o tigre da malásia
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— Tigrezinhos, defendam a minha ilha! — Gritou Sandokan para os piratas aglomerados na praia.
SANDOKAN
EMILIO SALGARI
SANDOKANEMILIO SALGARI
PRIMEIRA PARTEO TIGRE DA MALÁSIA
IO NAUFRÁGIO DO YOUNG INDIA
— Mestre Bill, onde estamos?
— No coração da Malásia, meu caro Kammamuri.
— Ainda falta muito tempo para chegarmos ao nosso destino?
— Por acaso aborreces-te?
— Não, mas tenho muita pressa e parece-me que o Young Indira vai muito devagar.
Mestre Bill, americano de nascença, marinheiro de cerca de quarenta anos, mais de um metro e meio de altura, lançou um olhar de descontentamento ao seu companheiro, um belo indiano de vinte e quatro ou vinte e cinco anos, de estatura alta, tez muito bronzeada, feições correctas. Usava argolas nas orelhas e ao
pescoço tinha um riquíssimo colar de ouro.
— Estás a insultar o navio! — Gritou o americano, indignado. — O Young Indira anda devagar!
— Para quem tem pressa, mestre Bill, até um cruzador que corre a quinze nós à hora anda devagar!
— Porquê tanta pressa? — Perguntou o mestre, coçando a cabeça. —
Tens alguma herança à tua espera, malandro?
— Qual herança! Se soubesse...
— Anda, diz lá, rapaz.— Não oiço deste
ouvido.— Compreendo: fazes-
te surdo. Hum! Aqui há gato! Aquela rapariga que tens contigo... Hum!
— Bem! Diga lá, mestre, quando chegamos?
— Aonde?
— A Sarawak.— O homem põe e
Deus dispõe, meu rapaz. Podemos ser apanhados por um tufão que nos mande a todos para o outro mundo.
— E depois?— E depois, podemos
ser atacados pelos piratas que nos mandem para o fundo do mar com um kriss cravado entre as costelas.
— O quê? — Perguntou o indiano, fazendo uma careta. — Há piratas por aqui?
— Tantos quantos na tua terra são os estranguladores.
— A sério?— Olha lá ao longe, na
direcção ao gurupés. O que é que vês?
— Uma ilha.— Pois bem, aquela
ilha é um ninho de piratas.
— Como se chama?— Mompracem. Só o
nome dá arrepios.— A sério?— Ali vive um homem
que foi o terror da Malásia.
— Como se chama?— Tigre da Malásia.— Se nos assaltasse, o
que aconteceria?— Um massacre geral.
Aquele homem é mais cruel do que os tigres da selva.
— E os ingleses nunca tentaram exterminá-los? — Perguntou o indiano surpreendido.
— Destruir os Tigres de Mompracem é obra — Respondeu o marinheiro, enquanto mascava um pedaço de tabaco. — Há alguns anos, em 1852, os ingleses cercaram a ilha com uma poderosa frota e fizeram prisioneiro o terrível Tigre, mas antes de chegarem a Labuan
ele fugiu não se sabe como.
— E regressou a Mompracem?
— Não logo. Durante dois anos ninguém ouviu falar dele, mas em princípios de 1854 reapareceu à frente de um novo bando de malaios e daiaques da pior espécie. Massacrou os poucos ingleses que se haviam instalado na ilha, recuperou — A e
recomeçou os seus feitos sanguinários.
Naquele instante um assobio soou na coberta do Young Indira, acompanhado por um golpe de vento fresco que fez gemer o três-mastros.
— Oh! Oh! — Fez mestre Bill, levantando a cabeça e cuspindo o tabaco. — Daqui a pouco vamos dançar.
— Acha, mestre? — Perguntou o indiano, inquieto.
— Vejo além uma nuvem negra de bordas cor de cobre, que não prenuncia certamente a calma.
— Corremos perigo?— O Young Indira é um
barco sólido. No entanto, é preciso ter os olhos bem abertos. As ondas começam a agitar-se.
Mestre Bill não se enganava. O mar da Malásia, até então limpo como um cristal, começava agora a encrespar-se e a ganhar uma cor de chumbo que não prometia nada de bom.
A leste, na direcção da grande ilha de Bornéu, aparecia uma nuvem negra que, pouco a pouco, obscurecia o sol quase no crepúsculo.
Ao primeiro golpe de vento seguia-se uma espécie de calma, que tornava mais apreensivos os ânimos de toda aquela gente. A leste ouvia-se o ribombar de um trovão.
— Desimpeçam a coberta! — Gritou o capitão Mac— Clintock aos passageiros.
Todos obedeceram contrariados, descendo pelas escotilhas de proa
ou de popa. Um deles, contudo, ficara na coberta. Era o indiano Kammamuri.
— Hei, saiam daí! — Bramiu o capitão.
— Capitão — Disse o indiano aproximando-se com passo firme — Corremos perigo?
— Sabê-lo-ás quando a tempestade tiver passado.
— Tenho de desembarcar em Sarawak, capitão.
— Hás-de desembarcar se o navio não se afundar.
— Mas eu não quero naufragar. Em Sarawak tenho uma pessoa que...
— Mestre Bill, tire-me daqui este homem.
O indiano foi arrastado dali e atirado para a escotilha da proa.
Estava na hora. O vento começava a soprar de leste com grande violência. A nuvem negra tinha aumentado, cobrindo quase por inteiro a abóbada celeste.
O Young Indira era um magnífico três-mastros muito bem conservado para os seus quinze anos, de construção leve, mas sólida, oferecia uma
grande extensão de pano dos golpes do vento.
Partira de Calcutá a 26 de Agosto de 1856, com um carregamento de carris de ferro destinado a Sarawak e ocupado por catorze marinheiros, dois oficiais e seis passageiros. Graças à sua velocidade e aos bons ventos, tinha alcançado em menos de treze dias as águas do mar malaio e
precisamente à vista da temida ilha de Mompracem, um covil de piratas de que era preciso fugir.
Infelizmente a tempestade estava para rebentar. O mar exigia o seu tributo antes do fim da travessia e ver-se-á em seguida que tipo de tributo!
Às oito da noite, a escuridão era quase completa. O Sol tinha
desaparecido no meio das massas vaporosas e o vento começava a soprar com extrema vio-lência, fazendo ouvir rugidos assustadores.
O mar, sacudido até aos limites extremos do horizonte, subia rapidamente. Ondas enormes, crispadas de espuma, formavam-se como por encanto, batendo umas nas outras e caindo novamente,
partindo-se com raiva contra Mompracem, a qual emergia com a sua massa lúgubre e sinistra nas trevas.
O Young Indira corria à bolina, ora lançando-se sobre as móveis montanhas rasgando com os cimos dos mastros a caliginosa massa das nuvens, ora precipitando-se nas depressões das quais se esforçava para sair.
Os marinheiros, descalços, de cabelos ao vento, os rostos enrugados, manobravam no meio da água que não encontrava alívio nos escoadouros. Comandos e pragas misturavam-se com os silvos da tem-pestade.
Às nove da noite, o três-mastros, sacudido como um brinquedo, ou melhor, como uma palha,
encontrava-se nas águas de Mompracem.
Apesar de todos os esforços de mestre Bill, que partia as mãos na barra do leme, o Young Indira, foi arrastado para tão perto da costa repleta de recifes, de ilhotas de coral e de fundos baixos, fazendo até temer que se partisse.
O capitão Mac— Clintock, com grande
terror, entreviu numerosos fogos acesos entre as sinuosidades da praia e, sob a luz de um relâmpago, direito sobre a borda extrema de um penhasco gigantesco que caía a pique sobre o mar, avistou também o vulto imponente de um homem de estatura alta, braços cruzados sobre o peito, impassível ao desencadear da tempestade.
— Que Deus nos guarde! — Exclamou mestre Bill, que também tinha avistado o homem.
— Aquele homem era o Tigre da Malásia!
A sua voz foi sufocada pelo rebentamento assustador de um trovão que se repercutiu, de eco em eco, nas profundezas do céu. Aquele rebentamento pareceu o sinal para uma música ensurdecedora,
indescritível. O espaço inflamou-se de norte a sul, de leste a oeste, como se todo o universo se incendiasse, iluminando sinistramente o mar em tempestade.
Os raios serpenteavam no ar, descrevendo mil curvas diversas, mergulhando entre as ondas ou girando vertiginosamente ao redor do navio, seguidos
por aguaceiros que cresciam de intensidade.
O mar, como se quisesse competir com esses trovões, ergueu-se descomunalmente. Já não eram ondas, mas montanhas de água cintilante sob a viva luz dos relâmpagos, que se lançavam furiosamente em direcção ao céu, como se fossem atraídas por uma força sobrenatural e que se
amontoavam umas sobre as outras, mudando de forma e de dimensão.
O vento entrava, por vezes, a fazer parte daquela competição assustadora, rugindo furiosamente, em-purrando na sua frente nuvens de chuva tépida.
O três-mastros tinha muita dificuldade em enfrentar os elementos em fúria. Havia momentos em que os
marinheiros não sabiam se ainda flutuavam ou se já se haviam afundado, tal era a massa de água que saltava sobre as amuradas meio partidas.
Para cúmulo da desgraça, à meia-noite, o vento que soprava, cada vez mais violento, de norte, passou de repente a soprar de leste.
Já não era possível lutar mais. Continuar em frente com o tufão que
assaltava à proa era tentar a morte. Apesar de nenhum ancoradouro se apresentar a oeste, exceptuando as temidas costas de Mompracem, o capitão Mac— Clintock teve de conformar-se a fugir à velocidade que permitiam as poucas velas ainda desfraldadas.
Tinham passado duas horas desde que o Young Indira havia mudado de bordo, perseguido com
tenacidade pelos vagalhões, que pareciam ter jurado a sua perda.
Os relâmpagos agora rareavam e a escuridão era tão cerrada que não permitia ver a duzentos passos de distância.
De repente, chegou aos ouvidos do capitão o fragor característico das ondas quando se quebram contra os recifes, ruído que um marinheiro sabe
distinguir no meio das mais assustadoras tempestades.
Apesar de se considerar bastante longe dos recifes de Mompracem, suspeitou da sua vizinhança.
— Olha à proa! — Berrou ele, dominando com a voz o ruído das ondas e os assobios do vento.
— Os recifes! Trovões! — Berrou uma voz.
O capitão Mac— Clintock arriscou-se a ir à proa, agarrando-se ao cabo da vela de traquete para se içar sobre as amuradas.
Não se via nada; contudo, através das rajadas, ouvia-se distintamente rugir a ressaca. Não havia que enganar. A poucos cabos de âncora do três-mastros erguia-se uma cadeia de recifes, talvez
uma ramificação dos de Mompracem.
— Cuidado a virar! — Gritou ele.
Mestre Bill, reunindo todas as suas forças, puxou para junto de si a barra do leme. Quase no mesmo instante o navio tocou.
O choque fora pouco sensível. Somente uma parte da falsa-quilha tinha sido rasgada pelas pontas aguçadas das
madrepérolas que formavam os cumes dos recifes. Infelizmente, o vento soprava ainda de popa e as ondas empurravam para a frente.
A tripulação, que naquela terrível situação mantinha um extraordinário sangue-frio, conseguiu virar de bordo. O Young Indira assentou ao largo com uma orla de duzentos
metros fugindo às encostas em torno das quais bramiam as ondas. Parecia que tudo havia de correr bem. A sonda, lançada à pressa, tinha dado quatro braças de profundidade pela proa. A esperança de salvar o navio começava a nascer no espírito da tripulação.
De repente, o fragor da ressaca voltou a fazer-se ouvir na direcção da hasta de proa.
O mar levantava-se com maior violência do que antes, assinalando uma nova barreira de recifes.
— Assenta tudo, Bill! — Bradou o capitão Mac— Clintock.
— Os recifes debaixo da proa! — Gritou um marinheiro, que tinha descido até à parte inferior do gurupés.
A sua voz não chegou à popa. Uma montanha de
água foi atirada para estibordo afastando violentamente o três-mastros para bombordo, deitando por terra a tripulação agarrada aos braços das velas e quebrando as embarcações contra as gruas.
Ouviu-se um rugido enorme, um desabamento de madeiras desfeitas, depois um golpe que fez
oscilar os mastros da popa até à proa. O Young Indira fora esventrado pelas pontas aguçadas dos recifes, e seis marinheiros, arrancados pelas ondas, tinham-se esmagado contra os escolhos.
IIOS PIRATAS DA
MALÁSIA
A última hora tinha soado para o desgraçado três-mastros.
Encaixado entre duas rochas, que apenas deixavam entrever as suas pontas negras, denteadas de mil agulhas pelo eterno movimento das águas, com a quilha despedaçada, mais não era do que um destroço impossível de recuperar, que mais cedo ou mais
tarde o mar teria indubitavelmente desmantado e disperso.
Em volta, o mar espumava quebrando-se e requebrando-se contra os recifes, arrastando consigo fragmentos de amuradas, de madeiras e de embarcações, que batiam entre si com mil rangidos.
No três-mastros os sobreviventes, loucos de terror, corriam da proa à
popa gritando e praguejando. Um trepava aos enfrechates, outro avançava até à gávea, um terceiro um pouco mais acima, até ao topo dos mastros. Um quarto saltava como se estivesse em cima de carvões ardentes, um quinto fazia passar um salva-vidas em volta do corpo, um sexto preparava um flutuador
para onde ir assim que o navio se despedaçasse.
O capitão Mac— Clintock e o mestre Bill eram os únicos que se mantinham calmos.
Uma vez que o três-mastros se mantinha imóvel como se estivesse pregado aos recifes, apressaram-se a descer para o porão. Viram de imediato que já não havia esperança de voltar a fazê-lo flutuar,
uma vez que estava já cheio de água.
— Vamos — Disse o mestre Bill, com voz comovida — O pobrezinho exalou o último suspiro. Nenhum estaleiro seria capaz de reparar a terrível mutilação.
— Tens razão, Bill — Respondeu o capitão ainda mais comovido. — Este é o túmulo do valoroso Young Indira.
— E o que fazemos agora?
— É preciso esperar pela alvorada.
— Acha que resiste aos golpes de mar?
— Assim espero.— Vamos encorajar os
que estão na coberta. Estão mortos de medo.
Os dois lobos-do-mar voltaram para a coberta. Os marinheiros e os passageiros, com rostos transformados pelo
terror, precipitaram-se ao seu encontro, interrogando-os com viva ansiedade.
— Estamos perdidos? — Perguntavam uns.
— Vamos ao fundo? — Perguntavam outros.
— Há esperança de nos salvarmos?
— Onde é que estamos?
— Calma, rapazes — Disse o capitão. — Por
enquanto não corremos perigo.
O indiano Kammamuri, que mostrara tanta pressa em chegar a Sarawak, aproximou-se do comandante.
— Capitão — Disse ele, com voz tranquila — Vamos para Sarawak?
— Bem vês que é impossível, Kammamuri.
— Mas eu tenho de lá ir.
— Não sei o que te hei-de dizer. O navio está imóvel como um pontão.
— Tenho lá o meu patrão, capitão.
— Terá de esperar.O olhar vivo do indiano
enevoou-se e o seu rosto, que tinha qualquer coisa de feroz, tornou-se escuro.
— Kali protege-os — Murmurou.
— Nem tudo está perdido ainda,
Kammamuri — Disse o capitão.
— Então não vamos ao fundo?
— Já disse que não. Vamos ter calma, rapazes. Amanhã saberemos em que ilha ou recife naufragámos e veremos o que se pode fazer. Eu garanto as vossas vidas.
As palavras do capitão animaram os marinheiros, que
começavam a ter esperanças de se salvar. A calma não tardou a reinar na coberta do navio naufragado.
De resto, a tempestade começava a enfraquecer. As grandes nuvens, aqui e ali rasgadas, deixavam entrever, de vez em quando, o tremeluzir dos astros. O vento, depois de ter assobiado e rugido, acalmava-se pouco a pouco.
Todavia, o mar continuava a manter-se bastante agitado. Ondas gigantescas corriam em todas as direcções, investindo com extrema violência contra os recifes e desfazendo-se de encontro a eles com um ruído assustador. O navio, sacudido, batido à proa e à popa, gemia como um moribundo, deixando que lhe tirassem pedaços de
amurada e fragmentos da quilha despedaçada. Em certos momentos, pelo contrário, oscilava com tanta força da proa até à popa que fazia temer que fosse arrancado ao banco de madrepérolas e apanhado no meio das vagas. Por sorte ficou inteiro, e os marinheiros, malgrado o perigo iminente e as ondas que se elevavam de quando
em quando na coberta, puderam saborear algumas horas de sono.
Às quatro da manhã, a oriente, começou a clarear. O sol levantava-se com aquela rapidez própria das regiões tropicais, anunciado por uma cor vermelha magnífica. O capitão, de pé no cesto do mastro principal, ladeado por mestre Bill, tinha os olhos fixos a norte, onde
se erguia, a menos de duas milhas, uma massa obscura que devia ser terra.
— Bem, capitão — Perguntou o mestre, que mascava o seu pedaço de tabaco — Conhece aquela terra?
— Creio que sim. Ainda está escuro, mas os recifes que a circundam fazem-me suspeitar que seja Mompracem.
— By God! — Murmurou o americano, fazendo uma careta. — Viemos partir as pernas num lugar muito feio.
— Temo-o bem, Bill. A ilha não goza de boa fama.
— Diga antes que é um ninho de piratas. Capitão, o Tigre da Malásia voltou.
— O quê! — Exclamou Mac— Clintock, sentindo correr pelos ossos um
arrepio. — O Tigre da Malásia de volta a Mompracem?
— Sim.— É impossível, Bill!
Esse homem terrível desapareceu há vários anos.
— Mas estou-lhe a dizer que voltou. Há quatro meses, assaltou o Arghilah de Calcutá, que só lhe escapou muito a custo. Um marinheiro que tinha conhecido o
pirata sanguinário contou-me que o havia visto na proa de um parau.
— Então estamos perdidos. Não tardará a assaltar-nos.
— By God! — Gritou o mestre, ficando, de repente, pálido.
— O que é que tens?— Veja, capitão! Veja lá
ao fundo!
— São paraus, são paraus! — Gritou uma voz da coberta.
O capitão, não menos pálido do que o mestre, olhou na direcção da ilha e viu quatro barcos que dobravam um cabo que estava apenas a três milhas.
Eram quatro grandes paraus malaios, baixos de casco, leves, esguios, de velas com cerca de quarenta metros, de
formas alongadas, sustentadas por mastros triangulares.
Estes barcos, que correm com uma velocidade surpreendente e que, graças ao balanceiro que têm a sotavento e à larga sustentação que levam a barlavento, desafiam os tufões mais tremendos; são geralmente usados pelos piratas malaios, os quais
não temem assaltar com eles os maiores navios que se aventuram nos mares da Malásia.
O capitão não o ignorava, e logo que os viu apressou-se a descer à coberta. Em poucas palavras informou a tripulação do perigo que os ameaçava. Só uma resistência implacável podia salvá-los.
O arsenal do navio, para maior desgraça, não
era muito bom. Faltavam os canhões, as espingardas mal chegavam para armar a tripulação e estavam em grande parte mal conservadas. Havia, contudo, sabres de abordagem enferrujados, mas ainda em bom estado, algumas pistolas, alguns revólveres e um bom número de machados.
Os marinheiros e os passageiros, armados como podiam, precipitaram-se para a popa que, encontrando-se imergida, podia oferecer uma boa escalada. A bandeira dos Estados Unidos subiu majestosamente no topo da vela e mestre Bill fixou-a com pregos.
Estava na hora. Os quatro paraus malaios, que corriam como
pássaros, já só estavam a setecentos ou oitocentos passos e preparavam-se para atacar o pobre três-mastros.
O sol que então se erguia no horizonte permitia ver claramente quem os tripulava.
Eram oitenta ou noventa homens, seminus, armados com estupendas carabinas incrustadas de
madrepérola e de lâminas de prata, com parangs de aço finíssimo, com cimitarras, com kriss serpenteantes com a ponta sem dúvida envenenada no sumo de upas e com clavas enormes, chamadas kampilang, que eles manejavam com se fossem pauzinhos.
Alguns eram malaios de cor de azeitona, de grandes membros e de
feições cruéis; outros eram belíssimos daiaques de estatura alta, com os braços e as pernas cobertos de anéis de cobre. Também estavam alguns chineses e javaneses. Todos estes homens fixavam os olhos no navio e agitavam furiosamente as armas, emitindo gritos ferozes. Pareciam querer assustar os náufragos, antes de os atacarem.
A quatrocentos passos de distância ribombou um tiro de canhão no primeiro parau. A bala, de calibre considerável, estilhaçou o mastro de gurupés, que se dobrou, mergulhando a ponta no mar.
— Ânimo, rapazes — Gritou o capitão Mac— Clintock. — Se o canhão fala é sinal de que a dança começou. Fogo!
Alguns tiros de espingarda seguiram o comando. Gritos assustadores rebentaram a bordo dos paraus, sinal infalível de que nem todo o chumbo se tinha perdido.
— Assim está bem, rapazes! — Gritou mestre Bill. — Batam com força, mesmo no meio do grupo. Esses focinhos feios não terão
a coragem de vir ter connosco. Ho! Fogo!
A sua voz foi coberta por uma série de detonações que vinham do largo. Eram os piratas que começavam o ataque.
Os quatro paraus pareciam crateras em chamas, lançando tremendas saraivadas de ferro. Disparavam os canhões, disparavam as espingardas, disparavam
as carabinas, esmagando, deitando por terra, estraçalhando tudo com uma precisão matemática.
Em pouco tempo quatro náufragos jaziam sem vida sobre a coberta. O mastro do traquete, partido por baixo do cesto, abateu-se sobre a coberta obstruindo-a com vergas, velas e cabos. Aos gritos de triunfo sucederam-se
gritos de pavor, de dor e gemidos de agonia.
Era impossível resistir àquele furacão de ferro que chegava com tal rapidez, fazendo saltar mastros, amuradas, madeiros.
Os náufragos, vendo-se perdidos, depois de terem descarregado sete ou oito vezes os mosquetões, e sem sucesso, apesar das blasfémias do capitão e
de mestre Bill, abandonaram o posto fugindo para estibordo, escondendo-se por detrás dos escombros da maquinaria e das embarcações. Alguns deles perdiam sangue e gemiam de dor. Os piratas, protegidos pelos seus canhões, ao fim de um quarto de hora atingiram a popa do navio tentando içar-se para bordo.
O capitão Mac— Clintock tentou evitar a abordagem, mas uma descarga de canhão matou-o juntamente com três homens.
Um grito terrível ecoou pelo ar:
— Viva o Tigre da Malásia!
Os piratas atiram as carabinas, empunhando as cimitarras, os machados, as maças, os kriss e entregam-se
intrepidamente ao assalto agarrando-se às amuradas e aos enfrechates. Alguns lançam-se para o cimo dos mastros dos paraus, correm como macacos ao longo das vergas e caem sobre a maquinaria do três-mastros deixando-se escorregar para a coberta. Num instante os poucos defensores, esmagados pelo número, caem na
proa, na popa, no convés ou no castelo.
Perto do mastro principal ainda restava um homem armado com um grande e pesado sabre de abordagem.
Este homem, o último do Young Indira, é o indiano Kammamuri, que se defendia como um valente dando golpes à direita e à esquerda.
Um golpe de maça parte-lhe a arma. Dois
piratas atiram-se a ele e deitam-no por terra apesar da sua desesperada resistência.
— Socorro! socorro! — Gritou o desgraçado com a voz estrangulada.
— Parem! — Ribombou de repente uma voz. — Esse indiano é um valente!
IIIO TIGRE DA MALÁSIA
O homem que lançara em tão boa hora aquele grito poderia ter trinta e dois ou trinta e quatro anos.
Era de alta estatura, pele branca, feições finas, aristocráticas, olhos azuis e bigode preto que sombreava os lábios sorridentes.
Vestia com extrema elegância: casaco de veludo castanho com botões de ouro, apertado
na cintura por uma larga faixa de seda azul, calças de brocatel, longas botas de pele vermelha, de ponta revirada e um largo chapéu de palha na cabeça. Ao tiracolo levava uma magnífica carabina indiana e à cintura pendia-lhe uma cimitarra de punho de ouro, encimado por um diamante do tamanho de uma avelã, de um enorme esplendor.
Com um gesto fez afastar os piratas, aproximou-se do indiano, que não pensava em levantar-se, tal era a surpresa de se sentir ainda vivo, e olhou-o durante instantes com grande atenção.
— O que dizes? — Perguntou finalmente ao indiano, em tom jovial.
— Eu? — Exclamou Kammamuri, que se interrogava sobre quem
poderia ser este homem de pele branca, que comandava aqueles terríveis piratas.
— Estás surpreendido de ainda sentires a cabeça em cima dos ombros?
— Tão surpreendido, que até me pergunto se estou mesmo vivo de verdade.
— Não duvides, jovem.— Não ma vai cortar
então?
— Se não o permiti antes, não sei porque deixaria que ta cortassem depois.
— Porquê? — Perguntou ingenuamente o indiano.
— Em primeiro lugar, porque não és um branco.
Kammamuri fez um gesto de surpresa.
— Ah! — Exclamou. — Vocês odeiam os brancos?
— Sim.— E o senhor,
porventura não é branco?
— Por Deus, português dos quatro costados!
— Então não percebo porque é que...
— Alto aí, rapaz. Esta conversa não me agrada.
— Pode ser, e depois?— E depois, porque és
um valente e eu gosto dos valentes.
— Sou marata — Disse o indiano com orgulho.
— Uma raça que tem um bom nome. Diz lá, desagradava-te seres um dos nossos?
— Eu, pirata?— E por que não? Por
Deus! Serias um bravo companheiro.
— E se recusasse?— Já não responderia
pela tua cabeça.— Se se trata de salvar
a pele, tornar-me-ei
pirata. Quem sabe, se calhar é melhor.
— Bravo, rapaz. Kotta, vai buscar-me uma garrafa de uísque. Os americanos não navegam sem uma boa provisão.
Um malaio desceu à cabina do pobre Mac— Clintock e instantes depois regressava com dois copos e uma garrafa poeirenta, à qual tinha feito saltar o gargalo.
— Uísque — Leu o homem branco na etiqueta. — Estes americanos são excelentes homens.
Encheu duas taças e estendeu uma ao indiano, perguntando-lhe:
— Como te chamas?— Kammamuri.— À tua saúde,
Kammamuri.— À sua senhor...
— Eanes — Disse o homem branco.
E, de um só trago, emborcaram os dois copos.
— Ora meu jovem — Disse Eanes, sempre de bom humor — Vamos ter com o capitão Sandokan.
— Quem é esse senhor Sandokan?
— Por Deus! O Tigre da Malásia.
— E vão levar-me até esse homem?
— Claro, meu caro, e ficará muito contente por receber um marata. Vamos, Kammamuri.
O indiano não se mexeu. Parecia embaraçado e olhava ora para os piratas, ora para a popa do navio.
— O que é que tens? — Perguntou Eanes.
— Senhor... — Disse o marata hesitante.
— Fala.— Não lhe vão tocar?
— Quem?— Tenho uma mulher
comigo.— Uma mulher! Branca
ou indiana?— Branca.— E onde está ela?— Escondi-a no porão.— Trá-la à coberta.— Não lhe vão tocar?— Tens a minha
palavra.— Obrigado, senhor —
Disse o marata com voz comovida.
Correu para a popa e desapareceu pela escotilha. Poucos instantes depois voltava a subir para a coberta.
— Onde está essa mulher? — Perguntou Eanes.
— Vem aí, mas nem uma palavra senhor. Ela é louca.
— Louca? Mas quem é?— Ei-la! — Exclamou
Kammamuri. O
português virou-se para a popa.
Uma mulher de uma beleza inacreditável, envolta num grande manto de seda branco, saíra de repente pela escotilha, parando perto do tronco do mastro da mezena. Podia ter quinze anos. A sua estatura era elegante, graciosa, flexível, a sua pele rosada, os olhos grandes, negros e doces, o nariz
pequeno e direito, os lábios finos, vermelhos como coral, entreabertos num inexplicável sorriso que deixava entrever duas filas de pequenos dentes de uma brancura deslumbrante. Uma cabeleira opulenta, muito negra, separada na testa por um grande diamante, caía-lhe pelos ombros numa desordem pitoresca e ainda mais para baixo até à cintura.
Ela olhou para todos aqueles homens armados, aqueles cadáveres que obstruíam a coberta e todos os destroços sem que uma contracção de medo, horror ou curiosidade se desenhasse no seu rosto gentil.
— Quem é aquela mulher? — Perguntou Eanes, com um estranho tom na voz, segurando uma mão de Kammamuri
e apertando-a com muita força.
— A minha patroa — Respondeu o marata. — A Virgem do Pagode do Oriente.
Eanes deu alguns passos em direcção à louca que continuava imóvel como uma estátua e olhou para ela fixamente.
— Que semelhança! — Exclamou, empalidecendo.
Regressou rapidamente para junto de Kammamuri e agarrou-o novamente pela mão:
— Aquela mulher é inglesa? — Perguntou, com voz alterada.
— Nasceu na Indira de pais ingleses.
— Por que enlouqueceu?
— É uma longa história.— Hás-de contá-la ao
Tigre da Malásia. Embar-
quemos, marata, e vocês, tigrezinhos, limpem bem esta carcaça e depois incendeiem-na. O Young Índia morreu.
Kammamuri aproximou-se da louca, pegou-lhe na mão e fê-la descer para o parau do português. Ela não opusera qualquer resistência, nem pronunciara sílaba alguma.
— Partamos — Disse Eanes, tomando o leme.
O mar pouco a pouco acalmara. Só à volta dos escolhos espumava e rugia, erguendo-se em largas vagas.
O parau, guiado por aqueles marinheiros hábeis e intrépidos, superou os recifes batendo e fazendo ricochete sobre as vagas e afastou-se com enorme rapidez deixando para
trás um rasto branco, no meio da qual passeavam enormes tubarões.
Ao fim de dez minutos atingiu a ponta extrema da ilha; deu a volta sem diminuir de velocidade e navegou em direcção a uma ampla baía que se abria em frente de uma graciosa aldeia composta de vinte ou mais cabanas, defendida por uma linha tripla de trincheiras armadas de
grandes canhões e muitas espingardas, de altas paliçadas e de profundos fossos.
Uma centena de malaios seminus, mas todos armados até aos dentes, saiu das trincheiras e lançou-se para a praia soltando gritos selvagens, agitando os kriss envenenados, as cimitarras, os machados,
as lanças, as carabinas e as pistolas.
— Onde estamos? — Perguntou Kammamuri, com inquietação.
— Na nossa aldeia — Respondeu o português.
— É aqui que vive o Tigre da Malásia?
— Mora lá em cima, onde esvoaça aquela bandeira vermelha.
O marata ergueu a cabeça e, no topo de um gigantesco penhasco que
caía a pique sobre o mar, avistou uma grande cabana defendida por muitas paliçadas, no cimo da qual se agitava majestosamente uma grande bandeira vermelha adornada com uma cabeça de tigre.
— Vamos lá acima? — Perguntou, com alguma emoção.
— Sim, amigo — Respondeu Eanes.
— Como me irá receber o terrível homem?
— Como se deve acolher um corajoso.
— E a Virgem do Pagode do Oriente vem connosco?
— Por enquanto não.— Porquê?— Porque aquela
mulher se parece com...Interrompeu-se. Uma
rápida comoção tinha subitamente alterado as
suas feições. Kammamuri apercebeu-se disso.
— Parece-me comovido, senhor Eanes — Disse.
— Enganas-te — Respondeu o português, puxando para si a barra do leme, para evitar a ponta extrema de um recife que resguardava a baía. — Desembarca, Kammamuri.
O parau tinha encalhado com a proa virada para a costa.
O português, Kammamuri, a louca e os piratas desembarcaram.
— Conduzam esta mulher até à melhor casa da aldeia — Disse Eanes, apontando a louca aos piratas.
— Vão fazer-lhe mal? — Perguntou Kammamuri.
— Ninguém ousará tocar-lhe — Disse Eanes. — As mulheres são mais respeitadas aqui do que na Indira e na Europa. Vem, marata.
Dirigiram-se para um penhasco gigantesco e subiram uma escada estreita escavada na pedra, defendida de vez em quando por sentinelas armadas com carabinas e cimitarras.
— Porquê tantas precauções? — Perguntou Kammamuri.
— Porque o Tigre da Malásia tem cem mil inimigos.
— Não é amado o capitão?
— Para nós é um ídolo, mas os outros... Se soubesses, Kammamuri, como é odiado pelos ingleses. Chegámos. Não tenhas medo.
Com efeito, tinham chegado à grande cabana, defendida por trincheiras, grades, fossos, canhões, morteiros e espingardas antigas. O português empurrou prudentemente uma grande porta de madeira de teca capaz de resistir ao canhão e introduziu Kammamuri num quarto revestido de seda vermelha, cheio de
carabinas da Europa, de mosquetes indianos e persas, bacamartes, pistolas, cimitarras, machados, kriss malaios, yatagan turcos, punhais, garrafas, rendas, tecidos, porcelanas da China e do Japão, montes de ouro, barras de prata, vasos transbordantes de pérolas e de diamantes.
No meio, sedimentado sobre um rico tapete persa, Kammamuri viu
um homem de pele bronzeada, envergando um riquíssimo trajo à oriental, com vestes de seda vermelha bordada a ouro e grandes botas de pele vermelha e ponta revirada. Não devia ter mais de trinta e quatro ou trinta e cinco anos. De estatura alta e musculosa, com uma cabeça soberba coberta por uma farta cabeleira, encaracolada, negra, que
lhe caía sobre os ombros robustos.
A sua testa, o olhar cintilante, os lábios finos, desenhando um sorriso indefinível, a barba magnífica que incutia ao mesmo tempo respeito e temor.
No conjunto, adivinhava-se que aquele homem possuía a ferocidade de um tigre, a agilidade de um
quadrúmano e a força de um gigante.
Assim que viu entrar os dois homens, num impulso sentou-se, olhando fixamente para eles.
— O que me trazes? — Perguntou ele com uma voz metálica, vibrante.
— A vitória, antes de mais — Respondeu o português. — Mas trago um prisioneiro.
O rosto do homem escureceu.
— É esse indiano, o indivíduo que poupaste? — Perguntou ele, depois de alguns instantes de silêncio.
— Sim, Sandokan. Desagrada-te?
— Sabes que respeito os teus caprichos, meu amigo.
— Eu sei, Tigre da Malásia.
— E o que quer esse homem?
— Tornar-se num tigre. Vi-o combater: é um herói.
O olhar do Tigre relampejou. As rugas que sulcavam o seu rosto desapareceram, como as nuvens sob um vigoroso golpe de vento.
— Aproxima-te — Disse ao indiano.
Kammamuri, ainda surpreendido por se
encontrar perante o lendário pirata, que durante tantos anos havia feito tremer os povos da Malásia, deu um passo em frente.
— O teu nome? — Perguntou o Tigre.
— Kammamuri.— És?— Marata.— Um filho de heróis
então?
— Tigre da Malásia — Disse o indiano com orgulho.
— Por que deixaste o teu país?
— Para ir para Sarawak.
— Para onde mora aquele cão do James Brooke? — Perguntou o Tigre com tom de ódio.
— Não sei quem é James Brooke.
— Melhor assim. Quem tens em Sarawak, para ires para lá?
— O meu patrão.— O que faz ele? É
soldado do rajá?— Não, é prisioneiro do
rajá.— Prisioneiro? E
porquê?O indiano não
respondeu.— Fala — Disse
brevemente o pirata. — Quero saber tudo.
— Terá paciência para me ouvir? A história é tão longa quanto terrível.
— As histórias terríveis e sanguinárias agradam-me; senta-te e conta.
IVUM TERRÍVEL DRAMA
Kammamuri não esperou que lhe repetissem o pedido. Sentou-se no meio de um monte de veludos gastos, salpicados aqui e
ali de manchas, acendeu um cigarro que lhe estendia o português e, depois de alguns instantes silencioso, começou:
— Tigre da Malásia, já ouviu falar das Sunderbunds do Ganges sagrado?
— Não conheço essas terras — Respondeu o pirata — Mas sei o que é o delta de um rio. Estás a falar dos bancos que
obstruem a foz do grande rio?
— Sim, dos grandes e incontáveis bancos cobertos de canas gigantes e povoados por animais ferozes que se estendem por muitas milhas da foz do Hugly à do Ganges. O meu patrão nasceu ali, numa ilha que se chama a Selva Negra. Era belo, forte, corajoso, o mais corajoso que alguma vez
encontrei na minha vida aventurosa. Nada o fazia tremer: nem o veneno da cobra-capelo, nem a força prodigiosa da pitão, nem as garras do grande tigre de Bengala, nem a armadilha dos seus inimigos.
— E o seu nome? — Perguntou o pirata. — Quero conhecer esse herói.
— Chamava-se Tremal-Naik, o Caçador de Tigres
e de Serpentes da Selva Negra.
O Tigre da Malásia, ao ouvir esse nome, levantou-se, fixando com os olhos o marata.
— Disseste caçador de tigres? — Perguntou.
— Sim.— Porquê essa
alcunha?— Porque caçava os
tigres da selva.— Um homem que
enfrenta os tigres só
pode ser corajoso. Mesmo sem o conhecer, já sinto afecto por esse valente indiano. Continua: estou a ficar impaciente.
— Uma noite, Tremal-Naik regressava da selva. Estava uma noite magnífica, uma verdadeira noite de Bengala; o ar era doce e perfumado, o horizonte ainda brilhava e o
firmamento poucas estrelas tinha.
«Havia já percorrido um longo caminho sem encontrar vivalma, quando lhe apareceu, a menos de vinte passos, entre um arbusto de mussenda, uma jovem de uma beleza maravilhosa.»
— Quem era?— Uma criatura de tez
rosada, cabelos negros e olhos grandes.
«Fixou-o por um instante com olhar melancólico, depois desapareceu. Tremal-Naik foi tão vivamente atingido no coração que ardeu de amor por aquela aparição.
«Poucos dias depois era cometido um crime nas margens de uma ilha que se chama Raimangal. Um dos nossos, que tinha ido para ali caçar tigres, era
encontrado morto com uma corda ao pescoço.»
— Oh! — Exclamou o pirata surpreso. — Quem poderia ter estrangulado um caçador de tigres?
— Se for paciente já o saberá. Tremal-Naik, como disse, era um homem corajoso. Levou-me com ele e desembarcámos à meia-noite em Raimangal, re-solvidos a vingar o nosso
desventurado compa-nheiro.
«Primeiro ouvimos mil ruídos misteriosos que saíam de debaixo da terra, depois do tronco de um gigantesco banian surgiram vários homens nus, com tatuagens bizarras. Aqueles homens eram os assassinos do pobre caçador de tigres.»
— E então? — Perguntou o pirata cujos
olhos brilhavam de alegria.
— Tremal-Naik nunca hesitava. Um tiro de carabina deitou por terra o chefe daqueles indianos, depois fugimos.
— Bravo, Tremal-Naik! — Exclamou o Tigre com entusiasmo. — Continua. Divirto-me mais a ouvir histórias do que a abordar um navio carregado de minério amarelo.
— O meu patrão, para fazer desaparecer as pe-gadas daqueles homens que tinham vindo em nossa perseguição, separou-se de mim e refugiou-se num grande pagode onde encontrou... Adivinhe quem?
— A jovem?— Sim, a jovem que
era prisioneira daqueles homens.
— Mas quem eram?
— Os adoradores de uma divindade cruel que apenas anseia por vítimas humanas. Chama-se Kali.
— A terrível deusa dos tugues indianos?
— A deusa dos estranguladores.
— Esses homens são mais ferozes do que os tigres. Oh! Eu conheço-os — Disse o pirata. — Tive alguns no meu bando.
— Um tugue no teu bando? — Exclamou o marata, estremecendo. — Estou perdido.
— Não tenhas medo, Kammamuri. Em tempos tive alguns, mas agora já não. Continua o teu relato.
— A rapariga, que já amava o meu patrão, conhecendo os perigos que o rodeavam, implorou-lhe que partisse naquele instante, mas
ele não era homem para ter medo. Ficou ali à espera dos ferozes tugues, resolvido a medir forças com eles e, se pudesse, a raptar a prisioneira. Mas tinha confiado demais nas próprias forças. Pouco depois, doze homens armados de cordas entravam e atiravam-se contra ele e apesar da obstinada defesa era deitado por terra e
apunhalado pelo chefe dos estranguladores, o feroz Suyodhana.
— E não morreu? — Perguntou Sandokan, muito interessado.
— Não morreu — Continuou Kammamuri. — Mais tarde encontrei-o na selva, ensanguentado, com o punhal cravado ainda no peito, mas vivo.
— E por que é que o tinham atirado para a
selva? — Perguntou Eanes.
— Para que os tigres o devorassem. Levei-o para a nossa cabana e depois de muitos cuidados ficou curado, mas o coração permaneceu ferido pelos olhos negros da jovem; já não se podia curar.
«Um dia, depois de escapar a várias emboscadas dos tugues, resolveu partir para
Raimangal, decidido a tudo para rever a criatura amada. Embarcámos de noite, durante uma tempestade, descemos o Mangal e chegámos à ilha.
«Nenhum homem vigiava à entrada do banian e penetrámos debaixo da terra por entre obscuros corredores. Sabíamos que os tugues, não tendo
conseguido eliminar do coração da rapariga de olhos negros o amor por Tremal-Naik, haviam decidido queimá-la viva para acalmar a ira da monstruosa deusa e nós queríamos salvá-la.»
— Mas por que é que aquela mulher estava proibida de amar? — Perguntou Eanes.
— Porque ela era a guardiã do pagode consagrado à deusa Kali
e, como tal, devia manter-se pura.
— Que cambada de patifes!
— Continuo: depois de percorrermos longos corredores e de termos morto algumas sentinelas, encontrámo-nos numa sala enorme sustentada por cem colunas e iluminada por uma enorme quantidade de lâmpadas que
espalhavam uma luz cadavérica em seu redor.
«À volta estavam sentados duzentos indianos, de mãos amarradas. No meio erguia-se a estátua da deusa; à frente um tanque onde nadava um peixinho vermelho e que se dizia conter a alma da deusa; mais adiante erguia-se uma grande fogueira.
«À meia-noite apareceu o chefe Suyodhana, com os seus sacerdotes que arrastavam a infeliz rapariga, já entorpecida pelo ópio e por misteriosos perfumes. Já não opunha qualquer resistência.
«Estavam já a poucos passos da fogueira; um homem já tinha acendido um archote, os tugues já tinham começado a
entoar a oração dos defuntos, quando eu e Tremal-Naik nos lançámos como leões para o meio do grupo disparando à esquerda e à direita.
«Derrubar aquela muralha humana, arrancar a jovem às mãos dos sacerdotes e fugir através das obscuras galerias foi questão de um momento.
«Para onde fugíamos? Nenhum de nós sabia, mas não pensávamos nisso naquele instante. Apenas tentávamos ganhar terreno aos tugues que, refeitos da surpresa, se tinham de imediato lançado em nossa perseguição.
«Corremos durante uma hora penetrando cada vez mais no interior da terra, até que encontrámos um poço
por onde entrámos numa caverna sem saída. Ao tentarmos sair era tarde demais: os tugues tinham-nos fechado lá dentro.»
— Maldição! — Exclamou Sandokan. — Por que não estava lá eu com os meus Tigrezinhos? Teria feito uma compota de todos esses indianos sanguinários. Continua, marata, que a tua
história é interessan-tíssima. Diz-me, fugiram?
— Não.— Com mil trovões!— Cercaram-nos,
deixaram-nos sedentos acendendo em redor da caverna imensas fogueiras que nos assavam vivos; depois deitaram sobre nós um jacto de água à qual estava misturado não sei que narcótico. Assim que matámos a nossa sede
tombámos por terra atingidos por uma síncope e caímos nas mãos dos nossos inimigos.
«Estávamos já conformados a morrer, uma vez que nenhum de nós ignorava que os tugues desconheciam a piedade e, contudo, fomos poupados. A morte era demasiado doce para a mente perversa de Suyodhana,
o chefe dos estranguladores. Este tinha formado um terrível projecto com intenção de arrancar do coração da jovem o amor por Tremal-Naik e de desembaraçar-se do meu patrão que poderia tornar-se para eles num temível inimigo.
«Mas naquele tempo um homem corajoso, resoluto, a quem os tugues tinham raptado a
filha, fazia-lhes uma guerra sem tréguas. Esse homem era um inglês conhecido por capitão MacPherson.
«Centenas e centenas de tugues haviam caído pela sua mão e ele perseguia-os dia e noite sem lhes dar tréguas, poderosamente ajudado pelo governo inglês. Nem as armadilhas dos estranguladores, nem os punhais dos fanáticos
sectários tinham conseguido atingi-lo, nem as mais infernais intrigas contra ele haviam sido bem-sucedidas.
«Suyodhana, que o temia bastante, lançou contra ele Tremal-Naik prometendo-lhe a mão da Virgem do Pagode do Oriente, assim se chamava a rapariga de cabelos negros que o meu patrão tanto amava.
A cabeça do capitão deveria ser o presente de casamento!»
— E Tremal-Naik aceitou? — Perguntou o Tigre, com viva ansiedade.
— Ele amava demasiado a Virgem e aceitou o horrível pacto de sangue que lhe havia imposto o Pai das Sagradas Águas do Ganges, o impiedoso Suyodhana. Não lhe
narrarei tudo o que ele fez, todos os perigos que teve de enfrentar para poder aproximar-se daquele desgraçado capitão.
«Uma fortuita combinação proporcionou-lhe o meio para se poder tornar um dos seus criados, mas um dia foi descoberto e teve de penar muito para recuperar a liberdade e salvar a vida.
«Não renunciou contudo ao projecto imposto pelos tugues e um dia conseguiu embarcar num navio conduzido pelo capitão MacPherson na direcção das Sunderbunds para assaltar no seu esconderijo os seguidores da deusa sanguinária.
«Nessa mesma noite, escoltado por alguns cúmplices, entrava na
cabina do capitão para o decapitar. A sua consciência gritava-lhe que não cometesse esse crime, mas mesmo assim estava decidido já que só matando aquele temível adversário poderia recuperar a noiva, ou pelo menos acreditava nisso, desconhecendo a perversidade do fanático Suyodhana.»
— E matou-o? — Perguntaram Sandokan e Eanes, com ansiedade.
— Não — Disse Kammamuri. — Naquele instante o nome da mulher amada escapou dos lábios do meu patrão e aquele nome tinha sido ouvido pelo capitão que entretanto acordara.
«Aquele nome foi um choque para ambos: poupou um assassínio e um crime arrepiante uma
vez que o capitão era o pai da mulher amada pelo meu patrão.»
— Por Júpiter! — Exclamou Eanes. — Que história terrível nos contas...
— A verdade, senhor Eanes.
— Mas o teu patrão não conhecia o nome da noiva?
— Sim, mas o pai tinha assumido outro nome para não dar a entender
aos tugues que lutava para recuperar a filha e porque temia, que ao sabê-lo, eles a matassem.
— Continua — Disse Sandokan.
— Pode imaginar o que aconteceu. O meu patrão confessou tudo: tinha finalmente entendido a infernal astúcia de Suyodhana.
«Ofereceu-se para orientar o capitão pelas
cavernas dos sectários. Desembarcaram, em Raimangal. O meu patrão entrou no templo sub-terrâneo fingindo levar com ele a cabeça do capitão e quando pôde rever a rapariga amada, os ingleses abateram-se sobre os tugues.
«Mas Suyodhana tinha saído vivo do assalto imprevisto dos inimigos e quando o meu patrão, o capitão, a noiva e os
seus soldados abandonaram os subterrâneos para regressar ao navio, ouviram-no gritar com uma voz ameaçadora: 'Havemos de nos rever na selva!'
«E aquele homem sinistro mantinha a palavra. Em Raimangal tinham-se reunido várias centenas de estranguladores, já
informados da expedição do capitão MacPherson.
«Guiados por Suyodhana caíram sobre os ingleses. A tripulação do navio acorreu em vão em auxílio do seu capitão.
«Todos caíram entre as ervas gigantes da selva, esmagados e o capitão foi o primeiro. Até o navio foi capturado, incendiado e feito explodir.
«Só Tremal-Naik e a sua noiva foram poupados. Teria Suyodhana remorsos por matar também o meu patrão, que tanto tinha feito por aqueles infames, ou teria esperanças de fazer dele um tugue?. Nunca percebi.
«Três dias depois de ter enlouquecido com um licor que o haviam obrigado a engolir, o
meu patrão era preso pelas autoridades inglesas, próximo do forte William. Tinha sido denunciado como um tugue e testemunhas não haviam faltado, uma vez que, também em Calcutá, aquela seita contava com muitos seguidores.
«Foi poupado apenas por ser louco, mas condenado à deportação perpétua para a ilha de
Norfolk, a sul de uma terra chamada Austrália, segundo me disseram.»
— Que drama! — Exclamou o Tigre após alguns instantes de silêncio. — Esse Suyodhana odiava assim tanto o pobre Tremal-Naik?
— O chefe dos sectários pretendia destruir para sempre a paixão que ardia no
coração da Virgem do Pagode.
— Era um monstro esse feroz chefe dos tugues.
— Mas o teu patrão ainda continua louco? — Perguntou Eanes.
— Não, os médicos ingleses conseguiram curá-lo.
— E não se defendeu? Não revelou tudo?
— Tentou fazê-lo, mas não acreditaram nele e
trataram-no ainda como semilouco.
— Mas porque está ele agora em Sarawak...
— Porque o barco que o transportava para Norfolk naufragou perto de Sarawak. Infelizmente não ficará muito tempo nas mãos do rajá.
— E porquê?— Porque da Indira já
partiu um navio e dentro de seis ou sete dias, se os meus cálculos não
falharem, chegará a Sarawak. Esse navio dirige-se a Norfolk.
— Como se chama esse navio?
— O Helgoland.— Viste-o?— Antes de deixar a
Indira.— E para onde ias no
Young Indira?— Para Sarawak salvar
o meu patrão — Disse Kammamuri com firmeza.
— Sozinho?— Sozinho.— És um jovem
corajoso, meu bom marata — Disse o Tigre da Malásia. — E o que fez o terrível Suyodhana com a Virgem do Pagode do Oriente?
— Manteve-a prisioneira nos subterrâneos de Raimangal, mas a desgraçada, depois do sanguinário ataque dos
tugues na selva, enlouqueceu.
— Mas como é que fugiu das mãos dos tugues? — Perguntou Eanes.
— Mas ela fugiu? — Perguntou Sandokan.
— Sim, irmãozinho.— E onde se encontra?— Sabê-lo-ás mais
tarde. Kammamuri, conta lá como é que ela fugiu — Disse Eanes.
— Conto em poucas palavras — Disse o marata. — Eu tinha ficado com os tugues mesmo depois da terrível vingança de Suyodhana e vigiava atentamente a Virgem do Pagode.
«Passado algum tempo, soube que o meu patrão havia sido condenado a ir para a ilha de Norfolk e que o navio que o transportava tinha naufragado em
Sarawak: nessa altura pensei na fuga.
«Comprei uma canoa, escondi-a no meio da selva e, numa noite de orgia, quando os tugues completamente bêbados já não conseguiam sair dos subterrâneos, dirigi-me ao pagode sagrado, apunhalei os indianos que a guardavam, agarrei na Virgem e fugi. No dia seguinte encontrava-me em
Calcutá e quatro dias depois a bordo do Young Índia.»
— E a Virgem? — Perguntou Sandokan.
— Está em Calcutá — Apressou-se a dizer Eanes.
— É bela?— Belíssima — Disse
Kammamuri. — Tem cabelos negros e os olhos são negros como dois carvões.
— E como se chama?
— A Virgem do Pagode.— Não tem outro
nome?— Sim.— Diz-mo.— Chama-se Ada
Corishant.Ao ouvir aquele nome,
o Tigre da Malásia tinha dado um salto, soltando um grito.
— Corishant! Corishant! O nome da adorada mãe da minha pobre Mariana! Meu
Deus! Meu Deus! — Gritou em tom desesperado.
Depois abateu-se sobre o tapete com o rosto visivelmente alterado e as mãos crispadas sobre o coração. Um rouco soluço, que pareceu um rugido, lacerou o seu peito.
Kammamuri, assustado e surpreso, levantara-se para acorrer em auxílio do pirata que parecia ter
sido ferido de morte, mas duas mãos robustas seguraram-no.
— Uma palavra — Disse-lhe o português, segurando-o pelos ombros. — Como se chamava o pai da jovem?
— Harry Corishant — Respondeu o marata.
— Santo Deus! E era?— Capitão dos sipaios.— Sai daqui!— Mas porquê? O que
aconteceu?
— Silêncio, sai daqui!E segurando-o pelos
ombros empurrou-o bruscamente para fora, fechando a porta dando duas voltas à chave.
VA CAÇA AO
HELGOLANDO pirata de
Mompracem tinha-se rapidamente refeito daquela estranha e terrível comoção. O seu
rosto, embora ainda alterado, recuperara aquela expressão orgulhosa que incutia respeito e terror aos mais corajosos e, nos seus lábios, apesar de pálidos, paira um sorriso melancólico.
Grandes gotas de suor surgiam na sua face, levemente crispada e uma chama sinistra ardia naqueles olhares.
— Passou a tempestade? — Perguntou Eanes, sentando-se a seu lado.
— Sim — Disse o Tigre, com voz surda.
— Sempre que ouves um nome que te recorde a defunta Mariana, agitas-te e passas mal.
— Amei demasiado aquela mulher... Eanes. Essa recordação tão bruscamente evocada magoou-me mais do que
uma bala de carabina que entrasse no meu peito... Mariana, minha pobre Mariana!
Um segundo soluço lacerou o peito daquele homem.
— Coragem, meu irmão — Disse Eanes, que estava bastante comovido. — Não te esqueças que és o Tigre da Malásia.
— Certas recordações até para um tigre são tremendas.
— Vamos falar de Ada Corishant?
— Sim, Eanes.— O que vais fazer?— Eanes — Disse
Sandokan com voz triste. — Lembras-te do que a minha mulher disse uma tarde debaixo de um majestoso durião?
— Sim, lembro-me. «Sandokan, meu
valoroso amigo tenho uma prima que adoro na longínqua Indira. É filha de uma irmã de minha mãe.»
— Continua, Eanes.— Prossigo, meu
irmãozinho. «Ela desapareceu, não se sabe onde está. Diz-se que os tugues indianos a raptaram, Sandokan, meu valoroso amigo, salva-a, devolve-a ao infeliz pai.»
— Basta, basta, Eanes! — Exclamou o pirata com voz angustiante. — Oh! Essas recordações partem-me o coração. E nunca mais rever essa pobre mulher? Mariana, minha adorada Mariana!
O pirata tinha posto a cabeça entre as mãos e começou a soluçar.
— Sandokan — Disse Eanes — Tens de ser forte.
O pirata ergueu de novo a cabeça.
— Sou forte — Disse.— Queres continuar a
conversa?— Sim.— Desde que te
mantenhas calmo.— Ficarei calmo.— O que farás por Ada
Corishant?— O que farei? E ainda
me perguntas? Irei salvá-la de imediato, depois
irei a Sarawak libertar o noivo dela.
— Ada Corishant está a salvo, Sandokan — Disse Eanes.
— A salvo! A salvo! — Exclamou o pirata levantando-se de um salto. — E onde está ela?
— Aqui.— Aqui! E por que é
que não mo disseram antes?
— Porque aquela jovem se parece com a tua
defunta mulher apesar de não ter nem cabelos de ouro, nem olhos azuis como o mar. Temia que sofresses um rude golpe ao vê-la.
— Eu quero vê-la, Eanes, eu quero vê-la!
— Vê-la-ás de imediato.Abriu a porta.
Kammamuri, tomado de uma indizível ansiedade, estava sentado numa jaula sem fundo, à espera de ser chamado.
— Senhor Eanes! — Exclamou com voz trémula, lançando-se na direcção do português.
— Calma, Kammamuri.— Irão salvar o meu
patrão?— Assim o esperamos
— Disse Eanes.— Obrigado, senhor,
obrigado!— Agradece-me
quando o tivermos salvado. Agora desce até
á aldeia e trás até cá a tua patroa.
O marata desceu a estreita escada em declive, gritando de alegria...
— Bom rapaz — Murmurou o português.
Voltou para dentro e aproximou-se de Sandokan que voltara a sentar-se e escondia o rosto entre as mãos.
— Em que é que estás a pensar, meu
irmãozinho? — Perguntou, com voz afectuosa.
— No passado, Eanes — Respondeu o pirata.
— Nunca penses no passado, Sandokan. Já sabes que te faz sofrer. Diz-me, irmãozinho, quando partimos?
— De imediato.— Para Sarawak?— Para Sarawak.— Será um osso duro
de roer. O rajá de
Sarawak é poderoso e odeia os piratas.
— Eu sei, mas os nossos homens chamam-se os Tigres de Mompracem e eu o Tigre da Malásia.
— Seguimos directamente para Sarawak ou cruzaremos perto das costas?
— Cruzaremos na vasta baía. Antes de desem-barcar temos de afundar o Helgoland.
— Compreendo o teu plano.
— Aprova-lo?— Sim, Sandokan, e...Parou de repente. A
porta tinha-se subitamente aberto e apareceu Ada Corishant, a Virgem do Pagode do Oriente.
— Olha para ela, Sandokan! — Exclamou o português.
O pirata virou-se. Ao ver aquela mulher em pé
na soleira da porta emitiu um grito e recuou, cambaleando, até à parede.
— Que semelhança! — Exclamou. — Que seme-lhança!
A louca não se mexera. Conservava uma abso-luta imobilidade, mas olhava fixamente para o pirata.
De repente, deu dois passos para a frente e pronunciou uma palavra:
— São tugues?— Não — Disse
Kammamuri, que a tinha seguido. — Não, patroa, não são tugues.
Ela sacudiu a cabeça, aproximou-se de Sandokan que parecia incapaz de se afastar da parede e pôs-lhe a mão sobre o peito.
— São tugues? — Repetiu ela.
— Não, patroa, não — Disse o marata.
Ada abriu o grande manto de seda branca descobrindo uma couraça de ouro cravejada de grandes diamantes, no meio da qual se destacava, em alto-relevo, uma serpente com cabeça de mulher. Olhou para aquele misterioso símbolo dos estranguladores indianos, depois olhou
para o peito de Sando-kan.
— Porque é que não vejo a serpente? — Perguntou, com voz levemente alterada.
— Por que estes homens não são tugues — Disse Kammamuri.
Um brilho resplandeceu nos olhos da louca, mas depressa se apagou. Teria compreendido o que disse Kammamuri? Talvez.
— Kammamuri — Disse Eanes em voz baixa. — E se pronunciasses o nome do noivo dela?
— Não, não! — Exclamou o marata, com terror. — Desmaiaria.
— Está sempre assim tão calma?
— Sempre, mas faça com que não oiça o som de um ramsinga ou de um tarè, e que não veja uma corda ou uma estátua da deusa Kali.
— Porquê?— Porque nesse caso
foge e delira durante vários dias.
Nesse instante a louca virou-se, dirigindo-se lentamente para a porta. Kammamuri, Eanes e Sandokan já refeitos da emoção, seguiram-na.
— Que pretende ela fazer? — Perguntou Eanes.
— Não sei — Respondeu o marata.
A louca, assim que saíra, parara observando com curiosidade as trincheiras e as paliçadas que defendiam a cabana, depois encaminhou-se para a borda do gigantesco penhasco, olhando para o mar.
De repente debruçou-se como se quisesse ouvir melhor o barulho das ondas e soltou uma gargalhada, exclamando:
— O Mangal!
— O que diz? — Perguntaram Sandokan e Eanes ao mesmo tempo.
— Penso que esteja a confundir o mar com o rio Mangal que banha a ilha dos tugues.
— Pobre mulher! — Exclamou Sandokan, sus-pirando.
— Esperas conseguir fazê-la voltar ao seu juízo? — Perguntou Eanes.
— Sim, espero — Respondeu Sandokan.
— De que maneira?— Digo-te depois de
termos libertado Tremal-Naik.
— Aquela infeliz vem connosco?
— Sim, Eanes. Durante a nossa ausência os in-gleses poderiam lançar-se sobre Mompracem e levá-la.
— Quando partimos? — Perguntou Kammamuri.
— De imediato — Disse Sandokan. — Temos muito caminho a percorrer e o Helgoland poderá não estar longe.
— Desçamos à aldeia.Kammamuri segurou
Ada pela mão e desceu a pequena escada, seguido pelo Tigre da Malásia e por Eanes.
— Qual a tua impressão daquela infeliz? — Perguntou o português a Sandokan.
— Uma impressão dolorosa, Eanes — Disse o pirata. — Ah! Se eu pudesse um dia fazê-la feliz!
— Parece-se com a defunta Mariana?
— Sim, sim, Eanes! — Exclamou Sandokan com voz comovida. — Tem as mesmas feições da mi-nha pobre Mariana! Basta, Eanes, não fale-mos mais daquela morta.
Isso faz-me sofrer, sofrer muito!
Tinham chegado às primeiras cabanas da aldeia. Nesse momento, entravam na baía os paraus carregados com os despojos do Young Indira.
As tripulações, ao avistarem o seu chefe, saudaram-no entusiasticamente, agitando com frenesim as suas armas.
— Viva o invencível Tigre da Malásia — Grita-vam.
— Viva o nosso valoroso capitão! — Respondiam os piratas da aldeia.
Sandokan com um único gesto convocou em seu redor todos os piratas, que não eram menos de duzentos, a maioria malaios e daiaques do Bornéu, homens corajosos como
leões, ferozes como tigres, prontos a morrer pelo seu chefe, que adoravam como a um deus.
— Ouçam-me — Disse ele. — O Tigre da Malásia prepara-se para fazer uma expedição que talvez venha a custar a vida a muitos de nós.
«Tigres de Mompracem. Nas costas de Bornéu reina um homem, um filho de uma
raça que tanto mal nos fez e que nós tanto odiamos, um inglês, enfim. Esse homem, o maior inimigo da pirataria malaia, tem em seu poder um amigo meu, noivo desta pobre louca que é prima da defunta rainha de Mompracem.»
Um enorme grito levantou-se à volta de Sandokan.
— Salvemo-lo! Salvemo-lo!
— Tigres de Mompracem, quero salvar o noivo desta infeliz.
— Havemos de o salvar, Tigre da Malásia, havemos de o salvar! Quem é que o tem prisioneiro?
— O rajá James Brooke, o exterminador de piratas.
Desta vez não foi um grito o que irrompeu dos peitos dos piratas, mas um rugido de ira.
— Morte a James Brooke!
— Morte ao exterminador dos piratas!
— A Sarawak! Todos a Sarawak!
— Vingança, Tigre da Malásia!
— Silêncio! — Disse com voz ribombante o
Tigre da Malásia. — Kará-OIó, avança.
Um homem enorme, de pele amarelada, com os membros carregados de anéis de cobre e o peito adornado com contas de vidro, com dentes de tigre, com conchas e de tufos de cabelos, aproximou-se, empunhando um sabre pesado.
— Quantos homens tem o teu bando? — Per-guntou-lhe Sandokan.
— Oitenta — Respondeu o pirata.
— Tens medo de James Brooke?
— Nunca tive medo de ninguém. Quando o Tigre da Malásia me mandar lançar sobre Sarawak, irei ao assalto e atrás de mim virão todos os meus homens.
— Vais embarcar com o teu bando no Pérola de Labuan. Não preciso de te dizer que o parau está carregado de balas e de pólvora.
— Está bem, capitão.— E eu, o que devo
fazer, capitão? — Perguntou um velho malaio, desfigurado por mais de vinte cicatrizes.
— Tu, Nayala, ficarás em Mompracem; deixa
que sejam os jovens a ir a Sarawak!
— Ficarei aqui, porque me ordenas e defenderei a ilha enquanto tiver uma gota de sangue nas veias.
Sandokan e Eanes ficaram ainda a falar com os capitães dos bandos, depois subiram para a grande cabana.
Os seus preparativos foram breves. Escondi-das sob as vestes umas
bolsas contendo grandes diamantes que unidos representavam um valor de quase dois milhões e escolhidas as carabinas, as pistolas, as cimitarras e os kriss de ponta afiada e envenenada, regressaram de novo à costa.
O Pérola de Labuan, coberto de velas, ondulava na pequena enseada. Na coberta estavam enfileirados os
oitentas daiaques de Kará-OIó, prontos para o manobrar.
— Tigrezinhos — Disse Sandokan dirigindo-se aos piratas aglomerados na praia — Defendam a minha ilha.
— Defendê-la-emos — Responderam em coro os Tigres de Mompracem, agitando as armas.
Sandokan, Eanes, Kammamuri e a Virgem do Pagode do Oriente
subiram para uma embarcação e alcançaram o navio que, depois de libertas as amarras, navegou para o mar alto saudada por gritos de:
— Viva o Pérola de Labuan! Viva o Tigre da Malásia! Viva os Tigres de Mompracem!
VI
DE MOMPRACEM A SARAWAK
O Pérola de Labuan, com o qual o chefe dos piratas de Mompracem estava para levar a cabo a audaz expedição, era um dos melhor equipados, dos mais sólidos e belos paraus que sulcavam os mares da Malásia.
Tinha cento e cinquenta ou cento e sessenta toneladas de
calado, isto é, o triplo dos paraus vulgares. A quilha era estreitíssima, as formas esbeltas, a proa alta e sólida, os mastros fortíssimos e as velas enormes. Quando havia vento deixava para trás os barcos a vapor e os veleiros mais rápidos da Ásia e da Austrália.
Nada havia nele que fizesse pensar num navio corsário. Não tinha canhões à vista, nem
uma tripulação numerosa, nem portinholas. Parecia um elegante parau mercantil e transportava uma carga preciosa, na rota da China ou das Indiras. O mais astuto lobo-do-mar ter-se-ia enganado.
Mas quem tivesse descido ao porão teria podido ver de que espécie era a carga. Não eram tapetes, nem ouro, nem especiarias, nem
chá: eram bombas, espingardas, punhais, grandes sabres de abordagem e barris de pólvora em tal quantidade que fariam saltar duas fragatas de alto bordo.
Quem depois entrasse sob a grande guarita teria podido ver seis grandes canhões de longo alcance, colocados sobre os carretos, prontos a disparar, para
não falar de dois morteiros, machados e pesados parangs, as armas favoritas dos daiaques do Bornéu.
Ultrapassados os incontáveis rochedos e recifes, que dificultavam aos navios a entrada da pequena baía, o veloz Pérola de Labuan dirigiu a proa em direcção à costa do Bornéu.
O tempo estava esplêndido e o mar
tranquilo; no céu, poucos cirros cor de fogo, no mar nada. Nem uma vela, nem um traço de fumo que assinalasse um barco a vapor no horizonte, nem ondas. A imensa extensão de água, cor de chumbo, estava perfeitamente tranquila, embora soprasse um ligeiro vento fresco.
Em menos de vinte minutos, o veloz barco
atingiu a ponta sul extrema da ilha, por trás da qual acabava de se desfazer o esqueleto do Young Indira e ganhou o largo, inclinado vaidosamente a bombordo, deixando atrás da popa uma linha perfeita.
Eanes e Kammamuri, depois de conduzirem a Virgem do Pagode à maior e mais bonita cabina de popa, tinham
voltado a subir para a coberta, onde Sandokan passeava de braços cruzados sobre o peito e a cabeça baixa, imerso em profundos pensamentos.
— O que é que achas do nosso barco? — Perguntou Eanes ao marata, que, apoiado ao coroamento de popa, olhava atentamente as costas desmoronadas de Mompracem que
desapareciam rapidamente.
— Não me lembro de alguma vez ter navegado num barco tão veloz quanto este, senhor Eanes — Disse o marata. — Os piratas, ao que parece, sabem escolher os seus navios.
— Tens razão, meu caro. Não há navio a vapor que se compare a este valoroso Pérola de Labuan. Em poucos dias,
se este vento não diminuir, avistaremos as costas de Sarawak.
— Sem combates?— Isso não se pode
saber. O Pérola de Labuan é neste mar conhecido e muitos são os cruzadores que batem as costas de Bornéu. Pode acontecer que algum deles queira medir forças com o Tigre da Malásia.
— E se isso acontecer?
— Caramba, aceitaremos o desafio. O Tigre da Malásia nunca recusa um combate.
— Não gostava que um barco grande nos assal-tasse.
— Não teríamos medo. Temos no porão espin-gardas e sabres suficientes para munir a população de uma cidade de primeira classe, bombas que cheguem para cobrir
uma frota inteira e pólvora em quantidade para fazer explodir mil casas.
— Mas só oitenta homens.
— Mas tu sabes que homens são os nossos?
— Sei que são corajosos, mas...
— São daiaques, meu caro.
— O que é que isso quer dizer?
— Gente que não tem medo de lançar-se contra uma muralha de ferro defendida por cem canhões, quando sabem que do outro lado há cabeças para cortar.
— Caçam as cabeças, esses daiaques?
— Sim, meu jovem. Os daiaques, que vivem nas grandes florestas do Bornéu, chamam-se caçadores de cabeças.
— São terríveis companheiros então.
— Formidáveis.— E também perigosos.
Se uma noite lhes desse na cabeça decapitar-nos?
— Não tenhas medo, rapaz. Respeitam-nos e temem-nos mais a nós do que às suas divindades. Basta uma palavra, um só olhar do Tigre para os amansar.
— E quando chegaremos a Sarawak?
— Dentro de cinco dias se não tivermos acidentes.
— Tempestades?— Puf — Fez o
português, erguendo os ombros. — O Pérola de Labuan guiado por um lobo-do-mar como Sandokan, ri dos mais temíveis ciclones. São os cruzadores que de vez em quando nos vêm aborrecer.
— Há muitos então?
— Pululam como plantas venenosas. Portugueses, ingleses, holandeses e espanhóis juraram uma guerra de morte contra a pirataria.
— Até que um belo dia os piratas desapareçam.
— Oh! Nunca mais! — Exclamou Eanes, com profunda convicção. — A pirataria durará enquanto existir um único malaio.
— E porquê?
— Porque a raça malaia é refractária a qualquer princípio de civilização. Não conhece o roubo, o incêndio, o saque, os terríveis meios que lhes dão para viver na abundância. A pirataria malaia conta com vários séculos de vida e continuará ainda durante muitos mais. É uma herança sanguinária que se transmite de pai para filho.
— Mas não enfraquece esta raça? Os contínuos combates devem provocar grandes vazios.
— Coisa pouca, Kammamuri, coisa pouca! A raça malaia é fecunda como as plantas venenosas, como os insectos nocivos. Se morre um, nasce outro e este não é menos valoroso nem menos sanguinário do que o pai.
— O Tigre da Malásia é malaio?
— Não, é de Bornéu e de uma casta elevada.
— Diga-me, senhor Eanes. Como é que um homem tão temível que assalta navios, trucida tripulações inteiras, saqueia e incendeia aldeias, que finalmente espalha o terror por toda a parte, se ofereceu generosamente para
salvar o meu patrão que nunca conheceu?
— Porque o teu patrão foi o noivo de Ada Corishant.
— Conhecia Ada Corishant? — Perguntou Kammamuri, com surpresa.
— Nunca a viu.— Então não percebo...— Hás-de perceber,
Kammamuri. Em 1852, isto é, há cinco anos atrás, o Tigre da Malásia
estava no auge. Tinha muitos e ferozes tigres, muitos paraus, muitos canhões. Com uma só palavra fazia tremer todos os povos da Malásia.
— Já então estava ao lado do Tigre?
— Sim, e desde há vários anos. Um dia, Sandokan foi informado de que em Labuan vivia uma rapariga belíssima e sentiu vontade de a
conhecer. Dirigiu-se a Labuan, mas foi descoberto por um cruzador, vencido e ferido. Com penas infinitas e completamente só conseguiu esconder-se nos bosques e daí chegou a uma casa habitada por... Adivinha por quem?
— Não sei.— Pela rapariga que
desejava ver.
— Oh! Que estranha combinação!
— O Tigre da Malásia nunca tinha amado até então senão as lutas, os massacres, as tempestades. Mas ao ver a rapariga apaixonou-se loucamente.
— Quem? O Tigre? É impossível! — Exclamou Kammamuri.
— Estou a contar-te factos verídicos — Disse Eanes. — Amou a
rapariga, a rapariga amou-o também e decidiram fugir juntos.
— Porquê fugir?— A rapariga tinha um
tio, capitão de marinha, um homem rude, violento, inimigo acérrimo do Tigre da Malásia. Não relato as lutas tremendas que se travaram entre ingleses e piratas, as desgraças que tocaram o Tigre, o bombardeamento de
Mompracem, as fugas. Dir-te-ei somente que Sandokan pôde finalmente fazer sua a rapariga e refugiar-se em Batávia. Eu e trinta tigrezinhos seguimo-lo.
— E os outros?— Tinham morrido
todos.— E por que é que o
Tigre regressou a Mom-pracem?
Eanes não respondeu. O marata, surpreendido
por não receber resposta, levantou os olhos e viu-o limpar rapidamente uma lágrima.
— Mas está a chorar! — Exclamou.
— Não é verdade — Disse Eanes.
— Para quê negá-lo?— Tens razão,
Kammamuri. Até o Tigre da Malásia, que nunca havia chorado, também a ele vi caírem lágrimas.
Sinto um nó na garganta sempre que penso em Mariana Guillonk.
— Mariana Guillonk! — Exclamou o marata. — Quem é?
— Era a jovem que fugiu com o Tigre da Malásia.
— Era parente de Ada Corishant?
— Prima, Kammamuri.— Foi então por isso
que o Tigre prometeu salvar Tremal-Naik e a
sua noiva. Diga-me, senhor Eanes, Mariana Guillonk está viva?
— Não, Kammamuri — Disse Eanes, com tristeza. — Há dois anos que repousa num túmulo.
— Morta!— Morta.— E o tio?— Está vivo e continua
a procurar Sandokan. Lord James Guillonk jurou que o enforcaria comigo*
— E onde está ele agora?
— Não sabemos...— Teme encontrá-lo?— Digo-te que tenho
um pressentimento. Mas... Já não acredito em pressentimentos! — Acendeu um cigarro e pôs-se a passear na coberta. O marata notou que aquele homem, habitualmente tão risonho, ficara triste, de repente.
— Talvez tenham sido as recordações a pô-lo tão triste — Murmurou, e desceu para a cabina da louca.
O vento continuava a manter-se bom, tinha até tendência a aumentar, acelerando mais o andamento do Pérola de Labuan, não demorou a atingir os sete nós à hora, velocidade que lhe permitia chegar
rapidamente ao cabo Sirik.
Ao meio-dia foram avistadas a bombordo as Nómades, grupo de ilhotas situadas a quarenta milhas da costa do Bornéu, habitadas principalmente por piratas que se davam às mil maravilhas com os de Mompracem. Alguns paraus, até, se aproximaram do Pérola de Labuan, desejando à
tripulação e ao seu capitão um bom saque.
Uma ou outra vela longínqua, um bergantim e alguns juncos chineses foram avistados durante o dia, mas o Tigre da Malásia, que temia chegar depois do Helgoland e não queria expor os seus homens num combate inútil, não se preocupou com aqueles barcos.
Na manhã seguinte, aos primeiros alvores da madrugada, foi avistada Whale, uma ilha de tamanho considerável, distante cento e dez milhas de Mompracem, rodeada por inúmeros recifes que tornam dificílima a atracagem. Uma canhoneira com bandeira holandesa, que batia a costa, sem dúvida em busca de um navio corsário ali
refugiado depois de ter cometido um qualquer golpe, ao avistar o Pérola de Labuan fez-se ao largo a todo o vapor. A coberta num instante se cobriu de marinheiros armados de carabinas de longo alcance e os artilheiros colocaram a descoberto, a estibordo, um grande canhão.
— Ah! — Exclamou Eanes aproximando-se de Sandokan que olhava
com tranquilidade para a canhoneira. — Meu irmão, aquela besta farejou qualquer coisa e está a preparar-se para nos dar caça.
— Não acredites nisso — Respondeu o Tigre. — Limitar-se-á a seguir-nos.
— Não gosto muito de ser seguido por uma canhoneira.
— Tens medo?
— Não, meu irmão. Mas se ela nos seguisse até Sarawak?
— Por que havia de nos seguir até Sarawak? Se suspeitar de nós dá-nos luta e nós fá-la-emos ir a pique.
— Desconfia, meu irmão. Disseram-me que James Brooke tem uma boa frota que muda muitas vezes de bandeira e de aparência
para dar caça aos piratas.
— Conheço as astúcias desse lobo-do-mar. Sei que uma vez, para atrair os piratas, tirou os mastros ao seu navio, o Realista, para os metralhar assim que estivessem ao alcance dos tiros.
— É verdade, Sandokan, que esse homem diabólico exterminou todos os
piratas que batiam as costas de Sarawak?
— É verdade, Eanes. O Realista purgou as costas de meio Bornéu, destruindo todos os paraus, incendiou as aldeias, bombardeou as fortalezas. Aquele homem tem sangue nas veias, mas não tanto quanto os piratas de Mompracem.
— Queres medir-te com ele?
— Assim o espero. O Tigre dará ao exterminador de piratas um golpe terrível.
— Ah! — Exclamou o português.
— O que tens?— Olha para a
canhoneira, Sandokan. Está a convidar-nos a mostrar a nossa bandeira.
— Não lhes mostrarei seguramente a minha.
— Então qual? — Perguntou Eanes.
— Hei, Kai-Malú, mostra àqueles curiosos uma bandeira inglesa, holandesa ou portuguesa.
Passados instantes, uma bandeira portuguesa esvoaçava na popa do parau.
A canhoneira, satisfeita, fez-se quase de imediato ao largo, já não na direcção da ilha
de Whale, que ainda se via no horizonte, mas rumo ao Sul.
Aquela rota fez o Tigre da Malásia e os seus companheiros franzir o sobrolho.
— Hum! — Fez o português. — Aqui há coisa.
— Eu sei, irmão.— Aquela canhoneira
dirige-se para Sarawak, estou certo. Assim que estiver fora da nossa
vista, modificará a sua rota.
— Os homens que a navegam são espertos, farejaram que somos piratas.
— O que vais fazer?— Nada, por enquanto.
Aquela canhoneira hoje anda mais depressa do que nós.
— Será que nos vai esperar a Sarawak?
— É provável.
— Talvez nos arme uma emboscada na foz do rio com a frota de Brooke.
— Havemos de nos bater.
— Só temos oito canhões, Sandokan.
— Nós sim, mas o Helgoland deve certamente ter mais do que nós.
Durante dois dias o Pérola de Labuan navegou a cerca de
trinta milhas da costa do Bornéu, assinalada pelo cume do monte Patau, um cone gigantesco coberto de soberbas florestas.
Na manhã do terceiro dia, depois de uma breve calmaria, dobrava o cabo Sirik, promontório rochoso coroado por algumas ilhas e ilhotas, que encerra a norte a vasta baía de Sarawak.
Sandokan, que temia encontrar-se de um momento para o outro frente a frente com a frota de James Brooke, mandou carregar os canhões, esconder dois terços da tripulação e içar a bandeira holandesa. Depois disso, apontou a proa para o cabo Taniong-Datu, que fecha a baía a ocidente, perto do qual deveria passar o Helgoland
proveniente da Indira. Cerca do meio-dia desse dia, para surpresa geral, o Pérola de Labuan cruzava-se com a canhoneira holandesa que encontrara três dias antes nas águas da ilha de Whale. Sandokan, ao vê-la, deixou cair um violento murro sobre a amurada.
— Outra vez a canhoneira! — Exclamou franzindo a testa e
mostrando os dentes, brancos e aguçados como os de um tigre.
— Queres que eu dê sangue a beber aos meus tigres.
— Está a espiar-nos, Sandokan — Disse Eanes.
— Mas eu hei-de afundá-la.
— Não o farás, Sandokan. Um tiro de canhão pode ser ouvido pela frota de Brooke.
— Eu rio da frota do rajá.
— Sê prudente, Sandokan.
— Serei prudente já que assim queres, mas verás que aquela canhoneira nos há-de fazer uma emboscada na foz do Sarawak.
— Não és o Tigre da Malásia, tu?
— Sim, mas a bordo temos a Virgem do
Pagode. Poderia ser atingida por uma bala.
— Os nossos peitos serão o escudo dela.
A canhoneira holandesa estava a duzentos metros do Pérola de Labuan. Da sua coberta viam-se o capitão armado de um óculo e, aglomerados na proa, cerca de trinta marinheiros armados de carabinas. À popa, alguns artilheiros
rodeavam um grande canhão.
Deu duas voltas em redor do parau descrevendo um grande semicírculo, depois virou de bordo metendo a proa para Sul, ou seja para Sarawak.
Era tal a velocidade, que em menos de três quartos de hora apenas se avistava um fino penacho de nuvens.
— Maldição! — Exclamou Sandokan — Se voltar a estar na minha mira, afundo-te com uma única bordada. O Tigre, mesmo quando não está de mau-humor, não deixa que se aproximem três vezes impunemente.
— Havemos de a encontrar em Sarawak, Sandokan — Disse Eanes.
— Assim o espero, mas...
Um grito vindo de cima interrompeu-o brusca-mente.
— Ei! Um barco a vapor no horizonte! — Tinha gritado um pirata encavalitado na verga do mastro principal.
— Talvez seja um cruzador! — Exclamou Sandokan, cujo olhar se iluminou. — De onde vem?
— Do Norte — Respondeu o gajeiro.
— Consegues vê-lo bem?
— Só vejo o fumo e a extremidade dos mastros.
— Se for o Helgoland! — Exclamou Eanes.
— É impossível! Viria de ocidente e não de norte.
— Pode ter tocado Labuan.
— Kammamuri! — Gritou o Tigre. O marata correu para o pirata.
— Conheces o Helgoland? — Perguntou o Tigre.
— Sim, patrão.— Então segue-me!Subiram até à
extremidade do mastro principal e fixaram os olhos sobre a esverdeada superfície do mar.
VII
O HELGOLANDNaquela linha onde o
oceano se confundia com o horizonte, apareceu quase do nada um navio de três mastros do qual se adivinhavam, apesar de ainda estar bastante longe, as grandes dimensões. Da chaminé saía uma tira de fumo negro que o vento arrastava para longe. O seu tamanho, a sua estrutura, os seus
mastros, davam logo a conhecer que aquele navio pertencia à categoria dos barcos de guerra.
— Estás a vê-lo, Kammamuri? — Perguntou Sandokan, que o fixava com extrema atenção, como se quisesse conhecer a bandeira que flutuava no topo de uma das velas.
— Sim — Respondeu o marata.
— Conhece-lo?— Espere um pouco,
patrão.— É o Helgoland?— Espere... parece-
me... Sim, sim, é o Helgoland!
Um brilho sinistro lampejou nos olhos do Tigre da Malásia.
— Ali há trabalho para todos! — Disse o pirata.
Agarrou-se a uma corda e deixou-se escorregar para a
coberta. Os seus piratas, que brandiam as armas, correram para junto dele interrogando-o com o olhar.
— Eanes! — Chamou.— Eis-me, irmão —
Disse o português acorrendo da popa.
— Desce com seis homens ao porão e arromba os flancos do parau.
— O quê! Arrombar os flancos do parau? Estás louco?
— Tenho um plano. A tripulação do barco ouvirá os nossos gritos, acorrerá e acolher-nos-á como náufragos. Tu serás um embaixador português rumo a Sarawak e nós a tua escolta.
— E depois?— Uma vez no barco,
não será difícil a homens
como nós tomá-lo. Despacha-te: o Helgoland avança.
— Irmão, és um grande homem! — Exclamou o português.
Fez armar dez homens e desceu ao porão cheio de armas, de barris de pólvora, de balas e de velhos canhões que serviam de lastro. Cinco homens colocaram-se a bombordo e os outros
cinco a estibordo, com os machados na mão.
— Ânimo, rapazes — Disse o português. — Batam com força mas que os buracos não sejam demasiados grandes. Temos de ir ao fundo lentamente para não sermos comidos pelos tubarões. Os dez homens começaram a dar machadadas contra os lados do navio. Dez minutos depois, dois
enormes jactos de água apareciam no porão, correndo para a popa. O português e os dez piratas correram para a coberta.
— Estamos a afundar-nos — Disse Eanes. — Aguentem-se rapazes e escondam as pistolas e os kriss debaixo dos casacos. Amanhã vamos precisar deles.
— Kammamuri — Gritou Sandokan. —
Conduz a tua patroa para a coberta.
— Teremos de nos atirar ao mar, capitão? — Perguntou o marata.
— Não é preciso. Mas se for necessário, eu levarei a jovem.
O marata agarrou na patroa sem que ela opusesse a mais pequena resistência e levou-a para a coberta.
O barco estava a uma boa milha de distância,
mas avançava à velocidade de catorze ou quinze nós à hora. Dentro de poucos minutos encontrar-se-ia nas águas do parau. O Tigre da Malásia aproximou-se de um canhão e disparou-o. A detonação foi, com o vento, levada até ao barco, que de imediato dirigiu a proa na direcção do parau.
— Socorro! Acudam! — Gritou o Tigre.
— Socorro! Socorro!— Estamos a afundar-
nos!— Acudam! Acudam! —
Gritaram os piratas.O parau, inclinado a
estibordo, afundava-se lentamente, balançando como se estivesse embriagado. Por baixo, no porão, ouvia-se a água precipitar-se com um ruído surdo pelos
dois rombos e os barris baterem uns contra os outros e partirem-se contra as amuradas e contra os canhões. O mastro principal, partido, balançou por um instante, depois desabou no mar arrastando na queda a grande vela.
Foram disparados seis ou sete tiros de espingarda, para apressar o socorro do navio.
— Deitem ao mar as artilharias — Comandou Sandokan, que sentia o parau fugir-lhe debaixo dos pés.
Os canhões foram atirados ao mar, depois os barris de pólvora, as balas, as âncoras, o lastro que estava na coberta, as amarras, os mastros sobressalentes.
Seis homens, depois de pegarem em baldes, desceram ao porão para
abrandar o ímpeto das águas que entravam com fúria.
O barco estava agora a trezentos metros de distância e tinha parado. Seis embarcações com marinheiros destacaram-se dos seus flancos, diri-gindo-se a toda a velocidade em direcção ao parau que se afundava.
— Socorro! Socorro! — Gritou Eanes, em pé
sobre a amurada de bombordo rodeado por todos os piratas.
— Coragem — Gritou uma voz a partir do bote mais próximo.
As embarcações avançavam com fúria, fendendo ruidosamente as águas. Os timoneiros, sentados na popa, com a barra do leme na mão, encorajavam os marinheiros que remavam com furor e em
perfeito acordo, sem perder um golpe de remos.
Em breves instantes, o parau viu-se abordado por todos os lados. O oficial que comandava a pequena esquadra, um jovem moreno em cujas veias devia correr sangue indiano, saltou para a coberta do barco que estava a ficar submerso.
Ao ver a louca tirou cortesmente o chapéu.
— Despachem-se — Disse — Primeiro a senhora depois os outros. Têm alguma coisa para salvar?
— Nada, comandante — Disse Eanes. — Deitámos tudo ao mar.
— Embarquem!A Virgem do Pagode
primeiro, depois Eanes, Sandokan e alguns malaios e daiaques
saltaram para a embarcação do oficial, enquanto os outros se acomodavam como podiam nas outras cinco.
A pequena esquadra afastou-se rapidamente, dirigindo-se para o barco que avançava a pouco vapor.
A água chegava então à coberta do parau, que oscilava da proa à popa abanando o instável mastro de traquete. O
pobre barco parecia lutar para se manter à tona.
De repente deitou-se sobre o flanco direito, virou-se, depois desapareceu sob as ondas, formando um pequeno redemoinho que atirou a embarcação a uma vintena de metros, apesar dos esforços hercúleos dos marinheiros. Uma grande vaga estendeu-se para o
largo, levando os destroços.
— Pobre Pérola! — Exclamou Eanes, que sentiu um aperto no coração.
— De onde vinham? — Perguntou o oficial do Helgoland, que até então permanecera em silêncio.
— De Varauni — Respondeu Eanes.
— Abriu-se uma brecha?
— Sim, depois de batermos contra os recifes da ilha Whale.
— Quem são estes homens de cor que trazem convosco?
— Daiaques e malaios. É uma escolta de honra que me foi concedida pelo sultão de Bornéu.
— Mas então quem sois...?
— Eanes Gomera y Maranhão, capitão de S. M. Católica o Rei de
Portugal, embaixador na corte do sultão de Varauni.
O oficial tirou o chapéu.— Estou muito feliz por
tê-lo salvo — Disse, fazendo uma vénia.
— E eu agradeço, senhor — Disse Eanes, fazendo também ele uma vénia. — Sem a vossa ajuda, a esta hora nenhum de nós estaria vivo.
As embarcações tinham chegado ao pé do barco. A escada foi baixada e o oficial, Eanes, Ada, Sandokan e todos os outros subiram para a coberta, onde eram esperados ansiosamente pelo capitão e pela tripulação.
O oficial apresentou Eanes ao capitão do barco, um belo homem de uns quarenta anos com dois grandes
bigodes, com a pele curtida e bronzeada pelo sol equatorial.
— Foi uma verdadeira sorte, senhor, ter chegado em tão boa altura — Disse o lobo-do-mar apertando a mão direita que o português lhe estendia. — Imergir-se na grande bacia salgada é uma coisa de arrepiar, quando se sabe que no fundo há temíveis tubarões.
— Certamente, meu caro capitão. A minha irmã teria tido muito medo.
— É a sua irmã, senhor embaixador? — Perguntou o capitão, olhando a louca que ainda não tinha pronunciado uma palavra.
— Sim, capitão, mas a infeliz é louca.
— Louca!— Sim, comandante.
— Tão jovem e tão bela! — Exclamou o capitão olhando com compaixão a Virgem do Pagode. — Talvez esteja cansada.
— Creio que sim, capitão.
— Sir Strhafford, conduza a senhora à melhor cabina da popa.
— Permita, porém, que o criado dela a siga — Disse Eanes. —
Acompanha-a, Kammamuri.
O marata pegou na mão da jovem e seguiu o oficial até à popa.
— O senhor também deve estar cansado e faminto — Disse o capitão dirigindo-se a Eanes.
— Não digo que não, capitão. Há duas longas noites que não dormimos e há dois dias que não comemos.
— Para onde se dirigiam?
— Para Sarawak. A propósito, permita-me, capitão, que lhe apresente S.A.R. Orango Kahaian, irmão do sultão de Varauni — Disse Eanes apresentando Sandokan.
O capitão apertou a mão do Tigre da Malásia.
— Por Deus! — Exclamou. — Um embaixador e um
príncipe no meu barco! Isto é um acontecimento. Não preciso de lhes dizer, senhores, que o meu navio está à vossa disposição.
— Muito obrigado, capitão — Disse Eanes. — Também vão para Sarawak?
— Precisamente e faremos a viagem juntos.
— Que sorte!
— Vão encontrar-se com o rajá James Brooke?
— Sim, capitão, tenho de assinar um tratado importante.
— Conhece o rajá?— Não, capitão.— Hei-de apresentar-
lho, senhor embaixador. Sir
Strhafford, conduza estes senhores à sala da
popa e mande servir-lhes o almoço.
— E os nossos marinheiros, onde os irão alojar, capitão? — Perguntou Eanes.
— Na entrecoberta, se vos agradar.
— Obrigado, capitão.Eanes e Sandokan
seguiram o oficial que os conduziu a uma vasta cabina fornecida com camas e mobilada com muita elegância.
As duas janelas, separadas por vidros grossos e cortinas de seda, davam para a popa do navio e permitiam que a luz e o ar entrassem livremente.
— Sir Strhafford — Disse Eanes — Quem temos na cabina ao lado da nossa?
— O capitão à direita, e a sua irmã à esquerda.
— Muito bem. Trocaremos algumas
palavras através das paredes.
O oficial retirou-se, depois de os ter avisado que o steward chegaria em breve com o almoço.
— Bem, meu irmão, como estás? — Perguntou Eanes, quando ficaram sós.
— Corre tudo às mil maravilhas — Respondeu Sandokan. — Aqueles pobres diabos acreditam
mesmo que somos dois cavalheiros.
— O que achas do barco?
— É um barco de primeira classe que fará óptima figura em Sarawak.
— Contaste os homens que estão a bordo?
— Sim, são cerca de quarenta.
— Ah! — Exclamou o português, fazendo uma careta.
— Tens medo de quarenta homens?
— Não digo que não.— Estamos em bom
número e somos todos escolhidos, Eanes.
— Mas os ingleses têm bons canhões.
— Encarreguei Hirundo de me vir dizer os meios de que o barco dispõe.
— Quando daremos o golpe?
— Esta noite. Amanhã, ao meio-dia, estaremos na foz do rio.
— Calado, vem aí o steward.
O criado, ajudado por dois moços, trazia um lauto almoço: dois bifes em sangue, um pudim colossal, garrafas escolhidas de vinho francês e de gin. Os dois piratas, que estavam com apetite, sentaram-se à mesa, atacando o
almoço. Estavam a começar, quando do lado de fora se ouviu um passo silencioso e um ligeiro sibilar.
— Entra, Hirundo — Disse Sandokan.
Um belo jovem, ar de bronze, de olhar vivo, entrou fechando a porta atrás dele.
— Senta-te e conta, Hirundo — Disse Eanes. — Onde estão os nossos?
— Na entrecoberta — Respondeu o jovem daiaque.
— O que estão a fazer?— Acariciam as armas.— Quantos canhões há
na bateria? — Perguntou Sandokan.
— Doze, Tigre.— Estes ingleses estão
bem armados. James Brooke terá um osso duro de roer, se pensar em nos fazer uma abordagem; com uma
única bordada, mandaremos ao fundo o seu famoso Realista.
— Assim o creio, Tigre.— Ouve-me, Hirundo, e
guarda bem na cabeça as minhas palavras.
— Sou todo ouvidos.— Que nenhum dos
nossos homens se mexa, por agora. Quando a Lua se puser, virem os canhões da bateria e subam em massa à aberta gritando: fogo!
Fogo! Os marinheiros, os oficiais e o capitão subirão à aberta e nós atacá-los-emos, se não se renderem. Compreendeste?
— Perfeitamente, Tigre da Malásia. Tem mais alguma coisa a dizer-me?
— Sim, Hirundo. Quando saíres daqui entras na cabina da Virgem do Pagode que é contígua a esta, e dirás a Kammamuri para
barricar solidamente a porta o não sair enquanto durar o combate.
— Compreendi, Tigre da Malásia.
— Vai e obedece.Hirundo saiu e entrou
na cabina da Virgem do Pagode.
— Vamos matá-los a todos? — Perguntou Eanes a Sandokan.
— Não, Eanes, vamos obrigá-los a renderem-
se. Não gostaria de matar estes homens que nos acolheram com tanta gentileza.
Os dois piratas terminaram tranquilamente a refeição esvaziando várias garrafas, bebendo chá; depois estenderam-se nas duas camas, esperando pacientemente o sinal para se precipitarem para a coberta.
Cerca das oito o sol desapareceu no horizonte e as trevas estenderam-se, pouco a pouco, sobre a ampla superfície de água que rapidamente se tornava obscura.
Sandokan deitou uma olhadela para fora da janela.
A bombordo, a grande distância, pareceu-lhe ver uma massa preta erguer-se na direcção
das nuvens; na popa, ainda que ao longe, uma vela esbranquiçada passava rente ao horizonte.
— Estamos à vista do monte Matang — Murmurou. — Amanhã estaremos em Sarawak. — Aproximou-se da porta da cabina e ficou à escuta.
Ouviu duas pessoas descer as escadas a cochichar, depois duas
portas abriram-se e fecharam-se; uma à direita e a outra à esquerda.
— Bem — Voltou a murmurar. — O capitão e o tenente entraram nas suas cabinas. Tudo corre às mil maravilhas.
Ouviu bater as nove na cabina do capitão, depois as dez, por fim as onze. Remexeu-se como se tivesse sido tocado por
uma pilha eléctrica. Saltou da cama.
— Eanes — Exclamou.— Irmão — Disse o
português.O Tigre da Malásia deu
dois passos na direcção da entrada com a mão direita no punho da cimitarra. Um grito terrível soou no barco, perdendo-se no mar.
— Fogo! Fogo!— Vamos subir! —
Exclamou Sandokan.
Os dois piratas, aberta a porta, lançaram-se para a coberta como dois tigres.
VIIIA BAÍA DE SARAWAK
Ao grito terrível de: fogo! Fogo! O engenheiro tinha de imediato mandado parar o barco.
Reinava na coberta uma confusão indescritível quando apareceram os dois
piratas. Do castelo de proa, seminus, ou em camisa, os marinheiros saíam, ainda meio ensonados, chocando uns com os outros, empurrando-se, caindo e levantando-se. Os homens de vigia, não menos aterrorizados, pensando que o fogo já tivesse ganho proporções alarmantes, recolhiam os baldes espalhados pela coberta. Das escotilhas
subiam em fúria os Tigres de Mompracem, com o kriss entre os dentes e as pistolas em punho, prontos para a luta. Comandos, gritos, imprecações, exclamações, perguntas, cruzavam-se por todo o lado.
— Onde é o fogo? — Perguntava um.
— Na bateria — Respondia outro.
— O que é que está a arder?
— Formem a corrente!— Trovões! Às bombas!— Capitão! Onde está o
capitão?— Aos vossos lugares!
— Gritava o oficial. — Ânimo, rapazes, às bombas! Aos vossos lugares! — De repente, uma voz estridente ressoa no meio da coberta do barco imóvel.
— A mim, Tigres!
O Tigre da Malásia lança-se para o meio dos seus homens. Na mão direita segura com força a cimitarra que brilha sob a vaga claridade das lanternas da proa.
Um grito feroz vocifera:— Viva o Tigre da
Malásia!Os marinheiros,
surpreendidos, assustados ao verem todos aqueles homens armados prontos a
lançarem-se contra eles, precipitavam-se para a proa e para a popa pegando nos machados, nas alavancas, nas amarras.
— Traição! Traição! — Grita-se de todos os lados.
Os piratas, de kriss na mão, preparam-se para arrombar aquelas duas muralhas humanas. O Tigre da Malásia com um
assobio interrompe o ataque.
O capitão tinha aparecido na coberta e dirigia-se corajosamente para ele com o revólver na mão direita.
— O que é que se passa? — Perguntou ele, com voz imperiosa.
Sandokan saiu do grupo indo na sua direcção.
— Bem o vê, capitão — Disse ele. — Os meus
homens atacaram os vossos.
— Quem é o senhor?— O Tigre da Malásia,
meu capitão.— Como! Onde está o
embaixador?— Ali no meio, com a
pistola em punho, pronto a disparar sobre si se não se render rapidamente.
— Miserável!— Calma, capitão. Não
se insulta impunemente
o chefe dos piratas de Mompracem.
O capitão deu três passos atrás.
— Piratas! — Exclamou. — Vocês são piratas!
— E dos mais temíveis.— Para trás! — Gritou
ele erguendo o revólver — Para trás, ou mato-vos!
— Capitão — Disse Sandokan avançando. — Nós somos oitenta, todos
armados e decididos a tudo e vocês apenas tendes quarenta homens. Não vos odeio e não os quero sacrificar inutilmente; portanto, rendam-se e juro que não vos faremos algum mal.
— Mas afinal o que quer?
— O vosso barco.— Para depois
percorrerem o mar como corsários?
— Não, para cumprir uma boa acção, capitão, para reparar uma injustiça dos homens.
— E se eu recusar?— Eu lançaria os meus
Tigres contra vós.— Mas querem
derrubar-me!Sandokan desapertou
um cinto bem cheio que trazia sob o jaquetão e mostrou-o ao capitão:
— Há aqui um milhão em diamantes: tome!
O capitão olhou para ele espantado.
— Não compreendo — Disse. — Tem homens suficientes para tomar o barco sem muitos sacrifícios e em vez disso oferece-me um milhão! Quem é o senhor?
— Sou o Tigre da Malásia — Disse Sandokan. — Vamos, rendam-se ou serei obrigado a soltar os meus Tigres.
— Mas o que farão dos meus homens?
— Embarcarão nas chalupas e serão livres.
— E para onde vamos?— A costa do Bornéu
não é muito distante.O capitão hesitava.
Talvez temesse que depostas as armas os piratas se lançassem sobre os seus homens para os massacrar.
Eanes adivinhou de imediato o que passava
pela mente do capitão e deu um passo em frente:
— Capitão — Disse não tem razão para duvidar da palavra do Tigre da Malásia, uma vez que ele nunca faltou às promessas que fez.
— Tem razão — Disse o comandante. — Rapazes, deponham as armas, toda a resistência é inútil.
Os marinheiros não hesitaram um só instante
e atiraram para a coberta facas, machados, alavancas e aspas.
— Bons rapazes — Disse Sandokan.
A um seu sinal as duas baleeiras e as três chalupas foram lançadas ao mar, depois de terem sido bem fornecidas de víveres.
Os marinheiros, inermes, desfilaram por entre os piratas tomando
lugar nas embarcações. O capitão foi o último.
— Senhor — Disse ele parando diante do Tigre da Malásia. — Não temos nem uma arma para nos defendermos, nem uma bússola para nos orientarmos.
Sandokan arrancou de uma pequena corrente que lhe pendia do peito uma bússola de ouro e estendendo-a ao oficial:
— É para vos guiar.
Tirou do cinto as duas pistolas e de um dedo um magnífico anel ornado com um diamante do tamanho de uma avelã e estendeu estes três objectos ao capitão.
— Estas armas para se defenderem, este anel como recordação e esta bolsa cheia de diamantes para vos pagar o barco que vos tomei — Disse Sandokan.
— Sois o homem mais estranho que jamais en-contrei na minha vida — Disse o capitão recebendo os três objectos.
O capitão fez uma ligeira continência com a mão e desceu para a embarcação, que de imediato ganhou o largo seguida por todas as outras, dirigindo-se para oeste.
Vinte minutos depois, o Helgoland deixava essas paragens, rumo à costa de Sarawak que distava no máximo uma centena de milhas.
— Agora vamos ao encontro de Kammamuri e da sua patroa — Disse Sandokan, depois de fixar a rota. — Esperemos que nada tenha acontecido à pobre Ada.
Desceu a pequena escada de popa com Eanes e bateu à porta da cabina do marata.
— Quem é? — Perguntou Kammamuri.
— Sandokan.— Vencemos, capitão?— Sim, meu amigo.— Viva o Tigre da
Malásia! — Gritou o bravo marata.
Retirou as mobílias que tinha amontoado atrás
da porta e abriu-a. Eanes e Sandokan entraram.
O marata estava armado até aos dentes. Ainda tinha na mão a cimitarra e o cinto estava cheio de pistolas e punhais.
A louca estava estendida sobre uma pequena poltrona, ocupada a arrancar as pétalas de uma rosa-da-china, que pouco antes
havia tirado de um vaso de flores.
Ao ver entrar Sandokan e Eanes, levantou-se e fixou-os com um olhar que demonstrava um profundo terror.
— Os tugues! Os tugues! — Exclamou.
— São nossos amigos, patroa — Disse o marata.
Ela olhou para Kammamuri, depois caiu novamente sobre a poltrona, voltando a
arrancar as pétalas à flor que tinha na mão.
— Os gritos dos combatentes produziram alguma impressão na desgraçada? — Perguntou Sandokan ao marata.
— Sim — Disse ele. — Levantou-se a tremer, gritando: os tugues! Os tugues! Mas, pouco a pouco, acalmou-se.
— Mais nada?— Mais nada, capitão.
— Vigia-a, Kammamuri.— Não a deixarei.Eanes e Sandokan
voltaram para a coberta. Nesse mesmo instante, os homens de vigia assinalavam, a sul, um ponto avermelhado que avançava com rapidez.
Eanes e Sandokan correram para a proa olhando atentamente naquela direcção.
— Deve ser a lanterna de um navio — Disse o português.
— Claro que é. Isso deixa-me bastante inquieto — Respondeu Sandokan.
— Porquê, meu irmão?— Aquele navio pode
encontrar a chalupa.— Só nos faltava mais
esta!— Não te assustes,
Eanes. O Helgoland tem bons canhões. Mas...
Aquele navio é a vapor. Não vês, Eanes, aquela linha avermelhada que se ergue no céu?
— Por Júpiter! Tens razão!
— E se fosse...— Quem?— Aos canhões,
rapazes! Aos canhões! — Vociferou o Tigre da Malásia.
— O que estás a fazer? — Perguntou Eanes,
agarrando-o por um braço.
— É a canhoneira, Eanes.
— Qual canhoneira?— A que nos seguia.— Por Júpiter!— Vamos afundá-la.— Estás louco!— Mas não a estás a
ver?— Claro que a vejo,
mas se disparas na direcção dela, em Sarawak vão-nos
bombardear. Se não afundar à primeira salva, irá a correr ter com aquele danado do Brooke para nos denunciar.
— Por Alá! — Exclamou Sandokan.
— Deixemo-nos estar quietos — Disse Eanes.
— E se encontrar as chalupas?
— Não é fácil, Sandokan. A noite está escura, as chalupas vão para oeste e a
canhoneira, se não estou enganado, tem a proa virada a norte. Um encontro, em tais circunstâncias, não é fácil. Estou enganado?
— Não, mas ver aquela canhoneira...
— Calma, irmão. Deixa-a seguir para norte.
A canhoneira que seguia os piratas de Mompracem estava então muito próxima. A bombordo e a estibordo
brilhavam as lanternas verde e vermelha e no cimo do mastro de traquete a branca. À popa, avistava-se o timoneiro em pé, ao lado da roda do leme.
Passou muito perto do Helgoland descrevendo uma espécie de semicírculo e desapareceu rumo ao norte, deixando atrás de si um rasto fosforescente.
Não tinham ainda decorrido dez minutos quando se ouviu ao largo uma voz gritar:
— Ó da canhoneira!Sandokan e Eanes, ao
ouvirem aquele chama-mento, correram para o convés, olhando atentamente para norte.
— As chalupas? — Perguntou Sandokan, inquieto.
— Apenas vejo a canhoneira, ali ao fundo — Disse Eanes.
— Mas aquele chamamento vinha do largo.
— Teremos ouvido mal?
— Duvido, Eanes.— O que fazemos?— Mantemo-nos
atentos e avançamos com precaução.
Sandokan permaneceu sobre a coberta durante
algumas horas, na esperança de ouvir outro grito, mas não ouviu mais do que as ondas a bater contra os flancos do barco.
À meia-noite, tranquilo mas preocupado, descia à cabina do capitão seguido de Eanes e deitava-se na cama.
Durante toda a noite, o Helgoland avançou pela baía de Sarawak. Os homens de vigia nada
tinham visto de extraordinário, apenas tinha sido vista passar, perto das duas horas da manhã, a uns quinhentos metros para estibordo, uma grande sombra negra que desaparecera pouco depois. Todos a tinham confundido com um parau que navegava sem lanternas.
De madrugada, quarenta milhas separavam o barco da
foz do Sarawak, nas margens do qual, a poucas horas de marcha, se erguia a cidadela homónima.
O mar estava tranquilo e o vento bastante bom. Aqui e ali viam-se alguns paraus, com as suas velas imensas e a oeste o monte Matang, gigantesco pico sobre cujos flancos trepavam arbustos verdejantes.
Sandokan, que não se sentia tranquilo naquele mar batido pelos barcos de James Brooke, o exterminador dos piratas malaios, mandou desfraldar a bandeira inglesa no mastro principal, a grande tira vermelha, mandou carregar os canhões, amontoar bombas na bateria, abrir a Santa Bárbara e armar os seus homens.
Às 11 da manhã, a sete milhas surgia a costa, bastante baixa, coberta de belas florestas e protegida por largos recifes. Ao meio-dia, o Helgoland contornava a península, avançando durante algum tempo pela baía, e pouco depois deitava âncora na foz do rio, para lá da ponta de Montabas.
IX
A BATALHA
A foz do rio, que forma uma espécie de porto protegido por bancos de areia e por recifes contra os quais se quebra a fúria do mar, apresenta um espectáculo magnífico. À direita, à esquerda e nas duas margens estendiam-se magníficos arbustos de pisang com folhas gigantescas e frutos de
um amarelo dourado, de estupendos mangostões, de gambir, de betei e de colossais árvores da cânfora, em cujos ramos gritavam bandos de macacos, de uma bela cor verde, e tagarelavam tucanos com os seus bicos enormes.
No rio iam e vinham barcos, barcaças, paraus malaios, buguises, de Bornéu e de Macaçar, grandes giong javaneses,
juncos chineses e pequenos navios holandeses e ingleses, alguns à espera de uma carga, outros de vento propício que lhes permitisse fazerem-se ao mar.
Nos recifes e nas margens viam-se daiaques seminus ocupados na pesca, e bandos de albatrozes, aves gigantescas, muitos com bicos robustos
capazes de abrir, sem dificuldade, o crânio de um homem, e bandos de uns pássaros marinhos muito velozes.
Sandokan, assim que o Helgoland ancorou num bom lugar, mesmo no centro do rio, apressou-se a deitar um olhar sobre os navios que o rodeavam.
Os seus olhos de imediato caíram sobre um pequeno schooner,
armado com numerosas peças de artilharia, que lhes barravam a passagem uns trezentos metros mais acima.
Ao ver isto a sua testa franziu-se.
— Eanes — Disse ele ao amigo que estava ao seu lado. — Lê o nome daquele barco.
— Temes alguma coisa? — Perguntou Eanes, apontando os binóculos.
— Quem sabe? Lê, Eanes.
— O Realista, está escrito na popa.
— Não me enganei. O coração dizia-me que era mesmo aquele o barco que serviu a James Brooke para exterminar os piratas malaios.
— Caramba! — Exclamou o português. — Temos um vizinho extraordinário.
— Que eu afundava de bom grado, para vingar os meus confrades.
— Não o farás, se ele não nos incomodar. Temos de ser prudentes, irmão, e muito prudentes se quiseres libertar o pobre Tremal-Naik.
— Eu sei e serei prudente.
— Olha, um barco dirige-se para aqui. Quem será aquele homem tão feio? —
Sandokan curvou-se sobre a amurada e olhou. Uma barcaça escavada num tronco de árvore, com um homem de cor amarelada a bordo. Tinha uma tanga vermelha amarrada à cintura, anéis de cobre nos pés e nas mãos e com um barrete de plumas e um gigantesco bico de tucano na testa.
— É um bazir — Disse Sandokan.
— O que é que isso quer dizer?
— Um ministro de Dinata ou de Giuwata, as duas divindades dos daiaques.
— O que vem ele fazer a bordo?
— Dar-nos um estúpido presságio.
— Vamos mandá-lo para o diabo. Não sabemos o que fazer dos presságios.
— Vamos é recebê-lo, Eanes. Vai dar-nos boas informações sobre James Brooke e a sua frota.
A barcaça estava já ao lado do navio. Sandokan mandou deitar a escada e o bazir subiu à coberta com uma agilidade surpreendente.
— O que vens aqui fazer? — Perguntou Sandokan, lalando na língua daiaque.
— Vender-te os meus presságios — Respondeu o bazir, sacudindo os seus numerosos anéis que tiniam graciosamente.
— Quais?— Ouve-me bem, meu
amigo. Quero saber muitas coisas e se me responderes bem terás um belo kriss e gim suficiente para beberes durante um mês.
Os olhos do daiaque brilharam de ganância.
— Fala — Disse.— De onde vens?— Da cidade.— O que anda o rajá
Brooke a fazer?— Fortifica-se.— Tem medo de uma
sublevação?— Sim, dos chineses e
do neto de Muda-Hassin, o nosso antigo sultão.
— Alguma vez saíste de Sarawak?
— Nunca.— Viste trazer para
Sarawak um prisioneiro da cor do bronze?
O bazir pensou alguns instantes.
— Um homem grande e belo? — Perguntou.
— Sim, grande e belo — Disse Sandokan.
— Que tinha a cor dos indianos?
— Sim, era um indiano.— Vi-o desembarcar há
uns meses.
— Onde é que o encerraram?
— Não sei, mas isso pode dizer-te um pescador que mora lá em baixo — Disse o daiaque, apontando para uma cabana de folhas que se erguia na margem esquerda. — Esse homem acompanhou o prisioneiro.
— Quando posso ver esse pescador?
— Agora está a pescar, mas esta tarde voltará à cabana.— Chega. Hirundo,
oferece o teu kriss a este homem e coloca na canoa dele um barril de gin.O pirata não deixou que
lho dissessem duas vezes. Mandou trazer para a canoa um pequeno barril de gim e deu o seu kriss ao bazir que partiu contente
como se lhe tivessem oferecido uma província inteira.— O que pensas fazer,
irmão? — Perguntou Eanes, assim que o daiaque saiu da coberta.— Agir de imediato —
Respondeu Sandokan. — Dentro de uma hora será noite e mandaremos buscar o pescador.— E depois?— Quando soubermos
onde se encontra Tremal-
Naik, iremos a Sarawak ao encontro de James Brooke.— James Brooke?— Não iremos como
piratas, mas como grandes personagens. Tu serás um embaixador holandês.— Corremos um grande
perigo, Sandokan. Se Brooke se aperceber do ardil, manda-nos enforcar.
— Não tenhas medo, Eanes. Ainda não foi entrançada a corda que enforcará o Tigre.— Capitão — Disse
nesse instante Hirundo, aproximando-se de Sandokan. — Estão a chegar alguns navios.O Tigre da Malásia e
Eanes voltaram-se para a foz do rio e viram dois bergantins de guerra, com a bandeira inglesa e numerosas peças de
artilharia, a bordejar ao largo, procurando dobrar a ponta de Montabas.— Oh! — Fez Eanes. —
Há novos barcos de guerra.— Surpreende-te, se
calhar? — Perguntou o Tigre da Malásia.— Um pouco, irmão.
Aqui, neste rio, sob o olhar de Brooke, não me sinto seguro.
— Estás enganado, Eanes. Aqui há sempre barcos ingleses.Os dois bergantins,
depois de bordejar durante meia hora, entravam no rio, rebocados por uma meia-dúzia de embarcações. Saudaram a bandeira do rajá com dois tiros de canhão, passaram a estibordo do Helgolande foram deitar âncora, um à direita, o outro à
esquerda do Realista a uma distância de apenas vinte metros. Quando concluíram a manobra, a escuridão caía rapidamente cobrindo os arbustos, os recifes, os barcos, os juncos, os paraus e as águas do rio.Foi o momento
escolhido por Sandokan para enviar os seus homens a terra buscar o pescador. Uma embarcação foi descida e
Hirundo, acompanhado por outros três piratas, dirigiram-se nela para a margem.Sandokan seguiu-os
com o olhar enquanto pôde, depois começou a passear na coberta, fumando o seu cachimbo.Não tinha ainda dado
duas voltas, quando o português correu para ele com o rosto transtornado.
— Sandokan! — Exclamou.— O que tens? —
Perguntou o pirata. — Que cara aterrorizada é essa?— Sandokan, prepara-se
qualquer coisa contra nós.— É impossível! —
Exclamou o Tigre, deitando em volta um olhar ameaçador.
— Sim, Sandokan, prepara-se um ataque. Olha para o mar.Sandokan, que apesar
de tudo estava inquieto, dirigiu o olhar para a foz do rio. As suas mãos abriram-se e fecharam-se em torno do kriss e da cimitarra.Ali, perto dos recifes,
entrevia-se uma massa negra, enorme, ameaçadora, ancorada de modo a fechar a
saída. Não foi preciso muito para o reconhecerem: era um barco de grandes dimensões que apresentava o flanco ao Helgoland.— Com mil trovões! —
Murmurou cheio de raiva. — Será verdade? Não acredito.— Mas não estás a ver
que virou a boca dos seus canhões? — Disse Eanes.
— Mas quem queres tu que nos tenha traído?— Talvez a canhoneira.— Não é possível. A
canhoneira ia para norte.— Mas às duas da
manhã os homens de vigia viram uma massa negra, rapidíssima, correr rumo a Sarawak.— E achas que...?— A canhoneira traiu-
nos — Terminou Eanes. — Talvez tenha recolhido os ingleses da
embarcação, e, quem sabe, talvez o homem que gritou: «Ó da canhoneira!» fosse um marinheiro inglês que se atirou ao mar durante o combate.Sandokan virou-se e
dirigiu o olhar em direcção ao Realista. O navio de James Brooke ainda estava no seu lugar, mas os dois navios ingleses tinham-se aproximado do
Helgoland, que assim se encontrava entre dois fogos.— Ah! — Exclamou
Sandokan — Querem guerra! Pois seja! Hão-de ver quem eu sou.Ainda não tinha
terminado, quando um grito agudíssimo partiu da margem esquerda, na direcção que Hirundo tomara.— Socorro! Socorro! —
Ouviu-se gritar.
Sandokan, Eanes e os piratas saltaram como um só homem para estibordo, procurando distinguir o que se passava na tenebrosa floresta.— Que voz! — Exclamou
um pirata.— Que Dinata me
mande cortar a cabeça se não era a voz de Hirundo — Disse um daiaque de estatura atlética.
— Hei! Hirundo! — Gritou Eanes.Dois tiros de espingarda
soaram por entre os arbustos, seguidos de quatro mergulhos.Embora a escuridão
fosse profunda, os piratas entreviram quatro vultos que nadavam em direcção ao navio.— É Hirundo! —
Exclamou um pirata.
— Ai! A coisa está a ficar séria! — Exclamou outro.— Será que nos estão a
pregar uma partida? — Perguntou um terceiro.— Silêncio, rapazes. —
Disse o Tigre. — Lancem cordas.Os quatro homens, que
nadavam como peixes, em poucos instantes alcançaram o barco. Agarraram-se às cordas, e subir até às amuradas foi para eles fácil.
— Hirundo — Chamou Sandokan, reconhecendo os quatro piratas enviados pouco antes à procura do pescador.— Capitão — Disse o
daiaque, sacudindo a água de cima. — Estamos cercados.— Com mil trovões! —
Ribombou o Tigre. — Depressa, conta-me o que viste.— Vi lá em baixo,
naqueles bosques,
soldados do rajá, armados com espingardas, escondidos atrás de troncos de árvores ou no meio dos arbustos. Parecem estar à espera de um sinal para começar a fazer fogo.— Tens a certeza de que
não estás enganado?— Estão lá mais de
duzentos homens e vi-os com estes olhos. Não ouviram os dois tiros de
espingarda que dispararam sobre nós?— Sim, ouvi.— O que fazemos
irmão? — Perguntou Eanes.— Já não é possível
retirarmos. Vamos preparar-nos e ao primeiro tiro de canhão havemos de dar luta. Tigrezinhos, a mim!Os piratas que se
mantinham a uma distância respeitosa,
avançaram ao chamamento do Tigre. Os seus olhos brilhavam como carvões e as suas mãos acariciavam os punhos do kriss. Já sabiam do que se tratava e estremeciam de impaciência.— Tigres de
Mompracem. — Disse Sandokan. — James Brooke, o exterminador dos piratas malaios, prepara-se para nos
atacar. Milhares de malaios e de daiaques foram assassinados por aquele homem. Jurem perante mim que vingarão aqueles homens.— Juramos —
Responderam em coro os piratas, tomados por um terrível entusiasmo.— Tigres de
Mompracem — Retomou Sandokan. — somos um contra quatro, mas o
Tigre da Malásia está convosco. Ferro e fogo enquanto restarem balas e pólvora a bordo, e depois chamas da proa até à popa. Esta noite temos de mostrar àqueles cães como sabem combater os tigres de Mompracem, comandados pelo Tigre da Malásia. Aos vossos lugares, Tigrezinhos, aos vossos lugares! Quando eu mandar, fogo!
Um grito surdo respondeu às mágicas palavras do Tigre da Malásia. Os piratas, encabeçados por Eanes, precipitaram-se para a bateria, apontando as gargantas negras dos bronzes na direcção dos navios inimigos.Na coberta ficaram dois
piratas de pé ao lado do leme e Sandokan, que do castelo de proa espiava
atentamente a acção do inimigo.Os quatro navios que se
preparavam para destruir o Helgoland, com os seus quarenta canhões, pareciam adormecidos. Contudo, viam-se sombras que se agitavam à proa e à popa.— Estão-se a preparar —
Murmurou Sandokan cerrando os dentes. — Dentro de dez minutos
esta baía estará iluminada sob o fogo de mais de cinquenta canhões e esta calma solene será interrompida pelo rugido dos bronzes, pelo rebentar das bombas, pelo assobio das balas, pelos gritos dos feridos, pelos «hurras» dos vencedores. Será um belo espectáculo!
De repente, o seu semblante ficou carregado.— E Ada — Murmurou;
— E se uma bala a colhesse? Sambigliong! Sambigliong!O daiaque que tinha
esse nome acorreu prontamente ao chamamento do chefe.— Aqui estou eu,
capitão — Disse.
— Onde está Kammamuri? — Perguntou Sandokan.— Na cabina da Virgem
do Pagode.— Vai ter com ele e
coloca em volta das paredes todas as pipas, todas as ferragens e todos os colchões de palha que encontrares no porão e no quadro da popa.
— Trata-se de defender das balas a cabina da Virgem?— Sim, Sambigliong.— Deixe comigo,
capitão. O ferro não chegará lá dentro.— Vai, meu amigo!— Uma palavra, capitão.
Tenho de ficar na cabina?— Sim, e ficas
encarregado de salvar a Virgem se formos obrigados a abandonar o
navio. Sei que és o melhor nadador da Malásia. Despacha-te, Sambigliong; o inimigo prepara-se para nos atacar.O daiaque precipitou-se
para a popa. Sandokan regressou ao centro do navio olhando atentamente o rio. Do barco que fechava a foz do rio tinha partido, de repente, um foguete. Quase no mesmo
instante, um relâmpago balançava na coberta do Realista, seguido de uma impressionante detonação.O Tigre da Malásia deu
um salto enquanto a extremidade do pequeno mastro principal, partida por uma bala de oito, caía na coberta com grande estrondo.— Tigres! — Gritou ele.
— Fogo! Fogo!
Um grito tremendo respondeu-lhe:— Viva o Tigre da
Malásia! Viva Mompracem!Seguiu-se um breve
silêncio, um silêncio ameaçador, depois a baía incendiou-se de um extremo ao outro.Dos quatro navios
inimigos saíam labaredas, fumo e balas, rompendo por todo o lado a escuridão e o
silêncio da noite; das florestas saiu um nutrido fogo de mosquete que se estendia para a direita e para a esquerda.A batalha tinha
começado. Os cinco barcos combatiam com uma raiva indizível, relampejando, ribombando, vomitando furacões de ferro que fendiam o ar com assobios estridentes.
As tripulações, enegrecidas pela pólvora, ébrias de entusiasmo, carregavam e descarregavam sem parar as artilharias, procurando destruir-se uma à outra, encorajando-se com gritos selvagens.O Helgoland, no meio da
baía, solidamente ancorado, defendia-se com fúria indizível contra
os gigantes que o cobriam de fogo.Parecia um barco de
ferro defendido por um exército de titãs. Caíam as vergas, estremeciam os mastros, as embarcações eram rasgadas, as amuradas demolidas, os flancos desfeitos, morriam os homens, mas o que é que isso importava? Havia pólvora e balas para todos e a todos
respondia com fúria crescente, com raiva crescente, resolvido a perecer em vez de se render.A cada tiro, a cada
descarga, na bateria ouviam-se os Tigres de Mompracem gritar:— Vingança! Viva
Mompracem!O Tigre da Malásia de
pé, no meio da coberta, contemplava o horrível espectáculo.
Como era belo aquele homem, ali, na coberta do seu barco que lhe tremia debaixo dos pés, à luz de cinquenta canhões, com os olhos em chamas, os cabelos soltos ao vento, os lábios abertos num terrível sorriso e com a cimitarra em punho! Como era belo aquele pirata que sorria enquanto a morte lhe assobiava em volta, enquanto os mastros
caíam diante e atrás dele, enquanto a metralha rugia aos seus ouvidos, estilhaçando as tábuas da coberta, enquanto as bombas rebentavam lançando os seus estilhaços em fogo!Os seus próprios
inimigos, ao vê-lo no heróico barco, impassível no meio daquele furacão de ferro, sentiam-se apanhados por uma vontade louca de gritar:
— Viva o Tigre da Malásia! Viva o herói da pirataria malaia!A batalha durava há
meia hora, cada vez mais furiosa. O Helgoland esmagado pelo fogo ininterrupto daquelas cinquentas bocas, dilacerado pela metralha, despedaçado pela tempestade de bombas cada vez mais compacta, já mais não era do que uma carcaça fumegante.
Já não restavam mastros, manobras, amuradas ou madeiras inteiras. Era como uma esponja, cujos furos deixavam passar a água do rio. Ainda disparava, continuava a responder aos quatro inimigos que tinham jurado afundá-lo, mas já não se sentia capaz de prosseguir. Dez piratas jaziam sem vida na bateria; dois canhões já não ribombavam,
desmontados pelo fogo infernal do inimigo; as bombas fraquejavam; a popa cheia de água já se ia afundando pouco a pouco.Mais dez ou quinze
minutos e o heróico Helgoland iria ao fundo. Eanes, que cumpria com bravura o seu dever descarregando um dos canhões maiores, apercebeu-se da gravidade da situação.
Correndo o risco de receber uma descarga de metralha na cabeça, lançou-se para a coberta no meio da qual estava o Tigre da Malásia.— Irmão! — Gritou.— Fogo, Eanes! Fogo! —
Vociferou Sandokan. — Estes vão fazer-nos uma abordagem.— Já não nos
aguentamos, irmão! O barco está a ir a pique!— Com mil trovões!
— O que fazemos? Os minutos são preciosos.Um estrondo enorme
sufocou a sua voz. O castelo de proa, dilacerado por uma salva de granadas, tinha desabado, destruindo parte da coberta e do quarto dos marinheiros. O Tigre da Malásia lançou um grito de raiva.— Acabou! A mim,
Tigres, a mim!
Precipitou-se para a bateria de onde os Tigres de Mompracem continuavam a bombardear os barcos inimigos. Um homem, o marata Kammamuri, pôs-se em frente dele.— Capitão — Disse — A água invade a cabina da Virgem.— Onde está Sambigliong? — Perguntou o Tigre.— Na cabina.
— A Virgem está viva?— Sim, capitão.— Conduzam-na à coberta e estejam prontos para se atirarem ao rio. Tigres, todos para a coberta! O inimigo vem à abordagem!Os piratas descarregaram os canhões pela última vez e subiram à coberta cheia de mortos.Os navios inimigos, rebocados por algumas
chalupas, aproximavam-se para abordar o Helgoland.— Sandokan! — Gritou Eanes não vendo aparecer o amigo. — Sandokan!A resposta foram os gritos vitoriosos das tripulações inimigas e as carabinas dos piratas.— Sandokan! — Repetiu — Sandokan!— Estou aqui, irmão — Respondeu uma voz.
O Tigre da Malásia lançou-se para a coberta com a cimitarra na mão direita e uma tocha acesa na esquerda. Atrás dele vinham Sambigliong e Kammamuri acompanhado da Virgem do Pagode.— Tigres de Mompracem! — Vociferou Sandokan. — Fogo mais uma vez!
— Viva o Tigre! Viva Mompracem! — Gritavam os piratas.E Helgoland balançava como um bêbado e fendia-se sob as contínuas descargas do inimigo.Pelos flancos abertos
entravam as águas, arrastando-o rapidamente para o fundo.Da proa, da popa, das escotilhas, das
portinholas das baterias saíam densas colunas de fumo.A voz do Tigre da Malásia fez-se ainda ouvir entre o estrondo dos canhões.— Salve-se quem puder! Sambigliong, atira-te ao rio com a Virgem!O daiaque e Kammamuri saltaram para a água com a jovem que perdera os sentidos, e atrás deles precipitaram-se todos os outros, nadando entre os
navios inimigos que se encontravam bordo com bordo com o navio que se estava a afundar.No barco ficara um
homem. Era o Tigre da Malásia. Na mão direita segurava ainda a cimitarra e na esquerda a tocha. Um terrível grito soou dos seus lábios; um brilho feroz balança nos seus olhos.— Viva Mompracem! —
Ouviram-no ainda gritar.
Um «hurra» formidável ecoou no ar. Vinte, quarenta, cem homens lançaram-se com as armas em punho para a coberta oscilante do Helgoland.O Tigre da Malásia não
esperou por eles. Com um salto prodigioso superou a amurada e desapareceu nas águas do rio.Quase nesse mesmo
instante, o barco que se
afundava abria-se com um horrível ribombar e uma chama gigantesca erguia-se no céu, iluminando o rio, os navios inimigos, os bosques, os montes, atirando à direita e à esquerda miríades de estilhaços incandescentes.Navios e tripulação
desapareceram entre o fumo e as chamas do Helgoland, que explodira
com o rebentamento da Polvoreira!
SEGUNDA PARTEO RAJÁ DE SARAWAK
IATABERNA CHINESA
— Olá, bom homem!— Milord!— Para o diabo com o milord.— Sir!— Para o inferno com o sir.
— Mestre!— Que te apanhe um caranguejo.— Monsieur! Senhor!— Vai-te enforcar. Que raio de almoço é este?— Chinês, senhor, chinês como a taberna.— E tu queres que eu
coma chinês! Que bichos são estes que se estão a mexer?— Camarões bêbados de Sarawak.— Vivos?
— Pescados há meia hora, milord.— E tu queres que eu coma camarões vivos?— Cozinha chinesa, monsieur.— E este assado?— Cão jovem, senor. — O quê?— Cão jovem.— E tu queres que eu coma cão? E este guisado?— É gato, senor.— Um gato!
— Um prato de mandarim, sir.— E estes fritos?— Ratos fritos em manteiga.— Malvado chinês!
Queres-me matar!— Cozinha chinesa,
senhor.— Cozinha infernal,
queres tu dizer. Camarões bêbados, fritos de rato, cão assado e gato guisado ao almoço!
Se o meu irmão aqui estivesse desatava a rir. «Vamos, não devemos
ser enojados. Se os chineses comem esta bodega, também um branco a pode comer. Coragem, português!»O homem que assim
falava, sentou-se na cadeira de bambu, tirou do cinto um magnífico kriss com o punho de ouro coberto com magníficos diamantes e
desfez o cão assado que deitava um perfume apetitoso.Entre cada dentada,
pôs-se a observar o local onde se encontrava.Era um quarto muito
baixo, com as paredes pintadas com dragões monstruosos, flores estranhas, luas sorridentes, animais que vomitavam fogo. A toda a volta havia cadeiras e esteiras sobre as quais
ressonavam chineses, com a cabeça tapada, uma trança compridíssima e bigodes pendentes; aqui e ali, sem ordem, havia mesas de todas as dimensões ocupadas por malaios feios, cor de azeitona, dentes pretos, e por daiaques belíssimos, seminus com os membros cobertos de anéis de latão e armados de pesados parangs,
facalhões com meio metro de comprimento que, provavelmente, já tinham cortado um bom número de cabeças nas grandes florestas do Sul. Alguns daqueles homens mascavam siri, composto de folhas de betei e de nozes de areca, cuspindo saliva, outros bebiam grandes copos de arak ou de tuwak, e outros ainda fumavam longos cachimbos de ópio.
— Hum! — Resmungou o nosso homem, esventrando um gato. — Que caras feias. Não sei como é que aquele malandro do James Brooke tem estes biltres sob a sua alçada. Deve ser uma grande raposa e um...Um assobio agudo,
vindo do exterior da taberna, cortou-lhe a palavra.— Oh! — Exclamou.
Encostou dois dedos aos lábios e imitou o assobio.— Senhor! — Gritou o
taberneiro, ocupado a esfolar um grande cão acabado de esganar.— Que o teu Confúcio te
enforque.— Chamou, monsieur?— Silêncio. Esfola o teu
cão e deixa-me em paz.Um indiano alto, de
belas formas, quase nu, com um cinto de seda em volta dos rins e um
kriss pendurado do lado direito, entrou olhando em volta. O nosso homem, que estava a limpar uma pata de gato, vendo o recém-chegado levantou-se, murmurando:— Kammamuri!Estava para abandonar
o lugar quando um rápido sinal do indiano, acompanhado por um olhar suplicante, o fez parar.
— Há algum perigo no ar — Voltou a murmurar. — Mantém-te atento, amigo.O indiano, depois de
hesitar um pouco, sentou-se em frente dele. O taberneiro acorreu.— Uma chávena de
tuwak!— É para trincar?— A tua trança — Disse
o indiano, rindo.
O chinês virou costas fazendo uma careta e mandou levar uma chávena e um jarro de tuwak.— Estamos a ser
espiados? — Perguntou com um fio de voz o homem que estava à sua frente, continuando a devorar o almoço.O indiano acenou
afirmativamente com a cabeça.
— Que apetite, senhor — Disse depois em voz alta.— Não como há vinte e
quatro horas, meu caro — Respondeu o nosso homem que era o bom Eanes, o amigo do Tigre da Malásia.— Vem de longe?— Da Europa. Oh
taberneiro, um pouco de tuwak!
— Dou-vos do meu, se não se importar — Disse Kammamuri.— Aceito, jovem. Senta-
te ao pé de mim e prova todas estas bodegas que estão à minha frente.O marata não se fez
rogado e sentou-se ao lado do português e começa a comer.— Podemos falar —
Disse Eanes, passado algum tempo. — Ninguém pode suspeitar
que somos amigos. Salvaram-se todos?— Todos, patrão Eanes
— Respondeu Kammamuri. — Antes que chegasse a madrugada, uma hora depois da vossa partida, deixámos os densos bosques da margem e refugiámo-nos num grande pântano. O rajá tinha mandado soldados patrulhar a foz do rio, mas não conseguiu
encontrar as nossas pegadas.— Sabes, Kammamuri,
que fomos hábeis a fugir ao rajá?— Meio minuto de
atraso e teríamos todos ido pelos ares. Foi bom para nós a noite estar tão escura, assim aqueles biltres não nos viram nadar para a margem.— A pobre Ada não
sofreu nada?
— Nada mesmo, patrão Eanes. Ajudado por Sambigliong, pude transportá-la para terra com toda a facilidade.— Onde está Sandokan
agora?— A oito milhas daqui,
no meio de um bosque cerrado.— Em segurança,
portanto.— Não sei. Vi guardas
do rajá a rondar a floresta.
— Diabo!— E o senhor não corre
nenhum perigo?— Eu? Quem será o
louco que me tomará por um pirata? Eu, um branco, um europeu!— Mas tenha cuidado
senhor Eanes. O rajá deve ser um homem muito esperto.— Eu sei, mas nós
somos mais espertos do que ele.
— Sabe alguma coisa de Tremal-Naik?— Nada, Kammamuri.
Interroguei várias pessoas, mas sem êxito.— Pobre patrão —
Murmurou Kammamuri.— Havemos de o salvar,
prometo-te — Disse Eanes. — Esta noite meterei mãos à obra.— O que quer fazer?— Procurar aproximar-
me do rajá e, se possível, tornar-me seu amigo.
— Mas como?— Tenho uma ideia que
me parece boa. Vou provocar uma rixa, fazer confusão, vou fingir que quero cortar a cabeça a alguém e vou deixar que os guardas do rajá me prendam.— E depois?— Quando estiver preso
hei-de inventar uma história qualquer e fazer-me passar por um nobre
lorde, por um baronete... Ah! Que bela ideia!— O que tenho de fazer?— Nada, meu caro
marata. Vais logo ter com Sandokan e dizes-lhe que tudo está a correr cada vez melhor. Mas amanhã vens rondar a residência do rajá. Talvez eu precise de ti.O marata levantou-se.— Um momento — Disse
Eanes, tirando do bolso
uma mala bem cheia e estendendo-lha.— O que é que eu faço
com isto?— Para levar a cabo o
meu projecto é preciso que eu não tenha uma moeda na bolsa. Dá-me antes o teu kriss, que não tem nenhum valor e leva o meu que tem demasiado ouro e demasiados diamantes.
— Taberneiro do demónio, seis garrafas de vinho de Espanha.— Quer-se embebedar?
— Perguntou Kammamuri.— Já vais ver. Adeus,
meu caro.O indiano atirou para a
mesa um xelim e saiu, enquanto o português destapava as garrafas que não custavam menos de três esterlinas.
Bebeu dois ou três copos e o restante ofereceu-o aos malaios que estavam ao pé dele, aos quais nem parecia verdade ter encontrado um europeu tão generoso.— Taberneiro! — Gritou
ainda o português. — Traz-me mais vinho e um prato de luxo qualquer.O chinês, todo contente
por fazer tão grande negócio e rezando ao seu
bom Buda para que todos os dias lhe mandasse uma dúzia de fregueses como este, trouxe novas garrafas e uma terrina de delicadíssimos ninhos de salangana, temperados com vinagre e sal e que só os ricos podem saborear.O português, apesar de
ter comido por dois, voltou a dar aos dentes, a beber e a oferecer
vinho a todos os vizinhos.Quando acabou, o sol
tinha-se posto, havia uma boa meia hora e na taberna tinham sido acesas gigantescas lanternas, que lançavam sobre os bebedores uma luz pálida.Acendeu um cigarro,
examinou a bateria das suas pistolas e levantou-se murmurando:
— Vamos embora, caro Eanes. O taberneiro criará uma confusão enorme, eu farei mais do que ele, virão os guardas do rajá e eu serei preso. Nem Sandokan, estou certo, teria idealizado um plano melhor.Deitou ao ar duas ou
três nuvens de fumaça e dirigiu-se tranquilamente para a porta. Estava para a atravessar, quando
sentiu que o seguravam pelo casaco.— Monsieur! — Disse
uma voz.Eanes virou-se
carrancudo e encontrou na sua frente o taberneiro.— O que queres,
malandro? — Perguntou, fingindo-se ofendido.— A conta, senor.— Que conta?— Não me haveis
pagado, gentleman.
Deveis-me três esterlinas, sete xelins e quatro penny.— Vai para o diabo. Não
tenho um tostão nos meus dez bolsos.O chinês de amarelo
que era passou a cinzento.— Mas haveis de me
pagar — Gritou, agarrando as roupas do português.
— Larga a minha roupa, canalha! — Berrou Eanes.— Deveis-me três
esterlinas, sete xelins e...— E quatro penny, eu
sei, mas não te hei-de pagar, biltre. Vai esfolar o teu cão e deixa-me em paz.— Sois um ladrão,
gentleman? Vou mandar-vos prender!— Tenta!
— Socorro! Prendam este ladrão! — Berrou o chinês, furibundo.Quatro criados
precipitaram-se para ajudar o seu patrão, armados de caçarolas, panelas e escumadeiras. Era o que o português desejava, armar confusão a qualquer custo.Com mão de ferro
agarrou o taberneiro pela garganta, levantou-o do
chão e atirou-o para fora da taberna indo bater com o nariz nas pedras da rua. Depois carregou os quatro criados distribuindo pontapés com enorme rapidez, de modo que os desgraçados se encontraram um em cima do outro ao lado do patrão.— Socorro,
compatriotas! — Berrava o taberneiro.
— Ladrão! Assassino! Cortem-lhe a cabeça! Matem-no! — Berravam os criados.
IIUMA NOITE NA PRISÃO
Aqueles gritos de chineses num bairro chinês deviam ter o mesmo efeito que um gong batido numa rua de Cantão ou de Pequim.Com efeito, em menos
de cinco minutos, cerca
de duzentos trançudos filhos do Império Celeste, armados de bambus, facas, pedras e chapéus-de-chuva, estavam reunidos em frente da porta da taberna, lançando gritos assustadores.— Chega no ladrão! —
Gritavam uns, brandindo ameaçadoramente paus e facas.
— Enforca o branco! — Berravam outros, mostrando as facas.— Atira-o ao rio!— Sangrem esse cão!— Corta-lhe a cabeça!
Mata-o! Afoga-o! Queima-o! Sufoca-o!Os bebedores,
assustados por toda aquela confusão e temendo serem lapidados, desampararam a loja a toda a pressa, uns saindo
pela porta e misturando-se ao bando, outros saltando pelas janelas, que felizmente não eram demasiado altas. Ali apenas ficou o português, que ria às gargalhadas, como se assistisse a uma brilhantíssima farsa.— Muito bem! — Gritava
ele armando as pistolas e tirando do cinto o kriss.Um chinês, que gritava
mais alto que todos na
primeira fila, atirou-lhe uma pedrada, mas o calhau partiu um grande jarro de sam-sciú, cujo licor se derramou pelo chão.— Malandro! — Gritou o
português tu assim arruínas o taberneiro.Apanhou o calhau e
devolveu-o ao agressor partindo-lhe um dente.Gritos ainda mais
agudos ecoaram no bairro, fazendo acorrer
mais chineses, que tentavam entrar na taberna, mas, ao verem as pistolas que o por-tuguês lhes apontava, apressavam-se a mostrar as solas de feltro dos tamancos.— Vamos lapidá-lo! —
Gritou uma voz.— E a minha taberna? —
Gemeu o taberneiro.— Pedradas, amigos!
Pedradas!
Uma saraivada de calhaus entrou pela taberna, estilhaçando as lanternas, os jarros, os pratos, as terrinas, os vasos.O português, uma vez
que a confusão se estava a tornar perigosa, descarregou para o ar as duas pistolas.Aos dois disparos
responderam sete tiros disparados na rua, mas sem outro sucesso que
não fosse o de aumentar a confusão.De repente, ouviram-se
várias vozes gritar:— Deixem passar!
Deixem passar!— Os guardas do rajá!O português respirou.
Aquela confusão, aqueles paus no ar, aquelas facas, aquelas saraivadas de calhaus, aqueles mosquetões e aquele aumento contínuo
da multidão, começavam a inquietá-lo.— Vamos armar
confusão, agora que já não há nenhum perigo — Disse.Atirou-se para cima de
uma mesa e virou-a estilhaçando todas as garrafas, os vasos e os pratos que estavam em cima dela.— Prendam-no!
Prendam-no! — Berrou o taberneiro. — Aquele
branco vai-me partir tudo.— Deixem passar!
Deixem passar os guardas! — Gritavam alguns.A multidão dividiu-se e à
porta da taberna apa-receram dois homens de cor escura, altos, robustos, de casaco e calças de tecido branco empunhando uma grande espada.
— Para trás! — Gritou o português, apontando sobre eles as pistolas.— Um europeu! —
Exclamaram os dois guardas, maravilhados.— Digam antes um
inglês — Disse Eanes.Os dois guardas
embainharam as espadas.— Não queremos fazer-
lhe qualquer mal — Disse um dos dois. — Estamos ao serviço do rajá
Brooke, vosso compatriota.— E o que querem de
mim?— Libertar-vos desta
turba.— E conduzir-me para
uma prisão qualquer?— Nisso pensará o rajá.— Conduzir-me-ão até
ele?— Sem dúvida.— Se é assim, então
vou. Nada tenho a temer do rajá Brooke.
Os dois guardas puseram-no no meio e voltaram a desembainhar as espadas para o proteger da raiva dos chineses, que tinha atingido o auge.— Deixem passar —
Gritaram.Os chineses, em grande
número, não obedeceram a essa intimação. Queriam a todo o custo enforcar o europeu, já que os
guardas não o tinham espetado, como haviam esperado.Os dois guardas,
contudo, não desanimaram. Distribuindo bofetadas à direita e à esquerda e vigorosos pontapés, conseguiram abrir caminho e levaram o prisioneiro para uma ruela estreita jurando que matariam quantos os
seguissem. Aquela ameaça teve êxito.Os chineses, depois de
terem berrado em todos os tons e lançado imprecações contra Eanes, os guardas e o próprio rajá que acusavam de proteger os ladrões, dispersaram deixando sozinhos o taberneiro e os seus quatro criados em mau estado.
Sarawak não é uma cidade vasta e não tem muitas ruas, de maneira que os dois guardas, em menos de cinco minutos, chegaram ao palacete do rajá, construído em madeira como todas as habitações dos brancos que povoam as pequenas colinas dos arredores.No topo esvoaçava uma
bandeira, que ao português pareceu vermelha como a
inglesa; frente à porta estava um empertigado indiano armado de espingarda e baioneta.— Vão-me conduzir ao
rajá?— É demasiado tarde —
Respondeu um dos guardas. — O rajá está a dormir.— E onde vou eu passar
a noite?— Dar-lhe-emos um
quarto.
— Desde que não seja uma cave.— Um compatriota do
rajá não se mete numa cave.O português foi
mandado entrar, subir uma escada e conduzido a um quartinho com as janelas defendidas por esteiras de folhas de nipa, uma rede de fibras de coco, alguns móveis de proveniência europeia
e uma lâmpada que já tinha sido acesa.— Por Júpiter! —
Exclamou, esfregando alegremente as mãos. — Vou dormir muito bem.— Desejais alguma
coisa? — Perguntou um dos guardas.— Que me deixem
dormir — Respondeu Eanes.Um guarda saiu, mas o
outro sentou-se perto da porta metendo na boca
uma noz de areca envolvida numa folha de betei.O português franziu a
testa, mas depressa se tranquilizou.— Vou aproveitar para o
fazer falar. Há muitas coisas que ignoro e que este homem sabe certamente.Enrolou um cigarro,
acendeu-o, inspirou um pouco de fumo e
aproximando-se do guarda:— Jovem, és indiano?— Bengalês, sir— Disse
o guarda.— Estás aqui há muito
tempo?— Dois anos.— Ouviste falar de um
pirata que se chama o Tigre da Malásia?— Sim.Eanes reprimiu com
dificuldade um gesto de alegria.
— É verdade que o Tigre está aqui? — Perguntou.— Não sei, mas diz-se
que os piratas assaltaram um barco a vinte ou trinta milhas da costa e que depois desembarcaram.— Onde?— Não se sabe
exactamente onde, mas havemos de o saber.— De que maneira?— O rajá tem bons
espiões.
— Diz-me, é verdade que há alguns meses naufragou um barco inglês perto do cabo Taniong-Datu?— Sim — Disse o
indiano. — Era um barco de guerra proveniente de Calcutá.— Quem correu em seu
auxílio?— O nosso rajá com o
seu schooner o Realista.— A tripulação foi salva?
— Toda, incluindo um indiano condenado à deportação perpétua, já não me lembro em que ilha.— Um indiano
condenado à deportação perpétua! — Exclamou Eanes, fingindo a máxima surpresa. — E quem era ele?— Um indiano, já lhe
disse.— Sabes o seu nome?
O bengalês pensou durante alguns instantes.— Chamava-se Tremal-
Naik.— E que crime tinha
cometido? — Perguntou Eanes, trepidante.— Disseram-me que
tinha morto uns ingleses.— Que bandido! E ainda
está aqui esse indiano?— Está preso no fortim.— Em qual?— O que está no monte.
Só há um em Sarawak.
— Tem guarnição o fortim?— Estão lá os
marinheiros do barco naufragado.— Muitos?— Uns sessenta no
máximo.Eanes fez uma careta.— Sessenta homens! —
Murmurou. — E se calhar também lá há canhões!Acendeu um segundo
cigarro e pôs-se a passear pelo quarto,
meditando. Manteve-se assim durante alguns minutos, depois estendeu-se sobre a rede, pediu à sentinela que baixasse a intensidade da lâmpada e fechou os olhos.Apesar de prisioneiro e
com muitos pensamentos pela cabeça, o português dormiu como se estivesse a bordo do Pérola de Labuan ou na
cabana do Tigre da Malásia. Quando acordou, um raio de sol penetrava através das folhas de nipa que serviam de persianas.Olhou na direcção da
porta, mas a sentinela já lá não estava. Ao vê-lo dormir, e talvez também ao ouvi-lo ressonar, tinha-se ido embora, certa de que um prisioneiro daquele
género não teria saltado pelas janelas.— Muito bem — Disse o
português. — Aproveitemos.Saltou da rede, levantou
a esteira e debruçou-se pela janela, respirando o ar fresco da manhã.Sarawak apresentava
uma bela vista com as suas verdejantes colinas adornadas de elegantes palacetes de madeira; com o seu grande rio à
sombra de soberbas árvores e sulcado por pequenos paraus, por velozes pirogas, por ligeiros e compridos barcos a remos; com as bizarras casinhas, de telhado arqueado e pintadas de cores brilhantes, do bairro chinês; as suas cabanas de folhas de nipa, plantadas em postes de uma altura respeitável, do bairro daiaque e as
suas ruas e ruelas apinhadas de chineses, de daiaques, de buguises e de macaçareses.O português percorreu,
com um rápido olhar, a cidade e parou os olhos sobre as colinas. Como foi dito, havia elegantes palacetes de madeira habitados pelos europeus. Mais além, via-se uma graciosa igreja e não muito distante, um forte, solidamente
construído e não com poucas grades.O português olhou-o
com atenção.— É ali que está Tremal-
Naik — Murmurou. — Como libertá-lo?Naquele mesmo
instante uma voz atrás dele dizia-lhe:— O rajá espera-o.Eanes virou-se e
encontrou à sua frente o bengalês.
— Ah! Sois vós, amigo? — Disse, sorrindo. — Como está o rajá Brooke?— Espera-o, sir.— Vamos apertar-lhe a
mão.Saíram, subiram uma
escada e entraram numa sala, cujas paredes desapareciam sob uma verdadeira camada de armas de todos os tamanhos e de todas as formas.
— Entrai nesse gabinete — Disse o bengalês.O português sentiu um
arrepio. «O que é que vou
contar?» murmurou. «Coragem, Eanes! Tens uma raposa velha à tua frente.»Empurrou a porta e
entrou resolutamente no gabinete, no meio do qual, em frente de uma mesa cheia de mapas geográficos, estava
sentado o rajá de Sarawak.
IIIO RAJÁ JAMES BROOKE
James Brooke, a quem a Malásia inteira e a marinha dos dois mundos muito devem, merece algumas linhas de história.Este homem audaz, que
ao preço de lutas terríveis, de esforços de
gigante, ganhou a alcunha de exterminador de piratas, descendia da família do baronete Vyner que, sob Carlos II, foi lord-mayor de Londres. Muito jovem ainda, tinha-se alistado no exército das Índias como alferes, mas ferido gravemente numa luta contra os homens do Bornéu apresentara pouco depois a sua demissão retirando-se
para Calcutá. A vida tranquila não era feita para o jovem Brooke, homem frio e positivo sim, mas dotado de uma energia extraordinária e amante das aventuras mais arriscadas.Curado da ferida voltou
à Malásia percorrendo-a em todas as direcções. A esta viagem deve ele a sua celebridade, que mais tarde se tornou mundial.
Profundamente impressionado pela incessante pirataria e pelos massacres horrendos que faziam os piratas malaios, bem como pelo tráfico dos homens de cor, tinha-se proposto, apesar dos grandes perigos que o esperavam, esmagar uns e outros e tornar assim segura a navegação e livre a Malásia.
James Brooke era um homem muito persistente. Vencidos os obstáculos que lhe opusera o seu governo à execução do ousado projecto, armava um pequeno schooner, o Realista, e em 1838 zarpava para Sarawak, cidadela do Bornéu, que então não contava com mais de 1500 habitantes. Desembarcava aí num mau momento.
A população de Sarawak, talvez incitada pelos piratas malaios, tinha-se revoltado contra o seu sultão Muda-Hassin e a guerra fervia com extrema violência. Brooke cedo ofereceu o braço ao sultão, pôs-se à cabeça das tropas e, após numerosos combates, em menos de vinte meses dominou a revolução.
Terminada a campanha, saía para o mar contra os piratas e os mercadores de carne humana. Aguerrida a tripulação com um cruzeiro de dois anos, dava início às batalhas, às destruições, aos extermínios, aos incêndios. Não se pode calcular o número de piratas mortos por ele, das embarcações e dos paraus afundados, dos covis incendiados. Foi
cruel, impiedoso, talvez até de mais.Vencida a pirataria,
voltou para Sarawak. O sultão Muda-Hassin, reconhecido pelos grandes serviços que lhe havia prestado, nomeava-o rajá da cidadela e do distrito.Em 1857, ano em que
se deram os acontecimentos que estamos a narrar, James Brooke estava no auge
da sua grandeza, que com um só gesto fazia tremer até o sultão de Varauni, isto é, o sultão do mais vasto reino da grande ilha de Bornéu.Ao escutar o barulho
que Eanes fez ao entrar, o rajá levantou-se com prontidão. Apesar de ter ultrapassado os cinquenta há alguns anos e do cansaço de uma vida agitadíssima, era ainda um homem
robusto, cuja energia transparecia do olhar vivo, brilhante. Algumas rugas sulcavam o seu rosto e a brancura dos cabelos anunciava uma rápida velhice.— Alteza! — Disse Eanes
inclinando-se.— Sois bem-vindo,
compatriota — Disse o rajá retribuindo o cumprimento.O acolhimento era
encorajador. Eanes, que
ao entrar no gabinete tinha sentido o coração bater com maior força, tranquilizou-se.— O que lhe aconteceu
ontem à noite? — Perguntou o rajá, depois de lhe ter apontado uma cadeira. — Os meus guardas contaram-me que até tiros de pistola disparou. Não devemos irritar os celestiais, meu caro, que aqui são numerosos e não gostam
muito dos rostos brancos.— Tinha feito uma longa
marcha, Alteza, e estava a morrer de fome. Encontrando-me em frente de uma taberna chinesa entrei para comer e para beber, embora não tivesse um único xelim na bolsa.— Como! — Exclamou o
rajá. — Um compatriota meu sem um xelim? Ouçamos de onde chega
e que motivo o traz aqui. Eu conheço todos os brancos que habitam o meu Estado, mas nunca o vi.— É a primeira vez que
ponho pé em Sarawak — Disse Eanes.— E de onde vem?— De Liverpool.— Mas em que barco
veio?— Com o meu iate,
Alteza.
— Ah! Tendes um iate? Mas quem é afinal?— Lord Giles Welker de
Closeburn — Disse Eanes, sem hesitar.O rajá estendeu-lhe a
mão que o português se apressou a apertar muito calorosamente.— Estou feliz por acolher
no meu Estado, um lorde da nobre Escócia — Disse o rajá.
— Obrigado, Alteza — Respondeu Eanes, inclinando-se.— Onde deixou o iate? 4
— Na foz do Palo.— E como chegou até
aqui?— Percorrendo pelo
menos duzentas milhas por terra, entre bosques e pântanos, vivendo de fruta e de serpentes como um verdadeiro selvagem.
O rajá olhou-o com surpresa.— Perdeu-se? —
Perguntou.— Não, Alteza.— Uma aposta?— Também não.— E então?— Uma desgraça.— O seu iate naufragou?— Não, foi afundado a
tiros de canhão, depois de ter sido esvaziado de tudo o que continha.— Mas por quem?
— Pelos piratas, Alteza.O rajá, o exterminador
dos piratas, levantou-se de rompante com os olhos cintilantes, o rosto animado de uma terrível cólera.— Os piratas! —
Exclamou. — Ainda não foram exterminados, esses malditos?— Parece que não,
Alteza.— Haveis visto o chefe
dos piratas?
— Sim — Disse Eanes.— Que homem era?— Bastante belo, com
cabelos muito negros, olhos cintilantes, tez bronzeada.— Era ele! — Exclamou
o rajá com viva emoção.— Ele quem?— O Tigre da Malásia.— Quem é este Tigre da
Malásia? Ouvi este nome outras vezes — Disse Eanes.
— É um homem poderoso, milord, um homem que possui a coragem do leão e a ferocidade do tigre, e que guia um bando de piratas que não tem medo de nada. Esse homem há três dias deitava âncora na foz do meu rio.— Que audácia! —
Exclamou Eanes, que a custo travou um tremor. — E havei-lo atacado?
— Sim, ataquei-o e derrotei-o. Mas a vitória custou-me cara.— Ah!— Ao ver-se cercado,
depois de uma luta obstinadíssima que custou a vida a sessenta dos meus homens, deu fogo às pólvoras e mandou pelos ares o seu barco com um dos meus.— Então morreu?— Duvido, milord.
Mandei procurar o seu
cadáver mas não foi possível encontrá-lo.— Será que ainda está
vivo?— Suspeito que se tenha
refugiado nos bosques com um bom número dos seus.— Será que vai tentar
atacar a cidade?— É um homem capaz
de tentar o golpe, mas não me apanhará indefeso. Mandei vir tropas daiaques que me
são fidelíssimas e mandei vários indianos da minha guarda inspeccionar as florestas.— Fazeis bem, Alteza.— Assim o creio, milord
— Disse o rajá, rindo. — Mas continue a sua história. De que modo os atacou o Tigre?— Tinha deixado dois
dias antes Varauni metendo a proa rumo ao cabo Sirik. Tinha a intenção de visitar as
principais cidades de Bornéu, antes de regressar a Batávia e depois à Indira.— Fez uma viagem de
prazer?— Sim, Alteza. Estava no
mar há onze meses.— Prossiga, milord.— Perto do pôr-do-sol do
terceiro dia, o iate deitava âncora perto da foz do rio Palo. Deixei-me conduzir para terra e penetrei sozinho nas
florestas com a esperança de abater uma babirussa ou uma dúzia de tucanos. Caminhava havia duas horas, quando ouvi um tiro de canhão, depois um segundo, um terceiro, finalmente um estrondo contínuo, furioso. «Assustado, voltei a
correr para a costa. Era demasiado tarde. Os piratas tinham abordado o meu iate, morto ou
feito prisioneira a tripulação e estavam a saqueá-lo. «Fiquei escondido até o
meu barco ir a pique e os piratas se afastarem, depois precipitei-me para a praia. Apenas vi cadáveres que a ondulação rolava nos recifes, destroços e a extremidade do pequeno mastro principal que saía meio pé das ondas.
«Toda a noite, desesperado, dei voltas perto da foz do rio, chamando, mas em vão, os meus desgraçados marinheiros. De manhã, pus-me em marcha seguindo a costa, atravessando florestas, pântanos e rios, alimentando-me de fruta e de aves que a minha carabina procurava. «Em Sedang cedi a
minha arma e o meu
relógio, a única riqueza que possuía, e descansei durante quarenta e oito horas. Depois de adquirir novas roupas a um colono holandês, um par de pistolas e um kriss, pus-me novamente em viagem e aqui cheguei, esfomeado, exausto e sem um xelim.»— E agora que conta
fazer?— Em Madras tenho um
irmão e na Escócia tenho
ainda bens e castelos. Vou escrever para que me mandem alguns milhares de esterlinas e no primeiro barco que aqui chegar voltarei para Inglaterra.— Lord Welker — Disse
o rajá — Ponho a minha casa e a minha bolsa à sua disposição, e farei tudo para que não se aborreça enquanto estiver no meu Estado.
Um brilho de alegria passou pelo rosto de Eanes.— Mas Alteza... —
Balbuciou, fingindo-se embaraçado.— Aquilo que faço por si,
milord, fá-lo-ia por qual-quer compatriota meu.— Como poderei
agradecer-vos?— Se um dia for à
Escócia, haverá de me compensar.
— Juro-vos, Alteza. Os meus castelos estarão sempre abertos para si e para qualquer um dos vossos amigos.— Obrigado, milord —
Disse o rajá, rindo.Soou uma campainha.
Um indiano apareceu.— Este senhor é meu
amigo — Disse o rajá, apontando-lhe o português. — Ponho à sua disposição a minha casa, a minha bolsa, os
meus cavalos e as minhas armas.— Está bem, rajá —
Respondeu o indiano.— Para onde vai agora,
milord? — Perguntou o príncipe.— Vou dar uma volta
pela cidade e se me permitis, Alteza, vou dar uma volta pelos bosques. Sou um amante da caça.— Vem jantar comigo?— Farei os possíveis,
Alteza.
— Pandij irá conduzi-lo ao seu quarto.Estendeu a mão a Eanes
que lha apertou vigorosamente dizendo:— Obrigado, Alteza, pelo
que fazeis por mim.— Até à vista, milord.O português saiu do
gabinete precedido pelo indiano e entrou no quarto que lhe estava destinado.— Vai-te embora —
Disse ao indiano. — Se
precisar dos teus serviços, toco.Depois de ficar sozinho,
o português deu uma vista de olhos pelo quarto. Era vasto, iluminado por duas janelas que olhavam para as colinas, coberta de belíssimas tunghoa (papel às flores de Tung) e mobilada com requinte. Havia uma boa cama, uma mesa, várias cadeiras de bambu muito
ligeiro, cuspideiras chinesas e uma bela lâmpada dourada, proveniente, sem dúvida, da Europa, e várias armas europeias, indianas, malaias, de Bornéu.— Muito bem —
Murmurou o português, esfregando as mãos. — O meu amigo Brooke trata-me como se eu fosse um verdadeiro lorde. Hei-de mostrar-te, meu caro,
que raça de Lord Welker eu sou. Mas prudência, Eanes, prudência! Tens de te haver com uma raposa velha.Nesse instante um
assobio agudo soou lá fora. O português estremeceu.— Kammamuri — Disse.
— Isto é uma imprudência.
IVNO BOSQUE
Foi fechar a porta com o trinco e aproximou-se com precaução da janela. A quarenta passos do palacete, sob a fresca sombra de uma árvore sacarífera, uma estupenda palmeira de folhas longas, estava o marata apoiado a um longo bambu munido na extremidade de uma aguçada ponta de ferro, provavelmente enve-nenada. O português viu
ao lado dele um pequeno cavalo carregado com dois grandes cestos de folhas de nipa, cheios de frutos de todas as espécies e de pães de sagu.— O marata é mais
prudente do que eu pensava — Murmurou Eanes. — Parece um provedor das minas.Enrolou um cigarro e
acendeu-o. A luz da pequena chama atraiu
logo o olhar de Kammamuri.— O rapaz viu-me —
Disse Eanes — Mas não se mexeu. Compreende que é preciso ser prudente.Fez-lhe um sinal com a
mão e depois voltou para dentro e abriu uma gaveta da mesinha. Havia folhas de papel, um tinteiro, penas e uma bolsa bem cheia que fez,
ao bater, um som metálico.— O meu amigo Brooke
pensou em tudo — Disse o português, rindo. — Estas são esterlinas novas.Tirou uma folha de
papel, cortou-a pela metade e escreveu em caracteres muito pequenos: «Sê prudente e olha
bem à tua volta. Vai-me
esperar à taberna do chinês.»Enrolou o pedacinho de
papel e arrancou da parede um troço cilíndrico, de madeira dura, furado no meio, armado na extremidade de um ferro de lança bem preso com tiras de rotang. Era um sumpitan, uma zarabatana, de 1,40 metros de comprimento e com a qual os daiaques lançam a sessenta
passos, e com uma extraordinária precisão, flechas molhadas no sumo muito venenoso de upas.— Ainda devo ser hábil
— Disse o português, examinando a arma.Arrancou uma flecha de
20 centímetros de com-primento, enfiou nela a folha escrita e fê-la entrar na zarabatana. Um forte sopro bastou para a lançar até ao
marata, que foi rápido a recolhê-la e a arrancar o papel.— E agora vamos sair —
Disse Eanes, ao ver afastar-se Kammamuri.Pôs a tiracolo uma
espingarda de dois canos e saiu, respeitosamente saudado pela sentinela.Ao percorrer ruas e
ruelas, ladeadas por cabanas assentes em postes, debaixo das quais dormiam porcos,
cães e saltitavam macacos, deitando um cheiro insuportável, em menos de um quarto de hora chegou à taberna à frente da qual estava preso o cavalo do marata.— Preparemos umas
esterlinas — Disse o português. — Prevejo uma cena borrascosa.Olhou para dentro da
taberna. Num canto, sentado em frente de
uma terrina de arroz, estava Kammamuri; e atrás do balcão com um par de óculos de quartzo fumado, estava o taberneiro, ocupado a rabiscar uma grande folha de papel com um pincel de tamanho respeitável.— Olá! — Gritou o
português entrando.O taberneiro levantou a
cabeça ao ouvir aquele chamamento. Vê-lo, pôr-
se em pé e correr ao seu encontro empunhando orgulhosamente uma monstruosa pena suja de tinta-da-china, foi coisa de um instante.— Bandido! — Berrou.O português foi pronto a
pará-lo.— Venho pagar-te —
Disse, atirando para a mesa um punhado de esterlinas.— Justo Buda! —
Exclamou o chinês,
precipitando-se sobre as moedas. — Oito esterlinas! Peço-vos perdão, senhor...— Está calado e traz
uma garrafa de vinho da Espanha.O taberneiro em quatro
saltos correu a ir buscar uma garrafa que colocou à frente de Eanes, depois lançou-se para o gong pendurado na porta e pôs-se a bater nele furiosamente.
— O que é que estás a fazer? — Perguntou Eanes.— Estou a salvá-lo,
senor — Respondeu o chinês. — Se não aviso os meus amigos de que pagou, não sei o que lhe aconteceria dentro de poucos dias.Eanes atirou para a
mesa outras dez esterlinas.
— Diz aos teus amigos que Lord Welker paga as bebidas — Disse.— Mas vós sois um
príncipe, milord! — Gritou o chinês.— Deixa-me sozinho.O chinês, apanhadas as
esterlinas, saiu para encontrar os seus amigos, que, alarmados por aqueles toques precipitados, acorriam de todos os lados armados de bambus e de facas.
Eanes sentou-se em frente de Kammamuri destapando a garrafa.— Que novidades, meu
bravo marata? — Perguntou.— Más, senhor Eanes —
Respondeu Kammamuri.— Sandokan corre
algum perigo?— Ainda não, mas
poderá vir a ser descoberto de um instante para o outro. Nas florestas rondam
guardas e daiaques. Ontem à noite fui mandado parar e interrogado e esta manhã aconteceu-me a mesma coisa.— E tu o que disseste?— Fiz-me passar por um
provedor das minas de Poma. Para enganar melhor estes espiões muni-me de um cavalo e de alguns cestos.
— És esperto, Kammamuri. Onde se encontra Sandokan?— A seis milhas daqui,
acampado perto de uma aldeia em ruínas. Está-se a fortificar, temendo ser atacado.— Vamos ter com ele.— Quando?— Assim que tivermos
esvaziado uma garrafa.— Há alguma coisa no
ar?
— Fiquei a saber onde está preso o teu patrão.O marata pôs-se de pé
num salto, fora de si com a alegria.— Onde está? Onde
está? — Perguntou com voz sufocada.— No fortim da cidade,
guardado por cerca de sessenta marinheiros ingleses.O marata deixou-se cair
na cadeira, desenco-rajado.
— Vamos salvá-lo na mesma, Kammamuri — Disse Eanes.— E quando?— Assim que pudermos.
Vou ter com Sandokan para projectar um plano.— Obrigado, senhor
Eanes.— Deixa lá os
agradecimentos e bebe.O marata esvaziou a
taça.— Quer que partamos?
— Partamos — Atirando para a mesa alguns xelins.— O caminho é longo e
difícil e será necessário torná-lo ainda mais longo para enganar os espiões.— Não tenho pressa.
Disse ao rajá que vou à caça.— Tornou-se amigo do
rajá?— Certamente.— De que maneira?
— Conto-te pelo caminho.Saíram da taberna. O
português pôs-se à frente e Kammamuri atrás, segurando o cavalo pela rédea.— Viva Lord Welker! —
Gritou uma voz.— Viva o lorde! Viva o
generoso branco! — Berraram várias outras vozes.O português virou-se e
viu o taberneiro rodeado
por um grande bando de chineses de taças na mão.— Adeus, rapazes! —
Gritou.— Viva o generoso
lorde! — Vociferaram os chineses erguendo e batendo as taças.Saídos do bairro chinês,
ladeado de lojecas atafulhadas de rolos de papel florido de Tung, de fardos de seda, de caixas de chá de todas as
qualidades, de leques, de óculos, de cadeiras de bambu, de lanternas microscópicas e lanternas gigantescas, de armas, de amuletos, de vestes, de tamancos, de chapéus de todas as formas e dimensões, tudo coisas provenientes dos portos do Império Celeste, entraram no bairro malaio não muito diferente do bairro daiaque, talvez mais sujo
e malcheiroso, depois subiram as colinas e daí alcançaram os bosques.— Caminhe com
precaução — Disse Kammamuri ao português. — Encontrei várias cobras esta manhã e também vi as pegadas de um tigre.— Conheço os bosques
do Bornéu, Kammamuri — Respondeu Eanes. — Não temas por minha causa.
— Já cá veio?— Não, mas percorri
várias vezes os bosques do reino de Varauni.— Em batalha?— Às vezes.— Eram inimigos do
sultão de Varauni?— Sim. Ele odiava os
piratas de Mompracem porque em cada batalha venciam a sua frota.— Patrão Eanes, o Tigre
da Malásia foi sempre pirata?
— Não, meu caro. Em tempos foi um poderoso rajá do Bornéu setentrional, mas um inglês ambicioso fomentou a revolta das tropas e da população e destronou-o depois de lhe ter morto o pai, a mãe, os irmãos e as irmãs.— E ainda está vivo esse
inglês?— Sim, está vivo.— E não o puniram?
— É demasiado forte. Mas o Tigre da Malásia ainda não morreu.— Patrão Eanes, por que
se associou a Sandokan?— Não me associei,
Kammamuri, fui feito prisioneiro quando navegava rumo a Labuan.— Sandokan não
matava os prisioneiros?— Não, Kammamuri.
Sandokan foi sempre feroz para com os seus
mais acérrimos inimigos e generoso para com os outros e especialmente para com as mulheres.— E sempre o tratou
bem, patrão Eanes?— Amou-me mais do
que um irmão!— Diga-me, patrão
Eanes, quando tiver libertado o meu patrão, regressa a Mompracem?— É provável,
Kammamuri. O Tigre da Malásia precisa de
emoções para sufocar a sua dor.— Qual é a sua dor?— A de ter perdido
Mariana Guillonk.— Amava-a muito,
então?— Imensamente.— É bastante estranho
que um homem tão feroz e tão terrível se tenha apaixonado por uma mulher.
— E para mais por uma mulher inglesa — Acres-centou Eanes.— Do tio de Mariana
Guillonk nunca mais souberam nada?— Nada, por agora.— Será que está cá?— Pode ser.— Tem medo dele?
— Talvez e...— Alto aí — Gritou nesse instante uma voz. Eanes e Kammamuri pararam.
V
NARCÓTICOS E VENENOSDois homens tinham-se
levantado por detrás de um cetting, planta trepadeira, cujo suco é tão venenoso que em poucos instantes mata um boi. Um era indiano, alto, magro, nervoso, vestido de tecido branco e armado de uma longa carabina incrustada de prata; o outro era um daiaque de belas formas, com os membros
extraordinariamente carregados de anéis de latão e de pérolas de Veneza e os dentes enegrecidos pelo sumo, caldo da madeira siuka. Um único ciawat, pedaço de pano de algodão, cobria-lhe a cintura e um lenço vermelho a cabeça, mas trazia um verdadeiro arsenal. A terrível zarabatana com as flechas molhadas no suco de upas pendia-lhe
de um ombro; o formidável parang, pesado sabre de lâmina larga embutida com pedaços de latão, que usam para decapitar os inimigos, balançava-lhe à cintura; a corda, que sabem usar talvez melhor ainda do que os tugues indianos, apertava-lhe a cintura. Não faltava sequer o kríss, de lâmina
serpenteante e envenenada.— Alto lá! — Repetiu o
indiano, avançando.O português fez a
Kammamuri um gesto rápido e avançou com os dedos da mão direita sobre a espingarda.— O que queres e quem
és tu? — Perguntou ao indiano.— Sou guarda do rajá de
Sarawak — Respondeu o
interpelado. — E o senhor?— Lord Giles Welker,
amigo de James Brooke, o teu rajá.O indiano e o daiaque
apresentaram armas.— Esse homem está ao
seu serviço, milord? — Perguntou o indiano, indicando Kammamuri.— Não — Respondeu
Eanes. — Encontrei-o na floresta e tendo ele
medo dos tigres pediu para me seguir.— Aonde vais? —
Perguntou o indiano ao marata.— Disse-te esta manhã
que sou provedor dos placers de Poma — Disse Kammamuri. — Para quê perguntar-me também agora aonde vou?— Porque assim o quer
o rajá.— Diz ao teu rajá que eu
sou um súbdito fiel dele.
— Passa.Kammamuri alcançou
Eanes que tinha seguido o seu caminho, enquanto os dois espiões voltavam a esconder-se debaixo do arbusto venenoso.— O que pensa, senhor
Eanes, destes homens? — Perguntou o marata, quando teve a certeza de que não o podiam ouvir nem ver.— Penso que o rajá é
astuto como uma raposa.
— Separamo-nos?— Sim, Kammamuri.
Aqueles dois espiões podem ter alguma suspeita e seguir-nos durante um bom pedaço de caminho.— Vamos despistá-los.Kammamuri abandonou
o caminho até então percorrido e virou à esquerda, seguido pelo cavalo e pelo português. O caminho depressa se tornou muito difícil.
Milhares e milhares de árvores, umas direitas, outras dobradas e contorcidas e arbustos e trepadeiras, apertavam-se dificultando a passagem.Havia aqui colossais
árvores de cânfora, ali arengas sacaríferas, que, feridas, dão um licor açucarado e inebriante quando é deixado fermentar; mais além soberbas palmeiras
pinang, que se dobravam sob o peso das nozes que formavam grandes cachos; depois belíssimas mangueiras, altas como cerejeiras, cujos frutos, do tamanho de laranjas, são os mais saborosos e os mais delicados que se encontram na terra, e arecas de folhas grandíssimas, plantas, estas três últimas, que dão a borracha. E como
se todas estas não bastassem para tornar difícil o caminho, rotang desmesurados, que no Bornéu ocupam o lugar das lianas e nepentes, corriam de uma árvore à outra formando autênticas redes, que o marata e o português eram obrigados a cortar a golpes de kriss.Percorrida meia milha,
descrevendo voltas compridas para
encontrar passagens, saltando árvores, furando arbustos, cortando raízes e amarras vegetais à direita e à esquerda, os dois piratas chegaram às margens de um canal de água negra e putrefacta. Kammamuri cortou um ramo e mediu a profundidade.— Dois pés — Disse. —
Venha, patrão Eanes.— Porquê?
— Vamos entrar no canal e vamos subi-lo durante um bom pedaço. Se os dois espiões nos estiverem a seguir, deixarão de encontrar as nossas pegadas.— És esperto,
Kammamuri.O português subiu para
a sela e atrás dele subiu o marata. O cavalo depois de ter hesitado um pouco, entrou naquelas águas
putrefactas que deitavam um fedor insuportável e subiu a corrente, cambaleando e escorregando no fundo pantanoso.Depois de dar alguns
passos, voltou para a margem. Eanes e o marata desmontaram e puseram-se à escuta com o ouvido no chão.— Não oiço nada —
Disse Kammamuri.
— Eu também não — Acrescentou o português. — É longe o acampamento?— Uma milha e meia
pelo menos. Despachemo-nos, patrão.Um caminho aberto
entre os arbustos e o rotang dos animais desaparecia na floresta. Os dois piratas alcançaram-no alargando o passo. Meia hora de-pois, outros dois homens
levantavam-se detrás de um arbusto, intimando os dois piratas a parar. Kammamuri deu um assobio.— Em frente —
Responderam as duas sentinelas.Eram dois piratas de
Mompracem, armados até aos dentes. Ao verem Eanes deram gritos de alegria.
— Capitão Eanes! — Gritaram, correndo para ele.— Bom dia, rapazes —
Disse o português.— Pensávamos que
estava morto, capitão.— Os Tigres de
Mompracem têm a pele dura; onde está Sandokan?— A trezentos passos
daqui.— Montem bem a
guarda, amigos. Há
espiões do rajá no bosque.— Nós sabemos;
matámos um ontem à noite.— Muito bem, tigres.O português e o marata
aceleraram o passo e depressa chegaram ao acampamento implantado perto de um kampong em ruínas. Da aldeia, que em tempos devia ter sido bastante grande, apenas restava
intacta uma cabana de folhas de nipa, colocada em cima de postes com mais de trinta pés de altura, longe do alcance dos ataques dos tigres e também dos ataques dos homens.Os piratas, contudo,
estavam a reconstruir outras cabanas e plantando sólidas paliçadas para se meterem a coberto e, em caso de súbito ataque
por parte das tropas do rajá de Sarawak, poderem resistir.— Onde está Sandokan?
— Perguntou Eanes, entrando no acampamento, acolhido com gritos de alegria de todo o bando.— Ali em cima, na
cabana aérea — Responderam os piratas. — Encontraram soldados do rajá, capitão Eanes?
— Aquilo que disse às sentinelas digo-o a vocês, tigres — Disse o português. — Estejam alerta que há espiões do rajá no bosque. Vi mais do que um.— Que se mostrem! —
Gritou um malaio, em-punhando um pesadíssimo parang ilang com a ponta em tubo. — Os tigres de Mompracem não temem os cães do rajá.
— Capitão Eanes — Disse outro — Se encontrar algum desses espiões, diga-lhes que estamos aqui acampados. Há cinco dias que não combatemos e as minhas armas começam a ficar enferrujadas.— Dentro em breve
terão trabalho — Respondeu Eanes.— Viva o capitão Eanes!
— Gritaram os tigres.
— Ei! Irmão! — Gritou uma voz que vinha do alto.O português levantou os
olhos e viu Sandokan de pé na pequena plataforma da cabana aérea.— O que fazes aí em
cima? — Gritou o português, rindo.— Sobe, Eanes. Tens
uma coisa importante para me dizer.— Claro.
O português lançou-se para um grande poste que apresentava cortes e com uma surpreendente agilidade chegou à plataforma ou melhor ao terraço da cabana, mas aqui encontrou-se num terrível embaraço. O solo era formado por bambus mas afastados um bom palmo uns dos outros, de modo que os pés do bom Eanes não conseguiam
encontrar um apoio estável.— Mas isto é uma
armadilha! — Exclamou.— Construção daiaque,
meu irmão — Disse Sandokan, rindo.— Mas que pés têm
estes selvagens?— Talvez mais pequenos
do que os nossos. Um pouco de equilíbrio, caramba!O português,
cambaleando e saltando
de trave em trave, chegou à cabana.Era discretamente
vasta, dividida em três quartos pequenos de cinco pés de altura e outros tantos de largura, com o chão também formado de bambus vários centímetros afastados uns dos outros, mas cobertos de esteiras.— O que me trazes? —
Perguntou Sandokan.
— Muitas novidades, meu irmão — Respondeu Eanes, sentando-se. — Mas diz-me, antes de mais nada, onde está a pobre Ada, que não a vi no acampamento?— Este lugar não é
muito seguro, Eanes. Os guardas do rajá podem atacar-nos de um momento para o outro.— Compreendo, meu
irmão; escondeste-a num lugar qualquer.
— Sim, Eanes. Mandei conduzi-la até à costa.— Quem foi com ela?— Dois homens que me
são muito fiéis.— Ainda está louca?— Sim, Eanes.— Pobre Ada!— Há-de curar-se,
garanto-te.— De que maneira?— Quando estiver
perante Tremal-Naik, terá um choque tão
grande que recuperará a razão.— Achas?— Acho, ou melhor
tenho a certeza.— Que as tuas
esperanças se tornem realidade.— Agora, diz-me Eanes:
o que tens feito em Sarawak nestes dias?— Muitas coisas. Tornei-
me amigo do rajá.— De que maneira? Diz,
depressa, irmão.
O português em poucas palavras informou-o daquilo que tinha feito, daquilo que tinha acontecido e daquilo que tinha ouvido. Sandokan ouviu-o atentamente sem o interromper.— Então tu és amigo do
rajá — Disse, quando Eanes terminou.— Amigo íntimo, meu
irmão.— Não suspeita de
nada?
— Não creio, mas já te disse que sabe que estás aqui.— É preciso libertar
depressa Tremal-Naik. Ah! Se eu pudesse ao mesmo tempo esmagar para sempre esse danado Brooke!— Deixa lá o rajá,
Sandokan.— Ele foi demasiado
feroz para com os nossos irmãos. Eu daria metade do meu sangue para
vingar os milhares de malaios mortos por esse terrível e impiedoso homem.— Tem cuidado,
Sandokan, só temos sessenta homens.— Tu sabes, Eanes,
daquilo que eu sou capaz — Disse com um tom de voz que fazia tremer. — Conheces o meu passado.— Eu sei, Sandokan, que
desafiaste a ira de reinos
e de impérios europeus. Mas a prudência nunca é de mais.— Seja: serei prudente.
Contentar-me-ei com a libertação de Tremal-Naik.— Uma coisa talvez
mais difícil do que a outra, Sandokan.— Porquê?— Há sessenta brancos
no fortim e peças de canhão.
— O que são sessenta homens?— Espera um pouco,
meu irmão. Esquecia-me de te dizer que o fortim está muito próximo da cidade. Ao primeiro tiro de canhão terás os brancos pela frente e as tropas do rajá pelas costas.Sandokan mordeu os
lábios e fez um gesto de desprezo.
— Mesmo assim temos de o salvar — Disse.— O que devemos
fazer?— Vamos usar a astúcia.— Tens um plano?— Penso que sim.— Fala então.— Sou de Bornéu e
como os meus compatriotas sempre adorei os venenos. Com uma só gota mata-se um homem por mais forte que seja; com outra gota
adormece-se, faz-se com que pareça morto e pode enlouquecer. O veneno, como vês, é uma arma poderosa.— Sei que durante a
nossa estada em Java lidavas muito com venenos. E lembro-me de que uma vez um poderoso narcótico te salvou da forca.— Eis os primeiros frutos
dos meus estudos e das minhas pesquisas —
Disse Sandokan. — Ouve-me, Eanes.Procurou no bolso
interior do casaco e tirou uma caixinha de pele, hermeticamente fechada. Abriu-a e mostrou ao português dez ou doze frasquinhos microscópicos cheio de líquidos brancos, esverdeados e negros.— Por Júpiter! —
Exclamou Eanes. — Tens uma enorme variedade.
— Não é tudo — Disse Sandokan, abrindo uma segunda caixinha contendo pequeníssimas pílulas que exalavam um cheiro forte. — Estes são outros venenos.— E o que é que queres
fazer com esses líquidos e essas pílulas?— Ouve-me com
atenção, Eanes. Disseste-me que Tremal-Naik está preso no forte.— É verdade.
— Achas que podes entrar no forte, se pedires autorização ao rajá?— Espero que sim. A um
amigo não se nega um favor tão pequeno.— Então tu vais entrar e
pedir para ver Tremal-Naik.— E quando o tiver
visto, o que é que faço?Sandokan tirou da
segunda caixinha três
pílulas pretas e pô-las na mão de Eanes.— Estas pílulas contêm
um veneno que não mata, mas que suspende a vida durante trinta e seis horas.— Agora compreendo o
teu plano. Tenho de fazer Tremal-Naik engolir uma pílula.— Ou derreter uma no
jarro da água.— Tremal-Naik não dará
mais sinal de vida, julgá-
lo-ão morto e enterrá-lo-ão.— E nós, de noite,
iremos desenterrá-lo — Disse Sandokan.— O projecto é
estupendo, Sandokan — Disse o português.— Vais tentar o golpe?
Não corres qualquer perigo.— Vou tentar, desde que
me seja permitido entrar no forte.
— Se não permitirem, corrompe alguns marinheiros. Tens dinheiro?O português, abriu o
casaco, o colete, levantou a camisa e mostrou uma faixa um pouco inchada que lhe apertava a cintura.— Tenho dezasseis
diamantes que juntos valem um milhão.— Se quiseres mais,
fala. O meu cinto contém
o dobro da tua fortuna e em Batávia temos ouro suficiente para comprar toda a frota de Portugal.— Eu sei, Sandokan. Por
agora contento-me com os meus dezasseis diamantes.— Agora esconde estas
pílulas e também estes dois frasquinhos — Disse Sandokan. — Um, o verde, contém um narcótico que não suspende a vida, mas
que adormece profundamente durante doze horas; o outro, o vermelho, contém um veneno que mata instantaneamente e sem deixar vestígios. Quem sabe: podem ser-te úteis.O português escondeu
as pílulas e os frasquinhos, pôs a espingarda a tiracolo e levantou-se.— Vais-te embora?
— Sarawak fica longe, meu irmão.— Quando darás o
golpe?— Amanhã.— Mandas logo
Kammamuri avisar-me.— Sem falta; adeus,
irmão.Desceu a perigosa
escada, saudou os tigres e voltou a enfiar-se na floresta, procurando orientar-se. Tinha percorrido seiscentos ou
setecentos metros, quando o marata se juntou a ele.— Mais novidades? —
Perguntou o português, parando.— Uma e talvez grave,
senhor Eanes — Disse o marata. — Um pirata regressou agora mesmo ao acampamento e relatou ao Tigre ter visto, a três milhas daqui, um bando de daiaques
guiado por um velho branco.— Se o encontrar
desejar-lhe-ei uma boa viagem.— Espere, senhor Eanes
— Disse o marata. — O pirata disse que aquele velho de pele branca se parecia com aquele homem que jurou enforcar o Tigre.— Lord James Guillonk!
— Exclamou Eanes, empalidecendo.
— Sim, patrão Eanes, aquele homem parecia-se com o tio da defunta mulher de Sandokan.— É impossível! É
impossível!.. Quem foi o pirata que o viu?— O malaio
Sambigliong.— Sambigliong! —
Balbuciou Eanes. — Esse malaio estava connosco quando raptámos a sobrinha de Lord James, aliás, se a memória não
me engana, ele mesmo afrontou o lorde que estava para me esmagar o crânio. Por Júpiter! Corro um grande perigo.— Qual? — Perguntou o
marata.— Se Lord Guillonk for a
Sarawak estou perdido. Vai ver-me, reconhecer-me apesar de já terem passado quase cinco anos desde a última vez que nos encontrámos,
mandar-me prender e enforcar.— Mas o malaio não
disse que aquele velho era o lorde. Era parecido e mais nada.— Foi Sandokan quem
te mandou avisar-me?— Sim, patrão Eanes!— Vais dizer-lhe que
estarei alerta, mas que procure capturar esse velho de pele branca. Adeus, Kammamuri, amanhã de manhã
espero por ti na taberna chinesa.O português, muito
inquieto, retomou a marcha, olhando bem à sua volta e abrindo bem os ouvidos, assustado por poder encontrar-se de um momento para o outro perante aquele velho. Felizmente não se ouvia, sob as gigantescas plantas, nenhuma voz humana, nem nenhum sinal. Os únicos ruídos
que rompiam o silêncio eram os gritos dos argus gigantes, magníficos faisões que esvoaçavam às centenas, catatuas pretas e os sons roucos dos macacos narigudos.Caminhou assim, com
grandes precauções, entre os arbustos inextricáveis e gigantescos, ora virando à direita ora à esquerda, durante cinco horas. Só chegou a Sarawak ao
pôr-do-sol, exausto e esfomeado como um lobo. Pensando ser demasiado tarde para ir jantar ao palacete do rajá, dirigiu-se à taberna do chinês.Depois de um lauto
repasto e várias garrafas, regressou ao palacete. Antes de entrar, perguntou à sentinela se um velho de pele branca tinha chegado, mas
obteve uma resposta negativa e subiu.O rajá tinha-se retirado
para o seu quarto há várias horas.— É melhor assim —
Murmurou Eanes. — Um caçador que regressa sem um papagaio poderia alarmar aquela velha raposa desconfiada.Acendeu o trigésimo
cigarro e foi dormir, depois de ter posto as
pistolas e o kriss debaixo do travesseiro.
VITREMAL-NAIK
Embora estivesse bastante cansado, o bom português não foi capaz de pregar olho durante toda a noite. Aquele velho branco que guiava um grupo de daiaques e que era tão parecido com o tio da defunta mulher do Tigre, que fora visto
na vizinhança da cidade pelo malaio Sambigliong, continuava na sua mente e enchia-lhe a alma de fortes inquietações.Em vão procurava
tranquilizar-se repetindo para si mesmo que talvez o malaio se tivesse enganado, que o lorde ainda devia estar longe, talvez em Java, na Indira, ou ainda mais longe, em Inglaterra. Parecia-lhe sempre ouvir
a voz do velho no corredor contíguo; parecia-lhe sempre ouvir um fragor de armas no palácio.Por várias vezes, não
sabendo dominar a sua inquietude, abriu prudentemente as janelas e por várias vezes foi abrir a porta do quarto temendo que tivessem sido colocadas sentinelas para lhe impedir que fugisse.
Adormeceu já quase de madrugada, mas foi um sono agitado, cheio de pesadelos e que durou horas. Acordou com o som de um gong.Levantou-se, vestiu-se,
enfiou nas sacolas um par de pistolas curtas e dirigiu-se para a porta. Nesse mesmo instante bateram à porta.— Quem é? —
Perguntou com ansiedade.
— O rajá espera-o no gabinete — Disse uma voz.Eanes sentiu um arrepio
correr-lhe por todos os ossos. Abriu a porta e encontrou-se perante um indiano.— É só o rajá? —
Perguntou, com os dentes cerrados.— Só, milord—
Respondeu o indiano.— O que quer de mim?
— Espera-o para tomar chá.— Vou já ter com ele —
Disse Eanes, dirigindo-se para o gabinete do príncipe.O rajá estava sentado
em frente da sua mesa sobre a qual estava um serviço de chá em prata. Ao ver Eanes entrar, levantou-se com um sorriso nos lábios, estendendo-lhe a mão.
— Bom dia, milord! — Exclamou. — Voltou tarde ontem à noite?— Perdoai-me, Alteza,
se faltei à refeição, mas a culpa não é minha — Disse Eanes, sossegado pelo sorriso do rajá.— O que vos aconteceu?— Perdi-me nos
bosques.— Mas tinha um guia.— Um guia!— Disseram-me que ia
convosco um indiano que
se faz passar por um provedor das minas de Poma.— Quem lho disse,
Alteza? — Perguntou Eanes, fazendo um esforço extraordinário para manter a calma.— Os meus espiões,
milord.— Alteza, tendes boa
gente ao vosso serviço.— Creio que sim —
Disse o rajá, sorrindo. — Encontrou esse homem?
— Sim, Alteza.— Até onde vos
acompanhou?— Até uma pequena
aldeia de daiaques.— Imagina quem era
esse homem?— Quem era? —
Perguntou Eanes, pronunciando com dificuldade aquelas duas palavras.— Um pirata — Disse o
rajá.
— Um pirata! É impossível, Alteza.— Posso assegurá-lo.— E não me matou?— Os piratas de
Mompracem, milord, por vezes são generosos como o seu chefe.— É generoso o Tigre da
Malásia?— É o que se diz. Conta-
se que, por várias vezes, deu de presente grandes diamantes a pobres diabos a quem poucos
momentos antes tinha dado tiros e golpes de sabre.— É um pirata muito
estranho, então?— É corajoso e generoso
ao mesmo tempo.— Mas estais certo,
Alteza, de que aquele indiano faz parte do bando de Mompracem?— Certíssimo, já que os
meus espiões o viram falar com piratas do Tigre da Malásia. Mas já
não falará mais com eles, juro-vos. A esta hora deve estar nas mãos dos meus homens.Nesse instante, na rua,
ouviram-se gritos e forte golpe de gong. Eanes, pálido, agitadíssimo, precipitou-se para a janela para ver o que estava a acontecer e para esconder a própria emoção.— Por Júpiter! —
Exclamou com voz
estrangulada, ficando ainda mais pálido. — Kammamuri!— O que se passa? —
Perguntou o rajá.— Conduzem para aqui
o meu indiano, Alteza — Respondeu com voz bastante calma.— Eu não me tinha
enganado.Debruçou-se sobre
parapeito e olhou.Quatro guardas,
armados até aos dentes,
conduziam para o palácio o indiano Kammamuri, ao qual tinham atado os braços com sólidas fibras de rotang. O prisioneiro não opunha qualquer resistência, nem parecia assustado. Avançava com passo calmo e olhava tranquilamente a multidão de daiaques, chineses e malaios que o seguia clamando.— Pobre homem! —
Exclamou Eanes.
— Tem pena dele, milord? — Perguntou o rajá.— Um pouco, confesso.— Mas aquele indiano é
um pirata.— Eu sei, mas comigo
foi muito gentil. O que fareis dele, Alteza?— Vou tentar fazê-lo
falar antes de mais. Se conseguir saber onde se esconde o Tigre da Malásia...— Atacá-lo-eis?
— Reunirei os meus guardas e atacá-lo-ei.— E se o prisioneiro não
falar?— Mando enforcá-lo —
Disse friamente o rajá.— Pobre diabo!— Todos os piratas têm
um tratamento igual, milord.— Quando o
interrogareis?— Hoje não tenho
tempo, porque tenho de receber um embaixador
holandês, mas amanhã estou livre e hei-de fazê-lo falar.Uma luz brilhou nos
olhos do português.— Alteza — Disse,
depois de alguma hesitação. — Posso assistir ao interrogatório?— Se assim o deseja.— Obrigado, Alteza.O rajá sacudiu uma
campainha de prata que estava sobre a mesa. Um chinês vestido de seda
amarela com uma trança, entrou trazendo uma chaleira de porcelana Ming, cheia de chá fumegante.— Gosta de chá, espero
— Disse o rajá.— Não seria inglês —
Respondeu Eanes, sorrindo.Esvaziaram várias
chávenas da deliciosa bebida; em seguida levantaram-se.
— Onde pensa ir hoje, milord? — Perguntou o rajá.— Visitar os arredores
da cidade — Respondeu Eanes. — Vi um fortim e, com vossa licença, vou visitá-lo.— Encontrará
compatriotas, milord.— Compatriotas! —
Exclamou Eanes, fingindo ignorar completamente.— Recolhidos por mim
há algumas semanas,
quando estavam prestes a afogar-se.— Náufragos, portanto?
E o que fazem naquele forte?— Esperam a chegada
de um navio para embarcar e ao mesmo tempo estão de guarda a um tugue indiano que fechei lá dentro.— O quê? Um tugue!
Um tugue indiano! — Exclamou Eanes. — Oh! Gostaria de ver um
desses terríveis estranguladores.— Desejais isso?— Ardentemente.O rajá pegou numa folha
de papel, escreveu nela algumas linhas, dobrou-a e entregou-a ao português que pegou nela com vivacidade.— Entregue-a ao
tenente Churchill — Disse o rajá. — Ele mostrar-lhe-á o tugue e se o desejar levá-lo-á a
visitar o fortim apesar de não ter nada de bonito.— Obrigado, Alteza.— Janta comigo esta
noite?— Prometo-vos.— Adeus, milord.Eanes, que não podia
esperar pelo momento de sair daquele gabinete, dirigiu-se para o próprio quarto.— Vamos pensar, Eanes
meu caro — Murmurou, ao encontrar-se sozinho.
— Trata-se de fazer um grande golpe sem ser descoberto.Acendeu um cigarro e
chegou-se à janela mer-gulhada em profundos pensamentos. Ficou ali, imóvel, com os olhos fixos no fortim, dez ou doze minutos, franzindo de vez em quando a testa. «Já sei!», exclamou de
repente. «Meu caro Brooke, o bom Eanes
prepara-te uma brincadeira que, se eu tiver tudo bem calculado, vai ser lindíssima. Por Júpiter! Sandokan ficará contente com o seu irmãozinho branco.»Aproximou-se da mesa,
pegou numa caneta e num pedaço de papel e escreveu: «Venho a mando do teu fiel servo Kammamuri, para te salvar. Tremal-Naik, se quiseres ficar
livre e rever a tua Ada, engole perto da meia-noite as pílulas que aqui encontras, nem antes, nem depois, se puderes.Eanes amigo de Kammamuri.»Pôs dentro da carta
duas pequenas pílulas esverdeadas e fez uma bolinha que escondeu num dos bolsos do casaco.— Amanhã os ingleses
hão-de pensá-lo morto e
amanhã à noite enterram-no — Murmurou, esfregando as mãos — E mandaremos Kammamuri avisar o meu caro irmão. Ah! Meu caro James Brooke, ainda não sabes do que são capazes os Tigres de Mompracem.Pôs na cabeça um
chapéu de palha em forma de cogumelo, colocou à cintura o fiel kriss, e deixou o quarto
descendo lentamente as escadas.Ao passar pelo corredor,
viu diante de uma porta um indiano armado de carabina, com a baioneta hasteada.— O que é que está aí a
fazer? — Perguntou o português.— Estou a montar a
guarda — Respondeu a sentinela.— A quem está a
montar a guarda?
— Ao pirata preso esta manhã.— Tem cuidado para
que não fuja, amigo. É um homem perigoso.— Vou ter os olhos bem
abertos, milord.— Muito bem, rapaz.Saudou-o com a mão,
desceu a escada e saiu para a rua com um sorriso irónico nos lábios. O seu olhar fixou-se de imediato na colina que existia em frente, no
cimo da qual, entre o verde-escuro das plantas, sobressaía a massa esbranquiçada do fortim.— Ânimo, Eanes —
Murmurou. — Há muito que fazer.Atravessou com passo
tranquilo a cidade, invadida por uma multidão de soberbos daiaques, de horríveis malaios e de trançudos chineses que clamavam
em todos os tons, vendendo fruta, armas, roupas de todos os tipos e brinquedos de Cantão e tomou um caminho sombreado por altíssimos durion e por arecas, que levava ao fortim.A meio da encosta deu
com dois marinheiros ingleses que desciam à cidade, talvez para receberem ordem do rajá ou para se informarem se algum navio havia
deitado âncora na foz do rio.— Olá, amigos — Disse
Eanes, saudando-os. — O comandante Churchill está lá em cima?— Deixámo-lo a fumar à
porta do fortim — Disse um dos dois.— Obrigado, amigos.Pôs-se novamente a
caminho e depois de uma longa volta desembocou numa grande praça, no meio
da qual se elevava o fortim. À porta, apoiado a uma espingarda, estava um marinheiro, ocupado a mastigar um pedaço de tabaco e, a poucos passos, estendido no meio das ervas, fumava um tenente de marinha de alta estatura, com grandes bigodes ruivos. Eanes parou.— Olha! Um branco! —
Exclamou o tenente ao vê-lo.
— E que está à sua procura — Disse o português.— À minha procura?— Sim!— E o que deseja?— Tenho uma carta para
o tenente Churchill.— O tenente Churchill
sou eu, senhor — Disse o oficial, levantando-se e avançando para ele.Eanes tirou do bolso a
carta do rajá e estendeu-
a ao inglês que a abriu e a leu atentamente.— Estou às vossas
ordens, milord-disse, depois de a ler.— Vai-me deixar ver o
tugue?— Se quiser.— Acompanhe-me até
junto dele, então. Sempre desejei ver um desses terríveis estranguladores.O tenente meteu no
bolso o cachimbo e
entrou no fortim seguido por Eanes, que sorria de maneira estranha. Atravessaram um pequeno pátio, no meio do qual enferrujavam quatro velhos canhões de ferro e entraram no edifício construído com a robustíssima madeira de teca, capaz de resistir a uma bala de seis ou mesmo de oito libras.— Cá estamos, milord —
Disse Churchill, parando
diante de uma sólida porta aferrolhada. — O tugue está aqui dentro.— É manso ou feroz?— É manso como um
tigre domesticado — Disse o inglês, sorrindo.— Então não é preciso
entrarmos armados.— Nunca fez mal a
nenhum de nós, mas eu não entraria sem as minhas pistolas.Tirou os dois ferrolhos e
abriu com precaução a
porta, esticando o pescoço.— O tugue está a
dormitar — Disse. — Vamos entrar, milord.Eanes sentiu um
arrepio, já não porque tivesse medo do estrangulador, mas por temer que este o perdesse. Com efeito, o indiano podia rejeitar o bilhete e as pílulas e desvendar tudo ao tenente Churchill.
«Coragem e sangue-frio», murmurou, «não é o momento de recuar.»Passou a soleira da
porta e entrou. Encontrou-se numa cela algo pequena, com as paredes de madeira de teca, iluminada por uma janela com grades sólidas.A um canto, estendido
numa cama de folhas secas e envolvido num curto manto de tela,
estava o tugue Tremal-Naik, o patrão do indiano Kammamuri, o noivo da infeliz Ada.Era um indiano soberbo,
de cinco pés e seis polegadas de altura, cor de bronze. Tinha o peito largo e robusto, os braços e as pernas eram musculosos, as feições do rosto muito regulares. Eanes, que tinha visto chineses, malaios, javaneses, africanos,
indianos, bugueses, macaçareses, tagais, não se lembrava de ter encontrado um homem de cor tão belo e tão vigoroso. Apenas Sandokan podia superá-lo.Aquele homem dormia,
mas o seu sono não era tranquilo. O peito levantava-se com dificuldade, o seu rosto amplo e belo franzia-se, os lábios de um
vermelho vivo, ardente, fremiam e as suas mãos, pequenas como as de uma mulher, abriam-se e fechavam-se como se quisessem apertar alguma coisa e esmagá-la.— Bom homem — Disse
Eanes.— Silêncio, ele está a
falar — Murmurou o tenente.
Uma palavra saíra dos lábios do indiano, mas uma palavra de dor.— Minha! — Tinha
exclamado.O seu rosto, de repente,
ficou atormentado. Uma veia que lhe sulcava a testa engrossou de um momento para o outro.— Suyodhana —
Murmurou o indiano com um acento de ódio.— Tremal-Naik! — Disse
o tenente.
Ao ouvir esse nome, o indiano levantou-se com a rapidez de um tigre e fixou sobre o tenente um olhar que brilhava como o de uma serpente.— O que queres? —
Perguntou.— Um senhor quer ver-
te.O indiano olhou para
Eanes que estava uns passos atrás de Churchill. Um sorriso de desdém aflorou-lhe aos lábios,
deixando a descoberto os dentes brancos como marfim.— Sou por acaso uma
fera? — Perguntou. — Que...Parou e teve um
sobressalto. Eanes, que estava atrás do tenente, tinha-lhe feito um rápido sinal. Sem dúvida compreendera que estava diante de um amigo.
— Como é que estás aqui dentro? — Perguntou o português.— Como pode estar um
homem que nasceu e viveu livre na selva — Disse Tremal-Naik com voz triste.— É verdade que és um
tugue?— Não.— Mas estrangulaste
pessoas.— É verdade, mas não
sou um tugue.
— Tu mentes.Tremal-Naik levantou-se
rangendo os dentes e com os olhos deitando chamas, mas um novo gesto do português acalmou-o.— Se me deixasses
levantar o manto, mostrava-te a tatuagem que distingue os tugues.— Levanta-o — Disse
Tremal-Naik.
— Não se aproxime, milord! — Exclamou o tenente.— Não tenho qualquer
arma — Disse o indiano. — Se levantar o braço, descarrega-me no peito as tuas pistolas.Eanes aproximou-se da
cama de folhas e curvou-se sobre o indiano.— Kammamuri —
Murmurou em voz muito baixa.
Uma rápida luz brilhou nos olhos do indiano. Com um gesto levantou o manto e recolheu o bilhete contendo as pílulas que o português havia deixado cair.— Viu a tatuagem? —
Perguntou o tenente que tinha, por precaução, uma pistola armada.— Não tem — Disse
Eanes, erguendo-se.— Então não é um
tugue?
— Quem pode dizê-lo? Os tugues têm tatuagens em várias partes do corpo.— Não tenho — Disse
Tremal-Naik.— Há quanto tempo se
encontra aqui, tenente? — Perguntou Eanes.— Há dois meses,
milord.— Para onde o vão
conduzir?
— Para uma penitenciária da Austrália.— Pobre diabo!
Podemos sair, tenente.O marinheiro abriu a
porta. Eanes aproveitou para se virar para trás e fazer a Tremal-Naik mais um gesto que significava «obedeça».— Quereis visitar o
fortim? — Perguntou o tenente, depois de fechar e aferrolhar a porta.
— Parece-me não ter nada de atraente — Respondeu Eanes. — Até à vista no palácio do rajá, senhor.— Até à vista, milord.
VIIA LIBERTAÇÃO DE
KAMMAMURIEnquanto Eanes, agindo
com astúcia, preparava a salvação de Tremal-Naik, o pobre Kammamuri,
dominado por mil terrores e mil angústias esforçava-se por sair da prisão. Não tinha medo de ser enforcado ou fuzilado como um vulgar pirata; tinha medo de ser submetido a um suplício horrível e de confessar tudo, comprometendo de uma só vez a vida do seu patrão, da infeliz Ada, do Tigre da Malásia, de Eanes e de todos os
intrépidos piratas de Mompracem.Acabado de ser preso
tinha tentado saltar pelas janelas, mas tinha-as encontrado defendidas por solidíssimas barras de ferro impossíveis de romper sem uma poderosa lima ou uma maça; depois tentara fazer um buraco no chão esperando cair num quarto desabitado, mas depois de ter partido as
unhas fora obrigado a renunciar. Por último, tentara estrangular o indiano que lhe havia levado a comida, mas quando estava prestes a consegui-lo, tinham acorrido mais indianos para libertar o companheiro.Convencido da
inutilidade dos seus esforços, tinha-se enrolado num canto do quarto, resolvido a
morrer de fome em vez de provar um alimento que podia conter um narcótico misterioso; resolvido também a deixar que lhe rasgassem as carnes pedaço a pedaço em vez de pronunciar uma só palavra.Tinham passado dez
horas sem que se mexesse. O sol já se tinha posto, as trevas haviam invadido o
quarto, quando um sibilar em lamento, seguido por um ligeiro golpe, feriu as suas orelhas. Levantou-se sem fazer barulho, deitando em volta um olhar interrogador e ficou de ouvido à escuta. Não ouviu mais nada a não ser gritos roucos dos daiaques e dos malaios que passavam na praça.Aproximou-se
silenciosamente da
janela e olhou através das barras de feno. Ali, perto de uma gigantesca planta sacarífera, que estendia a sua sombra sobre uma boa parte da praça, estava um homem com um grande chapéu na cabeça e uma espécie de bordão na mão. Conheceu-o à primeira vista.— Patrão Eanes —
Murmurou.
Deixou a janela e caminhou até à parede em frente. Observou-a atentamente, depois dobrou-se e apanhou uma espécie de flecha em cuja extremidade estava pendurada uma bola de papel.— Aqui dentro está a
salvação — Murmurou. — Ao que parece, o patrão Eanes sabe usar a zarabatana.
Desdobrou o papel e tirou duas pílulas pretas que estavam no meio, pequeníssimas, e que exalavam um cheiro especial.— Veneno ou narcótico?
— Interrogou-se. — Ah! O papel está escrito.Aproximou-se da janela
e leu atentamente as seguintes linhas: «Tudo corre da melhor
maneira. Tremal-Naik, se não acontecer nenhum
acidente imprevisto, amanhã estarás livre. As pílulas que te mando aqui, dissolvidas em água, adormecem instantaneamente. Procura a maneira de adormecer o guarda e de fugir. Amanhã, ao meio-dia, espero-te perto do fortim.Eanes.» «Bom Eanes»,
murmurou o marata,
comovido. «Pensa em tudo.»Encostou-se às grades
da janela e pôs-se a meditar. Um ligeiro toque na porta afastou-o dos seus pensamentos.— Ei-lo — Disse.Aproximou-se
rapidamente, mas sem fazer barulho, de uma mesa em cima da qual havia, além de uma terrina de arroz e de vários frutos, duas
grandes taças de tuwakonde deitou uma das duas pílulas que instantaneamente se dissolveu.— Quem está aí? —
Perguntou depois.— Guarda do rajá —
Disse uma voz.Aporta abriu-se e um
indiano armado de uma larga cimitarra e de uma longa pistola com a coronha embutida de madrepérola, entrou com
precaução. Numa mão tinha uma lanterna de talco, semelhante à que usam os chineses, e na outra um cesto cheio de provisões.— Não tens fome? —
Perguntou o guarda, vendo as taças cheias, os frutos intactos e a terrina ainda repleta.O marata em vez de
responder deitou-lhe um olhar turvo.
— Coragem, amigo — Continuou o guarda. — O rajá é bom e não te enforcará.— Mas vai envenenar-
me — Disse Kammamuri com falso terror.— De que maneira?— Com a comida e com
a bebida que aqui vês.— É por isso que não
provaste nada?— Claro.— Fazes mal, meu
amigo.
— Porquê?— Porque nem o tutwak,
nem o arroz, nem a fruta contêm veneno algum.— Tu bebias uma taça
desse licor?— Se quiseres!Kammamuri agarrou na
taça dentro da qual tinha dissolvido as pílulas do português e estendeu-a ao guarda.— Bebe — Disse.O indiano, que não
suspeitava de nada,
chegou a taça aos lábios e bebeu uma boa parte do conteúdo.— Mas... — Disse,
hesitando. — O que é que meteram neste tuwak?— Não sei — Disse o
marata que o olhava atentamente.— Um estranho tremor
agita os meus... Membros.— Ah...
— Olha! A minha cabeça anda à roda, faltam-me as forças, não estou a ver bem, parece-me...Não acabou. Cambaleou
como se estivesse ferido em pleno peito, levantou as mãos, esbugalhou os olhos e caiu no chão imóvel.Kammamuri precipitou-
se para ele e tirou-lhe a pistola e a cimitarra.Assim armado
aproximou-se da porta e
ouviu atentamente. Temia que o estrondo causado pelo indiano ao cair atraísse outros guardas. Felizmente nenhum passo se fez ouvir no corredor.— Estou salvo — Disse,
respirando. — Dentro de dez minutos estarei fora da cidade.Tirou os calções curtos,
o casaco e a faixa que o indiano envergava e num ápice vestiu-se. Enrolou
à volta da cabeça um lenço de maneira a esconder boa parte do rosto e um pouco dos olhos, depois agarrou na cimitarra e pôs a pistola à cintura. «Em frente»,
murmurou. «Passarei por um guarda do rajá.»Abriu, sem fazer
barulho, a porta, percorreu o corredor que estava deserto e escuríssimo, desceu a
escada e, passando rapidamente diante da sentinela, saiu para a praça.— És tu, Labuk? —
Perguntou uma voz.— Sim — Respondeu
Kammamuri, sem se virar para trás com medo de ser reconhecido por quem o interrogava.— Que Xiva te proteja.— Obrigado, amigo.O marata com passo
rápido, de olhos no
guarda, de ouvidos alerta, avançava encostado aos muros das casas, escondendo-se, sempre que no fundo da ruas e vielas avistava alguém que se parecesse com um guarda do rajá.Depois de dez bons
minutos chegava aos pés de uma colina no topo da qual, iluminado pela lua, brilhava o fortim. Parou e ficou à escuta.
Na direcção do rio ouviam-se os sons agudos do yo, espécie de flauta com seis buracos, e o doce tremeluzir do kine, espécie de guitarra com cordas de seda.Na direcção da praça,
onde se erguia o palácio do rajá, nada se ouvia. «Estou salvo»,
murmurou, depois de alguns instantes de atenção angustiada.
«Ainda não deram pela minha fuga.»Enfiou-se pelos bosques
de mangostões altís-simos, de mangueiras de belíssimo aspecto.Ora saltando de uma
árvore para outra com a agilidade de um macaco para fazer perder o rasto, ora entrando nos charcos de negras e pútridas águas com o mesmo objectivo, e ora atravessando arbustos,
em menos de uma hora chegou, sem ser descoberto por ninguém, ao fortim.Subiu a uma árvore
altíssima de onde podia ver quem subia e quem descia a colina, e esperou a chegada do português.A noite passou sem
incidentes. Às quatro da manhã o sol surgiu no horizonte, iluminando de uma só vez o rio que
desaparecia por entre campos férteis e bosques densos, a cidadela e as plantações circundantes.Do alto do seu
observatório o marata viu, algumas horas depois, dois brancos saírem do fortim e lançarem-se a toda a velocidade pelo caminho abaixo.Um dos dois tinha
galões nas mangas do casaco.
«O que é que se passa?», murmurou Kammamuri. «Para se porem a correr daquela maneira, deve ter acontecido qualquer coisa muito séria no fortim. Será que os da cidade alertaram estes homens acerca da minha fuga?»Agachou-se no meio das
folhas, para não ser visto por quem passava no
caminho, e esperou ansioso.Uma hora depois os
ingleses regressavam ao fortim, seguidos por um oficial da guarda e por um europeu vestido de tecido branco, que trazia uma caixinha preta pendurada à cintura. «Será um médico?»,
perguntou a si próprio Kammamuri, ficando cinéreo, que é o mesmo que dizer pálido. «Será
que alguém ficou doente? Se calhar está lá dentro o meu patrão! Senhor Eanes, venha depressa!»Deixou-se escorregar
até ao chão e rastejou na direcção do caminho, resolvido a interrogar alguém. Felizmente bateram as doze horas, depois uma, duas, três, sem que nenhum marinheiro ou guarda passasse por ali.
Cerca das cinco, um homem com um grande chapéu de palha e um par de pistolas à cintura, surgiu numa curva do caminho. Kammamuri reconheceu-o logo.— Patrão Eanes! —
Exclamou.O português que subia
com passo lento, olhou atentamente à direita e à esquerda como se pro-curasse alguém, parou ao ouvir aquele
chamamento. Ao avistar Kammamuri apressou o passo e ao chegar perto dele, empurrou-o para dentro de um grande arbusto, dizendo-lhe:— Se algum guarda te
visse estavas despachado e desta vez para sempre; temos de ser prudentes, meu caro.— Aconteceu qualquer
coisa de grave no fortim, patrão Eanes — Disse o marata. — Passou-me
uma suspeita pela mente e deixei o meu esconderijo.— Uma suspeita! Qual?— Que o meu patrão
esteja fechado lá dentro e esteja moribundo. Vi um branco ir lá para cima e pareceu-me um médico.— Foi mesmo o teu
patrão que pôs em movimento os soldados do fortim.
— O meu patrão! Então o meu patrão está lá em cima?— Sim, meu caro.— E está mal?— Está morto.— Morto! — Exclamou o
marata, vacilando.— Não te assustes.
Pensam que ele está morto, mas está vivo.— Ah! Patrão Eanes, que
susto me pregou! Deu-lhe algum narcótico para ele beber?
— Dei-lhe umas pílulas que suspendem a vida durante trinta e seis horas.— E pensam que ele
está morto?— Fulminado.— E como é que o
vamos salvar?— Esta noite vão
sepultá-lo.— Compreendo — Disse
o marata. — Depois de sepultado, nós vamos
desenterrá-lo e levá-lo para um lugar seguro.— Adivinhaste, meu
caro.— Mas para onde o vão
levar?— Havemos de sabê-lo.— De que maneira?— Quando saírem do
forte nós seguimo-los.— E quando daremos o
golpe?— Esta noite.— Nós os dois.— Tu e Sandokan.
— Tenho então de o avisar.— Certamente.— E o senhor não vem
connosco?— Não posso.— Não pode?— Não.— E pode-se saber
porquê?— O rajá esta noite dá
um baile em honra do embaixador holandês e não posso faltar sem lançar suspeitas.
— Ah! — Exclamou o marata, erguendo vivamente a cabeça na direcção do fortim.— O que tens?— Estão a sair homens
do forte.— Por Júpiter!Dois marinheiros tinham
saído transportando numa espécie de maca um corpo fechado numa espécie de rede. Atrás deles saíram outros dois marinheiros armados de
enxadas e de picaretas e um guarda do rajá.— Preparemo-nos para
partir — Disse Eanes.— Que caminho hei-de
tomar? — Perguntou Kammamuri, com viva ansiedade.— Descem o monte pelo
lado oposto.— Vão enterrá-lo no
cemitério!— Não sei. Vamos dar a
volta ao bosque, mas
cuidado para não fazer barulho.Saíram dos arbustos e
saltando troncos abatidos, furando arbustos emaranhados e cortando longas raízes, deram a volta ao forte e encontraram-se na vertente oposta. Eanes parou.— Onde estão? —
Perguntou a si próprio.— Estão ali em baixo —
Disse o marata.
O grupo estava de facto visível. Descia por um caminho muito estreito que conduzia a uma pequena pradaria rodeada de soberbas árvores. No meio, circundado por uma baixa paliçada, havia um espaço eriçado de pedras e de tabuletas de madeira.— Aquilo deve ser o
cemitério — Disse Eanes.
— Dirigem-se para ali? — Perguntou Kammamuri.— Sim.— Posso respirar, patrão
Eanes. Temia que atirassem o meu pobre patrão ao rio.— Também eu tive esse
pensamento.— Vamos descer?— É inútil. A terra
removida de fresco há-de indicar onde o sepultaram.
— Tenho de partir?— Espera um momento.Os marinheiros tinham
entrado no cemitério e parado no meio, depondo na terra Tremal-Naik. Eanes viu-os ainda andar por ali alguns instantes como se procurassem alguma coisa, depois um deles levantou a enxada e começou a cavar.— É ali que o vão
enterrar — Disse o português ao marata.
— Há perigo de o meu patrão morrer asfixiado? — Perguntou Kammamuri.— Não, meu amigo.
Agora vai já a correr ter com Sandokan, manda-o reunir a tropa dele, vir aqui e desenterrar o teu patrão.— E depois?— Depois voltam para o
bosque e eu irei ter convosco. Amanhã à noite poderemos deixar
estes lugares para sempre. Vai, amigo, vai.O marata não esperou
que lho dissessem duas vezes. Empunhou a pistola e desapareceu por entre as árvores com rapidez.
VIIIEANES NA ARMADILHA
Quando, cerca das 10 horas da noite, Eanes regressou a Sarawak, ficou surpreendido pelo
extraordinário movimento que reinava em todos os bairros. Pelas ruas e pelas vielas passavam e tornavam a passar a correr chineses em roupa de festa, daiaques, malaios, macaçareses, bugueses, javaneses e tagais, gritando, rindo e dirigindo-se todos para o largo onde se erguia a habitação do rajá. Tinham sentido a festa
que o seu príncipe ia dar e acorriam em massa, certos de que se divertiriam muito e que beberiam bem mesmo ficando na praça.Abrindo caminho com os
cotovelos e muitas vezes com os punhos, ao fim de uns bons cinco minutos chegava à praça. Numerosas tochas resinosas ardiam aqui e ali iluminando as casas, as altas e belíssimas
árvores e o palacete do rajá que estava rodeado por uma dupla fileira de guardas bem armados.Uma multidão
considerável, em parte alegre e em parte embriagada, aglomerava-se naquele espaço, dando gritos de alegria. Os cidadãos de Sarawak, ouvindo a orquestra que tocava nos quartos do palacete, dançavam alegremente
embatendo contra as casas e contra as árvores e batendo e quebrando as filas dos guardas que eram obrigados a pôr as armas em riste. «Chegamos um pouco
atrasados», disse Eanes, rindo. «O Príncipe deve estar preocupado com a minha prolongada ausência.»Fez-se reconhecer pelos
guardas, subiu as escadas e entrou no
quarto para se arranjar e para largar as armas.— Estão-se a divertir? —
Perguntou ao indiano que o rajá tinha posto à sua disposição.— Muito, milord—
Respondeu o interpelado.— Quem são os
convidados?— Europeus, malaios,
daiaques e chineses.— E, portanto, uma
mistura. Não deve ser preciso vestir o fato
preto que de resto não tenho.Escovou a roupa, largou
as armas enfiando, contudo, uma pequena pistola numa sacola e dirigiu-se para o salão de baile, parando à porta com a mais viva surpresa estampada no rosto.A sala não era vasta,
mas o rajá tinha mandado decorá-la com um certo gosto.
Numerosas lâmpadas de bronze, de proveniência europeia, pendiam do tecto dando uma luz muito forte; grandes espelhos adornavam as paredes, esteiras daiaques pintadas com cores vivas cobriam o chão e sobre as mesas sobressaíam grandes vasos de porcelana da China contendo peónias de um vermelho vivíssimo e grandes
magnólias que perfuma-vam o ambiente.Os convidados não eram
mais de cinquenta, mas quantos trajes e quantos tipos diferentes! Havia quatro europeus todos vestidos de tecido branco, uns quinze chineses vestidos de seda, dez ou doze malaios de tez verde com longas samarras indianas, cinco ou seis chefes daiaques com as
suas mulheres, mais nus do que vestidos, mas adornados com centenas de pulseiras e colares de dentes de tigre. Os outros eram macaçareses, bugueses, tagais, javaneses que se agitavam como obcecados e que vociferavam como se estivessem furibundos sempre que a orquestra chinesa entoava uma
marcha impossível de dançar. «Mas que festa é
esta?», perguntou a si próprio Eanes, rindo. «Se uma das nossas senhoras da Europa a visse deixaria do pé para a mão S. A. Brooke e a sua diabólica orquestra.»Entrou na sala e dirigiu-
se ao rajá, o único que vestia um fato preto e que estava conversando com um chinês gordo,
sem dúvida um dos principais comerciantes da cidade.— Divertem-se aqui —
Disse.— Ah! — Exclamou o
rajá virando-se para ele. — Está aqui, milord? Estava á sua espera há duas horas.— Dei um passeio até ao
fortim e no regresso perdi o caminho.— Assistiu ao funeral do
prisioneiro?
— Não, Alteza. As cerimónias lúgubres não são muito do meu gosto.— Agrada-lhe esta
festa?— Há um pouco de
confusão, parece-me.— Meu caro, estamos
em Sarawak. Os chineses, os malaios e os daiaques não sabem fazer melhor. Pegue numa daiaque e dê uma volta.
— Com esta música é impossível, Alteza.— Concordo — Disse o
rajá, rindo.Nesse instante ecoou à
porta um grito que abafou a confusão que reinava na sala.O rajá virou-se
bruscamente e tal como ele também se virou Eanes. Tiveram apenas tempo de ver um indivíduo vestido de branco, com uma longa
barba cinzenta, que prontamente se afastou.— O que é que se
passa? — Perguntou o rajá.Algumas pessoas
dirigiram-se para a porta mas voltaram para trás quase de imediato.— Espere-me aqui,
milord — Disse o rajá.Eanes não respondeu,
nem se mexeu. Aquele grito, quê talvez não fosse a primeira vez que
ouvia, tinha calado profundamente a sua alma. Uma ligeira palidez cobriu de imediato o seu rosto, e as suas feições, geralmente tão calmas, alteraram-se por instantes.— Aquele grito! —
Murmurou finalmente. — Onde já o ouvi? Será que vai acontecer uma catástrofe agora que conseguimos trazer o navio a bom porto?
Meteu uma mão no bolso das calças e silen-ciosamente armou a pistola, resolvido a utilizá-la se fosse necessário.Nesse momento o rajá
regressou. Eanes viu de imediato que uma ruga lhe sulcava a testa. Estremeceu e ficou inquieto.— Então, Alteza? —
Perguntou, fazendo um esforço extraordinário
para parecer calmo. — O que é que aconteceu?— Nada milord —
Respondeu o rajá pacatamente.— Mas aquele grito? —
Insistiu Eanes.— Foi dado por um
amigo meu.— Por que motivo?— Porque foi apanhado
por uma súbita indispo-sição.— Mas?— Que quer dizer?
— Aquele grito não era de dor.— Está enganado,
milord. Vamos, pegue numa daiaque e, se for possível, dance uma polca.O rajá afastou-se,
pondo-se a conversar com um dos convidados. Eanes por seu lado ficou ali, seguindo-o com um olhar inquieto.— Aqui há qualquer
coisa — Murmurou. —
Põe-te em guarda, Eanes.Fingiu afastar-se indo,
ao contrário, sentar-se atrás de um grupo de malaios. Dali viu o rajá virar-se para trás e olhar em volta como se procurasse alguém. Eanes voltou a estremecer.— Está à minha procura
— Disse. — Pois bem, meu caro Brooke, vou pregar-te uma partida
antes que tu me pregues uma a mim.Levantou-se
demonstrando a maior calma, deu duas ou três voltas à sala, depois parou a dois passos da porta. Ali estava um criado do rajá. Fez-lhe sinal para que se aproximasse.— Quem era o homem
que há pouco gritou? — Perguntou.
— Um amigo do rajá — Respondeu o indiano.— O nome dele?— Ignoro-o, milord.— Onde está ele agora?— No gabinete do rajá.— Está doente?— Não sei.— Posso ir visitá-lo?— Não, milord. Duas
sentinelas estão de vigia à porta do gabinete com ordem para não deixar passar ninguém.
— E conheces aquele homem?— De nome não.— É um inglês?— Sim.— Há quanto tempo
está em Sarawak?O indiano pensou alguns
instantes coçando a testa.— Chegou logo a seguir
ao combate que teve lugar na foz do rio — Disse depois.
— Contra o Tigre da Malásia?— Sim.— É inimigo do Tigre?— Sim, porque o
procurou nos bosques.— Obrigado, amigo —
Disse Eanes metendo-lhe uma rupia na mão.Abandonou a sala e
dirigiu-se ao quarto. Estava pálido e pensativo.Assim que entrou fechou
bem a porta, tirou da
parede um par de pistolas e um kriss com a ponta envenenada, depois abriu a janela curvando-se sobre o parapeito.Uma dupla fila de
indianos armados de espingardas rodeavam a habitação. Mais além, duzentas ou trezentas pessoas dançavam desordenadamente, emitindo gritos selvagens.
— A fuga por aqui é impossível — Disse Eanes. — Mas tenho de deixar este palácio o mais depressa possível. Sinto que está próximo um grande perigo e que... — Parou repentinamente, colhido por uma suspeita que lhe passara pela mente. «Aquele grito...»,
murmurou, voltando a empalidecer. «Sim, deve ter sido ele a emiti-lo...
Sim, ele, Lord Guillonk, o nosso inimigo... Sim, lembro-me que Sambigliong disse que o tinha visto à cabeça de um bando de daiaques, lá, na floresta onde se esconde Sandokan... É ele, sim, é ele!»Precipitou-se para a
mesa e empunhou as pistolas, dizendo:— Eanes não matará o
tio de Mariana Guillonk,
mas defenderá a própria vida.Aproximou-se da porta e
tirou o trinco, mas não foi capaz de a abrir. Apoiou o ombro contra ela e fez força, mas sem êxito. Uma surda exclamação irrompeu-lhe dos lábios.— Fecharam-me aqui
dentro — Disse. — Estou perdido.Procurou outra saída,
mas havia apenas duas
janelas e debaixo delas estavam os guardas do rajá e mais além a multidão.— Maldita seja esta
festa! — Exclamou com raiva.Nesse instante ouviu
bater à porta. Levantou as pistolas, gritando:— Quem é?— James Brooke —
Respondeu o rajá do lado de fora.— Só ou acompanhado?
— Só, milord, e sem armas.— Entrai, Alteza — Disse
Eanes com um acento irónico.Pôs as pistolas à cintura,
cruzou os braços sobre o peito e, de cabeça erguida, com o olhar calmo esperou o aparecimento do formidável adversário.
IXLORD JAMES GUILLONK
O rajá entrou.Estava sozinho, sem
armas e ainda vestido de preto. Mas já não era o homem calmo e sorridente de antes. Estava pálido, não pelo medo, mas pela cólera; tinha a testa franzida, o olhar cintilante, um sorriso irónico, que magoava ao vê-lo nos seus lábios. Já não era o príncipe de Sarawak; era o exterminador de
piratas que se preparava para aniquilar um dos mais poderosos chefes da pirataria malaia.Durante alguns
instantes permaneceu imóvel à porta, dardejando sobre Eanes um olhar agudo como a ponta de uma espada, depois deu três passos no quarto. A porta foi de imediato fechada atrás dele.
— Senhor — Disse com tom duro.— Alteza — Respondeu
Eanes num tom igual.— Se não me engano, já
percebeu o objectivo da minha visita.— Sim, Alteza.
Acomodai-vos.O rajá sentou-se numa
cadeira; Eanes, pelo contrário, apoiou-se à escrivaninha sobre a qual o kríss estava à mão.
— Senhor — Retomou o rajá com voz tranquila. — Sabe como me chamam em Sarawak?— James Brooke.— Não, chamam-me o
exterminador dos piratas.Eanes fez uma vénia,
sorrindo.— Mau nome, Alteza. —
Disse.— Agora que sabeis
quem é James Brooke, rajá de Sarawak, tiremos
a máscara e conversemos.— Vamos a isso, Alteza.— Se eu chegasse a
Mompracem...— Ah! — Exclamou
Eanes. — Sabe...— Deixe-me acabar,
senhor. Se eu, repito, chegasse a Mompracem e pedisse hospitalidade ao Tigre da Malásia ou ao seu braço-direito, e eles depois viessem a saber que sou um dos seus
maiores inimigos, o que fariam comigo?— Por Deus! Se se
tratasse de James Brooke, o Tigre da Malásia ou o seu braço-direito não hesitariam em passar-lhe uma corda pelo pescoço.— Pois bem, senhor
Eanes de Gomera...— Senhor Eanes! —
Interrompeu-o o português. — Quem vos
disse que sou Eanes de Gomera?— Um homem que já
teve de se haver consigo.— Então fui traído?— Quer dizer que foi
descoberto.— O nome desse
homem, James Brooke! — Gritou Eanes, dando um passo na direcção do rajá. — Eu quero saber!— E se eu me recusasse
a dizê-lo?— Obrigá-lo-ia.
O rajá deu uma gargalhada.— Ameaça-me — Disse
— E não pensa que atrás daquela porta dez homens armados até aos dentes esperam uma palavra minha para entrar e lançarem-se sobre si. Contudo, vou dar-vos essa satisfação.Bateu as mãos três
vezes. A porta abriu-se e um velho de estatura alta, ainda robusto, com
o rosto bronzeado pelo sol dos trópicos e uma longa barba branca, entrou em passos lentos. Eanes não conseguiu sufocar um grito.Reconhecera de
imediato aquele homem. Era Lord James Guillonk, o tio da defunta mulher do Tigre da Malásia, o inimigo que havia jurado enforcar os dois chefes da pirataria. Era, enfim, o mesmo homem que o
pirata Sambigliong tinha visto na floresta à cabeça de uma companhia de daiaques.— Reconhece-me, Eanes
de Gomera? — Perguntou ele com voz surda.— Sim, milord —
Respondeu o português, prontamente refeito do espanto.— Uma voz dizia-me que
um dia encontraria os raptores da minha
sobrinha Mariana e vejo que não me enganei.— Disse raptores,
milord? Lady Mariana só foi raptada com o consentimento dela. Ela amava o Tigre da Malásia, não o abominava.— Pouco me importa
saber se ela amava ou odiava o pirata. Foi raptada a Lord James Guillonk, seu tio, e isso basta-me. Eanes de
Gomera, procurei-o durante vários anos. Sabe porquê?— Ignoro-o, milord.— Para me vingar.— Disse que Lady
Mariana não foi raptada. De quem, pois, se quer vingar?— Do mal que me fez ao
privar-me da única parente que tinha, das humilhações sofridas e do mal que fez á minha pátria. Responda-me
agora: onde está a minha sobrinha? É verdade que morreu?— A sua sobrinha, ou
melhor a mulher do Tigre da Malásia, repousa no cemitério de Batávia, milord. — Disse Eanes com voz triste.— Morta pelo seu
infame raptor.— Não, milord. Pela
cólera. E se o ignora, dir-vos-ei que Sandokan, o sanguinário pirata de
Mompracem, chora e chorará por muitos anos ainda Lady Mariana Guillonk.— Sandokan! —
Exclamou o lorde com um ódio intraduzível. — Onde está esse homem?— O seu sobrinho,
milord, encontra-se num lugar seguro no território do rajá de Sarawak.— O que faz ele aqui?— Veio salvar um
homem injustamente
condenado que ama Ada Corishant, sua parente.— Tu mentes — Gritou o
lorde.— Quem é esse
condenado? — Perguntou o rajá, pondo-se de pé.— Não posso dizer —
Respondeu Eanes.— Lord Guillonk — Disse
o rajá. — Tem algum parente com o nome Corishant?— A mãe da minha
sobrinha Mariana tinha
um irmão chamado Harry Corishant.— Onde vivia esse Harry
Corishant?— Na Indira.— Ainda está vivo?— Disseram-me que
morreu.— Tinha uma filha
chamada Ada?— Sim, mas foi-lhe
raptada pelos tugues indianos e nunca mais se ouviu falar dela.
— Pensa que ainda possa estar viva?— Não creio.— Então...— Este pirata está-nos a
enganar.— Milord — Disse o
português, levantando a cabeça e olhando-o nos olhos. — Se eu jurasse sobre a minha honra que o que disse é verdade, acreditava em mim?
— Um pirata não tem honra — Disse com desprezo Lord Guillonk.Eanes empalideceu e a
sua mão correu para a coronha de uma pistola.— Milord — Disse com
voz grave. — Se na minha frente não estivesse o tio da defunta Lady Mariana, a esta hora teria cometido um homicídio. É a quarta vez que lhe dou a vida, não o esqueça.
— Pois bem, fale. Talvez conceda algum crédito às suas palavras.— Repito o que lhe disse
há pouco. O Tigre da Malásia está aqui para salvar um homem injustamente condenado que ama Ada Corishant, sua parente.— Diga-me o nome
desse homem e o lugar onde se encontra Ada Corishant.
— Ada Corishant está com o Tigre da Malásia.— Onde?— Não o posso dizer,
agora.— Porquê?— Porque seria capaz de
cair sobre Sandokan e de o fazer prisioneiro ou de o matar. Prometa que o deixais partir em liberdade para a sua ilha e eu digo-lhe onde ele se encontra e o que está a fazer neste momento.
— Essa promessa não sairá nunca dos meus lábios — Disse o rajá, intervindo. — É altura de o Tigre da Malásia desaparecer para sempre destes mares que ensanguentou durante tantos anos.— Nem dos meus —
Disse Lord Guillonk. — Há cinco anos que espero a vingança.— Pois bem, senhores,
mandai chicotear-me,
mandai assar-me em lume brando, fazei-me sofrer mil tormentos, da boca de Eanes de Gomera não sairá nem mais uma palavra.Enquanto Eanes falava
assim, dois indianos tinham entrado pela janela e tinham-se aproximado silenciosamente da escrivaninha. Pareciam esperar apenas um sinal para se lançarem.
— Então? — Disse o rajá, depois de fazer um rápido sinal aos seus homens. — Então não falará?— Não, Alteza —
Respondeu Eanes com firmeza.— Pois bem, senhor, eu,
James Brooke, rajá de Sarawak, prendo-o!A essas palavras os dois
indianos lançaram-se sobre o português, que não se havia apercebido
da sua entrada, e deitaram-no ao chão arrancando-lhe as pistolas.— Miseráveis! — Gritou
o prisioneiro.Com um esforço
hercúleo, deitou-os por terra, mas outros indianos entraram no quarto e, mais depressa do que leva a contá-lo, prenderam-no e amordaçaram-no.
— Temos de o matar? — Perguntou o chefe daqueles homens, desembainhando o seu kriss.— Não — Disse o rajá —
Este homem tem de nos fazer uma revelação.— Falará? — Perguntou
Lord Guillonk.— De imediato, milord—
Respondeu Brooke.Fez sinal a um indiano
que saiu; pouco depois regressava trazendo
numa bandeja de prata uma taça cheia de uma água esverdeada.— O que é essa bebida?
— Perguntou o lorde.— Uma limonada —
Disse o rajá.— Para quê?— Vai fazer falar o
prisioneiro.— Duvido, rajá Brooke.— Verá.— Misturou-lhe um
veneno?
— Um pouco de ópio e algumas gotas de youma.— É uma bebida
indiana?— Sim, milord.A um sinal, dois indianos
tiraram a Eanes a mordaça, abriram-lhe a boca à força e fizeram-no engolir a limonada.— Atenção, milord —
Disse o rajá. — Em breve saberemos onde se
esconde o Tigre da Malásia.O prisioneiro fora
novamente amordaçado apesar das mordidelas e dos violentos safanões, para que não incomodasse os convidados, que continuavam a dançar e a beber na sala vizinha, com os seus gritos.Passados cinco minutos,
o seu rosto, pálido pela raiva, começou a ganhar
cor e os seus olhos a resplandecer como os de uma serpente irritada. As suas contorções e os seus esforços diminuíram pouco a pouco, até que pararam completamente.— Deixem-no rir —
Disse o rajá.Um indiano voltou a
tirar-lhe a mordaça. Coisa estranha: Eanes, que pouco antes parecia querer rebentar de
cólera, ameaçava agora querer rir!Ria com um riso
convulsivo, e tão forte que parecia ter ficado louco de repente. E como se tal não bastasse, falava sem parar, ora de Mompracem, ora dos tigres, ora de Sandokan, como se diante dele estivessem amigos e não inimigos.
— Esse homem está louco — Disse Lord Guillonk com surpresa.— Não está louco,
milord— Disse o rajá, rindo. — É a limonada que o faz rir. Os indianos, como pode ver, têm bebidas maravilhosas.— Vai dizer-nos onde se
encontra o Tigre da Malásia?— Sem dúvida. Bastará
interrogá-lo.
— Amigo Eanes — Disse o lorde, dirigindo-se ao português que continuava a rir ainda mais. — Fala-me do Tigre da Malásia.O português que tinha
sido libertado das cordas que lhe apertavam os pulsos e os pés, ouvindo a voz do Lord tinha-se levantado.— Quem está a falar do
Tigre? — Perguntou. — O Tigre, Ah... Ah! O Tigre
da Malásia... Quem não o conhece? És tu, velho, que não o conheces? Não conhecer o Tigre, o invencível Tigre... Ah! Ah! Ah!— O Tigre está aqui? —
Perguntou o rajá.— Sim, claro, está aqui,
no território de James Brooke, do rajá de Sarawak. E aquele estúpido do Brooke não sabe... Ah... Ah...
— Mas este homem está a insultar-vos, Alteza — Disse Lord Guillonk.— O que é que isso
importa? — Disse o rajá, encolhendo os ombros. — Insulta, mas vai entregar-nos o chefe dos piratas de Mompracem.— Continuai então,
Alteza.— Diga-me, Eanes, onde
se esconde Sandokan?— Não sabe? Ah! Ah!
Não sabe onde está
Sandokan! Está aqui mesmo — Disse Eanes, continuando a rir.— Mas em que lugar?— Em que lugar? Está...
está...Parou. Talvez um rasgo
de lucidez lhe tivesse esclarecido o cérebro no momento em que estava para trair o seu fiel amigo.— Por que paras? —
Perguntou o rajá. — Não sabes onde se encontra?
Eanes deu uma gargalhada convulsiva, que durou alguns minutos.— Claro que sei — Disse
depois. — Está em Sarawak.— Não estás a dizer a
verdade, Eanes.— Sim, estou a dizer a
verdade. E ninguém sabe isso melhor do que eu... Ah! Ah! Eu não saber onde está Sandokan...
Ah! Ah! Mas tu estás louco.— Pois bem, diz-me
onde está?— Na cidade, já te
disse... Sim, a esta hora deve ter chegado e vai desenterrar o falso morto... E nós vamos rir, sim vamos rir por termos enganado aquele estúpido do Brooke... Ah! Ah!
O rajá e Lord Guillonk olharam um para o outro com espanto.— O falso morto! —
Exclamaram a uma voz. — Quem é esse falso morto?— Quem? Não sabes? É
Tremal-Naik, o tugue indiano.— Ah! Miserável! —
Exclamou o rajá. — Agora percebo tudo. Continua, Eanes, meu amigo. Quando é que
vão desenterrar o falso morto?— Esta mesma noite... E
amanhã vamos rir. Oh, sim, vamos rir. Ah! Ah! Que belo golpe! Ah! Ah!— E é Sandokan quem o
vai desenterrar?— Sim, Sandokan, e esta
mesma noite... Ah! Ah! Amanhã vamos divertir-nos... E Tremal-Naik estará contente... Oh! Sim, contente, muito contente!
— Chega assim — Disse o rajá. — Agora sabemos o que temos de fazer. Venha, milord.Abandonaram o quarto
e retiraram-se para o gabinete onde os esperava o capitão dos guardas, um belo indiano de estatura alta, de comprovada coragem, de uma rara perspicácia, antigo companheiro de armas do rajá.
— Kállooth — Disse o príncipe. — De quantos homens de confiança podes dispor?— Sessenta, todos
indianos — Respondeu o capitão.— Que estejam prontos
para partir dentro de dez minutos.— Está bem, rajá. E
depois?— Vais pôr quatro
sentinelas no quarto de Eanes e vais dizer-lhes
para o matarem como a um cão à primeira tentativa de fuga. Vai!O indiano cumprimentou
e saiu rapidamente.— Também quer vir,
milord? — Perguntou o rajá.— Nem era preciso
perguntar, Alteza — Respondeu Lord Guillonk. — Eu abomino o Tigre da Malásia.
— Mas é vosso sobrinho, milord — Disse o rajá, sorrindo.— Não o reconheço
como tal.— Está bem. Amanhã,
se a sorte nos sorrir, a pirataria malaia terá perdido para sempre os seus dois chefes. A nós dois, Tigre da Malásia: James Brooke desafia-te.
XNO CEMITÉRIO
Enquanto na casa do rajá aconteciam os factos agora mesmo narrados, Sandokan, ao qual se tinha juntado o bravo marata, duas horas depois do funeral de Tremal-Naik, aproximava-se a passos largos da cidade seguido por todo o seu terrível bando, armado até aos dentes e pronto para qualquer luta.
A noite estava belíssima. Milhões e milhões de estrelas brilhavam no céu como diamantes e a Lua deitava sobre os grandes bosques uma luz azulada de infinita doçura.Um silêncio quase
perfeito reinava por todo o lado, apenas rompido, de vez em quando, por uma brisa que vinha do mar e que dobrava, com
um leve sussurrar, as folhas das árvores.Sandokan com a
carabina debaixo do braço, de olhos bem abertos, de ouvidos atentos para captar o mínimo ruído que assinalasse a presença de algum inimigo, caminhava à frente de todos, seguido, alguns passos atrás, pelo marata.
Os piratas seguiam-no em fila indiana, com o dedo no gatilho da espingarda, pisando com precaução as folhas secas e os ramos mortos e olhando atentamente à direita e à esquerda para não caírem numa emboscada.Às dez, no momento em
que estava a começar o baile do rajá, os piratas chegavam ao limite
extremo da imensa floresta.A oriente brilhava, como
uma imensa tira de prata, o rio e perto das suas margens erguiam-se brancas as casas e as cabanas da cidade.No meio destas, o olhar
aguçado de Sandokan distinguiu a habitação do rajá, cujas janelas estavam iluminadas.
— Vês alguma coisa lá em baixo, Kammamuri? — Perguntou.— Sim, capitão. Vejo
janelas iluminadas.— Com que então,
dança-se em Sarawak.— É isso.— Está bem. Amanhã
James Brooke arrepender-se-á!— Acredito, capitão.— Vai para a frente e
guia-nos até ao cemitério. Mas tem
cuidado para te manteres longe da cidade.— Não tema, capitão.— Então, em frente.O bando deixou a
floresta e avançou através de uma vasta planície cultivada.Da cidade, quando o
vento soprava um pouco mais forte, vinham gritos confusos, mas nos campos não se via vivalma.
Apesar disso, o marata não apressou o passo e conduziu o bando para um novo bosque que dava a volta ao monte defendido pelo fortim.Ele sabia que o rajá era
extremamente desconfiado e que tinha espiões em redor da cidade, prevendo um ataque repentino dos piratas de Mompracem. Passados uns vinte
minutos, fazia sinal ao bando para parar.— O que há? —
Perguntou Sandokan, alcançando-o.— Estamos a chegar ao
cemitério — Disse o marata.— Onde é?— Olhe lá para baixo,
capitão, naquele prado.Sandokan olhou na
direcção indicada e viu o recinto. A Lua fazia clarear os cipós e cintilar
as cruzes de ferro dos sepulcros europeus.— Ouves alguma coisa?
— Perguntou Sandokan.— Nada — Respondeu o
marata — A não ser o vento que sussurra nos ramos das árvores.Sandokan deu um
assobio. Os piratas apressaram-se a alcançá-lo e a rodeá-lo.— Oiçam-me, Tigres de
Mompracem — Disse ele. — Talvez não aconteça
nada, mas é preciso desconfiar. James Brooke, eu sei, é um homem perspicaz desconfiado e que daria o seu reino para esmagar o Tigre da Malásia e os seus tigres.— Nós sabemos —
Responderam os piratas.— Tomemos, portanto,
precauções para não sermos incomodados no nosso trabalho. Tu, Sambigliong, vais levar
oito homens e vais dispô-los em volta do cemitério, a mil passos de distância. Ao primeiro sinal que ouvires, ou ao primeiro homem que vires, mandarás um dos teus homens avisar-me.— Está bem, capitão —
Respondeu o pirata.— Tu, Tanauduriam, vais
levar seis e vais dispô-los em volta do cemitério a quinhentos passos de nós. Virás avisar-me ao
primeiro sinal que ouvires ou ao primeiro homem que vires.— Assim farei, capitão.— E tu, Aier-Duk, vais
levar quatro homens e vais subir até meio aquela colina. Lá em cima há um fortim habitado e poderia descer alguém.— Estou pronto, Tigre da
Malásia.
— Vão, pois, e ao meu primeiro assobio venham todos para o cemitério.As três companhias
dividiram-se tomando três direcções diferentes. Os outros piratas, guiados pelo Tigre da Malásia e por Kammamuri, desceram até ao recinto.— Sabes exactamente
onde foi sepultado? — Perguntou Sandokan a Kammamuri.
— No meio do cemitério — Respondeu o marata.— Muito fundo?— Não sei. Eu e o
capitão Eanes estávamos no sopé do monte, quando os marinheiros o enterraram. Vamos encontrá-lo vivo?— Vivo sim, mas só
acordará amanhã depois do meio-dia.— Para onde vamos,
depois de o desenterrarmos?
— Vamos voltar para o bosque e assim que Eanes se juntar a nós iremos ter com Ada.— E depois?— Depois partiremos de
imediato. Se James Brooke se apercebe do golpe dar-nos-á caça em todo o território.— Mas estamos sem
parau, capitão.— Compramos um. Eu e
Eanes temos somas consideráveis.
Haviam chegado ao recinto. Sandokan em primeiro lugar, o marata e os piratas a seguir, entraram no cemitério.— Ao que parece,
estamos sós — Disse Sandokan. — Em frente.Dirigiram-se para o
centro do cemitério e pararam por cima de uma fossa há pouco revolvida.
— Deve estar aqui — Disse o marata com viva emoção. — Pobre patrão!Sandokan tirou a
cimitarra e levantou com precaução a terra. Kammamuri e os piratas, com os seus kriss, imitaram-no.— Estava fechado num
caixão ou numa rede? — Perguntou Sandokan.— Numa rede —
Respondeu Kammamuri.
— Escavem devagar; podem feri-lo.Escavaram com
prudência, retiraram a terra com as mãos e chegaram a dois pés de profundidade; nesse momento a ponta de um kriss encontrou um corpo um tanto duro.— Encontrámos — Disse
um pirata, retirando prontamente o braço.
— Encontraste o cadáver? — Perguntou Sandokan.— Sim — Respondeu o
interpelado.— Tira a terra.O pirata enfiou os
braços na fossa e fez voar terra à direita e à esquerda. Logo apareceu a rede que envolvia Tremal-Naik.— Tenta levantá-la —
Disse Sandokan.
O pirata agarrou a rede e, reunindo todas as suas forças, começou a puxar. A pouco a pouco a terra levantou-se, depois dividiu-se e o falso morto apareceu.— Meu patrão —
Murmurou o marata com a voz sufocada pela alegria.— Deponham-no aqui —
Disse Sandokan.Tremal-Naik foi colocado
perto da fossa. A rede
estava perfeitamente imóvel e húmida.— Vejamos — Disse
Sandokan.Empunhou o kriss e com
toda a cautela rompeu o tecido grosso em todo o comprimento, descobrindo Tremal-Naik.O indiano tinha a
aparência de um morto. Os seus músculos estavam rígidos, a sua pele reluzente e de um tom acinzentado mais do
que bronzeado, os olhos virados que deixavam ver apenas o branco e os lábios abertos e manchados por uma baba sanguinolenta. Quem o visse, diria que aquele homem tinha sido morto por um poderoso veneno.— Meu patrão! —
Repetiu Kammamuri, curvando-se sobre ele. — É mesmo verdade que ele não está morto?
— Garanto — Respondeu Sandokan.O marata apoiou uma
mão sobre o peito de Tremal-Naik.— O coração dele não
bate — Disse, com terror.— Mas não está morto,
já te disse.— Não, podemos
ressuscitá-lo agora?— É impossível.— E amanhã...O marata não acabou a
pergunta. Na planície
ecoou de repente um assobio agudo: o assobio de alarme.Sandokan que se tinha
quase ajoelhado ao lado de Tremal-Naik, pôs-se de pé de um salto com a agilidade de um tigre. O seu olhar percorreu de uma só vez a pradaria.— Aproxima-se um
homem — Disse. — Será que estamos ameaçados?
Um homem, um pirata, aproximava-se do recinto com a rapidez de um veado. Na mão direita tinha uma cimitarra desembainhada que a Lua fazia cintilar como se fosse de prata.Em breves instantes,
depois de ter saltado, com um só salto, a paliçada, chegou perto de Sandokan.— És tu, Sambigliong? —
Perguntou o Tigre da
Malásia, franzindo a testa.— Sim, meu capitão —
Disse o pirata com a voz quebrada pela longa corrida.— Que novidades me
trazes?— Que vamos ser
atacados.— Por quem?— Nós.Sandokan deu um salto
em frente. Tinha-se modificado de repente.
Os seus olhos lançavam chamas, os lábios, arreganhados, mostravam dentes brancos como os de um carnívoro. O Tigre da Malásia estava prestes a acordar.— Nós atacados! —
Repetiu ele, apertando com frenesim a sua terrível cimitarra.— Sim, capitão. Um
bando de homens armados saiu da cidade e
dirige-se para este local — Disse Sambigliong.— Quantos homens são?— Pelo menos sessenta.— E dirigem-se para
aqui?— Sim, capitão.— O que é que
aconteceu? E Eanes? Com mil trovões! Terá sido descoberto? Tem cuidado, James Brooke, tem cuidado!
— O que devemos fazer? — Perguntou Sambigliong.— Antes de mais, reunir
os nossos homens.Encostou aos lábios um
assobio cujo som fez reunir todos os piratas em torno de Sandokan.— Somos cinquenta e
seis — Disse este — Mas todos corajosos; cem homens não nos fazem medo.
— Nem duzentos — Disse Sambigliong, desembainhando a cimitarra. — Quando o Tigre da Malásia der o comando, caímos sobre Sarawak e deitamos-Ihe fogo.— Não peço tanto, por
agora — Disse Sandokan. — Oiçam.— Fale, Tigre da
Malásia.— Tu, Sambigliong,
pega em oito homens e
esconde-te atrás daquelas árvores. Tu, Tanauduriam, pega noutros tantos homens e esconde-te atrás daquele outro grupo de plantas, mesmo em frente de Sambigliong.— Bem — Disseram os
dois chefes.— Tu, Aier-Duk, pegas
em três homens e colocas-te no meio do cemitério.— Está bem.
— Mas finge que estás a cavar uma fossa.— Porquê?— Para deixar que os
guardas se aproximem sem temor. Eu escondo-me com os outros atrás do muro e quando chegar a altura certa darei o sinal de ataque.— Que vai ser? —
Perguntou Sambigliong.— Um tiro de
espingarda. Dado o sinal, vocês descarregam as
carabinas sobre o inimigo, depois atacam-no com as cimitarras.— Belo plano! —
Exclamou Tanauduriam. — Vamos apanhá-los no meio.— Aos lugares —
Comandou o Tigre.Sambigliong com os
seus homens foi emboscar-se nos arbustos da direita; Tanauduriam com os outros no da esquerda. O
Tigre da Malásia ajoelhou-se atrás do muro circundado pelos outros e Aier-Duk com os companheiros pôs-se perto de Tremal-Naik fingindo escavar a terra.Estava na hora. Uma
dupla fila de indianos aparecia então na pradaria, precedida por um homem vestido de branco. Avançavam em silêncio, com as
espingardas na mão, prontos para atacar.— Kammamuri — Disse
Sandokan que espiava o bando inimigo — Estás a ver aquele homem vestido de branco?— Sim, capitão.— Sabes dizer-me quem
é?O marata franziu as
sobrancelhas e olhou com atenção.— Capitão — Disse com
alguma emoção —
Aposto que aquele homem é o rajá Brooke.— Ele... ele... —
Exclamou o Tigre com voz de ódio. — Ele vem desafiar-me! Rajá Brooke, estás perdido!— Quereis matá-lo?— O meu primeiro tiro
de espingarda será dele.— Não o fará, capitão.O Tigre da Malásia
virou-se para Kammamuri mostrando os dentes.
— Quem mo impedirá? — Perguntou com ira.— Capitão, Eanes foi
talvez feito prisioneiro.— É verdade.— Se nós
capturássemos o rajá, não seria melhor?— Compreendo-te. Tu
querias fazer uma troca.— Sim, capitão.— A ideia é excelente,
Kammamuri. Mas eu odeio aquele homem que
fez tanto mal aos piratas malaios.— Eanes vale mais do
que o rajá.— Tens razão, marata.
Sim, Eanes está preso, diz-me o meu coração.— Então? Quem é que
se vai encarregar de o prender?— Nós os dois. Calado
agora e atento ao sinal.Os indianos tinham
chegado a quatrocentos metros do cemitério.
Temendo que Aier-Duk, que continuava a escavar imitado por três dos seus companheiros, os descobrisse, tinham-se atirado para o chão e avançavam rastejando.— Mais dez passos —
Murmurou Sandokan.Mas os indianos em vez
de continuarem a avançar, a um sinal do rajá tinham parado, virado o olhar para os
arbustos que rodeavam a pradaria.Suspeitavam, sem
dúvida, de uma emboscada.Passados alguns
minutos afastaram-se uns dos outros formando uma espécie de semicírculo e retomaram, mas com maior prudência, a marcha em frente.A uma certa altura
Sandokan, que estava
ajoelhado atrás do muro, levantou-se.Apontou a carabina, fez
mira durante alguns segundos, depois apertou o gatilho. Um tiro ribombou perturbando o profundo silêncio que reinava no cemitério. Um instante depois, um indiano, o chefe de fila, caía com um tiro na testa.
XI
O COMBATEA detonação não tinha
ainda cessado quando gritos assustadores ecoaram na pradaria, à direita, à esquerda e em frente dos indianos.Logo depois, dez,
quinze, vinte tiros de espingarda partiram dos arbustos com uma enorme rapidez. Quinze ou dezasseis indianos, em parte mortos, em parte feridos, rolavam
entre as ervas, antes ainda de terem podido usar as armas.— Em frente, meus
tigres! — Gritou o Tigre da Malásia, passando por cima do muro, seguido por Kammamuri, por Aier-Duk e pelos outros. — Em cima desses cães!Sambigliong e
Tanauduriam saíram por detrás dos arbustos com a cimitarra em punho,
trazendo atrás deles os seus homens.— Viva o Tigre da
Malásia! — Gritaram uns.— Viva Sandokan! Viva
Mompracem! — Gritaram outros.Os indianos, ao verem
todos aqueles homens atacá-los, reuniram-se rapidamente disparando ao acaso as espingardas. Três ou quatro piratas caíram ensanguentando o solo.
— Em frente, Tigres! — Repetiu o Tigre.Os piratas encorajados
pelo seu chefe lançaram-se furiosamente sobre as fileiras de indianos, dando golpes de sabre sem dó nem piedade a quantos se encontravam na sua frente.O embate foi tão terrível
que os indianos recuaram confusamente uns sobre os outros, formando uma massa
compacta de corpos humanos.O Tigre da Malásia
penetrou entre eles como uma cunha que entra no tronco de uma árvore e dividiu-os em dois.Dois, cinco, dez piratas
seguiram-no apanhando de costas os indianos, que tendo já perdido qualquer esperança de vencer, se lançavam à
direita e à esquerda procurando salvar-se.Dez ou doze
mantinham-se no lugar e no meio deles estava James Brooke.Sandokan assaltou
furiosamente aquele grupo, decidido a destruí-lo desde que conseguisse ter nas mãos o seu inimigo mortal.Kammamuri, Aier-Duk e
Tanauduriam tinham-no seguido com muitos
outros, enquanto Sambigliong dava caça aos fugitivos para os impedir de se reunirem e de voltarem à carga.— Renda-se, James
Brooke — Gritou Sandokan.O rajá respondeu com
um tiro de pistola cuja bala fez cair por terra um pirata.— Em frente, Tigres! —
Gritou Sandokan,
derrubando um indiano que o tirava de mira.O grupo num instante,
apesar da sua desesperada resistência, foi aberto pelas cimitarras e pelos kríss envenenados dos Tigres de Mompracem. Kam-mamuri e Tanauduriam lançaram-se sobre o rajá impedindo-o de seguir os seus fiéis que fugiam pela pradaria, perseguidos por Aier-Duk
e pelos seus companheiros.— Renda-se! — Gritou-
lhe Kammamuri, arrancando-lhe o sabre e as pistolas.— Rendo-me —
Respondeu James Brooke, que compreendia que qualquer resistência era inútil.Sandokan avançou com
a cimitarra em punho.
— James Brooke — Disse em tom de desafio. — És meu.O rajá, que tinha sido
deitado por terra pelo punho de ferro de Tanauduriam, levantou-se olhando para o chefe dos piratas, que nunca tinha visto.— Quem és tu? —
Perguntou com a voz sufocada pela ira.— Olha-me na cara —
Disse Sandokan.
— Serás tu...— Sou Sandokan, ou
melhor, o Tigre da Malásia.— Tinha suspeitado. Pois
bem, o que quer de James Brooke?— Uma resposta, antes
de mais.Um sorriso irónico
aflorou aos lábios do rajá.— E eu vou responder?
— Disse.
— Sim, nem que eu tivesse de usar o fogo para vos fazer falar. James Brooke, odeio-te sabes, mas odeio-te como sabe odiar o Tigre. Tu fizeste demasiado mal aos piratas da Malásia, e eu poderia vingar aqueles que tu assassinaste sem piedade.— E se calhar não tinha
direito de os exterminar?
— E também eu tinha o direito de exterminar os homens de raça branca que me tinham mordido o coração. Mas deixemos os direitos e responda à minha pergunta.— Fala.— O que fez de Eanes?— Eanes! — Exclamou o
rajá. — Esse indivíduo interessa-lhe muito?— Bastante, James
Brooke.
— Não deixa de ter razão. Aquele branco possui uma coragem extraordinária e pode ser-lhe imensamente útil.— É vosso prisioneiro?— Sim.— Já suspeitava. E
quando?— Esta noite.— De que maneira?— É demasiado curioso,
senhor pirata.— Então não me quer
dizer?
— Pelo contrário, vou dizer.— Pois então fale.— Conhece Lord
Guillonk?Sandokan, ao ouvir
aquele nome, estremeceu. Uma profunda ruga desenhou-se na sua ampla testa, mas depressa desapareceu.— Sim — Disse com voz
surda.
— Se não me engano, Lord Guillonk é seu tio.Sandokan não
respondeu.— Foi o seu tio que
reconheceu Eanes e o mandou prender.— Ele! — Exclamou
Sandokan. — Outra vez ele! E onde se encontra Eanes?— Na minha residência,
solidamente amarrado e bem guardado.— O que fará com ele?
— Não sei, mas vou pensar nisso.— Vai pensar! —
Exclamou o Tigre da Malásia sorrindo, mas com um riso que fazia tremer. — E não pensa, James Brooke, que está na minha mão? E não pensa, James Brooke, que o odeio? E não pensa que amanhã de manhã poderá já não ser o rajá de Sarawak?
O rajá, apesar de possuir uma coragem mais do que extraordinária, tinha ficado pálido ao ouvir aquelas palavras.— Querem matar-me? —
Perguntou ele com um tom de voz que já não era calmo.— Se não aceitar a
troca, fá-lo-ei — Disse Sandokan friamente.— Uma troca? E qual
seria?
— Se os seus homens me restituírem Eanes, eu dar-lhe-ei a liberdade.— Aquele homem
interessa-vos muito então?— Bastante.— Porquê?— Porque sempre me
amou como se eu fosse um irmão. Aceitais a proposta?— Aceito — Disse o rajá,
após um momento de reflexão.
— Deve deixar que o amarre e o amordace.— Porquê?— Os seus homens
poderiam regressar aqui em maior número e dar-nos batalha.— Quer levar-me daqui?— Para um lugar seguro.— Faça aquilo que achar
melhor.Sandokan fez um gesto
a Kammamuri. De imediato quatro macas, formadas por ramos e
carregadas por robustos piratas, avançaram. A primeira estava livre, a segunda ocupada por Tremal-Naik e as outras duas por daiaques da companhia de Sambigliong, grave-mente feridos.— Amordaça e ata o rajá
— Disse Sandokan ao marata.— Está bem, capitão.Com cordas sólidas
amarrou o rajá que não
opôs resistência, amordaçou-o com um lenço de seda, depois deitou-o na maca vazia.— Para onde vamos,
capitão? — Perguntou, ao terminar.— Voltámos para o
acampamento — Respondeu Sandokan.Encostou o pequeno
assobio de prata aos lábios e tirou dele três notas agudas.
Os piratas que perseguiam os indianos voltaram de imediato para trás, com Sambigliong e Aier-Duk.Sandokan fez
rapidamente a chamada. Faltavam onze homens.— Morreram — Disse
Tanauduriam.— Vamos partir —
Comandou Sandokan, sufocando um suspiro.A companhia pôs-se
rapidamente a caminho
metendo-se pelos bosques, descrevendo um semicírculo em torno da colina dominada pelo fortim. Dez homens guiados por Sambigliong e por Tanauduriam abriam caminho com as carabinas debaixo das axilas, prontos para repelir qualquer ataque; a seguir vinham as macas dos feridos, a do rajá e a de Tremal-Naik.
Aier-Duk, com os outros, fechava a marcha.A viagem foi rápida. Às
5 da manhã, sem que tivessem encontrado um indiano ou um daiaque, chegavam à aldeia abandonada, defendida por sólidas paliçadas e por terraços.Sandokan enviou alguns
homens para a direita, para a esquerda, para a frente e para as traseiras da aldeia de modo a não
ser repentinamente atacado pelas tropas de Sarawak; depois mandou desamarrar o rajá, que não tinha tentado pronunciar uma só palavra durante a viagem.— Se não se importar,
escreva, James Brooke — Disse-lhe, apresentando-lhe uma folha de papel e um lápis.
— O que devo escrever? — Perguntou o rajá que parecia bastante calmo.— Que é prisioneiro do
Tigre da Malásia e que para se salvar é preciso pôr de imediato em liberdade Eanes, ou melhor Lord Welker.O rajá pegou no papel,
pô-lo sobre os joelhos e preparou-se para escrever.— Um momento — Disse
Sandokan.
— Há mais alguma coisa? — Perguntou o inglês levantando o sobrolho.— Acrescente que se
dentro de quatro horas Eanes não estiver aqui, enforco-o na maior árvore da floresta.— Está bem.— Acrescente mais uma
coisa — Disse Sandokan.— E é?— Que não tentem
libertá-lo pela força, já
que à primeira companhia armada que eu avistar enforco-o na mesma.— Pareceis muito
interessado em ver-me enforcado — Disse o rajá com ironia.— Não o nego, James
Brooke — Respondeu Sandokan. — Escreva.O rajá pegou no lápis e
escreveu a carta que depois passou a Sandokan.
— Está bem — Respondeu este, depois de a ler.— Sambigliong!O pirata acorreu.— Vais levar esta carta
a Sarawak — Disse o Tigre. — Entrega-a a Lord James Guillonk.— Devo levar as minhas
armas?— Nem o teu kriss. Vai e
volta depressa.— Correrei como um
cavalo, capitão.
O pirata escondeu a carta debaixo do cinto, atirou ao chão a cimitarra, o machado e o kriss e partiu a correr.— Aier-Duk — Disse
Sandokan, virando-se para o pirata que estava perto dele. — Vais vigiar este inglês. Atenção porque se ele foge, mando que te enforquem.
— Confie em mim, capitão — Respondeu o tigre.Sandokan armou a sua
carabina, chamou Kammamuri que se tinha acocorado perto do patrão que continuava adormecido e deixou a aldeia dirigindo-se para uma elevação de onde, ao longe, se avistava a cidade de Sarawak.— Vamos salvar o
capitão Eanes? —
Perguntou o marata que o seguia.— Sim — Respondeu
Sandokan. — Dentro de duas horas estará aqui.— Tem a certeza?— Tenho. O rajá vale o
mesmo que Eanes.— Mas tenha cuidado,
capitão — Disse o marata. — Os indianos, e em Sarawak há muitos, são capazes de atravessar um bosque
sem fazer o mais pequeno ruído.— Não temas,
Kammamuri. Os meus piratas são mais astutos do que os indianos e nenhum inimigo se aproximará da nossa aldeia sem ser descoberto.— O rajá vai perseguir-
nos depois?— Certamente,
Kammamuri. Assim que regressar a Sarawak
reunirá os seus guardas e os daiaques e lançar-se-á na nossa peugada.— Quer dizer que vamos
ter uma segunda batalha.— Não, porque
partiremos de imediato.— Para onde?— Para a baía onde se
encontra Ada Corishant.— E depois?— Compraremos um
parau e abandonaremos
para sempre estas costas, já te disse.— E para onde levará o
meu patrão?— Para onde ele quiser
ir.Tinham então chegado
ao topo da elevação, que se erguia vários metros acima das árvores mais altas do mato. Sandokan encostou as mãos aos olhos para os proteger dos raios solares e olhou
atentamente o território circundante.A dez milhas ficava
Sarawak. O rio que passava perto sobressaía claramente entre o verde das plantações e dos bosques, e parecia uma grande fita de prata.— Olha lá em baixo —
Disse Sandokan, apontando ao marata um homem que corria como um veado na direcção da cidade.
— Sambigliong! — Exclamou Kammamuri. — Se mantiver aquele trote, estará de volta daqui a duas horas.— Assim espero.Sentou-se debaixo de
uma árvore, acendeu um cigarro e pôs se a fumar, olhando atentamente a cidade. Kammamuri imitou-o.Decorreu uma hora que
pareceu ter um século sem que nada
acontecesse. Depois passou uma segunda, mais comprida do que a primeira para os dois piratas. Finalmente, cerca das 10, um grupo de pessoas surgiu próximo de um pequeno bosque de castanheiros-da-índia.Sandokan pôs-se de pé
num salto. No seu rosto, geralmente tão impassível, estava estampada uma viva
ansiedade. Aquele homem, aquele pirata sanguinário, percebia-se, amava o seu fiel companheiro, o corajoso Eanes.— Onde está? Onde
está? — Ouviu-o murmurar Kammamuri, com voz vacilante.— Vejo uma veste
branca no meio da companhia. Olhe!— Sim, sim estou a vê-
la! — Exclamou
Sandokan com uma alegria indescritível. — É ele, o meu bom Eanes. Depressa, meu irmão, depressa!Ficou ali imóvel, com os
olhos fixos naquele trajo branco, depois ao ver a companhia desaparecer sob a grande floresta lançou-se precipitadamente da ele-vação, correndo na direcção do campo.
Dois piratas que guardavam o bosque chegavam nesse mesmo instante.— Capitão! — Gritaram.
— Eles vêm com o senhor Eanes.— Quantos são? —
Perguntou Sandokan, que a custo se dominava.— Doze com
Sambigliong.— Armados?— Sem armas.
Sandokan encostou o assobio aos lábios e tirou três notas agudas. Em poucos instantes todos os piratas o rodearam.— Preparem as armas —
Disse o Tigre.— Senhor! — Gritou
James Brooke, que estava sentado aos pés de uma árvore, atentamente guardado por Aier-Duk. — Quer assassinar os meus homens?
O Tigre virou-se para o inglês.— James Brooke — Disse
com voz grave. — O Tigre da Malásia mantém a sua palavra. Dentro de cinco minutos será livre.— Quem vive? — Gritou
nesse instante uma sentinela colocada a duzentos metros das trincheiras.— Amigos — Respondeu
a voz bem conhecida de
Sambigliong. — Baixem a espingarda.
XIIA RESSURREIÇÃO DE
TREMAL-NAIKA companhia saía do
denso bosque. Era composta por Sambigliong, por um oficial da guarda do rajá, por dez indianos desarmados e por Eanes que não tinha nem mãos nem pernas amarradas.
Sandokan, ao avistar o amigo, não foi capaz de se dominar. Correu de encontro a ele e afastando os indianos, apertou-o contra o peito e aquele homem era o Tigre da Malásia, era o feroz chefe dos piratas de Mompracem que desde há tantos anos ensanguentavam as vagas do mar malaio.
— Eanes! Meu irmão! — Exclamou ele com a voz sufocada pela alegria.— Sandokan, meu
amigo, finalmente revejo-te! — Gritou o bom português que não estava menos comovido. — Por Júpiter! Pensei que não voltaria a abraçar-te!— Nunca mais te
deixaremos, meu amigo, juro.— Acredito em ti, meu
irmão. Foi uma bela ideia
prender o rajá. Sempre disse que tu eras um grande homem. E Tremal-Naik? Onde está aquele pobre indiano?— A poucos passos de
nós.— Vivo?— Vivo, mas ainda
adormecido.— E a noiva?— Ainda está louca, mas
voltará a si.— Senhor — Disse nesse
instante uma voz.
Sandokan e Eanes viraram-se. James Brooke estava na sua frente, calmo mas um pouco pálido e com os braços cruzados sobre o peito.— Sois livre, James
Brooke — Disse Sandokan. — O Tigre da Malásia mantém a sua palavra.O rajá fez uma ligeira
vénia e afastou-se alguns passos, voltando depois para trás bruscamente:
— Tigre da Malásia. — Disse. — Quando voltaremos a ver-nos?— Queres uma desforra?
— Perguntou Sandokan com ironia.— James Brooke não
perdoa!Sandokan olhou-o
durante alguns instantes em silêncio, como se estivesse surpreendido por aquele homem ousar desafiá-lo, depois estendendo o braço na
direcção do mar, disse num tom que fazia tremer:— Lá em baixo existe
uma ilha: Mompracem. O mar que a circunda ainda está vermelho de sangue e ainda está cheio de navios destroçados. Quando se aproximar daquelas costas ouvirá o rugido do Tigre e os seus tigres irão ao seu encontro. Mas não se esqueça, James Brooke,
que o Tigre e os seus tigres têm sede de sangue.— Irei visitá-lo.— Quando?— No ano que vem.Um sorriso aflorou aos
lábios do pirata.— Será demasiado tarde
— Disse.— Porquê? — Perguntou
o rajá com surpresa.— Porque já não será
rajá de Sarawak. Porque a revolução terá
rebentado no seu Estado e o sobrinho do sultão Muda-Hassin estará sentado no seu lugar.O rajá ao ouvir aquelas
palavras empalideceu e recuou.— Porquê inventar estas
coisas? — Perguntou com um tom de voz tudo menos calmo.— Não invento nada,
milord — Disse Sandokan.
— Sabe de alguma coisa?— É provável.— Se lhe pedisse que se
explicasse...— Não explico mais
nada — Interrompeu Sandokan.— Não, me resta mais
do que agradecer-lhe pelo aviso.Fez novamente uma
ligeira vénia, alcançou os seus guardas e afastou-
se na direcção de Sarawak.Sandokan de braços
cruzados, com o olhar taciturno, seguia-o com os olhos. Quando deixou de o ver, saiu-lhe do peito um suspiro.«Aquele homem vai-me
trazer má sorte», murmurou.— O que tens,
Sandokan? — Perguntou-lhe Eanes, aproximando-
se dele. — Pareces-me inquieto.— Tenho um triste
pressentimento, irmão — Disse o pirata.— E qual é?— Entre nós e o rajá não
está tudo acabado.— Temes que nos
ataque?— É o coração que mo
diz.— Não acredites nos
pressentimentos, meu irmão. Dentro de dois ou
três dias teremos abandonado estas costas e nada mais teremos a temer da parte do rajá. Onde vamos agora?— Para a baía e já. Aqui
não me sinto seguro.— Então, partamos.
Mas... E Tremal-Naik?— Não acorda antes do
meio-dia.Sandokan deu o sinal da
partida e o grupo com os feridos e com Tremal-Naik, apesar da
rapidíssima marcha da manhã, pôs-se novamente a caminho, seguindo um pequeno trilho aberto, não se sabe quantos anos antes, pelos habitantes da floresta.Sandokan e Eanes com
dez dos mais corajosos tigres abriam o caminho com as carabinas na mão e atrás seguiam as macas e todos os outros, dois a dois, com os olhos
postos nos lados do trilho.Tinham percorrido cerca
de meia milha, quando Aier-Duk, que ia um pouco mais à frente para explorar o caminho, parava de repente empunhando a espin-garda. Eanes e Sandokan apressaram-se a alcançá-lo.— Não se movam —
Disse o daiaque.
— O que viste? — Perguntou Sandokan.— Uma sombra
atravessar rapidamente aqueles arbustos lá ao fundo.— Um homem ou um
animal?— Pareceu-me um
homem.— Podia ser um pobre
daiaque — Disse Eanes.— E também um espião
do rajá — Disse Sandokan.
— Achas?— Tenho quase a
certeza.— Aier-Duk, leva quatro
homens contigo e bate o bosque. Entretanto, nós vamos prosseguir.O daiaque chamou
quatro homens e enfiou-se pela folhagem densa rastejando por entre as raízes, os ramos de árvore e os arbustos.— E nós, em frente —
Disse Sandokan.
A marcha foi retomada através de duas cerradas fileiras de sontar, espécie de palmeiras que dão, fazendo uma incisão no tronco, um sumo açucarado bastante agradável e de cujas folhas se serviam antigamente os povos da Malásia para escrever.Pouco depois o grupo
era alcançado por Aier-Duk e pelos seus companheiros. Tinham
inspeccionando a floresta, mas nada encontraram, a não ser pegadas recentes de humanos.— Eram numerosas? —
Perguntou Sandokan que ainda estava bastante inquieto.— Quatro — Respondeu
o daiaque.— Eram pegadas de pés
descalços ou calçados?— De pés descalços.
— Talvez esses dois homens fossem daiaques. Depressa, tigres, aqui não estamos muito seguros.Pela terceira vez o
grupo voltou a pôr-se a caminho e depois de três quartos de hora chegava às margens de um respeitável curso de água que desaguava numa ampla baía semicircular.
Sandokan mostrou ao português um ilhéu que não tinha mais de trezentos e cinquenta metros de comprimento, sombreado por belíssimos grupos de árvores sagu, de durion, de mangostões e de arengas sacaríferas; defendido, na direcção da ponta meridional, por um velho mas ainda sólido fortim daiaque, construído com grandes
traves e paus de teca, madeira dura como o ferro e que resiste às balas de um canhão.— É ali que repousa a
Virgem do Pagode? — Perguntou Eanes.— Sim, dentro daquele
fortim — Respondeu Sandokan.— Não podias ter
encontrado melhor sítio para ela. A baía é muito bonita e o ilhéu está bem defendido. Se James
Brooke nos vier atacar, terá um osso duro de roer.— O mar está a
quinhentos passos do ilhéu, Eanes — Disse Sandokan.— E o que é que isso
quer dizer?— Que um navio pode
bombardear o fortim.— Nós defendemo-nos.— Não temos canhões.— Mas o nossos homens
são corajosos.
— É verdade, mas são poucos e...— O que tens?— Calado! Ouviste?— Eu? Nada, Sandokan.— Pareceu-me que um
ramo se tinha partido.— Onde?— No meio daqueles
arbustos.— Será que há mesmo
espiões? Começo a ficar inquieto, Sandokan.— E eu também.
Depressa: suspiro pelo
momento de chegar ao ilhéu, Aier-Duk!O daiaque aproximou-se
do Tigre.— Escolhe oito homens
e acampa neste lugar — disse Sandokan. — Se vires homens rondar estas paragens avisa-me.— Contai comigo,
capitão — Respondeu o daiaque. — Ninguém se aproximará da baía sem a minha autorização.
Sandokan, Eanes e os outros desceram para a baía, cujas margens estavam cobertas por densas folhagens e chegaram a uma pequena enseada perto da qual estava escondida, debaixo de um monte de canas e de ramos de louro, uma chalupa.O Tigre deitou em redor
um rápido olhar, mas não viu ninguém. Uma viva
inquietude espelhou-se-lhe no rosto.— Um dos meus dois
homens deveria estar de guarda à chalupa — Disse.— Devem estar os dois
no fortim — Disse Eanes.— E deixaram aqui a
chalupa! Eanes... O meu coração bate depressa... Temo uma desgraça.— Qual?— Que tenham raptado
Ada.
— Que golpe terrível se fosse verdade!— Cala-te!— Outro ruído?— Sim, capitão Eanes —
Confirmaram os piratas empunhando as armas.Viam agitar-se os ramos
de um grande arbusto a cem passos da praia.— Quem está aí? —
Gritou Sandokan.— Mompracem —
Respondeu uma voz.
Pouco depois um pirata emergia dos arbustos. Estava ofegante e suado como se tivesse feito uma grande corrida e segurava uma espingarda.— Viva o Tigre! —
Exclamou ele, ao avistar o chefe.— De onde vens? —
Perguntou Sandokan.— Da floresta, capitão.— Onde está a Virgem'?— No fortim.
— Tens a certeza?— Deixei-a há duas
horas à guarda de Koty.Sandokan respirou
livremente.— Começava a temer —
Disse. — Como está ela?— Muito bem.— O que fazia?— Quando a deixei
estava a dormir.— De onde vens?— Dos bosques.— Viste alguém?
— Eu não, mas Koty esta manhã viu um homem passar ao longo da margem e olhar o fortim com curiosidade. Ao ver que estava a ser observado apressou-se a desaparecer.— E viste esse homem?— Procurei-o, mas não
consegui descobri-lo.— Será que era um
espião do rajá? — Perguntou Eanes.
— É provável — Respondeu Sandokan, que parecia preocupado.— Será que vêm atacar-
nos aqui?— Quem pode dizê-lo?— O que é que contas
fazer?— Deixar este lugar o
mais depressa possível. Vamos embarcar.Os dois chefes e os seus
homens subiram para a chalupa, atravessaram o braço de mar que tinha
duzentos ou trezentos metros de largura e desembarcaram junto da fortaleza onde os esperava Koty.— A Virgem ainda está a
dormir? — Perguntou-lhe Sandokan.— Sim, capitão.— Aconteceu alguma
coisa?— Não.— Vamos vê-la — Disse
Eanes.
Sandokan apontou-lhe Tremal-Naik que tinha sido deposto sobre uma cama de ervas e de folhas verdes.— Faltam poucos
minutos para o meio-dia — Disse. — Espera que ele acorde.
Ordenou aos seus homens que entrassem no fortim e sentou-se ao lado do indiano que não dava sinal de vida. Eanes
acendeu um cigarro e deitou-se ao pé dele.— Ainda falta muito
para ele abrir os olhos? — Perguntou, depois de fumar um pouco, a Sandokan que olhava com atenção o rosto do indiano.— Não, Eanes. Veja que
a pele dele recupera pouco a pouco a cor. É sinal de que o sangue volta a circular.
— Vais deixá-lo ver Ada de imediato?— De imediato não, mas
antes desta noite sim.— A pobre louca irá
reconhecê-lo?— Talvez.— E se não o
reconhecer? Se ela não recuperar a razão?— Vai recuperar.— Duvido, meu irmão.— Pois bem, faremos
uma experiência.— E qual será?
— A seu tempo to direi.— E porquê...— Cala-te...Uma débil respiração
tinha repentinamente levantado o amplo peito de Tremal-Naik.— Está a acordar —
Murmurou Eanes.Sandokan curvou-se
sobre o indiano e pousou-lhe uma mão na testa.— Está a acordar —
Disse.
— Já?— Já.— Sem nenhuma
injecção?— Não é preciso, Eanes.Uma segunda
respiração, mais forte do que a primeira, levantou o peito de Tremal-Naik e os seus lábios mexeram-se. Depois as mãos, que estavam abertas, fecharam-se lentamente, as pernas também se dobraram lentamente e,
por fim, os olhos abriram-se dilatando-se muito, parando em Sandokan.Ficou assim alguns
instantes, como se estivesse surpreendido por ainda estar vivo; depois com um esforço violento sentou-se, exclamando:— Vivo! Ainda vivo!— E livre — Disse Eanes.
O indiano olhou para o português. Reconheceu-o de imediato.— O senhor! O senhor!
— Exclamou. — Mas o que é que aconteceu? Como é que me encontro aqui? Dormi?— Por Deus! —
Exclamou Eanes, rindo. — Não se lembra daquela pílula que lhe dei no fortim?— Ah! Sim, sim... Agora
lembro-me... Tinha vindo
ao meu encontro... Senhor, senhor, como agradeço-lhe ter-me libertado!Assim falando, Tremal-
Naik tinha-se precipitado aos pés de Eanes. Este levantou-o e apertou-o.— Como sois bom,
senhor! — Exclamou o indiano que parecia ter de imediato recuperado as forças e estava fora dele pela alegria. — Livre! Por fim estou livre!
Agradeço-vos, senhor, agradeço-vos!— Agradecei a este
homem, Tremal-Naik — Disse Eanes, apontando-lhe Sandokan que com os braços cruzados sobre o peito, olhava o indiano comovidamente. — É a este homem, ao Tigre da Malásia, que deveis a vossa liberdade.Tremal-Naik precipitou-
se para Sandokan que o
acolheu nos seus braços, dizendo:— És meu amigo!Nesse instante um grito
de alegria soou atrás deles. Kammamuri, que tinha acabado de sair do forte, corria com a rapidez de um veado, gritando:— Meu bom patrão! Meu
patrão!Tremal-Naik correu para
o fiel marata que parecia ter ficado louco. Os dois
indianos abraçaram-se várias vezes sem serem capazes de trocar uma única palavra.— Kammamuri, meu
bom Kammamuri! — Exclamou finalmente Tremal-Naik. — Pensava que não voltaria a ver-te nesta terra. Mas como é que estás aqui? Então, os tugues não te mataram?— Não, patrão, não. Eu
fugi para te procurar.
— Para me procurar! Mas tu sabias que eu estava neste lugar?— Sim, patrão, tinha
ficado a saber. Ah! Patrão! Quanto chorei por ti depois daquela noite fatal. Aperto-te nos meus braços, sinto-te, mas não consigo acreditar que tu sejas ainda vivo e em liberdade. Não nos vamos deixar mais, pois não?
— Não, Kammamuri, nunca mais.— Vamos viver com o
senhor Eanes e o Tigre da Malásia. Que homens, patrão, que homens! Se soubesses tudo que fizeram por ti, se soubesses quantas lutas...— Alto aí, Kammamuri
— Disse Eanes. — Outros homens teriam feito aquilo que nós fizemos.
— Não é verdade, patrão. Nenhum homem poderá fazer o que fizeram o Tigre da Malásia e o senhor Eanes.— Mas porquê todo esse
interesse por mim? — Perguntou Tremal-Naik. — Mas eu nunca os vi, senhores.— Porque um dia foste
noivo de Ada Corishant — Disse Sandokan — E Ada Corishant era prima
da minha defunta mulher.Ao ouvir esse nome, o
indiano tinha dado um passo atrás vacilando à direita e à esquerda, como se tivesse recebido uma punhalada em pleno peito. Depois cobriu o rosto com as mãos, murmurando com voz atormentada:— Ada! Oh minha
adorada Ada!
Um soluço levantou o seu peito e duas lágrimas rolaram pelas faces bronzeadas.Sandokan aproximou-se
dele e baixando-lhe as mãos disse-lhe com doçura:— Porque chorais, meu
pobre Tremal-Naik? Este é um dia de alegria.— Ah! Senhor! —
Murmurou o indiano. — Se soubesse quanto amei
aquela mulher! Ada! Oh! Minha Ada!Um segundo soluço
dilacerou o peito do indiano e novas lágrimas surgiram-lhe nos olhos.— Acalme-se, Tremal-
Naik — Disse Sandokan. — A senhora Ada não está perdida.O indiano levantou a
cabeça que tinha curvado sobre o peito. Uma luz de esperança
brilhava nos seus olhos negros.— Ela está salva?— Salva! — Disse
Sandokan — E está aqui neste ilhéu.Um grito irrompeu dos
lábios de Tremal-Naik.— Ela está aqui... Aqui!
— Gritou, deitando em volta olhares perdidos. — Onde está? Eu quero vê-la, eu quero vê-la! Ada! Ada! Oh minha adorada Ada!
Fez um gesto para se lançar para o fortim, mas Sandokan agarrou-o pelos pulsos e com tal força que lhe fez estalar os ossos.— Acalme-se — Disse-
lhe. — Ela está louca!— Louca! A minha Ada
louca! — Gritou o indiano. — Ah!.. Mas eu quero vê-la, senhor, quero vê-la nem que seja por um instante...— Vê-la-á, prometo-lhe.
— Quando?— Dentro de instantes.— Obrigado, senhor!
Obrigado!— Sambigliong! —
Gritou Eanes.O daiaque, que rondava
em redor do fortim, examinando atentamente as paliçadas para se cer-tificar de que eram bastante sólidas para se defenderem de um
assalto, acorreu à chamada do português.— A Virgem do Pagode
está a dormir? — PerguntouSandokan.— Não, capitão —
Respondeu o pirata. — Saiu há alguns minutos com os seus guardas.— Para onde se dirigia?— Em direcção à costa.— Venha Tremal-Naik —
Disse Sandokan agarrando-Ihe uma mão.
— Mas recomendo-lhe que estejais calmo porque ela é louca.
XIIIAS DUAS PROVAS
Eram duas da tarde.Um sol esplêndido
flamejava no firmamento espelhando-se nas águas azuladas da baía, e um ligeiro vento, fresco, soprava do mar, sussurrando misteriosamente entre as
folhas das árvores. Não se ouvia nem no ilhéu, nem na baía, qualquer grito, além do monótono gorgolar das ondas que se desfaziam contra a costa e o esvoaçar incessante e o chilrear dos argus giganteus, esplêndidos pássaros da família dos faisões.Tremal-Naik, colhido por
uma vivíssima excitação que procurava dominar em vão, Sandokan,
Eanes e Kammamuri caminhavam a passos rápidos na direcção da ponta setentrional do ilhéu, escondida por uma densa cortina de árvores-da-borracha e de trepadeiras.A quarenta passos da
costa, um dos guardas da louca, que estava deitado atrás de um arbusto, levantou-se.
— A minha Ada? — Perguntou Tremal-Naik, precipitando-se para ele.— Está na margem —
Respondeu o pirata.— O que é que está
fazer? — Perguntou Sandokan.— Olha o mar.— Onde está o teu outro
companheiro?— A poucos passos
daqui.
— Vai buscá-lo e retirem-se os dois para o fortim.Tremal-Naik, Sandokan,
Eanes e o marata atra-vessaram rapidamente a densa cortina de árvores e pararam do outro lado. Um grito sufocado saiu dos lábios do indiano.— Ada! — Exclamou.Preparou-se para saltar
na direcção da praia, mas Sandokan foi rápido a agarrá-lo pelos pulsos.
— Acalme-se — Disse. — Não se esqueça de que aquela mulher está louca.— Estarei calmo.— Prometeis?— Prometo.— Vá então. Nós esperá-
lo-emos aqui.Sandokan, Eanes e
Kammamuri sentaram-se num tronco de uma árvore e Tremal-Naik, aparentemente calmo, mas na realidade
profundamente agitado, dirigiu-se para a praia.Ali, a poucos passos,
sentada à sombra de uma belíssima árvore cujas flores exalavam um perfume inebriante, estava a Virgem do Pagode, com as mãos cruzadas, os cabelos negros soltos sobre os ombros e os olhos fixos na superfície azul da água que se abria diante dela e se vinha partir
com um doce murmúrio aos seus pés. Não falava, não se mexia. Poderia tomar-se por uma soberba estátua ali colocada para embelezar a praia.Tremal-Naik, com o
rosto alterado, os olhos brilhantes, ofegante, aproximava-se da noiva em passo rápido e silencioso. Parou a dois passos da jovem que parecia não tê-lo ouvido.
— Ada! Ada! — Exclamou de repente o indiano com voz sufocada.A louca não se mexeu.
Talvez não tivesse ainda ouvido.— Ada! Oh minha
querida Ada! — Repetiu Tremal-Naik.A Virgem do Pagode ao
ver na sua frente aquele homem que lhe estendia as mãos com gesto suplicante, levantou-se
num repente. Olhou fixamente o indiano, depois deu dois passos para trás murmurando:— Os tugues!A louca não tinha
reconhecido o noivo de outrora.— Ada! Minha querida
Ada! — Gritou Tremal-Naik colhido por um terrível desespero. — Já não me reconheces?
— Os tugues! — Repetiu ela, mas sem manifestar terror.Tremal-Naik lançou um
grito de dor e de raiva.— Mas já não me
reconheces, Ada? — Exclamou o infeliz, cravando as unhas na própria carne. — Já não te lembras do desgraçado Tremal-Naik, do Caçador de Tigres da Selva Negra?
«Volta a ti, Ada, volta a ti. Já não te lembras daquelas noites em que me vias na selva? Já não te lembras daquela noite em que te vi no pagode sagrado? Já não te lembras daquela noite fatal em que os tugues nos fizeram prisioneiros? Ada, oh minha Ada, reconhece o teu Tremal-Naik, reconhece-o!»A louca tinha-o escutado
sem pestanejar, sem
fazer o mais pequeno gesto. Evidentemente, já não se lembrava de nada. A loucura tinha apagado tudo do coração da pobre mulher.— Ada — Retomou
Tremal-Naik que não continha as lágrimas — Olha para mim, olha, oh minha Ada. Não é possível que não reconheças o teu Tremal-Naik.
«Mas por que é que te calas? Por que é que não olhas para mim? Por que é que não cais nos meus braços? Por que eu matei o teu pai? Sim, matei... matei...»O desgraçado indiano
rebentou em soluços a essa terrível recordação, escondendo o rosto entre as mãos.De repente a louca, que
tinha assistido impassível ao desespero daquele
homem, que em tempos havia idolatrado, deu um passo em frente curvando-se para o chão. O rosto tinha-se alterado rapidamente: ficara mais pálida e um brilho passava pelos seus grandes olhos negros.— Soluços — Murmurou.
— Por que chora?Tremal-Naik ao ouvir
aquelas palavras tinha levantado a cabeça.
— Ada! — Gritou, estendendo os braços para ela. — Reconheces-me?A louca olhou-o durante
alguns instantes em silêncio franzindo várias vezes as sobrancelhas. Parecia procurar lembrar-se de onde tinha visto o rosto do indiano e onde tinha ouvido a sua voz.— Soluços — Repetiu. —
Por que chora?
— Porque tu já não me reconheces, Ada — Disse Tremal-Naik. — Olha-me no rosto, olha.Ela dobrou-se para ele,
depois deu um passo para trás e rebentou numa gargalhada.— Os tugues! Os
tugues! — Exclamou.Depois virou as costas e
afastou-se rapidamente, dirigindo-se para o fortim.
Tremal-Naik emitiu um grito de desespero.— Que horror! —
Exclamou tornando a soluçar. — Está tudo perdido! Ela já não me reconhece!Caiu novamente de
joelhos, mas depois levantou-se de repente correndo para a louca que estava prestes a desaparecer numa mata.Mas não tinha ainda
dado cinco passos
quando dois braços de ferro o pararam.— Acalme-se, Tremal-
Naik — Disse uma voz.Era Sandokan que tinha
deixado o seu posto seguido por Eanes e Kammamuri.— Ah! Senhor —
Balbuciou o indiano.— Acalme-se — Repetiu
Sandokan. — Nem tudo está perdido.— Já não me reconhece.
E eu que pensava apertá-
la novamente nos meus braços, depois de tanto tempo, tantas angústias, tantas torturas! Tudo acabou, tudo — Murmurou o pobre indiano.— Ainda há uma
esperança, Tremal-Naik.— Para quê iludir-me,
senhor? Ela está louca, nunca mais se curará.— Há-de curar-se e
ainda esta noite, quem to diz é o Tigre da Malásia.
Tremal-Naik olhou para Sandokan com os olhos cheios de lágrimas.— Então não é uma
esperança momentânea? — Perguntou ele. — O que me diz é mesmo verdade? O senhor mostrou-se tão generoso comigo, fez-me tanto bem, fazei também este milagre e a minha vida será sua.— Hei-de fazer este
milagre, prometo,
Tremal-Naik — Disse Sandokan com voz grave.— E quando?— Esta noite, já lhe
disse.— De que maneira?— Sabê-lo-á em breve.
Kammamuri?O marata avançou. O
bom jovem, como o seu patrão, tinha lágrimas nos olhos.— Fale, capitão — Disse.
— Na noite em que o teu patrão se apresentou na caverna de Suyodhana, tu estavas no templo?— Sim, capitão.— Sabes repetir-me o
que disse o chefe dos tugues e o que disse o teu patrão?— Sim, palavra por
palavra.— Pois bem, vem
comigo até ao forte.
— E nós o que devemos fazer? — Perguntou Eanes.— Por agora não preciso
nem de ti, nem de Tremal-Naik — Disse Sandokan. — Vão dar um passeio e não regressem ao forte antes do anoitecer. Vou preparar-vos uma surpresa.Sandokan e o marata
afastaram-se em direcção ao forte. Eanes deu o braço ao pobre
Tremal-Naik e puseram-se a passear ao longo da costa, conversando.— O que é que ele vai
preparar? — Perguntou Tremal-Naik ao português.— Não sei, Tremal-Naik,
mas sem dúvida prepara qualquer coisa extraordinária.— Para a minha Ada?— Certamente.— Conseguirá ele fazê-la
recuperar a razão?
— Acredito que sim. O Tigre da Malásia sabe mil coisas que nós ignoramos.— Ah! Se ele
conseguisse!— Vai conseguir,
Tremal-Naik. Diz-me, esse Suyodhana ainda está vivo?— Acho que sim.— É poderoso?— Muito poderoso,
senhor Eanes. Comanda
milhares e milhares de estranguladores.— Vai ser difícil atingi-lo.— Diz antes impossível.— Para todos, mas não
para o Tigre da Malásia. Quem sabe, talvez um dia o Tigre da Malásia e o Tigre da Indira possam encontrar-se em frente um do outro.— Achais que sim?— Tenho um
pressentimento. Diz-me, Tremal-Naik, acreditas
que os tugues ainda têm a sede na ilha de Raimangal?— Não creio. Revelei aos
ingleses o local onde os tugues habitavam e alguns navios foram enviados a Raimangal, mas regressaram sem ter encontrado um único estrangulador.— Tinham fugido?— Sem dúvida.— Mas para onde?— Não sei.
— São ricos os tugues?— Riquíssimos, senhor
Eanes, porque não se contentam em estrangular. Saqueiam caravanas e aldeias inteiras.— Que belo inimigo para
combater! O Tigre da Malásia havia de se divertir. Quem sabe se um dia, cansados de Mompracem, não iremos à Indira medir forças com
Suyodhana e as suas gentes.— Pensa regressar a
Mompracem?— Sim, Tremal-Naik —
Disse Eanes. — Amanhã mandaremos alguns homens a Sarawak para adquirir paraus e depois regressaremos à nossa ilha.— E eu posso ir
convosco?— Se viesse connosco
exporia a Virgem do
Pagode a um perigo contínuo. Sabe que nós somos piratas e todos os dias temos de combater.— Para onde irei então?— Dar-vos-emos uma
escolta de valorosos piratas que o conduzirão a Batávia. Temos lá um palacete e poderão viver aí com Ada.— Isso é de mais,
senhor Eanes — Disse Tremal-Naik com voz comovida. — Não vos
chega terem exposto as vossas vidas para me salvar, querem também dar-me uma casa?— E um punhado de
diamantes que deve valer alguns milhões, meu caro Tremal-Naik.— Mas eu não os
aceitarei.— Ao Tigre da Malásia
nada se deve recusar, Tremal-Naik. Uma recusa irritá-lo-ia.— Mas...
— Cale-se, Tremal-Naik. Um milhão para nós não é nada.— São então
imensamente ricos?— Talvez até mais do
que os tugues indianos.Enquanto conversavam,
o Sol tinha-se posto rapidamente e as trevas tinham caído. Eanes olhou para o relógio sob a claridade incerta das estrelas.
— São nove horas — Disse — Podemos voltar para o forte.Lançou um último olhar
sobre a ampla superfície de água que parecia deserta até aos limites extremos do horizonte, depois deixou a costa entrando no bosque. Tremal-Naik, triste e pensativo, com a cabeça baixa sobre o peito, seguia-o.
Poucos minutos depois os dois companheiros estavam diante do fortim, à entrada do qual estava Sandokan, fumando fleumaticamente o seu cachimbo.— Esperava-o — Disse
ele, deslocando-se na direcção deles. — Tudo está pronto.— O que é que está
pronto? — Perguntou Tremal-Naik.
— Aquilo que deverá fazer a Virgem do Pagode recuperar a razão.Segurou pela mão os
dois amigos e conduziu-os ao interior de uma vastíssima cabana que ocupava quase todo o recinto do forte.Tremal-Naik e Eanes
soltaram um grito de surpresa.A ampla sala, em
poucas horas, tinha sido
convertida, por obra de Sandokan, de Kammamuri e dos piratas, numa horrível caverna que em parte recordava a Tremal-Naik o tempo dos tugues indianos onde o sinistro Suyodhana tinha executado a sua pavorosa vingança.Uma enorme quantidade
de ramos resinosos acesos difundiam a toda a volta uma luz azulada,
lívida, cadavérica. Aqui e ali haviam sido acumuladas enormes pedras, erguidos troncos de árvore que podiam passar por colunas, adornos de monstros de argila rudemente modelados, alguns representando Vishnu, o deus conservador dos indianos que tem residência no Vaicondu ou mar de leite da serpente Adissescien, e
outros deuses, gigantescos génios malvados que, divididos em cinco tribos, vão errando pelo mundo do qual não podem sair.No meio erguia-se uma
estátua, também de argila, horrível à vista. Tinha quatro braços, uma língua desmesurada e os seus pés assentavam sobre um cadáver. Diante daquele monstro estava colocada uma
bacia na qual nadava um peixe.— Onde estamos nós? —
Perguntou Eanes, olhando com espanto aqueles monstros e aquelas tochas.— Num pagode dos
tugues indianos — Disse Sandokan.— Quem fez todos estes
monstros feios?— Nós, irmão.— Em tão poucas horas?
— Tudo se faz, quando se quer.— Quem é aquela figura
com quatro braços?— Kali, a deusa dos
tugues — Disse Tremal-Naik que a tinha reconhecido.— Parece-lhe, Tremal-
Naik, que este pagode improvisado se assemelha ao dos tugues?— Sim, Tigre da Malásia.
Mas o que quer fazer?
— Ouve-me.— Estamos a ouvir.— Eu digo e acredito
que só uma impressão extraordinária pode fazer Ada recuperar a razão.— Eu sou da tua opinião,
Sandokan — Disse Eanes — E já compreendo o teu plano.— De verdade?— Tu queres reconstituir
a cena que aconteceu no pagode dos tugues indianos quando Tremal-
Naik se apresentou a Suyodhana.— Sim, Eanes, é mesmo
isso. Eu serei o chefe dos tugues e repetirei as palavras pronunciadas pelo terrível homem naquela noite fatal.— Quando começamos?— De imediato.— E os tugues? —
Perguntou Tremal-Naik.— Os tugues serão os
meus homens — Disse Sandokan. — Foram
instruídos por Kammamuri.— Então, em frente.Sandokan encostou aos
lábios o assobio de prata e emitiu um som agudo. De imediato trinta daiaques seminus com as cinturas atadas com um laço de fibras de rotang e com uma serpente com cabeça de mulher pintada no meio do peito, entraram na grande cabana
colocando-se ao lado da monstruosa divindade dos tugues.— Por que é que têm uma serpente no peito? — Perguntou Eanes.— Todos os tugues têm uma tatuagem semelhante — Respondeu Tremal-Naik.— Ao que parece Kammamuri não se esqueceu de nada.— Estão prontos? — Perguntou Sandokan.
— Todos — Responderam os daiaques.— Eanes — Disse então Sandokan — Encarrego-te de um papel importante.— O que devo fazer?— Tu, que és branco, deverás representar o pai de Ada. Guiarás os outros piratas que fingirão ser os sipaios indianos e farás o que Kammamuri te disser.— Está bem.
— Quando eu fingir que te ataco fora do forte, cairás como morto diante de Ada.— Confia em mim, irmão. Cada um para o seu lugar.Tremal-Naik, Eanes e Kammamuri saíram, enquanto Sandokan se sentava em frente da estátua da deusa Kali e os daiaques, que faziam de tugues, se perfilavam aos seus lados.
A um sinal do Tigre um pirata bateu doze vezes numa espécie de gong que tinha sido encontrado num canto do fortim.Ao último toque a porta da tenda abriu-se, e a Virgem do Pagode entrou, apoiada em dois daiaques.— Aproxima-te, Virgem do Pagode — Disse Sandokan com voz
grave. — É Suyodhana quem to ordena.Ao ouvir o nome de Suyodhana, a louca tinha parado libertando-se dos braços dos dois piratas. O seu olhar, que se tinha repentinamente acendido e dilatado, fixou-se em Sandokan que estava em pé no meio do pagode, depois nos daiaques, que conservavam uma
absoluta imobilidade e por último na deusa Kali.Um tremor agitou o seu corpo e algumas rugas desenharam-se no seu rosto.— Kali — Murmurou com
um tom no qual se sentia uma vibração de terror. — Os tugues...Deu alguns passos em
frente continuando a olhar ora para Sandokan, ora para os piratas, ora para a monstruosa
divindade dos tugues, depois passou duas ou três vezes a mão pelo rosto e pareceu fazer um esforço supremo para recordar uma cena horrível.De repente, Tremal-Naik
irrompeu no pagode e correu para ela, gritando:— Ada!A jovem tinha parado de
repente: o seu rosto tinha ficado pálido e manifestava uma
inexprimível ansiedade. Os seus olhos, que pareciam perder pouco a pouco aquela luz estranha própria dos loucos, estavam fixos em Tremal-Naik.— Ada! — Repetiu este,
com voz dilacerada. — Volta a ti!Naquele instante ouviu-
se uma voz gritar:— Fogo!Alguns disparos
ribombaram à entrada do
pagode e alguns homens, guiados por Eanes, irromperam no interior enquanto os daiaques, como os tugues naquela noite fatal, fugiam em todas as direcções.Ada ficara imóvel.
Subitamente estremeceu, depois curvou-se para a frente como se procurasse ouvir um novo disparo.
Sandokan tinha parado na extremidade do pagode e não a perdia de vista. Teria compreendido o que esperava ainda aquela desgraçada? Talvez, pois pôs-se a gritar, como havia gritado o feroz Suyodhana:— Ide! Havemos de nos
rever na selva!Tinha acabado de
pronunciar estas palavras quando um
grito agudíssimo irrompeu dos lábios da louca.Deu um passo em frente
com o rosto alterado, os braços levantados, cambaleou, rodou sobre si mesma e caiu nos braços de Eanes.— Morta! Morta! —
Gritou Tremal-Naik, com tom desesperado.— Não — Disse
Sandokan. — Ela está salva!
Apoiou uma mão sobre o peito da Virgem. O coração batia, debilmente sim, mas batia.— Desmaiou — Disse
ele.— Então está salva —
Disse Eanes.— Se ao menos fosse
verdade! — Exclamou Tremal-Naik, que ria e chorava ao mesmo tempo.
Kammamuri estava de volta com água. Sandokan borrifou várias vezes o rosto da jovem e esperou que ela voltasse a si.Passaram alguns
minutos, depois um profundo suspiro saiu dos lábios da jovem.— Está a acordar —
Disse Sandokan.— Tenho de ficar aqui?
— Perguntou Tremal-Naik.
— Não — Respondeu Sandokan. — Quando lhe tivermos narrado tudo, mandaremos buscar-te.O indiano deitou um
longo olhar sobre a Virgem do Pagode e saiu sufocando um soluço.— Tens esperança,
Sandokan? — Perguntou Eanes.— Muita — Respondeu o
pirata. — Amanhã estes dois infelizes poderão unir-se para sempre.
— E nós...— Calado, Eanes: está a
abrir os olhos.A jovem tinha de facto
voltado a si. Soltou um segundo suspiro mais longo do que o primeiro, depois abriu os olhos fixando-os em Sandokan e Eanes. Aquele olhar já não era o de antes; era límpido, era o olhar de uma mulher que já não estava louca.
— Onde estou eu? — Perguntou ela com voz fraca, tentando levantar-se.— Entre amigos,
senhora — Disse Sandokan.— Mas o que é que
aconteceu? — Murmurou. — Sonhei? Onde estou? Quem são vocês?— Senhora — Disse
Sandokan — Repito está entre amigos. O que aconteceu, pergunta-me?
Digo-lhe que já não está louca.— Louca! Louca? —
Exclamou a Virgem com surpresa. — Eu estava louca? Não sonhei? Ah... lembro-me... É horrível...Um ataque de choro
sufocou a sua voz.— Acalme-se, senhora
— Disse Sandokan. — Aqui não corre qualquer perigo. Suyodhana já não existe e aqui não há
tugues. Não estamos na Indira, mas no Bornéu.Com um esforço
violento, Ada levantou-se e apertando as mãos de Sandokan, disse-lhe chorando:— Em nome de Deus
diga-me o que aconteceu e quem é. Acho que não compreendo mais nada.Eram as perguntas que
Sandokan esperava. Então com voz grave narrou-lhe sucintamente
tudo o que tinha acontecido primeiro na Indira, depois em Mompracem e por último no Bornéu.— Agora — Concluiu
Sandokan — Se ainda ama Tremal-Naik, aquele corajoso indiano que por si fez milagres, ele estará aos seus pés com um sinal seu.— Se o amo! —
Exclamou Ada. — Onde está ele? Deixe que o
veja novamente depois de uma tão longa separação.— Tremal-Naik! —
Gritou Eanes.O indiano precipitou-se
para dentro do pagode e caiu aos pés de Ada, exclamando:— Minha! Ainda minha!
Diz-me outra vez, Ada, que serás minha mulher!A jovem pousou as
mãos sobre a cabeça do noivo:
— Sim, serei tua mulher — Disse ela. — O meu pai tinha-me prometido a ti e ainda te amo.Nesse mesmo instante
uma descarga de tiros de espingarda ribombava nas margens da baía seguida por uma voz sonante que gritava:— Alerta! Piratas de
Mompracem! Aí está o inimigo!
XIV
A DESFORRA DO RAJÁ BROOKE
Ao ouvir aqueles tiros de espingarda e aqueles gritos, o Tigre da Malásia tinha dado um salto na direcção da porta da cabana, lançando um verdadeiro rugido.— O inimigo aqui! —
Exclamou com os dentes cerrados. — Aqui, neste momento! James Brooke, cuidado!
Tirou a cimitarra, arma terrível nas mãos daquele homem formidável, e lançou-se para fora do forte, gritando:— A mim, Tigres de
Mompracem!Eanes, os piratas,
Kammamuri e até os dois noivos lançaram-se atrás dele empunhando armas. A Virgem do Pagode tinha também ela empunhado uma
cimitarra pronta a combater ao lado dos seus benfeitores.Aier-Duk e os seus oito
homens desciam, a correr, a encosta que levava à baía.Atrás deles,
semiescondidos entre as árvores da floresta, Sandokan viu um grande agrupamento de tropas de homens armados, alguns brancos, outros indianos e daiaques.
— Alerta, piratas de Mompracem! O inimigo — Gritou Aier-Duk, precipitando-se na direcção do barco que estava encalhado na margem.Seis ou sete tiros de
espingarda ressoaram na floresta e algumas balas caíram na água.— As tropas do rajá
Brooke! — Exclamou Sandokan. — E logo neste momento, quando
eu pensava que a minha missão tivesse terminado! Pois bem, James Brooke, vem-me desafiar! O Tigre da Malásia não te teme!— O que é que fazemos,
Sandokan? — Perguntou Eanes.— Vamos combater,
irmão — Respondeu o pirata.— Vão-nos bloquear.— O que é que isso
importa?
— Estamos numa ilha, meu irmão.— Mas dentro de um
forte.Aier-Duk e os seus
homens, depois de atravessarem rapidamente o braço de mar, tinham desembarcado na ilha. Sandokan e Eanes lançaram-se na direcção do bravo daiaque que tinha um braço ensanguentado.
— Foste surpreendido? — Perguntou-lhe Sandokan.— Sim, capitão, mas
reconduzo todos os meus homens.— Quantos são os
inimigos?— Pelo menos trezentos.— Quem é que os
comanda?— Um branco, capitão.— O rajá?— Não, não é o rajá; é
um tenente da marinha.
— Um homem de estatura alta com bigode ruivo? — Perguntou Eanes.— Sim — Respondeu o
daiaque. — E traz com ele uns quarenta marinheiros europeus.— É o tenente Churchill.— Quem é esse tal
Churchill? — Perguntou Sandokan.— O comandante do
fortim que domina a cidade de Brooke.
— E não viste o rajá? — Perguntou o Tigre a Aier-Duk.— Não, capitão.Sandokan rangeu os
dentes.— O que tens? —
Perguntou Eanes.— Temo que o maldito
nos ataque por mar — Disse o pirata. — Talvez a esta hora o Realista navegue na direcção da baía.
— Por Júpiter! — Exclamou Eanes, franzindo a testa.— Vamos ser apanhados
entre dois fogos!— É certo.— Diachos!— Mas havemos de nos
bater, e quando já não tivermos nem pólvora nem balas, avançaremos com a cimitarra e com o kriss.O inimigo, que tinha
parado a seiscentos
metros das margens da baía, começava então a avançar mantendo-se escondido atrás das árvores e dos densos arbustos. A artilharia, interrompida durante um instante, recomeçou a estalar.— Por Júpiter! —
Exclamou Eanes. — Granizo!— Retiremo-nos para o
forte — Disse Sandokan.
— É sólido e resistirá às balas de espingarda.Os piratas, Tremal-Naik,
Ada e Kammamuri voltaram a entrar no recinto, depois de ter afundado o barco para que o inimigo não o aproveitasse na travessia do braço de mar.A porta da entrada foi
barricada com enormes pedras, numerosas aberturas foram feitas na paliçada, depois todos os
combatentes, excepto a Virgem do Pagode, que foi conduzida à grande cabana, tomaram os lugares que mais lhes convinham.— Fogo, Tigres de
Mompracem! — Trovejou Sandokan que tinha subido, com Eanes e sete ou oito dos piratas mais audazes, ao telhado da grande cabana.Ao comando respondeu
o grito de guerra dos
piratas, seguido de vários tiros de espingarda.— Viva o Tigre da
Malásia! Viva Mompracem!O inimigo, continuando
a disparar, tinha chegado perto da praia. Alguns homens procuravam abater árvores, talvez com a intenção de fazer uma jangada e desembarcar na ilha.
Muito cedo se aperceberam, contudo, que não era assim tão fácil aproximar-se de um fortim defendido pelos terríveis piratas de Mompracem.Descargas mortíferas
partiam do recinto e com tal rapidez e precisão que em poucos minutos quinze ou dezasseis homens jaziam por terra sem vida.
— Fogo, Tigres de Mompracem! — Ouvia-se gritar o Tigre da Malásia, a cada instante.— Viva o Tigre! Viva
Mompracem! — Respondiam os piratas.Os soldados do rajá
depressa se viram obrigados a retroceder até ao bosque e a esconder-se atrás dos troncos das árvores.Tinham acabado de
efectuar aquela retirada,
quando da margem oposta da baía surgiu, no incerto brilho das estrelas, outro grande grupo de homens.Uma terrível saraivada
de balas caiu de imediato sobre o forte e sobre o telhado da grande cabana, no cimo da qual estava Sandokan.— Por Júpiter! —
Exclamou Eanes. — Mais inimigos!
— E barcos também — Disse Sambigliong que estava junto a ele.— Onde?— Olhe ali ao fundo, no
extremo da baía. São dois, quatro, sete, uma verdadeira frota!— Diabos! — Exclamou
o português — Ei! Meu irmão!— O que queres? —
Disse Sandokan que carregava a sua carabina.
— Estamos para ser capturados.— Não tens uma
espingarda?— Sim.— E uma cimitarra e um
kriss?— Certamente.— Pois então, irmão, nós
vamo-nos bater.Subiu para o telhado,
sem se preocupar com as balas que lhe assobiavam à volta, e bradou:
— Tigres de Mompracem, vingança! O exterminador dos piratas aproxima-se! Todos para as paliçadas e fogo sobre esses cães que nos desafiam!Os piratas abandonaram
precipitadamente as aberturas e subiram, como gatos, para cima do recinto.Tremal-Naik,
Sambigliong, Tanauduriam e Aier-Duk
dirigiam-nos encorajando-os com a voz e com o exemplo.Depressa recomeçaram
os tiros de mosquete, mas com uma fúria incrível. Debaixo de cada árvore da costa faiscava um relâmpago seguido de uma detonação. Centenas e centenas de balas cruzavam-se no ar com assobios.De vez em quando, por
entre aquela confusão
que continuava a aumentar, ouvia-se a voz ribombante do Tigre da Malásia, os gritos dos tigres, os comandos dos oficiais do rajá e os gritos selvagens dos indianos e dos daiaques. Por vezes não eram gritos de triunfo, nem gritos de entusiasmo: eram gritos lancinantes, gritos de feridos, gritos de moribundos.
De repente, na direcção do mar ouviu-se uma fortíssima detonação, que cobriu o estalar dos mosquetes. Era a possante voz do canhão.— Ah! — Exclamou
Sandokan. — A frota do rajá!Olhou para o oceano.
Uma grande sombra entrava na baía aproximando-se da ilha; duas lanternas, uma
verde, a outra vermelha, brilhavam dos lados.— Ei! Sandokan! —
Gritou uma voz. — Corpo de uma espingarda!— Coragem, Eanes! —
Respondeu Sandokan.— Por Júpiter! Temos um
navio às costas.— Se for preciso
abordamo-lo e...Não acabou.— O Realista! —
Exclamou subitamente Sandokan.
Com efeito, aquele navio que acorria em auxílio dos atacantes era o schooner do rajá James Brooke, o mesmo que na foz do Sarawak tinha atacado e afundado o Helgoland.— Maldito — Rugiu
Sandokan, mirando-o com dois olhos que lançavam chamas. — Ah! Por que é que não tenho um parau também eu? Havia de te mostrar
como é que os Tigres de Mompracem se sabem bater com a arma branca!Um novo tiro de canhão
ribombou na coberta do barco inimigo e uma nova bala veio abrir um novo furo.O Tigre da Malásia
lançou um grito de dor e de raiva.— Tudo acabou! —
Exclamou.
Precipitou-se do telhado da cabana seguido por todos os seus companheiros, enquanto uma chuva de metralha varria o topo do forte, e subiu à barricada que fechava a entrada do fortim gritando:— Fogo, Tigres de
Mompracem, fogo! Vamos mostrar ao rajá como sabem bater-se os piratas da Malásia!
A batalha ganhava proporções gigantescas. As tropas do rajá que até então se haviam mantido escondidas nos bosques, tinham avançado na direcção da praia fazendo daí um fogo infernal; a frota que até então se mantinha a uma distância respeitável, vendo-se apoiada pelos canhões do barco, havia-se movimentado para a
frente, decidida, ao que parecia, a arribar à ilha.A posição dos piratas
depressa se tornou desesperada. Combatiam com extrema raiva entusiasmados pela voz do Tigre da Malásia; mas eram poucos para defrontar tantos inimigos.As balas caíam de
maneira cerrada, entrando pelas aberturas e pelas fissuras dos
muros, fazendo cair dois ou três piratas de cada vez que disparavam do cimo da paliçada. E muitas vezes não eram simples balas, mas granadas que os canhões do Realista lançavam e que abriam brechas assustadoras, através das quais o inimigo, depois de desembarcar, podia penetrar no fortim.Às três da manhã um
novo auxílio chegava aos
atacantes. Era um veloz iate armado de um único, mas grande, canhão que abriu de imediato fogo contra as paliçadas do forte, que já começavam a desabar.— Acabou! — Disse
Sandokan do cimo da barricada, enquanto com os dedos queimados, o rosto alterado, atirava contra a frota que continuava a avançar. —
Dentro de dez minutos teremos de nos render.Às 4 da manhã apenas
sete homens continuavam no fortim: Sandokan, Eanes, Tremal-Naik, Ada, Sambigliong, Kammamuri e Tanauduriam. Tinham deixado a muralha, que já não oferecia qualquer protecção, e retirado para a grande cabana, de que uma parte havia
sido destruída pelos tiros de canhão do Realista e do iate.— Sandokan — Disse
Eanes a certa altura — Já não podemos resistir.— Enquanto tivermos
pólvora e balas não nos renderemos — Respondeu o Tigre da Malásia olhando a flotilha inimiga que apesar de repelida seis vezes seguidas, voltava à carga
para desembarcar os seus homens.— Não estamos sós,
Sandokan. Temos connosco uma mulher, a Virgem do Pagode.— Ainda podemos
vencer, Eanes. Deixamos o inimigo desembarcar e lançamo-nos sobre eles. Sinto-me suficientemente forte para lutar contra todos estes malditos que o rajá empurra contra mim.
— E se uma bala colhesse a Virgem? Olha, Sandokan, olha!Uma granada lançada
do Realista tinha rebentado naquele momento, furando um grande bocado da parede. Alguns fragmentos de ferro entraram na grande sala, assobiando sobre o grupo dos piratas.— Vão matar a minha
noiva! — Exclamou
Tremal-Naik, que se havia prontamente posto em frente da Virgem do Pagode.— Temos de nos render
ou preparar-nos para morrer — Disse Kammamuri.— Rendamo-nos,
Sandokan — Gritou Eanes. — Trata-se de salvar a prima da defunta Mariana Guillonk.
Sandokan não respondeu. Frente a uma das janelas, com a espingarda nas mãos, os olhos em brasa, os lábios semiabertos, as feições alteradas por uma raiva violenta, olhava o inimigo que se aproxi-mava rapidamente da ilha.— Rendamo-nos,
Sandokan — Repetiu Eanes.
O Tigre da Malásia respondeu com um suspiro rouco.Uma segunda granada
entrou por um buraco caindo próximo da parede oposta onde rebentou, atirando em seu redor fragmentos em chamas.— Sandokan! — Gritou
pela terceira vez Eanes.— Irmão — Murmurou o
Tigre.— Temos de nos render.
— Rendermo-nos! — Gritou Sandokan com um tom que já nada tinha de humano.— O Tigre da Malásia,
render-se a James Brooke! Oh! Porque não tenho eu comigo os tigres que deixei na minha Mompracem? Render-me! Render-se o Tigre da Malásia!— Tens uma mulher
para salvar, Sandokan!— Eu sei...
— E esta mulher é a prima da tua defunta mulher.— É verdade! É
verdade!— Rendamo-nos,
Sandokan.Uma terceira granada
rebentou na sala, enquanto duas balas de grande calibre, atingindo o topo da cabana, faziam desabar boa parte do telhado. O Tigre da Malásia virou-se e olhou
os seus companheiros. Todos empunhavam armas e estavam prontos a continuar a luta; no meio deles estava a Virgem do Pagode. Parecia tranquila, mas nos seus olhos lia-se a mais viva ansiedade.— Já não há qualquer
esperança — Murmurou com voz lúgubre o pirata. — Dentro de dez minutos nenhum destes valentes
estará de pé. Temos de nos render.Segurou a cabeça entre
as mãos, e pareceu querer esmagar a própria testa.— Sandokan! — Disse
Eanes.Um hurra fragoroso
cobriu a sua voz. Os soldados do rajá tinham atravessado o braço de mar e dirigiam-se para o forte.
Sandokan sacudiu-se. Empunhou a sua terrível cimitarra e fez como se quisesse lançar-se para fora da cabana, mas conteve-se.— Soou a última hora
para os Tigres de Mompracem! — Exclamou com dor. — Sambigliong, iça a ban-deira branca.Tremal-Naik com um
gesto parou o pirata que prendia um pano branco
ao cano de uma espingarda, e aproximou-se de Sandokan segurando pela mão a noiva.— Senhor — Disse-lhe —
Se se render, eu, Kammamuri e a minha noiva estaremos a salvo, mas os senhores, que são mortalmente odiados pelo rajá, são sem dúvida enforcados. Acabou de nos salvar: nós colocamos nas suas
mãos as nossas vidas. Se ainda tiver a esperança de vencer, comande o assalto e nós gritaremos: Viva o Tigre da Malásia! Viva Mompracem!— Obrigado, meus
nobres amigos — Disse Sandokan com a voz comovida, apertando vigorosamente as mãos da jovem e do indiano. — O inimigo já desem-barcou e nós somos só sete. Rendamo-nos.
— Mas e vocês? — Perguntou Ada.— James Brooke não me
enforcará, senhora — Disse o pirata. — O Tigre tem ainda mil recursos.— A bandeira branca,
Sambigliong — Disse Eanes que tinha acendido um cigarro.O pirata subiu ao
telhado da cabana e agitou o pano branco. Logo se ouviu o som de uma trompa ecoar na
coberta do Realista, seguido de hurras ruidosos.Sandokan com a
cimitarra em punho saiu da cabana, atravessou a praça do forte cheio de destroços e de cadáveres, de armas e de balas de canhão e parou perto da barricada demolida.Duzentos soldados do
rajá tinham desembarcado e
estavam alinhados na praia com as armas na mão, prontos a lançar-se ao ataque. Uma chalupa em que vinham o rajá Brooke, Lord Guillonk e doze marinheiros tinha-se destacado dos flancos do Realista e aproximava-se rapidamente da ilha.— Ele e o meu tio —
Murmurou Sandokan com voz triste.
Cruzou os braços sobre o peito, depois de ter embainhado a cimitarra e esperou tranquilamente os seus dois mais acérrimos inimigos.A embarcação, que
avançava vigorosamente, em poucos minutos chegou perto do fortim. James Brooke e Lord Guillonk desembarcaram e, seguidos a breve
distância por um forte grupo de soldados, aproximaram-se de Sandokan.— Pede uma trégua ou é
uma rendição? — Perguntou o rajá saudando com o sabre.— Rendo-me, senhor —
Disse o pirata restituindo a saudação. — Os vossos canhões e os vossos homens domaram os Tigres de Mompracem.
Um sorriso de triunfo aflorou aos lábios do rajá.— Eu sabia que acabaria
por vencer o indomável Tigre da Malásia — Disse. — Senhor, estais preso!Sandokan, que até
então não se tinha mexido, ao ouvir aquelas palavras levantou orgulhosamente a cabeça, lançando sobre o rajá um daqueles olhares que fazem tremer até os
homens mais corajosos da terra.— Rajá Brooke — Disse
com voz sibilante. — Tenho atrás de mim cinco tigres da Mompracem, apenas cinco, mas capazes de sustentar ainda uma luta contra todas as vossas tropas. Tenho atrás de mim cinco homens capazes de se atirarem contra vós a um sinal meu e de vos estender
no chão sem vida, apesar das tropas que vos rodeiam. Prender-me-á só quando eu fizer sinal àqueles homens para deporem as armas.— Não vos rendeis
então?— Rendo, mas com uma
condição.— Senhor, as minhas
tropas já desembarcaram; faço-vos notar que sois seis e nós duzentos e
cinquenta; que basta um sinal meu para mandar que vos fuzilem. Parece-me estranho que o Tigre da Malásia vencido queira ainda ditar condições.— O Tigre da Malásia
ainda não está vencido, rajá Brooke — Disse Sandokan com orgulho. — Ainda tenho a minha cimitarra e o meu kriss.— Devo ordenar o
ataque?
— Quando vos disser o que peço.— Falai.— Rajá Brooke, eu, o
capitão Eanes de Gomera e os daiaques Tanauduriam e Sambigliong, todos pertencentes ao bando de Mompracem, rendemo-nos sob as seguintes condições:«Que sejamos julgados
pelo Supremo Tribunal de Calcutá, e que seja
concedida a maior liberdade de irem para onde entenderem a Tremal-Naik, ao seu servo Kammamuri e a miss Ada Corishant!»— Ada Corishant! Ada
Corishant! — Exclamou Lord Guillonk, lançando-se na direcção de Sandokan.— Sim, Ada Corishant —
Disse Sandokan.— É impossível que ela
esteja aqui!
— E porquê, milord?— Porque ela foi raptada
pelos tugues indianos e nunca mais se ouviu falar dela.— E, contudo, ela está
neste forte, milord.— Lord James — Disse o
rajá. — Conheceu Miss Ada Corishant?— Sim, Alteza —
Respondeu o velho lorde. — Conheci-a poucos meses antes de ter sido
raptada pelos sectários de Kali.— Se a visse,
reconhecê-la-ia?— Sim, e tenho a
certeza que também ela me reconheceria apesar de terem passado já cinco anos desde essa época funesta.— Pois bem, senhores,
sigam-me — Disse Sandokan.Fê-los atravessar a
paliçada e conduziu-os
até à grande cabana, no meio da qual estavam, reunidos em torno da Virgem do Pagode, com as espingardas na mão e o kriss nos lábios, Eanes, Tremal-Naik, Kammamuri, Tanauduriam e Sambigliong.Sandokan segurou a
mão de Ada e apresentando-a ao lorde, disse-lhe:— Reconhece-a?
Dois gritos foram a resposta.— Ada!— Lord James!Depois o velho e a
jovem abraçaram-se efusivamente, beijando-se. Ambos se tinham reconhecido.— Senhor — Disse o
rajá, dirigindo-se a Sandokan. — Como é que Miss Ada se encontra nas suas mãos?
— Ela própria vo-lo dirá — Respondeu Sandokan.— Sim, sim, quero sabê-
lo! — Exclamou Lord James que continuava a abraçar e a beijar a jovem, chorando de alegria. — Quero saber tudo.— Narre-lhe tudo, então,
Miss Ada — Disse San-dokan.A jovem não deixou que
lho pedissem duas vezes e narrou brevemente ao
lorde e ao rajá a sua história que os leitores já conhecem.— Lord James — Disse
ela, quando acabou — A minha salvação devo-a a Tremal-Naik e a Kammamuri; a minha felicidade ao Tigre da Malásia. Abrace estes homens, milord.Lord James aproximou-
se de Sandokan com os braços cruzados sobre o
peito e o rosto levemente alterado.— Sandokan — Disse o
velho com voz comovida. — Raptou-me a minha sobrinha, mas devolveu-me outra mulher que eu amava tanto como à outra. Perdoo-vos, abrace-me, sobrinho, abrace-me!O Tigre da Malásia
precipitou-se para os braços do velho e aqueles inimigos, ao fim
de tantos anos, beijaram-se na face.Quando se separam, as
lágrimas escorriam dos olhos do velho lorde.— É verdade que a tua
mulher morreu? — Perguntou ele com a voz quebrada.A essa pergunta o rosto
do Tigre da Malásia alterou-se assustadoramente. Fechou os olhos, cobriu-os com os dedos
crispados e lançou um gemido rouco.— Responde, Sandokan,
responde — Disse o velho.— Sim, morreu — Disse
o Tigre com uma voz dilacerante.— Pobre Mariana! Pobre
sobrinha!— Cale-se, cale-se —
Murmurou Sandokan.Um soluço sufocou a sua
voz. O Tigre da Malásia chorava!
Eanes aproximou-se do amigo e pousando-lhe uma mão no ombro:— Coragem, meu irmão
— Disse-lhe. — Diante do exterminador dos piratas, o Tigre da Malásia não se deve mostrar fraco.Sandokan enxugou as
lágrimas quase com raiva e levantou de novo a cabeça com um gesto orgulhoso.
— Rajá Brooke, estou à sua disposição. Eu e os meus companheiros rendemo-nos.— Que companheiros?
— Perguntou o rajá com o rosto ensombrado.— Eanes, Tanauduriam
e Sambigliong.— E Tremal-Naik?— Como! Ousa...— Eu não ouso nada —
Disse James Brooke. — Obedeço e nada mais.— O que quer dizer?
— Que Tremal-Naik ficará prisioneiro tal como vós.— Alteza! — Exclamou
Lord Guillonk. — Alteza!— Lamento, milord, mas
não me compete a mim conceder liberdade a Tremal-Naik. Foi-me entregue e tenho de devolvê-lo às autoridades inglesas que não deixarão de o reclamar.
— Mas ouviu toda a história deste meu novo sobrinho.— É verdade, mas não
posso transgredir as ordens recebidas das autoridades anglo-indianas. Dentro de dias um barco de deportados aportará a Sarawak e eu terei de o entregar a esse comandante.— Senhor! — Exclamou
Tremal-Naik, com a voz quebrada. — Não
permita que me separem da minha Ada e me conduzam até Norfolk.— Rajá Brooke — Disse
Sandokan. — Vós cometereis uma infâmia.— Não, obedeço —
Respondeu o rajá. — Lord Guillonk poderá ir a Calcutá, explicar as cobardias dos tugues e fazer com que lhe perdoem a pena e eu, da minha parte, prometo apoiá-lo.
Ada, que até então tinha ficado muda, oprimida por uma angústia mortal, avançou:— Rajá — Disse ela com
a voz embargada. — Quer então que volte a ficar louca?— Recuperou o seu
noivo, miss. As autoridades anglo-indianas vão rever o processo e não demorarão a pôr Tremal-
Naik novamente em liberdade.— Deixe então que eu
embarque com ele.— Está a brincar, miss?— Quero segui-lo.— Num barco de
forçados? Num tal inferno!— Quero segui-lo —
Disse ela com exaltação.James Brooke olhou-a
com uma certa surpresa.
Parecia impressionado pela suprema energia daquela jovem.— Responda-me —
Disse Ada, vendo que ele se mantinha mudo.— É impossível, miss —
Disse depois. — O comandante do navio não a aceitaria. Siga o seu tio até à Indira para obter o perdão para o seu noivo. O seu testemunho bastará para lhe devolver a liberdade.
— É verdade, Ada — Disse Lord Guillonk. — Se seguisses Tremal-Naik eu ficaria só e faltar-me-ia o principal testemunho para salvar o teu noivo.— Mas quer que eu volte
a abandoná-lo! — Exclamou ela rebentando em soluços.— Ada! — Disse Tremal-
Naik.— Alteza — Disse
Sandokan, avançando para o rajá. — Concede-
me cinco minutos de liberdade?— O que quer fazer? —
Perguntou James Brooke.— Quero convencer Ada
a seguir Lord James.— À vontade.— Mas a vossa presença
não é necessária: quero falar sem que outros me oiçam.— Concedo-vos o que
pede. Contudo, se pensa fugir aviso-o de que toda a baía está cercada.
— Eu sei. Sigam-me, amigos.Saiu da cabana
semidestruída e conduziu os seus amigos para o interior do forte.— Escutem-me, amigos
— Disse ele. — Eu possuo ainda meios de fazer empalidecer o rajá se pudesse conhecê-los. Miss Ada, Lord James...— Lord James não,
chame-me tio, Sandokan
— Disse o inglês. — Também é meu sobrinho.— É verdade, meu tio —
Disse o Tigre com voz comovida. — Miss Ada, não insista mais e renuncie à ideia de seguir o noivo até à ilha de Norfolk. Procuremos, em vez disso, obter do rajá que mantenha Tremal-Naik em Sarawak até as autoridades de Calcutá terem revisto o
processo e decidido a sua sorte.— Mas será uma longa
separação — Disse Ada.— Não, miss, será
breve, garanto-lhe. Procuro obter isto do rajá para ganhar tempo.— O que quer dizer? —
Perguntaram Tremal-Naik e Lord Guillonk.Um sorriso aflorou aos
lábios de Sandokan.— Ah! — Disse ele. —
Pensam que eu ignoro a
sorte que me espera também em Calcutá? Os ingleses odeiam-me demasiado e eu fiz-lhes uma guerra demasiado dura e feroz para esperar que me deixem com vida. Quero voltar a ser livre, percorrer ainda o mar e rever a minha selvagem Mompracem.— Mas o que quereis
fazer? Quem espera? — Perguntou Lord James.
— O neto de Muda-Hassin.— Do sultão deposto por
Brooke? — Perguntou Lord James.— Sim, tio. Eu sei que
ele prepara uma conjura para recuperar o trono e que mina, lentamente mas incessantemente, o poder de Brooke— O que podemos
fazer? — Perguntou Ada. — A si devo a minha salvação e hei-de dever a
liberdade de Tremal-Naik.— Procura esse homem,
e diz-lhe que os Tigres de Mompracem estão prontos a ajudá-lo. Os meus piratas desembarcarão aqui, colocar-se-ão à cabeça dos insurrectos e virão atacar, antes de mais, a nossa prisão.— Mas eu sou inglês,
sobrinho — Disse o lorde.
— E nada exijo de si, meu tio. Não pode conspirar contra um compatriota.— Mas quem agirá?— Miss Ada e
Kammamuri.— Oh sim, senhor —
Disse a jovem. — Falai: o que devo fazer?Sandokan desapertou o
casaco e tirou uma bolsa da faixa que tinha sobre a camisa de seda.
— Irá ter com o neto de Muda-Hassin e dir-lhe-eis que Sandokan, o Tigre da Malásia, lhe oferece estes diamantes, que valem dois milhões, para apressar a revolta.— E eu, o que devo
fazer? — Perguntou Kammamuri.Sandokan tirou um anel,
de uma forma especial, adornado com uma grande esmeralda e estendeu-lho dizendo:
— Tu irás a Mompracem, e mostrarás aos meus piratas este anel, dir-lhes-ás que estou preso e que embarquem para ajudar a insurreição do neto de Muda-Hassin. Vamos regressar: o rajá está desconfiado.Regressaram à cabana
arruinada onde Brooke os esperava, rodeado pelos seus oficiais que já tinham desembarcado.
— Então? — Perguntou ele brevemente.— Ada renuncia à ideia
de seguir o noivo sob condição que vós, Alteza, mantenhais Tremal-Naik preso em Sarawak até o tribunal de Calcutá ter revisto o processo — Disse o lorde.— Seja — Disse Brooke,
após alguns instantes de reflexão.Nessa altura Sandokan
avançou e atirando ao
chão a cimitarra e o kriss, disse:— Sou vosso prisioneiro.Eanes, Tanauduriam e
Sambigliong atiraram também eles as armas.Lord James, de olhos
húmidos, lançou-se entre o rajá e Sandokan.— Alteza — Disse — O
que fareis do meu sobrinho?— Concedo-lhe o que
me havia pedido.— Ou seja?
— Vou mandá-lo para a Indira. O supremo tribunal de Calcutá encarregar-se-á de o julgar.— E quando é que ele
parte?— Dentro de quarenta
dias com o postal proveniente de Labuan.— Alteza... É meu
sobrinho e eu colaborei na sua captura.— Eu sei, milord.
— Salvou Ada Corishant, Alteza.— Eu sei, mas nada
pode fazer aquele que se chama O Exterminador dos Piratas.— E se o meu sobrinho
vos prometesse deixar para sempre estes mares? E se o meu sobrinho vos jurasse nunca mais voltar a ver Mompracem?— Pare, tio — Disse
Sandokan. — Nem eu
nem os meus companheiros temos medo da justiça humana. Quando soar a última hora, os Tigres de Mompracem saberão morrer como valentes.Aproximou-se do velho
lorde que chorava em silêncio e abraçou-o, enquanto Tremal-Naik abraçava Ada.— Adeus, senhora —
Disse depois, apertando a mão da jovem que
soluçava. — Tenha esperança!Virou-se para o rajá que
o esperava perto da porta e levantando orgulhosamente a cabeça disse-lhe:— Estou às vossas
ordens, Alteza.Os quatro piratas e
Tremal-Naik saíram do fortim e tomaram lugar nas embarcações. Quando estas ganharam o largo dirigindo-se para
o Realista, viraram os olhares para o ilhéu.Na porta do recinto
estava o lorde com Ada à sua direita e Kammamuri à esquerda. Os três choravam.— Pobre tio, pobre miss
— Disse Sandokan, suspi-rando. — Fatalidade! Fatalidade! Mas a separação será breve e tu, James Brooke, perderás o trono!
XV
O IATE DE LORD JAMESA baía depois daquele
furioso bombardeamento e daquela tremenda luta que tinha destruído os indomáveis Tigres de Mompracem e vencidos os últimos sobreviventes do imbatível bando, estava novamente silenciosa.O Realista tinha-se
afastado com a pequena flotilha e as tropas do rajá tinham retomado o
caminho dos bosques para regressar a Sarawak. Apenas o iate permanecia ancorado próximo do ilhéu, à espera de Lord James que era o seu proprietário.Ada diante do fortim,
sentada num pedaço da muralha que as balas dos canhões tinham poupado, soluçava e perto dela estavam o
velho lorde e Kammamuri.— Vamos embarcar,
minha sobrinha — Dizia o lorde. — Não é com lágrimas que podemos salvá-los.— É verdade, patroa —
Dizia o marata. — É preciso agir e depressa. Lembrai-vos de que dentro de quarenta dias Sandokan será levado para a Indira e que se aquele homem não
estiver aqui, talvez nem o meu patrão possa ser libertado.— Tenho a alma partida,
tio. Eu não sei, mas dir-se-ia que sobre mim pesa a maldição da horrível divindade dos tugues.— Deixa-te de
semelhantes superstições, Ada, e partamos.— Mas para onde?
— Para Mompracem — Disse uma voz atrás deles.Todos se viraram e
deram com um pirata com o rosto desfigurado e sujo de sangue.— Quem sois? —
Perguntou o lorde, recuando.— Aier-Duk, um dos
chefes de bando do Tigre da Malásia.
— Ainda vivo! — Exclamaram Ada e Kammamuri.— Pensei que um
homem livre poderia ser mais útil ao capitão do que um morto, e quando vi que a batalha estava perdida deixei-me cair entre os cadáveres.— Mas, desgraçado, tu
estás ferido! — Exclamou Ada.— Bah! — Fez o pirata
encolhendo os ombros.
— A bala que me atingiu só passou de raspão no meu crânio.— É uma sorte estares
vivo — Disse o lorde. — Irás tu a Mompracem buscar os bandos de Sandokan.— Estou pronto para
partir, milord. Ouvi tudo o que me disse o capitão e basta-me um barco a remos para ir já para o largo. Embarcarei todos os Tigres de Mompracem
e conduzi-los-ei até ao neto de Muda-Hassin.— Vou arranjar-te um
barco a vapor — Disse o lorde. — Eu possuo um.— Quando poderei
partir?— Assim que chegarmos
a Sarawak. A bordo, meus amigos, e regressemos à cidade.— Vamos, tio — Disse
Ada. — Não serei menos que Tremal-Naik e os seus valorosos amigos.
— Uma palavra, milord— Disse Kammamuri.— Fala.— O rajá não ficará
desconfiado com o nosso regresso a Sarawak? Talvez fosse melhor deixá-lo acreditar que partimos para a Indira.— É verdade — Disse
Lord James, impressionado por aquela reflexão. — Poderia pensar numa tentativa para
libertarmos Sandokan e Tremal-Naik. És muito perspicaz, Kammamuri.— Sou marata —
Respondeu o indiano, com orgulho.— Milord — Disse Aier-
Duk — Sabeis onde se encontra o neto de Muda-Hassin?— Em Sedang.— Livre?— Vigiado.
— Sedang fica no rio homónimo, se não me engano.— Sim.— Lançai âncora na foz
desse curso de água, milord, e eu virei ter convosco com a frota de Mompracem dentro de quatro semanas. Enquanto isso procure aproximar-se do neto de Muda-Hassin e pô-lo ao corrente dos
acontecimentos que se preparam.— Acho que é o melhor
projecto — Disse o lorde. — Desse modo, evitaremos a desconfiança do rajá. Vamos embarcar, amigos: já nada temos a fazer aqui.Uma chalupa do iate,
com seis marinheiros, esperava-os na extremidade do ilhéu. O lorde, Ada, Kammamuri e
o pirata milagrosamente escapado à morte embarcaram e chegaram ao pequeno navio.Aquele iate era um dos
mais belos e mais elegantes alguma vez vistos naqueles mares. Tinha, no máximo, cento e cinquenta toneladas a querena estreita, a proa cortada em ângulo recto mas construída à prova de recife e estava
equipado em goleta, com velas enormes.Lord James, como um
verdadeiro senhor, tinha mandado mobilá-lo com requinte. A cabina e o salão não podiam ser mais elegantes, nem mais cómodos, e a cave e a despensa não podiam estar melhor abastecidas.A tripulação era de vinte
homens, escolhidos na sua maioria entre os
buguises, valentes marinheiros que não cedem aos malaios, que são considerados os mais intrépidos lobos-do-mar de todo o vasto arquipélago da Sonda.Apenas o mestre e o 2º
capitão eram de outra raça, mestiços anglo-indianos, certamente alunos da escola marítima de Calcutá ou de Bombaim.
Assim que o lorde pisou o iate, o 2º capitão, que era um belo homem de estatura alta, com a pele ligeiramente bronzeada, traindo o cruzamento do sangue indiano com o europeu, olhos muito pretos e bastante inteligentes e feições enérgicas, mas que ainda tinham qualquer coisa de orgulho selvagem, avançou dizendo:
— Devo apontar a proa na direcção da baía, milord?— Sim — Respondeu o
velho capitão — Mas vamos para Sedang e não para Sarawak.— Está bem, milord.
Tendes outras ordens para me dar?— Dêem dois quartos a
estes homens — Continuou o lorde, indicando Kammamuri e
Aier-Duk — E mandem tratar o ferido.Depois deu o braço a
Ada e conduziu-a até à popa, e, em seguida, a uma cabina elegantíssima, dizendo-lhe:— Estás em tua casa,
minha sobrinha.— Obrigada, tio —
Respondeu ela. — Vamos partir já?— Neste instante.
— E quando chegaremos a Sedang?— Dentro de três dias,
se o vento se mantiver favorável.— Estou impaciente por
ver o neto do sultão.— Acredito.— Acha que vamos
conseguir, tio?— Apoiados pelos Tigres
de Mompracem, sim, minha sobrinha.— Então eles são
homens terríveis?
— Viste agora mesmo como se batiam. Quando souberem que o seu chefe está preso, acorrerão todos e morrerão para o salvar.— Adoram aquele
homem valoroso?— Loucamente. Eu
conheço aqueles homens, que em tempos foram meus inimigos. Quando lutam, são mais ferozes do que os tigres,
e os canhões não chegam para os parar.— Mas será que o neto
de Muda-Hassin tem partidários?— Sim, e muitos. Brooke
é temido pelos seus soldados, mas odiado pelas atrocidades que cometeu contra os piratas malaios.— Mas é um homem
enérgico e vai defender-se de maneira terrível.
— É verdade, mas não poderá resistir à onda devastadora que o irá arrastar.— Se isso pudesse
acontecer depressa, tio — Disse Ada, suspirando. — Pobre Tremal-Naik! Ver-se outra vez separado de mim, quando a felicidade lhe sorria! Ah! Meu tio, nascemos ambos sob uma má estrela.
— Será a última prova, Ada. Quando o tivermos libertado conduzir-vos-ei à Indira, mas longe de Calcutá para vos proteger das vinganças do impiedoso Suyodhana.— E Sandokan também
virá?— Ele! É um homem que
não foi feito para a vida tranquila, mas quem sabe... Talvez até nos seguisse até à Indira,
mas para levar a cabo uma luta tremenda contra os tugues e o seu chefe. Chega: descansa tranquilamente na tua cabina, estás a precisar, Ada. Eu vou voltar para a coberta.O lorde abandonou a
cabina e subiu para a coberta.O iate velejava na ampla
baía de Sarawak com a proa virada a leste.
O mar estava deserto. O Realista e a pequena frota, que haviam partido uma hora antes, já deviam ter chegado à foz do rio e talvez estivessem para aportar à cidade, levando com eles os prisioneiros.Ainda na costa, que se
desenhava para sul, formando um arco imenso, parecia estar desabitada. Viam-se somente florestas
escuras que se estendiam até ao mar e mais além agigantava-se o alto cone do Matang.O vento, que se
mantinha muito favorável, empurrava o rápido iate com uma velocidade de seis ou sete nós por hora. Se aquele ritmo não diminuísse, dentro de dois dias, e não de três, aquele rápido veleiro
poderia chegar à foz do Sedang.Três horas depois,
quando o iate se encontrava quase em frente do Sarawak, a chalupa a vapor que estava amarrada à popa, era puxada até debaixo da escada de estibordo. A máquina já estava sob pressão e a hélice pronta a funcionar.Aier-Duk, a quem
tinham tratado o
ferimento, apareceu na coberta, pronto a tomar o largo na direcção de Mompracem.— As vossas instruções,
milord-disse.— Já as conheces: armar
a frota e vir até à foz do rio. Quantos homens ficaram em Mompracem?— Duzentos, mas valem
por mil.— Tendes paraus
suficientes?
— Temos trinta armados com quarenta canhões e sessenta espingardões.— No regresso não se
deixe surpreender pela frota do rajá.— Se a encontrarmos,
destrui-la-emos, milord.— E dão o alarme.— Sim. Agiremos com
prudência.— Parte: os minutos são
preciosos. A chalupa percorre dez nós por hora e em dois dias
podes estar em Mompracem.— Até breve, milord.Aier-Duk desceu até à
chalupa onde o esperavam dois artilheiros e deu o comando para tomar o largo. Um quarto de hora depois, a rápida embarcação já só era um ponto negro visível na superfície azul do mar.O iate tinha retomado o
rumo para leste,
mantendo-se ao largo da foz do Sarawak, para não ser avistado pelos pequenos barcos da guarda costeira do rajá, já que o lorde queria chegar a Sedang sem ser observado.Durante a noite o rápido
veleiro ultrapassava a pequena baía e, na manhã seguinte, mareava rumo à costa.Às sete da tarde, uma
vez que o vento se havia
mantido bastante fresco, chegava à foz do rio, em cujas margens se eleva a pequena cidade de Sedang.A âncora foi lançada a
pique numa pequena enseada meio escondida por altíssimos durion e por esplêndidas árvores sacaríferas cujas folhas plumosas projectavam uma sombra escura sobre as margens.
— Vê-se alguém, tio? — Perguntou Ada que tinha subido para a coberta.— A foz está deserta —
Respondeu o lorde. — Sedang é uma cidade pouco frequentada.— Quando iremos ter
com o neto de Muda-Hassin?— Amanhã, mas é
preciso mudar de pele.— Que quer dizer?— Homens brancos
seriam logo notados e
não tardariam a informar o rajá.— O que devemos
fazer?— Vestirmo-nos de
indianos e deixar que nos pintem a cara.— Desde que possa
salvar Tremal-Naik e os seus valorosos amigos, estou disposta a tudo, tio.— Até amanhã, Ada.
XVI
O GOVERNADOR DE SEDANG
Doze horas depois uma chalupa tripulada com seis buguises da tripulação do iate, por lorde, por Ada e Kammamuri subia o rio para chegar a Sedang.Os marinheiros tinham
vestido os seus trajos nacionais que consistiam em saias de muitas cores e um pequeno turbante, e o lorde e Ada, pintados
com uma bela cor de bronze, tinham-se coberto de ricas vestes de cores vivas, apertadas na cintura por largas faixas de seda vermelha para passarem por príncipes indianos em viagem de passeio. Apenas Kammamuri tinha conservado o seu trajo de marata, que não podia despertar qualquer suspeita. O rio pouco largo e de águas
bastante turvas, estava quase deserto. Só de vez em quando aparecia nas margens uma das grandes cabanas colocadas sobre densas filas de postes, a uma altura de quinze ou vinte pés, de construção daiaque.Por outro lado, havia
grandes matas de árvores-da-borracha, de giunta wan, de piper nigrum já cobertos de
bagas avermelhadas que dão um grão bastante aromático, de gluga de cuja casca macerada se extrai uma espécie de papel; de imensas árvores de cânfora, que exalavam um perfume forte, e de bananeiras, de arecas e de rotang, plantas sarmentosas estas que naquelas regiões ocupam o lugar das lianas.
No meio daquela rica vegetação vêem-se, por vezes, macacos narigudos balançar-se nos topos das árvores ou esvoaçar os calaos gigantes, extravagantes aves com bicos enormes. Também apareciam bandos de esplêndidos argus, de catatuas negras e daqueles morcegos enormes a que os indígenas chamam kulang.
Ao meio-dia, a chalupa, que subia o rio com o favor da maré, chegava a Sedang, ancorando no extremo da povoação.Embora goze do nome
de cidade, Sedang mais não é do que uma aldeia semelhante a Kutsching, a segunda cidadela do reino de Sarawak. Naquela época, era composta por um aquartelamento de centena e meia de
cabanas colocadas sobre postes, quase todas habitadas por daiaques da costa, por algumas casinhas de telhados arqueados pertencentes a poucos chineses e por dois edifícios de madeira, um habitado pelo neto de Muda-Hassin que era vigiado como um prisioneiro, uma vez que não se ignorava a sua aspiração de reconquistar o trono, e o
outro pelo governador, criatura muito devota ao rajá e que tinha à mão cerca de vinte indianos armados.Uma vez que em
Sedang não existia sequer uma modesta taberna, o lorde adquiriu uma das mais belas casinhas chinesas, situada perto do rio, no extremo setentrional da cidadela, para aí conduziu Ada e
Kammamuri, dizendo em seguida à sobrinha:— A minha missão
acaba aqui. Tudo que podia fazer por ti sem comprometer a minha honra de marinheiro inglês e de compatriota de James Brooke, já fiz.«Na guerra que tu e os
teus piratas estão para fazer rebentar, eu não posso participar, apesar de o estado de Sarawak ser completamente
independente, não tenha elos com a Inglaterra e apesar de ter tido de lamentar ultimamente o rigor excessivo de Brooke para com Tremal-Naik. Eu continuo a ser teu tio e teu protector, mas como inglês devo manter-me neutro.»— Deixais-nos já, então?
— Disse Ada com pena.— É necessário. Volto
para o meu iate, mas não deixarei a foz do rio
antes de serem abertas as hostilidades para poder proteger-te, se for caso disso. Tu não esqueceste que és uma mulher bastante enérgica para agir até sozinha.— Oh, sim, tio! Estou
disposta a tudo.— Deixo-te quatro dos
meus marinheiros, encar-regados de te defender e de te ajudar. Obedecer-te-ão como se fosse a
mim e são homens de uma coragem comprovada e de uma fidelidade absoluta.«Adeus, e se algum
perigo te ameaçar, manda-me um dos meus marinheiros. O meu iate está armado e a qualquer pedido teu subirá prontamente o rio.»Abraçaram-se, depois o
lorde voltou a embarcar e desceu novamente o
rio. A jovem tinha ficado na margem e via-o afastar-se sem prestar atenção a um guarda do rajá que se tinha aproximado dela, observando-a com uma viva curiosidade, não sem alguma desconfiança.Apenas se apercebeu
dele quando o viu a seu lado.— Quem é a senhora? —
Perguntou o guarda.
A jovem deitou sobre aquele indiano um olhar penetrante...— O que queres tu? —
Perguntou-lhe.— Saber quem sois —
Respondeu o indiano.— Não te diz respeito.— É a ordem, uma vez
que é estrangeira.— Ordem de quem?— Do governador.— Não o conheço.
— Mas ele tem de saber quem desembarca em Sedang.— E qual é o motivo?— Está cá o neto de
Muda-Hassin.— Não sei quem seja.— O neto do sultão que
antes reinava em Sedang.— Não conheço sultões.— Não importa: eu
tenho de saber quem é.— Sou uma princesa
indiana.
— De que região?— Da grande tribo dos
maratas — Disse Kammamuri que se tinha aproximado deles silenciosamente.— Uma princesa
marata! — Exclamou o indiano, estremecendo. — Mas eu também sou marata.— Não, tu és um
renegado — Disse Kammamuri. — Se tu fosses um verdadeiro
marata serias livre como eu e não um escravo de um homem que pertence à raça dos nossos opressores, de um inglês.Os olhos do soldado do
rajá brilharam de ira, mas logo esse brilho se apagou e baixou a cabeça, murmurando:— É verdade.— Vai-te — Disse
Kammamuri. — Os maratas livres desprezam os traidores.
O indiano estremeceu, depois, levantando os olhos que estavam húmidos, disse com voz triste:— Não, não esqueci a
minha pátria, não esqueci a minha tribo, não se apagou no meu coração o ódio para com os opressores da Indira e ainda um marata.— Tu! — Disse
Kammamuri, com maior
desprezo. — Dá-me uma prova!— Manda.— Esta é a minha
patroa, uma princesa de uma das nossas melhores tribos. Jura-lhe obediência como o fizeram todos os filhos livres das nossas montanhas, se ousares!O indiano lançou um
rápido olhar em volta para se certificar que não o observavam, depois
caiu aos pés de Ada, dizendo:— Manda: por Siva, Vishnu e Brama, divindades protectoras da Indira, juro obedecer-te.— Agora reconheço-te como um compatriota — Disse Kammamuri. — Segue-nos!Entraram na habitação
do chinês que os quatro marinheiros do iate vigiavam, tendo
pendurados nos cintos revólveres para proteger a sobrinha do patrão contra qualquer atentado da parte dos guardas do rajá, e pararam num quartinho com as paredes cobertas de papei às flores de Tung, mobilada com ligeiríssimas cadeiras de bambu e com mesas cheias de bules e de xícaras de porcelana.
— Manda — Repetiu o indiano, prostrando-se novamente diante de Ada.Então a jovem, fixando
sobre ele um demorado olhar, como se quisesse ler-lhe na alma, disse-lhe:— Sabes que odeio o
rajá?— Tu! — Exclamou o
indiano, levantando novamente a cabeça e olhando-a com espanto.
— Sim — Disse a jovem com energia.— Tens algum motivo
para te queixares dele?— Não, mas odeio-o
porque é inglês, odeio-o porque sou marata e ele pertence à raça dos opressores da Indira e porque em tempos pertenceu à companhia que destruiu a independência dos nossos rajás.
«Nós, povos livres, jurámos ódio eterno a esses homens da longínqua Europa e, não podendo atingi-los na Indira, procuramos destruí-los noutras paragens.»— Mas então tu és
poderosa?.. — Perguntou o indiano, com ainda maior espanto.— Tenho homens
valorosos, tenho navios e canhões.
— E vens trazer a guerra até aqui?— Sim, já que aqui
encontro um opressor da nossa pátria que agora tenta oprimir outros homens de cor como nós.— Mas quem te ajudará
na tua tarefa?— Quem? O neto de
Muda-Hassin.— Ele!— Ele.— Mas ele está preso!
— Nós vamos libertá-lo.— E ele sabe que tu te
estás a preparar para lutar a seu favor?— Não, mas hei-de vê-
lo.— Já te disse que está
preso.— Havemos de enganar
a vigilância dos guardas.— De que maneira?— Vais ser tu a descobri-
la.— Eu!
— Esta é a prova que espero de ti, se fores um verdadeiro marata.— Jurei obedecer-vos, e
Bangawadi não faltará à palavra dada — Disse o indiano com voz solene.— Ouçamos — Disse
Kammamuri, que até então tinha estado silencioso. — Quantos guardas vigiam Hassin?— Quatro.— Dia e noite?— Sempre.
— Sem nunca o deixarem?— Nunca o abandonam.— Há algum marata
entre esses indianos?— Não, são todos de
Gujerate.— Fiéis ao governador?— Incorruptíveis.O marata fez um gesto
agastado e pareceu mergulhar em pensamentos profundos.
— Existem — Disse, após alguns instantes. — Quem é o governador?— Um mestiço anglo-
bengalês.— Então não trairá o
rajá.— Não! — Exclamou o
indiano.— Está bem.Procurou no cinto amplo
que lhe apertava os flancos e tirou um diamante do tamanho de uma avelã.
— Vai ter com o governador — Disse, dirigindo-se ao indiano — E diz-lhe que a princesa Raibh lhe oferece este presente e que pede para o visitar.— Mas o que pretendes
fazer, Kammamuri? — Perguntou Ada.— Depois digo-vos,
patroa. Vai, Bangawadi: contamos com o teu juramento.
O indiano pegou no diamante, prostrou-se uma última vez diante da jovem e saiu em passos rápidos.Kammamuri seguiu-o
com olhar enquanto pôde, depois, dirigindo-se a Ada, disse-lhe:— Creio, patroa, que
vamos conseguir.— O quê?— Raptar Muda-Hassin.— Mas de que maneira?
Kammamuri, em vez de responder, tirou do cinto uma caixinha e mostrou algumas pequeníssimas pílulas que exalavam um estranho odor.— Deu-mas o senhor
Eanes — Disse ele — E sei por experiência o quanto são potentes. Basta deixar cair uma num copo de água ou de vinho ou de café para adormecer
instantaneamente a pessoa mais robusta.— E para que é que
servem? — Perguntou a jovem com maior surpresa.— Para adormecer o
governador e os guardas que vigiam a casa de Hassin.— Não consigo
compreender-te.— Com o presente que
lhe mandámos, o gover-nador há-de convidar-nos
para jantar ou nós a ele. Eu encarrego-me de lhe dar o narcótico e quando o virmos adormecido iremos ter com Hassin, e aí repetiremos o jogo com os guardas.— Mas achas que esses
indianos nos vão deixar ver o prisioneiro?— Bangawadi
encarregar-se-á de nos abrir o caminho, fingindo ter recebido a ordem do
governador para nos deixar visitar Hassin.— Mas para onde
levaremos o prisioneiro?— Para onde ele quiser,
onde quer que estejam os seus partidários. Eu encarrego-me de mandar os nossos procurar cavalos.Preparava-se para sair,
quando viu regressar Bangawadi. O indiano parecia contente, porque
tinha um sorriso nos lábios.— O governador está à
vossa espera — Disse ele, entrando.— Gostou do presente?
— Perguntou Kammamuri.— Nunca o vi de tão
bom humor como hoje.— Vamos, patroa —
Disse o marata.Saíram precedidos pelo
guarda e seguidos pelos quatro marinheiros do
iate que tinham recebido ordem do lorde para não a deixar sozinha um só instante. Poucos minutos depois chegavam ao palácio do governador de Sedang.Aquele edifício, que os
habitantes pomposamente chamavam palácio, era uma modesta casa de madeira, de dois andares, com o telhado coberto de telhas azuis
como as habitações do bairro chinês de Sarawak, rodeada por uma paliçada e defendida por dois canhões enferrujados, que ali estavam mais para meter medo do que para serem utilizados, já que não poderiam disparar dois tiros seguidos sem rebentar. Uma dúzia de indianos, vestidos como os sipaios de Bengala, de casaco
vermelho, calças brancas, turbante na cabeça, mas descalços, perfilavam-se em frente do muro e apresentaram as armas, com garbo, à princesa dos maratas. O governador esperava a jovem ao fundo da escada, sinal evidente de que aquele presente de grande valor tinha surtido algum efeito.Sir Hunton, comandante
de Sedang, era um
anglo-indiano que tinha tomado parte no cruzeiro sangrento do Realista contra os piratas de Bornéu, na qualidade de mestre de tripulação.Não tinha mais de
quarenta anos, mas aparentava ter mais. Era alto como todos os da raça indiana; tinha a pele ligeiramente bronzeada com um tom dourado, os olhos eram muito negros, a barba mais espessa do
que a dos indostanos puros e já grisalha.Tendo dado provas de
grande coragem e de fidelidade, tinha sido destinado ao comando de Sedang, encarregue de exercitar uma vigilância activa sobre o neto de Muda-Hassin, já que James Brooke não ignorava que no parente do defunto sultão havia um poderoso e perigoso rival.
Sir Hunton, vendo a princesa indiana, foi ao seu encontro estendendo-lhe a mão e descobrindo a cabeça, depois ofereceu-lhe galantemente o braço e conduziu-a a uma saleta decorada com uma certa elegância e com móveis europeus.— A que é que devo a
honra da vossa visita, Alteza? — Perguntou ele, sentando-se em frente
da jovem. — É um caso raro ver chegar a esta cidadela, perdida nas fronteiras do reino, uma pessoa distinta como vós.— Estou a fazer uma
viagem pelas ilhas da Sonda, sir, e não quis esquecer-me de ver também Sedang, uma vez que só aqui tenho a possibilidade de admirar esses formidáveis
cortadores de cabeças chamados daiaques.— Veio aqui por pura
curiosidade? Pensava que fosse com outro objectivo.— E que motivo poderia
ser?— Para ver o neto de
Muda-Hassin.— Não sei quem seja.— Um rival do rajá
Brooke, que passa o seu tempo a sonhar com contínuas conspirações.
— É então um homem interessante?— Pode ser.— Com a vossa licença
não deixarei de o visitar.— Não o permitiria a
mais ninguém, mas a vós, Alteza, que vindes da Indira e que portanto não podeis ter qualquer interesse além da curiosidade, não negarei este favor.— Obrigada, sir.
— Pensais permanecer aqui por muito tempo?— Alguns dias, até o meu iate ser reparado de algumas avarias.— Chegou num iate?— Sim, sir.— E depois vai para
Sarawak?— Certamente: quero
ver o famoso exterminador dos piratas; sou uma das suas mais fervorosas admiradoras.
— É um homem com valor, o rajá!— Acredito.— Regressa ao iate esta
noite?— Não, aluguei aqui
uma pequena casa.— Então espero que me
dê a honra de aceitar a hospitalidade da minha residência.— Ah! Senhor!— É a melhor de
Sedang.
— Obrigada, sir, mas prefiro estar livre.— Então espero que me
faça companhia hoje.— Não poderia recusar
uma tal cortesia.— Farei o possível para
que não se aborreça, Alteza.— Entretanto, deixai-me
ver o vosso prisioneiro real — Disse Ada, rindo.— Depois do jantar,
Alteza. Beberemos o chá em casa de Hassin.
— É um homem gentil ou um selvagem?— Um homem astuto e
educado, que nos há-de acolher bem.— Conto convosco,
senhor. Esta noite serei vossa comensal.Tinha-se levantado a um
sinal de Kammamuri, que a seguira, ficando num canto da saleta. O governador imitou-a e conduziu-a até à porta, onde a companhia de
indianos lhe prestou as honras devidas ao seu estatuto de princesa. De regresso à sua habitação, sempre seguida por Kammamuri e pelos quatro marinheiros ingleses do iate, encontrou o indiano Bangawadi que a esperava à porta, com um ar impaciente.— Ainda tu? —
Perguntou a jovem.
— Sim, patroa, — Respondeu ele.— Tens novidades?— Falei com Hassin.— Quando?— Há poucos minutos.— E o que é que lhe
disseste?— Que algumas pessoas
se interessam pela sua sorte e que procuram ajudá-lo a evadir-se.— E o que é que te
respondeu?
— Que está pronto a tudo.— És um bom homem,
Bangawadi.— E sê-lo-ás ainda mais
se voltares para junto dele — Acrescentou Kammamuri.— Estou à vossa
disposição.— Vai então e diz-lhe
que esta noite a princesa Raibh irá visitá-lo na companhia do governador e que tente
ficar sozinho, pelo menos nos seus aposentos. Diz-lhe também que deixe comigo a preparação do chá para o governador.Depois, tirou do cinto
um pequeno diamante e estendeu-lho, acrescentando:— Isto é para ti e
pagarás a bebida às sentinelas que vigiam a casa de Hassin. Logo à noite pago eu!
XVII
A FUGA DO PRÍNCIPE HASSIN
Sir Hunton, que estava certo de ter convidado uma autêntica princesa indiana e que não tinha a mínima suspeita da trama tão habilmente urdida pelo astuto marata, fez as honras da casa com a mais requintada cortesia e sem poupanças, tendo ganho um diamante que
não valia menos de trinta mil liras.A refeição oferecida à
princesa convidada não podia ser melhor. O cozinheiro tinha saqueado a despensa, as capoeiras dos daiaques e os viveiros de peixe. Não faltavam sequer garrafas autênticas de vinho de Espanha que o governador tinha recebido de presente de um amigo das Filipinas e
que tinha reservado, com grande cuidado, para as grandes ocasiões.Ada honrou a refeição e
competiu com o go-vernador na amabilidade. Procurou, sobretudo, fazê-lo beber muito, com infinitos brindes: à Indira, à prosperidade de Sarawak, de Sedang, do rajá e da velha Inglaterra.Começava a anoitecer
quando estavam para
dar a primeira dentada no tradicional pudding.— O príncipe Hassin vai
inquietar-se por não nos ver — Disse Ada, depois de ter lançado um olhar para fora. — A escuridão cai rapidamente, senhor governador.— Já foi avisado de que
iremos tomar chá a casa dele, Alteza — Respondeu Sir Hunton.— Não o façamos
esperar demasiado.
— Se pensa assim, levantemo-nos.— Um passeio à beira do
rio far-nos-á bem.Tinha-se levantado,
colocando sobre a cabeça uma rica mantilha de seda para se defender da humidade da noite, que é bastante perigosa naquelas regiões. Kammamuri, que tinha participado na refeição, na sua qualidade de secretário
da amável princesa, já havia saído.Dois marinheiros do iate
esperavam-no à beira-rio.— Está tudo pronto? —
Perguntou-lhes.— Sim — Responderam.— Quantos cavalos
compraram?— Oito.— Onde é que nos
esperam?— Na entrada do
bosque.
— Está bem: voltem para junto dos vossos companheiros.Ada saía nesse
momento pelo braço do governador. Kammamuri juntou-se a ela e, com um rápido gesto, fez-lhe compreender que tudo estava em ordem.A noite estava
esplêndida. A oriente uma nuvem ligeiramente rosada, mas que rapidamente se ia
tornando cinzenta, indicava o lugar onde o sol se tinha posto. O céu cobria-se rapidamente de estrelas, que se espelhavam nas plácidas águas do rio.No rio, um ou outro
bateleiro cantava ainda uma monótona canção, enquanto os juncos chineses, os únicos barcos que sobem até Sedang, acendiam as monumentais lanternas
de papel oleado ou de talco.Mil perfumes vinham
das florestas vizinhas: as árvores de cânfora, a noz-moscada, as árvores de cravos e os mangostões exalavam os seus acentuados aromas.Ada não falava, mas
procurava apressar o passo; o governador, que tinha bebido demasiado, seguia-a fazendo
esforços para se manter direito.Felizmente o caminho
era breve. Poucos minutos depois encontravam-se diante do palácio real do herdeiro do sultão, um palácio muito modesto, já que mais não era do que uma casa pequena de dois andares, rodeada por uma varanda e guardada por quatro indianos armados,
encarregados de vigiarem atentamente o prisioneiro.O governador, após ter-
se feito anunciar, conduziu a princesa a uma saleta decorada com divãs e tapetes em grande parte já gastos, com alguns espelhos e com uma mesa sobre a qual estavam amontoados, na maior desordem, bugigangas chinesas, xícaras, bules,
bolas de marfim furadas e outras ninharias semelhantes.O neto de Muda-Hassin
esperava-os sentado numa velha poltrona meia partida, encimada por um pequeno crocodilo dourado, com o emblema dos sultões de Sarawak.O rival de James Brooke
tinha, naquela época, trinta anos. Era de estatura alta, porte
majestoso, com uma bonita cabeça coberta de longos e negros cabelos, com um rosto ligeiramente bronzeado, adornado com uma barba cor de fuligem, mas rala, e dois olhos ardentes e inteligentíssimos.Na cabeça usava o
turbante verde dos sultões de Bornéu e vestia um longo sobretudo de seda
branca, preso à cintura por uma larga faixa de seda vermelha, de cujas pregas saíam os punhos de dois kriss, distintivo dos grandes chefes, enquanto ao lado pendia um golok, pesado sabre malaio, comprido, afiadíssimo, de ferro batido.Ao ver entrar o
governador, levantou-se fazendo uma pequena vénia, depois fixou os
olhos na jovem com viva curiosidade, dizendo:— Bem-vindos a minha
casa.— A princesa Raibh
mostrou o desejo de vos vir visitar e eu conduzi-a, na esperança de vos fazer uma surpresa agradável — Respondeu o governador.— Agradeço-vos pela
vossa cortesia, senhor. São tão raras as distracções nesta cidade
e ainda mais raras as visitas! O rajá Brooke faz mal em deixar-me num completo isolamento.— Sabeis que o rajá
desconfia de vós?— Sem razão, uma vez
que eu já não tenho partidários. A sábia administração do rajá Brooke afastou-os de mim.— Os daiaques sim, mas
os malaios...
— Até esses, Sir Hunton... Mas deixemos a política e permiti que vos ofereça um bom chá.— Diz-se que tem um
excelente — Disse o governador, rindo.— Verdadeiro chá
florido, pode estar certo. O meu amigo Tai-Sin oferece-me sempre, quando aporta em Sedang.— Eis uma bela ocasião
para procurar partidários
entre os chineses de Cantão. Eu apostaria em como o vosso fornecedor de chá não ficaria embaraçado por vo-lo procurar.Um brilho sinistro
passou pelos olhos profundos do futuro sultão, mas não fez nenhum outro gesto que traísse a cólera interior.— Sirvam o chá —
Disse.
Kammamuri foi rápido a passar para uma sala contígua onde ouvia um ruído de xícaras, e pouco depois entrava seguido de um pequeno malaio que trazia um serviço completo numa bandeja de prata.O esperto marata deitou
a deliciosa bebida na xícara destinada ao governador e deixou cair uma pequena pílula que se dissolveu de imediato.
Ofereceu a primeira chávena à sua patroa, a segunda a Sir Hunton e a terceira ao sobrinho do sultão, depois regressou à sala contígua.Encheu rapidamente
quatro chávenas, dissolveu nelas outras tantas pílulas, depois disse ao pequeno malaio:— Segue-me com a
bandeja.
— Entraram mais convidados, senhor? — Perguntou o criado.— Sim — Respondeu o
marata com um sorriso misterioso. — Há outra saída sem passar pela sala?— Sim.— Vai à minha frente.O malaio fê-lo passar a
um terceiro quarto cuja porta dava para a rua. A poucos passos estavam
de vigia os quatro guardas.— Rapazes — Disse o
marata, avançando para eles. — A minha patroa, a princesa Raibh, oferece-vos o chá de Hassin. Bebam tudo à saúde dela e aqui está um punhado de rupias que vos pede que aceitem.Os quatro indianos não
se fizeram rogados. Embolsaram
solicitamente as rupias e emborcaram o chá de um só fôlego, à saúde da munificente princesa.— Boa vigia, rapazes —
Disse Kammamuri, ironi-camente.Regressou à sala do
neto do sultão. Nesse mesmo instante o governador, vencido pelo poderoso narcótico, rolava da cadeira abaixo, tombando pesadamente sobre os tapetes.
— Bom repouso — Disse o marata.Ada e Hassin tinham-se
levantado.— Morto? — Perguntou
este último, com um tom selvagem.— Não, adormecido —
Respondeu Ada.— E não acordará?— Sim, mas dentro de
vinte e quatro horas e nessa altura nós já estaremos muito longe.
— Então é verdade que a princesa veio aqui para me devolver a liberdade?— Sim.— E para me ajudar a
recuperar o trono dos meus antepassados?— É verdade.— Mas por que motivo?
O que poderei eu fazer por vós, senhora?— Sabê-lo-á mais tarde:
agora temos de fugir.— Estamos prontos a
segui-la: ordenai.
— Tem partidários?— Todos os malaios
estão comigo.— E os daiaques?— Combaterão sob as
bandeiras de Brooke.— Conhece um lugar
seguro onde podereis esperar que os seus partidários estejam reunidos?— Sim, o kampong do
meu amigo Orango-Tuah.— É longe?— Perto da foz do rio.
— Vamos: os cavalos estão prontos.— Mas os guardas?— Dormem como o
governador — Disse Kammamuri.— Vamos — Disse Ada.O jovem príncipe
recolheu as jóias contidas num pequeno cofre-forte, tirou de uma parede uma espingarda e seguiu Ada e Kammamuri, depois de lançar um último olhar
sobre o governador, que ressonava.Diante da porta jaziam
os quatro indianos, uns por cima dos outros, profundamente adormecidos. Kammamuri tirou-lhes as carabinas e as cartucheiras, depois assobiou.Do bosque vizinho
saíram os quatro marinheiros do iate e
Bangawadi, conduzindo oito cavalos.Kammamuri ajudou a
patroa a subir para um dos melhores, depois saltou agilmente para o arção de outro, dizendo:— A galope!O grupo, guiado pelo
príncipe que conhecia o caminho melhor que Bangawadi, pôs-se ao galope seguindo a orla da grande floresta que se
estendia pela margem direita do rio.Os cavaleiros já
estavam em frente da cidade, quando na margem oposta se ouviu uma voz gritar:— Quem passa?— Ninguém responda —
Disse o príncipe.— Quem passa? —
Repetiu a voz com tom ameaçador.Não recebendo qualquer
resposta, a sentinela que
devia ter avistado aquele grupo de cavaleiros apesar da escuridão da noite fez fogo, gritando:— Às armas!A bala passou
assobiando por cima do grupo e perdeu-se na floresta vizinha.— Depressa! — Gritou
Kammamuri.Os cavalos partiram,
enquanto se ouviam, vindos da cidade, os
guardas do palácio do governador gritar:— Às armas!O grupo percorreu um
bom troço de caminho da margem direita, depois, a uma milha da cidade, atravessou o rio para a margem esquerda para aproveitar a estrada que conduz até à costa.— Achais que nos vão
seguir? — Perguntou Ada ao príncipe.
— Temo que sim, senhora — Respondeu este. — A esta hora já devem ter encontrado o governador e apercebendo-se da minha fuga vão lançar-se na nossa peugada.— Mas são só vinte.— Dezasseis, senhora,
porque quatro estão a dormir.— Tanto melhor.
Poderemos repeli-los facilmente.
— Mas eles irão procurar socorro nas aldeias dos daiaques e antes de passarem doze horas teremos atrás de nós duzentos ou trezentos homens armados.— Acha que chegaremos
antes ao kampong?— Dentro de duas horas
estaremos lá e se vierem atacar-nos encontrarão um osso duro de roer. Dentro de dois dias espero juntar cinco ou
seis mil malaios e uma centena de paraus.— Os paraus estarão
armados com canhões?— Só alguns e esses
serão insuficientes para atacar a frota de Brooke.— Felizmente dentro de
quatro ou cinco dias chegará mais artilharia.— Artilharia? —
Exclamou o príncipe, estupefacto.
— Sim e servida pelos mais formidáveis piratas do Bornéu.— Quais?— Os de Mompracem.— De Mompracem?
Sandokan, o invencível Tigre da Malásia vem em meu auxílio?— Ele não, mas o seu
bando talvez já navegue a esta hora rumo à baía de Sarawak.— Mas onde está
Sandokan?
— Nas mãos do rajá.— Ele, prisioneiro? É
impossível!— Foi vencido por forças
vinte vezes superiores às dele, depois de um terrível combate e feito prisioneiro com o seu braço direito e o meu noivo. É para os salvar que vos fiz fugir.— Mas onde estão eles
agora?— Em Sarawak.
— Vamos libertá-los, senhora, juro. Quando os malaios souberem que os bandos de Mompracem tomarão lugar na luta, revoltar-se-ão todos. A James Brooke restam apenas alguns dias no poder.— Alto! — Gritou nesse
instante uma voz.O príncipe conteve
violentamente o seu cavalo e pôs-se em
frente da jovem desnudando o golok.— Quem é? — Gritou.— Guerreiros de
Orango-Tuah.— Vai dizer ao teu chefe
que o neto de Muda-Hassin vem visitá-lo.Depois dirigindo-se à
jovem e indicando-lhe uma massa escura que se erguia no limiar de uma grande floresta, disse-lhe:
— Eis o kampong! Agora podemos desafiar os guardas do governador.
XVIIIA DERROTA DE JAMES
BROOKEO kampongde Orango-
Tuah era uma grande aldeia malaia fortificada, como o são em geral todas as de Bornéu para se defenderem das incursões dos povos do interior e especialmente
dos daiaques, com os quais estão sempre em guerra.Era composta por
trezentas cabanas de madeira com os telhados cobertos de folhas de nipa, defendidas por altas e sólidas paliçadas e por densos arbustos com espinhos, obstáculos quase insuperáveis para os pés e os membros nus dos indígenas.
Os habitantes podiam também contar com uma meia dúzia de paraus armados com espingardas, ancorados num pequeno lago que comunicava com o mar através de um canal.Orango-Tuah, um malaio
robustíssimo, de tez escura, de olhos oblíquos e os malares bastante pronunciados, que antigamente percorria o mar antes da sangrenta
repressão de James Brooke, prontamente avisado, apressou-se a ir ao encontro do seu príncipe seguido por um grande número de súbditos que traziam ramos resinosos acesos.O acolhimento foi
festivo. Toda a população, acordada pelos tam-tam, acorreu em massa para felicitar o futuro senhor de Sarawak.
Orango-Tuah conduziu os hóspedes à melhor ca-bana da aldeia; depois, tendo tomado conhecimento que os guardas do governador os seguiam, mandou colocar cerca de cinquenta homens armados de espingardas nos bosques vizinhos, para os repelir.Tomadas estas medidas,
mandou reunir em conselho os seus
subalternos, para promover rapidamente a insurreição nas aldeias malaias e recolher um corpo considerável, antes que a notícia da fuga do príncipe chegasse a Sarawak.Na mesma noite,
quarenta emissários partiam para o interior e três paraus saíam para o mar para avisar os malaios da costa da grande luta que se
estava a preparar, enquanto outros dois eram enviados para navegar no cabo Sirik a fim de obrigar os bandos de Mompracem rumar até ao kampong.Ada, por seu lado,
enviou um dos marinheiros do iate até à foz do rio para avisar Lord James do que se estava a preparar.No dia seguinte, os
primeiros reforços
começaram a afluir ao kampong. Eram bandos de malaios, na maioria armados de espingardas, que acorriam de todo o lado para combater sob as bandeiras do seu príncipe.Do mar também
chegavam a cada momento paraus com numerosas tripulações e armados de algumas peças de artilharia.
Três dias depois sete mil malaios acampavam em torno do kampong. Esperavam apenas os bandos de Mompracem para se porem em marcha na direcção de Sarawak e cair, de repente, sobre a cidade.Todas as estradas do
interior tinham já sido bloqueadas para impedir os daiaques de levar notícias sobre o alastrar da insurreição ao rajá,
que ainda devia ignorar a fuga do seu formidável adversário.No quinto dia, a frota de
Mompracem lançava âncora na praia do kampong. Era composta por vinte e quatro grandes paraus, armados com quarenta canhões e sessenta espingardas e contando com duzentos combatentes que, pela coragem e pela
habilidade guerreira, valiam por mil malaios.Assim que
desembarcou, Aier-Duk foi ter com Ada que estava alojada na mesma habitação que Orango-Tuah.— Senhora — Disse-lhe.
— Os Tigres de Mompracem estão prontos para cair sobre Sarawak. Juraram que libertarão Sandokan e os
seus amigos, ou morrerão todos.— Os malaios já só
estavam à vossa espera — Respondeu a jovem. — Jurai-me, contudo, antes de mais, que não farão mal algum a James Brooke e que, se o vencerem, deixarão partir em liberdade.— Protegeremos a sua
fuga, já que assim o deseja. A senhora fala em nome do nosso
capitão e nós obedeceremos.Duas horas depois, o
exército malaio, comandado pelo futuro sultão, abandonava o kampong tomando o caminho da costa, enquanto a rota de Mompracem, na qual tinham embarcado Ada e Kammamuri, tomava o largo seguida por outros cem paraus que haviam acorrido de todas as
aldeias da vasta baía de Sarawak.Tinham sido tomadas
todas as medidas para surpreender a capital do rajá e fixado o dia para a atacar a partir de terra e a partir do rio.A rota que navegava
lentamente para deixar tempo às tropas para avançar, reunia-se todas as noites na costa para esperar os mensageiros de Hassin. Aier-Duk,
contudo, tinha algumas dificuldades em acalmar os Tigres de Mompracem, que ardiam de desejo de vingar a derrota do seu chefe.Para se manterem
ocupados, davam caça aos veleiros que se dirigiam para Sarawak, para impedir que o rajá recebesse notícias do avanço dessa esquadra suspeita.
Quatro dias depois, perto do pôr-do-sol, a frota alcançava a foz do rio. Nessa mesma noite, as tropas de Hassin cairiam sobre a capital.Aier-Duk ordenou ao
parau onde seguia Ada que se mantivesse escondido numa pequena enseada na foz, para não expor a jovem aos horrores da batalha, mas Kammamuri passou para o barco do chefe
uma vez que não queria ficar fora da acção naquele momento supremo.— Traz-me de volta
Tremal-Naik — Disse Ada, antes que se separassem.— Posso até ficar
aleijado, mas o patrão será salvo — Respondeu o bravo marata. — Assim que desembarcarmos irei cercar o palácio do rajá, porque estou certo de
que é lá que estão os prisioneiros.— Vai, meu valoroso
companheiro, e que Deus te proteja!Aier-Duk já havia dado
as ordens finais para o combate. Tinha colocado à cabeça da esquadra os paraus maiores, armados com canhões e onde seguiam os mais intrépidos piratas de Mompracem.
Estes deviam apoiar o primeiro embate e os outros fazer número contra a frota para a abordagem.Às 10 da noite a rota
pôs-se em movimento, subindo rapidamente o rio. Todas as velas tinham sido amainadas para manter as cobertas desimpedidas e os barcos pequenos subiam a remos.
O rio parecia deserto: nenhum navio inimigo, surgia nem perto da margem direita, nem da margem esquerda e até as florestas, fáceis de defender, não tinham soldados.Contudo, aquele silêncio
não tranquilizava Aier-Duk. Parecia-lhe impossível que não tivesse havido nenhuma informação sobre a insurreição que há cinco
dias rebentava pelo reino e que o rajá, homem astuto, audaz, bem servido pelos daiaques e pela guarda indiana, se deixasse surpreender. Temia, pelo contrário, uma emboscada perto da cidade e mantinha-se de olhos abertos e ouvidos atentos.À meia-noite a frota já
só estava a meia milha de Sarawak. Começavam a ser distintas na linha
do horizonte as primeiras casas.— Ouves alguma coisa?
— Perguntou Aier-Duk a Kammamuri, que estava ao seu lado.— Nada — Respondeu o
marata.— Este silêncio inquieta-
me. Hassin deveria já ter chegado e começado o ataque.— Talvez esteja à
espera de ouvir os nossos canhões.
— Ah!— O que foi?— A frota!Numa curva do rio tinha
aparecido uma massa imponente que parecia fechar a passagem. Eram os navios do rajá em formação de batalha, prontos a repelir o ataque. De repente, quinze ou vinte relâmpagos romperam a escuridão seguidos por um horrível estrondo. A
frota de Brooke tinha começado um fogo infernal contra a esquadra dos atacantes.Um imenso grito ecoou
pelo rio:— Viva Mompracem!— Viva Hassin!Quase no mesmo
instante, para norte da cidade, ouviam-se furiosas descargas de mosquete. As tropas de Hassin abatiam-se sobre a capital.
— À abordagem, Tigres de Mompracem! — Trovejou Aier-Duk. — Viva o Tigre da Malásia!Os paraus lançam-se
contra os navios do rajá. Ninguém resiste à fúria daquele ataque.Num instante, os navios
são cercados de todos os lados por aqueles barcos com os mais intrépidos navegadores do mar da Malásia a bordo.
Tigres e malaios sobem pelos flancos dos navios, passam as amuradas, invadem as cobertas, cercam as tripulações impotentes face a tanta fúria, desarmam-nas e encerram-nas nos porões e nas baterias. As bandeiras do rajá são amainadas e em seu lugar hasteadas as bandeiras vermelhas de Mompracem decoradas com a cabeça de tigre.
— A Sarawak! — Trovejam Kammamuri e Aier-Duk.Os paraus retomam o
largo para se abaterem sobre a cidade. A batalha, levada a cabo pelas tropas malaias, aquece e é sangrenta nas ruas da cidade.Em todos os bairros
estalam os mosquetes e até nos canais. Ouvem-se os gritos dos malaios que avançam para a
praça onde se ergue o palácio do rajá.Algumas casas ardem
em vários locais deitando em volta uma luz avermelhada, enquanto no ar esvoaçam fagulhas que o vento leva para longe pelos campos.Aier-Duk e Kammamuri
atracam no declive e, encabeçando quatrocentos homens, irrompem no bairro
chinês cujos habitantes também se insurgiram.Duas companhias de
indianos da guarda, destacados à saída do bairro, procuram repeli-los com duas descargas, mas os Tigres de Mompracem atacam-nos com as cimitarras em punho e põem-nos em fuga desordenada.— Para o palácio! —
Grita Kammamuri.
E, arrastando atrás deles aqueles bandos formidáveis, chega à grande praça. O palácio do rajá é defendido apenas por um punhado de guardas que, após uma breve resistência, dispersam.— Viva o Tigre da
Malásia! — Bradam os piratas de Mompracem.Uma voz, sonora como
uma trompa, ecoa no interior do palácio:
— Viva Mompracem!É a voz de Sandokan. Os
tigres reconheceram-na.Irrompem pelas escadas
acima, deitam abaixo as portas que tinham sido barricadas, percorrem freneticamente os quartos e finalmente, numa cela defendida por sólidas grades, encontram Sandokan, Eanes, Tremal-Naik, Tanauduriam e Sambigliong.
Não lhes deixam tempo para falar. Pegam neles em ombros e levam-nos em triunfo para a praça, por entre gritos ensurdecedores.Nesse preciso instante,
uma onda de indianos fugitivos, repelidos pelas tropas de Hassin, abate-se sobre a praça.Sandokan tira a
cimitarra a um dos seus fiéis e lança-se no meio dos fugitivos seguido por
Eanes, por Tremal-Naik e por vinte dos seus homens.Os indianos
dispersaram, mas um homem ficou: James Brooke, com as roupas rasgadas, ainda empunhando o sabre ensanguentado, com o olhar turvo.— Sois meu! — Gritou
Sandokan, arrancando-lhe o sabre.
— O senhor! — Exclamou o rajá com voz grave. — Outra vez!— Devias-me uma
desforra, Alteza.— É por ironia que me
chama Alteza! O meu reinado acabou e eu mais não sou do que um prisioneiro largado às vinganças do neto daquele que eu defendi com a minha espada e que, como recompensa,
me deu um trono tão instável.— Não um prisioneiro,
James Brooke: o senhor é um homem livre — Disse Sandokan, abrindo-lhe alas entre os piratas. — Aier-Duk! Conduz S. A. à foz do rio e protege-o.O ex-rajá olhou
Sandokan com espanto, vendo depois irromper na praça os malaios de Hassin que emitiam gritos de morte contra
ele; seguiu rapidamente Aier-Duk que reunira em seu redor cerca de trinta homens.— Eis um homem que
jamais regressará a estas praias — Disse Sandokan. — O poder do rajá James Brooke desapareceu!
CONCLUSÃONo dia seguinte, o neto
de Muda-Hassin
instalava-se, com grande pompa, no palácio de James Brooke, antiga sede dos sultões de Sarawak.A população da cidade
inteira, que nunca havia perdoado ao rajá fugitivo a sua origem europeia, apesar da civilização e dos grandes melhoramentos introduzidos por aquele homem enérgico, corajoso e sábio, tinha
confraternizado com as tropas insurrectas.O novo sultão não foi
ingrato para com os seus aliados: ofereceu a Sandokan, a Eanes e a Tremal-Naik honras e riquezas, pedindo-lhes que ficassem no reino, mas todos recusaram.Dois dias depois,
Tremal-Naik e Ada, noivos e felizes, embarcavam com Kammamuri no iate de
Lord James rumo à Indira, levando com eles inúmeros presentes; e Sandokan e Eanes embarcavam com as suas tropas de regresso à ilha de Mompracem.— Rever-nos-emos um
dia? — Perguntaram Ada, Tremal-Naik e Lord James ao Tigre da Malásia, antes de se separarem.— Quem sabe? —
Respondeu Sandokan. — A Indira tenta-me e pode
ser que um dia o Tigre da Malásia e o Tigre das Sunderbunds se encontrem nas ilhas desertas do Ganges. Suyodhana! Eis um nome que me faz bater o coração; um homem que eu gostaria de conhecer. Adeus, tio; adeus, amigos; até à próxima!