psicanalise e capitalismo

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Psicanálise e capitalismo Clara de Góes LISO DO SUÇUARÃO BIBLIOTECA PESSOAL Garamond

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Psicanálise

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  • Psicanlise e capitalismo

    Clara de Ges

    LISO DO SUUARO BIBLIOTECA PESSOAL

    G a r a m o n d

  • Copyright 2008, Clara de Ges

    Direitos cedidos para esta edio

    Editora Garamond Ltda. Rua da Estrela, 79 - 3o andar CEP 20251-021 - Rio de Janeiro - Brasil Telefax: (21) 2504-9211 e-mail: [email protected] website: www.garamond.com.br

    Preparao de originais e reviso Carmem Cacciacarro

    Capa Raissa de Ges

    Projeto grfico e editorao Estdio Garamond / Anderson Leal

    CIP-BRASIL. CATALOGAAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    G543p

    Ges, Clara, 1956-

    Psicanlise e capitalismo / Clara de Ges. - Rio de Janeiro : Garamond, 2008.

    Inclui bibliografia

    ISBN 978-85-7617-154-6

    1. Capitalismo - Aspectos psicolgicos. 2. Psicanlise. I. Ttulo.

    08-4937. CDD: 150.195

    CDU: 159.964.2

    Todos os direitos reservados. A reproduo no-autorizada desta publicao, por qualquer meio, seja total ou parcial, constitui violao da Lei n 9.610/98.

  • Este livro resultado de um ps-doutorado interrompido em virtude das razes que abundam na "Academia" quando a burocracia serve de desculpa s mesquinharias usuais. Fica o registro para que se inscreva em algum lugar que este o resultado de um trabalho feito quando eu estava afastada da sala de aula para fazer ps-doutorado.

    Parte do trabalho foi feito a partir do Seminrio de Eduardo Vidal, s quintas-feiras, na Letra Freudiana, embora ele no tenha nenhuma responsabilidade pelo que aqui escrevo. O livro foi se formando a partir de um Seminrio partilhado com Paulo Becker, dado tambm na Letra Freudiana, e das discusses com Thalita Aguiar, Cntia Almeida Ramos e Carlos Augusto Santana Pereira, alunos do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais.

    Agradeo a Cntia, Carlos e Thalita as leituras e sugestes, assim como o entusiasmo. Tambm a Paulo Becker, Ftima Vahia, Maurcio Lessa, Renata Salgado, Raissa de Ges, Conceio de Ges e Carlos Eduardo da Rocha e Silva, pelas leituras e sugestes, assim como pelos silncios.

    Agradeo a Carlos Nlson Coutinho pela acolhida.

    E finalmente ofereo este livro aos meus companheiros de trabalho da Letra Freudiana, escola de psicanlise.

  • SUMRIO

    Prefcio 9

    Apresentao 13

    1. Psicanlise e capitalismo 15

    2. A economia psquica 57

    3. A economia do capital 103

    4. A economia do gozo 165

    Referncias bibliogrficas 187

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  • Prefcio Paulo Becker

    Este livro um marco na histria das ligaes profundas entre a psicanlise e o marxismo, que constitui um repertrio desesperador de mal-entendidos. No pelo mal-entendido em si, que de resto inerente aos discursos que circulam em determinado momento e sempre deixam escapar algo do real que procuram cernir. O que desesperador a impotncia para utilizar os conceitos fundamentais destes campos do saber, para faz-los trabalhar tendo em vista o tri-lhamento significante de que so constitudos, os sulcos que abriram no pensamento, deixando restos que sem dvida s poderiam mesmo ser elaborados pela sua posteridade. Ao invs disto, assistimos s tentativas de impor um todo coeso e mediocremente reducionista s obras de autores que no so simplesmente autores; a pretenso de estabelecer o verdadeiro Marx e o verdadeiro Freud, por exemplo, quando em verdade eles so verdadeiras pedras constituintes da nossa cultura moderna e que se estendem na contemporaneidade, exercendo a sua influncia sobre qualquer pensamento que vem vindo depois, ainda que pela sua negao.

    A verdade a Histria; nos descaminhos do inconsciente, um saber se precipita como verdade. A psicanalista e poeta soube se amalgamar historiadora, incorporando a proposio. A psicanlise e o marxismo certamente devem o seu surgimento s condies histricas do capitalismo, mas vo alm, ressignificando o passado e lanando as bases de um futuro. Ser um tempo, este j agora, em

  • que a Histria incorpora a noo de estrutura e descontinuidade simultaneamente, os efeitos de sujeito, os vestgios de que emanam significaes no mais datadas. Modo de produo um conceito atravs do qual Marx define o que uma estrutura. O ponto de partida entender o capitalismo como uma economia de gozo. O corte radical feito por Marx reinstaura a verdadeira economia poltica, que no prescinde da linguagem.

    Freud, Marx e Lacan detectaram a estrutura binria do sig-nificante. Dois plos, mercadoria A e B, permitem a circulao de um elemento terceiro, um objeto a mais que se apresenta como o resduo, presena invisvel de algo que comum s duas.

    Pode-se trocar uma mercadoria qualquer por outras em diversas propores, mas o seu valor de troca permanece o mesmo... de toda forma, estes dois objetos so iguais a um terceiro que, por si s, no nem um nem outro. Cada um dos dois, enquanto valor de troca, so redutveis ao terceiro, independente do ou-tro (Karl Marx, Oeuvres, I: Le Capital, Gallimard-La Pleyade, 1973, p. 565)

    Clara de Ges nos torna compreensvel a assero de Lacan em sua Lgica do Fantasma (indito, p. 48): a desmistificao da pretensa conjuno do valor de troca com o valor de uso que Marx operou - fazendo aparecer a estrutura real onde se d a circulao do valor dependente do trabalho - vale tambm para a psicanlise. Pois no inconsciente algo funciona como valor de troca, e na via de sua identificao ao valor-de-uso que se fundam tanto o objeto-mercadoria quanto o objeto sexual.

    Tentaram usar Marx para postular um novo sujeito. um sonho recorrente. O novo homem no um novo sujeito. o sujeito de sempre, avisado da dimenso real material que o sobredetermina. Matria e no substncia; Marx, magnfico leitor de Aristteles, esclareceu que no h outra substncia seno o trabalho vivo,

  • energia, o desejo pulstil que emerge na dependncia profunda do Outro quando no enfrentamento da necessidade. E ele que nos diz: a essncia do homem poder tomar a sua prpria essncia como objeto. Exatamente como Hegel, Freud e Lacan; o sujeito se constitui no desejo do Outro.

    Marx no teria nada a opor quanto considerao da existn-cia dessa outra "quantidade desejante", que ele absolutamente no ignora, que se apreende como um dispndio de trabalho inerente ao prprio consumo e se esvai junto a sua noo de resto, resto com-posto do substrato da natureza e do trabalho "natural" de utiliz-la. O valor-de-uso portanto um amlgama do trabalho do homem e do trabalho da natureza, o que se torna claro na citao de Marx sobre William Petty; o trabalho o pai, mas a me a terra.

    O trabalho humano abstrato, uma pura quantidade real e formal, s pode se realizar na medida em que se serve do corpo da merca-doria. Ento temos um corpo enquanto valor de uso, consumo ou satisfao, quando ele se inscreve nos registros do real e do simb-lico, e tambm enquanto forma imaginria do valor, cuja existncia real e formal depende do corpo da mercadoria e ao mesmo tempo est fora dele (Karl Marx, Oeuvres, I: Le Capital, Gallimard-La Pleyade, 1973, p. 567). Freud e Lacan assinariam embaixo desta postulao, tambm vlida para o objeto do desejo.

    Para Zizek, existe uma homologia fundamental entre os mtodos interpretativos de Marx e de Freud - mais precisamente, entre suas respectivas anlises da mercadoria e do sonho. Em ambos os casos, a questo evitar o fascnio propriamente fetichista do

    "contedo" supostamente oculto por trs: o "segredo" a ser reve-lado pela anlise no o contedo oculto pela forma (a forma da mercadoria, a forma do sonho), mas, ao contrrio, o segredo dessa prpria forma. Pode-se dizer que o trabalho do sonho a prpria forma que ele conquistou, com um a mais que por ali passou, o prprio desejo. No h portanto uma verdade do inconsciente que

  • no esteja no prprio pensamento manifesto; trata-se do substituto originrio, uma bela expresso cunhada pela crtica de arte Rosalind Krauss, que encontra um antecedente nos estudos de Lacan sobre o recalque originrio. Para ele, a estrutura do recalque se d de um s golpe, e uma segunda representao, o S2, vem substituir uma original, o SI, que de fato nunca pertenceu ao conjunto das representaes ou significantes mas que possui uma existncia axiomtica que no deixa de exercer os seus efeitos. Ou seja, passa a existir com uma estrutura em operao.

    Enfim, vir um tempo em que o fascnio da forma, prpria de um modo de produo especfico, possa valer sem que a forma-mer-cadoria seduza pelo entupimento das necessidades, como se fosse possvel no perder nada de uma demanda que se retroalimenta... de sua prpria perda: a mais-valia. Porque o fetiche do dinheiro, os bilhes, os trilhes de hoje aspirados pela Histria, apenas a iluso do equivalente geral, mascarando a essncia da riqueza e das trocas, o ponto de real, o desejo-trabalho, que subverte a prpria lgica de uma equivalncia que se pretende universal.

  • Apresentao

    O estilo em que escrito este livro marca um ponto de cruzamento entre o discurso que circula na Universidade e a poesia. O discurso acadmico parece sufocar vozes de testemunho que irrompem no texto dando-lhe o ritmo de uma profunda descontinuidade. No corpo do texto, pulsa um eco, um monlogo subjacente s frases, que de vez em quando brota entre pargrafos. So como falas de personagens submersos que permanecem em outro plano da nar-rativa. No prprio texto, o que est sendo formulado encarnado por vozes entrecortadas, abafadas, esquecidas. Assim que a teoria atravessada pela poesia, esburacada por ela.

    So poucos os trabalhos que articulam histria e psicanlise, e menos ainda aqueles que o fazem fora de uma perspectiva cul-turalista. Este livro original no campo da histria por isso, por apontar, de um ponto de vista estrutural, trabalhando a psicanlise como discurso, novos objetos, assim como a abordagem da repro-duo ampliada do capital como forma e gozo. A racionalidade ocidental no responde mais pela rede de produo de sentido da selvageria contempornea; imprescindvel que seja incorporada s explicaes atuais a pulso de morte. H, neste livro, um caminho no qual se faz essa articulao.

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  • 1. Psicanlise e capitalismo

    Os poemas e as revolues se separaram. Nem todos os heris morreram de overdose, mas... ainda assim, os poemas e as re-volues se separaram. Andam cabisbaixos chafurdando entre batinas de padres e profetas... rabinos, pastores e ims. Os pobres, a quem eram to dedicados os acham demais. Por isso andam cabisbaixos chafurdando na lama dos esquecimentos. Envergonhadas nostalgias sussurram entre gritos inteis. Encarnados coraes rojos so como brasa dormida. Viro ainda os ventos s fornalhas ocultas? Transtornadas barricadas sem rumo incendiaro, ainda, as estrelas e poetas bbados de sangue dormiro, finalmente, em paz? Ainda que na Terra tudo cesse, os Cus respondero no com anjos e trombetas que estamos fartos deles, mas com raios e troves, tempestades de prata, carrossel.

    Urros infernais so uma espcie de batuque que permanece. Um ritmo ntimo e caribenho toma entranhas exangues de querer.

    Pode, a psicanlise, nos dizer alguma coisa a respeito desse sinto-ma da modernidade? A respeito desses seres exangues de querer? Pode-se falar de um colapso da modernidade, ou somente estamos a testemunhar a radicalidade crua de sua lgica posta a nu, a lgica do capital, pautada pela extrao de mais-valia?

  • 17 Clara de Ges

    Findas as promessas de redeno e de revoluo, o que resta como destinatrio do sofrimento das gentes?

    Os ideais romnticos se foram e a prpria razo claudica no corao dos homens... resta a vastido do mercado... a aborrecida vastido do mercado... solido.

    A questo deste livro uma questo moral. O que o motiva uma angstia que se articula no campo da moral, em busca de uma nova tica; uma espcie de mal-estar indizvel que recusa a impotncia e sua conseqncia mais imediata, o desespero; desespero diante da barbrie na qual os tempos contemporneos mergulharam, desespero diante da indiferena; indiferena que torna homogneos os indivduos e atravessa todas as classes sociais; indiferena diante da morte tornada corriqueira e banal; morte despojada de rituais fnebres, uma vez que no h nenhuma Antgona que a pranteie.

    Antgona, a herona de Sfocles, recusa a posio de impotncia e lana-se ao impossvel. desse lugar, lugar do impossvel, que uma tica, a tica da psicanlise, se produz. Uma tica que se constri a partir de um lugar lgico, o lugar do impossvel na lgica modal. Quantos efeitos, ou defeitos, esse lugar pode causar em tempos de gatos pardos e conformidade? Em tempos de derrota e destruio, o lugar do impossvel aparece como um ponto de fuga, de morte, capaz de instaurar um profundo desequilbrio nessa ordem que nos aprisiona e constrange. O impossvel, bom que se diga, no tem nada a ver com utopias; no uma projeo nem temporal nem espacial, um deslocamento para um futuro imaginrio tal como prometia o comunismo, nem para uma ilha perdida como queria Thomas More. O impossvel o ponto radical da falha. a que Antgona, tal como Edipo em Colono, afirma a vida, ou um certo modo de viver a vida, nos umbrais da morte. Antgona afirma uma lei, uma lei diferente daquela da cidade, do Estado ou do capital; da deriva uma tica como sustentao de um compromisso e no como derivao do temor ou do interesse.

  • Psicanlise e capitalismo

    Antgona tomada, por Lacan, como referncia para articular essa "nova" tica, a tica da psicanlise, ou a psicanlise como uma tica.1 Ela a filha de dipo, da linhagem dos labdcidas, a linhagem de Cadmo, fundador de Tebas. Justamente na fundao da cidade, Cadmo mata um drago de Ares e, por isso, a famlia amaldioada. Labdaco, neto de Cadmo, no contente com a maldio que pesa sobre a famlia, probe o culto a Dionsio e destroado pelas bacantes... Laio, seu filho, ainda uma criana, e por isso o poder entregue a um tio. Esse tio assassinado, e Laio, ento, foge. Hospeda-se na casa de Pelops, de onde seqestra o filho deste, o jovem Crisipo, com quem tem uma relao de amor. A essa altura j pode voltar para Tebas... A se casa com Jocasta e tem um filho, dipo. Sabe, ento, da existncia de um orculo, que anunciara que ele, Laio, seria assassinado pelo filho, dipo.

    Laio decide matar o menino para evitar que se cumpra o vaticnio, e entrega-o a um criado da casa para que o abandone na montanha. O criado toma a criana, mas no a mata. Entrega-a a um pastor para que a leve dali. O pastor leva dipo para Corinto, onde ele criado como se fosse o filho do rei. Ao crescer, dipo insultado por um bbado, que o chama de filho ilegtimo de Polibios, rei de Corinto. Transtornado, dipo se dirige a um orculo, que no lhe responde pergunta sobre sua origem, mas revela seu destino: matar o pai e se casar com a prpria me. Diante dessa profecia, acreditando ser filho de Polibios, dipo foge. Na estrada a cami-nho de Tebas, encontra um carro conduzido por um criado, que o empurra da estrada. dipo reage e termina por matar o criado e o homem que ele transportava.

    Tebas vivia acossada por um monstro, a Esfinge, que lana-va um enigma ao viajante e, se ele no adivinhasse a resposta, o devorava. A cidade, ento, anunciara que se algum decifrasse o

    1 LACAN, Jacques. O Seminrio, livro 7: a tica na psicanlise. Trad. Antnio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 96-97.

  • 19 Clara de Ges

    enigma da esfinge, seria posto no comando da cidade e receberia a mo de Jocasta, rainha que enviuvara recentemente. dipo apresenta-se diante da esfinge, que lhe pergunta: "qual o animal que, ao amanhecer, tem quatro pernas, ao meio-dia, duas pernas e ao entardecer, trs"? dipo responde que o homem. E decifra o enigma da Esfinge, que desaparece

    Freud toma essa histria mtica, tornada trgica por Sfocles, para formular a prpria estrutura do que h de humano no enigma da existncia; do que h de trgico e irremedivel nessa existncia. dipo no pode fugir ao seu destino, mas o destino no se impe de fora pra dentro, sem que o sujeito o efetive com seu ato. H uma determinao, mas que no se impe passivamente. preciso que seja efetivada. dipo, efetivamente, mata um velho e casa-se com a rainha Jocasta, viva de Laio, e tem quatro filhos: Antgona, Ismene, Etocles e Polinices.

    Um dia, os deuses cobram a conta do parricdio e do incesto. Na tragdia, no importa quais eram as intenes da personagem, o que ela sabia ou no sabia. H uma objetividade implacvel na responsabilidade do ato advindo de um no saber.

    A psicanlise guarda essa marca da tragdia grega. O sujeito responsvel por seu ato ainda que ele seja causado pelo incons-ciente.

    A peste desaba sobre a cidade de Tebas. Tirsias, o adivinho, consultado e responde que uma falta terrvel fora cometida e que somente com a punio do culpado o flagelo abandonaria a cidade. dipo, que detinha o poder, promulga a sentena de morte para o culpado. Comea a procura pelo culpado. O culpado o prprio dipo. O velho que matara na estrada era seu verdadeiro pai, e a mulher com quem tivera quatro filhos sua me. dipo cometera o pior dos crimes, e promulga contra si mesmo uma sentena pior que a morte: fura os prprios olhos e parte para o exlio. Ele parte acompanhado somente por Antgona, e amaldioa os filhos Etocles

  • Psicanlise e capitalismo

    e Polinices, que o teriam desrespeitado e destratado. dipo prediz que um irmo matar o outro.

    Os irmos, para evitar que a maldio do pai os atingisse, resolvem exercer o poder alternadamente. Enquanto um estivesse frente da cidade, o outro estaria fora e s voltaria no momento de assumir o poder que periodicamente mudaria de mos.

    Etocles est no poder e, quando chega a vez de Polinices, ele o expulsa da cidade e no cumpre o trato estabelecido. Polinices rene um exrcito e cerca Tebas. Etocles prope um combate entre os dois. Matam-se um ao outro. Creonte, o tio, frente da cidade, determina que somente Etocles receba as honras fnebres; Polinices ficaria insepulto - pasto de ces e abutres - por ter se levantado contra a cidade.

    A entra Antgona, e toda uma discusso a respeito da Lei, de seus fundamentos e da obedincia. Antgona recusa-se a aceitar as ordens de Creonte, a lei da cidade, em nome de outra lei, a lei dos deuses. Arrisca e perde a vida para cumprir essa lei que vem de outro lugar... o lugar dos deuses, ou, diria Lacan, o lugar do inconsciente, do desejo inconsciente.

    O pai, dipo, j carregava essa marca. Ele renuncia ao poder e aos bens pelo ato de cegar-se e afirma seu desejo nos umbrais da morte. Da, uma nova tica se produz.

    Antgona desobedece. Em nome da sobrevivncia no se pode aceitar qualquer coisa. A vida no o bem maior. A questo agir conforme... o qu? O desejo que habita em cada um. Antgona opta pela vida que a conduz morte. Era essa a pena ditada por Creonte para quem ousasse sepultar Polinices.

    [...] uma primeira vez nas trevas ela foi recobrir o corpo do irmo com uma camada fina de poeira que o cobre o suficiente para que seja velado vista. Pois no se pode deixar ostentando na cara do mundo essa podrido onde os ces e os pssaros vm

  • Clara de Ges

    arrancar retalhos para lev-los, diz-nos o texto, para os altares no mago das cidades onde vo disseminar, ao mesmo tempo, o horror e a epidemia.

    Antgona fez, portanto, uma vez esse gesto. O que est para alm de um certo limite no deve ser visto. O mensageiro vai contar o ocorrido a Creonte e assegura que nenhum vestgio foi encontrado, que no se pode saber quem o fez. dada ordem de dispersar de novo a poeira. E desta vez Antgona surpreendi-da. O mensageiro que retorna descreve-nos o que ocorreu nos seguintes termos: primeiro eles limparam o cadver daquilo que o cobria, em seguida posicionaram-se na direo do vento para evitar as emanaes medonhas, pois isso fede. Mas um vento forte comeou a soprar e a poeira foi preenchendo a atmosfera e at mesmo, diz o texto, o grande ter. nesse momento em que todos se abrigam como podem, se encapucham em seus prprios braos, se soterram diante da mudana de aspecto da natureza, com a aproximao do obscurecimento total, do cataclismo, a que se manifesta a pequena Antgona. Ela reaparece ao lado do cadver soltando, diz o texto, os gemidos do pssaro cujos filhotes foram arrebatados.2

    Antgona vincula-se a uma outra ordem. Enquanto "todos se abrigam como podem", Antgona geme. Diante e em meio a "ema-naes medonhas", ela desafia os poderes constitudos e cumpre os rituais fnebres sobre o corpo do irmo morto. Ela sustenta uma ao que se referenda em uma outra razo que no a razo de Estado.

    Freud tomara a tragdia de dipo Rei para escrever a operao na qual o desejo humano se articula. Lacan toma Antgona, dando um passo a mais: afirmado, o desejo inconsciente, como causa, como operador, como trabalho na produo de nossa prpria humanidade,

    2 LACAN, Jacques. O Seminrio, livro 7: a tica na psicanlise. Trad. Antnio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 319-320.

  • Psicanlise e capitalismo

    ele agora ser posto no lugar do Bem nessa outra tica, a tica da psicanlise. A questo, para a psicanlise, no se coloca em termos do Bem como justificativa ou juzo da ao moral. A questo se arma em torno da sustentao do desejo diante dos inmeros apelos para que se o abandone em nome da conformidade ao servio dos bens e promessa de felicidade tornada um "direito" no alvorecer da sociedade burguesa.

    A psicanlise no somente tem uma tica prpria, mas, mais do que isso, ela mesma uma tica, diz Lacan. Freud a constitui como uma tica. Como se pode entender isso?

    Talvez possamos partir de uma definio de tica como for-mulao dos pressupostos da moral. A tica seria uma espcie de explicao para a moral, para a ao moral que estaria situada no campo da experincia. Caberia tica explicar por que se deve seguir um caminho e no outro para cumprir a lei moral. Quais os fundamentos de uma ao certa ou errada? A partir de que refe-rncias possvel estabelecer o bem, o certo e o belo? As respostas variaram ao longo do tempo, mas, entre todas elas, um ponto estava sempre presente: o homem move-se em direo felicidade, e a felicidade atingida quando ele se comporta segundo o exerccio do Bem, que fundamenta, assim, a ao moral. Afirma-se o pri-mado do Bem; seria da natureza humana agir conforme o Bem, pelo menos para viabilizar a vida em sociedade ou por uma razo transcendental, um imperativo categrico; por isso se diz que ele, o Bem, o fundamento do certo e do errado, das escolhas que devem ser feitas a partir do livre-arbtrio. Freud rompe com tudo isso. Ao afirmar o inconsciente como causa determinante da ao humana, ele desloca o Soberano Bem do lugar de fundamento, para substitu-lo pelo desamparo, justamente por algo que marca uma falta. O fundamento da ao moral uma falta traduzida em desamparo. O homem age moralmente para no perder o amor e a proteo do Pai... diante das intempries da natureza, das restries

  • ('hirti de Ges

    sociais, de seus prprios quereres incestuosos... justamente esse pai que no pode sustentar esse amor e proteo no ponto em que reivindicado substitudo pela Lei.

    Se a tica fornece os pressupostos da moral, ento fica claro que Freud realmente estabelece a psicanlise como tica, uma vez que ela produz uma explicao para a conscincia moral sem ter como referncia a felicidade, mas o desamparo. No "Projeto para uma psicologia cientfica",3 ele vai dizer que as razes da consci-ncia moral esto no desamparo. A partir da, em outro momento, articular a questo do desamparo e da conscincia moral ao pai. No ao pai biolgico, mas funo paterna de sustentar a interdio ao corpo da me.

    O desamparo aponta para a perda ou obteno do amor, e o amor que conta a, segundo Freud, o amor e a proteo do pai. Essa a base da conduta humana, e sobre essa hesitao entre ganhar ou perder o amor do pai que se instaura a conscincia moral. O medo do castigo o medo do abandono do pai.

    Assim que a tica um princpio do julgamento da ao dos homens pautada pelo bem. Pode variar a compreenso, o estabe-lecimento do que seja o bem, mas no seu lugar de referncia tica e moral. Enquanto a tica diz respeito ao sujeito, moral concerne o social, os costumes, um carter normativo.

    A moral, segundo Freud, tem uma presso externa vinculada ao super-eu, instncia coercitiva que, quando do "naufrgio do com-plexo de dipo",4 se instaura como suporte da conscincia moral, destinatrio da libido liberada desse "naufrgio" no qual o desejo inconsciente se articula.5 Assim que a instncia moral do super-eu

    3 "El inicial desvalimiento dei ser humano es la fuente primordial de todos los motivos mo-rais". FREUD, Sigmund. Obras Completas, vol. I. Buenos Aires: Amorrortu, 1994, p. 363 (traduo nossa).

    4 A expresso de Freud. 5 Cf. FREUD, Sigmund. El yo y el ello. In: . Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu,

    1994.

  • Psicanlise e capitalismo

    est, de certo modo, articulada ao desejo; ao desejo como impos-svel, pois se d no mbito de uma interdio, interdio do corpo da me. E o desejo a dimenso ativa e produtiva do impossvel, diz Lacan em algum lugar. E por a que a tica da psicanlise vai se produzindo, por a... pelo impossvel... O que nos remete ao Real, definido por Lacan, justamente, como impossvel. O impossvel no tem nada a ver com impotncia; pelo contrrio, Lacan os ope 11111 ao outro. Posicionar-se diante do impossvel enquanto tal um modo de sair da posio de impotncia.

    A tica, desde Aristteles, articulada felicidade, e o obje-11 vo do homem seria levar uma boa vida. A tica desdobra-se no apenas na moral, mas na poltica, que deve ser baseada na virtude, t|iie supe uma pedagogia que a fomente, para que se obtenha, justamente, a felicidade, o Bem supremo. De Aristteles a Hitler, o bem que^ evocado no fundamento da legitimidade da ao do homem. A eutansia praticada pelos nazistas em pessoas com pro-Mcmas motores ou mentais era em nome do bem, pretendia libertar nquclas almas aprisionadas em um corpo doente. Prometia-se o li m do sofrimento.

    Lacan aponta trs tempos de certa forma necessrios e ante-riores formulao da psicanlise como uma tica: Aristteles, o uTi I itarismo de Bentham e Kant. A tica de Aristteles organiza-se em torno do carter, de sua formao atravs da afirmao da virtude e de sua propagao atravs de uma pedagogia. E o Bem que se afirma como horizonte e justificativa da ao moral.

    Bentham, no sculo XVIII, no j mbito do utilitarismo, se pergunta o que leva os homens a praticar o bem. E responde: a busca da felicidade, pois seria da natureza humana fugir do que lhe provoca sofrimento e buscar o que lhe d prazer. A se situa a u I i I idade; til aquilo que torna o homem feliz, e essa felicidade se encontra no domnio dos bens. O bem da comunidade, ou da cidade, seria a soma dos bens individuais. Kant define o Soberano Bem em

    FtimaCarimbo

  • 27 Clara de Ges

    termos transcendentais e articula a obedincia a seus pressupostos, quilo que marca o homem como tal, quer dizer, experincia da liberdade, entendida como submisso tica conscincia moral.

    O bem justamente o que Freud comea por negar. Em O mal-estar na civilizao, diz que no h nada, nem no microcosmo nem no macrocosmo, preparado para a felicidade do homem.

    Detenhamo-nos, um pouco, na leitura feita por Lacan do texto freudiano, leitura que o leva a afirmar que a psicanlise uma tica.

    O Bem, Freud define como das Ding, diz Lacan, na inter-pretao que elabora ao longo do Seminrio VII.6 E das Ding o que est definitivamente perdido e interditado no corpo da me. Eis a um ponto de articulao do desejo que se d como distncia de si mesmo, uma vez que o estatuto do objeto7 o do impossvel. Ento, instaura-se uma relao problemtica com o desejo, que, por sua vez, a referncia em torno da qual a tica da psicanlise se articula.

    E o que das Dingl A Coisa? Comecemos por dizer que, na obra de Lacan, assim como na

    de Freud, no fcil, e por vezes mesmo impraticvel, definir

    6 LACAN, Jacques. O Seminrio, livro 7: a tica na psicanlise. Trad. Antnio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

    7 "O objeto pequeno a de Lacan refere-se a um certo excesso que , no objeto, mais do que o objeto - o objeto causa de desejo. Diramos que ele menos o objeto do desejo do que o ele-mento desejvel que pode residir em qualquer objeto: o impulso para um ponto de consumao alusivo, que pode ser perfeitamente incidental no objeto em si (por exemplo, uma camisa que um dia foi usada por Elvis Presley). isso que 'autentica' o objeto e/ou a experincia de t-lo (como a idia de virgindade em Esse obscuro objeto de desejo, de Bunuel). Se considerarmos Pulp Fiction, de Tarantino, veremos que a narrativa gira, em ltima instncia, em torno de um objeto perdido/roubado dentro de uma caixa que precisa ser recuperada por Vincent e Jules. Esse objeto no pode ser visto, e h apenas uma aluso a ele no brilho reflexivo dos rostos dos protagonistas. esse o objeto pequeno a: algo cuja autenticidade no pode ser representada nem materializada, e que apenas um reflexo da pulso de completar o circuito (quebrado) do gozo e conciliar-se com o desejo (impossvel)." ZIZEK apud DALY, Glyn. Arriscar o impossvel: conversas com Zizek. So Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 10.

  • Psicanlise e capitalismo

    as palavras e formulaes em termos conceituais, embora Lacan tenha dedicado um ano de seu seminrio para o que chamou de "Os quatro conceitos fundamentais da psicanlise". A parte isso, o prprio modo de produo da psicanlise que impede o emprego de conceitos tais como a cincia ou a filosofia os reconhecem. Isso porque a psicanlise essencialmente o resultado de uma prtica clnica que se conjuga na particularidade de cada sujeito.

    Os conceitos em psicanlise no seguem o vis da filosofia. A filosofia, diz Freud, tem a iluso de "poder brindar uma imagem do universo coerente e sem lacunas";8 a psicanlise, no. Ela pres-supe a lacuna e a falha; ela se constri muito mais nos moldes da perspectiva da cincia, que se mantm como abertura por onde se reconstri em funo dos avanos da pesquisa de campo, do que em termos filosficos ou religiosos. Tambm a religio pretende se legitimar como um discurso no qual A Verdade se articula.

    Nosso campo a clnica. E aos seus impasses que a teoria responde. Ela vai se inventando como resposta aos pontos de resistncia ao tratamento; como produo e efeito do desejo de Freud de formular "as leis" do psiquismo, as foras a presentes na materialidade dos sintomas. H uma apropriao e reproduo de conceitos forjados como respostas dadas aos impasses da cl-nica. Foi assim com a formulao da pulso de morte, do desejo inconsciente, de das Ding. Essas formulaes procuravam respon-der, apareciam como respostas ao que Freud descobria na clnica, pontos aos quais os pacientes se recusavam a cruzar e continuar as anlises. Por exemplo, como explicar a repetio de situaes extremamente dolorosas das quais o sujeito tenta se livrar e nas quais teima em recair? Ou o tipo de relao problemtica com o prprio desejo, que se revela na irrupo de uma angstia quase

    8 FREUD, Sigmund. Nuevas Conferncias Introdutrias. Conferencia 35: Em torno de una cosmovision. In: . Obras Completas. Vol. XXII. Buenos Aires: Amorrortu, 1994, p.180 (traduo nossa).

  • Clara de Ges

    insuportvel justamente quando se aproxima de uma realizao qualquer? Essas so experincias recorrentes na clnica.

    Voltemos a das Ding. So vrias as formulaes que procuram apreend-la, e eu as tomarei em funo da questo que, aqui, se articula; a tica da psicanlise como uma tica que se diferencia e se ope tica do capitalismo, tica burguesa que alardeia uma moral que se justifica em nome do capital e do acmulo dos bens e do poder. A burguesia concebe uma organizao humana fundada na necessidade e na razo. A psicanlise toma sobre si a herana de Edipo, que renuncia aos bens e ao poder; e, necessidade, sobrepe a demanda e o desejo; e mais, define o desejo como o que resta de inarticulvel na demanda, ou seja, como impossvel de satisfazer.

    No que diz respeito ao que est em questo, ou seja, ao que se refere ao desejo, a seu aparato e desarvoramento, a posio do poder, qualquer que seja, em toda circunstncia, em toda inci-dncia, histrica ou no, sempre foi a mesma.

    Qual a proclamao de Alexandre chegando a Perspolis assim como Hitler chegando a Paris? O prembulo pouco importa [...] Vim liber-los disto ou daquilo. O essencial isto [...] Continuem trabalhando. Que o trabalho no pare. O que quer dizer [...] Que esteja claro que no absolutamente uma ocasio para manifestar o mnimo desejo. A moral do poder, do servio de bens [...] Quanto aos desejos, vocs podem ficar esperando sentados.9

    Na psicanlise o desejo no espera sentado. Ao contrrio, ele faz acontecer. A tica da psicanlise sustenta o desejo como operador da vida. Esse desejo, no entanto, no tem nada a ver com vontade, satisfao ou plenitude. Ao contrrio. O desejo uma espcie de aguilho incessante e incansvel que vem carregado de

    29 LACAN, Jacques. O Seminrio, livro 7: a tica na psicanlise. Trad. Antnio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 319-320.

  • Psicanlise e capitalismo

    angstia, justamente aquilo de que as religies e filosofias orientais querem se livrar.

    O campo da satisfao ope-se ao campo do desejo. O dese-jo, na psicanlise, est articulado ao impossvel... logo... em seus efeitos no se encontra satisfao, mas um lanar-se adiante na construo da vida. O desejo no um meio para se conseguir alguma coisa, ele o prprio fim. No recuar diante do desejo no morrer antes da hora.

    O passo de Freud o de mostrar que, no nvel do princpio do prazer (que poderia indicar a felicidade) no h nenhum Soberano Bem - que o Soberano Bem, que das Ding, que a me, o objeto do incesto, um bem proibido e que no h outro bem. Tal o fundamento invertido, em Freud, da lei moral.10

    Assim que a tica da psicanlise no a da felicidade ou da utilidade, ou da obedincia ao imperativo categrico. No se pauta pelo Bem que ratifique a ao, uma vez que a ao o fundamento de toda tica. Ao contrrio, ela se constitui como distncia estrutural com relao ao objeto que causa de desejo, quer dizer, que opera como "desejar". A ao que fundamenta a tica da psicanlise uma escuta, escuta na qual se articula o desejo, que, moda do oleiro, faz um pote, circunda das Ding, delineando um espao no qual o que h de mais ntimo circunscrito como o que h de mais radicalmente exterior: um pote cheio de vazio e cercado dele... de vazio. Vazio que pura exterioridade e que nos permite falar de ex-timidade, no lugar de uma intimidade.

    Freud fala em das Ding j no Projeto,u Nesse texto, um rascunho enviado a Fliess em 1895 e publicado apenas nos anos 50 do sculo XX... Fliess, o fiel e bizarro companheiro de Freud,

    10 Ibidem, p. 40. 11 FREUD, Sigmund. Proyeto para una psicologia. In: . Obras Completas. Vol I. Buenos

    Aires: Amorrortu, 1994, p.379 (traduo nossa).

  • Clara de Ges

    interlocutor nos momentos iniciais das formulaes freudianas... Pois bem, Freud envia-lhe um manuscrito onde escreve o que de-veria ser o modo de funcionamento do psiquismo sem considerar nenhuma patologia.

    Na parte do Projeto em que discute o modo como a realidade se produz, e pode ser distinguida de uma experincia alucinatria, atravs de uma operao do que chamou de Juzo, ele fala de das Ding. O juzo "[...] um meio de discernir o objeto que talvez tenha adquirido importncia prtica, originariamente um processo asso-ciativo de investiduras que vm de fora e investiduras provenientes do prprio corpo".12

    A partir da ele nomeia das Ding como o resto dessa opera-o do Juzo, como o que se subtrai a essa operao, situando-se, portanto, em uma dimenso que nem alucinao nem testemunho de realidade. "O que chamamos 'coisas do mundo' so restos que se subtraem apreciao judicativa".13

    Assim que das Ding se subtrai operao simblica fun-dadora do prprio inconsciente. uma pura exterioridade que Lacan utilizar como uma de suas nomeaes para o Real. Se a tica da psicanlise se articula a das Ding, isso quer dizer que ela tambm se articula ao real lacaniano, e da ao gozo e pulso de morte. Das Ding uma pura exterioridade em torno da qual as representaes inconscientes gravitam e contornam, repetindo a metfora do pote.

    No cerne da construo freudiana, das Ding permanece como buraco, falha em torno da qual a linguagem se ordena, produzindo a circunscrio de um vazio. Assim que no cerne do que seria o ser do humano est uma falha e no o bem ou o mal.

    12 FREUD, Sigmund. Proyeto para una psicologia. In: Aires: Amorrortu, 1994, p.379 (traduo nossa).

    13 FREUD, loc. cit.

    . Obras Completas. Vol I. Buenos

  • Psicanlise e capitalismo

    exangue a carne extinta suspira em vo...

    vero

    Ento, se das Ding o buraco, a falha, o que se subtrai ao jul-gamento instaurador de realidade; se o corpo da me interditado, das Ding impensvel. E se impensvel, estamos diante do que Lacan chamou de real.

    Se o objeto do desejo incestuoso est interditado, e ele est colocado no lugar do Bem, ento a tica da psicanlise aponta para a distncia do Bem supremo e no para sua aproximao. Aponta para que se estabelea uma distncia entre o sujeito e a Coisa, a Me - esse obscuro objeto de desejo, desde sempre e para sempre proibido, de cuja separao depende a instaurao da vida. Elimina-se, aqui, qualquer movimento em direo felicidade da completude, ao fim da angstia, ao paraso na Terra.

    [A tica] comea no momento em que o sujeito coloca em questo esse bem que buscara inconscientemente nas estruturas sociais - e onde da mesma feita (em um mesmo movimento) descobre a ligao profunda pela qual o que se apresenta para ele como lei est estreitamente ligado prpria estrutura do desejo. Se ele no descobre imediatamente esse desejo final que a explorao freudiana descobriu com o nome de desejo de incesto, descobre o que articula sua conduta de uma maneira que o objeto do seu desejo seja, para ele, sempre mantido distncia.'4

    H, aqui, um deslocamento essencial: o fundamento da lei, articulado ao bem, no sentido de que a lei conduziria, justamente, ao bem, deslocado do "social", da necessidade antropolgica, para a estrutura do inconsciente na qual o desejo o operador. E

    14 LACAN, Jacques. O Seminrio, livro 7: a tica na psicanlise. Trad. Antnio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 96-97.

  • Clara de Ges

    essa a escolha de Antgona. Acima (ou abaixo, tanto faz desde que no haja correspondncia entre elas) da lei da cidade est a lei dos deuses, a lei do desejo.

    Tal deslocamento possvel porque o que h de humano tem que ser articulado como significante ou, pelo menos, na ordem significante. O humano no se articula nem em termos biolgicos nem sociais.

    Tudo o que qualifica as representaes na ordem do bem encontra-se tomado na refrao, no sistema de decomposio que lhe impe a estrutura dos trilhamentos inconscientes, a complexificao no sistema significante dos elementos. E somente por meio disso que o sujeito se relaciona com o que, para ele, se apresenta em seu horizonte como seu bem. Seu bem j lhe indicado como a resultante significativa de uma composio significante que se encontra convocada no nvel inconsciente, isto , l onde ele ab-solutamente no domina o sistema de direes, de investimentos, que regulam profundamente sua conduta.15

    E nesse sentido que se pode dizer que o sujeito produzido pelo significante e marcado por um "no saber" que o determina. A necessidade, imperativo aparentemente responsvel pela manuten-o da vida, tem que ser articulada em termos significantes. Essa articulao - da necessidade na ordem significante, quer dizer, no mbito da linguagem - a transforma em demanda, e da que se pode definir o desejo como "resto inarticulvel da demanda". E isso que aproxima das Ding do desejo. No nos esqueamos de que Freud define tambm das Ding como "coisas" inarticulveis, uma vez que esto subtradas ao Juzo a partir do qual a realidade se constitui.

    Tanto Marx quanto Freud no reduzem o campo da experin-cia humana Razo e Necessidade. A partir dessa "insuficincia"

    15 Ibid., p.92.

  • Psicanlise e capitalismo

    no redutora, podemos dizer que ambos apontam para a questo do desejo; desejo como operador e como resistncia.

    [...] o desejo nada mais do que a metonmia do discurso da demanda. E a mudana como tal. Insisto [...] essa articulao propriamente metonmica de um significante ao outro que cha-mamos de desejo no o novo objeto, nem o objeto anterior, a prpria mudana do objeto em si.16

    Dizia, eu, que a questo deste livro uma questo moral; que a motivao para escrev-lo de ordem tica... o que em psicanlise implica colocar no centro da cena o desejo. uma questo de desejo, a questo deste livro, de gozo e de desejo, portanto de angstia. Angstia e desejo caminham de mos dadas pelas veredas da ao moral que est no cerne da ao humana. Pautada por uma outra tica, a tica da psicanlise, que pe no lugar do Bem, como referncia da moral, a sustentao do desejo, desejo que no se encaminha para a satisfao mas para manter, como operador, a vida insistentemente imbricada na pulso de morte, que, por sua vez, a sustenta como repetio, vale dizer, como resistncia morte.

    A pulso de morte sustenta a vida como resistncia morte "da a insistncia para que no se confunda "morte" com "pulso

    de morte". A pulso de morte secunda o sexo, transformando-o em erotismo; quanto morte... Voltemos tica da psicanlise.

    No se trata, aqui, da moral puritana assente no Utilitarismo, no servio dos bens que traz ao espao pblico a lgica do interesse privado; lgica devidamente desalojada desse lugar universal por Kant, na medida em que ele separa o fundamento da ao moral do interesse "menor' do indivduo e o articula Razo em torno da qual se define a "natureza humana".

    Assim que a tica da psicanlise instaura um outro lugar...

    16 LACAN, Jacques. O Seminrio, livro 7: a tica na psicanlise. Trad. Antnio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 96-97.

  • Clara de Ges

    fiquei tentada a escrever "possvel", mas me lembrei que isso da ordem do impossvel... Ento, a tica da psicanlise instaura, a partir do impossvel, uma operao que se sustenta no inconsciente, no como programa idealista ou utpico, mas como afirmao de uma estrutura, justamente a estrutura do inconsciente.

    A moral de que se trata no a moral baseada em uma tica que promete a felicidade como Bem Supremo, em troca do sacri-fcio do desejo, do apagamento da angstia, da negao do cons-tante entrelaamento entre a vida e a morte, o que levou Freud formulao da "pulso de morte". No h como aplacar a angstia na relao do sujeito com seu desejo... j nos referimos a toda essa histria de das Ding como estrutura dessa relao que, no dizer de Lacan, sua prpria morte... vide o exemplo de Antgona. Assim que no se trata da moral que inaugura um estilo que se inscreve historicamente no sculo XVII, estilo correlato da formao da subjetividade moderna, do discurso da cincia e da acumulao primitiva do capital.

    A moral de que se trata aquela que se produz, como experi-ncia desse pressuposto de no ceder sobre seu desejo; desejo cujo lugar de escuta e produo uma anlise, pois a que se afirma o campo do inconsciente enquanto tal.

    Freud localiza, como instncia moral, uma construo arti-culada ao super-eu... e o super-eu insacivel.17 Quanto mais se o satisfaz mais ele pede sacrifcios. E essa sua economia: tornar-se mais exigente na medida em que mais atendido. Apresenta-se como uma economia da falta baseada no excesso. Por isso, a psicanlise no pode prometer nenhum paraso na Terra ou no Cu. No pode prometer o fim da angstia ou o fim de um mal-estar que inerente, que define o que poderia ser chamado, se estivssemos no sculo XVIII, de verdadeira natureza humana. Isso porque o humano se

    17 Cf. FREUD, Sigmund. El yo y el ello. In: Amorrortu, 1994.

    Obras Completas. Buenos Aires:

  • Psicanlise e capitalismo

    instaura na vida atravs do desamparo, que o pe em contato, no momento em que nasce, com a ameaa da morte se ningum o recolher. Esse "recolhimento" vincula a pulso de morte expe-rincia do amor e da proteo. A pulso de morte no se confunde com a morte propriamente dita. A pulso de morte condio da vida, pois sua presena aparece na estrutura mesma da repetio na qual a vida se constitui. O que se sabe, da vida e do sexo, passa pela pulso de morte. E isso, o erotismo e o gozo.

    Produz-se, a partir do super-eu, da constituio da instncia moral presente na conscincia, uma formao estrutural na qual um discurso comparece, discurso do qual est excluda toda promessa de completude, de normalidade, de ausncia de conflito.

    O sculo XXI comea sob o signo do assombro, os tempos sombrios, de que falava Hannah Arendt, tornaram-se me-donhos. escapou do peito o "Corao das trevas", a selva no foi mantida entre os negros mas retornou no idioma dos brancos, a cincia brindou-nos com a bomba atmica e no parou mais. Hiroshima brilha no centro de nossa civilizao, o espao pblico tornou-se o loccus privilegiado do terror. A brutalidade campeia e a vida sussurra acabrunhada nos

    ' mercados da morte. Os ideais romnticos se foram. Permanece a longa e tediosa amplido do mercado, amplido na qual, aqui e ali, irrompem rochas como resistncias que no cessam... justamente porque se repetem... um pouco mais. Os cus de Bagd no tinham cessado ainda de suspirar mil e uma noites e j, a brisa do deserto, tombava sobre a cida-de numa pesada tempestade de areia, a mesma brisa, que sempre refrescara os devaneios do Ocidente, trazia o cheiro da "me de todas as bombas" como anunciava o presidente dos Estados Unidos da Amrica, que fantasia materna, a do presidente... a me de todas as bombas... o presidente diz ao

  • 37 Clara de Ges

    mundo o que espera do Oriente Mdio: que tenham apren-dido a lio, um tanque norte-americano atira em um grupo de jornalistas, e o mundo assiste barbrie pela televiso, prisioneiros so levados para um territrio fora da lei. o que isso? um territrio fora da lei... a tortura no tem nenhum tipo de constrangimento, as crianas palestinas trocam o gnio da lmpada por submetralhadoras russas... bem menos poderosas...

    Diante de tudo isso, um discurso resiste selvageria do capital. Resiste como um horizonte perdido que incessantemente retorna como impossvel. Seria universal e absolutamente determinado que a matana assim se desse? A psicanlise no pretende eliminar o sofrimento dos homens com a promessa de parasos perdidos para alm da Morte ou da Histria (talvez uma esteja mais ligada ou-tra do que se possa pensar). O que a psicanlise oferece em meio ao horror da contemporaneidade uma escuta e uma tica cuja matria o desejo e sua sustentao. No promulga uma retrica da salvao. Apenas uma escuta na qual se esvazia o sofrimento sintomtico, aquele que nos leva a procurar um analista. H como que uma decantao do sofrimento, decantao possvel quando o sujeito se v ou se reconhece na repetio que reitera e constitui o sintoma do qual se queixa. Um sofrimento aparentemente insen-sato se articula como pensamento cadeia significante, e isso tem conseqncias: perde foras quando falado, h uma espcie de esvaziamento.

    A repetio uma forma de resistncia. Resistncia que ca-minho no qual uma anlise se faz como percurso e obstculo. Uma anlise, por exemplo, no se d sem uma transferncia na qual o ana-lisante imputa ao analista um lugar no seu sintoma. A transferncia, no entanto, se condio da anlise, tambm um obstculo a ela, uma vez que o analisante, por raiva ou por amor, tende a se enredar e a deixar de lado o sintoma fixando-se na pessoa do analista. Faz

  • Psicanlise e capitalismo

    da transferncia o sintoma. Assim que o analista nem pode resistir transferncia e tentar interpret-la, nem sucumbir a ela acreditando que "de fato" lhe dirigido tanto amor e/ou tanto dio.

    desse modo que a psicanlise opera. E opera como um discurso advertido contra o Bem, contra a tentao da caridade e da compaixo, do exerccio do mandamento "amai ao prximo como a ti mesmo". Imperativo impossvel de cumprir, no tanto pelo "prximo", mas pelo "como a ti mesmo", pois h um abismo intransponvel entre "ti" e "mesmo". No cerne do que seria o "a ti mesmo", que poderia ser tomado como a "essncia" do eu, como suporte do "a ti mesmo", no se encontra uma identidade ontolgica, mas um conflito, uma diviso, uma falha. Diria Marx, luta.

    A psicanlise um discurso advertido quanto impossibili-dade de responder a uma demanda que se apresenta ao analista, como evocao de uma promessa imaginria de findar o sofrimento atravs da compreenso, atravs do "conhece-te a ti mesmo" como se a causa de um padecer, ao ser desvendada, cessasse de existir. Aqueles que procuram uma anlise, por vezes, se comportam como os peregrinos da Antigidade: procuram um saber que os livre de um destino tanto mais ameaador quanto desconhecido. a velha esperana de que a compreenso liberte, como se fosse a ignorncia a causa de um pesar incompreensvel.

    quanto perigo tardio, passado decomposto futuro do pretrito desfeito algaravia de silncio aurora triste

    A escuta analtica implica o sujeito na produo de seu so-frimento sintomtico. A uma construo se produz e, no melhor dos casos, se desprende o prazer do sofrimento, o tanto de gozo ali retido, permitindo ao sujeito suportar a angstia da existncia diante da qual a Modernidade se erigiu como um sintoma.

  • 39 Clara de Ges

    At o advento do que seria a Modernidade, por volta do final do sculo XV, o Homem, tal como o humanismo da Renascena constituiu, no existia como subjetividade delineada e, portanto, separada, irremediavelmente, do resto do Cosmos. No perodo que vai do Renascimento, final do sculo XV, at o sculo XVII, quando se consolida a cincia moderna, d-se um corte extraordinrio na cultura do Ocidente, corte esse que o Iluminismo, no sculo XVIII, vai arrematar. um corte de fundao.

    Produz-se um corte radical, efeito da separao que comea a acontecer entre o Pai e seus filhos, entre a criatura e o Criador. Trata-se do silncio de Deus, "le Dieu cach", de Pascal, ou o Deus-garantia, de Descartes. O sculo XVI ouvira os ltimos estertores de Deus nos msticos, os ltimos a suportar a presena desse Deus sfrego de amor.

    A partir desse corte, que se d tanto no mbito de um reor-denamento da estrutura produtiva que revolvida em suas razes, quanto na formao da subjetividade, aparece a angstia e, com ela, uma construo que a acalme: a modernidade e todas as suas promessas. Assim que a experincia dessa angstia se inscreve historicamente. a experincia de uma solido jamais sentida por-que se trata de uma angstia que somente um mundo despovoado de deuses poderia permitir. Da vem o consolo da Razo, assim como sua prepotncia. Da vem o romance e seu enredo carrega-do de sentido, como se fosse possvel explicar cada gesto de cada personagem, cada suspiro, cada olhar perdido.

    diante da falta do Pai, diante de um profundo desamparo, que a modernidade construda como promessa de felicidade. A felicidade no mais uma ddiva fruto da contemplao. Ela as-segurada como garantia tecnocientfica, como progresso consumido no mercado dos bens e das almas.

    Por que dizemos que a modernidade um sintoma? Pelo seu carter de resposta angstia brutal do desamparo, resposta que

  • Psicanlise e capitalismo

    rearticula de modo inteiramente original o simblico ao real: o discurso da cincia no qual o imaginrio comparece por seu carter pleno de sentido.

    A modernidade como sintoma, quer dizer, como formao discursiva atravs da qual a existncia se torna possvel. A cincia substitui a configurao que at ento existira, fundada nas escri-turas interpretadas pelos doutores da Igreja, portanto em argumen-tos de autoridade. O real, que estava assente no colo de Deus, violentamente sacudido pelas matemticas, enquanto o imaginrio procura dar consistncia corporal a essa operao apresentando-o como se tivesse um sentido. Um saber se produz edificado sobre um no-saber inteiramente negado.

    Nos anos 1974/75 de seu Seminrio, Lacan se dispe a definir o que seriam esses trs termos, Real, Simblico e Imaginrio.

    Que sejam trs. O Real, o Simblico e o Imaginrio, o que quer dizer isso? H duas vertentes, uma que nos conduz a homoge-neiz-los, o que arbitrrio. Que relao h entre eles?

    Poder-se-ia dizer que o real o que estritamente impensvel. Seria, ao menos, um ponto de partida. Faria um buraco no

    , negcio. [...] O que de mais difcil eu introduzi, sublinhemos, que na medida em que o inconsciente se sustenta nesta alguma coisa que por mim definida, estruturada como o Simblico, do equvoco fundamental para com esta alguma coisa, que se trata, sob o termo de Simblico com que sempre vocs operam. Falo aqui daqueles que so dignos do nome de analista.

    O equvoco no o sentido. O sentido aquilo pelo que alguma coisa responde, que no o simblico, essa alguma coisa, que no h meio de suportar seno pelo imaginrio. Mas o que o imaginrio? [...] H algo que faz com que o ser falante se mostre destinado debilidade mental. E isto resulta to somente da de-finio de imaginrio, naquilo em que o ponto de partida deste

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    a referncia ao corpo e ao fato de que sua representao, digo, tudo aquilo que por ele se representa, nada mais ser do que o reflexo do seu organismo.18

    Assim que o real o impensvel, portanto o que no cessa de no se escrever (outra definio dada por Lacan, no Seminrio XX), o buraco que fura o simblico, que, por sua vez, da ordem do equvoco, e o imaginrio que recobre o organismo.

    A tica da psicanlise da ordem do real na medida mesma em que o que a se sustenta uma falha. A partir da que um sujeito se produz como efeito de estrutura; quer dizer, como efeito da ligao de um significante a outro significante. Nessa ligao, alguma coisa se perde e essa alguma coisa que fica como um resto da operao vai ser nomeada, por Lacan, como objeto a. Dessa perda, tambm o sujeito se produz como correlato do objeto - como se o sujeito j aparecesse atravessado pelo objeto, portanto, dividido.

    O discurso da psicanlise supe o reconhecimento da falta e da falha a partir da qual o sujeito aparece como efeito de estrutu-ra. No oferece paliativos ou plulas. um discurso que parte da instaurao de uma experincia de limite, limite que efeito da interpretao, interpretao que o modo de operar desse discurso. O discurso do analista opera pela interpretao, cujo estatuto de ato, de ato analtico, chamado assim - "ato"- em virtude de seus efeitos no real do sintoma. um discurso que d suporte escuta analtica e que faz da fala, um texto; e o faz na medida em que a institui, a fala, como gramtica e no como sentido. O sentido, se apontar para a "compreenso" do sintoma, ter como resultado seu reforo. Assim que, atravs de uma escuta que se faa leitura, uma escuta que faa a passagem do som letra, da queixa ao sintoma, que assim se inscreve (e se escreve) na ordem significante como repetio. Ora, o sintoma s pode ser apontado como repetio se

    18 LACAN, Jacques. Le Sminaire, livre 22: R.S.I.. (Trabalho no publicado e traduo nossa).

  • Psicanlise e capitalismo

    for escutado e se se inscrever nessa escuta atravs da interpretao. Essa inscrio segue as regras de composio da linguagem; da falarmos em gramtica.

    A psicanlise instaura um discurso e isso que nos resta como limite loucura do capital.

    a respirao ofegante do tempo se espalha e, entre ns, gemem as crianas e as mulheres, o olhar humilhado dos homens sussurra estrelas, cercam-nos pressgios fatais, a escrita da histria oscila entre corpos mutilados e a internet invade o texto do mundo com fotos brutais, agarramo-nos aos escombros do mundo e de ns mesmos, construes milenares feitas de idias, pedras e suspiros, tombam sob os tanques dos novos senhores, jovens louros e robustos gritam a homens desorientados de medo e vergonha:

    - Speak english! Speak english!

    O capitalismo, com seu modo de produo baseado na pro-duo de um excesso - excesso que deve ser gasto no mais curto intervalo de tempo possvel, para que maiores quantidades desse excesso sejam produzidas e a seguir consumidas estrutura-se em torno da promessa de um gozo sem limite. Quais so os cor-pos que suportam esse gozo, efeito da produo incessante de um excesso? Os africanos... a frica, o Oriente Mdio, as favelas do Rio de Janeiro, a periferia das cidades latino-americanas.

    O gozo sem limite, sustentado pela pulso de morte, leva matana. O gozo sem limite a promessa de um discurso, o dis-curso do capitalista, o discurso que se produz em um lao social chamado capital. essa a promessa do capitalismo: um gozo que se detm apenas diante do preo. O preo a face imaginria do valor; o valor, a face simblica do preo, e o real comparece no trabalho que opera a estrutura. Marx define o capital como uma relao social, chamada por Lacan de lao social, discurso ou es-

  • Clara de Ges

    trutura. O lao social define-se como dimenso simblica cuja face imaginria se traduz no preo transubstanciado em dinheiro e cuja dimenso real dada pelo trabalho que opera a estrutura, e opera na estrutura, descrita por Marx na forma do valor. o dinheiro que sustenta, quando efetiva o mercado na operao de compra e venda, a possibilidade do gozo dos bens, que no sofre nenhum entrave a no ser o estabelecimento do preo. essa a funo do dinheiro na estrutura, e esta funo que Marx aponta em O capital.

    O desejo de entesourar [diz Marx] , por natureza, insacivel. Do ponto de vista da qualidade ou da forma o dinheiro no conhece fronteiras: o representante universal da riqueza material, pois conversvel em qualquer mercadoria. Mas qualquer poro real de dinheiro quantitativamente limitada, sendo meio de compra de eficcia restrita. Essa condio entre a limitao quantitativa e o aspecto qualitativo sem limites impulsiona permanentemente o entesourador para o trabalho de Ssifo da acumulao. Conduz-se, ele, como o conquistador que v, em cada pas conquistado apenas uma nova fronteira a ser ultrapassada.'9

    Eis o modo de vida e o estilo promovido pelo Capital, a me-tonmia.

    A metonmia uma figura de estilo que supe, entre as pala-vras, uma ligao que permita a substituio de uma pela outra. E suposto, ento, de sada, a estrutura significante que assegure, como pressuposto necessrio, a ligao estrutural de um significante a outro significante, formando, assim, a cadeia significante. A figura da metonmia um tipo de ligao que permite a substituio de um significante por outro, no caso, tomar a parte pelo todo, o que supe um modo de ligao baseado na contigidade. Por exemplo, trinta velas despontam no horizonte. A vela, uma parte, tomada

    19 MARX, Karl. O capital. Crtica da economia poltica. Livro I: O processo de produo do capital. Vol. 1. Rio de Janeiro: civilizao Brasileira, 1980, p.147.

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    pelo barco, o todo. A metfora, por outro lado, obtida quando a relao que permite a substituio de uma palavra por outra, poderamos dizer, a substituio de um significante por outro, ou ainda, em termos freudianos, de uma representao por outra, est assegurada pela comparao.

    Lacan toma essas duas figuras, a metfora e a metonmia, e as aplica ao texto da Interpretao dos sonhos, substituindo o que Freud chamou de condensao e deslocamento na formao dos sonhos. Freud fala da produo do sonho, em virtude da censura onrica, a partir de um modo que chama de deslocamento e de outro que vai chamar de condensao. Ele pretende demonstrar que todo sonho a realizao de um desejo inconsciente e que este desejo est sob recalque; alis, por isso que ele incons-ciente. Produzir o sonho, ou melhor, a produo do sonho, supe atravessar o recalque, chamado, nesse momento e nesse lugar - o sonho de censura onrica. E preciso atravess-la. Se o desejo inconsciente pudesse aparecer "tal qual" (e essa hiptese absurda porque o desejo no tem qualquer consistncia ontolgica), ele seria barrado por essa instncia, por essa operao, a operao da censura.pnrica. Assim que o desejo no se d "em si", mas se d suportado em um outro, em uma outra representao que o carregue. Nesse ponto, ele homlogo teoria do valor, expressa na forma do valor de Marx.

    Mas o que Freud prope? Prope a suposio de que esse de-sejo aparea travestido; com isso, ele explica o carter enigmtico dos sonhos, que chama de "deformao onrica". A deformao onrica, entretanto, no aleatria; ao contrrio, ela absoluta-mente determinada (ainda que sobredeterminada, quer dizer, com sobrepostas determinaes) em sua produo por dois modos de composio do sonho (poderamos dizer, em termos lacanianos, determinada pelas leis de composio da linguagem), a condensao e o deslocamento. Assim, um elemento do sonho transferido a

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    uma representao aparentemente inofensiva para a conscincia, o que lhe permite compor o sonho no qual o desejo est presente metaforizado. Alm de uma composio como condensao, Freud fala da composio como deslocamento. A no se transferem traos que so fundidos uns aos outros formando uma representao inicial-mente irreconhecvel ( por ser irreconhecvel que pode atravessar a censura onrica), mas se transferem as "cargas", as quantidades de que falaremos no prximo captulo. Uma determinada quantidade de energia libidinal adscrita a uma representao inconsciente deslocada a outra. Assim, podemos sonhar com algum que nos inteiramente indiferente e que no sonho nos desperta uma intensa manifestao afetiva.

    Freud d o exemplo de um sonho no qual havia um persona-gem que era efeito da fuso de traos de um tio, um colega e um professor; trata-se de um modo de condensao. J o afeto que essa figura despertava, no sonho, vinha deslocado de outro lugar. Lacan aponta a um deslocamento por contigidade, o que nos remete metonmia.

    Lacan vai chamar a condensao de metfora e o deslocamento de metonmia, aplicando ao sonho, quer dizer, a uma formao do inconsciente, o modo de produo da metfora e da metonmia. A metfora tida como um modo de produzir um ponto de parada na cadeia significante atravs de uma construo que permita es-tabelecer um sentido ou uma fantasia. A metonmia, por no estar amarrada a uma representao, mas ao deslocamento de quantidades, no teria um ponto de parada; dar-se-ia, ento, em um movimento incessante que remete de um significante a outro significante - ou de uma representao a outra representao.

    O carter incessante do capital me remete figura da meto-nmia. O desejo insacivel de que fala Marx; o dinheiro que no conhece fronteiras; o representante universal da riqueza material conversvel em qualquer mercadoria... e por a vai. Imputamos ao

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    capital um trao da estrutura psictica, uma vez que no modo metonmico que uma fala psictica se articula.

    A metonmia remete infinitude. No capitalismo, o dinheiro sustenta essa promessa, a promessa de infinitude, na medida em que permite que se compre qualquer coisa desde que se tenha a quantidade necessria para pagar o limite imposto pelo preo. No h qualquer entrave operao da troca a no ser a posse de um bem... seria o dinheiro um bem? No. Nem isso. O dinheiro o suporte material de uma inscrio simblica, a inscrio do valor. Marx o examina, ao dinheiro, ainda no Livro I, de O capital, quando aponta seu carter paradoxal. Este consiste em expressar infinitude nos estreitos limites da finitude. E este o trao que permite a pro-messa de um gozo infinito.

    No cerne daquilo que poderia ser tomado como a essncia do dinheiro, Marx instaura o seu contrrio. Na crena em seu carter infinito, na crena de que o dinheiro pode tudo, h o carter absolutamente finito do preo. Revela-se a uma funo paradoxal. essa perspectiva dialtica que nos permite afirmar e reconhecer, nos objetos epistemolgicos que Marx constitui e sobre os quais se debrua, os operadores da estrutura. No so objetos cunhados no seio de qualquer ontologia, por isso no se inscrevem nem na ordem do Ser nem na da Substncia. Em sua perspectiva epistemolgica, Marx no os constitui como seres, mas como operaes. No toa que ele fala em modos de produo e no em capitalismo.

    O dinheiro carrega a promessa, a possibilidade de se comprar qualquer coisa, em qualquer lugar e a qualquer hora, ao mesmo tempo em que est preso ao limite que o preo impe. Sem a quan-tidade estabelecida pelo preo, a operao de troca no se realiza. O limite a infranquevel. E infinito na promessa e implacvel no carter finito da operao. O que, de certo modo, quer dizer que a possibilidade da infinitude est restrita posse do dinheiro.

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    quantas fronteiras transtornadas acompanham os passos de depois? quanto de silncio necessrio a escavar, no corpo, os rastros dos deuses mortos? nanas do tempo, aurora de revs, entardecer.

    No modo de produo do capital, o dinheiro presentifica a metonmia, o que dificulta um ponto de parada, o estabelecimento de uma metfora, que mais no seja, delirante. Ou seria a guerra essa metfora? No modo de produo capitalista, o ponto de parada, o instante de produo de qualquer sentido est ancorado na guerra e no real da morte.

    A instncia imaginria do preo, encarnada no dinheiro, sus-tenta-se na operao simblica que se escreve na forma do valor e na operao do Real do trabalho. Assim, o Imaginrio (corpo do preo, dinheiro), o Simblico (forma do valor), e o Real (trabalho) se articulam como estrutura, como discurso cujo efeito a produo de determinado lao social, o lao social chamado capital. Aqui, jamais suficiente, ou satisfatrio, qualquer objeto, qualquer mercadoria. O mercado e sua dialtica aparente entre a oferta e a demanda se fundam na produo da prpria demanda como impossvel de satisfazer. Isso condio de possibilidade tanto do capitalismo quanto da psicanlise. Assim, podemos afirmar que o discurso da psicanlise um discurso que resiste, que insiste como resistncia - o prprio estatuto do inconsciente de resistncia significao - e que sem o capital e a prtica que instaura, no teria sido possvel a fundao da psicanlise. O discurso do capitalista condio de possibilidade da psicanlise. Condio de possibilidade, bom lembrar, no produz nem supe qualquer perspectiva teleolgica quanto inveno da psicanlise. No fosse o desejo de Freud... sabe-se l o que haveria.

    H um esgaramento das redes ancestrais de sustentao simblica, promovido pela implantao do capital como lao social hegemnico. A acumulao primitiva do capital subverte e desenraiza as formas de vida ancestrais nas quais as pessoas se re-

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    conheciam e firmavam seu cotidiano. O Cosmos medieval refletindo o microcosmo no macrocosmos rasgado em infinito, derrubando as hierarquias tradicionalmente patriarcais. O capitalismo revolveu a face da terra e colocou as razes da vida a descoberto. Criou-se, a, uma espcie de solido na qual a angstia pode aparecer. E se h angstia, h desejo e recalque.

    No que antes do capitalismo no houvesse desejo. Mas a mediao era sempre coletiva. Existir era fazer parte de uma ordem muito bem constituda e hierarquizada. Era um mundo de crentes. E como escreveu Freud no artigo "O Futuro de uma Iluso": "[...] o crente est protegido em alto grau do perigo de contrair certas neuroses; a aceitao de uma neurose universal o dispensa da tarefa de produzir uma neurose pessoal".20

    A neurose universal a religio. No bojo das revolues burguesas que pugnam por uma sociedade laica, o capital acaba por provocar e at exigir a produo de "neuroses pessoais" como modo de insero simblica. E essa a condio de possibilidade do sintoma psicanaltico e do sujeito.

    Sob o primado do capital, o lugar onde se reconhece e ratifica a existncia o mercado. A os homens se apresentam livres de toda e qualquer transcendncia. Apresentam-se como proprietrios!

    E aqueles expropriados de tudo? E aqueles que nada tm? Esses alienam uma parte de si mesmos e a apresentam como mercadoria a ser trocada por dinheiro, dinheiro que retorna quase imediata-mente ao mercado atravs da compra de mercadorias necessrias subsistncia. Os trabalhadores vendem, no mercado, um gasto de suas vidas, sua capacidade de trabalho sob a forma de fora de trabalho; a mercadoria cujo consumo acrescenta valor ao capital que a comprou para faz-la produzir.

    20 FREUD, Sigmund. El porvenir de una ilusion. In: . Obras Completas, vol. XXI. Bueaos Aires: Amorrortu, 1994, p.44 (traduo nossa).

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    H um movimento constante e dinmico de destruio de todos os entraves que possam obliterar a hegemonia crescente do mercado. preciso ser proprietrio para existir no mercado dominado pelo valor de troca. O sujeito lanado despossudo de todas as suas referncias ancestrais, mgicas e religiosas. As iluses se sustentam, precariamente, nos terremotos incessantes produzidos pelo capital. posta a nu a implicao do significante no sujeito quando a co-munidade, ou a Revelao, o que Lacan chamou de grande outro, escrito com "O" maisculo, est barrado. As relaes se tornam, cada vez mais, econmicas, livres das lealdades tradicionais, livres do discurso do mestre. A aparece, ou pode aparecer, a angstia, e se aparece a angstia, em termos lacanianos, se est diante do que ele chamou de objeto a, o objeto causa de desejo. O desejo pode, ento, se articular no sintoma de uma neurose pessoal... a partir da a psicanlise pode ser inventada.

    Na construo psicanaltica, o desejo pode se inscrever como o marco de um limite, limite derivado do resto insatisfeito da deman-da. Isso deixa rastros, o rastro de um riscado, o caminho do risco. A psicanlise se faz estabelecendo marcos, fronteiras e riscados... fazendo escrita, demarcando um campo, um territrio cujas fronteiras no so riscadas apenas para serem ultrapassadas... mas inscritas como limite e repetio. Por isso no um discurso que tome o rumo das desconstrues em voga, das "novas" subjetividades, da desterritorializao. Rasgam-se as linhas, ou a des-linha do simulacro que percorre os cus da contemporaneidade como uma pipa perdida e desgovernada... mas a psicanlise resiste.

    A psicanlise se escreve como rastro de um percurso. Da que o discurso analtico se oferece e opera como limite. Isso produz uma outra tica, a tica do desejo. O desejo inscreve-se como o marco de um limite que o resto inarticulvel da demanda, portanto se inscreve como impossvel... mas deixa um rastro. O rastro de um riscado, o caminho do risco que trao. Assim que psicanlise se

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    faz estabelecendo marcos, fronteiras e riscados. Vale dizer, que a psicanlise se faz como leitura de uma escrita, a escrita do incons-ciente.21 Essa leitura tem uma peculiaridade. Ela intervm na escrita que l. Isso porque o trao mnmico que se marca como letra dessa escrita pode ser realinhado pela leitura que se faa interpretao. por a que a psicanlise intervm no real.

    De um desejo articulado falta enquanto dado estrutural, o capitalista no quer ouvir falar. Em seu lugar, formula a promes-sa de eliminar a falta pela aplicao da cincia tecnologia que oferea, no mercado, os meios de obter satisfao e negar a falta. Essa promessa sustentada pelo carter infinito do dinheiro. Para obter satisfao tem-se apenas que ter dinheiro... pois ela deve estar disponvel no mercado, uma vez que a onde se realizam as fantasias na cultura burguesa. Quanto mais se insiste no apelo "ao desejo" como jogada de marketing, mais ele afastado da cena contempornea, em nome do prazer. O desejo suprimido em nome do imprio do prazer, forma particular da alienao no modo de produo capitalista.

    O desejo supe e requer a represso, o recalque original, cons-titutivo, recalque estrutural cujo efeito , propriamente, o desejo. O sonho seu produto mais popular e universal, embora se d na particularidade de cada um. Da que se pode formular uma outra tica, a tica do desejo que no sucumbe ao ideal do Soberano Bem nem ao imperativo do mercado.

    O sujeito no se produz na ordem do prazer e est implicado, enredado, no sofrimento sintomtico que o leva a procurar uma anlise. Sua implicao no sintoma se chama "gozo", gozar do sintoma no qual o desejo est enredado a sina com a qual ele se apresenta diante do analista. Produz-se a uma escuta. E na escuta desse gozo, escuta que produz uma fala, um dizer; uma fala que se

    21 Cf. REGO, Claudia Moraes. Trao, letra, escrita: Freud, Derrida, Lacan. Rio de Janeiro: 7 Letrjis, 2006

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    faz texto, que supe a traduo do sofrer em palavras, sob a forma da metfora ou da metonmia, pois bem, nessa escuta que o gozo toma a forma de um sintoma (por isso dizemos que o sintoma uma metfora), efeito da interpretao que demarca as fronteiras nas quais uma anlise se d.

    A escuta produz uma interpretao a partir da qual o sujeito pode reconhecer sua implicao nos seus atos e fantasias, na per-petuao, atravs da repetio, do sintoma de que padece e do qual se queixa. Esse discurso produz um lao que no forma massa, quer dizer, que no se conclui na estrutura da identificao. essa uma assombrosa afirmao. Nenhum discurso a indicara at ento: a produo de um lao que no estivesse sustentado na forma da identificao, forma responsvel pela instaurao do prprio com-plexo de dipo. As conseqncias dessa formulao lacaniana vo alm do consultrio. Permite pensar, ou apontar para a possibilidade de uma formulao indita: um lao, que apesar de congregar um grupo no o transforme em massa.22 Ser que essa construo pode apontar para uma proposta poltica at aqui indita?

    restos de aurora gemem na praa deserta, suspiros aguardam, ainda, nos bancos, os amantes ausentes, uma palavra de ordem arqueja a meio fio. bandeiras vermelhas esto verdes de mofo. amarelos brotam, resistem, mas duram pouco, faz frio. No pasarn! o eco.

    O sculo XXI inscreve-se sob o signo do abismo. Uma marca que assinala a origem da Modernidade, retorna, instaurando, no tempo histrico, um tempo que repetio e no passagem linear

    22 A propsito da noo de massa tal como Freud a constitui, ver "Psicologia das massas e anlise do Eu". (Cf. FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e anlise do Eu. Rio de Janeiro: Imago, 1993).

  • Psicanlise e capitalismo

    e evolutiva, um tempo que no se transforma em cronologia. E que marca esta? A marca do fim, do fim do mundo, do fim da histria, do fim do sujeito. essa marca de Repetio que nos permite falar da Modernidade como sintoma produzido enquanto estrutura, modo de enlaamento que define a Modernidade como construo adscrita ao capital.

    Uma marca que retorna uma marca de origem. E uma marca que se inscreve como origem, justamente em funo de seu retor-no, uma marca de fundao. Essa marca tem uma caracterstica prpria. Ela retorna, ela pode retornar, escapar ao rio de Herclito, justamente porque foi apagada como inscrio do primeiro tempo em que se deu como marca. Foi esquecida logo aps ser lida como signo de alguma coisa que ali se iniciava. Seu retorno uma segunda inscrio e essa inscrio se d como diferena. No repetio do Mesmo, mas repetio como diferena. Diferena que instaura origem, origem que se diferencia de comeo, pois no se perde no incio dos tempos histricos, mas retorna fundando a estrutura como repetio.

    Pode-se falar, a partir desta construo assente na repetio, de um tempo histrico que escape linearidade cronolgica e se constitua em um movimento circular que obedea estrutura da repetio.23

    Entendemos repetio como estrutura, o que supe uma disjuno entre o ponto de partida e o ponto de chegada, por isso falamos em repetio como diferena. No ponto de disjuno, a abertura do acaso se insinua, e uma experincia de criao se torna possvel - uma possibilidade de liberdade.

    Kierkegaard pensa o tempo no como passagem dialtica do passado ao presente, e da a um futuro esperado, como se fosse o desenrolar de uma cronologia que se instaurasse como processo

    23 Cf. KIERKEGAARD, S. Le Concept de Vangoisse. Paris: Gallimard, 1990.

  • Clara de Ges

    imanente ao Esprito ou matria. O tempo uma articulao en-tre a eternidade e o instante, na dimenso de um corte, quando o instante toca a eternidade e se inaugura uma experincia do tempo na qual a mudana se faz como salto e no como sntese dialtica conclusiva.

    O instante esse equvoco no qual tempo e eternidade se tocam, e esse contato que carrega o conceito de temporal no qual o tempo no cessa de rejeitar a eternidade e no qual a eternidade no cessa de penetrar o tempo. Somente ento toma sentido nossa diviso: o tempo presente, o tempo passado, o tempo a vir.24

    O que est em questo que Kierkegaard no reconhece a mediao processual como forma de mudana no tempo. Falar em mudana como salto supe uma pura descontinuidade cuja causa remete a um ato, o que aproxima a filosofia de Kierkegaard da psicanlise. O ato a experincia possvel da liberdade? Liberdade articulada a acaso...

    Que marca esta que retornaria no alvorecer do sculo XXI e que podemos ler como reinscrio de um primeiro tempo, o tempo da fundao, fundao da Modernidade que lana suas bases no sculo XVI? E a marca de um fim como um comeo, comeo que, por ser reincidente, por se inscrever na ordem da repetio, pode-mos, com Kierkegaard, chamar de origem.

    as cidades esto cercadas de frio. muralhas intransponveis erguem-se do dia pra noite, auroras de pedra so esculpidas nos portes, quem sabe dos campos de antanho? os corpos esto guardados e febris, ah, os caminhos de anto... l fora

    a morte campeia.

    24 Ibid., p.256 (traduo nossa).

  • Psicanlise e capitalismo

    No sculo XVI, o medo muda a face das cidades e dos ca-minhos.25 As muralhas das cidades so recompostas, e imensos portes de ferro substituem os de madeira. Os caminhos ficam impraticveis para viajantes solitrios. Bandos de mercenrios saqueiam as estradas e as plantaes. Proliferam as encarnaes e os mensageiros do grande Sat: as mulheres so propensas feiti-aria; o judeu no mais um mero infiel mas um representante do prprio demnio; o Turco, o papa, Lutero, nesse discurso que os conflitos ganham sentido e nessa terminologia que a poltica se faz... em nome de Deus...

    Em nome de Deus tambm comeam a tomar forma os conflitos no sculo XXI. Alguma coisa retorna nesse "fim dos tempos"... Tal como no sculo XVI, quando os homens acredi-tavam estar s portas do Juzo Final, a certeza que circula entre ns a da morte.

    Portanto a marca da morte que se inscreve como origem da Modernidade, seno a da morte, pelo menos, a do medo; medo, menos da morte subjetiva e mais da morte de todos, do fim da hu-manidade. Os homens do sculo XVI se acreditavam s portas do Juzo Final e esperavam os anjos anunciadores do Apocalipse; os homens do sculo XXI fizeram da morte artigo vulgar, e os anjos se explodem a si mesmos.

    O conceito de Origem, com a temporalidade que implica e supe, nos permite dar uma prega no tempo, e ler, no sculo XXI, os rastros do sculo XVI: so marcas de fim, um fim que foi comeo, o comeo da Modernidade que, na poca, era lido como o fim... e foi de fato o fim de um mundo, o mundo feudal da chamada Idade Mdia. A Modernidade se faz com as cinzas do Medievo. H a um signo de morte que subjaz s Luzes da Razo e s promessas da Cincia.

    25 Cf. DELUMEAU. Histria do medo no Ocidente: 1300-1800. So Paulo: Companhia das Letras, +996.

  • 52 Clara de Ges

    Os cavaleiros do Apocalipse fizeram do Juzo Final um lugar de Origem. No ciclo incessante dos comeos, da constante evoca-o do Novo, sombreia um signo de fim. No sculo XXI ecoam os sinos do XVI, espcie de intervalo no qual um mundo se esvaa sem que outro mostrasse suas fundaes. Acreditava-se que a chegada do Filho do Homem era iminente, que vinha julgar os vivos e os mortos... Assim, no cheiro inequvoco dos cadveres, adubava-se a terra dos Novos Tempos.

    A produo da subjetividade moderna guarda esta marca: a marca da morte que se traduz em angstia e religiosidade.

    A solido radical do homem diante do Universo correlata da construo da subjetividade como uma formao que se inicia no sculo XVI e promete se esfacelar no sculo XXI. A subjetividade moderna uma espcie de resposta angstia provocada pelo afas-tamento do Pai, pelo silncio de Deus. Os msticos do sculo XVI foram os ltimos a escutar Seus gemidos, suportar Seus ardores, entregar-Lhe o corpo e a alma. A partir do sculo XVII, devem os homens se contentar com o exame da letra no corpo do texto da Palavra... no mais se ouvir a voz de Deus a soprar em seus ouvidos os segredos da eternidade.

    eternidades fugidias lampejam instantes, ciclos da natureza do conta de passagens, passagens que retornam nas paisagens do inverno, do vero, da primavera... do outono, passagens que acompanham a natureza e o planeta na volta do tempo, sempre... quando outra vez.

    nos idos do sculo XV, j virando o XVI, quando os anos ainda eram da graa, um instante tomba e se estica, demora, faz do tempo linha e rota... e os homens navegam... o instante pontual da eternidade vira reta e o plano do tempo tecido em comeo.

  • Psicanlise e capitalismo

    O sculo XVI um sculo terrvel. o sculo que rasga o tempo em ruptura: o sculo do instante, do corte, da primeira experincia csmica de abismo. Os homens do sculo XVI se acreditavam s vsperas do Juzo Final. A certeza que circulava era a certeza da morte, a certeza do Apocalipse. A subjetividade que se construa nessa poca era tecida nos confessionrios. somente neste sculo que a confisso se tornar obrigatria. no esteio das culpas que a conscincia se produz e a permanece at que Descartes a desloque para o cogito, retirando-a de uma escuta eclesistica.

    No sculo XXI, as mudanas se insurgem e o mundo assente na Razo e na Representao, no racismo fruto do imperialis-mo, ameaa sucumbir em meio guerra de fundamentalismos. Atualizam-se as guerras de religio, e a mesma retrica retorna do fim dos tempos, assim como retornam os massacres que marcaram o incio da presena europia na Amrica e, posteriormente, na ndia; retornam os "massacres administrativos".

    Enquanto na Europa do sculo XVI protestantes e catlicos campeavam a matana entre si, na Amrica, os cristos estavam irmanados em promover carnificinas. O Novo Mundo era um territrio virgem a adubar com sangue alheio. H, no sculo XVI e, possivelmente, no sculo XXI, uma espcie de intervalo, um abismo na continuidade histrica, produzido no por um processo histrico autnomo calcado na repetio, mas pela ao poltica que reinscreve uma marca de origem. E possvel que se repita, entre ns, signos de tempos outros mais do que signos de novos tempos.

    singram nas costas nuas, caravelas naufragadas, tempo indistinto litoral

    estrelas cintilam no cu do meio-dia: lua nova. corpos latejam nas minas e plantaes: fantasmas danam em torno de fogueiras

  • 57 Clara de Ges

    apagadas, rio de cinzas Amrica! teus filhos se matam, mes es-trangulam crianas ao nascer da aurora

    atiram-se a precipcios com os filhos ao peito: gente que se recusa

    servido.

    Nas crises apontadas como crises da modernidade, dentre as quais as mais espetaculares foram alocadas sob o signo de ps-modernidade, no se v uma crise de paradigma. A Razo, a Representao e, no seu esteio, a Poltica, so evocadas como suportes simblicos que no mais dariam conta da produo de sentido na Modernidade que teriam ajudado a construir; no en-tanto, a estrutura que a produziu, que produziu a Modernidade, continua inalterada: o capital.

    No se pode mais recorrer a essas referncias para produzir um sentido eficaz ou satisfatrio que explique o mundo... mas a estrutura que as produziu e que lhes deu suporte permanece inal-terada. A prpria lgica econmica mal se sustenta nas pernas e cada vez mais tem que apelar a uma alienao radical do sujeito para subsistir... a estrutura, no entanto, permanece inalterada. No h como explicar os terrveis massacres e a lgica mesma da guerra, apelando somente racionalidade dos interesses privados confundidos com o interesse do Imprio. preciso, ento, retornar questo da estrutura, da produo deste lao social especfico, o capital. preciso recorrer a outros discursos, a um discurso que tenha o gozo como questo pois o que o capital pressupe como lgica econmica um modo de gozar.

    Freud concebe o "psquico", seu funcionamento e sua cons-tituio como uma economia, uma economia de quantidades que, em circulando, criam os trilhamentos, os traos mnmicos, responsveis pela produo do psiquismo. Lacan vai falar dessa economia, que Freud chama de "quantidades de energia"; como

  • Psicanlise e capitalismo

    uma economia de gozo. Gozo que ele vai articular como "mais-de-gozar", em referncia mais-valia, formulada por Marx em sua maior obra, O capital. E vai mais adiante, diz que foi Marx e no Freud o inventor do sintoma.26

    Enfim, para definir o terceiro termo [o Real], no sintoma que identificamos o que se produz no campo do Real. Se o Real se manifesta na anlise, e no s na anlise, se a noo de sintoma foi introduzida por Marx muito antes de Freud, de modo que a se faz signo de alguma coisa que no anda bem no Real, se, em outros termos, ns somos capazes de operar sobre o sintoma porque o sintoma um efeito do Simblico sobre o Real.27

    A meno de Lacan a Marx como inventor do sintoma serviu de fio condutor deste livro. Tivemos que alinhavar, em termos eco-nmicos, o psiquismo analisado como um espao/tempo formado pela circulao de quantidades. Depois, ver a economia tal como Marx a formula, como uma economia poltica assente na produo de mercadorias, definindo-se, a partir da, um mercado cuja condio de possibilidade est assente na forma do valor. Da, comparamos o sonho forma do valor, estabelecendo, nessa comparao, uma homologia para, finalmente, articular o sintoma em termos de mais-de-gozar, em termos de mais-valia.

    Talvez seguindo este percurso se possa endossar a tese de Lacan segundo a qual foi Marx, e no Freud, o inventor do sintoma. Sintoma como cruzamento do real pelo simblico, ou da inscrio do simblico no real, entendendo-se o simblico como a forma do valor e o real como mais-valia. Em que sentido? No sentido de que a mais-valia indica o buraco e o limite do valor.

    Bom. Se Marx define o sintoma, o que Freud diz de econo-mia?

    26 LACAN, Jacques. Le Sminaire, livre 22: R.S.I.. (Trabalho no publicado). 27 Ibid., Lio do dia 10 de dezembro de 1974 (traduo nossa).

  • 2. A economia psquica

    No se pode dizer, de Freud, que, no incio era o verbo. Melhor seria dizer como se fora um segundo momento do verbo, sua escuta.

    No se pode dizer, de Freud, que no incio era o verbo. No incio era o ato. O verbo enquanto ato - passagem que deixa rastro. Rastro que se faz trao, trao que se faz letra. Letra que suporte material de escrita. Escrita que efeito de uma economia: circulao de quantidades... de energia, cuja passagem deixa um rastro, um sulco, um trilhamento que se faz caminho de futuras passagens, estabelecendo uma memria (da a denominao "mnmico") que lida e se lida porque uma escrita.

    No incioj era um ato que obriga a uma escuta, escuta que interpretao, a interpretao do grito. A interpretao um ato. Ato pelo qual o sujeito enlaado linguagem, e a partir desse enlaamento que se pode falar em sujeito.

    Assim que no incio estava um grito. Grito provocado por um estmulo, uma quantidade (Qn) de energia que atravessa um organismo que grita, uma quantidade de energia que produz um mal-estar e que provoca um grito.

    O grito o primeiro apelo lanado. O grito de um beb, um grito que evolui em choro. Primeiro apelo de um beb ao Outro, ao grande Outro, ao Outro escrito com letra maiscula. Esse Outro, com letra maiscula, esse grande Outro que se ope ao pequeno

  • 61 Clara de Ges

    outro, que o "semelhante", nomeado de vrias maneiras ao longo do Seminrio e dos Escritos de Lacan. Interessa-nos reter, aqui, o grande Outro como Me e enquanto Linguagem, o "tesouro do significante".

    O grito tomado como um apelo por esse Outro. Ora, um apelo pede uma resposta. Algum outro que se coloca, ou que ocupa o lugar do grande Outro se v concernido pelo grito que, a partir da, apelo. O que suscita a pergunta: o que ele quer? E a advm uma interpretao. A interpretao uma operao na qual a linguagem est implicada. O sujeito est definitivamente entre os humanos porque seu grito se transforma em buraco, ou melhor, no contorno de um buraco (o buraco se faz a partir de seu contorno pois se no h contorno no h buraco, h um vazio sem bordas, h o nada) que aponta ao objeto a que, por sua vez, chama cena, o sujeito, o que implica, na operao, o significante. Recordemos que a definio de sujeito supe a cadeia significante. O sujeito o que um significante representa para outro significante.

    Assim, o grito carrega consigo o beb. O enlace linguagem se d quando esse Outro, ao se sentir concernido por es