
muito rapidamente. Ela foi escolhida para puxar o grupo de oração do
bairro. Ter sido escolhida a deixa muito feliz. E ao marido, feito uma fera. O
marido não tem ciúme de amor, “é ciúme de posse. . . Odeio grito, ele se
realiza quando consegue me fazer perder o controle. . . Ele me pertur-
ba. . .”. Conta que a família do marido é da roça e de muito gritar e falar
palavrão. . . “O ano que casei foi o ano da seca. O que me mata desde o
começo é a aspereza (morre pelo filho que sai de casa, morre pela aspereza,
aspectos que ela associa a falta de amor), me faltou esse carinho. Ele só dá
esse suspiro assim na hora do sexo” (ela deseja dele suspiros de amor?).
Alba conta durante toda a sessão e com profusão de detalhes os gestos
grossos do marido. . .
Utiliza a metáfora do gato e do cachorro; ora são o gato e o rato. . .
Tom e Jerry, diz se ver assim: correndo em círculos com seu marido. Conta
de uma briga na qual ela jogou guaraná no rosto dele e ele lhe atirou um
garfo, que a espetou logo embaixo do olho. As marcas do garfo estão no seu
rosto, visíveis (já o guaraná no rosto dele não deixou a sua marca). Começa
a perguntar-se: e se não tivesse casado? Mas aí não teria os filhos que são
“a sua vida” (a vida está nos filhos! e no casamento, o que há?). Casar, en-
tão, tudo bem, mas não deveria ter vindo para São Paulo; ficar lá, no inte-
rior, perto de sua mãe. Pergunta-se mais: será que está certo isso de bri-
gar assim, dar maus exemplos aos filhos? Intrigas entre casais? (sic: quais
casais?) Ela pergunta pelo certo e pelo errado, mas deixa uma entrada
que permite questionamentos sobre sua posição subjetiva. O que se faz
possível, pois quem escuta se mantém em uma posição de não deter as
respostas que ela busca (senão desandaria para uma espécie de aconse-
lhamento. . .).
Alba precisa controlar a duração da sessão. Ela olha o relógio e decide
quando parar. O álibi é o horário do ônibus. Às vezes chega mais cedo no
122 |Elas continuam loucas
caso de eu estar livre. Ela marca sempre o final de nosso encontro, como
se não aguentasse que eu fizesse o corte (trabalhar com o corte da sessão
na transferência poderia ser uma forma de abrir mão do controle permi-
tindo que surja algo que lhe indique uma posição possível sobre o seu
próprio desejo).
Alba se diz carente; mas não de sexo. Só de carinho: mãos dadas,
chamego; isso é o que ela quer. Ele não: ele consegue separar sexo de amor.
Conta, muito ofendida, que lhe apareceu um admirador. É o ex-marido de
uma amiga: ela se sente revoltada, ofendida, pois acha que seu pretenden-
te quer é tirar-lhe a amizade da amiga. Amizade: o que ela mais preza.
Pergunto como foi para ela se sentir desejada apesar da “saia justa”. Ela
responde: “justa? Rasgada, rasga tudo. . .” “Tudo o quê?”, pergunto. Ela
responde: “até a periquita”.4 Mas aí volta para o cachorro e o gato. Fala em
sair da roda, ficar à margem. . .
Está desapontada, pois só come: tem ansiedade de comer. Ficou com
barriga da época do cushing (doença por excesso de um hormônio que
efetivamente produz esse efeito), quando descobriram o tumor de hipófise.
Divorciar? Não, ela não teria coragem de colocar ele na rua, ela que deveria
sair. Para um “quarto e cozinha”, por ela tudo bem, mas aí tem pena da filha,
que perderia suas comodidades, coitada, não merece. . . Seus filhos são
ótimos! Têm força de vontade, o menino passou no vestibular e a menina
fará este ano. Isso eles puxaram dela. Ela tem muito orgulho.
Conta-me que seus pais brigavam muito. Mas é que eles colocavam
o amor que sobrava nas filhas (Alba e sua irmã mais nova). Não tem trau-
ma. Eles não gritavam. “Meu marido não vai comigo no supermercado, vai
com minha filha. . . Eu também colocava a roupa de meu pai na cama. Eu
me casei virgem. Eu «dengava» meu paizinho”.
Ela e seu marido conheceram-se na escola, “ele era um menino mui-
to puro. . . Ele falou que eu ia me casar, mas não ia ficar com ele e eu
prometi que ficaria com ele a vida toda. . . Achei que era por ele ser pobre,
mas não. . .”. Alba diz que ele só foi estudar porque ela insistiu. Formado
professor, ele veio para São Paulo e ela começou a estudar também. Ficou
(1998).
4 Um traço lá onde literalmente não há nada, nem representação, como diria Serge André
Elas continuam loucas| 123
quatro anos morando lá com os sogros e ele cá. Quando veio para cá já tinha
os dois filhos. Lindos! Ele (o marido) só grita, ele só sossega quando a faz
“perder o controle”. “Acabou o encanto. Quando estava doente, ele cuidava
de mim. Agora não: ele me cobra, ele me perturba”. Repete que ela não
suporta grito. Esse é um dos motivos pelos quais foi readaptada no seu
trabalho escolar (não suportava a gritaria das crianças). Diz que seu avô
paterno era muito possessivo. Isso interroga sobre a sua necessidade de
manter o controle, até que o marido com o “grito” faz com que ela perca o
controle e aí ela se perde? Perde-se no quê? E o que ela deseja?.
Antes das férias, pergunta-me se pode trazer um doce caseiro para
mim. Respondo que sim. E na sessão seguinte chega com uma pequena
travessa de bolinhos de chuva, que fritara logo de manhã. Ela é que coloca
a data de volta das férias. . . Alba: sempre no comando.
A incapacidade para o atendimento de uma demanda amorosa real
é um dos traços mais essenciais da neurose; os doentes são domina-
dos pela oposição entre a realidade e a fantasia. Aquilo por que mais
intensamente anseiam em suas fantasias é justamente o de que
fogem quando lhes é apresentado pela realidade, e com maior gosto
se entregam a suas fantasias quando já não precisam temer a reali-
zação delas (Freud, [1905], 1980c).
Como Alba, que não pode aceitar o amor do marido (que, apesar de
grosso, convida-lhe a voltar para a cama conjugal toda semana), nem do novo
pretendente, apesar de passar a vida a lamentar que carece dele, desse amor!
— Serge André (1998) diz-nos que o que quer uma mulher é o amor. . .
Atendo Alba em um ambulatório público de psicanálise, o que faci-
lita um pouco a questão do enquadramento de trabalho. Combinamos os
horários, a frequência semanal e a regra do tudo dizer. Um dia em que
precisei trocar um horário de atendimento, disse ter ficado muito “prestigia-
da” pelo fato de eu ter ligado para sua casa, pessoalmente. “Minha médica
liga para mim: um luxo”, diz, mas, às vezes, me chama de psicóloga. Trago
este caso para exemplificar a possibilidade de trabalho clínico em um lugar
público e como pouco a pouco, apesar de ser recente nosso encontro, a
paciente pode começar a implicar-se sob a forma de algumas perguntas. . .
124 |Elas continuam loucas
Alba faz parte desta legião de mulheres lutadoras, trabalhadeiras,
que desejaram sair do seu lugar de origem (de nascimento), mas que se
enrolaram no meio do caminho de sua identidade, com os sintomas no
corpo, perdendo a possibilidade de acessar a sua própria sexualidade
de uma maneira um pouco menos sofrida (Alonso; Gurfinkel & Brey-
ton, 2002; Kehl, 2007).
Surgem agora várias perguntas importantes. Em que condições ocor-
rem semelhante formação simbólica patológica [e] (por outro lado)
semelhante recalcamento? Qual a força ativa que intervém? Em que
estado se encontram os neurônios da ideia excessivamente intensa e
os da ideia recalcada?
Nada se poderia depreender disso e nada mais se poderia construir, se a
experiência clínica não nos ensinasse dois fatos. Primeiro, que o recalca-
mento é invariavelmente aplicado a ideias que despertam no ego um
afeto penoso (de desprazer) e segundo, as ideia[s] provenientes da vida
sexual (Freud, [1895], 1980a).
Freud, nas Psiconeuroses de defesa [1894] (Freud, 1980d), explicava
uma das modalidades de clivagem do Ich e a existência de uma “represen-
tação irreconciliável” (sexual). Nessa clivagem, a representação é separada
do afeto (excitação) que a acompanha, de tal modo que a representação
forte se transforme em inofensiva, sendo a excitação referida ao corpo, o
que caracteriza a defesa por conversão.
No “Projeto”, na parte II do caso Emma, Freud expõe a cadeia de
significantes e alinha como os significantes conscientes e os recalcados
articulam-se. O “susto” (do “trauma”) agiria só depois e ele estaria associado
— na histeria — ao desprazer. Neste momento, Freud também mantém a
importância da passividade da experiência. Por isso, a passividade sexual
“natural” da mulher estaria por trás da prevalência da histeria entre as mu-
lheres. Ele associava até então a libido ao masculino e o recalque ao femi-
nino, mas abandonaria essa ideia em carta a Fliess, de 1897 (André, 1998).
Nos estudos sobre a histeria, no caso da senhorita Anna O., Freud
tenta durante longos parágrafos convencer seus leitores de que sua pacien-
te “não mentia”. Da mesma maneira, na escuta desses casos, não deveria
Elas continuam loucas| 125
ser a tentativa de elucidar o que de “verdade” aconteceu em certas famílias,
o que oriente os casos, senão um manejo da relação verdade/mentira à
maneira como a analista tomou os relatos de Alba, algo que leve ao sujeito
a se perguntar sobre suas verdades e a se responsabilizar pelos seus atos:
Surge agora a questão de determinar até que ponto se pode confiar
nas declarações da paciente e de saber se as ocasiões e o modo de
origem dos fenômenos foram realmente tais como ela os representou.
Quanto aos fatos mais importantes e fundamentais, o grau de con-
fiabilidade de seu relato me parece estar fora de dúvida. Quanto ao
fato de os sintomas desaparecerem depois de “verbalizados”, não
posso empregar isso como prova; é bem possível que isso se explique
pela sugestão. Mas sempre achei que a paciente era inteiramente
fiel à verdade e digna de toda confiança. As coisas que me relatou
estavam intimamente vinculadas com o que lhe era mais sagrado
(Freud, [1895] 1980a).
Freud insiste em encontrar algum sentido naquilo que se apresenta
sem sentido: como é que uma música para dançar fazia sua paciente tossir?
E para isso aposta em uma aliança de fé e coragem com suas pacientes. O
de que Anna se recorda durante a hipnose faz sentido, mas no estado de
vigília ela “não tinha conhecimento de tudo isso”. Anna vivia entre dois
estados de consciência que se alternavam lado a lado: o primário, em que
ela era bastante normal e o secundário, que se assemelhava a um sonho
pela abundância de produções imaginárias e alucinações, constituindo as-
sim um tipo de alienação. Igual a Belém.5
Belém foi internada por uma “depressão”. Tinha então vinte e um
anos. Na alta, é vinculada a um Caps da cidade no qual é atendida por um
curto período de tempo e depois some. Volta seis meses depois muito de-
sorganizada, falando de um aborto. Comporta-se de maneira um pouco
pueril e infantilizada no Caps, mas a família conta que em casa ela é
competente e sumamente cuidadosa com os afazeres domésticos. Fez o
colegial e tinha um namorado, o primeiro e único até a internação. Naquela
5 Nome fictício.
126 |Elas continuam loucas
depressão ela ficou trancada por dias a fio em casa quase sem comer, a mãe
disse não saber como ela não morreu.
A equipe solicitou um benefício para ela, que chegou em nome da
mãe. Isso desencadeou uma crise de agitação e agressividade contra a mãe.6
Ela foi criada pela avó. A família é enorme e muito pobre. Belém sofreu
uma drástica redução de deveres e afazeres desde que adoeceu. Há épocas
em que sofre de alterações alimentares: come muito pouco e diz que está
magra, pois “tem uma cobra dentro dela que come pedaços do corpo dela”.
Belém se parece a Anna com seus dois estados de consciência. A
equipe debate-se com dúvidas diagnósticas (ela é louca ou “atua”?), que-
rendo saber se o que Belém diz é verdade ou não. Receitam lanzapina; nos
últimos quatro anos têm buscado formas de colocá-la em um lugar de maior
investimento, mas “ela nunca conseguiu”, ela não suporta ser investida. A
uma profissional, que saiu de braço dado com ela para uma caminhada, diz:
“por que minha mãe nunca saiu assim comigo?”. Belém é atendida há
quatro anos no Caps e é assistida com bastante dedicação, mas ninguém se
dispôs a escutá-la de alguma maneira que não fosse “ao pé da letra”, nin-
guém pôde oferecer hipóteses diagnósticas que não fossem humorais. É
importante aqui marcar a diferença entre fazer uma hipótese diagnóstica
sobre os sintomas (CID) e sobre a posição subjetiva, questão que a equipe
tem dificuldade de diferenciar da mera coleção de sintomas. A equipe é
muito responsável no seu tratamento, porém ninguém a responsabilizou
até agora por nada. Tentam convencê-la de que deve trabalhar, de que
deve tomar cuidado com sua agitação e com certa exposição de si mesma
que ela faz, mas já nos dizia Freud:
Todos os que assim falam dos pacientes estão certos, a não ser num
único ponto: desconsideram a distinção psicológica entre consciente
e inconsciente, o que talvez seja permissível quando se trata de crian-
ças, mas com adultos já não tem cabimento. Por isso é que de nada
servem todas essas afirmações de que é “apenas uma questão de
vontade” e todas as exortações e insultos dirigidos ao doente. Primei-
ro é preciso tentar, pelas vias indiretas da análise, fazer com que a
6 Isso lembra a pulseira que a mãe de Dora desprezava e Dora cobiçava....
Elas continuam loucas| 127
pessoa convença a si mesma da existência dessa intenção de adoecer
(Freud, [1905] 1980c).
Ali onde podemos ver e ouvir uma mulher às voltas com sua femini-
dade, com seu sexo, com sua mãe, com “as cobras” (como as que temia Anna
O. paciente de Freud), os dispositivos de saúde mental não puderam trazer
à tona sua fala, seu discurso com suas falhas e não somente seus sinto-
mas. . . Um pouco de Freud aí?
Os fenômenos patológicos são, dito de maneira franca, a atividade
sexual do doente. Um caso isolado nunca permitirá demonstrar uma
tese tão geral, mas só posso repetir vez após outra, pois jamais cons-
tato outra coisa, que a sexualidade é a chave do problema das psico-
neuroses, bem como das neuroses em geral. Quem a desprezar nun-
ca será capaz de abrir essa porta. Ainda aguardo as investigações
capazes de refutar ou restringir essa tese. O que tenho ouvido até
agora não passam de manifestações de desagrado pessoal ou de in-
credulidade, às quais basta contrapor o dito de Charcot: “Ça n’em-
pêche pas d’exister”7 (Freud, [1905]1980c).
Freud sustentará claramente as teorias da etiologia sexual no caso
Dora. Não que ele não viesse apontando isso antes, como mostra o “Proje-
to”. Mas ele fez sua terapêutica evoluir; parte das mudanças de sua técnica,
ele apresenta-nos assim:
[. . .] desde os Estudos, a técnica psicanalítica sofreu uma revolução
radical. Naquela época, o trabalho [de análise] partia dos sintomas e
visava a esclarecê-los um após outro. Desde então, abandonei essa
técnica por achá-la totalmente inadequada para lidar com a estru-
tura mais fina da neurose. Agora deixo que o próprio paciente deter-
mine o tema do trabalho cotidiano, e assim parto da superfície que
seu inconsciente ofereça a sua atenção naquele momento. Mas des-
se modo, tudo o que se relaciona com a solução de determinado sin-
toma emerge em fragmentos, entremeado com vários contextos e
7 A tradução é que isto não impede de que exista.
128 |Elas continuam loucas
distribuído por épocas amplamente dispersas. Apesar dessa aparen-
te desvantagem, a nova técnica é muito superior à antiga, e é
incontestavelmente a única possível (Freud, [1905] 1980c).
Em “Dora”, Freud brinda-nos com os detalhes de como trabalha.
Apresenta alguns princípios que vigoram até hoje na psicanálise e que
poderiam ajudar em muito as práticas clínicas nos serviços de saúde. Aque-
la senhora poliqueixosa, que vem todo santo dia à UBS, diz a verdade?
“Mas eu resolvera desde longa data suspender meu juízo sobre o
verdadeiro estado de coisas até que tivesse ouvido também o outro lado”,
responde Freud (1905). E ainda nos aconselha:
Pela natureza das coisas que compõem o material da psicanálise,
compete-nos o dever, em nossos casos clínicos, de prestar tanta aten-
ção às circunstâncias puramente humanas e sociais dos enfermos
quanto aos dados somáticos e aos sintomas patológicos. Acima de
tudo, nosso interesse se dirigirá para as circunstâncias familiares do
paciente — e isso, como se verá mais adiante, não apenas com o
objetivo de investigar a hereditariedade, mas também em função de
outros vínculos (Freud, [1905] 1980c).
Com relação à Belém, vale a pena acentuar a importância de se
poder escutar a verdade do sujeito, e também a da função do sintoma em
relação a própria história de vida. Ela entra em crise quando recebe um
benefício que não a diferencia da mãe, pois vem marcado pelo “nome da
mãe”, reforçando uma relação de espelhamento, especular, e espetacular.
Pode-se pensar na anorexia, quando ela refere que algo a come por den-
tro. . . Sintoma que de fato ela apresenta de vez em quando.
Como no caso de Tália, de seis anos, que chegou a um Centro de
Saúde (CS) encaminhada pela escola, pois ela não se defende. “Parece
uma pequena adulta” disse a professora à mãe. A mãe se queixa da vida e
diz que vivem com o pai da menina, um avô e um tio que bebe. Todos da
família do pai. Dormem pai, mãe e filha, todos no mesmo quarto, pois não
há outro. A cama da menina e a dos pais estão em contiguidade. A mãe
diz que vive para e pela filha. Na conversa, a menina desenha um corpo no
Elas continuam loucas| 129
qual saem como duas cabeças: ela e a mãe, me informa. Proponho à mãe
que nos encontremos algumas vezes para conversar e sugiro que ela colo-
que algo entre as camas: ter algo no meio! Solicito que peçam permissão ao
pai para vir me ver.
No seguinte encontro, a mãe me conta que separou as camas, que a
menina dormiu melhor e o pai ficou contente. Ele autorizou nossas con-
versas. Está desempregado. A filha faz chilique quando não compram tudo
o que ela quer — conta-me a mãe na frente da menina. A menina diz à
mãe que essa fala a envergonha. A seguir, conta-me que está com ciúmes
do pai, pois ele dá muita atenção ao irmão alcoólatra. Falo com ela sobre a
importância dos pais, de como poder ter sua ajuda sem precisar de “pitis”.
Nossos encontros acabam em poucas semanas, segundo combinamos. No
ano seguinte, encontro a mãe, grávida e sorridente. Tália está bem — me
diz — vai bem na escola, está com um pouco de ciúmes do irmão que
nascerá em breve.
No caso acima gostaria de ilustrar como uma escuta qualificada pode
sustentar práticas embasadas de intervenções breves, que não sendo psica-
nálise, não se constituam mera “perfumaria”: uma mãe e um pai em apuros,
um momento difícil de suas vidas, no qual fraquejam no exercício de sua
função, isso não quer dizer que seus cargos estejam vacantes. Um pai que
está perdido em sua própria cadeia de masculinidade: mora com seu pró-
prio pai, seu irmão é alcoólatra, ele perde o trabalho: como sustentar nesse
momento um “não” firme à filha? E a mãe, que se sente de repente casada
com um infeliz, como reconhecê-lo no seu devido papel masculino e poten-
te? Ali pequenas dicas podem pôr um mundo a funcionar: peçamos per-
missão ao pai, digamos a ele que queremos sua atenção, devolvamos a ele
a cama com sua mulher. . . E à mãe lembremos que seu lugar não é gruda-
da à filha, mas ao lado do seu companheiro, de pé para a próxima batalha.
No “Fragmentos da análise de um caso de histeria”, Freud empre-
ende uma tarefa difícil para sua época. Apresentar explicitamente para a
comunidade científica a etiologia sexual das neuroses. Às vezes, pergun-
to-me se ele de fato teve êxito, pois apesar de a psicanálise ter se consti-
tuído como uma disciplina marcante para o século XX, hoje em pleno XXI
vemos ressurgir um aluvião de tecnologias que dariam conta de descobrir
as causas de uma dor. Do que não dão é de achar um sujeito aí. Contudo, às
130 |Elas continuam loucas
vezes, algum profissional pode se mostrar mais sensível, pode pedir ajuda a
outro, vejamos. . .
O Dr. A. é jovem, recém formado e trabalha nesse Centro de Saúde
(CS), pois não entrou na residência que gostaria. Está se preparando para
tentar de novo no fim do ano. É um bairro muito carente de serviços, não há
água encanada nem esgoto e o CS é novo na região. Vou a essa Unidade
uma vez por semana com os alunos de medicina. A. me confessa “sofrer”
com a quantidade de casos de saúde mental, diz se sentir inseguro e sem
saber o que fazer em muitos casos. Ofereço-me para ver com ele — ou para
ele — alguns casos, talvez se ele escolhesse os casos que lhe deram mais
trabalho na semana. . . Ele aceita encantado e espera-me toda semana
com uma pilha de histórias clínicas; para algumas, mais duvidosas, combi-
namos que conversarei com os pacientes e assim são agendados para a
semana seguinte.
Assim conheço Sandra.8 Ela vai todo dia ao CS para pedir uma
tomografia computadorizada da cabeça de sua filha, pois — diz — a meni-
na é “retrasada”. O Dr. A. já tinha perguntado pelo rendimento escolar e a
mãe diz que é bom. Recebo as duas, mãe — Sandra — e filha — Joana9 de
quinze anos. Joana fala pouco, a mãe fala dela e por ela. Joana parece um
pouco pueril, infantilizada. Sandra conta que moravam em São Paulo e
uma psicóloga lá “forçou a barra” para contar à Joana que o marido de
Sandra não é seu pai. O marido de Sandra não quer que Joana veja o pai,
mas eles se conhecem apesar da distância, já que o pai continua a morar em
São Paulo. O pai enviou à menina uma bicicleta de presente, mas o padras-
to não a deixa utilizar.
Peço licença para entrevistar Joana a sós, já que vejo que não fala na
presença da mãe e Joana me diz: “minha mãe não acredita em mim, ela
acredita na fala de meu padrasto que diz que eu tenho miolo mole”. Ela diz
que gostaria de ver mais seu pai e falamos de como isso será possível à
medida que ela cresça, estude e trabalhe para se tornar autônoma de sua
família. Essa ideia parece agradar muito Joana. Essa será a única entrevista
com Joana, a quem encontraria brevemente na semana seguinte, sorriden-
8 Nome fictício. 9 Nome fictício.
Elas continuam loucas| 131
te, e que me contaria que, apesar de não saber espanhol, passou um dia
inteiro falando essa língua!
Já Sandra encontrar-se-ia comigo durante várias semanas e contar-
-me-ia sua vida: não ama o marido, não gosta de nada. Só da filha. O pai da
Joana foi seu grande amor e a traiu, pois não quis a gravidez. Mas ela
sustentou a gravidez “contra” a vontade do companheiro. Ele se foi. O atual
marido a acolheu ainda grávida. Não quer que ela viaje a São Paulo por
ciúme do outro. Tem mais um filho, ao qual ele paparica e valoriza, afinal ele
é um menino!
Sandra perdeu a mãe com três anos, ela morreu de câncer, ela “tinha
se preterido pelos filhos e definhou”. Sandra vê-se semelhante à sua mãe.
Diz que escolheu uma vida como a dela, dedicada aos outros. É irmã mais
nova e apanhou em mãos de suas irmãs que nunca a souberam ajudar. Elas
são invejosas. Reclama de que a filha não é feminina. Pergunto por que
seria se ser mulher é tão ruim. O tempo todo ela foge de implicar-se e
embrulha-se em um discurso sobre os outros. Tudo é muito pobre, nada
será possível. Nada pode. Trago a questão da Joana como uma oportunida-
de: a adolescência de uma filha mulher outorga a uma mulher uma chance
inédita de repensar a própria feminidade, a própria sexualidade. . . Per-
gunto: cadê a Sandra? Ela chora e depois ri. Começa a vir mais sorridente e
arrumada. Nunca falta, chega no horário. Conta que começou a ensinar a
escrever a um vizinho, que é analfabeto, e acha que está se apaixonando
por ele, pois “ele lhe dá valor”. . .
Freud, no caso Dora, redefine a histérica como la apaixonada pelo
pai, já não mais sua vítima. O pai não mais seria o perverso que impõe à sua
filha sua sedução senão aquele a quem ela elege. Neste momento de sua
obra, Freud ainda pensa no Édipo feminino como um simétrico do mascu-
lino: a menina veria sua mãe como uma rival, nada mais. Isso o impede de
avançar nesse caso em particular, ele próprio fará essa autocrítica.
É muito depois em sua obra (entre 1920 e 1925), que ele articulará
a dupla polaridade do Édipo feminino e destacará a fixação primária na
mãe. A identificação com a figura materna é na mulher a mola mestra da
saída do Édipo, mas isso será sempre difícil e tenso, um amor ambíguo.
Vemos nos casos de Alba, Belém, Sandra e Joana como essa cadeia de
identificações femininas entre as gerações estava atrapalhada. O que é ser
132 |Elas continuam loucas
uma mulher? O que transmitiram as mães delas sobre isto? Se sua mãe fala
o tempo todo que é só sofrer, então melhor não ser. . .
As sessões semanais ao longo de um semestre permitiram a Sandra
— se não obviamente resolver essas questões — ter um espaço para depa-
rar-se consigo mesma. Pelo menos ela já não estava preocupada em saber o
que a filha tinha dentro da cabeça (o pedido de tomografia cessou), senão
se perguntando o que fazer com sua vida. . .
Haveria como que conversões no corpo do outro? Vemos cotidiana-
mente mulheres histéricas fazendo sintoma no corpo dos seus filhos(as). Se
em vez de uma escuta tivesse sido oferecida a Sandra uma tomografia, o
desfecho seria melhor? Provavelmente Joana teria entrado numa cadeia de
medicalização e teria um monte de estudos em vez de um sonho: crescer,
sair dali, fazer sua vida.
Como já dissemos, Freud desenvolve no caso Dora (cheio de justifi-
cativas) suas teses sobre a etiologia sexual, exemplifica o uso clínico da
interpretação dos sonhos e fundamenta a existência dos fenômenos in-
conscientes. Ainda nesse texto, ele desenvolve a questão da histeria como
um modo de funcionamento que organiza a transferência e não mais como
um conjunto de sintomas que se deveriam desmontar uns após outros,
como na época dos Estudos sobre a histeria. A partir de então o tratamento
psicanalítico apoiar-se-á nesse dispositivo para abrir caminho. . .
O que são as transferências? São reedições, reproduções das moções
e fantasias que, durante o avanço da análise, soem despertar-se e
tornar-se conscientes, mas com a característica (própria do gênero)
de substituir uma pessoa anterior pela pessoa do médico. Dito de
outra maneira: toda uma série de experiências psíquicas prévia é
revivida, não como algo passado, mas como um vínculo atual com a
pessoa do médico. Algumas dessas transferências em nada se dife-
renciam de seu modelo, no tocante ao conteúdo, senão por essa subs-
tituição. São, portanto, para prosseguir na metáfora, simples reim-
pressões, reedições inalteradas. Outras se fazem com mais arte:
passam por uma moderação de seu conteúdo, uma sublimação, como
costumo dizer, podendo até tornar-se conscientes ao se apoiarem em
alguma particularidade real habilmente aproveitada da pessoa ou
Elas continuam loucas| 133
das circunstâncias do médico. São, portanto, edições revistas, e não
mais reimpressões [. . .] (Freud, [1905] 1980c).
O tratamento psicanalítico não cria a transferência, mas simples-
mente a revela, como a tantas outras coisas ocultas na vida anímica, ensina-
-nos Freud em 1905. O estudo d’A dinâmica da transferência (1912) e As
observações sobre o amor transferencial (1915) ocuparão, todavia, muito de
seu tempo. No caso Dora, Freud afirma que errara ao não compreender
completamente o que estaria levando à interrupção do tratamento. Quanto
não aprenderiam inúmeros profissionais da área da saúde fazendo a si
mesmos essa pergunta? Quantos teriam a coragem de formulá-la e não
simplesmente culpar o paciente porque não retornou ou não “adere” ao
tratamento, como se gente fosse band-aid?
A sexualidade continua a ser a categoria recalcada de várias outras
clínicas. Nem falar na Saúde Coletiva, em que até a palavra clínica é fre-
quentemente recalcada. A palavra dos pacientes é cada vez mais excluída
do tratamento. Contudo, em algumas abordagens retoma-se a ideia de
uma escuta, o que já é bom, mas qual escuta é essa? Uma escuta que
continua “ao pé da letra”? Sobre a qual poderíamos montar dispositivos de
controle e/ou aconselhamento? E o que aconselharíamos? Usurpando qual
poder autorizar-nos-íamos a isso?
Teríamos saúde pública para domesticarmos a neurose? E será que
isso seria possível? Centros de Saúde e Centros de Atenção Psicossocial
(Caps) que frequento e conheço ficam sempre às voltas com o tratamento
moral. Nada injuria mais a equipe de um Caps que ousar sugerir o diagnós-
tico de uma histeria. Apesar de existir na portaria ministerial a encomenda
de que cabe aos Caps o tratamento das psicoses e das neuroses graves,
essas equipes, acostumadas a lidar com a psicose e sua falta de pragmatis-
mo, irritam-se com pacientes mais conservadas do ponto de vista pragmá-
tico ou cognitivo. Assim as histéricas aí não teriam lugar! Elas, que já enche-
ram asilos e manicômios, teriam negado o lugar substitutivo de atendimento
que supostamente lhes foi destinado. Onde o ter então na rede pública?
Nas Unidades Básicas de Saúde também não, já que nem todas têm
pessoal destinado à saúde mental e, quando têm, a demanda impede que
se pense em tratamentos longos e individualizados. Mas haveria outras
134 |Elas continuam loucas
formas de mantermos a psicanálise viva e continuar a ajudar a tantas mu-
lheres perdidas em sua própria identidade? Poderíamos fazer da psicaná-
lise uma disciplina que embasasse nossas práticas assistenciais e a formu-
lação de políticas públicas que não viessem a usurpar os papéis familiares
senão a fortalecê-los, como tentamos mostrar no caso de Tália?
Se não, como tirar do círculo vicioso a produção em massa da pobre-
za brasileira, de sua desigualdade que é reproduzida não somente pelas
estruturas produtivas senão pelas formas de subjetivação a que têm acesso
milhares de pessoas. Dentre elas, muitíssimas mulheres repetindo gera-
ção após geração o conflito com suas mães, a maternidade precoce ou
“indesejada” como saída que as leva direto para a armadilha do ressenti-
mento ou da doação. . . Histórias circulares que constroem a história de um
país sem pais.
Se não formos capazes de oferecer uma escuta que provoque dúvi-
das, que responsabilize, que implique essas mulheres com seus próprios
sintomas, acabaremos oferecendo o álibi para a cronificação, muitas vezes
em forma de remédios. Precisamos pensar, recriar e inventar novas formas
de acesso a essa escuta que nos ensinou Freud. A escuta da suspeita, do
simbólico, da falha ou do branco na linguagem. . . Uma intervenção no
momento da queixa que possa “organizar” uma demanda aí onde apare-
cem somente sintomas soltos (e isso impõe estar presente ali na hora certa,
não um mês depois!).
Intervenções “preventivas” no sentido de fortalecer os laços pa-
rentais e culturais e não da usurpação falsa e inconstante desses papéis.
Quantas vezes não vemos equipes, injuriadas pela fraqueza de um pai
ou de uma mãe, contribuírem para desqualificá-los simbolicamente pe-
rante os filhos quando pouco tempo depois eles também não sustentarão
mais esse cuidado. A isso me refiro como usurpação falsa e inconstante.
Se a sociedade fosse capaz de fato de pôr a funcionar estabelecimentos e/
ou instituições alternativos a certas famílias. . . Mas, como não tem sido,
obriga-nos a repensar nossas propostas para a infância, por exemplo.
Assim, pensamos em constituir apoios que possamos sustentar transfe-
rencialmente e assim dar-lhes consistência: que não resolvam tudo, mas
que colaborem para desatar nós que os aprisionam a repetições de gera-
ção em geração, que impliquem os sujeitos em suas escolhas e suas vidas.
Elas continuam loucas| 135
Apoios que permitam suplências muito mais breves que na psicose: pe-
quenos andaimes.
Trabalhar por políticas públicas que tornem isso possível parece-me
uma atividade de relevância ética e clínico-política. Por isso me interessa a
formação, como uma intervenção com/nos outros que os implique, que os
desvie de sua própria forma de estar no mundo, ou senão pelo menos que
se deixe explícito que se trata de uma flagrante omissão.
Pretendemos com essas notas chamar a atenção para a articulação
entre psicanálise e histeria hoje, para o valor da retomada dos estudos
clássicos — os estudos de Freud — e a “utilidade” dessa abordagem nos
serviços públicos de saúde. Achamos importante retomar essas ligações
para contestar muitos que pensam que a histeria já acabou ou que é uma
categoria psicopatológica obsoleta, em um mundo cheio — somente — de
borders, de fluxos e de subjetivação, sem levar em conta a complexidade do
feminino, da sexualidade, da fantasia, da cisão entre sexo e amor, etc.
Perseguiria eu a quimera de querer eliminar o lado trágico da exis-
tência humana? Parece-me mais certo que quero eliminar o melo-
drama, a falsa tragédia — aquela onde a catástrofe chega sem neces-
sidade, onde tudo poderia ter-se passado de outro modo se apenas
os personagens tivessem sabido isto ou feito aquilo [. . .] E se a
humanidade perecer um dia sob o efeito de bombas de hidrogênio,
recuso-me a chamar isso de tragédia. Chamo de imbecilidade [. . .]
Quando um neurótico repete pela décima quarta vez a mesma con-
duta de fracasso [. . .] ajudá-lo a sair disso é eliminar de sua vida a
farsa grotesca e não a tragédia [. . .] (Castoriadis, 1986, p. 15).
Referências
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Figuras clínicas do feminino no mal-estar contemporâneo. São Paulo: Escuta,
2002, 349 pp.
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Castoriadis, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1986, 418 pp.
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ricos: comunicação preliminar. In: Idem. Obras psicológicas completas de
136 |Elas continuam loucas
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Rio de Janeiro: Editora Imago (1960-1980),10 1980a.
Freud, S. & Breuer, J. [1895]. Estudos sobre a histeria: o caso Anna O. In: Idem.
Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. II. Versão eletrônica da
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In: Idem. Versão eletrônica da Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro:
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nica da Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1980b.
—. [1905]. Três ensaios sobre a sexualidade. In: Idem. Versão eletrônica da Edição
Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1980c.
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Gagnebin, Jeanne-Marie. Homero e a dialética do esclarecimento. Boletim do
CPA, Campinas, n.o 4, jul.-dez. 1997.
Kehl, Maria Rita. Deslocamentos do feminino. Rio de Janeiro: Imago, 2007, 281 pp.
Onocko-Campos, Rosana et al. Salud Colectiva y Psicoanálisis: entrecruzando
conceptos en busca de políticas públicas potentes. Revista de Salud Colecti-
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Roudinesco, E. & Plon, M. Dicionário da psicanálise. Rio de Janeiro: J. Zahar,
1998.
Agradecimentos
A autora agradece às equipes de saúde com as quais tem tido a sorte
de compartilhar a discussão de alguns dos casos aqui referidos e ao Dr.
Mario Eduardo Pereira cujo curso de leituras de Freud foi fonte de inspira-
ção para este trabalho.
10 A Edição Standard Brasileira, publicada pela Imago (1969-80) sob a coordenação de Jayme Salomão, segue, passo a passo, a organização da Standard Edition, seja no que diz respeito à sequência dos textos e divisão dos volumes, seja no que concerne às notas e demais material
editorial, assumindo papel importante no desenvolvimento da psicanálise no Brasil. Dessa forma a apresentação de uma versão “eletrônica” da Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud não expressa a intenção de mudança no padrão editorial estabele-
cido, e internacionalmente consagrado, mas sim a apresentação da obra em um outro tipo de mídia, diferente da tradicionalmente apresentada, em papel.
C
Capítulo 7 E agora, quemos educa? Holding, handing e continuidade: funções claudicantes na política pública de saúde mental para crianças e adolescentes*
Rosana Onocko Campos
Que los jóvenes modifiquen la sociedad y enseñen a los adultos a ver el mundo de for- ma renovada; pero donde existe el desafío de un joven en crecimiento, que haya un adulto para encararlo. Y no es obligatorio que ello resulte agradable. En la fantasía inconsciente, esas son cues- tiones de vida o muerte.
— D.W.WINNICOT T, 1969
ontemporaneamente, nos serviços públicos de saúde desponta como
demanda emergente crianças e adolescentes que são denominados
“problemáticos”. A demanda, endereçada à saúde, parte, segundo o caso,
dos pais, da escola, do conselho tutelar, de vizinhos, enfim de vários locais
da sociedade organizada.
Jullien (2000) mostra que, a partir do século XIX, quando as ques-
tões da conjugalidade, que constituíam a base do Estado monárquico, fo-
ram substituídas pelas da parentalidade (que caracterizaria depois a socie-
dade burguesa) — em nome dos interesses do Estado — algum terceiro
social passou a intervir em defesa das crianças. Professores, psicólogos,
serviço social entraram em cena em nome do Estado, a quem essas crianças
interessavam como futuros cidadãos e como futuros produtores e/ou
consumidores.
* Baseado em leitura feita no IV Colóquio Winnicott de Campinas, nov. de 2010. Inédito.
137
138 |E agora, quem educa?
Como têm sido feitas essas intervenções, em épocas recentes, no
Brasil? Quando tentamos intervir — no caso brasileiro — vem-nos à cabe-
ça a dificuldade de pensar e realizar intervenções em nome do Estado, sem
repetir algumas das marcas de injustiça e opressão que têm caracterizado o
Estado brasileiro em suas relações com a população. Como lidar com a
desigualdade encarnada em bairros sem asfalto, escolas sem infraestrutura e
com somente três horas diárias de aula? O que pode ser cobrado de mães
trabalhadoras que saem de casa quase sem retaguarda do Estado, sendo as
creches, uns dos serviços mais escassos nas grandes cidades brasileiras?
Apesar das boas intenções do Estatuto da Criança e do Adolescen-
te, os conselhos tutelares, o serviço social (Cras) e os serviços de saúde (seja
na atenção básica, seja na saúde mental) quando são chamados a intervir,
em geral, fazem, muitas vezes, leituras preconceituosas dessas famílias so-
mente por serem pobres, com outra cultura, outros hábitos, pondo-lhes a
pecha de “problemáticas” e realizando intervenções invasivas, atropelando
as frágeis redes possíveis para esses sujeitos.
Winnicott (1999) desenvolveu a ideia de que o exercício confiável e
continuado das funções de holding e handing é o que permite a entrada do
bebê humano nos processos transicionais. Como sabemos, para esse autor,
uma mãe suficientemente boa não é necessariamente uma mãe muito
abnegada, senão, nas palavras de Winnicott, uma “devotada comum”. Para
se constituir como tal, ela precisa ser confiável, mais ou menos previsível ao
longo do tempo. Poderíamos dizer que pouco a pouco o filho vai “sacando”
o estilo da mãe. À figura paterna caberia ser o provedor de um ambiente de
suporte para a dupla mãe-filho inicialmente, sendo logo percebido como
parte desse ambiente de maturação pela criança. Essa posição de suporte
não deveria ser compreendida somente no seu aspecto material — ainda
que esse seja importante — mas deve ser entendido na complexidade de
um relacionamento vivo no qual a mãe possa se sentir suficientemente
amparada para poder dedicar-se ao bebê.
Em inúmeros casos de crianças e adolescentes, que consultam em
nossos serviços públicos de saúde, confirmamos como a falência ou claudi-
cação dessas funções resultam em transtornos graves, problemas com dro-
gas ou delinquência. Em contextos seriamente afetados pela pobreza ex-
trema e a violência, muitos desses jovens tiveram sérias dificuldades em
E agora, quem educa?| 139
estabelecer um “si mesmo” e — não raramente — nunca tiveram um lar.
Foram passando da mãe para tias e/ou avós, às vezes até vizinhas, e, o
tempo todo, apoiando-se em relacionamentos que sempre se mostram pre-
cários. O ambiente apresenta-se, para eles, como não confiável de maneira
repetida e insistente. É disso que sofrem quando os vemos às voltas com
drogas, problemas escolares, e autoagressões várias. . .
Que formas de vida, em sociedade, temos desenvolvido os adultos
que fazem, agora, sintomas em nossos jovens? Que mensagens paradoxais
a sociedade oferece a esses jovens e crianças? O que acontece nas nossas
sociedades para que a lida com jovens e crianças em desenvolvimento e
seus percalços sejam transformados muitas vezes em problemas médicos
ou policiais? Teríamos perdido a capacidade de educar as gerações mais
novas? E onde poderíamos buscar as causas dessa desistência?
Objetivos
Este texto propõe-se revisar como alguns conceitos da clínica psica-
nalítica de crianças, na sua versão winnicottiana, puderam ajudar no mane-
jo concreto de alguns casos atendidos em serviços públicos de saúde. Essa
ajuda foi oferecida no contexto de uma supervisão clínico-institucional,1
que aqui é compreendido como um espaço de suporte e manejo para as
próprias equipes. Objetiva-se também discutir alguns possíveis subsídios
teóricos para orientar a formulação de políticas públicas e a formação de
pessoal no setor saúde à luz desse embasamento teórico.
Casos
CAS O 1. Tiago 2 anos e 11 meses de idade. Mãe Tâmara (17 anos)
e pai Tácito (23 anos). Irmã Tânia de 4 anos. A família de Tiago é de
Maceió. Quando a mãe tinha oito anos, veio para Campinas. Voltou a
Maceió com doze anos, quando conheceu Tácito. Teve a Tânia com treze a
e aos catorze engravidou de Tiago. Quando estava de cinco meses de
gestação separou-se de Tácito. Com oito meses voltou para Campinas
1 Essa supervisão aconteceu semanal ou quinzenalmente (segundo demanda) da equipe
multiprofissional de um Caps i, serviço destinado a assistir crianças com graves problemas de saúde mental. Esse serviço no momento das supervisões trabalhava também com adolescentes
com problemas de uso de substâncias psicoativas.
140 |E agora, quem educa?
onde Tiago nasceu. Tácito veio conhecer o filho e Tâmara conta que eles
nessa época “viviam como amigos” (sic). Tácito fazia uso de cocaína e álcool.
Tiago teve um começo de desenvolvimento normal: engatinhou e
sentou com oito, nove meses de idade, começou andar aos nove meses e
falava algumas palavras: mamãe, papai, vovó e água. Era um bebê calmo
que passava o dia vendo TV e imitava os bonecos dos programas. Quando
Tiago tinha um ano e três meses a família voltou para Maceió e a mãe
começou a trabalhar. Pouco depois Tiago passa a gritar, se joga no chão e
para de falar.
Há dois meses Tâmara e Tácito estão separados. Ele voltou para
Maceió e ela está em Campinas.
A equipe que atende Tiago num CS suspeita de problemas auditivos,
que logo são descartados. Passa também por uma consulta na psiquiatra
infantil e lhe receitam risperidona. É encaminhado para o Caps infantil.
Tâmara só mostra emoção quando fala do divórcio, então chora. Ela
está estudando supletivo e sai de casa escondida dos filhos que ficam com
a avó materna. A avó cuida dos netos, mas trabalha de dia. Disse ter dificul-
dades de lidar com Tiago.
Nos acompanhamentos do Caps infantil Tiago se mostra com com-
portamentos restritos e repetitivos, dificuldade de comunicação, e ataques
de birra. Na creche do bairro os profissionais não conseguem trabalhar com
ele e pedem à mãe que o leve embora.
Nos atendimentos Tiago tem evoluído com boa apropriação do espaço
e ampliação do contato com o terapeuta. A equipe parece estar se envolvendo
em articular parcerias com a creche e com uma ONG que trata de crianças
com problemas de desenvolvimento, mas a ONG tem regras que não permi-
tem que uma criança seja atendida por duas instituições ao mesmo tempo!!!
CAS O 2. Geraldo 17 anos. Segundo filho de uma prole de sete ir-
mãos. Pai de paradeiro desconhecido. Mãe portadora de HIV, mora com os
cinco filhos mais novos. De um a onze anos foi criado por dona Elvira que
é a avó biológica paterna de seu irmão mais velho. Ela acolheu a mãe de
Geraldo quando estava grávida e acabou assumindo os cuidados do bebê.
Na ocasião que o conheceu, dona Elvira diz ter percebido que ele estava
muito magro e pedido à mãe que o levasse ao Pronto-Socorro. Ele ficou
então internado por quarenta e cinco dias e na saída seus cuidados foram
E agora, quem educa?| 141
assumidos por dona Elvira. Esta afirma que a mãe nunca teve uma relação
afetiva com Geraldo.
Dona Elvira disse que G sempre foi mais agitado, teve dificuldade
de se adaptar à creche e com onze anos começou a cometer pequenos
furtos e “aprontar” com a vizinhança o que fez que ela o enviasse de volta
para a casa da mãe, em uma cidade próxima de Campinas.
Com onze anos foi pego pelas ruas, referindo uso frequente de crack,
maconha e álcool. Ficou circulando entre Campinas e a cidade da mãe.
Percorreu repetidos abrigos, de onde sempre fugia. E também fugiu de
uma comunidade terapêutica. Ficou nesse entra-e-sai da casa de dona E e
a rua. Quando dona E o acolhe ele briga com o irmão e é de novo expulso.
Ele é atendido de forma intermitente pelo serviço de adolescentes.
Entre 2008 e 2009 Campinas o acolhe numa república assistida.2
Fica nesse serviço por dois meses e durante esse período ele solicita aten-
dimentos, contribui para a organização da casa, e estabelece uma rotina de
visitas semanais a dona E. Foi inserido na escola em uma sala de transição.
Nesse mesmo período, apresentou episódios de agressividade contra
monitores e outros adolescentes da república, alguns associados a delírios
persecutórios. Pela primeira vez aventa-se a hipótese diagnóstica de psicose.
Em um desses episódios é internado. Essa internação se prolonga
por não haver na cidade um espaço para ele. A equipe tenta se envolver em
construir esse espaço com dona E e, nesse meio tempo, ele foge da interna-
ção e vai para casa dela.
Enquanto isso a república assistida é fechada, pois “os adolescentes
davam muitos problemas”. Enfim, o curso de vida do Geraldo tem conti-
nuado entre serviços, fundação Casa por pequenos delitos e a rua.
Discussão
Gostaríamos de refletir sobre os efeitos de intervenções dos serviços
públicos que mais esvaziam e desautorizam as funções materna e paterna
do que as apoiam para seu bom e legítimo exercício. . . Não raramente,
produzem assim, novas perdas e quebras de continuidade.
2 Serviço destinado a servir de moradia para adolescentes em situação de rua, contando
com suporte de monitores vinte e quatro horas e operando na lógica da participação dos adoles- centes na gestão do cotidiano da casa.
142 |E agora, quem educa?
No caso do Tiago vemos como uma adolescente (a Tâmara) não pôde
ser auxiliada em sua difícil tarefa de tornar-se mãe e mulher muito preco-
cemente. Ela teve seu filho em um serviço público de Campinas no qual
— com certeza — foi qualificada como “gravidez de risco”. . . E isso,
para quê lhe serviu? Ela não obteve com isso nenhum tipo de apoio ex-
tra, nenhum suporte: nem material nem subjetivo. Estava frágil e solitária,
a assim ficou. . . Não houve intervenção da saúde da família, nem da saúde
mental, nem do centro de assistência social mais próximo para ajudá-la a
recompor uma rede social, agenciar seus amigos e familiares, enfim, o que
seria possível ativar para criar um ambiente minimamente seguro para ela
e seu bebê.
Em relação ao Tiago, numa cidade com grande e propagandeado
investimento público nas creches, não se consegue intervir em uma criança
cujo caso ainda não esteja claro. Trata-se sem dúvida de uma criança com
risco de comprometer sua organização subjetiva. Viveu quebras importan-
tes, foi deixado aos cuidados do televisor. . . Poucas palavras põem-se sobre
sua situação. Os cuidados são fragmentados, as instituições não conversam
entre si e a função de Tâmara é lançada aos seus próprios recursos e/ou
sorte. No máximo conta com a ajuda da própria mãe. Mas assim, como
interferir para mudar esse circuito de pobreza e fragilidades de todo tipo?
Será assim que nos tornaremos um país sem pobreza?
Winnicott (1984) desenvolveu sua concepção das consultas tera-
pêuticas com base em sua experiência de campo como pediatra e analista.
Talvez uma de suas maiores provocações tenha sida a frase “não existe essa
coisa chamada bebê”, quando ele procurou chamar a atenção para a rele-
vância da dupla mãe-bebê.
Conhecendo suas contribuições, não há como atendermos crianças
gravemente perturbadas, ou em risco sério de sê-lo, sem acolhermos e tra-
balharmos também clinicamente com suas mães, e com seu ambiente.
O fato essencial é que baseio meu trabalho no diagnóstico. Continuo
a elaborar um diagnóstico com o continuar do tratamento, um diag-
nóstico individual e outro social, e trabalho de acordo com o mesmo
diagnóstico (Winnicott, 1983 p. 154).
E agora, quem educa?| 143
As equipes de saúde se comportam muitas vezes como se isso fosse
uma espécie de ônus agregado, algo que extrapolaria sua função. Afinal o
Caps i (de “infantil”) não foi criado para cuidar de crianças? Seria necessá-
ria uma concepção clínica para entendermos que no planejamento de um
serviço de saúde mental, como o Caps i, o trabalho com a dupla mãe-filho
faz parte de suas tarefas primárias e não é um acréscimo inesperado!
Qual deveria ser a função da política pública, a função do Estado
como referente terceiro que deveria comparecer ali onde, por exemplo, não
há um pai que possa garantir o ambiente minimamente favorável a essa
mãe? O Estado exige o tempo todo coisas dessas mulheres: que cumpram
horários, que compareçam, que cuidem, que se adaptem aos serviços e, o
que é bem pior, muitas vezes que se adaptem aos valores dados pelos
trabalhadores sociais e de saúde desde sua posição neurótica de classe
média. Pensemos em Tamara: foi mãe aos treze e voltou a sê-lo aos catorze,
não houve serviço de saúde capaz de ajudá-la em seu planejamento fami-
liar. Quando ela decide encarar uma estratégia de progresso (voltar à escola,
ação efetiva segundo mostram alguns estudos) ela só é acudida pela sua
própria mãe. Não há creches, não há outro tipo de apoio para essa jovem
mulher às voltas com seu futuro e o de seus filhos.
Contudo, após a equipe se repensar na supervisão clínico-instituci-
onal, ela pôde ajudar essa mãe a retomar comunicação com o filho, propiciar
um espaço de trocas lúdico e confiável onde eles pudessem experimentar
estar juntos sob os cuidados e proteção dos profissionais. Em atendimentos
semanais, essa mãe era auxiliada no espaço chamado de ambiência a de-
senvolver com seu filho brincadeiras, outras formas de olhar, outras manei-
ras de conversar. A equipe ofertava o espaço, o ambiente seguro e mais ou
menos tranquilo ou animado segundo o dia, e às vezes a companhia para as
reflexões dessa mãe, se comportando próximo do que Winnicott aponta
como próprio da função paterna.
Essa mesma equipe passou a se responsabilizar por tecer uma fina e
delicada rede de relações entre políticas, serviços, setores: que apoio social
teria essa mãe, como ela poderia ser acolhida na creche, na ONG, no seu
próprio trabalho?
Para isso deveria ser possível trabalhar na adaptação de vários des-
ses setores a ela, e não ao contrario, continuar a exigir que ela se adapte o
144 |E agora, quem educa?
tempo todo. Rejeitando a culpabilização moralizante por algum erro que
supostamente ela cometeu. . . Porém, quando? Apaixonando-se com doze
anos? Quantas meninas de classe média não se apaixonam também com
melhores resultados? A hipocrisia de uma sociedade dividida como a bra-
sileira, que reclama para si direitos que nega aos outros. Se todas as Tâma-
ras receberam esse tipo de suporte, ao final não haverá mais Tâmaras para
lavar e passar a roupa da classe B por um salário mínimo ao mês.
Vejamos agora o caso do Geraldo: ele exemplifica de modo patético
a nossa ineficácia. Ele é conhecido desde os onze anos pela política pública
local que supostamente se ocupa de crianças e adolescentes em situação de
risco. Há já quase nove anos é usuário de serviços públicos. E foi possível
interferir em sua trajetória tragicamente anunciada? Houve um claro mo-
mento em que tudo pareceu andar bem: na república assistida. E por que
aconteceu o fechamento da república assistida? Como, por que, da cabeça
de quem sai uma suposição de que uma república destinada a adolescen-
tes com problemas poderia se desenvolver “sem problemas”?
Winnicott em seu texto Privação e delinquência nos mostra, com
base em vários casos clínicos, que é precisamente quando os jovens come-
çam a confiar em um novo ambiente que eles o testarão, realizando alguma
transgressão. Em nossas supervisões, temos chamado isso do teste de
“aprontou”. Como ajudar uma equipe a suportar essas transgressões, so-
brevivendo sem retaliar, como nos pede Winnicott ao falar do papel da
agressividade? No seu prefácio a esse livro Clare Winnicott (mulher de
Winnicott) afirma:
a questão prática é como manter um ambiente que seja suficiente-
mente humano, e suficientemente forte, para conter os que prestam
assistência e os destituídos e delinquentes, que precisam desespera-
damente de cuidados e de pertencimento, mas fazem o possível para
destruí-los quando os encontram (p. xvi).
Aqui, a formação das pessoas, que compõem essas equipes, torna-se
central. Sem um referencial no qual eles também possam amparar-se, esses
trabalhadores não conseguem suportar as afrontas juvenis, nem resistir a
elas. O exercício da supervisão clínico-nstitucional tem sido para nós um
E agora, quem educa?| 145
momento trófico, de alimento intelectual, no qual o acesso a textos, o debate
de casos e a oferta de referências teóricas ajudam a “suportar” a própria
equipe e lhe oferecem repertório para elaborarem seu próprio manejo. A
supervisão clínico-institucional também é necessária para se constituir em
terceiro, ajudando a equipe a fugir das identificações fáceis, nas quais mui-
tas vezes se (re)produzem tratamentos morais, projeções de valores pes-
soais de membros da equipe sobre os usuários. Trata-se sempre de relações
de poder, e elas devem poder ser analisadas coletivamente para não serem
atuadas e atualizadas sobre os corpos e vidas dos pacientes.
Vejamos dona Elvira, a única pessoa que parece ter condições de
representar algum papel estável na vida do Geraldo, ela também não con-
segue ter um suporte adequado. Isso tem a ver com as ambiguidades de
dona Elvira? Estaria ela inconscientemente preocupada em mostrar que
“essa” (a mãe do Geraldo) não merecia seu filho (da dona Elvira); afinal,
não conseguiu ser mãe nem para seu neto (o irmão mais velho de Geraldo
que mora com dona E) nem para o Geraldo. E assim limparia um pouco a
barra desse filho que abandona seus próprios rebentos? E ela, dona Elvira,
não teria claros ganhos narcísicos se mostrando competente para tal? É
possível, é muito provável até. Mas, qual seria a função da política pública:
julgá-la por isso? E a mãe de Geraldo, que nem nome tem nessa história?
Em oito anos não conseguimos nem saber seu nome? Quem é, o que lhe
acontece, o que pensa desse filho? Por que a política pública faz de conta
que a pessoa não é responsável pelo seu papel na vida? O quê ela esco-
lheu? Quero chamar a atenção aqui para uma cumplicidade (inconsciente)
das equipes e trabalhadores com a posição alienada do sujeito (neste caso
a mãe sem nome de Geraldo). Pode ser que não resulte em nada, mas não
é correto que essa pessoa não seja submetida ao teste da realidade, valo-
rizando o próprio papel na produção de sua vida e os efeitos dessa pro-
dução sobre os outros.
Debate-se intensamente hoje o diagnóstico de Geraldo. A psicose,
paradoxalmente, pode abrir-lhe as portas de um Caps, onde ele teria uma
referência, algum tipo de amarração simbólica. Pode ser. Mas também já lhe
ofereceram acesso à medicação, a ser colocado no lugar de objeto das inter-
venções e decisões de outros. Desse lugar, entretanto, ele foge; gesto último
de um sujeito que, de alguma maneira, ainda ali sobrevive.
146 |E agora, quem educa?
Intervenções ineficazes ou pior, danosas, do tipo que tentamos mos-
trar só tem utilidade para o reforço narcísico de quem as realiza, parecendo
até mesmo obedecer, muitas vezes, à necessidade dos trabalhadores de se
sentirem reparados de processos de privação que sua condição de traba-
lhadores no serviço público lhes provoca. Coloquem-se nessa conta: baixos
salários, infraestrutura inadequada, pessoal em número insuficiente, che-
fias omissas ou autoritárias, etc. Aspectos todos que Kaës (1991) denomi-
na de entraves à realização da tarefa primária.
Ainda, a alta rotatividade de profissionais nos serviços de saúde
também contribui para a descontinuidade da assistência, impedindo que
vínculos mais duradouros possam contribuir para reparar alguma dessas
funções falidas. Ali o Estado age como um pai omisso, não conseguindo —
apesar do desenvolvimento do Sistema Único de Saúde de mais de vinte
anos — criar planos de cargos e salários que permitam o desenvolvimento
de uma carreira na qual as pessoas se sintam úteis e saibam as regras pelas
quais serão julgadas em seu desempenho.
Diz-nos Winnicott:
qualquer plano amplo que envolva cuidados para com crianças pri-
vadas de uma vida familiar adequada deve, por conseguinte, permi-
tir e facilitar ao máximo a adaptação local, e atrair pessoas de mente
aberta para trabalhar nele (op. cit., p. 61).
Nesse sentido, as supervisões e discussões coletivas de caso teriam a
função de criar algo dessa continuidade, uma espécie de suplência da con-
tinuidade impossível às equipes nessa conjuntura.
Epílogo
Tempo depois da fuga de Geraldo da internação, fui chamada para
uma supervisão de um abrigo, no qual ele se encontrava, claro, “provisoria-
mente” (pois já tinha então dezoito anos). Fui tentando, com ajuda de
membros das antigas e da nova equipe, reconstruir o caso e fizemos todos
juntos uma leitura da necessidade desse jovem de encontrar um lugar no
mundo, e pensamos e debatemos estratégias para conseguir algumas con-
dições de suporte para que dona Elvira aceitasse cuidar dele.
E agora, quem educa?| 147
Foram feitas três visitas, com ele junto, à casa de sua mãe, da qual,
finalmente, descobrimos o nome. Constatamos que a casa dela estava ra-
chando, a alvenaria literalmente desmoronando. Ele teve vários episódios
de agressividade no abrigo, sempre desencadeadas por algum fato aparen-
temente banal, mas é claro, para ele muito sério como “não acreditarem”
nele, por exemplo. Trabalhamos na construção de uma possibilidade de
essas crises serem enfrentadas de maneira que se conseguisse “passar por
elas e não reagir a elas” (Clare Winnicott, op. cit.). buscando renovar a
confiança e a esperança. . .
Quase um ano depois recebi o seguinte e-mail do pessoal do abrigo,
junto com um novo pedido de supervisão:
Gostaria de dizer, que as supervisões que realizaste foram de grande
valia para que aprimorássemos nossa intervenção junto ao G e hoje
ele pode colher os frutos de nossa contribuição. Talvez você tenha
interesse em saber que ele esta morando com a avó, desde outubro
do ano passado e agora trabalhando, com carteira assinada como diz
ele, conta em banco. . . enfim, continuamos acompanhando e aju-
dando esta família a se fortalecer e temos tido êxito. Ele está muito
feliz e sua família também.
Referências
Julien, P. Abandonarás teu pai e tua mãe. Trad. Procópio Abreu. Rio de Janeiro: Ed.
Companhia de Freud, 2000.
Kaës, R. Realidade psíquica e sofrimento nas instituições. In: Kaës, R.; Bleger, J.;
Enriquez, E.; Fornari, F.; Fustier, P.; Roussillon, R. & Vidal, J. P. (orgs.). A
instituição e as instituições. Trad. Joaquim Pereira Neto. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 1991, pp. 1-39.
Winnicott, D. W. Realidad y juego. Trad. Floreal Maziá. Barcelona: Gedisa,
1999, 199 pp. (original de 1971).
—. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Trad. Joseti Marques Xisto Cunha.
Rio de Janeiro: Imago, 1984 (original de 1971).
—. O ambiente e os processos de maturação. Trad. Irineo Schuch Ortiz. Porto
Alegre: Artmed, 1983 (original de 1962).
—. Privação e delinquência. Prefácio de Clare Winnicott. Trad. Álvaro Cabral. São
Paulo: Martins Fontes, 2005 (original de 1984).
148 |Sejamos heterogêneos
N
Capítulo 8 Sejamos heterogêneos: contribuições para o exercício da supervisão clínico-institucional em saúde mental*
Rosana Onocko Campos
o campo da saúde mental e, fundamentalmente, no marco das práti-
cas psi o termo supervisão é vinculado, desde os primeiros tempos das
escolas de psicanálise, ao processo de formação de novos terapeutas. Inau-
gurado nos primórdios da psicanálise pelo próprio Freud que se dispôs a
ajudar a seus formandos/analisandos a fazerem, acompanhados, o cami-
nho que ele mesmo tinha percorrido sozinho. Assim, no campo da psicaná-
lise o conceito de supervisão (somado à análise pessoal) articula as ideias de
conhecimento de si e de formação clínica.
No contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira, ao longo dos últimos
anos, buscou-se instituir nos serviços substitutivos a prática da supervisão
qualificada como clínico-institucional. Qual é o sentido que o termo super-
visão ganha quando qualificado pelo complemento “clínico-institucional”?
Com quais concepções em relação à “instituição”, ao “sujeito que sofre” e às
“relações entre agentes e instituição” poderíamos operar?
Há uma relação de imanência entre a clínica e o serviço: as caracterís-
ticas do equipamento, o seu modo de operar, a forma como se organiza aí o
processo de trabalho definem a clínica, e vice-versa. A junção “clínico-ins-
titucional” ainda nos permite destacar, no processo de adoecimento, uma
dimensão que é social, porque fruto das relações entre os indivíduos com
seu modo de viver e estar no mundo. Quando colocamos essa questão em
relação aos serviços substitutivos de saúde mental (particularmente quanto
* Inédito.
148
Sejamos heterogêneos| 149
aos Caps – Centros de Atenção Psicossocial) e refletimos sobre a ainda
premente necessidade de combater o estigma e a exclusão vinculados à
loucura, isso faz — a nosso ver — ainda mais sentido.
Nossa concepção de instituição
Pensamos, com Freud (1997), que as organizações, instituições e
estabelecimentos1 surgiram no mundo humano como espaços privilegiados
para a sublimação. Para Freud, o sofrimento nos ameaça — na qualidade
de humanos — a partir de nosso próprio corpo, condenado à decadência e
à dissolução; a partir do mundo externo, com suas forças esmagadoras; e do
relacionamento com os outros homens, fonte do sofrimento mais penoso.
Os mecanismos defensivos aparecem para proteger o ser humano da
dor. Às vezes, contudo, o preço a ser pago torna-se alto demais: isolamento,
neurose, uso de drogas, afinco excessivo no controle técnico da natureza.
Dentre todos esses mecanismos Freud apontava um como privilegiado: a
sublimação dos instintos, que obtém seu máximo benefício quando se con-
segue intensificar a produção de prazer a partir do trabalho psíquico ou
intelectual. Para Freud, nem a busca do amor romântico poderia se compa-
rar, na sua potência sublimatória, à criação e ao prazer estético.
Pensar que os espaços institucionais são permanentemente atraves-
sados pela força da sublimação, permite-nos compreender melhor suas
potencialidades e reverberações e entendê-los como fonte de prazer e de
sofrimento, de criação e de frustração, características que lhes são constitu-
tivas e não “patológicas” ou excepcionais. “A substituição do poder do indi-
víduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo de uma
civilização” (Ibidem), assim, a civilização é construída sobre uma renúncia
ao instinto. Para Freud, a frustração social domina o campo dos relaciona-
mentos humanos, pois, diz ele: “não se faz isso impunemente” (Ibidem). A
sociedade visa unir os membros de maneira libidinal:
1 A socioanálise francesa tem feito distinção entre instituições, organizações e estabele- cimentos. Propositalmente, utilizamos neste trabalho os três termos sem distinções, já que não
estamos aprofundando as suas diferenças conceituais, mas sim o que eles representam de comum no mundo humano: espaços coletivos, produtores de sentido social e settings privilegiados para a sublimação criadora aparecer.
150 |Sejamos heterogêneos
favorece todos os caminhos pelos quais identificações fortes possam
ser estabelecidas entre os membros da comunidade e [. . .] convoca
a libido inibida em sua finalidade,2 de modo a fortalecer o vínculo
comunal através de relações de amizade (Ibidem).
Apesar do esforço social, o homem continua a ser agressivo. O laço de
amizade é possível entre alguns, que precisarão constituir-se como “alguns”
em relação a “outros”, e com os quais será possível construir um escoadouro,
sob a forma de hostilidade contra intrusos. Isso será evidente entre comu-
nidades próximas e relacionadas. Freud chamou esse processo de “narcisis-
mo das pequenas diferenças”, no fundo uma satisfação conveniente e rela-
tivamente inócua3 da inclinação para a agressão, mediante a qual a coesão
entre os membros de uma comunidade torna-se mais fácil.
Nesste ponto, Freud achou importante lembrar e ressaltar a introdu-
ção, em sua própria obra, do conceito de pulsão de morte,4 o que ele fizera
em 1920 em Mais além do princípio do prazer. Diz ele: “uma parte do
instinto é desviada no sentido do mundo externo e vem à luz como um
instinto de agressividade e destrutividade” (Ibidem). O significado da evo-
lução da civilização deverá doravante ser procurado como a luta permanen-
te entre a pulsão de vida e a pulsão de morte. É nessa luta que o devir
institucional se debate, ao longo da história e no seu cotidiano. Não haverá
nunca tecnologia que nos separe da nossa condição primeira de humanida-
de, e a vocação para concretizar projetos coletivos esbarra, o tempo todo,
com as dificuldades do “narcisismo das pequenas diferenças” e com o mal-
-estar advindo do recalque pulsional em prol da vida social.
Defendemos que esse processo de criação de alguma identidade é
fundamental e fundante para os agrupamentos humanos. Como vimos,
para Freud, esse apelo libidinal é o cimento das relações de amizade e
cooperação, destacam também esse aspecto, entre outros, Dolto (1989,
2 Freud refere-se aqui à libido sem finalidade genital. 3 Inócua se pensada em relação ao extermínio material do outro, mas não inerte do ponto
de vista institucional, como veremos adiante. 4 Mantivemos o termo instinto nas citações literais por ser o escolhido pela tradução que
utilizamos. Contudo, numerosos estudos preferem se referir a esse conceito como pulsão de morte (ver a interessante discussão sobre isso em Green et al., 1988).
Sejamos heterogêneos| 151
1996a, 1996b) e Castoriadis (1986, 1987). Se bem dissemos que nossa
posição em relação à contribuição da psicanálise para as instituições funda-
se na compreensão dos espaços institucionais como espaços que têm sen-
tido, como locus privilegiado de sublimação, isso não equivale a pensar nas
instituições como bolhas cor-de-rosa. A existência da pulsão de morte nos
permitiria abordar de uma maneira diferente o mal-estar na instituição,
pois ele é constitutivo e não patológico. Ao diferenciarmos este mal-estar
do sofrimento institucional (que pode, este sim, ser tratado e não deve ser
tido como inevitável ou constitutivo), teremos alguns fios condutores:
A instituição deve ser permanente: com isso ela assegura funções
estáveis e necessárias à vida social e psíquica. Para o psiquismo, a
instituição encontra-se, como a mãe, na base dos movimentos de
descontinuidade instaurados pelo jogo do ritmo pulsional e de satis-
fação. Ela se confunde com a experiência mesma da satisfação. É
uma das razões do valor ideal e — necessariamente — persecutório
que ela assume tão facilmente (Kaës, 1991, p. 23).
Para Kaës, há uma aderência narcísica ao objeto institucional. Esse
objeto institucional é, geralmente, algum dos objetivos primários, ou o que
Campos (2000) chama de valor de uso, e tem um papel constitutivo na
identidade organizacional. Nos serviços públicos de saúde, nos quais a
desagregação interpessoal e a alienação nas tarefas, lamentavelmente, ain-
da predominam, conseguir essa aderência narcísica contribuiria para o esta-
belecimento de contratos5 (Campos, 2000, p. 233).
Diferentemente de nós, alguns autores mostraram, também a partir
de um referencial psicanalítico, como a organização moderna opera sobre o
narcisismo de seus agentes e os manipula num jogo de infantilização (Frei-
tas, 1999; Motta & Freitas, 2000). Nesses trabalhos, a ênfase é posta na
fragilidade do sujeito perante a sedução institucional. A nosso ver, essa
sedução, muito bem descrita por eles, assemelha-se mais a uma encenação
histérica do que a um verdadeiro apelo amoroso, no laço fraterno do projeto
comum. Atribuímos esse viés ao fato de os estudos citados serem realiza-
dos a partir de uma descrição de empresas lucrativas onde a extração de
todo tipo de mais-valia se torna imperiosa.
152 |Sejamos heterogêneos
Esse viés também pode ser explicado pela posição puramente passiva
que alguns autores atribuem aos agentes. Essa visão dos sujeitos prontos,
já produzidos e limitados a repetir o ritual da pulsão de morte, ou presos ao
fascínio infantil, parece-nos uma redução, que restringe a leitura freudiana.
Pensamos que para a maioria das pessoas também existe o desejo de
fazer junto com outros “sendo”, pulsão vital, criativa, criadora do laço frater-
no. Contudo, uma vez estabelecida a importância das instituições em nos-
sas vidas apontamos que é nelas que temos também o foco dos problemas.
Diz-nos Kaës:
conhecemos as peripécias das instituições [. . .] quando se trata de
reformar os programas ou as técnicas de tratamento [. . .] reformar é
refundar, e, portanto, destruir, na fantasia, a comunidade institucio-
nal. Nessa distância que a vida não pode evitar, os novos significan-
tes ainda não estão disponíveis e ainda não recebem o investimento
necessário para a investidura do novo contrato. Nessas situações
indecisas duas saídas são frequentemente utilizadas: o recurso ao
agir psicossomático, ou ao agir ideológico, sendo que geralmente um
surge pela falta do outro (1991, pp. 26-7).
Para Kaës, é importante compreender que há várias fontes de sofri-
mento institucional. A instituição é palco tanto do sofrimento próprio dos
sujeitos individuais que ela exprime como do sofrimento ligado ao ser-
-conjunto. Portanto, nem todo sofrimento psíquico que nela se manifesta
tem valor e sentido de sintoma para o funcionamento institucional.
No entanto, nós também sofremos mal-estar pelo fato institucional
em si: como analisamos em Freud, haverá sempre um exercício de violência,
uma distância entre a exigência (restrição pulsional, sacrifício dos interesses
do Eu) e os benefícios esperados (identificação narcísica). “Mas sofremos
também, na instituição, por não compreendermos a causa, o objeto, o senti-
do e a própria razão do sofrimento que aí experimentamos” (Kaës, ibidem,
p. 32). Assim como Françoise Dolto (1996b) defendia que o conhecimento
de alguns mecanismos psíquicos por parte dos pais teria efeito preventivo
sobre as neuroses dos filhos, pensamos que o reconhecimento dessas ques-
tões nos espaços de gestão teria efeitos preventivos nas instituições. Se
Sejamos heterogêneos| 153
soubermos do mal-estar inevitável, será possível criar espaços de análise e
de crítica que permitam enfrentá-lo e distingui-lo do sofrimento extremo.
Nos serviços públicos em que trabalhamos há também que conside-
rar as características da rede pública, seus ritmos, ora muito rápidos, ora
vagarosos na administração de recursos. Inúmeras instituições (aqui, sim,
na acepção de Loureau – 1995) comparecem dia a dia nesses serviços.
Poderíamos mapear nos centros de atenção psicossocial:
→ o saber médico, encarnado na Psiquiatria, que tem sérias dificul-
dades para se inserir nos novos equipamentos;
→ a “loucura” em cujo nome quase tudo pode (ou não pode, segundo
o caso);
→ o conceito de “reabilitação psicossocial” que funciona muitas ve-
zes dessa mesma maneira;
→ a instituição da violência nos bairros;
→ as formas de subjetivação marcadas pela marginalidade que pu-
lulam no contemporâneo, etc.
Bleger afirmava que:
por ter as mesmas estruturas sociais as instituições tendem a ado-
tar a mesma estrutura dos problemas que têm de enfrentar [. . .]
nas instituições que atendem doentes mentais estes problemas se
tornam mais agudos. Um dos que se apresentam é sempre (até ago-
ra) o de uma forte dissociação entre os objetivos explícitos e im-
plícitos da instituição [. . .] neste sentido a instituição tende, em
sua organização total, à alienação e à segregação do doente mental
(1984, p. 62).
Os Centros de Atenção Psicossocial não são imunes a esse tipo de
ação e cabe à supervisão clínico-institucional tratar disso, evitar que a enco-
menda social sobre a loucura (isto é, excluí-la do convívio social) seja cum-
prida pelos novos equipamentos da Reforma.
Nossa concepção do sujeito que sofre
Todo sujeito tem uma capacidade criativa e é capaz de construir
modos diferentes de estar no mundo e com ele se relacionar.
154 |Sejamos heterogêneos
Os chamados casos graves, pacientes dentro do espectro psicótico,
ou que foram diagnosticados nesse campo, possuem uma forma muito
peculiar de habitar o espaço-tempo. Sua capacidade de tolerar frustrações
costuma ser muito diminuída e sua tendência à passividade é amiúde re-
forçada por doses pesadas de medicação psicotrópica. Oury as chama de
“Pessoas que descarrilaram no simbólico” (Oury, 1991). Winnicott (1983)
aponta na gênese desses distúrbios falhas muito precoces no ambiente.
Assim, para alguns desses sujeitos, na fase de integração do self, a distinção
entre o eu e o não-eu viu-se interrompida ou alterada. A integração psi-
que-soma também se verá afetada nesses casos. Para esse autor, a regres-
são à dependência seria um dos mecanismos de acesso ao terapêutico
nesses pacientes e por isso as funções de manejo (handing) e suporte (hold-
ing) tornar-se-iam fundamentais. Oury (2009) nos fala do Coletivo como
uma máquina abstrata, “uma máquina de tratar a alienação, todas as for-
mas de alienação, tanto a alienação social, coisificante, produto da produ-
ção, como a alienação psicótica” (Oury, 2009, p. 39). Nele a heterogeneida-
de é condição para atingirmos qualidade terapêutica.
No psicótico, por exemplo, na esquizofrenia, há dissociação, Spaltung,
clivagem. Disso resulta que a transferência não pode se fazer a não
ser sobre uma multiplicidade de pontos: pessoas, lugares, coisas, lin-
guagens, hábitos. Ora essa multiplicidade de pontos de transferên-
cia necessita da presença de várias pessoas e de diferentes lugares
(Oury, 1980, p. 97 apud Campos Silva).
e continua:
Criar um coletivo orientado de tal modo que tudo seja empregado:
(terapêuticas biológicas, analíticas, desembaraçamento dos sistemas
alienantes socioeconômicos, etc.) para que o psicótico aceda a um cam-
po onde ele possa redelimitar seu corpo numa dialética entre parte e
totalidade, participar do corpo institucional pela mediação de objetos
transicionais, os quais podem ser o artifício do Coletivo sob o nome
de técnicas de mediação, que nós podemos chamar de objetos institu-
cionais. Esses objetos institucionais são tanto os ateliês, as reuniões,
Sejamos heterogêneos| 155
os lugares privilegiados, as funções, etc. como a participação dos siste-
mas concretos de gestão ou organização (Oury, 1980, p. 270 apud
Campos Silva).
É com base nessas proposições teóricas, que pensamos que se apro-
ximar desses pacientes requer atenção a várias dimensões. Inicialmente
a do acolhimento. Diz-nos Jean Oury: “o acolhimento sendo coletivo na
sua textura, não se torna eficaz senão pela valorização da pura singula-
ridade daquele que é acolhido” (Oury, 1991). A nosso entender apon-
ta-nos, assim, a necessidade de singularizar o tratamento já desde o pri-
meiro contato. A estratégia de acolhida que funcionou para um pode
muito bem não funcionar para outro. Faz-se necessário alguém disposto
a reconhecer aí — onde não foi reconhecido ou enxergado em seu mo-
mento — uma “pura singularidade”, não um paciente a mais, não um psi-
cótico a mais.
Mas acolher só faz sentido se assumirmos nossa responsabilidade
clínica, acolher é “para”: nesse ambiente acolhedor, é preciso, insiste Oury
(1991), estarmos muito atentos a momentos privilegiados no qual algo se
passará de maneira diferente um dia. Para podermos apreender essa emer-
gência de signos precisamos estar em uma posição de espera ativa, que em
nada se parece à omissão ou neutralidade. Para consegui-lo, alerta-nos
Oury (1991), é preciso “estar advertidos”, isto é, ter passado por um proces-
so de formação que torne nossa sensibilidade trabalhada, atenta a esses
fatos. Também Passos & Benevides (2001) apontam a importância da
produção de desvios na clínica, componente fundamental da articulação do
clínico com o político. Acolher para manter as pessoas “quietas” no Caps ou
hipermedicadas não faz sentido. Para poder realizar o percurso da aliena-
ção de si e da dependência à responsabilização (Marazina, 1991) é neces-
sário produzir desvios e mudanças nas vidas dessas pessoas. Com eles, não
para eles. Contudo, isso não implica eximir de sua própria responsabilida-
de o sujeito já que “a pessoa, mesmo dissociada permanece uma pessoa,
com um nome” (Oury, 1991).
Mas, de qual sujeito falamos? Com certeza não é do sujeito do cogito
cartesiano, aquele que se define pela racionalidade. Não é também do
sujeito moral. Nem somente do sujeito de direitos, cidadão, apesar de tra-
156 |Sejamos heterogêneos
balharmos sempre em prol de graus maiores de exercício de cidadania
plena. Pensamos no ser humano: sujeito do inconsciente. Move-nos uma
ética assentada no que Françoise Dolto (1990) denominava de fé no outro
enquanto humano.
O encontro com o serviço pode favorecer mudanças nessa relação
usuário-mundo. É preciso caracterizar as principais formas de sofrer dos
usuários de cada serviço (a caracterização dos pacientes como graves é
muito genérica, é preciso conhecê-los melhor). Por exemplo, o manejo
de pacientes com muita desorganização psíquica pode beneficiar-se de
um vínculo forte com um membro da equipe que inicialmente será o prin-
cipal encarregado de exercer as funções de suporte e de manejo. Porém,
esse mesmo tipo de manejo pode exacerbar as reações paranoides de um
sujeito com outro tipo de organização subjetiva. Quanto mais paranoi-
co encontra-se o sujeito, mais sentido fará multiplicar seus contatos, à ma-
neira que o descreve Oury. Porém isso nunca equivale à massificação ou
anonimato, senão que, pelo contrário, deve ser assumido como uma estra-
tégia de manejo.
Tomamos sempre a clínica como analisador e defendemos que toda
clínica é institucional. Nossa clínica ampliada (Campos, 2003) não nega as
técnicas da clínica stricto sensu, mas as incorpora em um conjunto mais
amplo de ações, entrelaçando clínica e política, tratamento, organização
institucional, gestão e subjetividade.
Os cuidados buscam a produção de saúde e de cidadania. Muitos
são os resquícios manicomiais a serem desconstruídos na clínica ampliada;
a invenção de uma nova clínica, a clínica do cotidiano que nos convida (uma
obrigação ética?) a ampliar nosso foco de visão como estratégia para dar
conta da multiplicidade que é a vida.
Pensamos que o modo de operar o sintoma de cada sujeito é sempre
uma invenção. Com o que desejamos destacar que “o saber” está sempre
do lado do sujeito e relativizar o lugar de saber da equipe. As pistas e
indicações que o sujeito dá para dirigir a construção de seu projeto terapêu-
tico são preciosas e devem ser sensivelmente escrutadas. Conseguir essa
“sensibilidade advertida” — como a nomeia Oury — requer cuidados e
suporte específicos às equipes.
Sejamos heterogêneos| 157
Nossa forma de trabalho em supervisão e a relação
entre agentes e instituição
Trata-se de criar um dispositivo de trabalho e de jogo, que restabele-
ça, numa área transicional comum, a coexistência das conjunções e
das disjunções, da continuidade e das rupturas, dos ajustamentos regu-
ladores e das irrupções criadoras, de um espaço suficientemente sub-
jetivizado e relativamente operatório (Kaës, 1991, p. 39, grifos nossos).
Em nossa prática, na montagem do dispositivo de supervisão clínico-
-institucional, levamos em consideração algumas premissas:
→ a importância de os trabalhadores construírem certa grupalidade
entre eles (propiciando um espaço de confiança, de trocas, de circulação de
afetos),
→ a necessidade de se distanciarem um pouco da prática cotidiana
para estimular a reflexão sobre elas (uma pausa, um breque, uma vírgula
(Onocko-Campos, 2003), um momento no qual não se faz nada, se pensa),
→ e o suporte propiciado pela incorporação de novos conceitos e
teorizações, que vem a alimentar a reflexão com novas categorias de análise.
Inicialmente, para conseguirmos isso, propomos um primeiro contra-
to com a equipe que inclui a necessidade de respeitarmos os horários e o
espaço. Pontualidade e não interrupção da supervisão, ainda que pareçam
coisas banais costumam ser difíceis de conseguir num primeiro momento,
pois as equipes estão habituadas a trabalharem em ritmo acelerado, com
pouco cuidado de si e com escassa reflexão. Estabelecemos também a
necessidade de sigilo, discrição e restituição dos conteúdos trabalhados.
Isso implica reconheceremos que haverá muito frequentemente actings out
(ou in) à supervisão que deverão voltar para sua análise no coletivo. Dessa
forma, procuramos oferecer uma sensação de segurança e contribuir para a
criação da confiança: haverá a quem reportar o que se passa fora da super-
visão, sempre que tenha tido relação com o falado na supervisão. E ainda,
propomos a suspensão da autoridade do gestor no período que dura a
supervisão, isto é, ele não coordena essa reunião, senão o supervisor. É o
supervisor quem zela pela circulação da palavra, encaminhamentos, uso do
tempo, etc. Não há ingenuidade nisso: como já defendemos em outro texto
158 |Sejamos heterogêneos
(Onocko-Campos, 2003a) a suspensão formal do poder permite fazer
emergir as dimensões míticas do mesmo e, até, aos poucos, ir pondo em
análise os usos do poder.
Trabalhamos o tempo todo assumindo que esse dispositivo é um
dispositivo de formação, porém sem nos desimplicar de nosso compromisso
com a construção de uma rede de serviços eficaz. Não nos achamos deten-
tores de nenhuma verdade sobre os outros, porém, indagadores de nossas
próprias práticas e posições. Visamos a aquisição pela equipe de uma pos-
tura terapêutica (que é sempre e necessariamente ético-política) no sen-
tido de se trabalhar até o limite a necessidade da defesa da vida, do com-
promisso com a produção de saúde, e com o fortalecimento do sistema
público de saúde como ferramenta fundamental para a promoção da cida-
dania e o logro da equidade.
A forma como a instituição opera produz modos de subjetivação,
efeitos tanto sobre os pacientes, quanto sobre os profissionais. Estes, por
sua vez, também são produtores da própria instituição. Buscamos revelar
os efeitos dessa prática sobre a instituição, sobre os profissionais e sobre os
pacientes. Assumimos que existe uma distinção, porém também uma in-
dissociabilidade, entre clínica e política e entre gestão e subjetividade.
Kaës (1997) teoriza sobre as relações entre os grupos empíricos (o
quadro das organizações psíquicas organizadas) e os grupos internos (for-
ma e estrutura de uma organização intrapsíquica). Interessa-nos particu-
larmente seu reconhecimento de que os grupos empíricos têm efeito na
subjetividade e são possíveis e operacionais a partir das subjetividades
singulares envolvidas (Kaës, 1997). Estas relações se dão nas formações
psíquicas intermediárias, formações essas que não pertencem ao sujeito
individual nem ao agrupamento, mas à sua relação. E o autor baseia-se
para sua elaboração em Freud, Pichon-Rivière e Winnicott (Kaës, 1991).
Kaës (1991) tipifica quatro fontes de sofrimento institucional que
nos parece importante lembrar, desde que tem nos sido de muita utilidade
para compreender o que se passa no palco institucional.
→ Sofrimento do inextrincável
A aparição de identidade, ou aderência narcísica, traz junto com o
benefício do vínculo a indiferenciação e a angústia de dissolução. O desafio
Sejamos heterogêneos| 159
seria criar dispositivos capazes, ao mesmo tempo, de salvaguardar o vínculo
e as formas diferenciadas desse vínculo.
Tivemos, na nossa prática, evidências desse tipo de sofrimento. Nos
Caps as pessoas oscilam entre defender suas formas de trabalhar anterio-
res, o conhecido, ou se diluir em uma prática mais generalista. Nesses casos,
o trabalho de análise e reflexão sobre as categorias de campo e núcleo
(Campos et al., 1997) no espaço das reuniões semanais foi capaz de ajudar.
O conceito de núcleo foi fundamental, pois permitiu o resgate de uma
identidade profissional, sentida sob ameaça pela nova proposta de traba-
lho interdisciplinar (equipes de referência), identidade que pôde ser re-
construída por meio de um contrato claro em relação às competências de
cada um, ao mesmo tempo em que se criava um consenso sobre o campo de
trabalho comum da equipe. O campo contribuiu, assim, para a aderência
narcísica e o vínculo entre os membros do grupo.
→ Sofrimento associado a uma perturbação da função instituinte
Outra fonte de sofrimento institucional associa-se à perda da ilu-
são: “a falha de ilusão institucional priva os sujeitos de uma satisfação
importante e debilita o espaço psíquico comum dos investimentos imagi-
nários que vão sustentar a realização do projeto da instituição” (Kaës, ibi-
dem, p. 34, grifo do autor). Essa identificação narcísica com um conjunto
suficientemente idealizado é necessária para suportar as dificuldades in-
ternas e externas.
No setor público brasileiro, as mudanças de gestão, as tensões pelo
financiamento e as carências de planos de longo prazo atentam, o tempo
todo, contra essa identificação. Nas várias experiências das quais participa-
mos temos insistido no valor da pergunta para quê. Pergunta que, segundo
Testa (1997), interroga o futuro e tem a ver com o sentido dado às práticas
desenvolvidas. Dito de outra forma: a teleologia é possível a partir das
posições subjetivas dos sujeitos singulares e, uma vez explicitada, ela
age sobre a subjetividade singular e grupal. Toda vez que um grupo con-
segue escrever um para quê comum, está embarcando junto numa ilusão,
num sonho, ou, num projeto. Na saúde mental, os valores inspiradores da
reforma psiquiátrica possuem grande potencial para contribuir nesse pro-
cesso de construção da ilusão.
160 |Sejamos heterogêneos
Para Winnicott, além do reconhecimento do mundo interno e exter-
no de cada sujeito, seria necessário reconhecer a região intermediária da
experiência: “la tercera parte de la vida de un ser humano, una parte de la
cual no podemos hacer caso omiso, es una zona intermedia de experiencia
a la cual contribuyen la realidad interior y la vida exterior” (1999, p. 19, grifo
do autor). Ele estende o conceito de fenômenos transicionais ao mundo dos
adultos por meio da arte, da cultura e dos projetos que aglutinam pessoas
em prol de um sentido comum.
Estudio, pues, la substancia de la ilusión, lo que se permite al niño y
en la vida adulta es inherente del arte y la religión, pero que se con-
vierte en el sello de la locura cuando un adulto exige demasiado de la
credulidad de los demás cuando los obliga a aceptar una ilusión que
no les es propia. Podemos compartir un respeto por la experiencia
ilusoria, y si queremos nos es posible reunirlas y formar un grupo
sobre la base de la semejanza de nuestras experiencias ilusorias.
Esta es una raíz natural del agrupamiento entre los seres humanos
(Ibidem).
Para ele, a ilusão é parte dessa região intermediária, transicional, da
experiência, que guarda relações com os objetos internos e externos, mas é
distinta deles. “Ese aspecto de la ilusión es intrínseco de los seres humanos,
e individuo alguno lo resuelve en definitiva por si mismo [. . .]” (Ibidem, p.
30). Diz-nos Winnicott: “el juego debe ser estudiado como un tema por si
mismo, complementario del concepto de sublimación del instinto” (1999, p.
62). Para ele, isso deveria ser considerado tanto em relação às crianças,
como aos adultos, manifestando-se, nestes últimos, através da “elección de
las palabras, en las inflexiones de la voz, y por cierto que en el sentido del
humor” (Ibidem, p. 63).
Experimentamos la vida en la zona de los fenómenos transicionales,
en el estimulante entrelazamiento de la subjetividad y la observación
objetiva, zona intermedia entre la realidad interna del individuo y la
realidad compartida del mundo [. . .] (Winnicott, ibidem, p. 91).
Sejamos heterogêneos| 161
Todo projeto é possível num espaço transicional, de experiência, que
nunca será objetivo, que não está dentro nem fora. Por isso é impossível
recortá-lo objetivamente. Todo “querer-fazer” estará sempre marcado, ine-
vitavelmente, pela percepção de mundo, pela postura subjetiva, pelas for-
mas que a relação entre os sujeitos assume naquele lugar e tempo e pelos
entraves do real concreto.
Contudo, essa ilusão, que sustenta o risco e o sacrifício de participar
da inovação, quando mantida na recusa, provoca o fracasso. Para Kaës,
todos os fracassos contratuais podem ser considerados um sofrimento da
fundação e da função instituinte. O mito, a utopia, a ideologia são forma-
ções intermediárias estruturantes e defensivas, tanto seu excesso, quanto
sua falta, são fonte de intenso sofrimento. As instituições devem criar uma
história sobre sua origem, devem também imaginar uma utopia e uma
figura da sua negatividade, se não as imaginarem “correm o risco de inscre-
vê-las no seu funcionamento” (Ibidem, p. 35).
Porém, como em qualquer vínculo, o agrupamento administra uma
parte do recalque de cada sujeito. Kaës chama isso de pacto denegatório,
que seriam estas zonas de obscuridade profunda, cuja fórmula cultural é a
utopia, o lugar de parte alguma e o não lugar do vínculo. Há também
tendência do mito fundador de fixar a narrativa desse tempo e criar uma
genealogia afiliativa fixa.
Por isso damos valor às narrativas institucionais para pensar os gru-
pos em sua relação com seu trabalho. Há sempre uma história, há sempre
um mito fundacional e algumas outras mitologias que operam como recal-
cadas. Na nossa experiência temos assistido inúmeras vezes a comporta-
mentos do tipo “disso não se fala”, mas, adverte-nos Kaës, quando disso
não se fala, disso se atua. E o mito — a narrativa — recalcado atua como
fonte de sofrimento evitável. Em geral, a história das dores, dos sofreres, dos
quereres e frustrações das pessoas concretas que ali sonham e trabalham é
sempre velada, apagada, silenciada. Nosso trabalho haverá se abrir às nar-
rativas ocultas, às vozes silenciadas. . .
Pensamos que este momento narrativo pode ser eficaz (isto é, ter
efeitos) ainda que ele trate do insucesso. Se todos os fracassos contratuais
podem ser interrogados sob a ótica do sofrimento da função instituinte, sua
narração contribuiria para a eficácia, uma vez que o grupo se dedicaria a
162 |Sejamos heterogêneos
entender o porquê do descumprimento do contrato. Nunca se deixa de
cumprir um contrato por nada.
Cada vez que isto acontece, estão em jogo outras questões que de-
vem ser interrogadas. Na maioria das vezes, essas questões estão no pas-
sado do porquê, que, como diz Testa, explica. E é na análise dessa explicação
que as mitologias recalcadas poderão vir à tona, é no momento de uma nova
narrativa vir à tona que alguma coisa se produz no grupo.
→ Sofrimento associado aos entraves para a realização da tarefa
primária
A tarefa primária é o que classicamente se entende por finalidade.
Kaës ressalta que, às vezes, outros dispositivos acabam por suplantá-la. A
instituição protege os seus sujeitos da própria tarefa. O que faz uma equipe
qualificada dedicar seu tempo a outras tarefas (preencher formulários, agen-
dar viaturas, etc.), em prejuízo da sua função terapêutica? A natureza do
investimento psíquico é aqui uma variável importante. Nas instituições
que trabalham com pessoas, a agressividade volta-se contra elas mesmas
(estudantes, doentes, colegas), ao passo que nas que trabalham com outro
objeto, ela se volta para o externo ou para a estrutura de direção. Kaës
(1991) destaca que as identificações mobilizam os trabalhadores, aumen-
tando o risco narcísico. Seria, então, necessário fornecer uma contribuição
narcísica suficientemente trófica para a realização da tarefa.
Os entraves à realização da tarefa podem ser entendidos, então,
como um ataque à comunidade de realização de desejo sustentada pela
representação identificatória. Em contextos institucionais adversos, quan-
do não existem condições mínimas de trabalho — nem do ponto de vista
operacional: faltam materiais e pessoal — grande parte do sofrimento psí-
quico é produzido pela sensação de desvalorização narcísica que prima
entre os trabalhadores.
Nesses espaços, a principal e primeira tarefa do supervisor clíni-
co-institucional deverá ser abrir espaço para a recriação de um contrato
narcísico. Dar tempo e espaço para as pessoas se orgulharem do que fa-
zem, ou, se não for possível, pelo menos propiciar o orgulho por serem capa-
zes de sonhar um projeto comum. Ao contrário do que acontece em contex-
tos políticos ditos progressistas, quando não costumamos dar tempo e
Sejamos heterogêneos| 163
avançamos sobre o pessoal propondo mudanças. Ora, do ponto de vista
psíquico, essa proposta é insuportável, pois não considera os efeitos sobre o
narcisismo grupal.
→ Sofrimento associado à instauração e à manutenção do espaço
psíquico
O espaço psíquico, aqui entendido como o espaço psíquico institu-
cional ou do ser-conjunto, como o chama Kaës, diminui com a prevalência
do instituído, com o desenvolvimento burocrático, com a supremacia das
formações narcísicas repressivas, denegadoras e defensivas, com a estraté-
gia de dominação de alguns dos seus sujeitos, ou quando parte deles se vê
ameaçada. “A distância entre a cultura da instituição e o funcionamento
psíquico induzido pela tarefa está na base da dificuldade para instaurar ou
manter um espaço psíquico de contenção, de ligação e de transformação”
(1991, p. 36, grifos do autor).
As mudanças institucionais profundas mobilizarão sentimentos de
angústia, fantasias de aniquilamento, ameaças aos vínculos intersubjetivos,
etc. Kaës ressalta alguns mecanismos defensivos contra tais mudanças: a
ideologia, que tampouco é permanente, e cujas mudanças deixarão ressur-
gir angústias paranoicas muito profundas (com recursos delirantes ou psi-
cossomáticos como saída); ou a cooptação por parte do establishment insti-
tucional dos novos pensamentos, que passam assim a ser dominados,
controlados e banalizados para se pôr a serviço da mentira institucional
(Bion, apud Kaës, op. cit.). Enquanto isso, e ao mesmo tempo, a instituição
transmite a ideia nova, deformando-a.
Se não se analisam essas questões, se o próprio supervisor não revisa
seu trabalho e procura manter uma salutar alteridade, o risco é o de ser co-
optado pela lógica institucional, ao preço de ficar dentro da instituição (man-
tendo a própria ilusão narcísica de ser suficientemente bom para ficar) para
nada (reforçar o recalcado e engrossar mais uma mentira institucional).
Nosso modo concreto de trabalhar
Tentamos até aqui, mostrar quais conceitos da psicanálise temos
valorizado na nossa prática e como eles baseiam e podem dar sentido e va-
lorizar alguns dispositivos e arranjos com os quais temos trabalhado. Por
164 |Sejamos heterogêneos
tanto, poderíamos neste ponto afirmar que tomamos a supervisão clíni-
co-institucional como um dispositivo de formação e intervenção, cujas
principais estratégias de trabalho são:
a) A análise permanente da organização do processo de trabalho e do
cotidiano. A partir da definição da função social de um Caps — tratar
pacientes graves em regime de liberdade, no território, e com o propósito de
substituir o dispositivo hospitalar — definida pela política pública (Lei
10.216) será sempre necessário redesenhar a sua finalidade no território
em que está inserido, considerando a realidade local, as características da
rede de serviços de saúde, os suportes sociais e comunitários existentes, o
fluxo dos pacientes graves nesse território, e as potencialidades e possibili-
dades da equipe.
Só então será possível desenhar o projeto que favorecerá o seu alcan-
ce. Esse exercício será sempre processual e nunca estático e definitivo. Por
isso a organização do processo de trabalho e do cotidiano pode e deve
mudar na mesma velocidade em que mudam a forma de percepção, a
relação e as prioridades que emergem no território.
Castoriadis fala do projeto como projeção de desejos realizável junto
com os outros: a projeção de desejos que é possível como esperança para a
humanidade e não simples produção neurótica. Para esse autor, a psicaná-
lise deveria contribuir para desmascarar o melodrama, a falsa tragédia da
vida humana, não perseguindo, com isso, a ilusão de eliminar o lado trágico
— inevitável — da vida.
Para este autor, a descoberta freudiana deve ser entendida na sua
dimensão histórico-social; a questão da socialização da psique, da fabri-
cação social do indivíduo, começa com seu nascimento. Ele destaca que
Freud e a psicanálise se inscrevem numa tradição democrática e igualitá-
ria, pois:
o mito da morte do pai [referência a Totem e tabu, de Freud] não
poderia jamais ser relacionado à fundação da sociedade, se não in-
cluísse o pacto dos irmãos, portanto também a renúncia de todos os
viventes a exercerem um “domínio” real e seu compromisso em alia-
rem-se para combater quem quer que isso pretendesse [. . .] O
Sejamos heterogêneos| 165
“assassinato do pai” nada é e a nada conduz (senão a repetição sem fim
da situação precedente) sem o “pacto dos irmãos” [. . .] (1987, p. 89,
grifos e aspas do autor).
Käes também destaca o deslocamento produzido pela morte do pai
como uma “passagem do vínculo a-histórico da horda para o vínculo inter-
subjetivo, histórico e simbólico do grupo fraterno [. . .]” (1997, p. 37). Nessa
passagem, os homens se depararão repetidamente com a impossibilidade
de fazer funcionar a substituição do pai, “não podem executar essa substi-
tuição senão efetuando uma mutação no regime de culpas e no regime das
identificações [. . .]” (Ibidem). Dessa leitura pessoal da obra freudiana,
Käes extrairá sua assertiva do inconsciente “estruturado como um grupo”.
Em várias experiências de supervisão clínico-institucional vimos acon-
tecer dificuldades para fazer funcionar o lugar da coordenação/gestão e
cobranças endereçadas na forma de ataque aos gestores locais. Frequente-
mente, questões perfeitamente toleradas no gestor anterior foram violenta-
mente criticadas no novo personagem em exercício da função. Por que
seria? Outras referências se fazem necessárias para compreender nossa
forma de trabalhar nesses casos.
Uma das mais significativas elaborações das quais nos valemos para
operar encontra-se na elaboração de Winnicott sobre papel da agressivi-
dade e do uso do objeto.
O autor descreve isto muito bem em relação à criança, mas faz explí-
cita referência à sua aplicação no campo da técnica analítica com adultos e
na vida social. A diferença fundamental entre Winnicott e Freud a respeito
disso é que, ao passo que para Freud a agressividade é uma reação do Eu
às restrições impostas pela realidade, para Winnicott a agressividade é a
condição para a criação da realidade para o sujeito.
O bebê humano não sabe da existência dos objetos reais. Numa
primeira fase da vida todos os objetos são ele (e portanto objetos internos).
Na fase da agressividade primária, ele deve poder tentar destruir o objeto e
constatar que este lhe sobrevive. Não há raiva, diz Winnicott, nessa agres-
são, mas alegria de comprovar que o objeto resistiu à sua batida, e é por isso
que essa agressão não deve ser retaliada, as mães “suficientemente boas”
sabem disso desde tempos imemoriais.
166 |Sejamos heterogêneos
É a resistência do objeto que ajuda a criança a compreender a exter-
nalidade do objeto, é a criação do mundo que ocorre a cada vez, a cada novo
sujeito. Precisamos ter sido deuses um dia para advir humanos.
Winnicott trará isso para o campo da psicanálise (lembremos que
com essa fase dá-se início aos fenômenos transicionais):
“el sujeto crea el objeto, en el sentido de que encuentra la exteriori-
dad misma, y hay que agregar que esta experiencia depende de la
capacidad del objeto para sobrevivir. (Tiene importancia que sobre-
vivir en este contexto signifique no tomar represálias.) (1999, p. 123).
Isso também ocorrerá na análise. Sem a experiência de destrutivida-
de, o sujeito nunca coloca o analista fora e jamais fará outra coisa que um
tipo de autoanálise, pois o analista continuará a ser objeto interno. Isso
acontece, para Winnicott, no espaço transicional da análise, e a pior reta-
liação seria o analista interpretar a agressão, pois levaria o sujeito a uma
posição defensiva e não contribuiria para que ele, de maneira criadora e
jubilosa, chegasse sozinho à compreensão. O paciente pode e vai chegar
a compreender o que já sabe. Trata-se de não colocar obstáculo a esse
momento, de conseguir brincar com ele na área transicional, aceitando
ser destruído para virar objeto externo, e aí. . . Winnicott é duro, pois nos
coloca perante a necessidade de renunciar a própria satisfação na “inter-
pretação inteligente”.
Estendemos essa necessidade de sobreviver sem tomar represálias
ao papel da gestão (Onocko-Campos, 2003a). Quando nos deparamos
com esse tipo de reação de uma equipe contra seu novo gestor muitas vezes
temos ajudado ao próprio gestor a sobreviver sem retaliar. Em geral basta
fazê-lo compreender o mecanismo que está em jogo, que o ataque não é a
sua pessoa senão a sua função e suportar junto com ele os ataques nas su-
pervisões que em pouco tempo a equipe sairá da experiência fortalecida e
o gestor também.
Note-se, contudo que outras correntes como a da socioanálise fran-
cesa, por exemplo, tenderiam a interpretar esses ataques como legítimas
reações ao uso do poder e não realizariam intervenções diferenciadas com
o gestor (pois isso poderia caracterizar um conflito em relação à implicação
Sejamos heterogêneos| 167
do analista). Não negamos que haverá um momento da análise em que
tenha de se procurar, ao máximo, horizontalizar as relações de poder; é que,
segundo o compreendemos, isso chegará em um outro momento; primeiro
a equipe deve distinguir entre o eu e o não eu e em nossa experiência isso,
em geral, é experimentado em relação ao gestor.
Trabalhamos com grupos empíricos, que não são terapêuticos, mas
que precisam vir a ser também terapêuticos do ponto de vista da dinâmica
institucional. Ter esse e não outro objeto nos provoca e estimula. São os
problemas apresentados por esse tipo de intervenção que nos interrogam.
Contar na equipe com um referencial amplo e multidisciplinar é funda-
mental. Temos sido predeterminados disciplinarmente para nos fecharmos
por trás do escudo protetor dos saberes específicos. Custa-nos demais en-
trar no espaço intermediário, criativo, do saber alheio. A definição de Jean
Oury, do coletivo como heterogêneo para ser funcional à terapêutica da
psicose destaca ainda mais essa questão para nós. Oury fala-nos da necessá-
ria complementaridade, porém de uma complementaridade inconsciente e
não do somatório de especialismos, que permitem operar um coletivo de
maneira polifônica. Um cuidado para com os estilos de cada um se torna,
então, fundamental. Isso é particularmente importante em relação ao pes-
soal de nível técnico da enfermagem ou monitores, cujas percepções e insights
tendem a ser desvalorizados pelas equipes. Contudo, como dizia Tosquelles:
Tinha amadurecido uma convicção profunda: com a ajuda e a parti-
cipação das pessoas comuns como advogados, padres, camponeses,
pintores, seria possível, em curto prazo, criar bons serviços psiquiátri-
cos. Só estas pessoas tinham uma posição ingênua perante o doente,
ao contrário das que passaram por uma deformação profissional —
os mestres, os especialistas dos insanos, que foram treinados em
escolas de psiquiatria clássica — que não serviam para nada. . .”
(Tosquelles, 1993. Reportagem a Gallio e Constantino).
Há uma tendência da divisão social do trabalho a silenciar essas
vozes menos qualificadas formalmente, porém muitas vezes maravilhosa-
mente sensíveis às modulações do cotidiano. Costumo trabalhar em quase
toda sessão com um momento de “contação de causos” e dúvidas de mane-
168 |Sejamos heterogêneos
jo. Esse espaço tem se mostrado uma maneira interessante para fazer esses
membros das equipes tomarem a palavra, permitem a troca de informações
e muitas vezes acabam revelando conflitos escondidos.
Nesse sentido, é importante zelar para defender as iniciativas par-
ticulares de cada sujeito em tratamento, permitir as iniciativas próprias
de cada membro da equipe, com respeito ao estilo de cada um. Para o
supervisor é importante manter alteridade em relação à equipe, pois só
isso permitirá desvelar relações imaginárias que se constroem a partir
da suposição de saber do lado do supervisor, ou de determinados mem-
bros da equipe.
Se o dispositivo da supervisão clínico-institucional se mostrar poten-
te e operatório será também possível evidenciar relações imaginárias que se
constroem com base na suposição do saber pelo lado da equipe. Aparece-
rão também, muitas vezes, rivalidades internas e externas ao grupo.
Dar visibilidade e legitimidade ao saber que se apresenta do lado do
paciente será — em nossa opinião — o dever ético ineludível do supervisor,
de modo que favoreça que o desenho da instituição esteja cada vez mais
próximo da finalidade definida para ela em seu território.
Todavia continuamos a acreditar piamente na força criativa desen-
volvida ao tentar “fazer” algo com os objetos reais. Como disse Winnicott,
[. . .] el jugar tiene un lugar y un tiempo. No se encuentra adentro
según acepción alguna de la palabra [. . .] Tampoco está afuera, es
decir, no forma parte del mundo repudiado, el no-yo, lo que el indivi-
duo ha decidido reconocer (con gran dificultad y aún con dolor) como
verdaderamente exterior, fuera del domínio mágico. Para dominar lo
que está afuera es preciso hacer cosas, no sólo pensar o desear, y hacer
cosas lleva tiempo. Jugar es hacer (Ibidem, p. 64, grifos do autor).
Fazer, não somente pensar ou desejar. Para isso, às vezes estimula-
mos pequenas tarefas da equipe entre supervisão e supervisão: levantar
dados, experimentar outras formas de proceder, etc. sempre provocando o
registro e trazendo para reflexão posterior. Esse experimentar combinados
ajuda as equipes a lidar com o temor natural às mudanças e lhes oferece
ganhos de confiança na sua própria potência de transformação.
Sejamos heterogêneos| 169
b) A discussão e construção coletiva dos casos. É um dispositivo poderoso
porque revela o desenho do serviço: se as “formas de estar” oferecidas são
capazes de acolher a singularidade dos pacientes graves; como o serviço
opera (ou não) no território. Os casos têm a potencialidade de evidenciar
também, como os sujeitos em tratamento se relacionam com o outro, com o
mundo, ou seja, como vivem e sofrem em seu território.
Porém, para o supervisor clínico-institucional o caso escolhido pela
equipe a cada vez tem a qualidade de exaurir de alguma maneira o mo-
mento subjetivo da própria equipe, sendo um importante analisador do
processo de trabalho, que envolve a relação paciente/técnico/lógica institu-
cional. Costumo concluir a sessão de discussão de caso perguntando à
equipe por que eles acham que escolheram esse e não outro caso, e essa
simples questão tem-se mostrado útil para propiciar falas sobre as dificul-
dades no manejo do cotidiano, dissensos nas leituras clínicas, controvérsias
em relação ao grau de responsabilização da equipe pelos casos, etc.
É a discussão do caso que deve orientar a organização da prática da ins-
tituição. A construção do caso é uma operação que só pode se dar em equipe.
O elemento diferencial nessa abordagem vem de uma atitude indi-
cada pela psicanálise que pode ser tomada mesmo por não psicana-
listas. Mas uma coisa é certa, é preciso que haja um despertar para a
clínica nessa direção. A presença de um psicanalista poderia ajudar
bastante, desde que este não se apresente como o portador da “boa
nova” e sim como mais um “aprendiz” convocando os demais a faze-
rem o mesmo. Eis a diferença que importa, a contribuição que pode-
mos dar (Figueiredo, 2004, p. 85).
Em geral, buscamos trabalhar de maneira que garanta o “não saber”
sobre os casos. A história e o diagnóstico prévio podem dizer, sim, do sujeito,
mas apenas de forma limitada. É preciso sempre que o sujeito seja escutado
e acompanhado em seu trajeto no serviço, para que juntos, paciente e
equipe, definam a intervenção institucional garantindo a direção do trata-
mento. Direção que pode sempre ser tencionada em prol da produção de
um desvio na história de vida do usuário. E importante também cuidar para
que a construção coletiva dos casos se dê também e principalmente a partir
170 |Sejamos heterogêneos
da relação que o sujeito estabelece com o serviço, ficando atentos a que a
instituição possa estar, de fato, se oferecendo para o sujeito como um me-
diador na sua inscrição no laço social, respeitando sempre seu modo parti-
cular de fazer laço.
Pensamos que há ainda questões que uma supervisão clínico-institu-
cional deve evitar como o construir o conhecimento somente a partir de um
modelo de conhecimento racionalizado, com meios e métodos de produção
da verdade centrados preferencialmente na razão (o que chamamos de re-
edições do tratamento moral ou meros “treinamentos” dos pacientes). É
bem importante, também, evitar ocupar o lugar de mestria em relação à equi-
pe, ainda que sempre esteja em jogo um suposto saber. Essa suposição deve
ser operatória para a equipe e não uma verdade para o próprio supervisor.
Do ponto de vista clínico, ético e político é importante evitar que a
equipe atue seu poder, querer e saber sobre o paciente, capturando-o no
lugar de objeto de intervenção. Nunca devemos ignorar que há sofrimento
que decorre do encontro com pacientes graves, mas é bom evitar também
supervalorizá-lo, creditando a essa causa todo e qualquer sofrimento expe-
rimentado pela equipe.
Há uma dimensão de formação na supervisão — de transmitir um
modo de conhecer (e não um saber pronto). Esse modo de conhecer concebe
o conhecimento como algo processual, aceitando que há sempre imbricação
entre o sujeito e o objeto do conhecimento e que a formação se dá também
pela experiência. Por tanto, buscamos estimular que é preciso estar abertos
às experiências mantendo, todavia, um olhar crítico. O problema que decorre
desse modo de conhecer é que esse modelo de conhecimento não é hegemô-
nico em nossa cultura, e é comum que os profissionais o experimentem sem
se apropriarem do saber produzido e sem atribuir a ele o estatuto de conhe-
cimento a ser reconhecido em outros lugares ou contextos. É trabalho da
supervisão clínico-institucional valorizar esse saber que advém da experiên-
cia do encontro com o paciente. O desenho de uma clíinica intersubjetiva,
que não se dá na relação dual, privada, mas que é efeito de um encontro
complexo que envolve pacientes, profissionais, instituição e território.
Talvez possamos, agora, deter-nos no papel do supervisor clínico-
-institucional, valendo-nos de algumas considerações feitas por Winnicott
para o analista. Uma delas é a questão da maternagem, holding, suporte:
Sejamos heterogêneos| 171
suportar os outros no seu processo de constituição como grupo subjetivo,
sabendo o que está em jogo: identificação, narcisismo, angústia de dissolu-
ção, pacto denegatório, etc. Ou, como disse Kaës: criar um espaço suficien-
temente trófico, que alimente.
Outra é a questão do manejo, handing: há de se saber o quê fazer, ter
alguma coisa para ofertar, caminhos para mostrar. Alguns conceitos em
relação à clínica das psicoses, às formas de operar o Coletivo, certa forma de
organizar a participação no serviço, etc.
A autora agradece a professora Erotildes Leal com quem discutiu al-
gumas dessas ideias na oportunidade de um curso que ministraram juntas.
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